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Escolástica.

Uma filosofia
em diálogo com
a modernidade

Luís Alberto De Boni


Os “velhos escolásticos” continuam presentes E mais:

Lucia Ortiz e Bruna Engel:


Giuseppe Tosi >>
Grandes grupos industriais
Bartolomeu de Las Casas, primeiro teólogo
são donos do Rio Uruguai
e filósofo da libertação

342
Ano X
Alessandro Ghisalberti
>>Jacqueline Lima
Dourado:
A influência de Ockham na Segunda Escolástica Passione e a indústria
06.09.2010 da telenovela
ISSN 1981-8469
Escolástica. Uma filosofia em
diálogo com a modernidade
A realização do 17º Colóquio Anual Direito e Natureza na primeira e na segunda escolástica, da
Sociedade Internacional para Estudos da Filosofia Medieval (SIEPM), inspira a edição desta semana da IHU
On-Line a debater essa importante corrente filosófica da Idade Média.

Entrevistamos vários dos conferencistas do evento. Na opinião do filósofo João Madeira, da UFMS,
existe uma relação entre alguns postulados da escolástica e os direitos humanos. Paula Oliveira e Silva,
da Universidade do Porto, analisa as ligações entre o ius gentium, o direito das gentes, e a Segunda Es-
colástica. O conceito de domínio na escolástica espanhola é o tema de Jorge Alejandro Tellkamp, que
leciona na Universidade Nacional Autônoma do México. Alessandro Ghisalberti, professor de História da
Filosofia Medieval na Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade Católica del Sacro Cuore de Milão,
examina a influência de Ockham na Segunda Escolástica, e percebe reflexos desse pensador na filosofia
moral de Kant. Alfredo Culleton, professor do PPG em Filosofia da Unisinos e organizador do evento,
menciona que a filosofia do jesuíta Francisco Suarez foi a base dos atuais direitos humanos. O filósofo Giu-
seppe Tosi, professor de filosofia na Universidade Federal da Paraíba, debate o legado de Bartolomeu de
Las Casas, que considera o primeiro teólogo e filósofo da libertação. O professor da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), Alfredo Storck, fala sobre o ser humano repensado pela escolástica. Para
Luís Alberto De Boni, os “velhos escolásticos” continuam presentes.

Também contribuem na discussão do tema central desta edição os pesquisadores José Luís Herreros,
Santiago Orrego, Ludger Honnefelder, Jacob Schmutz, professor de filosofia na Universidade Paris-
Sorbonne (Paris-IV) e diretor dos estudos de filosofia e sociologia na nova Universidade Paris-Sorbonne
Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, a pesquisadora Jaqueline Hamesse, e o filósofo espanhol Angel
Poncela González.

Passione! A indústria da telenovela no balizamento entre o merchandising social e o comercial é o


título do artigo de Jacqueline Lima Dourado, professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e líder
do Grupo de Pesquisas COMUM.

Uma entrevista com Bruna Cristina Engel e Lucia Ortiz, da Organização Não-Governamental Amigos
da Terra Brasil, analisando o impacto da construção das hidrelétricas no Rio Uruguai, tema da IHU On-
Line da semana passada, completa a edição.

A todas e todos um bom feriado, uma ótima leitura e uma excelente semana!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do
Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769. Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (inacio@
Expediente

unisinos.br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (grazielaw@unisinos.br). Redação: Márcia
Junges MTB 9447 (mjunges@unisinos.br) e Patricia Fachin MTB 13062 (prfachin@unisinos.br). Revisão:
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– ramal 4128. E-mail do IHU: humanitas@unisinos.br - ramal 4121.
Leia nesta edição
PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa
» Entrevistas
PÁGINA 06 | Luís Alberto De Boni: Os “velhos escolásticos” continuam presentes
PÁGINA 11 | Alfredo Culleton: O pensamento de Suarez como base dos direitos humanos
PÁGINA 13 | Santiago Orrego: A importância da Segunda Escolástica no Ocidente
PÁGINA 17 | Giuseppe Tosi: Bartolomeu de Las Casas, primeiro teólogo e filósofo da libertação
PÁGINA 19 | Jorge Alejandro Tellkamp: O conceito de domínio na escolástica espanhola
PÁGINA 21 | Paula Oliveira e Silva: O ius gentium e a Segunda Escolástica
PÁGINA 24 | Alessandro Ghisalberti: A influência de Ockham na Segunda Escolástica
PÁGINA 26 | Jacqueline Hamesse: A importância da Escolástica para a paleografia
PÁGINA 28 | Alfredo Storck: O ser humano repensado pela escolástica
PÁGINA 30 | João Madeira: A escolástica e os direitos humanos
PÁGINA 33 | Angel Poncela González: A Escola de Salamanca e a Segunda Escolástica
PÁGINA 35 | José Luís Fuertes Herreros: O papel de Salamanca na Segunda Escolástica
PÁGINA 38 | Ludger Honnefelder: A contribuição dos jesuítas à Segunda Escolástica

B. Destaques da semana

» Entrevista da Semana
PÁGINA 40 | Lucia Ortiz e Bruna Cristina Engel: Grandes grupos industriais são donos do Rio Uruguai
» Coluna do Cepos
PÁGINA 44 | Jacqueline Lima Dourado: Passione! A indústria da telenovela no balizamento entre
o merchandising social e o comercial
» Destaques On-Line
PÁGINA 46 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista

» Evento
» IHU Repórter
PÁGINA 54| Hélio Paz
SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 
 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342
17º Colóquio Anual Direito e Natureza na primeira
e na segunda escolástica – Sociedade Internacional
para Estudos da Filosofia Medieval
Por Alfredo Culleton

O
17º Colóquio Anual da So- de promover o estudo do pensamento publicação anual com artigos científi-
ciedade Internacional para medieval. Conta atualmente com mais cos e informações de relevância, e a
Estudos da Filosofia Me- de 750 sócios ativos em 45 países. Cabe série Rencontres de Philosophie Médi-
dieval – SIEPM, sob o tema destacar que todos os filósofos medie- évale (Editora Brepols, Bélgica), que
Direito e Natureza na pri- valistas brasileiros são membros da SIE- publica os resultados do Colóquio Anual
PM e que cada um dos cinco programas promovido pela Sociedade.
meira e na segunda escolástica, será
de pós-graduação em Filosofia com que Este evento tem por objetivo reu-
realizado pela Universidade do Vale
conta o estado do Rio Grande do Sul, nir e desenvolver a mais alta pesquisa
do Rio dos Sinos – Unisinos, em Porto tem no mínimo um professor-pesquisa- internacional que se ocupa da história
Alegre-RS, Brasil entre os dias 15 e 17 dor medievalista. A SIEPM organiza re- de filósofos, de teólogos e de juristas
de setembro de 2010. A reunião do con- gularmente congressos internacionais e ibéricos que trabalharam os aspectos
selho da SIEPM realizar-se-á durante o estimula o intercambio entre pesqui- legais e políticos da primeira escolás-
sábado, dia 18 de setembro. sadores e acadêmicos auxiliando nos tica, assim como com a maneira sob a
O presente colóquio é o evento anu- contatos e oferecendo bolsas. Com o qual estes conceitos foram recebidos e
al mais importante da filosofia medieval intuito de manter os especialistas em a geração de novas filosofias políticas
no mundo. A SIEPM foi fundada em 1958 comunicação constante, oferece o Bul- e idéias de filosofia do direito na histó-
em Louvain, na Bélgica, com o objetivo letin de Philosophie Médiévale, uma ria das Américas.

O que é a escolástica e a Escola de Salamanca


Por Alfredo Culleton

Ao nos referirmos à escolástica, estamos nos referindo (1483-1546) e projetado por seus discípulos para diversos
ao método de ensino teológico e filosófico desenvolvido nos centros de ensino da Europa e América. Destacados teólo-
primórdios da universidade durante a Idade Média, entre gos e juristas de diversas nacionalidades teriam o desafio
os séculos IX e XVII. No método escolástico debatiam-se de escrever comentários sobre os aspectos teológicos, me-
questões e opiniões, fundamentando-as com a razão. Os tafísicos, lógicos, jurídicos, legais e políticos da obra do
escolásticos procuravam conciliar os sagrados ensinamen- Aquinate e de outros destacados pensadores antigos, me-
tos da doutrina cristã com o platonismo e o aristotelismo. dievais e renascentistas. Nesta empresa não só atualizaram
Esse termo não significa exclusivamente filosofia medieval as ideias de seu mestre como introduziram uma nova filoso-
nem religiosa. É um método de produção de conhecimento fia política e do direito que influenciou significativamente a
fundado na disputa, no confronto de perspectivas visando história da América.
respostas sustentadas na razão. A maneira como este vivo diálogo teológico-político-
Quando falamos de Segunda Escolástica, nos referimos jurídico se desenvolveu na Península Ibérica e em outros
ao pensamento desenvolvido segundo a metodologia esco- lugares de Europa, a maneira como teve continuidade
lástica durante os séculos XVI e começos do XVII, duran- no continente Americano, a maneira como os conflitos
te os quais esta forma de pensamento alcança um grande políticos e sociais nas Américas encontraram um eco te-
nível intelectual. Seu principal foco de desenvolvimento, orético na Espanha, assim como a significativa influência
ainda que não o único, é a chamada escola de Salamanca, destes pensadores – e dos conceitos desenvolvidos por
movimento intelectual iniciado por Francisco de Vitória eles – sobre os movimentos revolucionários que levaram
 Francisco de Vitória (1483-1512): teólogo espanhol neo-escolásti- à independência dos estados americanos, são todos no-
co e um dos fundadores da tradição filosófica da chamada “Escola de vos tópicos não apenas de interesse histórico mas de ex-
Salamanca”, sendo também conhecido por suas contribuições para a
teoria da guerra justa e como um dos criadores do moderno direito
trema importância filosófica.
internacional.(Nota da IHU On-Line)

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Os “velhos escolásticos” continuam presentes
Em temas como Metafísica, Ética e Política, os filósofos da Escolástica seguem tendo re-
levância, pontua Luís Alberto De Boni. Universidades brasileiras foram instituídas tardia-
mente porque Portugal assim o quis

Por Márcia Junges e Alfredo Culleton

“M
ovimento filosófico e teológico, que teve seu apogeu nos séculos XVI e XVII, den-
tro das universidades, principalmente da Espanha e Portugal, mas também da
Itália e de alguns outros países. Partindo do estudo dos escolásticos medievais,
principalmente de Tomás de Aquino, esses autores procuravam dialogar com a
sociedade de seu tempo na qual haviam surgido alguns fatos novos, como as des-
cobertas científicas na área da Física, que haveriam de culminar com os nomes de Copérnico (+1543),
Galileu (+1642) e Newton (+1727); as descobertas marítimas que levaram os europeus a contatar novas
civilizações, nas Américas e no Oriente; e a Reforma protestante”. Assim o filósofo gaúcho Luís Alberto
De Boni define a Escolástica. Ele analisa, também, os motivos pelos quais a formação das universidades
brasileiras foi tão tardia, comparativamente à Espanha e Portugal. De acordo com ele, “no período co-
lonial não tivemos universidades porque Portugal não as quis instituir”. E provoca: “Se Suárez, em vez
de ser um espanhol católico, fosse um alemão luterano, ou um holandês calvinista, ou um inglês angli-
cano, seria muito mais citado e o apresentariam como um dos grandes filósofos da História, o que ele,
de fato, foi”. Em seu ponto de vista, “em questões de Metafísica, de Ética e de Política aqueles velhos
escolásticos estão presentes” até hoje. As declarações fazem parte da entrevista a seguir, concedida por
e-mail à IHU On-Line.
De Boni é graduado em Filosofia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul – Unijuí e em Telogia pela Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindisi. É doutor em Teologia
pela Universidade de Münster (Westfalische-Wilhelms), orientado por Johann Baptist Metz. É pós-doutor
pelas Universidades Alberto Magno e Bonn, ambas na Alemanha. Publicou e organizou mais de trinta
obras, dentre as quais citamos: Lógica e linguagem na Idade Média (Porto Alegre: Edipucrs, 1995); Gui-
lherme de Ockham (Porto Alegre: Edipucrs, 2000) e A ciência e a organização dos saberes na Idade Média
(2. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2000). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Poderia situar a Segun- dialogar com a sociedade de seu tempo
da Escolástica no Brasil? na qual haviam surgido alguns fatos no-
Luiz Alberto De Boni - Creio que con- vos, como as descobertas científicas na
vém, inicialmente, explicar o que foi área da Física, que haveriam de culmi-
a assim chamada Segunda Escolástica. nar com os nomes de Copérnico (†1543),
Tratou-se de um movimento filosófico e Católica. Seu maior mérito foi a síntese do cris- derava a Terra como o centro). Essa teoria é con-
teológico, que teve seu apogeu nos sécu- tianismo com a visão aristotélica do mundo, in- siderada uma das mais importantes descobertas
los XVI e XVII, dentro das universidades, troduzindo o aristotelismo, sendo redescoberto de todos os tempos, sendo o ponto de partida
na Idade Média, na escolástica anterior. Em suas da astronomia moderna. A teoria copernicana in-
principalmente da Espanha e Portugal, duas “Summae”, sistematizou o conhecimento fluenciou vários outros aspectos da ciência e do
mas também da Itália e de alguns outros teológico e filosófico de sua época: são elas a desenvolvimento da humanidade, permitindo a
países. Partindo do estudo dos escolásti- Summa Theologiae, a Summa Contra Gentiles. emancipação da cosmologia em relação à teolo-
(Nota da IHU On-Line) gia. O IHU promoveu de 3 de agosto a 16-11-2005
cos medievais, principalmente de Tomás  Nicolau Copérnico (1473-1543): astrônomo e o Ciclo de Estudos Desafios da Física para o Sé-
de Aquino, esses autores procuravam matemático polonês, além de cânone da Igreja, culo XXI: uma aventura de Copérnico a Eins-
governador e administrador, jurista, astrólogo e tein. Sobre Copérnico, em específico, o Prof. Dr.
 São Tomás de Aquino (1225-1274): padre do- médico. Desenvolveu a teoria heliocêntrica para Geraldo Monteiro Sigaud, da PUC-Rio, proferiu
minicano, teólogo, distinto expoente da esco- o sistema solar, que colocou o Sol como o centro palestra em 03-08-2005, intitulada Copérnico e
lástica, proclamado santo e cognominado Doc- do sistema solar, contrariando a então vigente Kepler: como a Terra saiu do centro do Universo.
tor Communis ou Doctor Angelicus pela Igreja teoria geocêntrica - o geocentrismo (que consi- (Nota da IHU On-Line)

