Você está na página 1de 10

Cruzamento: raça e gênero

Painel 1 7

A Intersecionalidade
na Discriminação
de Raça e Gênero
Kimberle Crenshaw
Professora de Direito da Universidade da Califórnia e da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e uma
importante pesquisadora e ativista norte-americana nas áreas dos direitos civis, da teoria legal afro-americana e
do feminismo. É também responsável pelo desenvolvimento teórico do conceito da interseção das desigualdades
de raça e de gênero. O trabalho de Kimberle Crenshaw influenciou fortemente a elaboração da cláusula de
igualdade da Constituição da África do Sul. Um dos seus artigos integra o Dossiê da III Conferencia Mundial
contra o Racismo (Durban, 2001), publicado pela Revista Estudos Feministas, nº1, 2002, sob a coordenação de
Luiza Bairros, da Universidade Católica de Salvador.

O que vou contar para vocês são notícias bem claro que se nos deparássemos com
de um trabalho que venho desenvolvendo nos qualquer hostilidade iríamos dar meia-volta
últimos vinte anos de minha vida profissional imediatamente.
e pessoal. Eu gosto de contar a história de Com essas instruções, nos preparamos
como esse trabalho começou. Quando estava para enfrentar qualquer possível
no primeiro ano da faculdade de direito, discriminação. Chegou o dia, caminhamos
participei de um grupo de estudos com dois até a porta da frente da agremiação e
colegas afro-americanos. Um deles foi o tocamos a campainha. Nosso colega negro
primeiro membro afro-americano aceito em abriu a porta e saiu muito envergonhado,
uma prestigiada agremiação de estudantes muito sem jeito. Então ele disse: “Estou
de Harvard. Por essa agremiação passaram muito constrangido, pois esqueci de dizer
alguns dos presidentes da república, entre os que vocês não podem entrar pela porta da
quais, Roosevelt. A agremiação não aceitava frente”. Meu colega imediatamente retrucou:
negros, até o meu colega ingressar. “Bem, se não pudermos entrar pela porta da
Este colega resolveu convidar a mim e ao frente, não vamos entrar. Não vamos aceitar
outro para visitá-lo nessa famosa agremiação. qualquer discriminação racial”. O colega
Nós, os convidados, conversamos acerca anfitrião esclareceu: “Não é uma questão de
do que aconteceria quando chegássemos discriminação racial. Você pode entrar pela
com nossas faces negras naquela instituição porta da frente. A Kimberle é que não pode,
tradicionalmente branca. Meu colega deixou porque ela é mulher”.
Cruzamento: raça e gênero
8

Aí veio a surpresa, meu colega disse: “Ah, as questões de intersecionalidade que as


