impressão de que os argumentos e as provas não são
Elementos de retórica – Parte II tão relevantes para o propósito de sua aplicação.
Cícero fala de uma ordem homérica, em que usam-se A DISPOSIÇÃO argumentos fortes inicialmente, depois argumentos mais fracos e, ao final, volta-se para os fortes para o Estando de posse do arcabouço argumentativo da redação, fecho. O problema desse tipo de formulação é a os elementos obtidos na fase da invenção, prosseguimos pela possibilidade de se dispor de um número tão grande de fase da disposição, quando disporemos os elementos de forma argumentos fortes assim. organizada no texto. A disposição é um tópico por si só, ela A força de um argumento é uma noção relativa (Perelman- propor uma maneira de organizar e apresentar elementos Tyteka), um argumento pode ser julgado mais ou menos forte relevantes ao discurso. em função dos que os precederam, ou um argumento forte, por Há alguns elementos quase obrigatórios a serem exemplo, pode ser considerado um argumento que independa considerados na fase da disposição. Diz-se quase obrigatórios dos outros. porque podemos prescindir de um ou outro alternativamente, Digressão e peroração dependendo de nossa perícia como escritores, mais dificilmente nos livraremos de todos. Primeiros listaremos os mais A digressão equivale a um momento de relaxamento, mais frequentes: prevalente no discurso jurídico, coloca-se, preferencialmente entre a confirmação e a peroração. Essa fase tem a função de O exórdio distrair o auditório mas também de dispô-lo contra ou a favor do Deve-se evitar iniciar o texto de chofre sempre que possível. réu (por ser típica do discurso jurídico da ekfráse – narrativa ou O leitor deve fazer a transição da realidade pessoal para a textual descrição viva), pode-se tornar um argumento, portanto. de forma suave, do contrário corre-se o risco de perder sua A peroração aparece no fim do discurso, pode ser longa e atenção logo no início do discurso e comprometer todo o conter muitas partes, algumas delas: entendimento posterior. O exórdio e a introdução podem ser tratados como sinônimo pois ocorrem simultaneamente, Ampliação: útil no jurídico e no epidíctico. Aqui contudo, o exórdio é considerado mais um recurso da retórica busca-se expor de modo comovente as pois almeja objetivos extratextuais. consequências para o estado de coisas caso não se proceda na direção que o orador indica. É um lugar A narração (diegésis) muito comum para encontrar a falácia da “ladeira Usada principalmente no tipo jurídico, esta seção presume escorregadia”, por exemplo. a necessidade de enumeração de fatos para proporcionar maior Paixão: visa despertar, por exemplo, piedade ou clareza ao julgamento por parte dos envolvidos. Deve conter três indignação no auditório. qualidades: Recapitulação: pode ser um resumo dos argumentos, deve-se eximir de apresentar fatos e Clareza: deve-se privilegiar a ordem cronológica, mas argumentos novos aqui. retornos e flashbacks são bem-vindos se aprimorarem o estilo. Esses exemplos mostram que a peroração é o momento de Brevidade: fatos anteriores ao caso e circunstâncias que unir a afetividade à argumentação. não contribuem com a narrativa que se quer criar não devem ser usados; Elocução Credibilidade: deve-se mostrar que os atos se afinam Corresponde à fase de redação do texto, por óbvia que seja com o caráter do autor em julgamento. esta parte (os textos precisam ser escritos para serem Confirmação (pistis) veiculados), problemas e questões específicas do discurso retórico dizem respeito a esta parte de sua formulação: há o O conjunto das provar e a refutação com o intuito de destruir problema do estilo, da forma, de outras ideias que podem surgir os argumentos dos adversários. Este é o momento de no decorrer da escrita, por exemplo. organização dos argumentos e das provas, aqui o logos deve ser o tipo de argumento mais relevante, o que não exclui os dois Língua e estilo outros tipos. A escolha da exata medida do tom do texto, bem como da A confirmação nem sempre está separada da narração, no feição desse que testemunhe a perícia e adequação do autor tipo de discurso jurídico, por exemplo, é a união dessas partes (deve-se prevenir erros e preciosismos), passam por esta que pode ajudar na construção de um texto mais eficaz. categoria. Como pontos de referência para o uso adequado da língua e do estilo a retoricai propõe a satisfação dos requisitos Na confirmação também deve-se decidir a ordem dos colocados pelo assunto, pelo auditório e pelo orador. argumentos, levando em conta sua relevância e efeito pretendido, eis algumas das possibilidades: Do ponto de vista de adaptação ao assunto, usa-se a regra da conveniência segundo a qual os latinos propunham