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Galileu (†1642) e Newton (†1727); as “A universidade é uma universidade foi a de conferir um di-
descobertas marítimas que levaram os ploma de doutor honoris causa.
europeus a contatar novas civilizações, instituição tardia no Na verdade, a primeira universidade
nas Américas e no Oriente; e a Reforma brasileira, de fato, foi a USP, a Univer-
protestante. Brasil” sidade de São Paulo. Esta também pos-
Os missionários que vieram para o sui uma história interessante. Como se
Brasil haviam recebido uma formação sabe, em 1930 Getúlio Vargas chegou ao
fundamentada na Segunda Escolásti- dade de São Marcos, em Lima, foi funda- poder no comando de uma revolução di-
ca. Aqui, eles não precisaram muito da em 1551. Universidade Autônoma de rigida principalmente contra o estado de
debater noções da nova ciência, nem Santo Domingo, na República Dominica- São Paulo, acusado de se haver “adona-
combater os protestantes, mas foi de na, teria sido fundada antes, em 1538, do” da República. Em 1932, os paulistas
suma utilidade o que aprenderem em mas só mais tarde recebeu a documen- reagiram também com uma revolução,
questões de Ética, como, por exemplo, tação real; a Universidade do México, que chamaram de constitucionalis-
a respeito da dignidade dos indígenas, em 1551; a Universidade Santo Tomas ta (pois Vargas estava governando sem
que não poderiam ser escravizados. In- em Bogotá, em 1580; a Universidade de constituição). Na realidade, era a tenta-
felizmente, com relação à escravidão Córdoba, na Argentina, em 1621; a Uni- tiva de uma elite conservadora e supe-
negra, não fizeram - ou não consegui- versidade Maior de São Francisco Xavier rada voltar ao poder. Mas, felizmente,
ram fazer - o que seria de esperar. em Chuquisaca, na Bolívia, em 1624; a foram derrotados. Por que felizmente?
Universidade de Rosário, Argentina, em Em primeiro lugar, porque o passado não
IHU On-Line - Como se deu a forma- 1654; a Universidade de São Carlos de voltou ao poder; em segundo, e princi-
ção das universidades no Brasil? Guatemala, em 1676; a Universidade de palmente, porque depostas as armas, os
Luiz Alberto De Boni - A universidade Havana em 1721; a Real Universidade de vencidos se reuniram para pensar o futu-
é uma instituição tardia no Brasil. Se São Felipe, Chile, em 1747. ro do Estado e, entre outras coisas, cria-
olharmos para a América Espanhola, Como se pode ver, cerca de 250 ram, em 1936, uma universidade, que
constataremos que já desde os primei- anos após o descobrimento, os espa- teve entre os organizadores o antropólo-
ros tempos de colonização foram sendo nhóis já haviam criado 10 universida- go Paulo Duarte, a quem Getúlio enviou
criadas universidades. Assim, a Universi- des. Isso significou muito para aquela duas vezes para o exílio e, depois, em
 Galileu Galilei (1564-1642) físico, matemáti- época, como se constatou quando, no 1969 - creio por ser inteligente demais
co, astrónomo e filósofo italiano que teve um início do século XIX, aconteceu a in- – foi cassado pelos militares. A França
papel preponderante na chamada revolução dependência política da América Espa-
científica. Desenvolveu os primeiros estudos tinha, na época, uma grande ascendên-
sistemáticos do movimento uniformemente nhola: havia naquelas jovens nações
acelerado e do movimento do pêndulo. Des- uma elite intelectual apta a assumir a
cobriu a lei dos corpos e enunciou o princípio direção dos negócios públicos.  Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954): po-
da inércia e o conceito de referencial inercial, lítico gaúcho, nascido em São Borja. Foi pre-
idéias precursoras da mecânica newtoniana. sidente República nos seguintes períodos:
Galileu melhorou significativamente o telescó- “Universidade do Brasil” 1930-1934 (Governo Provisório), 1934-1937
pio refrator e terá sido o primeiro a utilizá-lo (Governo Constitucional), 1937-1945 (Regime
para fazer observações astronómicas. Com ele de Exceção), 1951-1954 (Governo eleito po-
descobriu as manchas solares, as montanhas No Brasil, o caso foi bem diferen- pularmente). Sobre Getúlio o IHU promoveu o
da Lua, as fases de Vênus, quatro dos satéli- te. Estou falando sério, não é piada Seminário Nacional A Era Vargas em Questão
tes de Júpiter, os anéis de Saturno, as estrelas o que vou contar a respeito de nossa – 1954-2004, realizado de 23 a 25 de agosto
da Via Láctea. Estas descobertas contribuíram de 2004. Paralela ao evento aconteceu a Ex-
decisivamente na defesa do heliocentrismo. primeira universidade. Ela surgiu em posição Eu Getúlio, Ele Getúlio, Nós Getú-
Contudo a principal contribuição de Galileu 1922. Naquele ano, comemorava-se o lios, no Espaço Cultural do IHU. A revista IHU
foi para o método científico, pois a ciência centenário da independência e, entre On-Line publicou os seguintes materiais refe-
se assentava numa metodologia aristotélica rentes a Vargas: edição 111, de 16-08-2004,
de cunho mais abstrato. Por essa mudança de os convidados para os festejos, encon- intitulada A Era Vargas em Questão – 1954-
perspectiva é considerado o pai da ciência mo- trava-se o rei Alberto I, da Bélgica, um 2004, disponível em http://migre.me/QYAi, e
(Nota da IHU On-Line)
derna. ��������� monarca que se transformou em mito, a edição 112, de 23 -08-2004, chamada Getú-
 Isaac Newton (1642-1727): físico, astrôno- lio, disponível em http://migre.me/QYBn. Na
mo e matemático inglês. Revelou como o uni- devido à luta em defesa da pátria in- edição 114, de 06-09- 2004, em http://migre.
verso se mantém unido através da sua teoria vadida pela Alemanha, quando da Pri- me/QYCb, Daniel Aarão Reis Filho concedeu a
da gravitação, descobriu os segredos da luz meira Guerra Mundial. Entre outras entrevista O desafio da esquerda: articular os
e das cores e criou um ramo da matemática, valores democráticos com a tradição estatis-
o cálculo infinitesimal. Essas descobertas fo- coisas, pensou-se em conferir a ele ta-desenvolvimentista, que também abordou
ram realizadas por Newton em um intervalo título de doutor honoris causa. Todos aspectos do político gaúcho. Em 26-08-2004 o
de apenas 18 meses, entre os anos de 1665 e concordaram com a ideia, mas então Prof. Dr. Juremir Machado da Silva, da PUCRS,
1667. É considerado um dos maiores nomes na apresentou o IHU Ideias Getúlio, 50 anos de-
história do pensamento humano, por causa da alguém deve ter observado que, para pois. O evento gerou a publicação do número
sua grande contribuição à matemática, à física tanto, era necessário haver uma uni- 30 dos Cadernos IHU Ideias, chamado Getú-
e à astronomia. O IHU promoveu de 3 de agos- versidade. Então, às pressas, as dife- lio, romance ou biografia?, também de autoria
to a 16-11-2005 o Ciclo de Estudos Desafios de Juremir, disponível em http://migre.me/
da Física para o Século XXI: uma aventura rentes faculdades existentes no Rio de QYDR. Vale destacar o Caderno IHU em for-
de Copérnico a Einstein. Sobre Newton, em Janeiro foram reunidas, constituindo a mação número 1, publicado pelo IHU em 2004,
específico, o Prof. Dr. Ney Lemke proferiu pa- “Universidade do Brasil”. E a primei- intitulado Populismo e Trabalho. Getúlio Var-
lestra em 21-09-2005, intitulada A cosmologia gas e Leonel Brizola, disponível em http://mi-
de Newton. (Nota da IHU On-Line) ra e honrosa missão de nossa primeira (Nota da IHU On-Line)
gre.me/QYEE. ���������

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cia cultural sobre o Brasil – Paul Claudel “No período colonial não criação de universidades.
e Darius Millaud foram adidos culturais O pouco de cultura que a colônia
no Rio de Janeiro. Por isso a USP surgiu tivemos universidades conheceu esteve asilado em colégios
dentro de um modelo francês e diversos religiosos, principalmente os dos je-
professores franceses se encontram en- porque Portugal não as suítas. Infelizmente não temos muita
tre os primeiros que lecionaram na nova documentação a respeito aqui no Bra-
universidade (Claude Levy-Strauss foi quis instituir” sil, mas é de supor que em Portugal,
um deles). no Arquivo da Torre do Tombo, esteja
guardado material importante dos co-
golpe de estado, o governo percebeu
Reforma do ensino superior légios da época. Para todos os efeitos,
que não conseguiria superar o gargalo
é bom recordar que o padre Antônio
que estrangulava a procura pelo ensi-
Sem dúvida, alguns leitores pode- Vieira10, uma das mais brilhantes ca-
no superior. Por isso, facilitou a cria-
rão reclamar ao lerem estas linhas. Os beças de nossa história, fez todos seus
ção de universidades particulares que,
paranaenses, por exemplo, vão dizer, estudos, inclusive de Teologia, no co-
em pouco tempo, duplicaram o núme-
que a universidade deles foi fundada légio dos jesuítas, na Bahia.
ro de universitários no país. Depois,
em 1912. E é verdade. Aconteceu, po-
dentro do célebre e discutível acordo
rém, que, na visão política do então Riqueza financeira, pobreza cultural
MEC-USAID, reformulou-se o sistema
governo federal, ela não devia existir
universitário: entre outras coisas, su-
e, por isso, em 1920, foi dissolvida em Quando a corte portuguesa, no iní-
primiram-se as cátedras, foi criado o
suas faculdades, só voltando a ser uni- cio do século XIX, fugindo das tropas de
tempo integral, organizou-se o plano
versidade após a redemocratização de Napoleão, chegou ao Brasil, pôde ver de
de carreira docente, foi instituída e
1945. Por reunião de faculdades foram perto a situação calamitosa da colônia,
regulamentada a pós-graduação.
criadas, antes da USP, algumas que sem dúvida a mais rica financeiramente
hoje são universidades federais, tais e a mais pobre culturalmente de todo o
IHU On-Line - Por que essa formação
como a UFMG, em 1927, e a UFRGS, mundo. Para suprir as necessidades mais
é tão tardia em nosso país?
em 1934. A partir de 1941, com a fun- agudas, foram então criados dois cursos
Luiz Alberto De Boni - No período
dação da PUC-Rio, surgem as universi- de Direito, um em Recife e outro em São
colonial não tivemos universidades
dades particulares. Paulo, e duas faculdades de Medicina,
porque Portugal não as quis instituir.
Cabe mencionar, enfim, que nossas uma no Rio e outra em Salvador. Com
E tinha lá seus motivos. Portugal era
universidades, tal como estão funcio- isso, procurava-se formar administra-
uma nação pequena e relativamente
nando hoje em dia, são fruto da re- dores nativos da coisa pública e garan-
pobre em seu solo, mas tinha adminis-
forma do ensino superior empreendida tir um mínimo de assistência médica à
tradores de visão. Eles sacrificaram os
pelo governo militar. Em 1964, após o população. E assim o país se tornou in-
domínios no Oriente, entregando-os à
dependente e conheceu quase 70 anos
� Paul Claudel (1864-1955): poeta e diploma- Holanda e à Inglaterra, mas salvaram
ta. Um
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dos maiores expoentes da literatura de para si a mais rica e lucrativa colônia 10 Antônio Vieira (1608-1697): padre jesuí-
sua geração. Foi embaixador da França no Bra- ta, diplomata e escritor português. Veio para
sil (Nota da IHU On-Line).
da época: o Brasil. o Brasil em 1915 e logo começou seus estudos
 Darius Milhaud (1892-1974): compositor e A extensão e a riqueza da colônia no Colégio dos Jesuítas. Mais tarde ingressou
professor francês. Sua obra é conhecida por poderia, porém, transformar-se em na Companhia de Jesus. Foi um grande orador
conciliar o uso da politonalidade (múltiplas sacro. Desenvolveu expressiva atividade missio-
tonalidades ao mesmo tempo) e do jazz. Fez
tentação para os habitantes dela que, nária entre os indígenas do Brasil procurando
parte do influente Grupo dos Seis. (Nota da um dia, seriam levados a sonhar com a combater a sua escravidão pelos senhores de
IHU On-Line) independência, como, de fato, acon- engenho. Em 1641 voltou a Portugal onde exer-
 Claude Lévi-Strauss (1908-2009): antropó- ceu funções políticas como conselheiro da Corte
logo belga que dedicou sua vida à elaboração
teceu no caso da Inconfidência Minei- e embaixador de D. João IV principalmente no
de modelos baseados na linguística estrutural, ra. Contra este perigo foram toma- que se referia as invasões holandesas do Brasil.
na teoria da informação e na cibernética para das certas medidas, entre as quais a Retornou ao Brasil em 1652, tendo estado no
interpretar as culturas, que considerava como Maranhão, onde fez acusações aos senhores de
sistemas de comunicação, dando contribuições
de impedir a fundição de ferro (numa engenho escravocratas na defesa da liberdade
fundamentais para o progresso da antropolo- região que encontrava o minério à dos índios. Foi expulso do país, juntamente com
gia social. Sua obra teve grande repercussão e flor da terra e tinha escravos que, na outros jesuítas. Envolveu-se, posteriormente,
transformou, de maneira radical, o estudo das com a Inquisição, e chegou a estar detido por
ciências sociais, mesmo provocando reações
África, haviam aprendido a fundi-lo), um ano.Voltou ao Brasil em 1681, para a Bahia,
exacerbadas nos setores ligados principal- a de proibir a impressão de livros e a onde veio a falecer anos mais tarde, no Colégio
mente à tradição humanista, evolucionista e tecelagem, e a de manter um baixo de Salvador. Entre suas obras estão: Sermões,
marxista. Ganhou renome internacional com o composto por 16 volumes que foram escritos
livro Les Structures élémentaires de la paren-
nível cultural, tanto não promovendo entre 1699 e 1748; História do Futuro (1718);
té (1949). Em 1935, Lévi-Strauss veio ao Brasil o ensino primário como impedindo a Cartas (1735-1746), em três volumes; Defesa
para lecionar Sociologia na USP. Interessado  Inconfidência Mineira: um dos mais impor- perante o tribunal do Santo Ofício (1957), com-
em etnologia realizou um trabalho de pesquisa tantes movimentos sociais da História do Bra- posto por dois volumes e Arte de furtar, escrito
em aldeias indígenas do Mato Grosso. A expe- sil. Significou a luta do povo brasileiro pela em 1744, porém, de autoria duvidosa. Confira a
riência foi sistematizada no livro Tristes Trópi- liberdade, contra a opressão do governo por- edição 244 da IHU On-Line, de 19-11-2007, An-
cos, publicado em 1955 e considerado um dos tuguês no período colonial. Ocorreu em Minas tônio Vieira. Imperador da língua portuguesa,
mais importantes livros do século XX. (Nota da Gerais no ano de 1789, em pleno ciclo do ouro. disponível em http://bit.ly/b8XEXF. (Nota da
IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342


de império, tempo durante o qual quase “São as surpresas da (atualmente sendo traduzidas para o
nada se fez em favor do ensino superior. português) eram um excelente livro
Veio, enfim, a República, e no- história: protestantes para tanto (e continua sendo). São
vamente a desgraça. Os positivistas, as surpresas da história: protestan-
com a queda da monarquia, talvez não de antanho aprendendo tes de tempos passados aprenden-
obtiveram tanto espaço político como do filosofia na obra de um papista!
esperavam, mas foi importante sua filosofia na obra de um Aliás, costumo dizer a meus alunos
contribuição ideológica. Baseados na que, se Suárez, em vez de ser um
doutrina comteana11, eles defendiam papista!” espanhol católico, fosse um alemão
a obrigação de o governo abrir escolas luterano, ou um holandês calvinista,
primárias, porque, a seu modo de ver, ou um inglês anglicano, seria muito
se tratava de um ensino sem conteúdo e, por isso, as melhores cabeças foram mais citado e o apresentariam como
ideológico. Ao mesmo tempo, porém, encaminhadas para as universidades; em um dos grandes filósofos da História,
defendiam que o poder público não segundo lugar, porque Tomás de Aqui- o que ele, de fato, foi.
devia se imiscuir no ensino superior, no foi adotado pela Companhia como o
porque este era ideológico, devendo pensador a ser seguido como modelo. E IHU On-Line - Com quais áreas do
ser promovido por grupos particulares assim surgiram nomes como os de Luís conhecimento a Segunda Escolástica
que por ele se viessem a interessar. Molina (1535-1600); João Mariana (1536- dialoga atualmente?
Graças a essas ‘sábias’ medidas his- 1624); Roberto Bellarmino (1542-162); Luiz Alberto De Boni - Há ciências nas
tóricas, fomos criar nossas universida- Francisco Suárez (1548-1617); Gregó- quais os autores são sempre atuais; nou-
des 370 anos depois que os espanhóis rio de Valência (1549-1603); Gabriel tras, não. Um aluno, que tenta construir
fundaram as deles em continente ame- Vasquez (1551-1604) e Leonardo Lessio um pequeno telescópio, não irá pesqui-
ricano. E só a partir das décadas de (1554-1623). sar a obra de Al-Hazen, de Rogério Bacon
1970 e 1980 do século passado, isto é, Para falar da relevância desses ou de Galileu; ele vai logo procurar um
há 30-40 anos, é que o fluxo contínuo jesuítas, dou apenas dois exemplos. manual atualizado que trata do tema.
de formação de mestres e doutores Hugo Grócio12, calvinista, goza de Do mesmo modo, os engenheiros que
passou a funcionar no Brasil. grande consideração no mundo jurí- lançam uma sonda em direção a Marte
dico, como sendo aquele que siste- não vão ler a obra de Newton sobre a lei
IHU On-Line - Qual é a relevância dos matizou a teoria do direito natural. da atração dos corpos, mas se valem de
jesuítas na Segunda Escolástica? Pois bem, basta ver a quantidade das um programa de computador para fazer
Luiz Alberto De Boni - Os grandes no- citações em O direito da guerra e da os cálculos. Isto é, não é preciso ler a
mes da Segunda Escolástica foram, qua- paz nas quais apela para esses nomes obra de Galileu ou de Newton para ser
se todos, de dominicanos e jesuítas. De da Segunda Escolástica e se consta- um grande físico.
início encontramos mais dominicanos, e tará que na leitura desses dominica- Já no Direito, por exemplo, Cíce-
isso tem uma lógica, pois o texto que foi nos e jesuítas ele encontrou quase ro13, Ulpiano14, Grócio continuam vivos
adotado para ser comentado em aula foi todo o arcabouço teórico de que e atuais; juristas, juízes e advogados
a Suma Teológica de Tomás de Aquino, precisava. O segundo exemplo tem a os citam. O mesmo acontece com a
um dominicano; havia também renoma- ver com Francisco Suárez, o filósofo Filosofia. Pobre do aluno que julgasse
dos frades desta ordem lecionando já mais lido no século XVII e início do que, para ser um bom filósofo, seria su-
antes que fosse fundada a Companhia de século XVIII. Ora, como os protestan- ficiente dominar a obra de Heidegger15
Jesus. Foram dominicanos, entre outros tes haviam criticado acerbamente
13 Marco Túlio Cícero (106 a.C. - 43 a.C.):
Silvestre Prierias (1456-1523); Tomás de os escolásticos, alegando que estes filósofo, orador, escritor, advogado e político
Vio Caietano (1469-1534); o grande Fran- deram muita atenção aos filósofos romano. (Nota da IHU On-Line)
cisco de Vitoria (1483-1546); Domingos e pouca à Bíblia, eles acabaram por 14 Eneo Domitius Ulpianus (150-228 d. C.):
jurista romano, reconhecido como importan-
de Soto (1494-1560) e Domingos Bañez não produzir nenhum grande pen- te político e estudioso, e considerado um dos
(1528-1602). Aos poucos, porém, os je- sador nas primeiras décadas de sua maiores economistas de seu tempo. Deu os
suítas encontraram o próprio espaço e história. Daí, quando quiseram fazer primeiros passos para o desenvolvimento do
seguro de vida. Interessou-se pelo estudo de
tiveram brilho próprio. Chegaram a tan- Filosofia, descobriram que as suare- documentos sobre nascimentos e mortes dos
to por dois motivos: em primeiro lugar, zianas Disputationes metaphysicae romanos, publicando Ulpian’s Table, provavel-
pela convicção da Companhia de Jesus 12 Hugo Grócio (1583-1645): filósofo, drama- mente no ano 200 d.c, o que lhe valeu o título
turgo, poeta e jurista holandês. Aos oito anos de primeiro atuário da História. (Nota da IHU
de que, naquele momento histórico, era de idade, já compunha versos. Com 11 anos, On-Line)
necessário investir pesado na educação ingressou no curso de Direito da Universidade 15 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo ale-
de Lyden, na Holanda. ����������������������
Em 1613 foi promovido mão. Sua obra máxima é O ser e o tempo (1927).
11 Augusto Comte (1798-1857): filósofo e pen- a Governador da cidade de Rotterdam, o que A problemática heideggeriana é ampliada em
sador social francês. Fundou a escola filosófica lhe dava assento nos Estados da Holanda e nos Que é Metafísica? (1929), Cartas sobre o huma-
conhecida como positivismo e criou um con- Estados Gerais dos Países Baixos Unidos. Sua nismo (1947), Introdução à metafísica (1953).
ceito de ciência social a que deu o nome de obra mais conhecida é De iure belli ac pacis Sobre Heidegger, a IHU On-Line publicou na edi-
sociologia. O positivismo comteano afirma que (Das leis de guerra e paz, 1625), no qual apa- ção 139, de 2-05-2005, o artigo O pensamento
a verdade da ciência é indiscutível e demons- rece o conceito de guerra justa e do direito jurídico-político de Heidegger e Carl Schmitt. A
trável universalmente. (Nota da IHU On-Line) natural. (Nota da IHU On-Line) fascinação por noções fundadoras do nazismo,

SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 


ou de Wittgenstein16. Aristóteles17, Agostinho18, Kant19 são autores atuais desse período para saber o que ele
disponível para download em http://migre.me/ que têm ainda muito a nos dizer. Um- escreveu sobre a teoria da moeda;
uNtf. Sobre Heidegger, confira as edições 185, de
19-06-2006, intitulada O século de Heidegger, berto Eco20 – o autor de O nome da Rosa poucos também os físicos que vão
disponível para download em http://migre.me/ –, ateu confesso, escreveu que, quan- procurar lá o que se aventou a res-
uNtv, e 187, de 3-07-2006, intitulada Ser e tem- do se depara com grandes problemas peito do movimento. Entretanto, em
po. A desconstrução da metafísica, que pode ser
acessado em http://migre.me/uNtC. Confira, teóricos, costuma recorrer a Tomás de questões de Metafísica, de Ética e
ainda, o nº 12 do Cadernos IHU Em Formação Aquino (morto em 1274). de Política aqueles velhos escolásti-
intitulado Martin Heidegger. A desconstrução da O mesmo acontece com a Segun- cos estão presentes.
metafísica, que pode ser acessado em http://
migre.me/uNtL. Confira, também, a entrevista da Escolástica. Devem ser poucos os E concluo com um exemplo. Quan-
concedida por Ernildo Stein à edição 328 da re- economistas que vão ler um autor do George Bush21, o pai, resolveu in-
vista IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível em vadir o Iraque, solicitou autorização
http://migre.me/FC8R, intitulada O biologismo 18 Aurélio Agostinho (354-430): Conhecido
radical de Nietzsche não pode ser minimizado, como Agostinho de Hipona ou Santo Agostinho, ao senado, e este pediu parecer aos
na qual discute ideias de sua conferência A crí- bispo católico, teólogo e filósofo. É considera- assessores jurídicos. Um colega da
tica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche do santo pelos católicos e doutor da doutrina USP, numa conferência, mostrou que
e a questão da biopolítica, parte integrante do da Igreja. (Nota da IHU On-Line)
Ciclo de Estudos Filosofias da diferença - Pré- 19 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussia- a resposta dos assessores seguia exa-
evento do XI Simpósio Internacional IHU: O no, considerado como o último grande filósofo tamente a argumentação de Francis-
(des)governo biopolítico da vida humana. (Nota dos princípios da era moderna, representante do co de Vitoria, nas duas Relectiones
da IHU On-Line) Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus pen-
16 Ludwig Wittgenstein (1889-1951): filósofo
��������� sadores mais influentes da Filosofia. Kant teve de indis (Conferências sobre os ín-
austríaco, considerado um dos maiores do século um grande impacto no Romantismo alemão e dios), ao tratar do direito natural,
XX, tendo contribuido com diversas inovações nos nas filosofias idealistas do século XIX, tendo esta do direito dos povos e das relações
campos da lógica, filosofia da linguagem, episte- faceta idealista sido um ponto de partida para
mologia, dentre outros campos. A maior parte de Hegel. Kant estabeleceu uma distinção entre os entre as nações. Não é preciso dizer
seus escritos foi publicada postumamente, mas fenômenos e a coisa-em-si (que chamou noume- que Vitoria discordava frontalmente
seu primeiro livro foi publicado em vida: Tracta- non), isto é, entre o que nos aparece e o que do furor bélico busheano.
tus Logico-Philosophicus, em 1921. Os primeiros existiria em si mesmo. A coisa-em-si não poderia,
trabalhos de Wittgenstein foram marcados pelas segundo Kant, ser objeto de conhecimento cien-
ideias de Arthur Schopenhauer, assim como pelos tífico, como até então pretendera a metafísica
novos sistemas de lógica idealizados por Bertrand clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mun- Leia Mais...
Russel e Gottllob Frege. Quando o Tractatus foi do dos fenômenos, e seria constituída pelas for-
>> Confira outra entrevista concedida por
publicado, influenciou profundamente o Círculo mas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e
Luís Alberto De Boni à IHU On-Line.
de Viena e seu positivismo lógico (ou empirismo pelas categorias do entendimento. A IHU On-Line
lógico). Confira na edição 308 da IHU On-Line, número 93, de 22-03-2004, dedicou sua matéria
* Repensando a política atual através da Idade Mé-
de 14-09-2009, a entrevista O silêncio e a expe- de capa à vida e à obra do pensador com o título
dia. Edição número 198, Revista IHU On-Line, de
riência do inefável em Wittgenstein, com Luigi Kant: razão, liberdade e ética, disponível para
02-10-2006, disponível em http://bit.ly/bzaJpq
Perissinotto, disponível para download emht- download em http://migre.me/uNrH. Também
tp://migre.me/qQYt. (Nota da IHU On-Line). sobre Kant foi publicado este ano o Cadernos
17 Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a. IHU em formação número 2, intitulado Emma-
C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira, um nuel Kant - Razão, liberdade, lógica e ética, que
dos maiores pensadores de todos os tempos. pode ser acessado em http://migre.me/uNrU.
Suas reflexões filosóficas — por um lado ori- (Nota da IHU On-Line)
ginais e por outro reformuladoras da tradição 20 Umberto Eco (1932): autor italiano mundial-
grega — acabaram por configurar um modo de mente reputado por diversos ensaios universitá-
pensar que se estenderia por séculos. Prestou rios sobre semiótica, estética medieval, comuni-
inigualáveis contribuições para o pensamento cação de massa, lingüística e filosofia, dentre os 21 George Herbert Walker Bush (1924): polí-
humano, destacando-se nos campos da ética, quais destacam-se Apocalípticos e Integrados, A tico dos Estados Unidos da América, o 41º pre-
política, física, metafísica, lógica, psicologia, estrutura ausente e Kant e o ornitorrinco. Tor- sidente do país (1989-1993). Anteriormente,
poesia, retórica, zoologia, biologia, história nou-se famoso pelos seus romances, sobretudo O ele já tinha servido como embaixador na ONU
natural e outras áreas de conhecimento. É nome da rosa, adaptado para o cinema. A ilha do (1971-1973), diretor da CIA (1976-1977), e o
considerado, por muitos, o filósofo que mais dia anterior; Baudolino e A misteriosa chama da 40º vice-presidente dos Estados Unidos na ges-
influenciou o pensamento ocidental. (Nota da Rainha Loana são outras de suas obras. (Nota da tão do presidente Ronald Reagan (1981-1989).
IHU On-Line) IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

Ciclo de Estudos em EAD: Sociedade Sustentável


acesse no endereço
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10 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342


O pensamento de Suarez como base dos direitos humanos
Conceito de ius gentium, o direito das gentes, de Francisco Suarez, está na raiz da con-
cepção atual de direitos humanos, reflete Alfredo Culleton. Pensamento do jesuíta espa-
nhol promoveu ruptura com tradição tomista

Por Márcia Junges

U
ma verdadeira ruptura com a hegemonia da doutrina de Tomás de Aquino. Esse foi o efeito
do pensamento formulado pelo jesuíta espanhol Francisco Suarez, responsável por novas
interpretações dos clássicos adequadas às necessidades históricas. A afirmação é do filósofo
Alfredo Culleton, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. É importante lembrar, também,
que, sob um prisma jurídico-político, Suarez “desenvolve uma série de conceitos que serão
de grande relevância tanto no processo de ocupação das Américas, como na sua independência”. Entram
aí o contrato social, muito antes de sua formulação específica por Thomas Hobbes, “a origem popular
do poder, a doutrina do tiranicídio e de um direito internacional”. O tiranicídio, em específico, inspirou
muitos processos libertários na América Latina, mesmo antes da Revolução Francesa, aponta Culleton.
Outro aspecto importante do pensamento de Suarez é inaugurar o direito subjetivo, presente no direito
moderno. Prova disso é o conceito de ius gentium, ou seja, o direito das gentes (ou dos povos), “que con-
siste num direito transnacional que independe de estar escrito ou não, que é formulado pelas culturas,
numa consensualidade progressiva e que deve ser respeitado universalmente”. Este direito é, portanto,
a raiz de onde brotam os modernos direitos humanos.
Culleton é graduado em Filosofia, pela Universidade Regional no Noroeste do estado do Rio Grande do
Sul – Unijuí, mestre em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutor em
Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, com a tese Fundamentação
ockhamiana do Direito Natural. Atualmente, leciona nos cursos de graduação e mestrado em Filosofia na
Unisinos. É colaborador na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, e na Uni-
versidade de Buenos Aires – UBA, Argentina. Atua como assessor do escritório da Sociedade Internacional
para Estudos da Filosofia Medieval – SIEPM. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a importância de Alfredo Culleton - O jesuíta espanhol losofia católica e de alguns importantes
Suarez na Segunda Escolástica? Francisco Suarez (1548-1617) representa filósofos do século XX, como Heidegger.
 Francisco Suarez (1548-1619): teólogo jesuíta uma ruptura com a hegemonia da dou-
espanhol nascido em Granada. Estudou latim, di- trina de Tomás de Aquino desenvolvida IHU On-Line - Quais são os conceitos
reito, filosofia e teologia em Salamanca. É um dos
fundadores do direito internacional e criador da pelos dominicanos e inaugura um alarga- mais relevantes desenvolvidos por
doutrina do suarismo. A partir de 1570, trabalhou mento no pensamento com a introdução ele na formação latino-americana?
como instrutor de teologia em vários centros dos de novas interpretações dos clássicos Alfredo Culleton - Desde o ponto de
jesuítas, na Espanha e em Roma, até se estabe-
lecer como professor de teologia na Universidade adequado às necessidades históricas. vista jurídico-político Suarez desen-
de Coimbra (1597), Portugal, pertencente então Ele vai inaugurar uma nova etapa onde volve uma série de conceitos que se-
à coroa espanhola, por indicação do rei Filipe II. é possível estar de acordo em alguns rão de grande relevância tanto no pro-
Ali firmou sua conduta erudita e tornou-se o prin-
cipal representante da nova escolástica do sécu- pontos com Tomás e em desacordo em cesso de ocupação das Américas como
lo XVI. Sua obra mais influente foi Disputationes outros. Este refinamento no seu pensar na sua independência. Nesse sentido
Metaphysicae (1597), um amplo tratado que arti- filosófico o tornaram o pensador mais destacamos a ideia do contrato social,
culava todo o saber metafísico, concebido como
teologia natural. Escreveu várias obras por enco- influente dos seguintes dos séculos de fi- mesmo antes de Hobbes, a origem
menda do papa Paulo V e de outras autoridades gou o direito do povo derrubar qualquer monarca  Thomas Hobbes (1588 – 1679): filósofo in-
religiosas, como De legibus (1612) e Defensio fi- que atuasse contra o interesse social. Também glês. Sua obra mais famosa, O Leviatã (1651),
dei catholicae (1613), destinadas a elaborar uma criticou muitas das práticas da colonização espa- trata de teoria política. Neste livro, Hobbes
teoria jurídica e política baseada nos princípios nhola nas Índias. Lecionou filosofia em Segóvia e nega que o homem seja um ser naturalmen-
católicos. Negou o direito divino dos reis e pre- teologia em Valladolid. (Nota da IHU On-Line) te social. Afirma, ao contrário, que os homens

SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 11


popular do poder, a doutrina do tira-
nicídio e de um direito internacional.
“O jesuíta espanhol um diferencial.

IHU On-Line - Qual é o sentido da


A premissa medieval sobre o poder so-
berano é a origem divina do poder ter-
Francisco Suarez (1548- Unisinos sediar o 17º colóquio anual
da SIEPM?
reno. O tiranicídio consiste no direito
que todo povo tem de atentar contra
1617) representa uma Alfredo Culleton - Foi um grande es-
o soberano caso este dê evidentes si-
nais de estar governando para seu pró-
ruptura com a forço trazer pela primeira vez este
evento ao hemisfério Sul, ao Brasil, e
prio interesse, e não para o do povo.
Esta ideia vai ser muito importante no
hegemonia da doutrina mais especificamente ao Rio Grande do
Sul e à Unisinos. Responsável por isto
processo libertário latino-americano,
mesmo antes da Revolução Francesa.
de Tomás de Aquino é o prestigio adquirido internacional-
mente pela pesquisa desenvolvida nas

IHU On-Line - Que conceitos oriundos


desenvolvida pelos nossas instituições acadêmicas através
dos seus programas de pós-graduação.
dessa filosofia podem ser significati-
vos para o direito contemporâneo?
dominicanos” Neste caso, o tema que foi proposto
nos vincula ainda mais à história lati-
Alfredo Culleton - Aquela ideia de no-americana e à sua contribuição fi-
lei natural e a vontade expressa na
Aristóteles de justiça como “dar a cada losófica. De modo especial, a Unisinos
lei civil. O direito de gentes confere
um o que é seu” será transformada por tem a vocação para sediar o evento
às vontades consensuadas estatuto de
Suarez em “certo poder ou faculdade por dois motivos: em primeiro lugar
lei, razoabilidade e uma dinamicidade
moral que cada um tem sobre o que é pela tradição jesuítica tão próxima à
que poderia estar na base dos direitos
seu e sobre aquilo que lhe é devido”. temática proposta, e pelo inestimável
humanos como os entendemos hoje.
Assim, ele inaugura o direito subjeti- acervo bibliográfico que a Biblioteca
vo, que será a grande marca no direito Unisinos tem a respeito. Merecem des-
IHU On-Line - Que importância tem
moderno. Um outro conceito refinado taque as obras da biblioteca do Cristo
a Segunda Escolástica no curso de fi-
pelo nosso autor é o de ius gentium, Rei, a qual, por gerações, os padres
losofia da Unisinos em sua origem e
ou direito de gentes, que consiste num não só adquiriram como preservaram.
atualmente?
direito transnacional que independe de
Alfredo Culleton - Uma das mais des-
estar escrito ou não, que é formulado
tacadas características do método es- Leia Mais...
pelas culturas, numa consensualidade
colástico foi a Quaestio disputata, que
progressiva e que deve ser respeita- >> Confira outras entrevistas concedidas
consistia em oferecer uma questão,
do universalmente. Trata-se de uma por Alfredo Culleton à IHU On-Line.
submeter ela às mais variadas aborda-
combinação entre a racionalidade da
são impulsionados apenas por considerações gens, talhar uma resposta fundada tanto * Em nome de Deus: um retrato de época. Edi-
egoístas. Também escreveu sobre física e psi- quanto possível na razão e nos clássicos, ção número 160, Revista IHU On-Line, de 17-10-
cologia. Hobbes estudou na Universidade de 2005, disponível em http://bit.ly/dodKuV
e responder às objeções. Esta metodolo- * A interculturalidade medieval. Edição número
Oxford e foi secretário de Sir Francis Bacon. A
respeito desse filósofo, confira a entrevista O gia se estendeu até bem recentemente 198, Revista IHU On-Line, de 02-10-2007, dispo-
conflito é o motor da vida política, concedida na formação dos jesuítas e certamente nível em http://bit.ly/972H1W
pela Profa. Dra. Maria Isabel Limongi à edição * Ninguém aceita a morte por suposição. Edição
permeia o espírito do curso de Filosofia número 269, Revista IHU On-Line, de 18-08-2008,
276 da revista IHU On-Line, de 06-10-2008.
O material está disponível em http://bit.ly/ da Unisinos. Por sua vez, o acervo biblio- disponível em http://bit.ly/9duyo0
bDUpAj. (Nota da IHU On-Line) gráfico na área disponível na Unisinos é

Outras edições da IHU On-Line em www.ihu.unisinos.br

12 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342


A importância da Segunda Escolástica no Ocidente
Nossa formação histórica e cultural recebeu influência decisiva da Segunda Escolástica,
analisa o filósofo Santiago Orrego. Paradoxalmente, sua importância “sociologicamente
mensurável” é marginal