então não tem problema: vamos entrar pela mulheres negras enfrentam.
porta dos fundos”. E enquanto dávamos Também falarei um pouco sobre as
a volta no edifício para entrar pela porta divergências entre a compreensão tradicional
dos fundos, fiquei pensando que, embora da discriminação racial e a compreensão
tivéssemos assumido uma postura de paralela da discriminação de gênero. Depois,
solidariedade contra qualquer discriminação ilustrarei alguns pontos para facilitar nossa
racial, essa solidariedade simplesmente compreensão acerca da idéia de discriminação
havia desaparecido quando ficou claro que a intersecional, do que estamos falando quando
discriminação não era racial, mas de gênero. usamos o termo discriminação intersecional.
Nesse momento, assumi um compromisso Por último, farei algumas recomendações
comigo mesma de entender esse fenômeno. provisórias desenvolvidas no contexto da
Desde então, continuo tentando entender Conferência Mundial contra o Racismo e
esse fenômeno e tenho sido ajudada nesse outras desenvolvidas a partir de eventos
entendimento por mulheres, de todas as como este.
partes do mundo, que ouviram falar da minha Gosto de começar mencionando que a
experiência e me relataram experiências intersecionalidade pode servir de ponte entre
similares. Conheci algumas dessas mulheres diversas instituições e eventos e entre questões
na Conferência Mundial contra o Racismo de gênero e de raça nos discursos acerca dos
(Durban, 2001) e vejo que algumas delas direitos humanos – uma vez que parte do
estão aqui. Quero agradecê-las por sua projeto da intersecionalidade visa incluir
contribuição para a construção das idéias que questões raciais nos debates sobre gênero e
vou compartilhar com vocês. Idéias que nos direitos humanos e incluir questões de gênero
ajudam a compreender a intersecionalidade nos debates sobre raça e direitos humanos.
entre raça e gênero. Ele procura também desenvolver uma maior
proximidade entre diversas instituições.
Do que estamos falando A Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação contra as Mulheres
Hoje, meus comentários vão se basear em (Cedaw) aborda, principalmente, questões
experiências vivenciadas nos Estados Unidos relacionadas a violações dos direitos humanos
e algumas no plano internacional. Também das mulheres, da mesma maneira que a
convido todos a considerar a aplicabilidade Convenção Internacional sobre a Eliminação
das experiências que vou relatar no contexto de Todas as Formas de Discriminação Racial
brasileiro. aborda questões raciais. Um dos objetivos é
Meu objetivo é apresentar uma estrutura identificar mecanismos para que instituições
provisória que nos permita identificar a trabalhem em conjunto para garantir que a
discriminação racial e a discriminação de discriminação racial que afeta mulheres e a
gênero, de modo a compreender melhor discriminação de gênero que afeta mulheres
como essas discriminações operam juntas, negras sejam consideradas mutuamente e não
limitando as chances de sucesso das mulheres de uma maneira excludente.
negras. O segundo objetivo é enfatizar a Meu trabalho também procura estabelecer
necessidade de empreendermos esforços pontes entre políticas desenvolvidas para
abrangentes para eliminar essas barreiras. eliminar a desigualdade racial e de gênero no
A questão é reconhecer que as experiências contexto nacional. Muitas nações, como o
das mulheres negras não podem ser Brasil e os Estados Unidos, têm promovido
enquadradas separadamente nas categorias mecanismos de proteção legal contra as
da discriminação racial ou da discriminação discriminações racial e de gênero. No entanto,
de gênero. Ambas as categorias precisam quando as leis não prevêem que as vítimas
ser ampliadas para que possamos abordar da discriminação racial podem ser mulheres
Cruzamento: raça e gênero
9

e que as vítimas da discriminação de gênero violações dos direitos humanos, como


podem ser mulheres negras, elas acabam não as vivenciadas por homens, devemos ser
surtindo o efeito desejado e as mulheres ficam protegidas e quando vivenciamos violações,
desprotegidas. Por último, vejo esse trabalho diferentes das vivenciadas por homens
como uma tentativa de abordar diferenças devemos ser protegidas também. Essa é uma
entre as experiências efetivas de mulheres diferença que as mulheres previram e sobre a
negras no dia-a-dia. Todas as pessoas sabem qual trabalharam.
que têm tanto uma raça quanto um gênero, O mesmo raciocínio se aplica à
todas sabem que têm experiências de discriminação racial. Quando a discriminação
intersecionalidade. racial era sofrida na forma da negação
No entanto, as leis e as políticas nem da participação política, esse fato tinha a
sempre prevêem que somos, ao mesmo tendência de ser reconhecido como violação
tempo, mulheres e negras. Por essa razão, esse dos direitos humanos. No entanto, quando
projeto procura estabelecer uma ponte entre a discriminação racial era vivenciada como
o que é vivenciado na prática e como uma uma discriminação implícita, como outras
política pública prevê esses problemas. Uma formas de segregação, o desafio era fazer
das razões pelas quais a intersecionalidade com que essas diferenças nas formas pelas
constitui um desafio é que, francamente, ela quais as pessoas negras sofriam violações de
aborda diferenças dentro da diferença. direitos humanos fossem consideradas à luz
de um entendimento mais amplo dos direitos
Sobreposições humanos.
Assim, tanto as questões de gênero como
A prática dos direitos humanos no campo as raciais têm lidado com a diferença. O
do gênero, por exemplo, desenvolveu-se desafio é incorporar a questão de gênero à
afirmando que “os direitos humanos são prática dos direitos humanos e a questão
direitos das mulheres” e que “os direitos racial ao gênero. Isso significa que precisamos
das mulheres são direitos humanos”. Isso compreender que homens e mulheres
reflete o fato de que, tradicionalmente, o podem experimentar situações de racismo
entendimento era que quando as mulheres de maneiras especificamente relacionadas ao
vivenciavam situações de violação dos seu gênero. As mulheres devem ser protegidas
direitos humanos, semelhantes às vivenciadas quando são vítimas de discriminação racial,
por homens, elas podiam ser protegidas. No da mesma maneira que os homens, e devem
entanto, quando experimentavam situações ser protegidas quando sofrem discriminação
de violação dos direitos humanos diferentes de gênero/racial de maneiras diferentes.
das vivenciadas pelos homens, as instituições Da mesma forma, quando mulheres negras
de defesa dos direitos humanos não sabiam sofrem discriminação de gênero, iguais às
exatamente o que fazer. Se uma mulher sofridas pelas mulheres dominantes, devem
fosse torturada por suas crenças políticas da ser protegidas, assim quando experimentam
mesma maneira que um homem, esse fato discriminações raciais que as brancas
podia ser reconhecido como uma violação freqüentemente não experimentam. Esse é o
dos direitos humanos. Se ela fosse estuprada desafio da intersecionalidade.
ou forçada a engravidar ou a se casar, as Uma das perguntas que devemos fazer é a
instituições de defesa dos direitos humanos seguinte: “O que há de errado com a prática
não sabiam como lidar com esses fatos, tradicional dos direitos humanos? O que
porque eram especificamente relacionados a há de errado com a visão tradicional das
questões de gênero. discriminações racial e de gênero?” Um dos
Após as conferências de Viena (1992) e problemas é que as visões de discriminação
de Pequim (1995), as mulheres passam a racial e de gênero partem do princípio de que
entender que “os direitos das mulheres são estamos falando de categorias diferentes de
direitos humanos”. Quando vivenciamos pessoas. A visão tradicional afirma:
Cruzamento: raça e gênero
10

