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Resumo
No presente artigo as autoras elegem determinadas passagens da vida e obra de Paulo Menotti
Del Picchia para analisá-las sob a ótica da Psicanálise. Suas contradições, duplicidades, capa-
cidade de deslizar por várias funções. Uma abordagem psicanalítica do duplo, religiosidade,
modernismo e conservadorismo político de um autor que participou do Movimento Moder-
nista de 1922.
Palavras-chave: Paulo Menotti Del Picchia, Literatura brasileira, Poesia, Biografia, Contradi-
ções, O duplo.
O homem foi sempre assim... Em sua inge- capa, incomoda e torna a voltar sussurrando
nuidade teme levar consigo o próprio sonho, sentidos que não apreendemos.
a esmo, e oculta-o sem saber se depois o acha- Desta forma, este artigo vai partir dos
rá... E, quando vai buscar sua felicidade,ele,não poucos dados que possuímos sobre Menotti
poderia encontrá-la em si mesmo,escondeu-a e das obras às quais tenho acesso. Estas serão
tão bem,que nem sabe onde está. (FRIAS, utilizadas através de trechos que exemplifi-
2004, p.146) quem o que estiver sendo investigado, assim
como também algumas de suas colocações.
É triste quando começamos a sentir saudades Não é uma crítica literária psicanalítica de
de nós mesmos. (REALE, 1988, p.38) sua diversificada produção, da sua vida ou
de uma obra em particular. É uma escuta
Existem opções para a aplicação teórica analítica do ruído que é a biografia de Paulo
da Psicanálise no objeto literário que é Pau- Menotti Del Picchia.
lo Menotti Del Picchia, (DACORSO, 2010).
Quando Freud, devido à sua admiração por Um soslaio ....
Leonardo da Vinci, resolveu escrever Leonar-
do da Vinci e uma lembrança de sua infância As memórias iniciais são apenas linguagem
(1910), seu ponto de partida foi a lembrança mental interjetiva como são os balbucios de
de Leonardo ‘..um abutre desceu até mim, uma garganta que descobre a voz e vai ten-
abriu-me a boca com a cauda e bateu várias tando a articulação de uma linguagem no
vezes em meus lábios com esta mesma cau- crescente anseio de comunicação. Fixação de
da” (FREUD, 1979a, p.76). Não foi um traba- imagens sem nexo. Lembram desarticulações,
lho que abarca Leonardo como um todo, mas os ingênuos desenhos rupestres, muda voz do
que trabalha a sublimação, a pulsão do saber homem fechado na fortaleza das cavernas ten-
e sua relação com a sexualidade através dos tando mandar à eternidade os estremeções do
dados biográficos e desta lembrança. Diante seu júbilo e os arrepios de seu terror cósmico.
disso, retomamos o que já afirmamos em ou- (MENOTTI DEL PICCHIA, 1970, p.30)
tro momento (DACORSO, 2010): não é pos-
sível, através de biografias ou autobiografias, O trecho acima é da autobiografia de Me-
reportagens ou textos sobre um autor ou mes- notti. Nele o autor parece perceber que nossa
mo lendo toda a sua obra, termos a preten- memória nos escapa, prega peças. É uma su-
são de abarcar sua personalidade como um cessão de imagens à qual o ego procura dar
todo pela psicanálise. Porque a leitura é sub- um sentido que seja da ordem do cognitivo,
jetiva e individual e o texto não é uma forma da consciência. Sentidos que vão se modifi-
fechada, rígida, com um único sentido, con- cando com o passar do tempo, já que os tra-
siderado correto a partir daquele que o inter- ços mnêmicos são dispostos de forma perma-
preta. É uma obra em aberto, se oferecendo nente e em vários sistemas, e só são reativados
àquele que o lê e que foi por ele seduzido. depois de investidos. Todas as recordações
Fomos seduzidas pela leitura dos pou- estão inscritas, mas serem evocadas depende
quíssimos dados biográficos de Paulo Me- da forma como são investidas, desinvestidas,
notti Del Picchia. Fomos provocadas na mi- contra-investidas. Uma recordação pode ser
nha curiosidade por escreverem tão pouco reatualizada num contexto associativo, ao
sobre ele, sua vida pessoal e pública. Fomos passo que, noutra, será inacessível à cons-