Por Márcia Junges e Alfredo Culleton – Tradução Benno Dischinger

P
aradoxalmente, a importância da Segunda Escolástica é quase que “inversamente proporcio-
nal à atenção que de fato recebe esse pensamento em nossos países, e algo semelhante cabe
dizer de Espanha e Portugal. Creio que isso tem a ver com o fato de que a Segunda Escolástica
foi predominantemente ibérica e também com nosso lamentável complexo de inferioridade
intelectual, que nos leva a estar sempre mirando as novidades que vem do Norte – o resto
da Europa e Norte-américa”. A reflexão é do filósofo chileno Santiago Orrego, na entrevista que conce-
deu, por e-mail, à IHU On-Line. Em sua opinião, a importância dessa corrente filosófica é decisiva para
nossa formação histórica e identidade cultural. Mas completa: “Se me é perguntado pela importância,
digamos, ‘sociologicamente mensurável’, que o estudo da Segunda Escolástica tem em nossos países,
diria que é marginal, muito inferior ao que mereceria em razão de sua relevância histórica e, em minha
opinião, também em relação com o que tem de valor atual para ensinar-nos”.
Santiago Orrego é professor do Instituto de Filosofia da Universidade Católica do Chile. É doutor em
Filosofia pela Universidade de Navarra com a tese Historia de filosofia del Renacimiento y Edad Media.
Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a importância da Se- gel” (Ser e tempo, § 6, p. 22 [da Ed. supostos” e é habitualmente conside-
gunda Escolástica na América Latina? De Niemeyer]). rado como o pai da filosofia moderna,
Santigo Orrego - São muitas as verten- O pensamento do próprio Descar- se demonstrou que está marcado por
tes a partir das quais se pode abordar tes, que pretendia filosofar “sem pres- uma grande dependência com referên-
esta pergunta. Talvez seja adequado  Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo ale- cia às propostas filosóficas e teológicas
mão idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás
começar por ampliá-la e perguntar-se: de Aquino, tentou desenvolver um sistema fi-
dos escolásticos que precederam ime-
qual é a importância da Segunda Es- losófico no qual estivessem integradas todas diatamente. O mesmo caberia dizer de
colástica no Ocidente – em seu pensa- as contribuições de seus principais predeces- Malebranche, Spinoza, Leibniz e ou-
sores. Sua primeira obra, A fenomenologia do
mento e em suas instituições -, cultura espírito, tornou-se a favorita dos hegelianos
tros. Aos trabalhos pioneiros de Gilson
que integra de maneira preponderan- da Europa continental no séc. XX. Sobre Hegel, e Freudenthal seguiram muitos outros
te a identidade latino-americana? Se- confira a edição especial nº 217 de 30-04-2007, até a atualidade, os quais não fizeram
intitulada Fenomenologia do espírito, de Ge-
ria difícil exagerar essa importância, org Wilhelm Friedrich Hegel (1807-2007), em
mais do que confirmar e aprofundar a
inclusive para aqueles movimentos comemoração aos 200 anos de lançamento hipótese e que seria demasiado longo
intelectuais que se apresentam a si dessa obra. O material está disponível em referir aqui. E isto não só em questões
http://migre.me/zAON. Sobre Hegel, confira,
mesmos como reações contra ela. ainda, a edição 261 da IHU On-Line, de 09-
de metafísica, senão também e muito
Pode citar-se, a este respeito, o pa- 06-2008, Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Um especialmente na área da filosofia ju-
rágrafo 6 de Ser e tempo de Martin novo modo de ler Hegel, disponível em http:// rídica e política, incluindo alguns dos
migre.me/zAOX. (Nota da IHU On-Line)
Heidegger que se refere à obra mais  René Descartes (1596-1650): filósofo, físico
teóricos mais importantes da Ilustra-
emblemática da Segunda Escolástica: e matemático francês. Notabilizou-se sobretu- ção. Ambas as vertentes confluíram na
“o essencial da filosofia grega passa à do pelo seu trabalho revolucionário da Filoso- independência dos países da América.
fia, tendo também sido famoso por ser o in-
metafísica e à filosofia transcendental ventor do sistema de coordenadas cartesiano,
Portanto, se é verdade que nossa
da época moderna pela via das Dispu- que influenciou o desenvolvimento do cálculo compreensão de nós mesmos e da re-
tationes metaphysicae de Francisco moderno. Descartes, por vezes chamado o fun- mente em oposição à escola que predomina-
dador da filosofia e matemática modernas, ins- va nas ilhas britânicas, o empirismo), posição
Suarez e determina, no entanto, os pirou os seus contemporâneos e gerações de filosófica dos séculos XVII e XVIII na Europa.
fundamentos e fins da lógica de He- filósofos. Na opinião de alguns comentadores, (Nota da IHU On-Line)
ele iniciou a formação daquilo a que hoje se  Nicolas Malebranche (1638-1715): filósofo
chama de racionalismo continental (suposta- francês. (Nota da IHU On-Line)

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alidade está muito condicionada pe- “O pensamento do por outro lado, tendem a desprezar
las “teses implícitas” que assumimos os escolásticos posteriores. E não só
junto com o aprender uma linguagem, próprio Descartes, que os de “escolas rivais” – seguidores de
que essas “teses implícitas” derivam Duns Escoto, Guilherme de Ockham
de uma história cultural na qual não pretendia filosofar ‘sem ou Francisco Suarez, para citar os prin-
há verdadeiros saltos de qualidade e, cipais -, senão especialmente a escola
finalmente, se é verdade que essas pressupostos’ (...) se tomista tradicional.
teses só podem tornar-se explícitas Creio que, pela influência de al-
– controláveis e criticáveis, portanto, demonstrou que está guns tomistas do século vinte, como
- mediante uma reconstrução de sua Etienne Gilson ou Cornélio Fabro, se
história – a história dos conceitos é marcado por uma grande generalizou entre eles a ideia de que a
verdadeira filosofia, diz Gadamer -; escola tomista - quase em bloco - caiu
se tudo isso é verdadeiro, resulta que dependência com em esquecimento ou incompreensão
não podemos saber realmente o que do “autêntico pensamento” de Santo
ou quem somos nós mesmos, se não é referência às propostas Tomás, ao qual concebem quase ex-
examinado diretamente – entre outras clusivamente em torno ao ato de ser
coisas – o pensamento da Segunda Es- filosóficas e teológicas ou esse (em latim, pois já nem sequer
colástica. se atrevem a traduzi-lo, para não de-
dos escolásticos que formá-lo...). E toda a escolástica pós-
Paradoxo tomista, seja de que século for, se
precederam considera de saída como “decadente”
Pois bem, esta importância é quase  John Duns Scot (ou Escoto Eriúgena - 1265-
inversamente proporcional à atenção imediatamente” 1308): frade franciscano escocês, foi um filóso-
fo e teólogo da tradição escolástica, chamado
que de fato recebe esse pensamento de “Doutor Sutil”, em razão de ser um autor
em nossos países, e algo semelhan- “sociologicamente mensurável”, que de acesso difícil, que lhe valeu essa reputa-
te cabe dizer de Espanha e Portugal. ção de sutileza. Estudou nas Universidades de
o estudo da Segunda Escolástica tem Oxford e Paris. Foi mestre em teologia nessas
Creio que isso tem a ver com o fato em nossos países, diria que é margi- duas universidades, assim como em Cambridge
de que a Segunda Escolástica foi pre- nal, muito inferior ao que mereceria e Colônia. Foi mentor de outro grande nome
dominantemente ibérica e também da filosofia medieval, William de Ockham. Foi
em razão de sua relevância histórica beatificado em 20 de Março de 1993, durante
com nosso lamentável complexo de e, em minha opinião, também em re- o pontificado de João Paulo II. Formado no am-
inferioridade intelectual, que nos leva lação com o que tem de valor atual biente acadêmico da Universidade de Oxford,
a estar sempre mirando as novidades posicionou-se contrário a São Tomás de Aquino
para ensinar-nos. no enfoque da relação entre a razão e a fé.
que vem do Norte – o resto da Euro- Suas principais obras são a Opus parisiensis
pa e Norte-américa. Também se re- IHU On-Line - E no Chile, qual é a in- (Obra de Paris) e a Opus oxoniensis (Obra de
laciona com os combates ideológicos Oxford), também conhecida como Ordinatio,
fluência desta vertente filosófica? ambas provavelmente compilações, por seus
– sem querer usar a palavra em sentido Santigo Orrego - Não creio que, neste discípulos, de seus cursos. (Nota da IHU On-
pejorativo – que até não muito tem- aspecto, a situação do Chile seja muito Line)
po atrás vinculava a escolástica com  William de Ockham (1285-1350): filósofo
distinta da do resto dos países da Amé- lógico, teólogo escolástico inglês, frade fran-
o tradicionalismo católico. Agora que rica Latina. Desde logo, não há ou qua- ciscano e criador da teoria conhecida como
isto está mais distante no tempo, se se não há pensadores nem acadêmicos Navalha de Ockham (em inglês, Ockham’s Ra-
torna possível abordar este campo de zor), que dizia que as “pluralidades não devem
que podem catalogar-se de “escolás- ser postas sem necessidade”. Considerado um
estudo com mais serenidade e obje- ticos”. Trata-se de um modo de fazer dos fundadores do nominalismo, teoria que
tividade: sem objetivos apologéticos filosofia e de estruturar o pensamento afirmava a inexistência dos universais, que se-
nem iconoclastas mais ou menos cons- riam apenas nomes dados às coisas, e portanto
que simplesmente já não se pratica e produto de nossa mente sem uma existência
cientes, reconhecendo suas grandezas que não creio que seria nefasto querer prática assegurada. Por causa de suas ideias
e suas limitações. reabilitar em seus modos e em muitas foi excomungado pela Igreja. O conceito, bas-
Em resumo: se me é perguntado tante revolucionário para a época, defende a
de suas ideias. Sim, há acadêmicos que intuição como ponto de partida para o conhe-
pela importância da Segunda Escolás- estudam os escolásticos, porém muito cimento do universo. Ockham foi discípulo do
tica para nossa história e para a for- mais os medievais do que os do Renas- filósofo Duns Scotus e precursor do empirismo
mação de nossa identidade cultural, inglês, do cartesianismo, do criticismo kantia-
cimento ou do Barroco (períodos nos no e da ciência moderna. (Nota da IHU On-
eu diria que é decisiva. Se me é per- quais se inscreve a chamada Segunda Line)
guntado pela importância, digamos, Escolástica). Destes, muitos o fazem a  Étienne Gilson (1884-1978): filósofo francês
 Hans-Georg Gadamer: filósofo alemão, au- tomista. (Nota da IHU On-Line)
tor de Verdade e método (Petrópolis: Vozes, partir de um enfoque puramente his-  Cornelio Fabro (1911-1995): filósofo italia-
1997), faleceu no dia 13-03-2002, aos 102 tórico. Também há quem busque nos no, reconhecido por “devolver” o tomismo
anos. Por essa razão, dedicamos a ele a maté- escolásticos ideias atuais, que consi- às suas raízes em relação com o pensamento
ria de capa da IHU On-Line número 9, de 18- moderno. Foi um dos primeiros estudiosos do
03-2002, Nosso adeus a Hans-Georg Gadamer, deram e defendem como verdadeiras; existencialismo, e introduziu na Itália a obra
disponível em http://migre.me/DtiK. (Nota da destes, a maioria são tomistas que, de Kierkegaard, que traduziu diretamente do
IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)
dinamarquês. ���������

14 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342


e se olha para ela com receio. Se me e, nesse momento, talvez também ideias políticas que se desenvolveram
é permitido expressar aqui minha opi- da Europa. Suas doutrinas, desenvol- na Espanha e em Portugal nos séculos
nião sem poder fundamentá-la, creio vidas por seus discípulos, chegaram XVI e XVII e que eram moeda corrente
que se trata, sobretudo no caso de Fa- a ser quase universalmente aceitas e nas universidades americanas, foram a
bro, de um remedo um tanto torpe do de fato chegaram a ser recolhidas nas principal base de justificação da inde-
diagnóstico heideggeriano do “esque- legislações espanholas referentes à pendência dos países americanos. Cer-
cimento do ser” no pensamento oci- América. É verdade que a obediência a tamente, o que dominava em começos
dental. Com esse gesto se pretendia essas leis foi limitada, porém, de fato, do século XIX na América era um sin-
dar atualidade ao pensamento de San- salvaram vidas e evitaram ou desfize- cretismo entre as ideias da escolástica
to Tomás, eximi-lo da crítica de Hei- ram escravidões. Poderia estender-me e as da Ilustração, - as quais também
degger e, de passagem, talvez como muito sobre este ponto, ilustrando-o tiveram papel relevante, - porém,
motivação inconsciente, dar peso te- com casos históricos concretos, porém quase tudo o que se fez politicamente
órico e apoio no prestígio do pensador creio que o espaço não o permite. O pela independência podia justificar-
alemão ao programa da Aeterni Patris certo é que, sem os pensadores de Sa- se perfeitamente a partir da filosofia
de Leão XIII. Porém creio que em San- lamanca, teriam morrido muito mais de Francisco de Vitoria, Domingo de
to Tomás há muito mais do que o esse; índios e nossos povos seriam muito Soto, Francisco Suarez e de seus dis-
que muitas de suas concepções filo- menos mestiços. cípulos europeus e americanos, e, de
sóficas originais não dependem para Outro capítulo é o da vida das co- fato assim ocorreu. Estou pensando
nada dessa doutrina; e que a escolás- lônias espanholas e portuguesas já es- agora num manifesto político firmado
tica – primeira ou segunda – tem valor tabelecidas. Muitos dos que assumiam sob o pseudônimo de José Amor de la
muito além do tomismo. cargos no governo e na administração Pátria, intitulado Catecismo político-
americana, civil ou eclesiástica, se cristiano, que se difundiu amplamente
IHU On-Line - Qual é o impacto, a formavam no pensamento da Segunda no Chile em 1810 e habitualmente se
influência política da Segunda Esco- Escolástica – pensamento jurídico, fi- considera um antecedente relevante
lástica na formação dos países latino- losófico, político, teológico e até eco- de nossa independência ou, quando
americanos? nômico – e, desse modo, essas idéias menos, um bom reflexo das ideias que
Santigo Orrego - Convém distinguir iam configurando as instituições. Essas guiavam os independentistas. Outros
aqui, como é natural, duas épocas idéias também empapavam a vida cul- textos semelhantes se difundiram em
(embora eu saiba que o Brasil tem um tural e artística. A arte do Barroco se outros países da América. Não depen-
esquema distinto): o período colonial caracterizou como “conceitual”, e os de, em suas propostas, nem de Locke11
(incluindo a conquista) e o das repúbli- conceitos que se encarnavam na arte nem de Rousseau12 nem de Montaigne,
cas independentes. O principal foco de se desenvolviam nas grandes univer- nem dos pais da pátria norte-ameri-
desenvolvimento da Segunda Escolás- sidades ibéricas e americanas. Por canos, senão dos autores que nomeei
tica foi a Universidade de Salamanca. isso, Octavio Paz10 pôde dizer que a pouco antes. Por exemplo, as idéias,
Todo o movimento foi marcado pelos literatura do barroco hispânico foi a bem perfiladas e defendidas, de que
ensinamentos de Francisco de Vitoria única verdadeiramente filosófica, no a autoridade dos governantes provém
entre 1526 e 1546, o qual criticou mui- sentido de que os conceitos e debates de Deus, porém através do povo: que
to valentemente as justificações que filosóficos “acadêmicos” – e também as leis humanas só valem para aqueles
se davam para a conquista espanhola teológicos – tinham amplo cabimento, que lhe deram seu consentimento, di-
da América. Não só defendeu a racio- por exemplo, nas poesias, nas novelas reto ou indireto; que, por uma causa
nalidade dos aborígenes, senão tam- e nas obras de teatro. Algumas delas grave, existe o direito de rebelião e
bém a plena validez de suas institui- dependiam essencialmente desses ar-
11 John Locke (1632-1704): filósofo inglês,
ções políticas; com matizes relevantes gumentos. A vida de nossos países na predecessor do Iluminismo, que tinha como
negou os direitos políticos da coroa de época colonial, em quase todas as suas noção de governo o consentimento dos gover-
Castilla sobre as terras descobertas e áreas, seria incompreensível sem essa nados diante da autoridade constituída, e, o
respeito ao direito natural do homem, de vida,
declarou ilegítimas as guerras de con- retaguarda intelectual. liberdade e propriedade. Com David Hume e
quista. E não era um personagem irre- George Berkeley era considerado empirista.
levante, senão o principal catedrático Sincretismo de ideias (Nota da IHU On-Line)
12 Jean Jacques Rousseau (1712-1778): filó-
da principal universidade espanhola sofo franco-suíço, escritor, teórico político e
� Leão XIII (1810-1903): nascido Vincenzo O surpreendente é que as mesmas compositor musical autodidata. Uma das figu-
Gioacchino Raffaele Luigi Pecci. ���������������
Foi Papa de 20 ras marcantes do Iluminismo francês, Rousse-
de fevereiro de 1878 até a data da sua morte. 10 Octavio Paz Lozano (1914-1998): poeta, au é também um precursor do romantismo. As
Notabilizou-se primeiramente como popular e ensaísta, tradutor e diplomata mexicano, no- idéias iluministas de Rousseau, Montesquieu e
bem sucedido Arcebispo de Perguia, o que con- tabilizado, principalmente, por seu trabalho Diderot, que defendiam a igualdade de todos
duziu a sua nomeação como Cardeal em 1853. prático e teórico no campo da poesia moderna perante a lei, a tolerância religiosa e a livre
Ficou famoso como o “papa das encíclicas”. A ou de vanguarda. Recebeu o Nobel de Literatu- expressão do pensamento, influenciaram a
mais conhecida de todas, a Rerum Novarum, ra de 1990. Escritor prolífico cuja obra abarcou Revolução Francesa. Contra a sociedade de
de 1891, sobre os direitos e deveres do capital vários gêneros, é considerado um dos maiores ordens e de privilégios do Antigo Regime, os
e trabalho, introduziu a ideia da subsidiarie- escritores do século XX e um dos grandes po- iluministas sugeriam um governo monárquico
dade no pensamento social católico. (Nota da etas hispânicos de todos os tempos. (Nota da ou republicano, constitucional e parlamentar.
IHU On-Line) IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 15


que o povo pode legitimamente revo- Alemanha declarou inconstitucional a
car a autoridade do monarca: que, em disposição pela qual se autorizava às
ausência do governante legítimo – pen- Forças Armadas derrubar um avião com
semos em Fernando VII13 preso por Na- passageiros do qual haveria certeza que
poleão -, a potestade retorna ao povo fora raptado e que se utilizaria como
para que este eleja seu governante e, projétil, como ocorreu com as Torres
eventualmente, outra forma de gover- Gêmeas em 2001. A solução se apoiou
no; que, em caso de tirania e sob cer- fundamentalmente na filosofia moral
tas condições, é legítimo inclusive dar de Kant e no pressuposto que derrubar
morte ao tirano; que há tirania quan- o avião implicava considerar os passa-
do o governante não age para o bem geiros inocentes como “coisas”, como