a discriminação de gênero diz respeito às Mulheres negras versus


mulheres e a racial diz respeito à raça e à General Motors
etnicidade. Assim como a discriminação de
classe diz respeito apenas a pessoas pobres. A visão tradicional da discriminação opera
Há também outras categorias de no sentido de excluir essas sobreposições.
discriminação: em função de uma deficiência, Vou dar um exemplo de um processo que,
da idade, etc. A intersecionalidade sugere na minha opinião, expressa precisamente
que, na verdade, nem sempre lidamos com a natureza da intersecionalidade. Foi um
grupos distintos de pessoas e sim com grupos processo movido pela empresa De Graffen
sobrepostos. Assim, como vocês observarão Reed contra a General Motors, nos Estados
na ilustração 1 (abaixo), ao sobrepormos Unidos. Várias mulheres afro-americanas
o grupo das mulheres com o das pessoas afirmavam ter sido discriminadas pela
negras, o das pessoas pobres e também o General Motors, porque, segundo elas, a
das mulheres que sofrem discriminação por empresa se recusava a contratar mulheres
conta da sua idade ou por serem portadoras negras.
de alguma deficiência, vemos que as que se A discriminação não era incomum em
encontram no centro – e acredito que isso muitos contextos industriais. Indústrias
não ocorre por acaso – são as mulheres de segregavam as pessoas em função de sua
pele mais escura e também as que tendem a raça, de seu gênero, etc. Havia empregos para
ser as mais excluídas das práticas tradicionais negros, mas esses empregos eram só para
de direitos civis e humanos. homens. Havia empregos para mulheres,
mas esses empregos eram só para mulheres
Ilustração 1 brancas. Na General Motors, os empregos
disponíveis aos negros eram basicamente
o de postos nas linhas de montagem. Ou
seja, funções para homens. E, como ocorre
freqüentemente, os empregos disponíveis a
mulheres eram empregos nos escritórios, em
funções como a de secretária. Essas funções
não eram consideradas adequadas para
mulheres negras. Assim, devido à segregação
racial e de gênero presente nessas indústrias,
não havia oportunidades de emprego para
mulheres afro-americanas. Por essa razão,
elas moveram um processo afirmando que
estavam sofrendo discriminação racial e de
Women = Mulheres
gênero.
Poor = Pobres
Southern =Sulistas O problema é que o tribunal não tinha
Race/Ethnicity = Raça/Etnicidade como compreender que se tratava de um
processo misto de discriminação racial.
O tribunal insistiu para que as mulheres
provassem, primeiramente, que estavam
sofrendo discriminação racial e, depois, que
estavam sofrendo discriminação de gênero.
Isso gerou um problema óbvio. Inicialmente,
o tribunal perguntou: “Houve discriminação
racial?” Resposta: “Bem, não. Não houve
discriminação racial porque a General Motors
contratou negros, homens negros”.
Cruzamento: raça e gênero
11