desejadas, no sentido analisado por Barthes ciência. É isso que Menotti percebe quando
(1973), quando lendo o pouco sobre Menot- tenta recuperar suas lembranças: “escrever
ti, alguns de seus poemas, outros escritos e memórias implica a pessoa convencer-se
entrevistas procuro apreender algo que es- a si mesma para um diálogo entre passado
e o presente, este tempo fugaz e em trânsi- revistas estrangeiras, tinha uma vasta biblio-
to” (MENOTTI DEL PICCHIA,1970, p.30). teca e participava de grupos com artistas, in-
Vamos trabalhar com os dados biográfi- telectuais, poetas, artesãos. Menotti usufruía
cos de Menotti como se fosse a recuperação dessas companhias e da extensa biblioteca do
de traços que, reinvestidos, se ligam a outros pai. “A curiosidade e a indagação desse ga-
dados ou outras colocações, sejam de sua bio- roto, nortearam minha sede de penetrar no
grafia, sejam de suas crônicas e/ou poemas. sentido das coisas” (MENOTTI DEL PIC-
Comecemos com uma pequena biografia CHIA, 1970, p.15). O pai de Menotti possuía
do autor. Paulo Menotti Del Picchia nasceu um espírito pouco prático e muitas aptidões:
em vinte de março de 1892, na cidade de São pintor, jornalista, poeta e construtor (REALE,
Paulo. Faleceu em 1988, com 96 anos, tam- 1988). Em 1982, numa entrevista, Menotti
bém em São Paulo. Quando tinha seis anos a traçou o perfil do pai: “Era um garibaldino,
família mudou-se para Itapira, no interior do grande artista e revolucionário, poeta, jor-
estado de São Paulo. Menotti nunca negou nalista, pintor, arquiteto, construtor. Só não
este lado interiorano, provinciano em seus sabia ganhar dinheiro” (DUCLÓS, 2005). A
escritos, nem em suas colocações sobre sua identificação, mais cedo ou mais tarde, se
vida. Mesmo sendo encantado com São Pau- apresenta. Menotti, o filho, passou por duas
lo e tendo feito inúmeras crônicas sobre o seu sérias crises financeiras em sua vida, conse-
crescimento, que foram utilizadas por Castro guiu se recuperar e terminou por ter certa
(2008) sobre a história da arquitetura e arte estabilidade financeira. E, também, foi um
da cidade. Uma das muitas dicotomias e con- homem de inúmeras aptidões, como poderá
trastes do poeta, escritor, político é a cidade ser percebido ao longo deste artigo.
do interior e o fascínio pelo crescimento da Menotti cursou direito na Faculdade de
capital, claramente exposto neste trecho de Direito do Largo de São Francisco-SP, tran-
crônica e presente em muitas outras: sitou na literatura, jornalismo e política.
Casou-se, em primeiras núpcias, em 1912,
São Paulo surge, assim, maravilhosamente, da com Francisca Avelina da Cunha Salles, com
noite para o dia, como uma cidade de encan- quem teve sete filhos, convivendo com ela
tamento, construída por ciclopes e realizada até 1930. Em 1934 temos uma nova Cons-
pela obra miraculosa de um sonho... Os bruxos tituição que vai recristianizar a legislação
constroem São Paulo. (CASTRO, 2008 p.126) brasileira, constando a indissolubilidade do
casamento, a não aceitação do divórcio e a
Sonho, modernidade, desenvolvimento, atribuição de efeitos civis ao casamento reli-
fantasia e mito se misturam. Esta mistura gioso (KOWALIK, 2006). Nesse ano de 1934,
que também estava presente em seu discurso Menotti foi viver com a pianista Antonieta
na Semana de Arte Moderna de 1922 (DA- Rudge. Ele era sete anos mais jovem do que
CORSO, 2009). O antigo e o novo. O homem ela. Concubinato com uma mulher sete anos
interiorano e o homem moderno, ambos de- mais velha e fazendo parte do Partido Inte-
nunciados em seus escritos e fascinados pelo gralista! Em 1967 sua primeira esposa faleceu
poder avassalador do progresso. Também e ele casou-se no ano seguinte, em segundas
em suas crônicas surgia o político do Parti- núpcias, com Antonieta, depois de viverem
do Integralista, que delimitava de forma bem juntos por 34 anos! Foram exímios anfitriões
clara: “braço que trabalha” e “cérebro que de artistas, intelectuais e políticos.
