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ARTIGO ARTICLE
Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade

Qualitative analysis: theory, steps and reliability

Maria Cecília de Souza Minayo 1

Abstract This essay seeks to conduct in-depth Resumo Neste ensaio busca-se aprofundar a re-
analysis of qualitative research, based on bench- flexão sobre o processo de análise na pesquisa qua-
mark authors and the author’s own experience. litativa a partir de autores referenciais e da expe-
The hypothesis is that in order for an analysis to riência da própria autora. O texto está organiza-
be considered reliable, it needs to be based on struc- do em forma de decálogo por meio do qual é trata-
turing terms of qualitative research, namely the do o tema processualmente. A hipótese é de que
verbs ‘comprehend’ and ‘interpret’, and the nouns uma análise para ser fidedigna precisa conter os
‘experience’, ‘common sense’ and ‘social action’. termos estruturantes da investigação qualitativa
The 10 steps begin with the construction of the que são os verbos: compreender e interpretar; e os
scientific object by its inclusion on the national substantivos: experiência, vivência, senso comum
and international agenda; the development of tools e ação social. A seguir a proposta avança por 10
that make the theoretical concepts tangible; con- passos que se iniciam na construção científica do
ducting field work that involves the researcher objeto pela sua colocação no âmbito do conheci-
empathetically with the participants in the use of mento nacional e internacional, na elaboração
various techniques and approaches, making it de instrumentos que tornem concretos os concei-
possible to build relationships, observations and tos teóricos, na execução de um trabalho de cam-
a narrative with perspective. Finally, the author po que envolva empaticamente o investigador no
deals with the analysis proper, showing how the uso de vários tipos de técnicas e abordagens, tor-
object, which has already been studied in all the nando-o um construtor de relações, de observa-
previous steps, should become a second-order con- ções e de uma narrativa em perspectiva. Por fim,
struct, in which the logic of the actors in their a autora trata da análise propriamente dita, mos-
diversity and not merely their speech predomi- trando como o objeto, que já vem pensado em to-
nates. The final report must be a theoretic, con- das as etapas anteriores, deve se tornar um cons-
textual, concise and clear narrative. truto de segunda ordem, em que predomine a ló-
1
Centro Latino-Americano Key words Qualitative analysis, Qualitative re- gica dos atores em sua diversidade e não apenas as
de Estudos de Violência e
search, Comprehension, Interpretation, Dialectics suas falas, dentro de uma narrativa teorizada, con-
Saúde (Claves), Escola
Nacional de Saúde Pública textualizada, concisa e clara.
(Ensp), Fundação Oswaldo Palavras-chave Análise qualitativa, Pesquisa
Cruz. Av. Brasil 4036/700,
qualitativa, Compreender, Interpretar, Dialetizar
Manguinhos. 21040-361
Rio de Janeiro RJ.
maminayo@terra.com.br
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Minayo MCS

Introdução e estratégia de construção do texto Discussão

Neste artigo apresento uma reflexão sobre o pro- As premissas para a discussão da análise qualita-
cesso de análise qualitativa de estudos com base tiva estão apresentadas em forma de decálogo, na
empírica. O texto tem duas fontes de inspiração: busca de facilitar a compreensão para os que bus-
a primeira são os vários autores com os quais cam se familiarizar com a abordagem qualitativa.
venho dialogando durante mais de 25 anos. A Primeiro: Conhecer os termos estruturantes
segunda é minha própria vivência como investi- das pesquisas qualitativas. Sua matéria prima é
gadora, orientadora de teses e de dissertações e composta por um conjunto de substantivos cujos
como professora na área de saúde coletiva. sentidos se complementam: experiência, vivência,
Começando pela minha experiência, ressalto senso comum e ação. E o movimento que informa
que de todas as demandas que recebo de estu- qualquer abordagem ou análise se baseia em três
dantes e colegas, a mais recorrente diz respeito a verbos: compreender, interpretar e dialetizar8.
como fazer análise do material qualitativo. É como O termo experiência utilizado historicamente
se todas as outras fases da pesquisa, a prepara- por Heidegger9, diz respeito ao que o ser humano
ção do projeto e o trabalho de campo configu- apreende no lugar que ocupa no mundo e nas
rassem etapas muito simples e fáceis de serem ações que realiza. O sentido da experiência é a
resolvidas, em contraposição às dificuldades de compreensão: o ser humano compreende a si
como tratar os achados empíricos e documen- mesmo e ao seu significado no mundo da vida9.