A segunda pergunta foi: “Houve discriminação racial como uma rua que
discriminação de gênero?” Resposta: “Não, segue do norte para o sul. E podemos pensar
não houve discriminação de gênero”. A sobre a discriminação de gênero como
empresa havia contratado mulheres que, por uma rua que cruza a primeira na direção
acaso, eram brancas. leste-oeste. Esses são os sulcos profundos
Portanto, o que o tribunal estava dizendo, que podem ser observados em qualquer
essencialmente, é que se a experiência das sociedade pelos quais o poder flui. O tráfego,
mulheres negras não havia sido a mesma dos os carros que trafegam na interseção,
homens negros e que se a sua discriminação representa a discriminação ativa, as políticas
de gênero não havia sido a mesma sofrida contemporâneas que excluem indivíduos em
por mulheres brancas, basicamente elas função de sua raça e de seu gênero.
não haviam sofrido qualquer tipo de
discriminação que a lei estivesse disposta a Ilustração 2
reconhecer. Por essa razão, as mulheres negras
foram informadas de que seu processo por
discriminação não tinha fundamento. Como
vocês podem ver, as mulheres negras se
viram diante da situação de ter sofrido uma
discriminação racial baseada unicamente
nas experiências de homens afro-americanos
e uma discriminação de gênero baseada
unicamente nas experiências de mulheres
brancas.
O resultado final foi que as mulheres
negras não conseguiram apresentar provas Discriminação de Gênero e Racial
separadas de discriminação racial e de gênero. Gender = Gênero
Racism = Racismo
Obviamente, porque a discriminação racial
e de gênero não estava sendo sofrida por
todas as pessoas, somente por elas. O tribunal Ilustração 3
afirmou, posteriormente, que elas não
poderiam combinar seu processo, pois isso
lhes conferiria privilégios, uma preferência
em relação a mulheres brancas e aos homens
afro-americanos.
Precisamos, portanto, identificar melhor
o que acontece quando diversas formas de
discriminação se combinam e afetam as
vidas de determinadas pessoas. Por essas
razões, quando falo sobre intersecionalidade, Racism = Racismo
inicialmente me concentro na noção dos eixos Post Colonialism = Pós-Colonialismo
Patriarchy = Patriarcado
ou das ruas.
Muitas vezes, meus amigos coçam a
Trombadas
cabeça sem entender e perguntam: “Qual é a
diferença entre os eixos, as ruas e o tráfego”?
Se uma pessoa imaginar uma interseção,
Não sei se essa analogia faz sentido para os
ela visualizará ruas que seguem em direções
brasileiros. Nos Estados Unidos, temos um
diferentes – norte-sul, leste-oeste – e cruzam
lugar chamado Grand Canyon. É um enorme
umas com as outras (ver ilustrações 2 e
desfiladeiro criado por fluxos d’água durante
3). Isso seria o que eu chamo de eixos da
milhões de anos, pela pressão da água fluindo
discriminação. Podemos pensar sobre a
Cruzamento: raça e gênero
12