três Iniciar com os argumentos mais fracos e terminar com estilos: o nobre, o simples e o ameno. O estilo nobre serve para os mais fortes: pode-se obter uma disposição do comover, principalmente na peroração; o simples, para informar auditório mais favorável ao final da exposição, contudo e explicar, sobretudo na narração e na confirmação e o ameno, corre-se o risco de cansá-lo também. para agradar, sobretudo no exórdio e na digressão. Iniciar dos argumentos mais fortes para os mais fracos: causa-se um impacto inicial com esta formulação, e Do ponto de vista do auditório, a regra é a da clareza, o pode-se dispor o auditório favorável desde o início, que impõe o problema da relativização ao orador: o que é claro contudo pode-se “queimar cartuchos” e causar a para um auditório, não necessariamente o será para outro. Enquanto a clareza é um bem elusivo pode-se falar com propriedade de obscuridade como uma qualidade mais conscientemente buscada e alcançada no caso de determinados palavras que, para não prejudicar o esquema de argumentação, textos, principalmente os que versam sobre temas polêmicos. devem vir previamente definidas porque, se não o forem, podem Nesse caso, os oradores podem buscar se valer de ambiguidades servir de argumento para um ponto de vista e para o seu intrínsecas nos termos como forma de não se comprometerem contrário. Pense-se, a esse respeito, no uso que o mundo aos olhos da audiência. contemporâneo tem feito da palavra liberdade: Do ponto de vista do orador, a regra é a da vivacidade. Aqui — Reagan, em defesa da liberdade dos povos latino- alguns conselhos são a opção pela concretude, adequação do americanos, solicita ao Congresso americano verbas para apoiar ritmo e brevidade das palavras. O propósito não é apenas “se os movimentos contrários ao governo da Nicarágua; fazer entender, mas também fazer-se saborear”. A vivacidade é — Daniel Ortega, presidente da Nicarágua, em nome da essencial para o Etos pois confere a ele autenticidade. liberdade dos povos latino-americanos, solicita na ONU, Figuras sanções contra os Estados Unidos pelo apoio que vêm dando aos movimentos contrários ao governo revolucionário. O uso equilibrado das figuras de linguagem e de pensamento é essência para a autenticidade. Algumas delas são Como se vê, o mesmo conceito está sendo utilizado como bem conhecidas como a metáfora, a comparação e a hipérbole e argumento para duas atitudes diametralmente opostas: uma dos uma explicação detalhada de seu funcionamento carece de outro Estados Unidos contra o governo da Nicarágua; outra do momento particular. governo da Nicarágua contra os Estados Unidos. Mas o ponto é o de conferir vivacidade ao texto, enquanto O que é que permite essa diversidade no uso de uma mesma apreciadores estéticos naturais, o uso adequado desses palavra? elementos pode salvar o texto da planura argumentativa e levá- É exatamente o caráter amplo e vago de sua definição. lo a momentos marcantes. Essas considerações levam-nos a concluir que palavras Referências desse tipo precisam ser definidas antes de serem exploradas como argumento para apoiar qualquer ponto de vista. Do REBOUL, Olivier. Introdução à retórica; trad. Ivone contrário o argumento se esvazia e perde o seu poder de Castilho Benedettti. – São Paulo: Martins Fontes, 1998. persuasão. Na língua, existem muitas palavras pertencentes a esse tipo Defeitos de argumentação(I) de repertório: liberdade, democracia, justiça, ordem, alienação, massificação, materialismo, idealismo, etc. A escrita é uma das modalidades de linguagem, com características típicas, diferentes, por exemplo, da modalidade Convém ainda ressaltar que, no domínio dessas palavras de oral. Uma das diferenças entre a conversação e a escrita é que, significado vago ou denotadoras de noções confusas, existem nesta, o interlocutor não pode intervir no momento da produção umas que são dotadas sempre de um valor positivo (paz, justiça, lingüística e solicitar explicações sobre aquilo que está sendo honestidade, democracia) e outras que sempre vêm carregadas dito. de um valor negativo (guerra, injustiça, desonestidade, violência, autoritarismo). Por isso, na escrita, tudo deve ser dito com muita clareza para que o leitor possa compreender o que se quer dizer. Salvo As pessoas das mais diferentes ideologias não ousam em raríssimos casos, ninguém escreve para si mesmo, mas para contrariar o consenso das opiniões e usam esse tipo de palavras um interlocutor com a intenção definida de persuadi-lo e de da maneira mais elástica, seja para enaltecer os princípios que obter sua adesão prática, intelectual ou afetiva. Partindo do defendem, seja para atacar os princípios da facção contrária. pressuposto de que, na escrita, o interlocutor