tais. Essa preocupação procede, pois é diferente Por ser constitutiva da existência humana, a expe-
dos estudos quantitativos em que os dados co- riência alimenta a reflexão e se expressa na lingua-
lhidos de forma padronizada e tratados com téc- gem. Mas, a linguagem não traz a experiência pura,
nicas de análise sofisticadas oferecem ao pesqui- pois vem organizada pelo sujeito por meio da re-
sador certa segurança quanto à fidedignidade de flexão e da interpretação num movimento em que
seu estudo. Uma segurança que a rigor deveria o narrado e o vivido por si estão entranhados na
ser questionada1. No caso da pesquisa qualitati- e pela cultura, precedendo à narrativa e ao narra-
va, muitos outros problemas – que na verdade dor10. Já a vivência é produto da reflexão pessoal
são parte de sua própria contingência e condição sobre a experiência. Embora a experiência possa
– dificultam saber de antemão se as informações ser a mesma para vários indivíduos (irmãos
recolhidas e as análises elaboradas poderiam ser numa mesma família, pessoas que presenciam um
consideradas válidas e suficientes. fato, por exemplo) a vivência de cada um sobre o
Divido este trabalho em duas partes. Na pri- mesmo episódio é única e depende de sua perso-
meira, mostro que uma boa análise começa com nalidade, de sua biografia e de sua participação
a compreensão e a internalização dos termos fi- na história. Embora pessoal, toda vivência tem
losóficos e epistemológicos que fundamentam a como suporte os ingredientes do coletivo em que
investigação e, do ponto de vista prático, desde o sujeito vive e as condições em que ela ocorre. O
quando iniciamos a definição do objeto. Na se- senso comum pode ser definido como um corpo
gunda parte, discorrei sobre o processo da aná- de conhecimentos provenientes das experiências e
lise propriamente dito. das vivências que orientam o ser humano nas
Fazer ciência é trabalhar simultaneamente várias ações e situações de sua vida6,9-11. Ele se
com teoria, método e técnicas, numa perspectiva constitui de opiniões, valores, crenças e modos de
em que esse tripé se condicione mutuamente: o pensar, sentir, relacionar e agir. O senso comum
modo de fazer depende do que o objeto deman- se expressa na linguagem, nas atitudes e nas con-
da, e a resposta ao objeto depende das pergun- dutas e é a base do entendimento humano. Dado
tas, dos instrumentos e das estratégias utilizadas o seu caráter de expressão das experiências e vi-
na coleta dos dados. À trilogia acrescento sem- vências, o senso comum é o chão dos estudos
pre que a qualidade de uma análise depende tam- qualitativos. A ação (humana e social) pode ser
bém da arte, da experiência e da capacidade de definida como o exercício dos indivíduos, dos gru-
aprofundamento do investigador que dá o tom e pos e das instituições para construir suas vidas e
o tempero do trabalho que elabora. os artefatos culturais, a partir das condições que
Tento apontar algumas questões cruciais que eles encontram na realidade. O conceito de ação
oferecem as balizas da objetivação2,3 e do caráter está vinculado à noção de liberdade para agir e
incompleto, provisório4-6 e aproximativo do co- transformar o mundo que, para Heidegger4, não
nhecimento7. constitui um lugar e sim um complexo formado
pela significação das experiências que fazem do
ser humano um ser histórico.
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O verbo principal da análise qualitativa é com- exploratórias. Feita a análise das fontes de pes-
preender. Compreender é exercer a capacidade de quisa, o investigador deve escolher o marco teó-
colocar-se no lugar do outro, tendo em vista que, rico que vai adotar, detalhando os conceitos, as
como seres humanos, temos condições de exerci- categorias e as noções que fazem sentido para
tar esse entendimento6. Para compreender, é pre- sua pesquisa. Este é o momento também de co-
ciso levar em conta a singularidade do indivíduo, locar de forma mais fundamentada as hipóteses
porque sua subjetividade é uma manifestação do ou os pressupostos que já existiam como intui-
viver total. Mas também é preciso saber que a ção nas indagações iniciais.