numa determinada direção. Esse fluxo d’água Propaganda e estereótipos


criou sulcos profundos nos quais a água
continua a correr. Vamos imaginar: os eixos As discriminações racial e de gênero
seriam os sulcos profundos criados, ao longo procuram por mulheres na interseção e
de séculos, por políticas e práticas baseadas na as compactam e impactam diretamente.
raça e no gênero. Alguns exemplos são óbvios. As violências
A parte ativa é o contemporâneo, aquilo racial e étnica contra as mulheres são
que passa por esses sulcos e efetivamente afeta exemplos de discriminação contra grupos
os que estão na interseção. Se uma pessoa específicos. No contexto dos direitos
estiver no meio de uma interseção, ela poderá humanos, todos sabemos o que ocorreu
prever que ocorrerão colisões nessa interseção na Bósnia e em Ruanda, onde as mulheres
e que provavelmente estará no meio dessas de um determinado grupo étnico foram
colisões. alvos de violência racial e étnica. Elas foram
Portanto, vou falar sobre algumas estupradas e passaram por violências
colisões que afetam as mulheres negras. racialmente codificadas. Em todos esses casos,
A primeira delas é a discriminação contra freqüentemente, havia uma propaganda
grupos específicos e, quando falamos da contra essas mulheres antes dos estupros
discriminação contra grupos específicos, ocorrerem. Por exemplo, a imagem de que as
estamos falando sobre um tipo de mulheres Tutsi eram sexualmente promíscuas,
discriminação que procura mulheres abertas e fáceis violou seus direitos humanos,
específicas que são intersecionais. O segundo antes mesmo de elas serem agredidas
tipo de discriminação, sobre o qual falarei, é o fisicamente.
da discriminação mista ou composta. Trata- Temos casos de propagandas, com um
se do efeito combinado da discriminação componente racial contra mulheres negras
racial e da discriminação de gênero. E o em alguns países, entre eles os Estados
último tipo é a estrutural, quando não há Unidos. No Brasil, não sei. A idéia, por trás
qualquer discriminação ativa. O que ocorre, dessas propagandas, é que a raça determina
em última instância, é que o peso combinado os hábitos e os padrões sexuais das pessoas
das estruturas de raça e das estruturas de e, também, as situam fora das expectativas
gênero marginaliza as mulheres que estão na comportamentais tradicionais. Na verdade, a
base. Essa é a discriminação contra grupos noção da propaganda com um componente
específicos. Se eu fosse diagramá-la, ela teria a racial contra mulheres negras continua a
aparência da Ilustração 4. criar padrões no sistema de justiça criminal
que minam o acesso de mulheres negras aos
Ilustração 4 mecanismos de proteção.
Historicamente, o estupro era considerado
um crime racial nos Estados Unidos. Em
outras palavras, um processo por estupro
podia ser anulado se não ficasse provado que
a vítima era branca. Essa era uma regra no
século XIX. Regras que foram formalmente
eliminadas, mas as estatísticas sugerem
que elas ainda constituem um problema
intersecional. As mulheres envolvidas em
casos de estupro tendem a ser julgadas pelo
que faziam, pelo que vestiam quando foram
estupradas.
Women = Mulheres A raça tende a levar a todas essas
Poor = Pobres inferências e suposições. Estudos têm
Southern =Sulistas mostrado que os processos movidos por
Race/Ethnicity = Raça/Ethnicidade
Cruzamento: raça e gênero
13

mulheres afro-americanas são os que têm a mulheres afro-americanas. Ela surgiu,


menor probabilidade de serem levados a sério em parte, da idéia de que seria necessário
e resultarem na prisão dos culpados. Quando esterilizar mulheres afro-americanas e latinas,
os culpados são presos, raramente são seguindo a crença de que elas estariam tendo
condenados e, quando condenados, a punição filhos demais, embora não existam dados
média do estuprador de uma mulher negra é estatísticos que comprove tal fato.
de dois anos, contra seis anos quando a vítima
é uma mulher latina e dez anos quando a Confluências
vítima é uma mulher branca. Isso reflete o
fato de que, a despeito de todos os outros A discriminação mista ou composta
fatores que tradicionalmente determinam representa o segundo tipo de discriminação.
quando se acreditará em mulheres, é a raça O exemplo da General Motors, que eu citei
das mulheres negras que determina se as antes, é de discriminação composta. Trata-se
pessoas acreditarão nelas ou não. Sua raça é da combinação entre a discriminação racial
mais importante do que o fato de ela ter sido (somente homens negros eram contratados
ferida, de conhecer a vítima, do que estava para trabalhar nas linhas de montagem) e a
vestindo quando foi estuprada. discriminação de gênero (somente brancas
Todos os fatos que, tradicionalmente, eram contratadas para funções consideradas
fazem com que os júris acreditem nas vítimas femininas). Portanto, as mulheres negras
não surtem efeito quando se tratam de são afetadas, de maneira específica, pela
mulheres afro-americanas. Isso é um produto combinação dessas duas formas diferentes de
de uma interseção. Há estereótipos de gênero discriminação.
que determinam quem é uma mulher boa e A subordinação estrutural é o terceiro
quem é uma mulher má. Há estereótipos de tipo. Tecnicamente, não chamo o
raça que pré-determinam que as mulheres fenômeno de discriminação porque ele
afro-americanas serão categorizadas como não é particularmente voltado para grupos
mulheres más, a despeito do que fazem e de específicos. Não há um discriminador ativo.
onde vivem. Por último, pode-se dizer que a Em muitos casos, ela não resulta de políticas
propaganda de gênero com um componente locais, mas de políticas internacionais,
racial também faz parte de algumas políticas políticas que têm efeito particular para as
públicas. mulheres em decorrência da sua posição na
Sempre que surge uma matéria na mídia estrutura socioeconômica. O melhor exemplo
acerca da previdência social nos Estados da discriminação estrutural, talvez sejam as
Unidos, as afro-americanas são citadas e políticas de ajustes que muitos países são
mostradas em imagens, embora elas não forçados a adotar. As feministas têm criticado
representem a maioria das mulheres que as políticas de ajustes estruturais pelo efeito
dependem do sistema da previdência particular que elas têm sobre as mulheres.
social. Além disso, estatisticamente, as afro- Geralmente, políticas de ajustes
americanas não têm mais filhos do que as estruturais obrigam os países subalternos
brancas. Mas as ilustrações sempre enfocam a desvalorizar suas moedas, o que, por
mulheres afro-americanas. Há uma série de sua vez, reduz salários e restringe serviços
idéias e imagens que promovem algumas sociais, geralmente forçando as mulheres
políticas públicas que acabam refletindo a assumirem serviços que deixam de ser
a interseção entre concepções de raça e de prestados, como o de cuidar de idosos,
gênero. doentes, jovens. Por essas razões, elas têm um
Uma política pública em particular, que impacto negativo específico sobre as mulheres
foi promovida pelo governo do presidente e estão sendo corretamente criticadas.
Clinton, surgiu da premissa de que devemos Mas há outros elementos envolvidos.
assumir uma postura bastante punitiva Em decorrência da sua boa condição
em relação à capacidade reprodutiva das socioeconômica, algumas mulheres
Cruzamento: raça e gênero
14