cria”. (CASTRO, 2008, p.128) O paradoxo Algumas colocações sobre Antonieta Te-
das mentes humanas! les Rudge (1885-1974). Começou a tocar
Seu pai, Luiz Del Picchia, italiano da Tos- piano muito cedo e apenas com vinte anos
cana, arquiteto sem diploma, assinava várias fez sua primeira turnê internacional. Na pes-
quisa que realizamos, ela é uma das poucas – suposição nossa – perde o jogo. Que outro
mulheres homenageadas com um busto na motivo haveria para se chutar um tabulei-
cidade de São Paulo, situado próximo à sua ro de xadrez? No quadro de número 73 na
residência. Foi casada em primeiras núpcias página 61 do livro de Reale (1988), a pessoa
com Charles Miller, o introdutor do futebol com quem Menotti joga é uma mulher – será
no Brasil, e separou-se dele para viver com Antonieta? – que se encontra em pé, com as
Paulo Menotti Del Picchia. Era especialista mãos nos joelhos e rindo. Parece que ri do
em Beethoven e Chopin. Norma Bengell rea- ataque de raiva de Menotti que chuta o tabu-
lizou um documentário em sua homenagem leiro. Como faria uma mãe diante da imper-
em 2003: Antonieta Rudge: o êxtase em movi- tinência de um filho que não aceita determi-
mento. Quando ela faleceu, Menotti escreveu: nadas regras e dá um ataque. Na caricatura
de numero 74 do livro supracitado, Menotti
Sua longa vida, toda feita de arte e beleza, se arruma para passear e vemos uma mulher
extinguiu-se agora, como se na serenidade inclinada, como se estivesse ajudando-o a se
de uma tarde, quase noite, se esvaíssem, len- vestir e, agora, o auxilia nos sapatos. Anto-
tamente, os acordes finais de uma sinfonia. nieta? A caricatura da mulher se parece com
(REALE, 1988, p.37) a caricatura de Antonieta.
Em suas memórias, Menotti Del Picchia
A mãe de Menotti, também da Toscana, (1970) relata o imenso sofrimento pela sepa-
chamava-se Corina Del Corso Del Picchia, ração de sua mãe quando foi cursar direito em
uma mulher de espírito forte e decidido, a São Paulo. Foi durante seu período de gradu-
quem o poeta era ligadíssimo. Dizia ele: “eu ação que sua mãe faleceu em Itapira, com 49
me agarrava a mamãe como folha à árvo- anos. Seus primeiros versos e, segundo ele, a
re. Toda a minha seiva vinha dela”(REALE, compreensão do poder da poesia advieram
1988, p.16). Com origem na estirpe rural, foi quando colocado de castigo pela mãe e sem
dela que Menotti herdou o amor à natureza direitos a lanche, escreveu: “Esta é uma coisa
e às coisas simples da terra. As relações amo- desumana. Mamãe me nega até uma banana”.
rosas em nossa vida repetem padrões libidi- Escreveu num papel e passou por debaixo da
nizados anteriormente. Óbvio que não são porta de seu quarto. No momento seguinte,
idênticos, mas o encontro de um objeto, na D. Corina abre a porta e o leva para a mesa
realidade é o reencontro deste objeto. Reen- com um lanche, onde tinha queijo e bananas
contro do objeto da nossa realidade psíquica, (MENOTTI DEL PICCHIA, 1970, p.43). O
que se encontra mesclado de nossas vivên- amor, a paixão, a transferência representam os
cias passadas e presentes, assim como tam- fechamentos de cicatrizes mais ou menos bem
bém das nossas percepções. Menotti deixou saturadas, coaptadas, desta ferida ontológica,
a namorada de infância, D. Francisca Aveli- constituída por uma erotomania principal e
na, para viver numa situação de concubina- fundamental (GORI, 2004). Para completar, o
to com Antonieta Rudge. Não estamos nos objetivo do teste da realidade é re-encontrar o
apegando apenas à diferença de sete anos objeto, convencer-se de que ele está lá. E, para
entre os dois para levantarmos hipóteses so- que isto se estabeleça, a precondição funda-
bre a relação amorosa de Menotti com An- mental é que o objeto tenha sido perdido.