está ausente e não Mas quase nunca entram em acordo quanto ao exato sentido das pode fazer interrupções para obter esclarecimentos, o texto palavras. escrito deve ser o mais autônomo possível não só no que diz Os alunos, muito frequentemente, em redações, abusam respeito à clareza e à quantidade de informações necessárias desse tipo de palavras e, sem o devido cuidado, lançam mão como, principalmente, no que toca aos procedimentos delas para apoiar suas afirmações com argumentos de fundo argumentativos. moralizante, repetindo, sem elaboração própria e sem critério, Como os alunos de hoje, em geral, desfamiliarizados com a expressões do senso comum destituídas de qualquer prática da linguagem escrita, incorrem em muitos erros nesse consistência. domínio, vamos reservar esta lição e a seguinte para tratar Frases como as que seguem podem dar uma dimensão do exatamente de problemas ligados à argumentação. que seja essa exploração de palavras vazias para manifestar Para levantar alguns defeitos, tomamos por base estudos julgamentos de caráter moralizante: elaborados por pesquisadores que, em teses universitárias, se 0 problema dos posseiros e a luta pela terra não têm sentido, ocuparam desse tema, analisando redações dos candidatos ao pois perturbam a ordem estabelecida. curso superior, elaboradas nos exames vestibulares. A partir da análise dessas redações, detectaram-se vários defeitos de Deve-se respeitar o professor porque, afinal de contas, na argumentação, dois dos quais vamos tratar nesta lição. escola ele é uma autoridade. 1) Emprego de noções confusas O defeito de tais argumentações nem sempre reside no princípio que defendem, mas no modo como se faz a defesa dele. Para entender esse tipo de defeito argumentativo, é Muitas vezes, um bom princípio pode ser desvalorizado por necessário considerar que, na língua, existem palavras com uma causa de um argumento vazio. extensão de significado muito ampla. Não sendo palavras de sentido especializado, ocorrem nos mais variados contextos, A boa argumentação deve ser usada de maneira adequada a cobrindo noções díspares e até contraditórias. Trata-se de cada situação concreta, levando em conta todos os componentes envolvidos na discussão. Pensar por fórmulas prontas é um mau sintoma: denuncia falta de espírito crítico e de competência para Naturalmente, não estou aqui sugerindo que se faça elaborar um raciocínio próprio; é, enfim, uma sujeição qualquer coisa ilegal. Espero mesmo que se tomem providências preguiçosa ao ponto de vista circulante no meio social. rapidamente para regulamentar o uso de dinheiro nas campanhas para a Constituinte, de maneira que tudo seja feito às claras e Emprego de noções de totalidade dentro de normas aceitáveis. O dinheiro, nesse caso. deve ajudar indeterminada na consolidação de ideais democráticos e não funcionar em prejuízos deles. 0 que sugiro é a ação dos empresários em defesa Nas redações dos alunos, também com frequência, ocorrem aberta e decidida da livre iniciativa no momento em que se palavras de abrangência tão vasta que comprometem o esquema prepara a futura Constituição. argumentativo exatamente por causa do inconveniente de envolverem, num conjunto indeterminado e impreciso, dados de VALENTE, César Rogério.—. Veja. 26jun. 1985. realidade que têm em comum apenas alguns aspectos. Há afirmações que constituem verdadeiras afrontas a uma reflexão analítica mais cuidadosa: Como se pode notar pela leitura do texto inteiro, o articulista pretende convencer os empresários de que eles precisam unir Todos os políticos são iguais: só querem o poder esforços para evitar que o novo texto constitucional se volte para encher os próprios bolsos. contra a iniciativa privada no campo econômico. O comunismo e o capitalismo, no fundo, são a mesma coisa. Em outros termos, o texto quer assumir a defesa da Os países latino-americanos são diferentes em iniciativa privada e opor-se às empresas estatais. tudo: nos hábitos, nos costumes, na concepção de Para conseguir esse resultado, o articulista procura usar vida, nos valores, etc. certos procedimentos argumentativos, que contêm defeitos. O uso dessas noções totalizadoras também compromete a Vamos apontar alguns. força argumentativa do texto, pois dá margem a contra- a) Utilização de conceitos e afirmações genéricos argumentações imediatas. Basta contrapor, por exemplo, que nem todos os países latino-americanos são diferentes ou que não O texto diz que as empresas estatais são ineficientes por são diferentes em tudo: a Venezuela, por exemplo, possui o natureza e, para confirmar essa afirmação, usa o argumento de mesmo sistema de governo da Colômbia, ambos os países falam que tais empresas são destituídas de competitividade, isto é, são