conseguem contratar a mão-de-obra de Ora, essa situação torna as mulheres


outras mulheres para assumirem esses negras invisíveis. Em primeiro lugar, seus
serviços de cuidados. As contratadas, em problemas, às vezes, ficam subincluídos. É
geral, são mulheres economicamente como se, embora se possa falar sobre todos os
marginalizadas, que, por essa razão, são problemas enfrentados pelas mulheres, suas
também socialmente marginalizadas, situadas especificidades não devessem ser discutidas.
na base da pirâmide socioeconômica. Essas Muitas das questões não incluídas na agenda
mulheres acabam trabalhando de 18 a 20 das feministas afetam especificamente
horas por dia, cuidando primeiramente mulheres negras. As análises nem sempre
de suas famílias e, depois, das famílias e consideram como a raça ou a classe social
necessidades das patroas. É isso que eu chamo contribuem para gerar as desigualdades.
de subordinação estrutural, a confluência O tráfico humano é outro bom exemplo.
entre gênero, classe, globalização e raça. Falamos muito sobre o tráfico no contexto
dos direitos humanos, mas, obviamente,
Quem aparece nas fotos nem todas as mulheres estão sujeitas ao
tráfico. As mulheres tendem a ser vítimas
Falei acerca do problema intersecional, do tráfico em sociedades nas quais têm
sobre o que efetivamente cria a subordinação poucas possibilidades socioeconômicas. As
ou discriminação. Mas, como mencionei vítimas tendem a ser mulheres socialmente
antes, temos aqui um problema duplo: a marginalizadas, as que não têm condições de
discriminação em si e a invisibilidade dessa concorrer adequadamente no mercado em
discriminação dentro dos movimentos decorrência dos poucos empregos disponíveis
políticos e das políticas intervencionistas. Por a elas.
que é tão difícil incorporar essas questões Lembrem-se do que eu disse antes sobre
de discriminação intersecional a algumas mulheres que só são contratadas para
maneiras tradicionais de se pensar as trabalhar como secretárias ou garçonetes.
discriminações racial e de gênero? São funções consideradas adequadas para
Uma das dificuldades é que mesmo dentro mulheres, mas não para todas as mulheres.
dos movimentos feministas e anti-racistas, Algumas empresas não querem que a face
raça e gênero são vistos como problemas de uma mulher negra seja a primeira face
mutuamente exclusivos. Se pegarmos duas vista por seus clientes. As mulheres que
fotografias recentes de uma marcha, nos têm menos opções são as mais expostas ao
Estados Unidos, em defesa dos direitos das risco do tráfico e de outros tipos de abusos
mulheres ao aborto, notaremos que as líderes de direitos das mulheres. Muitas vezes, o
são basicamente monorraciais, no caso, debate sobre o tráfico não considera as
brancas. Já em uma fotografia de uma marcha especificidades de raça e classe de suas
pelos direitos civis veremos líderes negros, vítimas. Conseqüentemente, as intervenções
homens. não consideram a ausência de possibilidades,
Em parte, o problema é que pensamos as desvantagens competitivas que essas
esses movimentos separadamente e mulheres enfrentam. Há também o problema
acreditamos que as intervenções devam da subinclusão, que ocorre quando há um
priorizar uma questão de cada vez. É difícil problema que é claramente de gênero que não
demais fazer mais de uma coisa ao mesmo é incluído na agenda geral de gênero pelo fato
tempo. Os líderes argumentam que isso de afetar apenas um subgrupo de mulheres.
acontece porque as mobilizações se baseiam
nos interesses das pessoas racialmente
dominantes nos movimentos de mulheres, as
brancas. E nas dominantes quanto ao gênero,
nos movimentos contra o racismo, os homens
negros.
Cruzamento: raça e gênero
15