experiência e a vivência de uma pessoa ocorrem Terceiro – Delinear as estratégias de campo. É
no âmbito da história coletiva e são contextuali- preciso ter em mente que os instrumentos ope-
zadas e envolvidas pela cultura do grupo em que racionais também contêm bases teóricas: são
ela se insere. Toda compreensão é parcial e inaca- constituídos de sentenças (no caso dos roteiros)
bada, tanto a do nosso entrevistado, que tem um ou orientações (no caso da observação de cam-
entendimento contingente e incompleto de sua vida po) que devem guardar estreita relação com o
e de seu mundo, como a dos pesquisadores, pois marco teórico, sendo cada um desses elementos
também somos limitados no que compreende- um tipo de conceito operativo pensado na teori-
mos e interpretamos. Ao buscar compreender é zação inicial.
preciso exercitar também o entendimento das Quarto – Dirigir-se informalmente ao cená-
contradições: o ser que compreende, compreende rio de pesquisa, buscando observar os processos
na ação e na linguagem e ambas têm como carac- que nele ocorrem. É preciso ir a campo sem pre-
terísticas serem conflituosas e contraditórias pe- tensões formais e ampliar o grau de segurança
los efeitos do poder, das relações sociais de pro- em relação à abordagem do objeto, inclusive, se
dução, das desigualdades sociais e dos interes- possível, realizar algumas entrevistas abertas,
ses12. Interpretar é um ato contínuo que sucede à promover o redesenho de hipóteses, pressupos-
compreensão e também está presente nela: toda tos e instrumentos, buscando uma sintonia fina
compreensão guarda em si uma possibilidade de entre o quadro teórico e os primeiros influxos da
interpretação, isto é, de apropriação do que se realidade. O olhar analítico deve acompanhar
compreende. A interpretação se funda existenci- todo o percurso de aproximação do campo.
almente na compreensão e não vice-versa, pois Quinto – Ir a campo munido de teoria e hipó-
interpretar é elaborar as possibilidades projeta- teses, mas aberto para questioná-las. É preciso
das pelo que é compreendido6,9. imergir na realidade empírica na busca de infor-
Segundo – Definir o objeto sob a forma de mações previstas ou não previstas no roteiro ini-
uma pergunta ou de uma sentença problematiza- cial. Conforme ensina Malinowski14 em seu clás-
dora e teorizá-lo. A indagação inicial norteia o sico trabalho sobre os princípios da abordagem
investigador durante todo o percurso de seu tra- antropológica: é fundamental ter todo o material
balho. Sua reflexão analítica, neste momento, ori- teórico elaborado, todos os instrumentos opera-
enta-se para o delineamento adequado do objeto cionais prontos e à disposição, como se o êxito da
no tempo e no espaço: que não deve ser tão am- investigação dependesse somente deles. Mas é
plo que permita apenas uma visão superficial e também crucial estar tão atento e tão aberto às
nem tão restrito que dificulte a compreensão de novidades do campo que, caso seja preciso, o in-
suas interconexões. A definição de um objeto não vestigador abra mão de suas certezas a favor dos
reside na indagação em si, mas no seu esclareci- influxos da realidade. Lembra Lévy-Strauss15:
mento e contextualização por meio da teorização “O trabalho de campo é mãe e nutriz de toda
que o torna um fato científico construído. É ób- dúvida (...) antropológica que consiste em se sa-
vio que a clareza sobre o objeto – que nunca será ber que nada se sabe, mas, também em expor o
total e definitiva - só se alcança ao final de uma que se pensava saber, às pessoas que [no campo]
pesquisa. Qualquer investigação nada mais é do podem contradizer [nossas verdades mais caras]”.
