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ABSTRACT: The aim of this article is the conception of the Biopolitcs, written
by Michel Foucault, and afterwards worked by Giorgio Agamben, who
transformed it to Thanathpolitics. The previous philosopher thought about
Biopolitics as the power on an individual discipline and about the history of
sexuality; the latter philosopher, together with the state of exception as the rule
of Modernity. Both, the conception concerns to the domination on the whole
people.
∗
Mestrando em Filosofia (PUC-SP), especialista em Sociologia (FESPSP), bacharel em Filosofia (USP) e
em Ciências Sociais (FSA), professor da Faculdade Interação Americana, autor de material didático em
Filosofia e de artigos científicos.
INTRODUÇÃO
FOUCAULT
1
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque, Rio de Janeiro: Edições Graal, 3°
edição, 1980, p. 112.
2
Op. Cit., p. 113.
uma funcionalidade econômica, em outra. Isto é, Foucault está libertando a
idéia de poder do enclausuramento econômico e deslocando sua pesquisa
para a idéia de poder como relação de força. Mas não como uma força
repressora ou como uma guerra contínua. A refutação da fundamentação do
poder na economia e na repressão, libera o pensamento de Foucault de dois
sistemas:
“Um que seria o velho sistema que vocês encontram nos filósofos do
século XVIII, se articula em torno do poder como direito original que
se cede, constitutivo da soberania, e tendo o contrato como matriz
do poder político. E haveria o risco de esse poder assim constituído,
quando ultrapassa a si mesmo, ou seja, quando vai além dos
próprios termos do contrato, tornar-se opressão. Poder-contrato,
tendo como limite, ou melhor, como ultrapassagem do limite, a
opressão. E vocês teriam o outro sistema que tentaria, pelo
contrário, analisar o poder político não mais de acordo com o
esquema contrato-opressão, mas de acordo com o esquema guerra-
repressão. E, neste momento, a repressão não é o que era a
opressão em relação ao contrato, ou seja, um abuso, mas, ao
contrário, o simples efeito e o simples prosseguimento de uma
relação de dominação. A repressão nada mais seria que o emprego,
no interior dessa pseudopaz solapada por uma guerra contínua, de
uma relação de força perpétua. Portanto, dois esquemas de análise
do poder; o esquema jurídico, e o esquema guerra-opressão, ou
dominação-repressão, no qual a oposição pertinente não é a do
legítimo e do ilegítimo, como no esquema precedente, mas a
3
oposição entre luta e submissão” .
3
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976).
Tradução de Maria Ermantina Galvão, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 24.
técnicas que ela segue e a hegemonia que a burguesia construiu: para
Foucault, as tecnologias do sexo maximizam a vida, atribuem longevidade a ela
e tentam impedir patologias nos descendentes, distribui os prazeres e os
discursos de maneira que contrariam a hipótese repressiva. A burguesia
investiu consideravelmente em um instrumento que lhe oferecia saúde futura,
uma higiene, uma descendência que marcava a distinção de classe (não mais
pelo sangue, como a aristocracia o fizera, mas pelo sexo, a partir de preceitos
biológicos, médicos e eugênicos) a partir de substrato biológico
(autossexualização). A burguesia não castrou a sexualidade, ela criou
dispositivos que expandiram a força infinitamente, lhe ofereceram vida e saúde,
garantiram a perenidade. Trata-se de um agenciamento político sobre a vida
constituída por dispositivos de sexualidade diagnosticados por Foucault na sua
analítica do poder.
4
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Op. Cit., p. 131.
5
“(...) Esse novo tipo de poder, que já não é, pois, de modo algum transcritível nos termos de
soberania, é, acho eu, uma das grandes invenções da sociedade burguesa. Ele foi um dos
instrumentos fundamentais da implantação do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que
lhe é correlativo. Esse poder não soberano, alheio portanto à forma da soberania, é o poder
‘disciplinar’” (FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-
1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 43).
sociedade, segundo Foucault, normalizadora, “efeito histórico de uma
tecnologia de poder centrada na vida”6.
