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6.

CONTRADIÇÕES

A maior contradição do pós-modernismo é um pouco como aquela do


velho estruturalismo. O estruturalismo era radical ou conservador? É
fácil demais perceber como ele se comportou como uma espécie de
tecnocracia do espírito, a penetração final do impulso racionalizante de
modernidade no santuário interior do sujeito. Com seus códigos
rigorosos, esquemas universais e reducionismo obstinado, ele refletia na
esfera do Geist uma materialização já aparente na realidade. Mas isso é
só um lado da história. Pois, ao estender à mente a lógica da
tecnocracia, o estruturalismo escandalizou o humanismo liberal cuja
tarefa era preservar a vida da mente de qualquer redução simplista
assim. E esse humanismo liberal foi uma das ideologias dominantes da
sociedade tecnocrática em si. Nesse sentido, o estruturalismo era ao
mesmo tempo radical e conservador, conspirando com estratégias do
capitalismo moderno de uma forma altamente conflitante com seus
valores supremos. É como se, ao pressionar até não poder mais um tipo
de determinismo tecnológico para a própria mente, ao tratar os
indivíduos como meros espaços vazios de códigos impessoais, ele
Referência imitasse a maneira com que a sociedade moderna na verdade os trata
mas finge que não, dessa forma endossando sua lógica enquanto
EAGLETON, Terry. Contradições. In:______. As ilusões desmascara seus ideais. "Sistema", escreve Roland Barthes, "é o inimigo
do Homem" — querendo dizer com isso, sem dúvida, que para o
do pós-modernismo.Tradução de Elisabeth Barbosa. Rio humanismo o sujeito é sempre aquele que é radicalmente irredutível,
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.127-30. aquele que vai infiltrar-se pelas fendas de suas categorias e devastar suas
estruturas.
Há um tipo parecido de contradição incorporada ao pós-
modernismo, que também é simultaneamente radical e conservadora.
Uma característica marcante das sociedades capitalistas avançadas
encontra-se no fato de elas serem tanto libertárias como autoritárias,
tanto hedonistas como repressoras, tanto múltiplas como monolíticas.

