Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Bokar Artedemorrer PDF
Bokar Artedemorrer PDF
Melhor ainda, a realização do modo de ser da mente tornará vão o aparecimento dos três
bardos da morte. Nesse caso, é um pouco como tomar um elevador para subir à
cobertura de um imóvel: apertamos o botão e não necessitamos parar nos andares
intermediários. Mesmo que essa realização não seja alcançada, o desenvolvimento
espiritual adquirido nesta vida tornará mais fácil a experiência dos bardos da morte,
permitirá eventualmente reconhecer sua natureza e libertar-se dela.
Os seis bardos não são seis domínios existindo independentemente de nós mesmos. Eles
estão ligados à nossa mente, que vive no erro. Sua manifestação procede de nossa
mente. É nossa mente que reconhece seu caráter enganador e deles se liberta.
A maneira como são vividos os seis bardos depende unicamente de nossa mente, pois
que são o reflexo da mente. Suponhamos uma casa composta de seis cômodos. As
paredes de cada um dos cômodos são recobertas de espelhos. Um homem habita essa
casa. Ele é sujo, hirsuto, esfarrapado, trejeitador. Ele passa de um cômodo a outro, mas
os espelhos sempre lhe retornam a mesma imagem, a de um homem sujo, hirsuto,
esfarrapado e trejeitador. Da mesma forma, quando nossa mente está marcada por muito
karma negativo cada um dos seis bardos retorna-lhe o sofrimento como um reflexo. O
habitante da casa pode - ao contrário- ser limpo, bem vestido, sorridente. Passando de
um cômodo a outro, ele vê em toda parte um rosto claro e sorridente. A casa é a mesma,
mas não há mais nenhuma feiúra nem visões apavorantes. Em vez disso, uma visão
agradável e tranqüila. Quando nossa mente está livre do karma negativo e das paixões
que a perturbam, os seis bardos retornam-lhe também uma imagem semelhante a si
mesma, cheia de paz e felicidade.
Agradáveis ou desagradáveis, as aparências não dependem dos seis cômodos, que são
neutros. O indivíduo que neles se encontra os impregna com sua própria natureza. Do
mesmo modo, as experiências errôneas dos seis bardos não dependem dos bardos, mas
de nossa própria mente.
A esse processo de reabsorção gradual dos quatro elementos sucede o processo dos três
caminhos, concomitante com uma fase denominada aparição-extenção-obtenção.
Podemos também ir mais longe, desenvolvendo uma compreensão mais profunda. Com
efeito, para além de sua manifestação, esses fenômenos têm uma essência pura à qual
podemos nos referir.
Se essas noções de deusas são para nós difíceis de aceitar ou de assimilar, podemos
desenvolver uma abordagem diferente pensando: "Os fenômenos que agora se
produzem são manifestações ilusórias de minha mente. Eles não existem em si mesmos,
são apenas uma produção de minha mente".
Os três caminhos têm igualmente por essência pura os três Corpos de Buddha:
o caminho branco: o Corpo de Manifestação [sânsc. nirmanakaya];
o caminho vermelho: o Corpo de Glória [sânsc. sambhogakaya];
o caminho negro: o Corpo Absoluto [sânsc. dharmakaya].
Eles não são, portanto, apavorantes em si mesmos.
Se, além disso, temos agora uma boa prática do mahamudra, reconheceremos o fim do
caminho negro como sendo a manifestação da "clara luz fundamental". Reconhecer essa
clara luz fundamental é "tornar-se Buddha no Corpo Absoluto do momento da morte".
Dizemos ainda que é ser "liberto enquanto Buddha no primeiro bardo". Quando o
Despertar é assim alcançado, o bardo não prossegue.
Se, em contrapartida, a clara luz fundamental não é reconhecida, a mente mergulha num
estado de profunda inconsciência, de uma duração variável, mas fixada, em regra geral,
em três dias e meio.
O conjunto do período que se estende desde o começo da dissolução dos elementos até
o fim dos três dias e meio de inconsciência constitui o bardo do momento da morte.
Pergunta: Quando se diz que os elementos "reabsorvem-se" uns nos outros, o que
significa aqui "reabsorver-se"?
Resposta: "Reabsorver-se" significa, nesse caso, que a energia que rege cada um dos
elementos deixa de ser funcional e reabsorve-se na energia do elemento seguinte.
Esse processo de reabsorção dos quatro elementos não ocorre apenas no momento da
morte, mas também, de maneira extremamente sutil, quando, por exemplo, dormimos
ou quando um pensamento desaparece da mente.
Resposta: Não, não exatamente. Esses termos não são utilizados para descrever o
processo de nascimento ou de cessação de um estado mental, seja no momento da morte
ou em outras circunstâncias, como o sono ou o pensamento. Conforme se trate de uma
cessação ou de um começo, há dois sistemas:
o sistema progressivo, quer dizer, o movimento do exterior para o interior;
o sistema regressivo, quer dizer, o movimento do interior para o exterior.