Na esteira desta época do biopoder, a sexualidade é um dispositivo que
recebe um veemente investimento, já que ela relaciona-se tanto sobre a
disciplinarização dos corpos como na regulação das populações (articula
disciplina e biopolítica, serve como matriz das disciplinas e como regulação da
vida populacional – a explosão discursiva ocorrida na era clássica não foi
gratuita, como já foi tratado). Na era anterior a do biopoder, o sangue constitui
um elemento pelo qual os mecanismos de poder atuam (simbólica do sangue);
com o biopoder, os mecanismos de poder deslocam-se para o sexo, já que
dirigem-se ao corpo e à vida (analítica do sexo). O cuidado que Foucault toma,
também, é o de mostrar que a simbólica do sangue e a analítica do poder não
se sucedem, mas se justapõem: há uma obsessão com o sangue e a lei por
parte da gestão da sexualidade. A segunda metade do século XIX produziu um
racismo estatal e biologizante com políticas de povoamento, de família, de
casamento, de educação, de hierarquização social, de propriedade, de
conduta, de saúde – tudo para a proteção e para depuração do sangue, para
triunfar a raça, tal como o nazismo pretendeu. Para a sexualidade encontrar-se
escrita no sistema da lei, a Psicanálise esforçou-se para contemplá-la a partir
das leis da aliança, da consangüinidade interdita, do Pai-soberano. Seja como
obsessão com o sangue, seja como obsessão com a lei, “o dispositivo de
sexualidade deve ser pensado a partir das técnicas de poder que lhe são
contemporâneas”7.
6
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Op. Cit., p. 135.
7
Op. Cit., p. 141.
8
Na aula de 21 de janeiro de Em defesa da sociedade, na qual Foucault fundamenta a política
na guerra: esta é uma relação social permanente entre sujeitos que ocupam lugares próprios e
se engajam na defesa de seus interesses e no contexto histórico em que se encontram.
9
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade, Op. Cit., p. 287.
“(...) Agora que o poder é cada vez menos o direito de fazer morrer e
cada vez mais o direito de intervir para fazer viver, e na maneira de
viver, e no ‘como’ da vida, a partir do momento em que, portanto, o
poder intervém sobretudo nesse nível para aumentar a vida, para
controlar seus acidentes, sua eventualidades, suas deficiências, daí
por diante a morte, como termo da vida, é evidentemente o termo, o
limite e extremidade do poder. Ela está do lado de fora, em relação
ao poder: é o que cai fora de seu domínio, e sobre o que o poder só
terá domínio de modo geral, global, estatístico. Isso sobre o que o
poder tem domínio não é a morte, é mortalidade. E nessa medida, é
normal que a morte, agora, passe para o âmbito do privado e do que
10
há de mais privado” .
10
Op. Cit., pp. 295-296.
11
Op. Cit., p. 289.
12
Op. Cit., p. 294.
primeiro processo, um segundo também torna-se importante: tratam-se de
fenômenos coletivos, de âmbito da massa e cujo resultado político e econômico
importam muito. Para dar conta destes fenômenos, é importante também o
modo de abordá-los, isto é, tornam-se importantes as tecnologia peculiares à
biopolítica: previsões, estimativas estatísticas, medições globais para intervir
em fenômenos globais; por exemplo, estimulando a natalidade e baixando a
morbidade para “fixar um equilíbrio, manter uma média, estabelecer uma
espécie de homeóstase, assegurar compensações”13. Não se trata, em
biopolítica, de disciplinarização de um indivíduo, mas de uma regulamentação
da vida da população: o primeiro nível das técnicas de poder tem um objeto e o
segundo, outro.
13
Op. Cit., p. 293.