tonieta. Num dos parágrafos seguintes, nos Menotti, através da experiência do casti-
referimos à capacidade de Menotti pintar e go e do lanche com bananas, acabara de des-
fazer esculturas. No livro de Reale (1988), cobrir como conseguir o que queria através
temos a descrição de caricaturas suas jogan- do “poetizar” o cotidiano, característica de
do xadrez, e parece uma criança nervosa que sua escrita ao longo de sua vida. Reafirma-
puxa os cabelos e chuta o tabuleiro quando da em uma entrevista ao jornal O Globo em
20/03/1982: “(...) Acho que as coisas devem jornais, e também foi inspetor de colégio em
ser claras e simples, gosto de luzes, de lumi- Itapira-SP. Foi nesta cidade que, também, se
nosidade... às vezes, num verso solto, aparece aventurou nas atividades agrícolas em terras
fragmentada toda a beleza do mundo, mas é pertencentes ao sogro. Foi à falência que o
preciso que o poeta seja um lírico apaixonado”. levou para São Paulo com o intuito de bus-
Não encontramos maiores dados sobre car novos modos de sobrevivência. Foi nesta
a vida em comum de Menotti e Antonieta, fazenda que Menotti idealizou e escreveu o
mesmo procurando pela biografia de Anto- premiado Juca Mulato. Outra grande crise fi-
nieta. Praticamente nada sobre os dois existe. nanceira pela qual passou foi em 1929, quan-
Em Itapira há um museu Casa Menotti, do sofreu perdas vultosas pela falência do
com acervo de sua vida, incluindo um site. banco onde tinha suas economias. Sem em-
Antonieta Rudge só aparece em 1968, que é o prego, sem reservas e sofrendo perseguições
ano em que se uniram “de forma convencio- de amigos vitoriosos, tem de recomeçar do
nal”, já que Menotti havia ficado viúvo no ano zero. Sua situação se estabelece na década de
anterior. O filme de Norma Benguell não foi 40, graças a sua condição de tabelião, resol-
encontrado para se comprar e/ou alugar. O vendo participar novamente da vida política.
silêncio sobre os dois deve-se ao fato de que (REALE, 1988).
sua relação começou de forma não respeitá- Após a Semana de 22 (DACORSO, 2009),
vel? Isto é, fora das leis religiosas e jurídicas ocorre uma ruptura no grupo e cada um se-
que vigoravam? Após a morte de Antonieta gue seu próprio caminho. O período de 22 a
não há relatos de outra relação de Menotti. 30 é caracterizado por definições no quadro
Sua enteada, Helena Rudge Miller, ficou mo- político brasileiro, cria-se o partido comu-
rando com Menotti Del Picchia e cuidando nista e o Partido Democrático, tendo o úl-
até a sua morte. timo, entre seus fundadores, Mário de An-
A duplicidade de Paulo Menotti Del Pic- drade. Não é necessário frisar que mais revo-
chia: lucionário ainda era este período nas artes,
Além das muitas atividades, Menotti tam- escreveu Menotti, mais tarde: “Que geração
bém foi pintor e escultor. No livro de Real- fabulosa a nossa. Foi uma geração de gigan-
le,1988, existem fotos das obras do autor e tes” (REALE, 1988, p.26). Foi o período mais
o acervo ao qual pertencem, as muitas cari- radical do movimento modernista, haven-
caturas já citadas anteriormente, inclusive de do necessidade de definições e rompimento
sua enteada Helena Rudge Miller bebendo, com estruturas do passado. Na procura do
esculturas de seu rosto, de Antonieta, Helena moderno, original e polêmico, o nacionalis-
e Sancho Pança, uma pintura com sua visão mo se manifesta de múltiplas formas, poden-
das Máscaras (1920) e muitas outras peças do ser distinguidas duas grandes vertentes:
produzidas por Menotti retratando cenas de um nacionalismo crítico, consciente com
seus escritos ou da cidade de São Paulo. Sua uma postura de denúncia brasileira e politi-
primeira escultura foi feita aos 11 anos, mo- camente identificado com as esquerdas é do
delando em barro o busto do Cardeal Arco- Manifesto do Pau-Brasil e Manifesto Antro-
verde e o de D. Antonio Maria do Claret, su- pófago, na linha comandada por Oswald de
perior dos padres claretianos. Andrade. A segunda vertente é a do Mani-
Como Menotti era marcado pela religio- festo do Verde-Amarelismo ou da Escola da
sidade e cristianismo!! Anta. Este último, da corrente comandada
Menotti também se aventurou no cine- por Plínio Salgado, traz as sementes do na-
ma criando a Independência Filmes, quando cionalismo fascista, dela fazendo parte Cas-
filmou a cidade de São Paulo em comemo- siano Ricardo, Guilherme Almeida e Menot-
ração ao seu centenário. Fundou revistas e ti Del Picchia.