No momento da morte, é o sistema progressivo que entra em jogo.
O sistema progressivo, aquele que vimos para a morte, é também ilustrado pelo
adormecimento. Se representamos o exemplo do copo, a percepção do copo é a
aparição. Quando, em razão da chegada do sono, ele cessa de ser percebido, diz-se que a
aparição reabsorve-se na extensão. Depois, quando nos aprofundamos mais no sono, a
extensão reabsorve-se na obtenção. A extensão enceta o processo de absorção no
potencial de consciência. Quando a absorção é concluída é "a obtenção-clara luz", ou
ainda "a clara luz do modo de ser fundamental". De fato, ela só é verdadeiramente a
clara luz se é identificada. Caso contrário, é simplesmente a ignorância, a obscuridade
inconsciente.
Pergunta: Vimos que existe uma relação entre as três fases aparição-extensão-obtenção
e os três Corpos do Despertar. Como ela explicita-se?
Resposta: A aparição equivale ao caminho branco. Quando ele não é reconhecido pelo
que ele é na realidade, é percebido como uma experiência de cessação da produção de
agressividade no mental. Se reconhecemos sua essência, é o Corpo de Emanação.
Se reconhecemos esta última, dizemos então que a clara luz filhe e a clara luz mãe
encontram-se, o que significa que a experiência da clara luz do caminho expande-se na
clara luz fundamental. É o que denominamos tornar-se Buddha no primeiro bardo.
Em seguida, deve-se evitar tocar no corpo até que se tenha operado a transferência de
consciência (p'howa), ou então, durante três dias. A regra, no Tibete, era de nunca tocar
no corpo nos três dias que se seguiam à morte.
Pergunta: Em caso de morte acidental súbita há, todavia, um processo de reabsorção dos
elementos?
Resposta: A reabsorção dos elementos sem dúvida ocorre mesmo em caso de morte
acidental súbita, mas o processo desenvolve-se de maneira tão acelerada que não é
possível tomar consciência dele.
O bardo da natureza em si
Ao final dos três dias e meio de inconsciência, começa um outro período denominado o
"bardo da natureza em si". É um pouco como se se saísse de um sono profundo. Durante
esse período vão manifestar-se os Buddhas das cinco famílias, intrinsecamente
presentes em nossa mente, enquanto expressão das cinco sabedorias. É o segundo bardo
da morte, denominado o bardo da natureza em si.
No primeiro dia desse segundo bardo da morte, aparece o Buddha Vairochana. Ele
manifesta-se seja sob a forma de um Buddha, seja sob a forma de luzes ofuscantes de
cor azul organizando-se em figuras geométricas diversas. Ao mesmo tempo que essa luz
azul, aparece um clarão branco, mais suave, que corresponde ao mundo dos deuses.
Para quem não tem nenhuma noção do que se passa, a luz do Buddha, pela potência de
seu brilho, tem algo de pavoroso que leva a pessoa a se desviar dela. Está-se, ao
contrário, mais inclinado a seguir o clarão do mundo dos deuses, suave e agradável.
No segundo dia aparece a Buddha Vajrasattva, bem como uma luminosidade branca.
Manifesta-se ao mesmo tempo a luz escura do mundo dos infernos.
No quarto dia, aparece o Buddha Amitabha, bem como uma luminosidade vermelha.
Manifesta-se ao mesmo tempo o clarão amarelo do mundo dos espíritos ávidos.
No quinto dia aparece o Buddha Amoghasiddhi, assim como uma luminosidade verde.
Manifesta-se ao mesmo tempo o clarão vermelho do mundo dos animais e dos
semideuses.
Se, sem ceder ao pavor, reconhecermos essas divindades e sua luminosidade pelo que
elas são, somos liberados nesse segundo bardo, e não entramos no terceiro bardo da
morte.
A mente do bardo não tem corpo no sentido material do termo, mas possui, todavia, um
corpo mental dotado de faculdades sensoriais semelhantes às nossas. Esse corpo mental
desloca-se à velocidade do pensamento. Num instante ele pode, portanto, encontrar-se
em qualquer lugar do universo.
Aquele que, durante a sua vida, habituou-se a orar ao Buddha Amitabha para renascer
no Campo de Beatitude pode então orar novamente com força e libertar-se durante o
terceiro bardo, de modo que não precisará renascer.
Conquanto a duração do bardo do vir a ser seja variável, ela é geralmente fixada em
vinte e quatro dias. Adicionando os três bardos da morte que acabamos de descrever
brevemente, obtemos uma duração teórica de quarenta e nove dias, mas ela pode estar
sujeita a inúmeras variações.
(Bokar Rinpoche. Morte e Arte de Morrer no Budismo Tibetano. Tradução de Plínio
Augusto Coelho,
revisão técnica de Antonio Carlos da R. Xavier. Brasília: ShiSil, 1997. Pág. 15-32.)