14
Foucault considera que há duas séries de técnicas de poder, uma disciplinar, de âmbito
individual, e outra regulamentadora, de âmbito populacional; elas se sobrepõe ao invés de se
antagonizarem, se articulam ao invés de se excluírem: “(...) A série corpo – organismo –
disciplina – instituições; e a série população – processos biológicos – mecanismo
regulamentadores – Estado. Um conjunto orgânico institucional: a organo-disciplina da
instituição, se vocês quiserem, e, de outro lado, um conjunto biológico e estatal: a bio-
regulamentação pelo Estado. Não quero fazer essa oposição entre Estado e instituição aturar
no absoluto, porque as disciplinas sempre tendem, de fato, a ultrapassar o âmbito institucional
e local em que são consideradas. E, depois, elas adquirem facilmente uma dimensão estatal
em certos aparelhos como a polícia, por exemplo, que e a um só tempo um aparelho de
disciplina e um aparelho de Estado (o que prova que a disciplina nem sempre é institucional).
E, da mesma forma, essas grandes regulações globais que proliferam ao longo do século XIX,
nós as encontramos, é claro, no nível estatal,, mas também abaixo do nível estatal, com toda
uma série de instituições subestatais, como as instituições médicas, as caixas de auxílio, os
seguros etc”. Op. Cit., pp. 298-299.
15
Op. Cit., p. 300.
“(...) A norma é o que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer
disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar. (...) A
sociedade de normalização é uma sociedade em que se cruzam,
conforme uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma
da regulamentação. Dizer que o poder, no século XIX, tomou posse
da vida, dizer pelo menos que o poder, no século XIX, incumbiu-se
da vida, é dizer que ele conseguiu cobrir toda a superfície que se
estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o
jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das
16
tecnologias de regulamentação, de outra” .
16
Op. Cit., p. 302.
17
Op. Cit., p. 305.
18
Op. Cit., p. 306.
previdenciária do que a que foi implantada, ou em todo caso
19
projetada, pelos nazistas” .
AGAMBEN
Diante destas candentes questões, Agamben definiu com clareza seu objeto no
livro: trata-se de investigar a intersecção entre o que é jurídico-institucional e o
que é biopolítico e não separar estes dois âmbitos um do outro. Trata-se,
ainda, de mostrar as implicações da vida nua na esfera política como “núcleo
originário do poder soberano”21, de mostrar como a contribuição original do
poder soberano foi o corpo biopolítico – a vida nua entra na política a partir de
uma qualificação, de uma mediação.
20
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de
Henrique Burigo, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 14.
21
Op. Cit., p. 14.
22
A imagem que Agamben busca para esta situação é a do homo sacer: trata-se daquele que,
no direito romano arcaico, fora incluído porque fora, anteriormente, excluído da sociedade de
algum modo, aquele que fora condenado pelo Estado e encontrava-se exposto a ele – sua vida
estava exposta, era matável, nua, mas o Estado não findava com ela. Ver “Homo sacer”,
primeiro capítulo da segunda parte de Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Agamben,
no terceiro capítulo da mesma parte, ainda comenta que a vida se torna sacra no seguinte
sentido: a vida da pessoa é posta para fora da jurisdição sem que adentre na vida divina e,
assim, a violência executada contra ela não era sacrílega; por isso, a analogia com a exceção
soberana ocorre na medida em que a lei aplica-se desaplicando-se – o homo sacer pertence a
Deus na forma da insacrificabilidade e é incluído na comunidade na forma da matabilidade,
aquele cuja vida se encontra nua sob o bando soberano. A analogia é entre a sacratio e a
exceção soberana, aliás, é “estrutural”, segundo Agamben: “(...) Aquilo que é capturado no
bando soberano é uma vida humana matável e insacrificável: o homo sacer. Se chamamos
vida nua ou vida sacra a esta vida que constitui o conteúdo primeiro do poder soberano,
dispomos ainda de um princípio de resposta para o quesito benjaminiano acerca da ‘origem do
dogma da sacralidade da vida’. Sacra, isto é, matável e insacrificável, é originariamente a vida
no bando soberano, e a produção da vida nua é, neste sentido, o préstimo original da
soberania. A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano
como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao contrário, em sua
origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na
relação de abandono”. (Op. Cit., p. 91). Fora do âmbito religioso e do âmbito profano, todos são
soberanos frente ao homo sacer; fora do âmbito religioso e do âmbito profano, todos são
homines sacri frente ao soberano – eis um espaço político em sentido próprio, já que se está
“(...) A tese foucaultiana deverá, então, ser corrigida ou, pelo
menos, integrada, no sentido de que aquilo que caracteriza a
política moderna não é tanto a inclusão da zoé na polis, em si
antiqüíssima, nem simplesmente o fato de que a vida como tal
venha a ser um objeto eminente dos cálculos e das previsões do
poder estatal; decisivo é, sobretudo, o fato de que, lado a lado
com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os
lugares a regra, o espaço da vida nua, situado originariamente à
margem do ordenamento, vem progressivamente coincidir com o
espaço político, a exclusão e inclusão, externo e interno, bíos e
zoé, direito e fato entram em uma zona de irredutível
23
indistinção” .