o castelhano, a maioria da população é católica, ambos os países empresas que não têm concorrentes no mercado. são de colonização espanhola. Dizer que essas empresas são, por natureza, ineficientes Esse modo de argumentar demonstra falta de visão analítica, significa dizer que todas as empresas estatais, sem nenhuma falta de informação e é sintoma de uma mente preguiçosa, que exceção sequer, não têm eficiência. apaga, por simplismo ou por comodismo, as diferenças e as O argumento é frágil pelo seu grau de generalidade, pois reduz a uma sombra neutra que esconde dados completamente basta a alguém citar uma só empresa estatal eficiente para diferentes. desautorizar o argumento usado pelo articulista. E não é difícil, Os empresários precisam agir entre tantas empresas estatais, encontrar ao menos uma que sirva de exemplo para contra-argumentar. Pode-se prever que os ideólogos do capitalismo de Estado usarão todos os apelos populistas de que puderem valer-se para b) Uso de conceitos que se contradizem entre si introduzir no texto constitucional um forte golpe contra a Observe-se esta passagem do texto — "Como se sabe, é iniciativa privada no campo econômico. Como se sabe. é muito muito fácil acenar para desempregados com benefícios e fácil acenar para desempregados com benefícios e sinecuras que, sinecuras que, em muitos casos, constituem a essência das em muitos casos, constituem a essência das empresas estatais, empresas estatais..." ineficientes por natureza, destituídas de qualquer competitividade pelas situações de monopólio e oligopólio nas Ao fazer essa afirmação, o produtor do texto cai em quais atuam. São empresas que utilizam o dinheiro do contradição, já que aquilo que constitui a essência de um objeto contribuinte para cobrir seus déficits constantes e podem ser qualquer necessariamente está presente neste objeto a não ser apontadas como as maiores responsáveis pelo desastre que não faça parte da sua essência. financeiro do governo federal. Ora, se os benefícios e as sinecuras (= emprego rendoso e As empresas estatais conferem poder político através do de pouco trabalho) são constituintes da essência das empresas poder econômico que têm. Alargar seu raio de ação em estatais, então não tem sentido fazer a restrição a muitos casos. detrimento da iniciativa privada é uma tentação considerável Ou o empreguismo faz parte da essência dessas empresas e para muita gente. Tenho certeza de que se assistirá a uma existe em todas sem exceção, ou existe apenas em muitas delas verdadeira batalha na Assembleia Constituinte, travada por e, portanto, não faz parte da sua essência. muitos segmentos ali representados, para a conquista de um c) Instauração de falsos pressupostos campo maior de ação para as empresas estatais. O texto, no seu todo, leva-nos a aceitar o pressuposto de que Diante dessa ameaça, os defensores da livre iniciativa não as empresas privadas não usam o poder econômico para influir podem ficar inertes. Os empresários, tenho repetido muito no poder político. ultimamente, devem evitar que a Constituinte seja tomada de assalto pela demagogia. É por isso que defendo a utilização de Esse pressuposto se depreende a partir da afirmação dc que recursos humanos e financeiros, por parte do empresariado, para "As empresas estatais conferem poder político através do poder eleger o maior número possível de representantes que venham a econômico que têm". Isso é usado pelo articulista como um se contrapor na Constituinte à tendência estatizante que domina argumento contrário às empresas estatais apenas, o que leva a parte da classe política. pressupor que as empresas particulares não usarão o poder econômico para conseguir poder político. Ora, esse pressuposto demonstra-se falso a partir da própria contradição em que cai o articulista quando, ao final do texto, propõe que os defensores da empresa privada utilizem recursos financeiros para eleger o maior número possível de deputados e, com isso, interferir nas decisões políticas da Constituinte. d) Emprego de noções confusas O articulista faz uso de certos conceitos que precisariam ser mais bem definidos: que é "demagogia"? Que são "ideais democráticos” que serão consolidados com o uso de dinheiro para eleger constituintes? Esses dois elementos são muito vagos: o primeiro (demagogia) é um universal negativo usado para desqualificar as propostas e o discurso do adversário; o segundo (ideais democráticos), um universal positivo, que justifica as mais contraditórias posições. Sem definição desses termos, os argumentos esvaziam-se.
Bibliografia FIORIN, J. L.; PLATÃO, F. Para entender o texto: Leitura e redação. 16. ed. São Paulo: Ática, 2003. REBOUL, O. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998.