que a busca de responder à indagação inicial. Num trabalho de campo profícuo, o pesqui-
Como nos lembra Pascal13, a conclusão de uma sador vai construindo um relato composto por
obra já deve estar latente em sua formulação, pois depoimentos pessoais e visões subjetivas dos in-
todas as coisas são causadas e causadoras. terlocutores, em que as falas de uns se acrescen-
Para tornar o objeto um construto científico tam às dos outros e se compõem com ou se con-
é preciso investir no conhecimento nacional e in- trapõem às observações. É muito gratificante
ternacional acumulado, dialogando com ele ou quando ele consegue tecer uma história ou uma
em torno dele, caso não haja estudos sobre o narrativa coletiva, da qual ressaltam vivências e
mesmo assunto, como ocorre nas investigações experiências com suas riquezas e contradições. Já
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nesse momento, o pesquisador pode articular as sentido de valorizar ao máximo os achados do


informações que recebe como num quebra-ca- campo. Para isso é importante: (1) organizar os
beças, e para enriquecê-las, buscar novos inter- relatos e os dados de observação em determinada
locutores e fazer novas observações. É preciso ordem. Por exemplo, caso a pesquisa empírica
ressaltar que um relato coletivo não significa um tenha sido feita com grupos diferenciados por clas-
conto homogêneo e, sim, uma história em que se social, por idade, por sexo, por religião, por
os diversos interesses e as várias visões tenham épocas históricas diferentes (todas essas divisões
lugar e possibilidade de expressão. Bertaux16 con- são aqui hipotéticas), vários subconjuntos devem
sidera que um bom trabalho de campo é ao mes- ser criados, visando a uma leitura das homoge-
mo tempo a “construção de uma representação neidades e das diferenciações para que seja possí-
do objeto socioantropológico”. Em resumo, o vel fazer comparações entre os vários subconjun-
trabalho de campo não é um exercício de con- tos. (2) As leituras horizontais de impregnação
templação. Tanto na observação como na inter- dão lugar a uma elaboração transversal do con-
locução com os atores o investigador é um ator junto ou de cada subconjunto do material empí-
ativo, que indaga, que interpreta, e que desenvol- rico, com uma intenção específica: recortar cada
ve um olhar crítico. item do texto, conforme foram apresentados pe-
Sexto – Ordenar e organizar o material se- los entrevistados10. Todo esse esforço de recorte e
cundário e o material empírico e impregnar-se colagem pode ser organizado tecnicamente em
das informações e observações de campo. É pre- subconjuntos ou gavetas, separados por assun-
ciso investir na compreensão do material trazido tos, constituindo já a primeira forma de classifi-
do campo, dando-lhe valor, ênfase, espaço e tem- cação do material; (3) em seguida, o pesquisador
po. Tendo em vista que a análise do material qua- dá um passo a mais na compreensão das estrutu-
litativo se apóia nos verbos e substantivos cita- ras de relevância apresentadas pelos entrevista-
dos no primeiro ponto do decálogo, qualquer dos. O material contido nas muitas gavetas deve
tentativa de realizá-la apenas tecnicamente em- passar por uma nova leitura e organização para
pobrece os resultados. que seja rearrumado em quatro ou cinco tópicos
A ordenação constitui um trabalho organizati- que os entrevistados destacaram, sobretudo, por
vo: (1) dos textos teóricos e referências que baliza- meio da reiteração. O esforço de síntese diminui o
ram o projeto e agora precisam ser complemen- número de subconjuntos, mas não despreza a ri-
tadas; (2) do material de observação, que geral- queza de informações. Apenas a reclassifica, enfa-
mente está contido no diário de campo, fonte le- tizando quais são as estruturas de relevância apon-
gítima de informação para compor a análise; (3) tadas no estudo de campo. Dentro de cada tópi-
dos documentos geográficos, históricos, estatís- co, as questões devem ser tratadas em sua homo-
ticos e institucionais que porventura existam, que geneidade e em suas diferenciações internas. O
foram pesquisados e que devem ajudar na con- movimento classificatório que privilegia o senti-
textualização do objeto; (4) das entrevistas, resul- do do material de campo não deve buscar nele
tados de grupos focais e de outras fontes primá- uma verdade essencialista, mas o significado que
rias (que devem ter sido desgravadas caso a inter- os entrevistados expressam.