em uma esfera que excede tanto as esferas do direito como do sacrifício, abrindo uma zona de
indistinção que Agamben quer definir.
23
Op. Cit., p. 16.
24
Agamben ilustra a estrutura de bando da soberania com o texto Diante da Lei, de Kafka, no
qual a lei se afirma na sua forma mais pura na medida em que nada prescreve – o camponês
encontra-se totalmente entregue à lei, mas esta nada lhe exige. E, para Agamben, o esquema
da exceção soberana é concernente na medida em que a lei aplica-se desaplicando-se. Trata-
se de uma lei que vigora sem significado e, assim, é a figura de Kant que trazida à tona por
Agamben, já que a ética kantiana coloca o sujeito ético diante de uma lei que vigora sem
significar. Lei e vida, então, na literatura kafkiana e na ética kantiana, são indiscerníveis e este
processo é semelhante ao estado de exceção. No entanto, é a partir de Jean Luc Nancy que
Agamben pinta com mais precisão a estrutura ontológica do abandono: “A soberania é, de fato,
precisamente esta ‘lei além da lei à qual somos abandonados’, ou seja o poder
autopressuponente do nómos, e somente se conseguirmos pensar o ser do abandono além de
toda idéia de lei (ainda que seja na forma vazia de uma vigência sem significado), poder-se-á
dizer que saímos do paradoxo da soberania em direção a uma política livre de todo o bando.
Uma pura forma da lei é apenas a forma vazia da relação; ,mas a forma vazia da relação não é
mais uma lei, e sim uma zona de indiscernibilidade entre lei e vida, ou seja, um estado de
exceção” (Op cit., p. 66).
exceção é uma relação de bando. Aquele que foi banido não é, na
verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é
abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco o limiar
em que vida e direito, externo e interno se confundem. Dele não é
literalmente possível que esteja fora ou dentro do ordenamento (...).
É neste sentido que o paradoxo da soberania pode assumir a forma:
‘não existe um fora da lei’. A relação originária da lei com a vida não
é a aplicação, mas o Abandono. A potência insuperável do nomos, a
sua originária ‘força de lei’, é que ele mantém a vida em seu bando
25
abandonando-a” .
25
Op. Cit., p. 36.
26
Op. Cit., p. 38.
27
“É esta estrutura de bando que devemos aprender a reconhecer nas relações políticas e nos
espaços públicos em que ainda vivemos. Mais íntimo que toda interioridade e mais externo que
toda a estraneidade é, na cidade, o banimento da vida sacra. Ela é o nómos soberano que
condiciona todas as outras normas, a espacialização originária que torna possível e governa
toda localização e toda territorialização. E se, na modernidade, a vida se coloca sempre mais
claramente no cento da política estatal (que se tornou, nos temos de Foucault, biopolítica), se,
no nosso tempo, em um sentido virtualmente como homines sacri, isto somente é possível
porque a relação de bando constituía desde a origem a estrutura própria do poder soberano”
Op. Cit., p. 117.