Nas pesquisas que fomos realizando (DA- decepcionar com a ausência de ideais que,
CORSO, 2009), parece-me que na Escola acreditava, deveriam prevalecer na política
da Anta se encontra uma das sementes do em relação ao espaço público.
isolamento a que Paulo Menotti Del Picchia
foi submetido. O movimento apresentava a O duplo
proposta de um nacionalismo primitivista, Menotti guardava em si o lado lúdico, in-
ufanista e identificado com o fascismo, que fantil, brincalhão. Gostava de soltar pipas e
evoluiria, no início da década de 30, para o balões – sendo considerado exímio fazedor
Integralismo de Plínio Salgado. Parte-se para de balões - mesmo que tivesse dificuldade,
a idolatria do tupi e elege-se a anta como sím- reconhecida por aqueles que o cercavam, em
bolo nacional. O grupo verde-amarelista, em fazê-los voar. E também gostava de fazer e
seu manifesto, entre outras coisas, afirmava: comer quindins, seu doce predileto (DU-
CLOS, 2005). A aparência séria não impedia
O grupo verdamarelo, cuja regra é a liberda- as brincadeiras com crianças, que dele gosta-
de plena de cada ser brasileiro como quiser vam. As contradições entre o lado ainda liga-
e puder, cuja condição é cada um interpretar do à cidade pequena, onde se soltava balões
o seu país e o seu povo através de si mesmo, à vontade e sem riscos, e o homem letrado,
da própria determinação instintiva; - o gru- aparecem nas suas crônicas sobre São Pau-
po verdamarelo, á tirania das sistematizações lo, quando Menotti constantemente evoca
ideológicas, responde com a sua alforria e a a modernidade, o crescimento, a industria-
amplitude sem obstáculo da sua ação brasilei- lização, o ganhar dinheiro e as lembranças
ra (...) Aceitamos todas as instituições conser- das cidades pequenas que possuíam outro
vadoras, pois é dentro delas mesmo que fare- tipo de sociabilidade e leituras de mundo. O
mos a inevitável renovação do Brasil, como o trecho abaixo é de uma crônica intitulada As
fez, através de quatro séculos, a alma da nossa serenatas (CASTRO, 2008).
gente, através de todas as expressões históri-
cas. (DACORSO, 2009, p.22). Um trovador noturno que enchia a noite es-
trelada de endeixas... Cantava toda alma ca-
O Integralismo é uma política fascista tra- bocla, do luso exilado, do cabinda quebrado
dicional inspirada na Doutrina Social da Igre- pelo banzo, do mameluco rebelde, latejava na
ja Católica e oposta às doutrinas igualitárias voz do ultimo abencarrage das velhas sere-
oriundas do comunismo, socialismo e anar- natas paulistas [...] Mas logo veio um guarda
quismo. As reticências em relação a Menotti e levou-o. O bardo estava bêbado. Não seria
dizem respeito a essas suas escolhas políticas. um pouco do Brasil aquela voz triste, ferin-
Como alguém, participante ativo da Semana do a noite, como um lamento, um brado de
Moderna de 22, que prega rupturas, se filia nossa angustia de povo sonhador e desalen-
a um partido autocrático? Ora, respondemos tado? O cosmopolitismo enxotava o gênio da
nós psicanalistas, quem dentre vós podeis nossa raça para o interior, impérvio, e revi, na
atirar a primeira pedra na busca de uma coe- minha soisma, as vetustas cidades mineiras,
rência total consigo mesmo? E por que exigir inda cheias de versos de Gonsaga, onde se
isso de Menotti? Afinal, que desconforto pro- refugiavam com a queixa das nossas últimas
vocava Menotti a seus pares? Eram todos os canções, os últimos resquícios da nossa na-
outros coerentes em suas ações? cionalidade. Era a Civilização! Dei-lhe cami-
Menotti acreditou, em dado momento, nho e entrei com o susto, na vida... Amarga
que o autoritarismo e o conservadorismo esta vida! Esqueci-me de Minas, do Tonico
poderiam ser a solução para as questões bra- e das cantigas. Quando, de novo, peguei no
sileiras, até que abandona a política por se violão, calculei mentalmente o preço de cada
um deles. E se eu montasse um fábrica de ins- Picchia, temos seus escritos que versam sobre
trumentos de corda? Era o espírito comercial o amor e desejo. Máscaras (1920) com Pierrot,
que me empolgava o demônio industrial das Colombina e Arlequim (DACORSO, 2009);
cidades. Tive vergonha, vender violões era A angústia de D. João (1922) com Fausto e
repetir o gesto do Judas, trair um irmão de Don Juan; O amor de Dulcinéia (1930) com
sonho! (op. cit., p.114-15) Don Quixote e Sancho Pança. São poemas
intertextuais que Menotti re-constrói através
Este longo trecho, assim o é porque con- de sua visão de mundo, do amor e da paixão.