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dos governados. E, já Vitoria e Soto simples meios e não como fins – negan-
denunciavam que os espanhóis não do, portanto, sua dignidade que a cons-
estavam governando para o bem dos tituição alemã declara “inviolável”.
povos americanos submetidos. Enfim: Este é certamente um dilema tremen-
tudo isso se encontra nesses pensado- do. Porém, ao ler-se a fundamentação
res, sobre os quais não recaía nenhum da decisão do tribunal, se vê que não
tipo de suspeita sobre sua ortodoxia se concebe uma alternativa entre o
doutrinal católica. Desse modo, um consequencialismo ético, que simples-
partidário da independência e da Re- mente põe na balança as consequên-
pública não tinha por que sentir-se em cias desejáveis de uma ação, e a moral
conflito com suas convicções religiosas da dignidade pessoal incondicionada,
– nessa época, na América Latina, fun- que não admite cálculos. Pois bem: um
damentalmente católicas. dilema parecido formulou para si Vito-
ria, há quase quinhentos anos, sob uma
IHU On-Line - A Segunda Escolástica fórmula distinta: é lícito bombardear
apresenta alguma contribuição à dis- um barco de guerra turco no qual se
cussão jurídica contemporânea? encontram prisioneiros cristãos? Não se
Santigo Orrego - Dos textos destes trata aqui de propor a solução dada por
autores se poderiam extrair princípios Vitória; mas, a mim resulta claríssimo
bastante iluminadores sobre questões que ele apresenta razões de peso não
de grande atualidade. Não é em vão consideradas na discussão atual, que
que Francisco de Vitoria é considerado poderiam ser esclarecedoras e segundo
por muitos como o pai do Direito Inter- as quais derrubar o avião seqüestrado
nacional moderno. Outros assinalam não implicaria em considerar os reféns
Hugo Grócio, porém a grande depen- como simples meios sujeitos a cálculos
dência a este respeito de Vitoria ou de benefícios.
Suarez, por exemplo, está muito bem Em meu país me tocou intervir em
documentada. Abordarei esta questão alguns debates políticos, na mídia,
com exemplos concretos. Pensemos, como a determinação do salário jus-
por exemplo, em suas doutrinas sobre to – que se começou a chamar “salá-
a guerra e suas possíveis justificações; rio ético” – ou a valoração moral dos
são muito mais radicais e matizadas saques que se produziram após o ter-
do que as que se puseram em jogo, remoto de 27 de fevereiro, ou o sig-
por exemplo, nos debates sobre a in- nificado metafísico ou teológico que
vasão dos Estados Unidos ao Iraque, poderia ter o achado “milagroso” de
que parece chegar ao seu fim. Ela não 33 mineiros enterrados depois de 17
tem a simplicidade nem de um paci- dias. Procurei dar realce a ideias em-
fismo hippie, nem de um pragmatismo prestadas de meus amigos da Escola
“realista”, nem de uma ingênua mis- de Salamanca e elas têm sido conside-
são divina de lutar péla liberdade dos radas aportes valiosos para o debate.
povos. E não tenho dúvidas de que aqui há
Outro dilema político e jurídico, muitas luzes que podem orientar-nos,
muito vinculado ao anterior: Há cer- porém nós, na América do Sul, as con-
to tempo, o tribunal constitucional da sideramos muitas vezes como alimen-
tos para roedores nos fundos de nossas
13 Fernando VII (1784-1833): rei espanhol, fi-
lho de Carlos IV e Maria Luísa de Parma. ������
(Nota bibliotecas. Espero que o próximo co-
da IHU On-Line) lóquio ajude a mudar esta situação.
16 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342
Bartolomeu de Las Casas, primeiro teólogo
e filósofo da libertação
Reconhecimento da alteridade dos indígenas e relação entre teoria e práxis libertadora
tornam justo apontar Las Casas como “autêntico filósofo latino-americano da liberta-
ção”, assegura Giuseppe Tosi

Por Márcia Junges e Alfredo Culleton – Tradução Benno Dischinger

R
econhecer a alteridade dos índios em sua condição de indivíduos e também de povos é um
bom motivo para considerar Bartolomeu de Las Casas como “o primeiro teólogo e filósofo da
libertação latino-americana”, acredita o filósofo italiano Giuseppe Tosi. Em sua opinião, “a
compreensão que Las Casas adquiriu do encontro/desencontro, descobrimento/encobrimen-
to entre o Velho Mundo e o Novo Mundo é uma das mais extraordinárias da nossa história”.
E continua: “pela compreensão e o reconhecimento da alteridade oprimida, humilhada, ocultada dos
povos indígenas, e pela relação constante entre a teoria e a práxis libertadora que ele soube realizar,
podemos a justo título considerar Las Casas como um autêntico filósofo latino-americano da libertação”.
Tosi pontua que ele conseguiu conjugar “o conhecimento da tradição e da linguagem filosófica do seu
tempo com as trágicas e dramáticas questões do Novo Mundo, elaborando assim um pensamento ao
mesmo tempo universal e autenticamente latino-americano”. As afirmações fazem parte da entrevista
a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Graduado em Filosofia pela Universitá Cattolica del Sacro Cuore di Milano, Giuseppe Tosi é mestre em
Sociologia Rural pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, doutor em Filosofia pela Universitá degli
Studi di Padova, e pós-doutor pela Universidade de Firenze, ambas na Itália. Leciona na UFPB e é autor
de La Teoria della schiavitù naturale nel dibattito sul Nuovo Mondo (1510 - 1573). Veri Domini o Servi a
natura? (Bologna: Edizioni Studio Domenicano, 2002) e organizador de Direitos humanos: história, teoria
e prática (João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2005) e de Bartolomé de Las Casas: De Regia Potestate
(Bari-Roma: Laterza, 2007). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as ligações en- tion des droits de l’homme e du citoyen entre a concepção objetiva do direito
tre os direitos humanos e a segunda da Revolução Francesa de 1789. natural, típica de grande parte da tra-
escolástica espanhola? No entanto, tais reconstruções pas- dição antiga e medieval, para a concep-
Giuseppe Tosi - Os estudos que se dedi- sam ao largo do período de transição ção subjetiva dos direitos naturais. Esta
cam à reconstrução da evolução históri- passagem acontece entre os séculos XV
 Revolução Francesa: nome dado ao conjunto
ca das doutrinas dos direitos do homem de acontecimentos que, entre 5 de Maio de 1789 e XVI e tem as suas raízes remotas na
evidenciam uma genealogia quase “ca- e 9 de Novembro de 1799, alteraram o quadro jurisprudência da Idade Média, nas po-
nônica”, que inicia com a Magna Charta político e social da França. Começa com a convo- sições assumidas pelos teólogos francis-
cação dos Estados Gerais e a Queda da Bastilha e
Libertatum de 1215, passa pelo Bill of se encerra com o golpe de estado do 18 Brumá- canos e nominalistas, no debate sobre a
Rights da Revolução Gloriosa de 1688 rio, de Napoleão Bonaparte. Em causa estavam pobreza do século XIV e XV, sobretudo
para chegar à Declaração do Estado da o Antigo Regime (Ancien Régime) e a autoridade a partir de Guilherme do Ockham e, fi-
do clero e da nobreza. Foi influenciada pelos ide-
Virgínia de 1777, e finalmente à Déclara- ais do Iluminismo e da Independência America- nalmente, nos teólogos da Escola de Sa-
 Revolução Gloriosa: evento histórico que ocor- na (1776). Está entre as maiores revoluções da lamanca, sobretudo a partir do debate
reu na Inglaterra entre 1695 e 1740, na qual o rei história da humanidade. A Revolução Francesa é sobre o Novo Mundo na primeira metade
Jaime II da dinastia Stuart (católico) foi removi- considerada como o acontecimento que deu iní-
do do trono da Inglaterra, Escócia e País de Ga- cio à Idade Contemporânea. Aboliu a servidão e do século XVI.
les, substituído por sua filha, Maria II e pelo seu os direitos feudais e proclamou os princípios uni-
genro , o nobre holandês Guilherme, Príncipe de versais de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” IHU On-Line - Em que consiste a contri-
Orange. Marcou o declínio do parlamento sobre a (Liberté, Egalité, Fraternité), frase de autoria de
coroa. (Nota da IHU On-Line) Jean-Jacques Rousseau. (Nota da IHU On-Line) buição dos escolásticos de Salamanca

SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 17


para a história conceitual dos direitos “Todos os homens, como Vitória, aplica de maneira rigorosa
humanos? o princípio de reciprocidade dos direi-
Giuseppe Tosi - Para o jusnaturalismo enquanto criados a tos que Vitória introduz, levando-o até
antigo, que havia dominado a história do as últimas consequências. Em polêmica
conceito de direito natural desde Aristó- imagem de Deus com Juan Ginés de Sepúlveda, que era o
teles até o final do século XV, o direito intelectual orgânico dos conquistadores
(díkaion em grego, ius em latim) era de- (tradição bíblica), e e com o qual terá uma famosa disputa na
finido primariamente como uma relação cidade de Valladolid em 1550 e 1551, Las
objetiva, fundada não sobre os gostos enquanto animais Casas defenderá as seguintes teses:
e as preferências dos indivíduos, mas a) Todos os homens, enquanto cria-
sobre o que objetivamente era devido racionais (tradição dos à imagem de Deus (tradição bíblica),
nas relações entre os sujeitos, a partir e enquanto animais racionais (tradição
de uma ordem natural e social que go- aristotélica) são livres aristotélica) são livres por sua própria
vernava o mundo e que era legitimada natureza: por isso rejeita a doutrina
por Deus, ordem com a qual os sujeitos por sua própria natureza: aristotélica da escravidão natural que
deviam se conformar, cada um ocupando era aplicada por Sepúlveda aos índios.
o seu lugar. Na verdade, cabiam aos sú- por isso rejeita a b) Como os mestres de Salamanca,
ditos mais deveres para com a sociedade Las Casas afirma que o imperador não
do que propriamente direitos. doutrina aristotélica da pode ser considerado dono das proprie-
A partir do fim da Idade Média e do dades dos indivíduos (dominus super re-
início do Renascimento, o direito (ius) escravidão natural” bus singulorum) mas somente governan-
tende a ser identificado com o domínio te político, isto é, ele exercita somente
(dominium), que, por sua vez, é definido uma jurisdição (iurisdictio). Mas, a dife-
a) Vitória não fala de homines, mas
como uma faculdade (facultas) ou um rença deles, Las Casas admite o poder
de domini: a questão não é a humani-
poder (potestas) do sujeito sobre si mes- temporal do Imperador e o poder espi-
dade dos indígenas, que nenhum teólogo
mo e sobre as coisas. Inicia assim uma ritual do Papa (in ordine ad spiritualia)
sério colocou em questão; prescindindo
concepção que desvincula e liberta pro- sobre o mundo inteiro. Las Casas per-
de qualquer outro argumento, se o ín-
gressivamente o indivíduo da sujeição manece ancorado na visão universalista
dios não tivessem alma, cairia por terra
a uma ordem natural e divina objetiva medieval dos dois poderes. Esta visão
a principal justificativa da conquista, a
e lhe confere uma dignidade e um po- não contrasta com o reconhecimento da
evangelização. O que estava em jogo
der próprio e original, limitado somente plena legitimidade do dominium indíge-
não era a humanidade dos índios, mas
pelo poder igualmente próprio e original na, porque Las Casas imagina o poder do
o seu dominium, ou seja, a legitimidade
do outro indivíduo, sob a égide da lei e imperador como uma autoridade supre-
do poder político dos regimes indígenas,
do contrato social. É a passagem do di- ma que governa sobre uma federação de
e a legitimidade da propriedade dos seus
reito para os direitos! estados e nações indígenas regidas pelos
bens.
seus legítimos e originários senhores,
b) Sobre esta questão Vitória é cate-
IHU On-Line - Como esta doutrina foi que se submetem ao imperador somente
górico e assimila os bárbaros aos cristãos,
aplicada à questão dos povos indígenas quanto aos tributos, recebendo em troca
introduzindo, assim, um argumento de
do Novo Mundo? proteção contra o cobiça dos conquista-
reciprocidade de direitos muito signifi-
Giuseppe Tosi - Francisco de Vitória, na dores e encomenderos.
cativo e, ao mesmo tempo, condenando
famosa Relectio de Indis, de 1537, faz c) Para responder a Sepúlveda,
a destituição dos legítimos senhores po-
uma afirmação capital a respeito dos que considerava os indígenas bárbaros e
líticos e a apropriação indevida dos bens
direitos dos índios, naquela época cha- selvagens, elabora na Apologia uma ti-
dos indígenas. Sem tais justificativas, o
mados de bárbaros: “Sine dubio barbari pologia de quatro tipos diferentes bárba-
domínio espanhol sobre as Índias ficaria
erant et publice et privatim ita veri do- ros que é considerada um dos primeiros
sem nenhum fundamento religioso, éti-
mini, sicut christiani; nec hoc titulo po- exemplos de “etnologia comparada”.
co ou político.
tuerunt spoliari aut principes aut privati d) Não admite os pecados contra a
rebus suis, quod non essent veri domi- natureza e a infidelidade como causa de
IHU On-Line - Qual é a importância de
ni.” (“Sem dúvida esses bárbaros eram, guerra justa contra os índios, mas pro-
Bartolomeu de Las Casas na formação
do ponto de vista do direito público e cura entendê-los como manifestações
da identidade latino-americana?
privado, verdadeiros senhores, como os culturais e expressões de uma forma de
Giuseppe Tosi - Bartolomeu de Las Ca-
cristãos; e por este motivo não podiam religiosidade que só podem ser modifica-
sas (1485-1567), que era dominicano
ser despojados dos seus príncipes e pri-  Bartolomeu de las Casas (1474-1566): frade do-
das com o tempo e persuasão, e nunca
vados dos seus bens, como se não fossem minicano, cronista, teólogo, bispo de Chiapas, no  Juan Ginés de Sepúlveda: filósofo e teólogo
verdadeiros senhores/donos.”) México. Foi grande defensor dos índios, conside- espanhol. Segundo ele, os índios, assim como
rado o primeiro sacerdote ordenado na América. os negros, não tinham almas, não eram passí-
Faço duas observações importantes Sobre ele, confira a obra de Gustavo Gutiérrez, veis de salvação, não eram filhos de Deus, o
sobre esta frase: O pensamento de Bartolomeu de Las Casas (São que permitia sua escravização. (Nota da IHU
Paulo: Paulus, 1992). (Nota da IHU On-Line) On-Line)

18 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342


com a força.
e) Não admite nenhum tipo de vio-
lência ou de guerra e propõe um único
modo para a evangelização: a pregação
pacífica que tentou, de vária maneiras,
levar a cabo com a ajuda de outros pre-
O conceito de domínio
gadores. Aliás, será o único a justificar
as guerras de legítima defesa dos índios na escolástica espanhola
contra a violência dos conquistadores.
Não é possível falar num fim delimitado da escolástica, senão
IHU On-Line - Há relação entre a Segun- num modelo paulatino deste modelo. A concepção de domínio
da Escolástica e a Teologia da Liberta-
ção?
tem posição central na teoria de direitos individuais e políti-
Giuseppe Tosi - Podemos considerar Bar- cos, afirma Jorge Alejandro Tellkamp
tolomeu de Las Casas como o primeiro
teólogo e filósofo da libertação latino-
Por Márcia Junges e Alfredo Culleton | Tradução Benno Dischinger
americana devido ao reconhecimento
da alteridade dos índios enquanto indiví-

