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Governando a alma: a formação do eu privado
Nikolas Rose
Não creio que se deva considerar o "Estado moderno" como uma entidade que se desenvolveu à
parte dos indivíduos, ignorando o que eles são e até mesmo sua existência, mas, ao contrário, como
uma estrutura muito elaborada, à qual os indivíduos podem ser integrados, sob uma condição: que
se dê à sua individualidade uma nova forma e que se a submeta a um conjunto de mecanismos
específicos (Michel Foucault, 1982).
Essas novas formas de pensar e agir não dizem respeito apenas às autoridades. Elas
afetam cada um/a de nós, nossas crenças pessoais, desejos e aspirações: em outras palavras,
nossa ética. As novas linguagens empregadas na construção, compreensão e avaliação de
nós mesmos e dos outros têm transformado as formas pelas quais interagimos com nossos
chefes, empregadores, colegas de trabalho, maridos, esposas, amantes, mães, pais, filhos/as
e amigos/as. Nossos mundos mentais têm sido reconstruídos: nossas formas de pensar e
falar sobre nossos sentimentos pessoais, nossas esperanças secretas, nossas ambições e
decepções. Nossas técnicas para administrar nossas emoções têm sido remoldadas. A
própria idéia que temos de nós mesmos tem sido revolucionada. Nós nos tomamos seres
intensamente subjetivos.
Os estudos contidos no livro (Governing the soul, Routledge) do qual este ensaio
constitui a introdução tentam descrever algumas das formas pelas quais veio a se atribuir
um papel central, nas sociedades modernas, a esses aspectos subjetivos das vidas dos
indivíduos, à medida que eles conduzem suas trocas com o mundo, com outros e consigo
mesmos. As investigações que fiz tentam descrever as condições no interior das quais redes
de poder tomaram forma, as esperanças e os medos que estão por detrás delas, as novas
formas de pensar e agir que elas introduziram em nossa realidade. Minha abordagem difere
daquelas que se têm tornado mais influentes na literatura sociológica recente.1 Essa
literatura caracteriza-se por seu uso de um conjunto limitado de tropos interpretativos e
críticos: o empreendimento moral de grupos profissionais; a medicalização dos problemas
sociais; a ampliação do controle social; a natureza ideológica das asserções
epistemológicas; os interesses sociais dos cientistas; as ciências psicológicas como
legitimadoras da dominação. Este paradigma da "sociocrítica", se me perdoam o termo,
assinala algo importante sobre o surgimento desse novo conhecimento e dessas novas
técnicas. Mas considero limitada, sob diversos e importantes aspectos, [p.34] essa
perspectiva sobre as relações entre as ciências psicológicas, as profissões psicológicas e a
organização do poder político.
Essas tecnologias ramificantes da subjetividade têm tido conseqüências radicais para a vida
econômica, para a existência social e para a cultura política. Mas isto não exige que nós
localizemos sua origem ou princípios de explicação no estado ou que [p.41] vejamos esses
eventos como implementação de um programa coerente e racionalmente inventado para
assegurar a dominação de classe. Como sugeriu Michel Foucault, precisamos instalar o
acaso em seu lugar correto na história. Têm-se, freqüentemente, feito inovações para lidar
não com grandes ameaças à ordem política, mas com problemas que são locais, "menores"
ou até mesmo marginais. Programas para reforçar ou mudar as formas pelas quais as
autoridades devem pensar sobre (ou lidar com) este ou aquele problema têm às vezes
partido do aparato político central, mas, mais caracteristicamente, eles têm sido formulados
por outras forças e alianças: membros do clero, filantropos, médicos, policiais, advogados,
juízes, psiquiatras, criminologistas, feministas, servidores sociais, acadêmicos,
pesquisadores, chefes, trabalhadores, pais. A efetivação desses programas tem envolvido,
às vezes, legislação e tem, algumas vezes, implicado a instalação de novos ramos do
aparato político, mas tem sido também o trabalho de instituições de caridade, fundações,
fundos, organizações de empregadores, sindicatos, igrejas e associações profissionais. As
inovações feitas têm surgido, às vezes, de invenções radicalmente novas, mas, outras vezes,
têm envolvido a utilização ad hoc, a combinação e a ampliação de quadros explicatórios e
de técnicas existentes. Inovações esporádicas como essas têm, com freqüência, dado em
nada, têm fracassado ou têm sido abandonadas ou superadas por outras. Outras têm
florescido, têm-se espalhado para outros locais e problemas e se estabelecido como redes
duráveis e estáveis de pensamento e ação. E a partir dessas pequenas histórias adquiriu
forma um padrão mais amplo em cuja rede nós todos, homens e mulheres modernos, nos
tornamos enredados.
Notas
1. Como argumentei em outro local: Rose, 1988. Utilizo argumentos desse trabalho naquilo que se
segue.
2. Baseei-me nas idéias de Meyer naquilo que se segue.
3. Michel Foucault nos deu as idéias mais iluminadoras a respeito dessa questão. Veja, em
particular, Foucault, 1979, especialmente Parte 5; também seus ensaios "On governmentality"
(1979) e "Omnes et singulatim: towards a criticism of political reason" (1981). Para uma discussão
da noção relacionada de "polícia", ver Schumpeter, 1954, e Pasquino, 1978.
4. Sobre estatística, veja Pasquino (1978) e Hacking (1982). Sobre inscrição e cálculo, veja Latour,
1987.
5. Sobre a história das sociedades estatísticas na Grã-Bretanha, veja Abrams, 1968 e Cullen, 1975.
6. Minha discussão de "tecnologias" baseia-se no trabalho de Bruno Latour, Michael Callon, e John
Law. Veja suas contribuições em Law, 1986.
7. Veja, especialmente, Foucault, 1988; 1982.
Referências bibliográficas
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1968.
CULLEN, M. J. The Statistical Movement in Early Victorian Britain. Hassocks: Harvester, 1975.
[p.45]
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FOUCAULT, M. "Omnes et singulatim: towards a criticism of political reason". In S. McMurrin
(org.). The Tanner Lectures on Human Values, vol. 2. Utah: University of Utah Press, 1981.
FOUCAULT, M. "The subject and power". In H. Dreyfus e P. Rabinow. Michel Foucault: Beyond
Structuralism and Hermeneutics. Brighton: Harvester, 1982. (A epígrafe que N. Rose retirou desse
texto de Foucault foi traduzida diretamente do francês: FOUCAULT, M. Dits et écrits.1954-1988.
V. IV. Paris: Gallimard, 1994, p. 230. Nota do tradutor).
FOUCAULT, M. "Technologies of the Self". In L. Martin, H. Gutman e P. Hutton (orgs.).
Technologies of the Self. Londres: Tavistock, 1988.
HACKING, I. "Biopower and the avalanche of printed numbers". Humanities in Society, 5, 1982:
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Weinert e L. Sherrod (orgs.). Human Development and the Life Course. Hillsdale: L. Erlbaum,
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PASQUINO, P. "Theatrum politicum. The genealogy of capital - police and the state of prosperity".
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ROSE, N. "Calculable minds and manageable individuals". History of the Human Sciences, 1, 1988:
179-200.
SCHUMPETER, J. History of Economic Analysis. Nova York: Oxford University Press, 1954.
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Este ensaio constitui o capítulo introdutório do livro de Nikolas Rose, Governing the soul. The
shaping of the private self. Londres: Routledge, 1989: pp. 1-11. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva.
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Nikolas Rose é professor de Sociologia do Goldsmiths College, Universidade de Londres.
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