locução tenha sido mediadas por gravações). Os A esse momento fundamental em que pouco
elementos citados nos itens 1,2,3 são contextuais. a pouco o pesquisador chega ao sentido das fa-
Os do item 4 dizem respeito ao conteúdo das fa- las e de sua contextualização empírica denomino
las e das observações que a partir de então devem lógica interna dos atores, do grupo, ou do seg-
ter prioridade numa leitura atenta, reiterativa e mento. No momento em que compreender o sen-
cheia de perguntas. A esse movimento costumo tido do que lhe foi relatado e do que observou no
chamar de “impregnação” ou “saturação”. campo, o pesquisador não necessita mais estar
Sétimo – Construir a tipificação do material colado às falas: seu aprisionamento a elas é uma
recolhido no campo e fazer a transição entre a das maiores fraquezas de quem faz análise qua-
empiria e a elaboração teórica. O processo de ti- litativa, pois significa que o investigador não foi
pificação é mais denso e intenso que o exercício de capaz de ultrapassar o nível descritivo do seu
ordenação, mas tem a mesma finalidade: apro- material empírico. Como nos lembra Canguil-
priação da riqueza de informações do campo, ten- lem17: A verdade só ganha sentido ao fim de uma
tando, na medida do possível, não “contaminá- polêmica. Assim não poderia haver verdade pri-
lo” por meio de uma interpretação precipitada. É meira. Só há erros primeiros. A evidência pri-
preciso esclarecer que não existe uma mente vazia meira nunca é uma verdade fundamental.
de dados anteriores ou uma cabeça isenta de teo- Oitavo – Exercitar a interpretação de segun-
rias e ideologia. O esforço compreensivo tem o da ordem. A compreensão propiciada pela leitu-
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ra atenta, aprofundada e impregnante que deu Décimo – Assegurar os critérios de fidedigni-
origem às categorias empíricas ou unidades de dade e de validade. Popper22 nos lembra que a
sentido, nesse momento, deve merecer um novo objetividade é uma questão social dos cientistas,
processo de teorização. Pode ocorrer que as refe- envolvendo a crítica recíproca, e “a divisão hos-
rências teóricas que constituíram balizas funda- til-amistosa de seu trabalho, sua cooperação ou
mentais para o início da investigação não sejam também sua competição”. Mas os critérios de
suficientes para contemplar a interpretação dos verificação devem ser assegurados, assim como
achados de campo. Em forma de tópicos, no caso um certo apego do cientista a sua proposta e a
de um artigo, ou de capítulos (no caso de elabo- seus métodos, diz Popper, pois “se nos sujeitar-
ração de um livro) cada uma das unidades de mos à crítica com demasiada facilidade, nunca
sentido deve então merecer uma leitura de refe- descobriremos onde está a verdadeira força de
rências nacionais e internacionais, de forma a nossas teorias”22. No sentido de salvaguardar a
colocar o material classificado, no contexto das fidedignidade, sugerimos alguns passos: (1) O
questões nacionais e internacionais que ele susci- primeiro de todos é aquele que guia universal-
ta. E igualmente, é importante enriquecer todo o mente toda pesquisa científica: teoria, método e
conjunto de falas e observações, com elementos técnicas adequados, descritos e avaliáveis por
históricos e contextuais: para que de sua “aldeia” qualquer outro investigador. (2) Por exigir pre-
o pesquisador converse com o mundo e sobre o sença, envolvimento pessoal e interação do pes-
mundo, de forma compreensiva e crítica. quisador em todo o processo, uma boa análise
A interpretação nunca será a última palavra qualitativa deve explicitar suas ações no campo,
sobre o objeto estudado, pois o sentido de uma assim como seus interesses e dificuldades na cons-
mensagem ou de uma realidade está sempre aber- trução do objeto. Existem ainda alguns cuidados
to em várias direções. No entanto, quando bem possíveis de serem realizados durante o processo
conduzida, ela deve ser fiel ao campo de tal ma- de realização da investigação que lhe asseguram
neira que caso os entrevistados estivessem pre- maior grau de validade: (3) a triangulação inter-
sentes, compartilhariam os resultados da análi- na à própria abordagem23, que consiste em olhar
se. Gadamer6 acrescenta, recuperando o pensa- o objeto sob seus diversos ângulos, comparar os
mento de vários autores como Dilthey18 e Schlei- resultados de duas ou mais técnicas de coleta de
ermarcher19, que a interpretação deve ir além dos dados e de duas ou mais fontes de informação,
entrevistados e surpreendê-los, pois quando eles por exemplo. (4) A validação dos relatos, com-
deram seus depoimentos, não tinham consciên- parando as falas com as observações de campo.