“O
duos e enquanto povos. Nesta passagem
conceito de domínio é central tanto para o desenvol-
crucial e trágica da história ocidental, a
figura de Las Casas, não somente pelo vimento de uma teoria de direitos individuais como
seu valor moral, mas também pela sua de direitos políticos. E, neste sentido, a ideia de do-
originalidade e força teórica, é um dos mínio não é importante apenas para o pensamento da
pontos mais altos da relação entre “nós” Escolástica espanhola, senão também para a filosofia
e “os outros”. A compreensão que Las política moderna em geral”. A afirmação é do filósofo mexicano Jorge Ale-
Casas adquiriu do encontro/desencon- jandro Tellkamp, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line.
tro, descobrimento/encobrimento entre Ele pontua que não se pode falar sobre um fim “temporalmente delimitado
o Velho Mundo e o Novo Mundo é uma das da escolástica, senão antes de uma mudança de percepções que se deu prin-
mais extraordinárias da nossa história. Na cipalmente com o Renascimento e com pensadores como René Descartes ou
obra de Las Casas se manifesta um dos David Hume e do desgaste paulatino deste modelo”.
pontos mais altos da “descoberta que o
Tellkamp leciona na Universidade Nacional Autônoma do México e na Uni-
eu faz do outro”, ponto que raramente
versidade Autônoma Metropolitana, também na capital do país. É graduado,
foi alcançado na consciência moderna a
ele posterior. Com efeito, a teoria que mestre e doutor em Filosofia. A graduação foi realizada na Universidade Frie-
Las Casas tanto combateu, da superiori- drich-Alexander, na Alemanha, o mestrado na Universidade Católica de Leu-
dade de uma civilização sobre as outras, ven, na Bélgica, e o doutorado na Universidade Martin-Luther, na Alemanha.
se consolidará nos séculos seguintes atra- Confira a entrevista.
vés das várias formas de eurocentrismo,
alimentado pelas ideologias do progres- IHU On-Line - Por que o domínio concebido como uma faculdade ou
so, do racismo, do (sub) desenvolvimen- é um conceito fundamental da Es- um poder a respeito de algo. As-
to, que acompanham o longo processo colástica espanhola? sim, ao falar de domínio, se está
através do qual a história da Europa se Jorge Alejandro Tellkamp - A no- enfatizando a potestade ineren-
torna história do mundo. ção de domínio (dominium) tem te a qualquer agente racional de
Pela compreensão e o reconhecimen- significado primordialmente legal usar algo ou de estabelecer pro-
to da alteridade oprimida, humilhada, e marca as discussões sobre como priedades. Por isso, com razão se
ocultada dos povos indígenas, e pela re- os indivíduos podem estabelecer destacou que, na identificação de
lação constante entre a teoria e a práxis relações com coisas e também com domínio como direito, se encontra
libertadora que ele soube realizar, pode- outras pessoas. Historicamente fa- a origem dos direitos subjetivos in-
mos a justo título considerar Las Casas lando, não se trata de um concei- dividuais, isto é, de direitos cujo
como um autêntico filósofo latino-ameri- to novo, dado que já é introduzido cumprimento qualquer indivíduo
cano da libertação. Com efeito, ele sou- pelo direito romano. Sem dúvida, a pode reclamar.
be conjugar o conhecimento da tradição partir dos séculos XIII e XIV come- Que esta ideia tenha sido cen-
e da linguagem filosófica do seu tempo çou a configurar-se um panorama tral para alguns dos mais desta-
com as trágicas e dramáticas questões político-legal inovador, no qual se cados pensadores da Escolástica
do Novo Mundo, elaborando assim um destacava a aproximação de pen- espanhola (Vitoria, Soto, Bañez,
pensamento ao mesmo tempo universal sar o domínio como um direito. O Molina, etc.) não é de se estranhar,
e autenticamente latino-americano. conceito de direito, por sua vez, é porque com ela dispuseram de um

SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 19


instrumento conceitual valioso para tringido pelas botinas espanholas da
poder discernir reclamações válidas
“Ao falar de domínio, lógica.
(por exemplo, dos indígenas de exer-
cer a posse de suas terras) daquelas
se está enfatizando a IHU On-Line - Quais seriam os re-
que não o são (por exemplo, justi- flexos e a influência da Escolástica
ficar a conquista com base no argu-
potestade inerente a na filosofia de hoje?
mento de que os indígenas não são Jorge Alejandro Tellkamp - É difícil
cristãos). Em definitivo, o conceito
qualquer agente racional falar de uma influência da Escolás-
de domínio é central tanto para o tica espanhola sobre o pensamento
desenvolvimento de uma teoria de
de usar algo ou de contemporâneo, porque isto iria bei-
direitos individuais como de direitos rar o anacronismo. Parece que não
políticos. E, neste sentido, a ideia
estabelecer é boa ideia usar textos históricos e
de domínio não é importante apenas tratar de averiguar que problemas
para o pensamento da Escolástica
propriedades” atuais resolvem. A tarefa do histo-
espanhola, senão também para a fi- riador do pensamento consiste antes
losofia política moderna em geral. em rastrear as ideias à luz de uma
IHU On-Line - A que fatores se deve leitura exata dos textos e em mos-
IHU On-Line - Qual é a influência o fim da Escolástica? trar o modo como ideias que os mes-
da Escolástica no México? Jorge Alejandro Tellkamp - Não se mos contêm foram se transformando
Jorge Alejandro Tellkamp - Desde pode falar de um fim temporalmente ao longo dos tempos. Desta maneira
que se estabeleceram estudos formais delimitado da Escolástica, senão an- se tem podido assinalar a influência
na Nova Espanha, quer dizer, no que tes de uma mudança de percepções que tiveram pensadores jesuítas so-
agora é México, tanto o método esco- que se deu principalmente com o Re- bre o pensamento político moderno,
lástico de ensino como seus conteúdos nascimento e com pensadores como por exemplo, em Grócio, Pufendorf,
tiveram importante papel. Isto tem a René Descartes ou David Hume  e do mas também em Locke e até mes-
ver com o fato de que os transmis- desgaste paulatino deste modelo. mo em Wolff. Porém, o mais visível
sores do conhecimento formal foram Isto não quer dizer que a Escolásti- testemunho da relevância do pensa-
quase exclusivamente integrantes das ca tenha chegado a um fim. De um mento da Escolástica espanhola é a
diferentes ordens religiosas, as quais, ponto de vista historiográfico, não estátua de Francisco de Vitoria que
em princípios do século XVI seguiam o é sempre claro quando termina um adorna a praça das Nações Unidas
“modelo escolástico”. Desta maneira, período e quando começa outro. De em Nova Iorque.
seguiram-se as pautas consuetudiná- fato, enquanto no século XIV Petrar-
rias, principalmente de Aristóteles, ca já criticava o pensamento esco-
porém desde logo também de Tomás lástico, este continuou vigente nos
de Aquino, João Duns Escoto, etc. Tal salões de classes por vários séculos
como o assinala Mauricio Beuchot, a mais até que a rigidez e o caráter
característica distintiva da Escolástica esquemático da lógica e da filosofia
mexicana não se dá tanto em propor natural foram vistos como obstáculo
um pensamento radicalmente novo, ao livre desenvolvimento do enge-
senão o de dar cabimento a uma série nho humano. Não é por acaso que o
de problemas novos à luz de uma me- europeu, nos finais do século XVIII e inícios do
Fausto, de Goethe, se tivesse res- século XIX. Juntamente com Schiller foi um
todologia provada, sobretudo se pen- sionários na América, regressando à Espanha dos líderes do movimento literário romântico
sarmos nos desafios morais, teológicos em 1587. Escreveu História natural e moral alemão Sutrm und Drang. De suas obras, me-
e legais que pressupôs a Conquista da das Índias. (Nota da IHU On-Line) recem destaque Fausto e Os sofrimentos do
 David Hume (1711-1776): filósofo e histo- jovem Werther. (Nota da IHU On-Line)
América. Não obstante, é preciso riador escocês, que com Adam Smith e Tho-  Samuel Pufendorf (1632-1694): jurista ale-
notar que, quanto à metodologia e mas Reid, é uma das figuras mais importantes mão. No campo do direito público, ensina que
formação, um pensador novo-hispano do chamado Iluminismo escocês. É visto, por a vontade do Estado é a soma das vontades
vezes, como o terceiro e o mais radical dos individuais que o constituem e que tal associa-
como Alonso de la Veracruz não dife- chamados empiristas britânicos. A filosofia de ção explica o Estado. Nesta concepção a prio-
re tanto de um jesuíta peruano como Hume é famosa pelo seu profundo ceticismo. ri, Pufendorf demonstra ser um precursor de
José de Acosta. Entre suas obras, merece destaque o Tratado Jean-Jacques Rousseau e do “contrato social”.
da natureza humana. (Nota da IHU On-Line) Pufendorf defende a noção de que o direito
Veja-se BEUCHOT, Mauricio. Historia de la
����������������������������  Francesco Petrarca (1304-1374): intelec- internacional não está restrito à cristandade,
filosofía en el México colonial (Herder: Barce- tual, poeta e humanista italiano, famoso, mas constitui um elo comum a todas as na-
(Nota da IHU On-Line)
lona 1966, p. 24 ss.). ��������� principalmente, devido ao seu Romanceiro. ções, pois todas elas formam a humanidade.
 Alonso Gutiérrez (1507-1584): também co- É considerado o inventor do soneto, tipo de (Nota da IHU On-Line)
nhecido como Frei Alonso de Vera Cruz, figura poema composto de 14 versos. (Nota da IHU  Christian Wolff (1679-1754): filósofo ale-
mais importante da filosofia do México durante On-Line) mão que influenciou os pressupostos raciona-
o século XVI. (Nota da IHU On-Line)  Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832): listas de Immanuel Kant. Sua primeira obra,
 José de Acosta (1539-1600): jesuíta, poeta, escritor alemão, cientista e filósofo. Como es- de 1710, chama-se Anfangs-Gründe Aller Ma-
cosmógrafo e historiador espanhol que foi para critor, Goethe foi uma das mais importantes thematischen Wissenschafften. (Nota da IHU
o Peru em 1571. Desempenhou trabalhos mis- figuras da literatura alemã e do Romantismo On-Line)

20 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342


O ius gentium e a Segunda Escolástica
A origem, a fundamentação e a atualidade do conceito de “direito das gentes” são ana-
lisadas pela filósofa portuguesa Paula Oliveira e Silva. Forte racionalidade e aposta na
capacidade humana de conhecer a realidade e o mundo que a circunda são algumas de
suas características

Por Márcia Junges e Alfredo Culleton

O
direito dos povos, originariamente chamado de ius gentium, seria algo como “um direito de-
corrente da natureza humana; não porque uma tal natureza o exija de modo absoluto, mas
pelas circunstâncias e pela condição concreta do gênero humano, situada no espaço e no
tempo”. A análise é da filósofa portuguesa Paula Oliveira e Silva, na entrevista que concedeu,
por e-mail, à IHU On-Line. Esse conceito possui forte racionalidade e aposta na “capacidade
humana de conhecer a realidade e o mundo circundante, na sua condição objetiva”. Para Tomás de Aquino,
“o ius gentium distingue-se do direito natural mas deriva intrinsecamente dele, formando-se pelas solu-
ções que a razão humana dele infere, de modo quase evidente, como conclusões próximas”.
Paula de Oliveira e Silva é pesquisadora no Instituto de Filosofia da Universidade do Porto, em Portu-
gal. É licenciada em Filosofia, mestre e doutora em Filosofia Medieval. Cursou pós-graduação em Bioética
pela Universidade Católica Portuguesa. De sua produção bibliográfica destacamos Santo Agostinho. Diálo-
go sobre o livre arbítrio (Lisboa: INCM/CFUL, 2001). Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que é o ius gentium? (Digesto, II, 4). O direito civil e o dos rio deixou de fazer sentido. Porém, a
Paula Oliveira e Silva - Tanto quanto povos aproximam-se por demais. De noção de ius gentium terá ocupado um
pude entender da investigação que fato, prossegue o texto, todos os po- lugar importante na época do flores-
levei a efeito, ao conceito de ius gen- vos que se regem mediante leis e cos- cimento do Império Romano, quando
tium – que poderíamos traduzir em tumes, fazem uso de um direito que, este não era mais do que um agregado
português por “direito das gentes” em parte, lhes é próprio e em parte de cidades diversas e dispersas. O de-
ou “direitos dos povos” – corresponde é comum a todos os povos. O direito senvolvimento das relações comerciais
uma noção algo difusa, difícil de deter- civil é como que o direito próprio da e a consequente troca de bens e servi-
minar. Deriva do fato de se apresentar cidade onde um povo se organiza. ços tornou premente a necessidade de
como um produto da tradição jurídi- Inversamente, o direito dos povos um entendimento comum aos habitan-
ca romana. Ulpiano, logo no início do é aquele que a razão natural estabele- tes das diversas cidades, mesmo que
Digesto, divide o direito em público e ce entre toda a comunidade humana, provenientes de povos diversos (M.
privado, afirmando que este é triparti- aquele que se conserva de modo equi- Velley, La formation de la pensée ju-
do e deriva ou dos preceitos naturais, valente entre todas as gentes, a modo ridique moderne, p. 342). Os juristas
ou dos povos ou dos civis (Digesto, I, de um direito de que todos os povos romanos reconheciam, por conseguin-
1,1). O direito das gentes situar-se-ia, fazem uso. Como faz notar Velley, a te, um direito natural próprio de todos
então, entre o direito natural e o di- noção de ius gentium não assume um os homens e comum a todas as nações,
reito civil, o que lhe confere à partida papel preponderante no Corpus Iuris promulgado pela razão humana e ex-
uma posição de certo modo ambígua. Civilis, pois o direito dos juristas roma- presso em normas jurídicas.
O direito natural, prosseguem as Ins- nos é sobretudo um direito da cidada-
tituições Justinianas, é aquele que nia e da cidade, um direito civil. Ora, Ius gentium, direito natural
a natureza ensina a todos os animais pelo Édito de Caracala, todos os ha- ou positivo?
– quod natura omnia animalia docuit. bitantes do Império se tornaram cida-
Este direito não é específico do gêne- dãos romanos, pelo que a consideração Mas algumas normas particulares
ro humano, mas de todos os animais de um direito comum ao povo Romano deste direito natural eram cataloga-
que nascem no céu, na terra e no mar e aos outros povos residentes no Impé- das ora como de direito natural, ora
SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 21
como de direito dos povos. O direito “Daquilo que pude admissão de um direito comum a todos
dos povos seria, neste caso, um direito os povos, decorrente de uma natureza
positivo, pois dependeria da institui- apreender, a proposta de humana também ela comum, supõe
ção humana. Por seu turno, há normas uma postura epistemológica iguamen-
de direito positivo que são apenas váli- um direito comum a te determinada: a convicção de que a
das para alguns povos e cidades. Daí a natureza humana é cognoscível na sua
tripartição que os juristas romanos fa- todos os povos, quer racionalidade e nas manifestações des-
zem do direito propriamente humano ta. Supõe, por isso, um conceito forte
em natural, dos povos e civil. O direito natural, quer positivo, de racionalidade e uma aposta confian-
dos povos seria, então, algo como um te na capacidade humana de conhecer
direito decorrente da natureza huma- supõe, antes de qualquer a realidade e o mundo circundante, na
na, não porque uma tal natureza o sua condição objetiva.
exija de modo absoluto, mas pelas cir- coisa, a concepção de
cunstâncias e pela condição concreta IHU On-Line – Por que esse conceito
do gênero humano, situada no espaço uma natureza humana é resgatado na Segunda Escolástica?
e no tempo. Esta tripartição do direito Paula Oliveira e Silva - Não creio tra-
é transmitida ao mundo medieval atra- comum, caracterizada tar-se exactamente de um “resgate”.
vés de Isidoro de Sevilha e pode ler-se O contexto em que analisei o concei-
nas Etimologias, Livro V, cap. 4-6 (PL, pela racionalidade, to de ius gentium foi efetivamente o
82, 199-200). E é esta discussão que do ensino da filosofia e da teologia na
Tomás de Aquino retoma na II-IIae da integrando-se por isso escolástica medieval. Quer isto dizer
Suma Teológica, no artigo 3, questão que o fiz em contexto do ensino nas
57, recuperando as posições de Gaio e numa concepção universidades. A partir do brevíssimo
Ulpiano e citando Isidoro. Basicamen- artigo 3, da questão 57, da II-IIae de
te, são estas as questões que se discu- naturalista do direito” Tomás de Aquino, parti para os comen-
tem, na escolástica medieval e na tra- tários posteriores, nomeadamente o
dição de comentário àquela questão e de Caetano. Avancei depois para os co-
gico, como é o caso do referido texto
artigo do Aquinate, as quais se man- mentários de Vitória e de Soto, já no
de Tomás de Aquino, e verificar como
têm no século XVI, no período áureo século XVI e produzidos no contexto
cada autor responde à questão sobre
da Escolástica Ibérica. O que está em da Escola de Salamanca, para daí ace-
a fundamentação do direito dos po-
discussão é saber se o direito das gen- der a alguns daqueles produzidos nas
vos. É uma tarefa que excede o meu
tes é um direito natural ou um direito Universidades portuguesas de Coimbra
propósito. Todavia, daquilo que pude
positivo e, em consequência, até que e Évora, na segunda metade do século
apreender, a proposta de um direito
ponto as normas dele decorrentes são XVI (nomeadamente, os comentários
comum a todos os povos, quer natural,
imutáveis – caso em que decorrem de de Antônio de Santo Domingo e de Fer-
quer positivo, supõe, antes de qual-
um ditame da natureza racional – ou, nando Perez). Sendo assim, mais do
quer coisa, a concepção de uma na-
porque de instituição humana, podem, que uma recuperação do conceito de
tureza humana comum, caracterizada
e até, desejavelmente nalguns casos, ius gentium no século XVI, o que pude
pela racionalidade, integrando-se por
devem ser abolidas. verificar foram elementos de conti-
isso numa concepção naturalista do di-
nuidade na doutrina, os quais se pren-
reito. Supõe ainda que uma tal natu-
IHU On-Line - Qual é a sua fundamen- dem, eventualmente, com um fator
reza não se esgota nos indivíduos hu-
tação teórica? externo, inerente à própria organiza-
manos, nem se exaure nas expressões
Paula Oliveira e Silva - Se a questão ção do ensino universitário da Teologia
espacio-temporais que caracterizam o
anterior poderia ser respondida com em torno da Suma Teológica de Tomás
humano na sua individualidade. É, de
base na História e na Filosofia do Di- de Aquino, cujo comentário subsistiu
fato, um bem comum e permite iden-
reito, esta outra indaga os fundamen- paulatinamente aquele das Sentenças
tificar características comportamentais
tos antropológicos e até metafísicos da de Pedro Lombardo. Era assim já em
comuns que estão para além da condi-
concepção romana e depois medieval Paris, ao tempo em que Vitória aí es-
ção geográfica e histórica da vida das
do ius gentium. Seria por isso necessá- tudou e o sistema será importado pelo
comunidades humanas. Em segundo
rio indagar cada um dos textos, desde próprio para a organização dos estu-
lugar, a consideração de um conjunto
aqueles de caráter jurídico, como pode dos em Salamanca.
de princípios comuns que viabilizem
ser o Digesto, àqueles que se inserem
a coexistência pacífica entre os povos
num debate filosófico ou mesmo teoló- Entendimento universal
 San Isidoro de Sevilha (560 – 636 d. C.): bis-
implica admitir que a condição humana
po, teólogo, compilador e santo hispanoroma- é por natureza e essencialmente soci-
Do ponto de vista doutrinal, da leitu-
no na época visigoda. Foi arcebispo de Sevilha ável e dada à partilha de bens e tare-
durante mais de três décadas (599-636) e era ra dos comentários dos autores que refe-
considerado um dos grandes eruditos dos pri-
fas. Sem esta dimensão, o ser humano
ri à Suma Teológica, II-IIae, questão 57,
meiros tempos da Idade Média. (Nota da IHU não se realiza como tal. Por último, a
On-Line) a.3 pude verificar a discussão acerca do