superioridade do nómos do soberano frente à concepção positivística da lei e,
dessa forma, aproxima o nómos do soberano e o estado de exceção:
“(...) Estado de natureza e estado de exceção são apenas as duas
faces de um único processo topológico no qual, como numa fita de
Moebius ou em uma garrafa de Leyden, o que era pressuposto como
externo (o estado de natureza) ressurge agora no interior (como
estado de exceção), e o poder soberano é justamente esta
impossibilidade de discernir externo e interno, natureza e exceção,
phýsis e nómos. O estado de exceção, logo, não é tanto uma
suspensão espaço-temporal, quanto uma figura topológica
complexa, em que não só a exceção e a regra, mas até mesmo o
estado de natureza e o direito, o fora e o dentro transitam um pelo
outro. É justamente nesta zona topológica de indistinção, que
deveria permanecer ocultar aos olhos da justiça, que nós devemos
tentar em fixar o olhar”.
30
Para Agamben, estas questões são objeto de um frutífero debate entre Benjamin e Schmitt e
é tal debate o objeto do capítulo 4 de Estado de exceção: “(...) A discussão se dá numa mesma
zona de anomia que, de um lado, deve ser mantida a todo custo em relação com o direito e, de
outro, deve ser também implacavelmente libertada dessa relação. O que está em questão na
zona de anomia é, pois, a relação entre violência e direito – em última análise, o estatuto da
violência como código da ação humana. Ao gesto de Schmitt que, a cada vez, tenta reinscrever
a violência no contexto jurídico, Benjamin responde procurando, a cada vez, assegurar a ela –
como violência pura – uma existência fora do direito”. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção:
homo sacer II, 1. Tradução de Iraci D. Poleti, São Paulo: Boitempo, 2° edição, 2007, p. 92.
ela se entende os primeiros registros de Habeas corpus, em 1679, e se
entende como a vida nua entra para o nível de um sujeito político, fazendo a
democracia moderna nascer da reivindicação e exposição do corpo, desta
“centralidade do ‘corpo’”31.
31
AGAMBEN, Giordio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Op. Cit., p. 131.
32
Op. Cit., p. 135.
33
Op. Cit., p. 135.
34
Op. Cit., p. 139.
o patamar de declarar que algumas destas vidas eram indignas de serem
vividas: citando Karl Binding e Alfred Hoche, Die Freigabe der Vernichtung
lebensunweten Lebens, Agamben comenta que um homem vivente tem
soberania sobre a sua existência e, por isso, alguns se suicidam e é impossível
que sejam punidos. Desta discussão, os autores derivam a necessidade de
autorização do aniquilamento das vidas que sejam indignas de serem vividas,
segundo eles: trata-se daqueles com doenças incuráveis e de “idiotas
incuráveis” e que, eles ou sua família, expressaram o desejo de morte; a partir
deste desejo, uma comissão estatal composta de um médico, um psiquiatra e
um jurista teria o poder de decisão final da questão. Não se trata, portanto, de
homicídio, mas da fixação de um limiar além do qual a vida cessa de ter valor
jurídico, trata-se da vida nua do homo sacer – Agamben considera que este
limite alargou-se na história do Ocidente e chegou, hoje, ao interior de toda
vida humana e de todo cidadão, deixando de ser apenas confinada a uma
categoria definida e ocupando o ser biológico de cada vivente. No nazismo, por
exemplo, o programa de eutanásia alargou-se para os judeus e para todos os
outros indesejáveis ao estado – a biopolítica nazista converte-se em
tanatopolítica na medida em que, ao zelar pelo corpo biológico da nação, a
decisão soberana de aniquilar a vida matável é executada. Isto é, a biopolítica
moderna caracteriza-se pelo estabelecimento da soberania no poder de
decisão sobre o valor ou desvalor da vida como tal e, conseqüentemente, o
encaminhamento da mesma à vida ou a morte.
