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O Capital e a informação: quando a notícia vira mercadoria

Odilon F. G. Amaral

Extra! Veja! Isto é para vender

Você compra jornal. Compra livro, revista. Paga para se informar. Mesmo quando acha que
aquele conteúdo apareceu gratuitamente na tela do seu aparelho, na rede social, você paga pela
conexão. E pagou pelo aparelho. A tv aberta não cobra pelo conteúdo, mas consome energia,
deprecia, precisa ser trocada, afinal agora somos todos digitais e tal. Assim funciona e circula a
informação na sociedade capitalista.
Numa época em que desumanizar relações, generalizar conceitos e separar em grupos abrem
o apetite, por outro lado, para a eleição de símbolos que personifiquem e concretizem pensamentos,
assistimos à mídia gestar heróis e vilões, escolher alvos e ídolos que representem alguma situação
(ou oposição). São os chamados personagens, que ilustram alguma notícia (dos mais "ilustres” aos
considerados mais simples, como em “a dona Maria comprava seis quilos de açúcar com tantos
reais há um ano. Hoje, ela só consegue levar…” -a imprensa faz assim para trazer o conteúdo e a
notícia para mais perto do consumidor e facilitar a sua compreensão, o seu consumo. Sai do
específico para generalizar).
Eis que algumas personagens se tornam mais notórias. E se transformam, elas mesmas, em
mercadoria. Passam a promover, a vender, a propagar o conteúdo publicado. E a se vender também.
Modelos, jogadores de futebol, até mesmo artistas, cobram para participar de eventos e dar
“visibilidade”, um apelo para atrair a atenção dos holofotes -quando não cobram, diretamente, para
dar entrevistas. Segundo o escritor e poeta Afonso Romano de Sant'Anna, "os personagens na mídia
são mercadoria… …os escândalos diários e/ou semanais que jornais e revistas estampam são uma
mercadoria” (SANT’ANNA, 2007). Tudo se compra. Para consumir ou para produzir.

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A mercadoria, a indústria e o valor. A notícia é abstrata assim?

De acordo com Karl Marx, “A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma
coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem
delas, provenham do estômago ou da fantasia” (MARX, 1987, p.41). Marx destaca que a
mercadoria é a célula econômica da sociedade capitalista. E que ela se apresenta, na sua forma
natural, como valor de uso e, na sua forma social, como valor. Segundo Lauro Mattei, a teoria
marxista reformula definitivamente o conceito (de valor), ao se perguntar em que condições o
produto do trabalho humano assume a forma-valor. O foco é a mercadoria (porque nela se encontra
o resultado, o produto do trabalho humano), e não o valor. O trabalho não é valor, mas, sim o seu
fundamento. O de uso só se realiza com o desfrute ou o consumo, constitui o conteúdo material da
riqueza e é o veículo material do valor de troca. O último é revelado na relação quantitativa em que
se trocam valores de uso de espécies diferentes. Para Marx, um bem só possui valor porque nele
está materializado o trabalho abstrato; o trabalho humano que assume valor de troca nas sociedades
capitalistas é um trabalho social igualado, como resultado histórico advindo das relações sociais de
produção. Assim, chega ao conceito de trabalho abstrato.
Na sociedade, existem os produtores de bens, que são elaborados para troca. A
mercadoria é útil para satisfazer as necessidades pessoais -valor de uso-, mas pode ser trocada
também por outras mercadorias -valor de troca- em determinadas proporções. Assim as mercadorias
se reduzem a um padrão monetário único, pois são fruto do trabalho de várias pessoas -e não
determinadas pela quantidade de trabalho gasta por alguém de forma isolada. O conceito de
fetichismo da mercadoria aparece do mistério gerado por ela, que encobriria as características
sociais do próprio trabalho, apresentando-as como características materiais. O trabalho individual se
torna um componente do trabalho social. Assim, o trabalho é conduzido à posição de valor. O
trabalho individual vira trabalho social -aspecto quantitativo; o trabalho concreto (que diferencia os
trabalhos pela destreza e habilidade) transforma-se em abstrato, que surge pela troca e representa a
igualação social das diferentes formas de trabalho -aspecto qualitativo.
Hoje, o consumo de notícias faz parte das necessidades básicas da população. Elas precisam
ser ofertadas e concorrem entre si. São (bens) bem similares, com diferenças sutis, ou são
diametralmente opostas em sentidos e objetivos. Para serem vendidas, têm que ser “atraentes”,
chamar a atenção. É quando o trato estético começa a se sobrepor ao ético. Vem a espetacularização,
a predominância do entretenimento, a infiltração da ficção. Sujeita às leis de mercado, o valor da

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notícia se desprende de suas especificidades e essências, como a transparência, a isenção e a
principal, a verdade, além do trabalho nela contido e reconhecido como credibilidade.
Como observou Coan,

O telejornal põe em cena um acontecimento e exagera-lhe a importância, a gravidade, o caráter


dramático, trágico, sensacionalista. Há maior preocupação com índices de audiência, para a qual a
informação é uma mercadoria, do que com a “prestação de um serviço público”, para a qual a
informação é um “bem social” (COAN, 2011, p.24)