22 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342


fundamento natural ou positivo do direi- faria agora mais sentido. De fato, se,
to das gentes e da distinção entre aque- como evidenciei, é verdade que há uma
las normas que, promulgadas por ele, continuidade na doutrina acerca do di-
são perenes, e aquelas que podem ser reito das gentes, também é certo que a
mudadas. Para o Aquinate, o ius gentium discussão acerca de conjunto de direi-
distingue-se do direito natural mas de- tos comuns a todos os povos e nações
riva intrinsecamente dele, formando-se é posicionado no século XVI de modo
pelas soluções que a razão humana dele novo. Isso deve-se em parte à necessi-
infere, de modo quase evidente, como dade de repensar doutrinas e práticas
conclusões próximas. Para Vitória, in- face às realidades sociais e políticas
versamente, o ius gentium é uma noção que a descoberta do designado Novo
primordial, dado que pretende extrair Mundo trouxe à colação.
dele regras expressas para a convivência É hoje reconhecido o protagonismo
e relação pacífica entre os povos. O di- que Francisco de Vitória, e dos seus se-
reito das gentes mostra que os homens guidores na Escola de Salamanca, quer
sempre se entenderam universalmente na defesa da causa indígena, quer mui-
sobre alguns preceitos de direito, como to concretamente no que diz respeito à
resultado de uma reflexão racional sobre fundação do Direito Internacional. Toda-
uma natureza comum. Desta reflexão, via, essas são questões bem mais com-
que a razão humana impõe, emergem plexas do que aquela discutida stricto

Orações Ilustradas.
leis como as da liberdade dos mares e as sensu no horizonte do conceito de ius
dos direitos dos embaixadores em con- gentium ou, se quiser, este adquire um
texto de guerra. Porém, deste modo Vi- novo contexto hermenêutico, à luz da

Acesse em www.ihu.unisinos.br
tória - e Soto ainda com maior evidência discussão sobre a dignidade humana dos
- sublinha o carácter positivo do direito povos indígenas, dos seus direitos, e da
dos povos, enquanto resulta da institui- legitimidade da ocupação dos territórios
ção humana e depende do consentimen- das Américas pela coroa espanhola e
to universal de todos os povos, mais do pela coroa portuguesa. Esse é um debate
que o seu fundamento ex ipsa natura interessantíssimo e pleno de atualidade,
rei, como queria Tomás de Aquino. que se pode seguir de perto, entre ou-
Uma das questões latentes nesta tros textos, pela leitura das Relectiones
discussão é a da origem e legitimidade de Indis de Vitória e também pelos docu-
da escravatura. Os autores que estudei mentos emanados da designada Junta de
coincidem em afirmar que a escravatu- Valladolid, recolhendo a discussão entre
ra - considerada por Aristóteles como Sepúlveda e Las Casas.
uma realidade de direito natural, po- Respondendo diretamente à sua
sição que Tomás de Aquino de certo questão sobre a atualidade do concei-
modo corrobora - é uma norma de di- to de ius gentium diria: sim e não. Por
reito das gentes que pode ser revoga- um lado, o conceito de Direito Inter-
da, e, de fato, o foi, no que se refere nacional, fundado na ideia de um con-
à condição dos prisioneiros resultantes senso universal entre as nações, subs-
dos conflitos armados entre povos cris- titui aquele de ius gentium, da mesma
tãos. Porém, esta afirmação, nestes forma que o jusnaturalismo irá sendo
comentários em particular, é feita de atenuado (e até substituído) pelo di-
um modo pouco determinado. É como reito subjetivo – o direito de fazer uso
se a razão dissesse que assim deve ser, de uma coisa segundo o arbítrio pró-
mas a prática de vida e a organização prio. Por outro lado, não deixa de ser
social da época, contradizendo a razão profícua a compreensão do conceito
dos teólogos, se impusessem como re- de ius gentium e do seu lugar na histó-
alidade irrevogável. ria e na filosofia do direito. De fato, se
ele é atualmente pouco operativo em
IHU On-Line - O ius gentium é um termos de gestão das relações entre a
conceito pertinente nos dias atuais? comunidade internacional, as discus-
Por quê? sões teóricas que lhe estão na base -
Paula Oliveira e Silva - Posso intuir que, o fundamento natural ou subjetivo do
se tivesse dirigido a minha resposta à direito, a objetividade ou subjetivida-
questão anterior para onde ela parecia de da norma jurídica - são hodiernas e
querer dirigir o diálogo, esta questão de máxima pertinência.
SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 23
A influência de Ockham na Segunda Escolástica
Há um nexo indiscutível entre a filosofia do filósofo nominalista com o pensamento de-
senvolvido pela Escolástica, analisa Alessandro Ghisalberti. Ideias ockhamianas chegam
até a modernidade, em Kant e em sua filosofia moral

Por Márcia Junges e Alfredo Culleton | Tradução Benno Dischinger

G
uilherme de Ockham não foi um nominalista no sentido negativo do termo, explica o filóso-
fo italiano Alessandro Ghisalberti na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line.
“Neste sentido, muitos filósofos e teólogos da Segunda Escolástica valorizaram a teoria de
Ockham sobre os universais (contra toda forma de realismo dos conceitos), sobre a lingua-
gem científica (contra toda hipostatização de termos como essência, natureza, espaço,
tempo, movimento), e contra a proliferação das distinções que não sejam a distinção real e a de razão
(“‘Não se devem multiplicar entes sem necessidade’; eis a famosa navalha de Ockham!”) Outra contri-
buição importante desse pensador é para a ontologia, filosofia da natureza e da política ao afirmar o
primado do indivíduo em relação ao gênero e à espécie. As influências de Ockham para a Segunda Esco-
lástica são inegáveis, e chegam até a modernidade, na filosofia moral de Kant, por exemplo.
Ghisalberti é professor de História da Filosofia Medieval na Faculdade de Letras e Filosofia da Univer-
sidade Católica do Sagrado Coração de Milão, onde é diretor do Departamento de Filosofia. Membro da
Sociedade Internacional para Estudos da Filosofia Medieval (SIEPM), escreveu diversas obras, das quais
destacamos Introduzione a Ockham (Roma: Bari, 1976) e Guglielmo di Ockham (Firenze: Scritti filosofici,
1991). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a influência de muitos filósofos e teólogos da Segun- Criador”; o indivíduo, qualquer indi-
Ockham sobre a Segunda Escolástica? da Escolástica valorizaram a teoria de víduo pertencente ao mundo do de-
Alessando Ghisalberti - São dois os Ockham sobre os universais (contra vir, do movimento espaço-temporal,
elementos emergentes da historio- toda forma de realismo dos conceitos), é originado do imperscrutável ato de
grafia filosófica mais recente sobre a sobre a linguagem científica (contra liberdade com que o Criador fez sur-
valoração da obra de Guilherme de toda hipostatização de termos como gir o mundo a partir do nada inicial na
Ockham: antes de tudo, o mestre in- essência, natureza, espaço, tempo, vertente dos entes finitos. O indivíduo
glês, considerado o iniciador da “via movimento), e contra a proliferação tem a força de existir e se encontrar
moderna”, não foi um nominalista, das distinções que não sejam a distin- precisamente por sua não-repetibili-
no sentido negativo do termo. Se por ção real e a de razão (“não se devem dade, sua característica singularida-
nominalismo se entende a teoria da multiplicar entes sem necessidade”: de, a qual lhe impede de perder iden-
insignificância do universal, do seu re- eis a famosa navalha de Ockham!). tidade e consistência: sem indivíduos
duzir-se a um flatus vocis, a mera vo- a contingência já seria anulada em seu
calização convencional destituída de Primado do indivíduo esforço de nascer. A influência destas
toda carga semântica ligada ao mundo doutrinas estará muito presente nos
do pensamento e do conceito, Ockham Em segundo lugar, Ockham deu autores franceses do século XV ao
não foi nominalista. Seu nominalismo contribuições inovadoras no plano da XVIII, tanto escotistas como boaventu-
é entendido como um terminismo, ou ontologia, da filosofia da natureza e rianos, os quais reivindicam o primado
seja, como uma teoria do uso rigoroso da política, mediante a afirmação do da liberdade do sujeito contra toda
dos termos (termos mentais, ou con- primado do indivíduo com respeito ao forma de absolutismo da razão (sobre-
ceitos, orais e escritos), correspon- gênero e à espécie: presença não-re- tudo criticando Descartes), ou do po-
dente às peculiares características da petível e irreprimível no cosmo criado der político e religioso.
lógica e da linguagem. Neste sentido, e ordenado pela “infinita potência do

24 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342


IHU On-Line - Como se deu a recep- pensadores da Segunda Escolástica do homem, e a liberdade permane-
ção de Ockham pela Segunda Esco- que, nos séculos XV-XVII, retomaram ce como requisito preliminar da éti-
lástica na Itália e na Europa? e desenvolveram as doutrinas dos ca, a qual parte do reconhecimento
Alessando Ghisalberti - É difícil grandes mestres da Escolástica me- do alcance universal da lei natural.
elencar com precisão a recepção de dieval: os nomes de maior realce são Ockham define o direito natural em
Ockham na Segunda Escolástica (sé- aqueles de Tommaso de Vio (dito o sua acepção mais rigorosa como “o
culos XIV-XVII): são conhecidos os Gaetano), B. Mastri e B. Belluto para que é conforme à razão natural”, e é
nomes dos mais renomados mestres a Itália, e de F. Suarez, L. de Molina, imutável e invariável. O apelo à reti-
dos séculos XIV-XV pertencentes à F. de Vitoria, J. de Mariana e João de dão da razão natural se apóia sobre
“via moderna” da qual Ockham foi o Santo Tomás para a Europa. o reconhecimento de que o criador
iniciador (Venerabilis Inceptor): Al- Em geral se pode afirmar que aque- da natureza racional e das leis que a
berto Magno e Alberto da Saxônia, la, que comumente é chamada Segun- regulam é Deus.
Buridano, Strode, Paulo Veneto, no da Escolástica, suportou, de fato, os Sobre a fundamentação teológica
que se refere aos dialéticos verda- desenvolvimentos e o ensinamento da da ética, Ockham afirma como teólogo
deiros e próprios; Giovanni Balbi de Filosofia, da Teologia e do Direito nas que, para que um ato seja moralmen-
Gênova dito o Catholicós, Niccolò instituições escolásticas oficiais, liga- te relevante, é requerida a explícita
Trevet, Benvenuto da Imola entre das às escolas superiores (faculdades) conformidade à vontade de Deus. O
os literatos: Bartolo di Sassoferrato, religiosas ou públicas, habilitadas a sentido último da necessidade para
Baldo degli Ubaldi e Cino da Pistoia emitir títulos acadêmicos na Itália e que uma ação moral seja cumprida em
entre os juristas. A subsequente di- na Europa. adesão à vontade de Deus - ou seja, na
visão, na Europa, dos ensinamentos Os maiores filósofos da modernida- consciência de cumprir uma ação que
segundo as cátedras (tomistas, es- de, presentes nos manuais de História responde a um comando de Deus -,
cotistas, albertistas, ockhamistas), da Filosofia, não têm sido docentes coincide com a afirmação que somen-
que durou até todo o século XVI, re- nas universidades, mas pertenceram te o amor de Deus é o fim beatificante
colheu diversos seguidores, entre os a círculos de pensadores sábios ou do homem.
quais Gabriel Biel e seu mais célebre savants, que atuavam em correspon- Já destes destaques, que desen-
discípulo Martinho Lutero: sua esco- dência entre si (como o foram Descar- volverei melhor no meu relato ao
lha do ockhamismo se coloca sobre tes, Hobbes, Locke, Spinoza, Pascal, simpósio na Unisinos, emerge a im-
os desenvolvimentos de uma linha Hume). A Segunda Escolástica susten- portância, direi até a necessidade,
estritamente teológica (doutrina do tou e cumpriu, ao invés, os programas de refletir também hoje sobre temas
mérito e da graça). Na modernida- curriculares dos estudos graduados de da lei natural e do direito natural,
de, o influxo de Ockham é relevante toda a Europa. Não se pode, portanto, para encontrar um acordo entre
também nos seguidores do empiris- qualificá-la como pensamento menor as teorias éticas dos filósofos e as
mo, na lógica transcendente e na fi- ou irrelevante, tanto porque tal não é doutrinas morais dos teólogos, inda-
losofia moral de Kant. um pensamento que resistiu por três gando de modo equilibrado sobre os
É certamente notável a obra dos séculos, como porque os seus desen- traços fundantes da ética racional e
 Alberto Magno: alemão, alquimista, conhe- volvimentos produziram obras conspí- aqueles da ética revelada. Não estou
cido como “Doctor Universalis”. Ingressou na cuas e assinalaram a historicidade in- pensando apenas no conhecido deba-
Ordem Dominicana quando era estudante em telectual das universidades europeias te de tipo moral no plano da bioéti-
Pádua, em 1223. No ano de 1245, torna-se
mestre de teologia na Universidade de Paris. do século XV ao século XVII. ca ou das biotecnologias. Mas penso
Após concluir os seus estudos em Pádua e em principalmente no âmbito da antro-
Paris, optou por seguir um caminho sacer- IHU On-Line – Qual é a relação da lei pologia, na renovação do conceito
dotal, entrando na Ordem de São Domingos.
Devido sua crescente fé em Deus e em Jesus natural e direito natural em Ockham de racionalidade e na elaboração de
Cristo e sua dedicação à Ordem, foi promovido e na atualidade? um projeto sobre o sentido do agir
a superior provincial e mais tarde, nomeado Alessando Ghisalberti - Ockham humano. Considero isso fundamental
Bispo pelo Papa. Alberto Magno dominava Fi-
losofia e Teologia, matérias que aprendeu com constrói sua ética sobre a base da num mundo hoje marcado por uma
Tomás de Aquino. Foi beatificado em 1622. Pio reconhecida liberdade da vontade avançada globalização, a qual ofus-
XI declara-o santo em 1931. Em 1941, Pio XII cou e marginalizou a reflexão sobre
nomeia-o patrono daqueles que estudam ciên-  Baruch de Spinoza (1632 – 1677): filósofo
cias naturais. (Nota da IHU On-Line) holandês. Sua filosofia é considerada uma res- a importância do empenho de cada
 Martinho Lutero (1483-1546): teólogo ale- posta ao dualismo da filosofia de Descartes. um sobre os valores irrenunciáveis
mão, considerado o pai espiritual da Reforma Foi considerado um dos grandes racionalistas da pessoa humana e sobre sua aspi-
Protestante. Foi o autor da primeira tradução do século XVII dentro da Filosofia Moderna, e o
da Bíblia para o alemão. Além da qualidade fundador do criticismo bíblico moderno. (Nota ração à verdadeira felicidade.
da tradução, foi amplamente divulgada em da IHU On-Line)
decorrência da sua difusão por meio da im-  Blaise Pascal (1623-1662): filósofo, físico e
prensa, desenvolvida por Gutemberg em 1453. matemático francês que criou uma das afirma-
Sobre Lutero, confira a edição 280 da IHU On- ções mais repetidas pela humanidade nos sé-
Line, de 03-11-2008, intitulada Reformador da culos posteriores: O coração tem razões que a
Teologia, da igreja e criador da língua alemã. própria razão desconhece, síntese de sua dou-
O material está disponível para download em trina filosófica: o raciocínio lógico e a emoção.
http://bit.ly/duDz1j. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 25


A importância da Escolástica para a paleografia
Jacqueline Hamesse acentua a importância do estudo da filosofia escolástica na América
Latina, e lamenta por essa ter sido considerada, durante muito tempo, como colonial e
“importada” pelos jesuítas