35
Op. Cit., p. 155.
mais forte a partir da idéia de além-coma, um estado em que a dependência da
sobrevivência é tecnológica. Porém, os aparelhos não evitavam a morte
cerebral e, assim, apesar desta, o corpo tinha suas funções vegetativas em
funcionamento graças ao aparelho. Isto é, a morte passa por uma redefinição:
a vida nua do além-comatoso é controlada tecnologicamente pelo homem, é
uma vida que se pode encerrar sem que se cometa o homicídio, é uma
politização da vida e da morte em grau elevado e que é contemplada tanto no
totalitarismo quanto nas democracias modernas.
Como direito e fato se confundem, Hannah Arendt já havia dito que no campo
de concentração tudo era possível. O que Agamben introduz é a idéia de que
36
Op. Cit., p. 177.
este campo é um espaço biopolítico jamais visto anteriormente37, já que a vida
nua está diante do poder sem nenhuma mediação e a decisão política
soberana opera a partir da indiferenciação entre fato e direito, vida e política (é
neste sentido que se compreende que a palavra do Führer era a lei) – “a
política torna-se biopolítica e o homo sacer se confunde virtualmente com o
cidadão”38. A rigor, a argumentação de Agamben é para demonstrar como o
campo é o espaço político peculiar à Modernidade: o estado-nação que
funciona a partir no nexo entre localização (território), ordenamento (Estado) e
regras de inscrição da vida (nascimento ou nação) encontra-se em crise e,
então, o Estado assume os cuidados da vida biológica diretamente – será a
partir do campo que regulará a inscrição da vida. À guisa de conclusão sobre a
política moderna, eis as palavras de Agamben:
37
Como não há nada no corpo que impeça a ação do soberano, não há como se pensar uma
nova economia de prazer para ele e, assim, se fundar uma nova política além dos “dispositivos
do poder” existentes, argumenta Agamben contra Foucault (Op. Cit., pp. 192-193).
38
Op. Cit., p. 178.
39
Op. Cit., 182.
40
Sobre a denominação de muçulmano aos que estavam expostos, resignados e sem ação
contra a SS, em Auschwitz, Agamben considera que o mais provável é que o termo foi usado
por se remeter, etimologicamente e pela acepção que, desde a Idade Média, os europeus
faziam dos muçulmanos , a quem “se submete incondicionalmente à vontade de Deus”. Os
muçulmanos foram os que morreram em série e que não sobreviveram para, mais tarde,
testemunhar o ocorrido; são os sobreviventes que falam por eles e, estes, não são as
testemunhas, portanto, que expressam a voz dos próprios muçulmanos. AGAMBEN, Giorgio. O
que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo sacer III). Tradução de Selvino J.
Assmann, São Paulo: Boitempo, 2008, p. 52.
biopolítica e tanatopolítica na medida que o racismo é inerente a um estado
totalitário e biopolítico como o nazismo. Em O que resta de Auschwitz,
Agamben diz:
“O não-ariano transmuta-se em judeu, o judeu em deportado (...), o
deportado em internado (...), até que, no campo, as cesuras
biopolíticas alcancem o seu limite último. O limite é o muçulmano.
41
Op. Cit., p. 90.
42
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção: homo sacer II, 1. Tradução de Iraci D. Poleti, São
Paulo: Boitempo, 2° edição, 2007, p. 13.
decretos com força-de-lei”43 (repúblicas deixam de ser parlamentares para
tornarem-se governamentais) tanto no caso do decreto de Hitler como no caso
democrático44: o estado de exceção como regra é, para Agamben, uma técnica
de governo usada em ambos os casos. Em termos jurídicos, apesar de uns
defenderem a inclusão do estado de exceção no ordenamento e outros
defenderem a exclusão, Agamben considera que, na verdade, a discussão
correta não é esta, mas o lugar onde a inclusão e a exclusão se indeterminam,
isto é, a zona de indiferença entre o fora e o dentro.
Outra distinção feita por Schmitt foi entre norma do direito e norma de
realização do direito: na ditadura comissária o segundo momento é autônomo
em relação ao primeiro; na ditadura soberana a velha constituição foi suprimida
e a nova é, ainda, constituinte, isto é, se aplica uma lei que não está em vigor.