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E não é difícil descobrir a razão disso. A lógica do mercado é de prazer pluralista que a história já conheceu, sempre transgredindo limites e
e pluralidade, do efêmero e descontínuo, de uma grande rede desmantelando oposições, misturando formas distintas de vida e sempre
descentrada de desejo da qual os indivíduos surgem como meros excedendo a medida. Toda essa pluralidade, é preciso dizer, opera
reflexos passageiros. Mas manter em ação toda essa anarquia potencial dentro de limites muito rigorosos; mas isso ajuda a explicar por que
requer bases sólidas e uma estrutura política sólida. Quanto mais as alguns pós-modernistas sonham avidamente com um futuro híbrido,
forças de mercado ameaçam subverter toda a estabilidade, mais teremos enquanto outros estão convencidos de que esse futuro já chegou.
de insistir nos valores tradicionais. Não é incomum encontrar políticos O pós-modernismo, em suma, rouba um pouco da lógica
britânicos que toleram a comercialização do rádio mas ficam horrori- material do capitalismo avançado e a volta agressivamente contra seus
zados com poemas sem rima. Todavia, quanto mais esse sistema apela fundamentos espirituais. E nisso apresenta mais que uma semelhança
para valores metafísicos para se legitimizar, mais suas atividades passageira com o estruturalismo, que foi uma de suas origens remotas.
racionalizantes, secularizantes ameaçam esvaziá-los. Esses regimes não É como se ele estivesse instando o sistema, como seu grande mentor
podem nem abandonar o metafísico nem acomodá-lo de modo Friedrich Nietzsche, a esquecer seus fundamentos metafísicos, reco-
adequado, e por isso estão sempre potencialmente desconstruindo a si nhecer que Deus está morto e simplesmente tornar-se relativista. Então,
próprios. pelo menos, ele pode trocar um bocado de segurança por um pouco de
As ambivalências políticas do pós-modernismo combinam atualidade. Por que confessar tão-só que seus valores são tão
perfeitamente com essa contradição. Podemos arriscar, numa primeira precariamente infundados como os de todo mundo? Isto não o deixaria
aproximação por alto, que muito do pós-modernismo é de oposição em vulnerável ao ataque, uma vez que você só demoliu astutamente
termos políticos mas cúmplice em termos econômicos. Isto, entretanto, qualquer ponto de vista de onde poderia partir alguma ofensiva. De
exige uma boa afinação. O pós-modernismo é radical na medida em que todo modo, o tipo de valores que tem raízes no que você faz, que
desafia o sistema que ainda precisa de valores absolutos, fundamentos reflete a crua realidade social e não o pomposo ideal moral, tende a ser
metafísicos e sujeitos auto-idênticos; contra essas coisas ele mobiliza a bem mais convincente que muita conversa nebulosa sobre progresso,
multiplicidade, a não-identidade, a transgressão, o antifundamentalismo, razão e a especial afeição de Deus pela pátria.
o relativismo cultural. O resultado, na melhor das hipóteses, é uma Mas para os filósofos pragmáticos está muito bom argumentar
subversão engenhosa do sistema de valores dominante, pelo menos no dessa forma. Aqueles que carregam o fardo de conduzir o sistema têm
nível da teoria. Existem executivos que ouviram tudo sobre consciência de que as ideologias estão em ação para legitimar, e não só
desconstrução e reagem a ela de forma bem parecida com a que os refletir, o que você faz. Eles não podem simplesmente descartar esses
fundamentalistas reagem ao ateísmo. Na verdade, eles estão certíssimos fundamentos lógicos fastuosos, sobretudo porque muita gente ainda
de agir assim, visto que a desconstrução, em suas formas mais acredita neles, na verdade aderem a eles com mais tenacidade ainda
politizadas, representa de fato um assalto contra muito do que a maioria quando sentem o chão tremer sob seus pés. A mercadoria, com a
dos profissionais de negócios mais amam. Mas o pós-modernismo devida vênia a Adorno, não pode ser a própria ideologia, pelo menos
costuma deixar de reconhecer que o que funciona no nível da ideologia por enquanto. Poderíamos imaginar uma fase futura do sistema em que
nem sempre funciona no nível de mercado. Se o sistema necessita de isso seria verdade, em que ele fez um curso em alguma universidade
um sujeito autônomo no tribunal de justiça ou na cabine de votação, na norte-americana, livrou-se dos próprios fundamentos e deixou para trás
mídia e nos shopping centers esse sujeito de quase nada lhe serve. Nesses toda essa história de legitimação retórica. Com efeito, existem aqueles
setores, pluralidade, desejo, fragmentação e congêneres são tão nativos que alegam que é precisamente isso que está em marcha hoje: que a
para nosso modo de vida como o carvão o era para Newcastle antes de "hegemonia" não tem mais relevância, que o sistema não se importa se
Margaret Thatcher pôr as mãos nele. Muitos profissionais de negócios acreditamos nele ou não, que ele não sente necessidade de garantir
são nesse sentido pós-modernos naturais. O capitalismo é a ordem mais nossa cumplicidade espiritual desde que façamos mais ou menos o que

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ele exige. Ele não tem mais de passar pela consciência humana para se
reproduzir, só manter essa consciência em permanente estado de
distração e contar, para sua reprodução, com seus mecanismos
automatizados. Mas o pós-modernismo pertence nesse aspecto a uma
época de transição, em que o metafísico, como um fantasma inquieto,
não pode nem ressuscitar nem morrer com dignidade. Se ele pudesse
deixar de existir, o pós-modernismo sem dúvida morreria com ele.
Preciso terminar, infelizmente, com uma observação sinistra. O
pensamento pós-moderno de fim-da-história não antevê um futuro para
nós muito diferente do presente, perspectiva que ele curiosamente vê
como motivo de comemoração. Mas há de fato a possibilidade de um
futuro desses entre vários, e ele se chama fascismo. O maior teste do
pós-modernismo, ou no caso de qualquer outra doutrina política, é
como ele poderia chegar a isso. O conjunto da sua obra acerca do
racismo e da etnicidade, da paranóia de pensar a identidade, dos perigos
da totalidade e do medo da diferença: tudo isso, junto com seus insights
aprofundados sobre as artimanhas do poder, sem dúvida revelar-se-ia de
considerável valor. Mas seu relativismo cultural e seu convencionalismo
moral, seu ceticismo, pragmatismo e bairrismo, seu desagrado com
idéias de solidariedade e organização disciplinada, sua falta de qualquer
teoria adequada de ação política: tudo isso ia depor muito contra ele.
No confronto com seus adversários políticos, a esquerda, hoje mais que
nunca, precisa de sólidos fundamentos éticos e mesmo antropológicos:
é provável que nada menos que isso nos possa suprir dos recursos
políticos de que necessitamos. E, nessa área, o pós-modernismo acaba
sendo mais parte do problema que da solução.

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