sideramos que ele guarda o que era caro a Nestes textos temos a dualidade entre o amor
Menotti explicitado na crônica através de enquanto um sentimento que se alimenta da
sua riqueza cultural. Lembranças da cidade impossibilidade; a não satisfação do desejo
pequena, a religiosidade, o caboclo e as mis- carnal e o desejo que exige a satisfação que
cigenações da raça brasileira, a aculturação pode levar ao tédio. Em A angústia de D. João
brasileira por outras culturas, o desejo de (1922), o Fausto adota uma postura diferente
enriquecimento. Menotti estava sempre a daquele ambicioso que vende sua alma a Me-
marcar este seu lado interiorano. Nasceu em fistófeles em troca de riquezas e D. João é o
São Paulo e lá ficou até os seis anos, quando conhecido sedutor insatisfeito, Don Juan:
foi para Itapira-SP. A grande São Paulo onde
nasceu poderia lhe parecer interiorana como D. JOÃO: Quantos lábios beijei!Quantas bo-
a Itapira de que tanto gostou. Mas a grande cas em flor eu fiz fremir de amor, sem nunca
metrópole se desenvolveu muito rápido e, achar o amor!Tive corpos nas mãos submis-
quando para lá voltou, ela tinha sido cons- sos como servos onde, fria, coleava a angus-
truída “pelos bruxos”. A maioria de suas crô- tia dos meus nervos... E quando, ardendo em
nicas sobre São Paulo guarda esta dicotomia: febre, a mulher, doida e ardente, enroscava-se
cidade pequena x metrópole; a magia, fanta- em mim tal qual uma serpente cravando-me
sias e folclore típicos das histórias do interior na boca um beijo, e a carne nívea eu sentia
x a industrialização e tecnologia da grande estuar de amor e lascívia, na suprema eclosão
cidade. Um paulista apaixonado pela sua São do meu tédio medonho, eu deixava a mulher..
Paulo. Nostalgia e sedução. Calligaris (2010) e buscava o meu sonho!
relembra que o navegante quer navegar e co- FAUSTO: Fui mais feliz que tu. Um dia, em
nhecer outras terras, não pode fugir a essa minha vida, refletida no espelho, enxerguei
pressão. Mas existe a nostalgia do que ficou Margarida. Desvairada de amor fremia de al-
para trás, do que foi necessário perder para ir voroço, no meu corpo de velho, a minha alma
ao encontro do novo e desconhecido. O que de moço. Dizem que foi Satã quem, cheio de
se perde? O que foi necessário para nossa piedade, deu à minha velhice a minha moci-
autonomia: o calor e segurança do primeiro dade... Mentira! Quando o amor o peito nos
lar, a casa dos pais e a certeza de que sempre aquece toda a nossa existência exulta e reflo-
estaria ali. Resta a vontade de reencontrar resce! Se ele um corpo me deu, foi coisa bem
a casa perdida. Aquela casa. Menotti marca mesquinha, pois, para a amar, bastava uma
isto o tempo todo. Solta balões na Grande alma igual a minha. (FRIAS, 2004, p.63).
São Paulo, faz quindins, deixa mendigos se
instalarem nos jardins de sua casa paulista e A mesma forma dicotômica de amor
escreve sobre as lembranças. Mas é um ir e e desejo, satisfação e frustração, e o tédio
vir infindo porque a casa primeira – aquela como a consequência do desejo satisfeito
casa – está irremediavelmente perdida ! são temas também encontrados em Másca-
Continuando com nossas hipóteses psica- ras (1920). Estes personagens da Commedia
nalíticas sobre o homem Paulo Menotti Del dell’arte são reunidos por Menotti num baile
Quem afinal serei eu? Aquilo que cada um faz soltavam fogo pelas narinas. Apesar de ser
da minha imagem? Ângulos do múltiplo que uma entidade secundária anterior aos deu-
somei... Mas... teriam me conhecido por den- ses do Olimpo, Hélios era venerado como
tro? (op.cit., p.216) um deus que tudo vê e tudo sabe. É repre-
sentado por um jovem muito belo, coroado
Menotti parece perceber seus duplos, suas de raios luminosos e conduzindo seu carro
dicotomias, suas ambivalências. “O estranho”, flamejante. Perdeu seu prestígio para Apolo.
de Freud (1979b). Sua sensualidade freada (LAROUSSE, 1995)
em nome dos bons costumes, do considera- Menotti nunca deixou dúvida sobre o fato
do correto oriundo de sua história pessoal. de ser um leitor contumaz e sedento de to-
Uma hipótese é de que o recalque de uma das as áreas, e a mitologia fazia parte de seu
sensualidade provocativa e exigente da déca- cabedal cultural. A escolha de Hélios nos pa-
da de 20 possibilitou, por um lado, uma nova rece conveniente. Primeiro, porque em seu
relação com Antonieta, mas o jogou no Inte- discurso na Semana de 22, Menotti mistura
gralismo e no enaltecimento das instituições mitologia com o discurso da modernidade.