Em 1989, Derrida falou, baseando-se na Revolução Francesa, da distinção
entre eficácia da lei, que leva em conta a atividade legislativa e seus efeitos
43
Op. Cit., p. 18.
44
No item 1.7 de Estado de exceção, Agamben expôs uma breve história do estado de
exceção na qual o dispositivo tem origem na Revolução Francesa decretado pela Assembléia
Constituinte em 1791. Tanto na democracia como na ditadura, argumenta Agamben.
45
Op. Cit., p. 53.
46
Op. Cit., p. 57.
jurídicos, e força-de-lei, decretos que podem ser realizados pelo poder
executivo e que, assim, diferem da essência da lei na medida em que são
aplicáveis pelo soberano – tal como se a força-de-lei operasse sem lei.
47
Op. Cit., p. 67.
48
Op. Cit., p. 107.
e este em iustitium – eis a indiscernibilidade entre o nomos e a anomia do
corpo do soberano, a indiscernibilidade entre estado de exceção e luto público.
Indiscernibilidade e solidariedade entre anomia e direito. O mesmo ocorre com
as festas periódicas que suspendem as hierarquias jurídicas e sociais e
caracterizam-se pela permissividade temporária, tal como o carnaval – uma
anomia e uma tolerância em relação a ela, uma suspensão da lei e uma
conexão com ela (indiscernibilidade e solidariedade). Direito e vida se
relacionam em anomia com o direito se aplicando ao caos e à vida, sob o
estado de exceção.
Para Agamben, esta relação entre direito e vida (biopolítica) e este poder
que o senado romano tem em suspender o direito, a auctoritas do senado,
marcam profundamente toda a política ocidental. No contexto do Império
Romano, auctoritas, no direito privado, remetia-se à propriedade do auctor,
àquele que interfere dando validade jurídica ao ato de um sujeito que, sozinho,
não goza desta possibilidade, tal como um pai autoriza o matrimônio de um
filho, expressando a auctoritas do pai a partir da própria condição que este tem
de pai. No direito público, auctoritas designa a prerrogativa própria ao senado
que tem o poder de ratificar, por exemplo, as decisões populares e de colocar o
iustitium em vigência, suspendendo, assim, a ordem jurídica:
49
Op. Cit., p. 121.
50
Op. Cit., p. 127.
Se a auctoritas é inerente à pessoa viva, há uma imanência do direito à vida –
o poder carismático teorizado por Max Weber liga, por exemplo, a auctoritas à
pessoa do chefe político e, nos casos do fascismo e do nazismo, tal carisma
aparece em compasso com a suspensão da ordem jurídica. Direito e vida se
articulam mediante a auctoritas que faz com que um implique o outro
(biopolítica).
E mais: nota-se que o Ocidente tem uma tradição política caracterizada pela
auctoritas e pela potestas sendo que o primeiro é um elemento normativo e o
segundo um elemento anômico: para ser aplicado, o elemento normativo
precisa do anômico, embora se afirme somente se validar ou suspender a
potestas – o que permite a relação entre os dois elementos é o estado de
exceção, a partir dele os dois entram na zona de indiscernibilidade. Agamben
comenta que quando os dois elementos coincidem em uma só pessoa, fazendo
do estado de exceção uma regra, o sistema jurídico-político torna-se uma
“máquina letal”:
“(...) O estado de exceção, hoje, atingiu exatamente seu máximo
desdobramento planetário. O aspecto normativo do direito pode ser,
assim, impunemente eliminado e contestado por uma violência
governamental que, ao ignorar no âmbito externo o direito
internacional e produzir no âmbito interno um estado de exceção
51
permanente, pretende, no entanto, ainda aplicar o direito” .
51
Op. Cit., p. 131.
REFERÊNCIAS
____. Estado de exceção: homo sacer II, 1. Tradução de Iraci D. Poleti, São
Paulo: Boitempo, 2° edição, 2007.