cia de tudo o que seria possível compreender, a (5) O alerta para os relatos e os fatos que contra-
partir de suas falas, sobre seu tempo, seus con- digam as propostas e as hipóteses do investiga-
temporâneos e sobre a sociedade em que vivem. dor, tratando de problematizá-los e de apresen-
Nono – produzir um texto ao mesmo tempo tá-los, em lugar de ocultá-los. E (5) a fidedigni-
fiel aos achados do campo, contextualizado e ac- dade aos vários pontos de vista, garantindo a
cessível. A conclusão de uma análise qualitativa diversidade de sentidos expressos pelos interlo-
deve apresentar um texto capaz de transmitir in- cutores, fugindo à idéia de verdade única.
formações concisas, coerentes e, o mais possível,
fidedignas. Pois, o relato final da pesquisa confi-
gura uma síntese na qual o objeto de estudo re- Conclusões
veste, impregna e entranha todo o texto. O con-
texto, as determinações mais próximas e as mais Antes de terminar essas reflexões, gostaria de lem-
abstratas, nessa etapa do “concreto pensado”20, brar que muitos artefatos tecnológicos têm sido
devem emanar do objeto e não ao contrário. Por- criados para a produção de análises qualitativas.
tanto, consideramos um trabalho incompleto ou Há pesquisadores que os utilizam e certamente
pobre o que apenas descreve o que encontrou no encontram nele um importante apoio, como o
campo. Mas a compreensão e a interpretação em demonstra a obra de Pope e Mays24.
seu formato final, também assinalam um mo- Talvez por hábito de estar presente de forma
mento na práxis do pesquisador. Por isso, nunca analítica e crítica em cada uma das etapas da in-
será uma obra acabada e suas conclusões devem vestigação, sinto muita dificuldade em terceirizar,
se abrir para novas indagações. Na sua exposi- para tais dispositivos, a tarefa analítica, uma vez
ção, é importante que o autor inclua suas condi- que ela privilegia uma etapa apenas e não leva em
ções e suas dificuldades de interpretação, pois conta o contexto intersubjetivo indissociável e fi-
elas fazem parte da objetivação da realidade e de losoficamente fundamental para a pesquisa qua-
sua própria objetivação21. litativa e, portanto, para o processo de análise.
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Por isso, neste texto, toda a reflexão supõe a nando-a um objeto pensado; para elaboração de
presença e o acompanhamento do pesquisador hipóteses coerentes com a pergunta e que possam
em cada passo do trabalho, num movimento ao guiar o trabalho; para construção dos instrumen-
mesmo tempo somativo e de superação da fase tos que devem traduzir os conceitos em itens ob-
anterior. A implicação do investigador no traba- serváveis ou em guias para conversas no campo;
lho se constitui numa perspectiva circular: “ele só para elaboração de uma narrativa sobre o objeto
conhece a realidade na medida em que a cria”25. que ao mesmo tempo leve em conta a preparação
Partindo dessa compreensão, considero que nem realizada cuidadosamente e a supere, trazendo
um bom técnico-analista de conteúdo pode ga- novas descobertas e relevâncias; para organizar,
rantir a qualidade de um texto final quando não categorizar, contextualizar e construir o relato fi-
se dá conta das condições de sua produção. nal, fruto sempre de uma análise provisória.
O reconhecimento de que existe uma polari- O percurso analítico e sistemático, portanto,
dade complementar entre sujeito e objeto no pro- tem o sentido de tornar possível a objetivação de
cesso qualitativo de construção científica leva, por um tipo de conhecimento que tem como matéria
sua vez, à necessidade de um esforço metodológi- prima opiniões, crenças, valores, representações,
co que garanta a objetivação, ou seja, a produção relações e ações humanas e sociais sob a perspec-
de uma análise o mais possível sistemática e apro- tiva dos atores em intersubjetividade. Desta for-
fundada e que minimize as incursões do subjeti- ma, a análise qualitativa de um objeto de investi-
vismo, do achismo e do espontaneísmo. Nesse sen- gação concretiza a possibilidade de construção
tido, sem contradizer o que falei no parágrafo an- de conhecimento e possui todos os requisitos e
terior, é preciso valorizar as técnicas: para revisão instrumentos para ser considerada e valorizada
sistemática ou narrativa da indagação inicial, tor- como um construto científico.

Referências

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