tradicionais e conservadoras “um Deus não Os mitos também se encontram em muitas
seria Deus se não tivesse passado pela dor e de suas crônicas e poemas. Então, podemos
pela morte”. Uma consciência interna dura e aventar que Menotti sabia o que significava e
exigente. A dor para se chegar a algum lugar. quem era Hélios. Sua vaidade e aparência não
O poeta guarda em si o brincar da criança, deixam dúvidas sobre o lado de auto envai-
mantém em seus trabalhos suas fantasias e decimento de Menotti. Convido os leitores a
sonhos que encontram satisfação fora da rea- buscar por fotos suas e compreenderão a aná-
lidade. Parece que Menotti dava vida em suas lise. Continuando na nossa escuta de Hélios,
fantasias ao que considerava não ser possível o mito é aquele que tudo vê e tudo sabe. Faz
na realidade: sentido se pensamos nas várias funções exer-
cidas por Menotti. Trabalha com terras, é ins-
Não houvesse essa renhida petor de alunos, dono de uma produtora de
luta entre o sonho e a verdade filmes, “a Independência”, cronista, tabelião,
dentro do tédio da vida gerente de banco, deputado federal, dono de
que seria da humanidade.(REALE, 1988, uma fabrica de relógios; poeta; romancista;
p.80) pintor; escultor; preso político no início da era
Vargas. Exercendo tantas funções e conviven-
Por fim, existe um outro ruído à nossa do com pessoas de tantas áreas distintas, aca-
volta sobre Paulo Menotti Del Picchia. Seu ba se sabendo de muito e de muitas, e a “tudo
pseudônimo. Era comum, na primeira parte vendo” como Hélios que passava pelo céu
do século vinte, um escritor usar pseudôni- com sua carruagem. Referindo-se a si mesmo
mo. O de Menotti era Hélios. Nossa ques- em sua autobiografia Menotti reconhecia-
tão não é construir hipóteses sobre o uso de se muito curioso e, provavelmente, também
pseudônimo, mas pensar sobre a escolha do observador. Por que podemos acrescentar o
pseudônimo. Hélios é a personificação do sol observador? Pelos seus ditos, crônicas, dis-
na mitologia grega, sua função era trazer luz cursos, quadros, esculturas como também
e calor aos homens. Seu caminho era da Eti- as suas caricaturas. Suas produções impli-
ópia até o ocidente, onde mergulhava no mar cam num olhar aguçado para o mundo a sua
e depois seguia numa taça de ouro em dire- volta e ousamos acrescentar, para si mesmo:
ção ao início do trajeto, a Etiópia. Fazia este
caminho durante o dia numa carruagem de “Na solidão do poeta o silêncio lhe traz a voz
fogo puxada por quatro cavalos brancos que do mundo”; “A razão do homem é sempre um
ponto de vista. Cada um possui a sua verda- Mas, bastou-nos saber que nossa história
de”; “Talvez seja um disfarce do meu orgulho de sedução com Menotti encontrou um pon-
o constante proclamar da minha humildade. to em comum. Ambos conhecemos os dis-
Ou talvez seja a humildade a causa do meu cursos sobre o Amor do Banquete!!!
orgulho?”(REALE, 1988, p. 66, 67,71). Existem outras tantas obras de Paulo Me-
notti Del Picchia que não utilizamos, o “sos-
Algumas considerações laio” sobre ele é exatamente isso, uma mira-
sobre o estranho Menotti da.... Lendo algo aqui e outro acolá, fomos
Antes de construirmos nossas considerações construindo um contorno e uma imagem,
finais, colocaremos um dado que chegou ao talvez, um pouco fluida do autor. Mas sabía-
nosso conhecimento com o artigo já pronto e mos de antemão da impossibilidade de uma
naquele estágio de descanso de alguns dias an- apreensão maior. Até mesmo devido a um
tes de, dolorosamente, darmos o ponto final. certo silêncio sobre Menotti. Não nos deti-
Resolvemos fazer um rastreamento final vemos em Juca Mulato que, pela inovação
sobre Menotti e descobrimos que ele tam- nacionalista do texto e prêmios recebidos,
bém usou o pseudônimo de Aristófanes! To- possui muito material, assim como seu dis-
dos nós da Psicanálise o conhecemos. Platão: curso na Semana de 22. Procuramos nos ater
O Banquete. Os seres divididos ao meio, que ao pouco que existe sobre sua vida pessoal e
vão passar o resto de sua vida à procura de colocações feitas por Menotti em vários mo-
sua metade!!! O amor como a procura in- mentos.