Não é à toa que falamos hoje -e desde 1947, quando Theodor W. Adorno e Max Horkheimer
batizaram o termo- em indústria cultural, "fruto da oportunidade de expansão da lógica do
capitalismo sobre a cultura” (COSTA, 2013, p.136). Na indústria cultural, os bens produzidos, (…)
pensando as maiores cifras (racionalizadas, massificadas e padronizadas), são essencialmente
mercadorias. São criados para cumprir a função de valor de troca”. Como observou o autor, "os
elementos constitutivos da indústria cultural, ou seja, diversão, entretenimento, prazer etc., já
existiam antes mesmo de ela vir à tona. Contudo, o que o século XX viu surgir foi uma imensa
maquinaria voltada à comercialização da cultura" (COSTA, 2013, p. 143).
O fetichismo surge na notícia como aparece, no pensamento de Karl Marx, na mercadoria.
Há, segundo Coan, um aspecto "visível, atrelado à ideia de que os 'fatos falam por si', tais como
aparecem no jornal, 'ocultando' (o feitiço) o processo de produção de sentido”. O autor ressalta
também, a "relação que a empresa jornalística estabelece com o público, conferindo à notícia
'aparência de valor de uso' (o que é, na verdade, o 'valor estético' da 'embalagem')" (COAN, 2011,
p. 27). Para Marcondes Filho:

O que caracteriza o jornalismo não é somente vender fatos e acontecimentos (que seriam puramente
o valor de uso da informação), mas, ao transformá-los em mercadoria, explorar e vender sua
aparência, o seu impacto, o caráter explosivo associado ao fato. Isso constrói a sua “aparência de
valor de uso (MARCONDES FILHO, 1986, apud COAN, 2011, p.27).

As notícias são produzidas e veiculadas por empresas, entidades capitalistas, em sua maioria
esmagadora, que visam lucro. Tal produto é, pois, uma mercadoria, no seu sentido mais estrito.
Assim é a produção industrial, "metaforicamente à maneira de uma indústria que produz uma série
de canetas esferográficas. Tudo está a serviço da produção de mercadorias” (COSTA, 2013, p. 145).

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Conclusão

Assim como pode-se achar no mercado de bens populares mercadorias de qualidade ruim, e
mesmo falsificadas, o mesmo se dá com a notícia. Existem os chamados jornais populares,
sensacionalistas, e as cada vez mais abundantes notícias falsificadas, fabricadas, ou, como são mais
atualmente chamadas, as fake news. "O capitalismo continua a liquidar, não com o trabalho, mas
com o trabalhador, e, para além disso, a criação de necessidades supérfluas vem se
ampliando” (COSTA, 2013, p.137). A imagem é quase literal ao que se vê, hoje, em redes sociais, a
bordo de perfis ditos noticiosos, mas são baseados na mais pobre ficção, que acabam minando a
credibilidade da notícia legítima, fruto do trabalho de uma equipe de produtores, repórteres,
redatores, editores etc. A notícia-mercadoria vira uma "coisa" anônima, sem pai nem mãe, sem pé
nem cabeça, mas conveniente para uma grande maioria massificada que não deseja se informar, mas
legitimar um pensamento que mimetizou de alguma outra pessoa. E isso vale tanto para produtores
de fake news quanto aos chamados veículos da grande mídia.
Hoje, em termos jornalísticos, uma cobertura pode seguir uma receita ao gosto do freguês.
Pode ser rasa, mas palatável, de fácil digestão, agradável; ou amarga, profunda, complexa, até
desagradável, mas necessária como um remédio. Basta escolher o fornecedor. E quanto quer se
pagar hoje, a vista, pela construção de uma história; ou de um futuro, a prazo, amanhã.

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Bibliografia:

ARAÚJO, Carlos Roberto Vieira. História do pensamento econômico: uma abordagem introdutória. São
Paulo, Atlas,1988.

COAN, Emerson Ike. A informação como mercadoria e a estetização da notícia na sociedade


contemporânea. Estudos de Sociologia, v. 16, n. 30, 2011

COSTA, Jean Henrique. A atualidade da discussão sobre a indústria cultural em Theodor W. Adorno. Trans/
Form/Ação, Marília , v. 36, n. 2, p. 135-154, Aug. 2013 . Available from <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732013000200009&lng=en&nrm=iso>. access on 08 Apr.
2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732013000200009.

MARX, Karl. O capital. 11a edição. Rio de Janeiro: DIFEL, v. 1, 1987

MATTEI, Lauro. Teoria do valor-trabalho: do ideário clássico aos postulados marxistas. Ensaios FEE, v. 24,
n. 1, pp. 271-94, 2003.

SANT’ANNA, Afonso Romano de. A notícia como mercadoria. Observatório da Imprensa, ed. 440, 3 de
jul. de 2007. Disponível em http://observatoriodaimprensa.com.br/feitos-desfeitas/a-noticia-como-
mercadoria/

SINGER, Paul Israel. Curso de introdução à economia política. Rio de Janeiro, 3ª edição, Forense-
Universitária, 1975.

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