Para entender a subinclusão mulher que estava sujeita a ser estuprada e


sofrer outros abusos. O que eu quero dizer
Nos Estados Unidos, a taxa de é que, freqüentemente, nossa tendência é
encarceramento de mulheres está subindo reconhecer o problema, mas reconhecê-
rapidamente. Ela subiu mais de 400% nos lo como um problema de propriedade da
últimos dez anos. Trata-se de um problema comunidade e não como um problema que
de gênero. A maioria das mulheres presas são afeta mais as mulheres do que a comunidade.
mães. Elas enfrentam grandes problemas para Quando não pensamos sobre as mulheres
manter suas famílias e seus filhos acabam como o alvo do abuso, fica difícil criar
sendo levados para lares de adoção. intervenções para atacar o abuso. Isso
Em muitos casos, essas mulheres são aconteceu em Ruanda, onde se reconheceu
presas após cometerem crimes de natureza que casos de estupro de mulheres eram
econômica. São presas por passarem cheques estupros das comunidades como um todo
sem fundo, cometerem pequenos furtos e, ainda assim, as mulheres eram postas no
em lojas ou fraudes contra o sistema da ostracismo.
previdência. Elas também são presas por É isso que acontece quando há uma
serem cônjuges ou estarem ligadas a homens apropriação indébita desses problemas.
que estão presos por crimes relacionados a Considerando o que expus até aqui,
drogas. Elas não têm muitas informações como podemos atacar os problemas da
a prestar e não conseguem negociar penas discriminação intersecional? O que podemos
mais leves porque são mulheres e trabalham fazer, como feministas, como pessoas
nos níveis mais baixos das organizações dos interessadas na igualdade racial, como pessoas
traficantes de drogas. Resumo: é tudo uma interessadas em garantir que todas as nossas
questão de gênero. intervenções e políticas beneficiem todas as
No entanto, as presidiárias não são pessoas que precisam delas?
incluídas na agenda geral dos grupos de
mulheres, porque a questão afeta apenas um O quê e como fazer
subgrupo. Isso é o que chamo de subinclusão.
Podemos considerar o abuso da esterilização Uma ação é reconhecer que os direitos
como uma outra questão subincluída na contra a discriminação intersecional já
agenda racial. Somente mulheres negras existem. Quando somos protegidas contra
foram esterilizadas nos Estados Unidos, mas a discriminação racial, somos protegidas
a maioria dos grupos de direitos civis não contra todas as formas de discriminação
discute a questão como um problema racial. racial, não apenas contra as que ocorrem para
Por último, existe o que eu chamo de os homens. E quando somos protegidas da
apropriação indébita, sobre a qual darei discriminação de gênero, somos protegidas
um rápido exemplo. Quando decidi me de todas as formas de discriminação de
dedicar ao estudo dos direitos civis, tive um gênero e não apenas das formas que afetam
professor que era também, além de ativista, as mulheres da elite que estão protegidas das
um juiz muito respeitado na área dos direitos formas que ocorrem com as mulheres pobres
civis. Ele tentava fazer com que a turma e negras.
compreendesse como a escravidão foi terrível. Precisamos reconfigurar nossas práticas
Deu um exemplo de como um homem que contribuem para a invisibilidade
afro-americano, escravo, devia se sentir ao intersecional. Isso inclui a integração dos
perceber que não tinha como proteger sua diversos movimentos e inclui a nomeação de
mulher, suas filhas, suas irmãs do estupro e do uma mulher para chefiar a seção que cuida
abuso. da discriminação racial e não considerar
No entanto, posso imaginar que esse isso incomum de forma alguma. Essas
homem devia se sentir tão mal quanto a são medidas que podem ser tomadas para
Cruzamento: raça e gênero
16