cansável de seu outro que, supostamente, lhe Ao fim desta sessão, percebemos um su-
dará a sensação de completude! A angústia jeito romântico, conservador e contraditório.
da divisão, a dor da procura! E o ledo engano Exercendo tantas funções em sua vida!!! E a
de que se irá encontrar! dificuldade de abraçar uma... A identificação
Mas, também tem Aristófanes que nasceu vislumbrada com o pai, homem também de
e viveu entre 448 a 380 AC. Escreveu várias muitas funções, nos induz a pensar que Me-
comédias com um pseudônimo. Ligado ao notti passava por aqueles vários lugares sem
partido democrático, especializou-se na sá- se fixar a nenhum, como se houvesse uma
tira social e política. Escreveu aproximada- urgência de a tudo abraçar, conhecer e viver.
mente quarenta peças, nos chegando onze. Seus pares diziam que tinha a fala fácil, no
Com linguagem obscena, diálogos vivos e sentido de conseguir envolver seus ouvintes
inteligentes na agudeza da paródia. Criticou e, principalmente, de gostar de falar em pú-
instituições, deuses, inovações morais, artís- blico, brincando com as palavras. Um exem-
ticas, políticas e sociais. plo, quando o homenagearam em Itapira-SP
Não achamos nenhum de seus escritos com o nome de uma praça respondeu: “Tan-
com este pseudônimo. Entramos em contato ta praça que me deram! Isto significa que sou
com a Profa. Dra. Therezinha Porto Antonio boa praça.” (REALE, p.27)
Lopez, citada por Duclós (2005), e a profes- No vislumbre de sua história surge um
sora atenciosamente nos confirmou sobre o homem marcado sim, pelas contradições,
achado, mas não especificou sobre o pseu- um “faça o que digo, mas não o que faço”.
dônimo. Numa tarde de domingo, por tele- Seu duplo exigindo presença em vários mo-
fone, e para alguém que ela sequer conhece. mentos de sua vida.
Nossos sinceros agradecimentos. Mas estes Seu passeio por um leque de atividades,
dados estão no Instituto Estudos Brasileiros talvez tenha sido responsável pelo lugar me-
da USP-SP. Não se encontram na Internet. nor na literatura brasileira. A opção político-
Pena! Penssamos que teremos de continuar partidária aponta para sua duplicidade e luta
na mirada de Menotti em outro momento! entre dois Menottis: o do partido integralis-
ta, fascista e aquele que participou do Grupo D. QUIXOTE: Fizeste-me arrastar sob a ge-
dos Cinco, do movimento Modernista e de ada e o mormaço uma caricatura heróica de
escritos contundentes sobre a liberdade de palhaço! É viver ser grotesco?
ser, a paixão e o amor . SANCHO: É viver ser errante... Todos deve-
Pode-se lutar um tempo contra a identifi- mos ser um cavaleiro andante![...] É mister
cação aos primeiros objetos da primeira in- transformar a vida, essa migalha de tempo,
fância, mas, mais cedo ou mais tarde, ela se no furor de uma insone batalha, dentro do
denuncia. Como acreditamos ter acontecido acaso, da surpresa, errando a esmo, até alçar-
com Menotti. A herança italiana de família, se ao ideal de vencer-se a si mesmo, atingin-
conservadorismo, religiosidade, tradição e do a emoção do milagre divino de quem cria,
a pressão dos tempos modernos com suas por si, o seu próprio destino!
idéias, liberdade e possibilidade... As lutas, D. QUIXOTE: Sancho! E que fui, seguindo
conflitos internos e o alívio que sua produ- os sonhos que se somem mal se lhes tende a
ção literária lhe produzia, acreditamos que mão? Fui louco?
tenham sidos vislumbrados por Menotti: SANCHO: Foste um homem!
D. QUIXOTE: Que fizeste de mim? Tu deste à
O que se tem mesmo é a substância interior. humanidade meu ridículo...
É esta que nos alimenta e vai pela vida afo- SANCHO: Não! Deite a imortalidade! (ME-
ra. [...] Juca Mulato é o dono da minha obra. NOTTI DEL PICCHIA, p.87)
Ele vive me advertindo: fique quieto aí no seu
canto porque eu é que sou importante. Eu vou Paulo Menotti Del Picchia continua sen-
ficando, obedeço. (REALE, 1988, p.32-5) do a nossa obsessão!
SOBRE AS AU TOR AS