quebrar a tendência de pensarmos sobre de questões de gênero. Precisamos identificar


raça e gênero como problemas mutuamente especialistas, no nível mais local e básico.
exclusivos. Precisamos adotar uma Identificar pessoas que efetivamente
abordagem de baixo para cima na nossa trabalham com mulheres negras e em
coleta de informações. Parar de pensar em prol das mulheres, e que compreendem as
termos de categorias, em termos de gênero e influências que afetam suas vidas. Só assim
de raça, de cima para baixo. a discriminação intersecional deixará de ser
Vamos até as pessoas e vemos como uma causa de desproteção para as mulheres.
esses fatores se combinam e determinam Só assim as discriminações racial e de gênero
suas condições de vida. É assim que não serão mais corretamente redirecionadas
deixaremos de perceber o que pode acontecer com o objetivo de garantir soluções mais
com as mulheres negras. Nos Estados Unidos, eficazes. A intersecionalidade oferece uma
por exemplo, foi feita uma tentativa de se oportunidade de fazermos com que todas as
criar uma política para barrar o artifício de nossas políticas e práticas sejam, efetivamente,
usar o casamento como forma de entrar ou inclusivas e produtivas.
permanecer no país legalmente. Isso resultou
que quando mulheres vinham para os Estados
Unidos para se casar com alguém, elas eram
obrigadas a ficar casadas por dois anos, antes
de terem o direito de ficar no país como
residentes permanentes.
Infelizmente, essa discussão não teve
a participação de grupos de mulheres. Se
tivesse tido, os grupos teriam considerado que
algumas mulheres casadas que são vítimas de Matilde Ribeiro
violência doméstica ficariam mais vulneráveis Ministra da Secretaria Especial de Políticas de
com essa lei. Na verdade, muitas mulheres Promoção da Igualdade Racial
foram mortas porque não procuraram as
autoridades, quando sofreram violência Na fala da Kimberle, a primeira questão
por parte de seus maridos, pelo medo de que me chamou a atenção foi quando ela
serem deportadas. Reparem, havia um disse que ia tratar de assuntos que estão nas
problema de subinclusão. Ninguém pensou entrelinhas e iria contar de um processo em
que as mulheres não-brancas, a maioria das andamento nos últimos vinte anos.
imigrantes, ficariam mais vulneráveis após a Identifiquei-me plenamente com isso
aprovação desta lei. e creio que boa parte do público também.
No entanto, um desdobramento ainda Em particular, identifiquei-me por ser
mais problemático ocorreu quando se uma mulher negra e por ter feito parte,
observou que esse era um problema real nos últimos vinte anos, de um movimento
e foi criada uma intervenção para que as múltiplo de militância política e de inserção
mulheres tivessem “passe livre”. Elas deviam acadêmica. Concordo que não é possível
se submeter a uma avaliação psiquiátrica. tratar da agenda de raça e de gênero sem nos
Bem, mulheres não-brancas, mulheres colocarmos a partir da nossa própria história
que não falam inglês eram as que tinham e das nossas perspectivas de vida.
menos condições de se beneficiar com Procurei também refletir sobre qual foi
essa intervenção. Conseqüentemente, esse o meu momento de revelação. A Kimberle
mecanismo não as ajudou de forma alguma. contou a história da discriminação no
Por último, precisamos desagregar os clube e fiquei refletindo sobre qual foi o
dados de raça e gênero e ter certeza de que meu momento. Na verdade, foram vários
sabemos diferenciar o que está acontecendo momentos. Mas, em especial, me lembrei do
em função de questões raciais e em função momento em que me convenci de que deveria

Você também pode gostar