Por Márcia Junges e Alfredo Culleton | Tradução Benno Dischinger

“D
e maneira geral, as notas deixadas pelos eruditos da Segunda Escolástica nas mar-
gens dos manuscritos da Idade Média, sobre as quais eles trabalhavam, são com
frequência mais difíceis de ler do que a escritura dos medievais”. A revelação é da
paleógrafa francesa Jacqueline Hamesse, na entrevista exclusiva que concedeu,
por e-mail, à IHU On-Line. Em sua opinião, a América Latina é o lugar ideal para
se empreender estudos sobre a Escolástica. “A Segunda Escolástica permaneceu por demasiado tempo
ignorada dos pesquisadores. Considerada como filosofia colonial importada principalmente pelos jesuí-
tas, ela não tem sido estudada por ela mesma durante séculos”, assinalou. Ela contou, também, sobre
os projetos de digitalização dos manuscritos e impressos na Europa e Estados Unidos, que podem inspirar
projetos de conservação dos textos deste período.
Jacqueline Hamesse é paleógrafa, professora emérita da Universitè Catholique de Louvain. De sua
produção intelectual, salientamos La vie culturelle, intellectuelle et scientifique à la cour des papes
d’Avignon (Turnhout: Brepols, 2006) e Repertorium initiorum manuscriptorum latinorum medii aevi (Tur-
nhout: Brepols, 2009). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a importância pô-los. Dever-se-ia, então, poder obter IHU On-Line - Que sentido tem em
da Segunda Escolástica para a pale- informações novas a propósito do ensi- estudar a Segunda Escolástica na
ografia? no da escritura, das abreviações ainda América Latina?
Jacqueline Hamesse - Antes de poder em vigor, bem como novas maneiras de Jacqueline Hamesse - A América La-
responder a esta questão, seria neces- abreviar certas palavras, o que permi- tina é o lugar ideal para se fazer este
sário ter previamente um recensea- tirá, no final, reunir esse novo material estudo. Com efeito, a Segunda Esco-
mento de todos os textos conservados, paleográfico para elaborar um dicionário lástica permaneceu por demasiado
que foram escritos durante este perío- de abreviações utilizadas na época. Este tempo ignorada dos pesquisadores.
do. A maioria deles deve ser a obra de servirá, em seguida, a todos aqueles que Considerada como filosofia colonial
eruditos que provavelmente redigiram abordarão a leitura dessa literatura e importada principalmente pelos
em latim. Em sua época os diversos lhes fará ganhar tempo, propondo-lhes jesuítas, ela não tem sido estuda-
tipos de escritura, em vigor durante soluções adequadas para resolver bom da por ela mesma durante séculos.
o período medieval, não eram mais número de problemas de leitura. Os pesquisadores não viam o papel
utilizados. Redigiam-se então os tex- De maneira geral, as notas deixa- desempenhado pelos escritos des-
tos de maneira mais cursiva e as escri- das pelos eruditos da segunda escolás- te período que, de fato, permitem
turas eram, consequentemente, mais tica nas margens dos manuscritos da compreender melhor a Idade Média
personalizadas e menos padronizadas Idade Média, sobre as quais eles tra- e a passagem à época moderna. Ví-
que antes. Esses textos serão, pois, de balhavam, são, com frequência, mais tima deste preconceito, a importân-
maneira geral, menos fáceis de ler e difíceis de ler do que a escritura dos cia das doutrinas filosóficas originais
decifrar. medievais. Haverá, pois, lá todo um que ela ilustra ainda não teve muito
Já que este período ainda é mal co- material novo disponível que deverá impacto sobre os estudos filosóficos.
nhecido e que numerosos textos ainda ser posto à disposição dos pesquisado- E, no entanto, numerosos documen-
não foram editados, a análise desses res para ajudá-los a ler mais facilmen- tos que datam deste período estão
documentos permitirá compreender te certas escrituras mais individuais da reunidos nas bibliotecas deste con-
melhor os métodos utilizados para com- época. tinente e deveriam ser conservadas

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em condições ótimas, já que eles possam primeiramente compreender
são os principais testemunhos desta “A Segunda Escolástica o conteúdo exato dos documentos
evolução. que têm sob seus olhos e, a seguir,
Os espanhóis e os portugueses que permaneceu por descrevê-los, a fim, igualmente, de
vieram a esta parte do mundo nos sé- poder fazer relatos exaustivos de
culos XVI e XVII trouxeram com eles demasiado tempo tudo o que eles contêm. A conser-
textos importantes da Segunda Es- vação adequada dos documentos da
colástica, obras devidas notadamen- ignorada dos época, conservados nas bibliotecas
te a professores de Salamanca e de dos diversos países da América Lati-
Coimbra. Eles continuaram a ensinar pesquisadores. na, constituirá um trabalho de longo
na América latina com a ajuda dos hálito que durará anos e necessitará
mesmos a fim de transmitir as doutri- Considerada como da ajuda de numerosos colaborado-
nas mais representativas deste movi- res. Para serem eficazes, os mesmos
mento e continuar a desenvolvê-las. A filosofia colonial devem ter a possibilidade de ir com-
Segunda Escolástica deu nascimento a pletar sua formação em outros paí-
novos escritos que merecem ser to- importada ses mais avançados nestes trabalhos
mados em consideração e que estão de conservação e que tenham longa
na linha dos ensinamentos da Escola principalmente pelos tradição de catalogação dos manus-
de Salamanca ou de Coimbra, para critos. Existem atualmente estudos
citar apenas dois exemplos entre ou- jesuítas, ela não tem sido especializados destinados a formar
tros. Eles constituem uma transição futuros catalogadores: são summer
essencial entre a época medieval e a estudada por ela mesma schools, que dão cursos intensivos
filosofia moderna e contribuem am- para essas diferentes matérias cujo
plamente para melhor compreender a durante séculos” conhecimento é indispensável para
continuidade e as diferenças existen- levar a bom termo o trabalho. Es-
tes entre as doutrinas medievais e a cultural da humanidade. Esta rique- pecialistas de outros continentes
filosofia moderna. za não pode ser perdida por falta de poderiam também vir dispensar aqui
A contribuição da América Latina conservação adequada ou de meios cursos intensivos e guiar os jovens
ao estudo deste movimento é, pois, financeiros suficientes. Depositária pesquisadores em suas pesquisas, a
fundamental e esta parte do mun- de uma herança insubstituível, a fim de lhes dar os rudimentos indis-
do, que foi o lugar privilegiado para América Latina tem o dever de ve- pensáveis para efetuar as diversas
a constituição de doutrinas novas. lar sobre esta herança. Conscientes etapas de conservação e cataloga-
Não é por acaso que numerosos pes- deste problema, os pesquisadores ção dos documentos originais.
quisadores, que são daqui originários, devem unir-se para trabalhar em O trabalho em equipe se compro-
escolheram concentrar seus estudos equipe, cada um trazendo sua pedra va indispensável para o êxito de tal
sobre este período que ainda tem ao edifício graças a suas competên- projeto. Um instituto ou um centro
muitos segredos a revelar. A Segunda cias e a uma interdisciplinaridade de pesquisa deveria ser fundado para
Escolástica ainda é demasiado pouco indispensável. Os professores atual- coordenar o conjunto do material
estudada e mal conhecida no mun- mente em atividade devem preparar recolhido e ser uma equipe da tec-
do. É, pois, tempo de remediar esta jovens para sua sucessão, a fim de nologia moderna indispensável para
lacuna e é aos pesquisadores deste que eles possam assumir a tarefa de aí chegar. Os esforços não devem ser
continente que cabe fazer frutificar a substituí-los. O trabalho será longo dispersos, mas uma estreita colabo-
herança intelectual que eles recolhe- e uma geração não será suficiente ração deve existir entre todos com o
ram. Existe aí um campo de estudos para realizar todos os trabalhos ine- intuito de nada se perder dos resul-
totalmente original que pode revelar- rentes a esta conservação. tados já obtidos e se otimizar as in-
se muito rico em descobertas e abrir Parece-me que estudantes de va- formações disponíveis. Cada um, ao
novas pistas de investigação. lor devem ser formados prioritaria- seu modo, poderá ser útil e trazer
mente, desde hoje, para poderem sua pedra ao novo edifício.
IHU On-Line - Como podemos compre- ajudar de maneira adequada para o
ender a necessidade da manutenção e êxito deste empreendimento. A pri- IHU On-Line - Existem ajudas inter-
preservação deste material bibliográfi- meira exigência é a de terem um bom nacionais para preservar estes patri-
co antigo, já que os custos de conser- conhecimento do latim. Seus profes- mônios da Segunda Escolástica?
vação serão muito elevados? sores deveriam, além disso, encora- Jacqueline Hamesse - Já existem
Jacqueline Hamesse - Os colegas da já-los a completarem sua formação grandes projetos de digitalização dos
América Latina têm neste nível uma estudando de maneira aprofundada manuscritos e de impressos na Europa
responsabilidade muito grande. Eles as ciências auxiliares da história (pa- e nos Estados Unidos que poderiam
detêm toda uma parte do patrimô- leografia, codigologia, diplomática, servir de modelo para a conservação
nio mundial que pertence à história crítica textual etc.), a fim de que dos textos da Segunda Escolástica.
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Certas etapas poderiam ser financia-
das para permitir aos pesquisadores
da América Latina aprender a tarefa
neste terreno, sendo enquadrados
por especialistas. Uma colaboração
internacional deveria ser organizada O ser humano repensado
a seguir. Financiamentos de grandes
projetos já existem na Europa e nos pela escolástica
Estados Unidos. A América Latina po-
deria certamente ser associada aos Compreensão cristã do ser humano e suas bases de convivência
mesmos.
social marcam a Segunda Escolástica, que vai de 1500 a 1800,
IHU On-Line - Qual é seu ponto de assinala o filósofo Alfredo Storck. Através dos jesuítas, essa
vista a propósito da realização do corrente de pensamento filosófico influenciou decisivamente
17º Colóquio anual da Sociedade In-
ternacional para Estudos da Filosofia
na formação das universidades brasileiras
Medieval – SIEPM no Brasil?
Jacqueline Hamesse - Trata-se de Por Márcia Junges e Alfredo Culleton
uma excelente iniciativa desejada

T
pelos membros do conselho da SIE-
PM a fim de fazer conhecer melhor ambém chamada de escolástica moderna, tardia ou barroca, a
as realizações aí concretas já exis- Segunda Escolástica abarca o período de 1500 a 1800 e é carac-
tentes no domínio filosófico. Seria terizada “pela necessidade de repensar a compreensão cristã do
indispensável hospedar um evento ser humano assim como as bases de sua convivência em sociedade
científico desta dimensão para sen-
frente às grandes mudanças políticas, sociais e econômicas que
sibilizar os pesquisadores dos ou-
atravessaram o período”. A afirmação é do filósofo gaúcho Alfredo Storck, na
tros países sobe as potencialidades
presentes neste país. Este evento entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, “um dos
também permitirá pôr em contato traços mais característicos desse movimento é a criação de um modelo de
os participantes europeus e ameri- direito natural no qual o Direito e o Estado são concebidos como fundados
canos com seus colegas dos diversos na concepção teocêntrica cristã da qual é derivada a autoridade do rei,
países da América Latina, intensifi- bem como diversas obrigações éticas e jurídicas”. A respeito da influência da
cando os elos que, em certos casos, escolástica na formação das universidades brasileiras, Storck relembra a im-
já existem e permitindo a todos de portância dos jesuítas desde a formação cultural no Brasil colônia: “Durante
melhor se conhecerem. Depois de todo o período colonial, os principais estabelecimentos de ensino serão os
2007, pela primeira vez na história colégios jesuítas”.
da SIEPM (fundada em 1958), um Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
brasileiro foi eleito membro do bu-
– UFRGS e em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis – Uniritter, é
reau (conselho) da Sociedade. Isto
mestre em Filosofia pela UFRGS e doutor nessa mesma área pela Universidade
é um reconhecimento importante
da Comunidade internacional para o François Rabelais, na França, com a tese Les modes et les accidents de l´être:
trabalho já concluído e a qualidade Etude sur la métaphysique d´Avicenne et sa réception en Occident. É pós-dou-
dos trabalhos realizados por certos tor pela Universidade de Paris. Professor no departamento de Filosofia da UFR-
pesquisadores da América Latina. GS, escreveu A filosofia medieval (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003)
Graças a este encontro, a SIEPM po- e organizou Norma, moralidade e interpretação: temas de filosofia política e
derá sensibilizar de maneira mais do direito (Porto Alegre: Linus Editores, 2009). Confira a entrevista.
eficaz a comunidade internacional e
conduzir, deste modo, seu padroado
aos projetos futuros concernentes à IHU On-Line - Qual é a influência da convivência em sociedade frente às
Segunda Escolástica. A obtenção de Segunda Escolástica no Brasil? grandes mudanças políticas, sociais e
subsídios e de créditos de pesquisa Alfredo Storck - A Segunda Escolás- econômicas que atravessaram o perí-
locais será facilitada pela presença tica, também conhecida como esco- odo, mas também face às mudanças
da SIEPM no Brasil e valorizará os es- lástica moderna, escolástica tardia provocadas pela reforma religiosa e
forços já realizados por nossos cole- ou ainda escolástica barroca, é o pe- pelos novos modelos científicos sur-
gas deste país. ríodo que vai de 1500 a 1800 e que gidos nos séculos XVI e XVII. Durante
se caracterizou pela necessidade de a Segunda Escolástica, teólogos es-
repensar a compreensão cristã do ser panhóis e portugueses enfrentaram
humano assim como as bases de sua esses desafios com uma intensa ati-
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vidade criativa em diversas áreas do nós conhecemos o que ele deixou em
conhecimento e que fazia acompanhar
“A partir de meados do dois manuscritos (que, aliás, eu pre-
a especulação teórica pela atividade tendo editar) e que são um comentá-
mais prática ligada aos assuntos da
século XVI, os jesuítas rio à Física de Aristóteles e um outro
Igreja e pela atuação como conselhei- ao Tratado da Interpretação, também
ros dos reis.
instalam no Brasil (Rio de Aristóteles. Tolossa redigiu esses
Um dos traços mais característicos comentários em um ambiente cultural
desse movimento é a criação de um mo-
de Janeiro, Bahia e Pará) de grande fecundidade entre os jesu-
delo de direito natural no qual o Direito ítas do Colégio das Artes de Coimbra,
e o Estado são concebidos como fun-
colégios semelhantes ao talvez mesmo o período áureo da filo-
dados na concepção teocêntrica cristã sofia portuguesa e que será conhecido
da qual é derivada a autoridade do rei,
Colégio das Artes como a época dos conimbricenses. To-
bem como diversas obrigações éticas e lossa foi o quarto provincial do Brasil
jurídicas. Debates sobre a usura, sobre
português, para o ensino e o seu sucessor foi José de Anchieta,
o valor de troca ou o sobre preço justo personagem com diversas qualidades e
a ser pago por um bem são recorren-
da Filosofia, Teologia e de grande importância também para a
tes, como também o são os problemas literatura brasileira.
ligados à ocupação do novo mundo e à
Humanidades” Durante todo o período colonial, os
condição de seus habitantes. Lembre- principais estabelecimentos de ensino
mos aqui a célebre defesa, por Barto- foi defensor dos índios, opondo-se à serão os colégios jesuítas. Cabe tam-
lomeu de las Casas, de que os índios sua exploração e escravidão, defen- bém salientar que, ainda no século
são seres livres, dotados de dignidade deu ainda a causa dos judeus, o que XVI, os jesuítas tentaram transformar
e que são plenamente capazes de rea- lhe valeu alguns problemas com os do- seus colégios, sobretudo o baiano, em
lizar uma sociedade mais próxima dos minicanos da Inquisição. universidades, mas o pedido encon-
evangelhos. Há ainda debates impor- trou resistência da Coroa portugue-
tantes à época, como a liberdade dos IHU On-Line - A formação das univer- sa, fazendo com que os egressos dos
mares, que envolveu Hugo Grócio, e a sidades no Brasil recebeu influência colégios devessem ir estudar em Por-
defesa da autoridade do rei por direito da escolástica? Se sim, qual seria? tugal. Os primeiros cursos superiores
divino. O Colóquio Anual da Sociedade Alfredo Storck - Antes de falar do sur- são criados com a vinda da família real
Internacional para Estudo da Filosofia gimento das universidades no Brasil, para o Brasil. O primeiro a ser criado
Medieval, que neste ano ocorrerá em convém lembrar alguns fatos acerca é o curso médico de cirurgia da Bahia.
Porto Alegre, enfocará esses temas e da formação cultural no Brasil colônia. Em 1827, surgem os cursos jurídicos
conferirá especial interesse ao pensa- Nesse sentido, não há como não des- em São Paulo e Olinda. Mas esse mo-
mento jusnaturalista. tacar a participação da Companhia de vimento de criação de cursos ocorre
Jesus nesse período, reflexo do papel após a expulsão dos jesuítas do Brasil,
A escolástica no Brasil que os jesuítas exerciam na cultura em 1759. Já a primeira universidade
portuguesa, sobretudo desde que D. a ser criada em nosso país será a Uni-
Quanto à influência da Segunda João III lhes entregou, em 1555, o Co- versidade do Rio de Janeiro, mas isso
Escolástica no Brasil, há diversos as- légio das Artes. A partir de meados do em 1920.
pectos a considerar. Em primeiro lu- século XVI, os jesuítas instalam no Bra-
gar, basta levarmos em conta que os sil (Rio de Janeiro, Bahia e Pará) colé- IHU On-Line - Como os paradigmas
principais expoentes do período per- gios semelhantes ao Colégio das Artes desenvolvidos pela primeira e Segun-
tenciam à Península Ibérica, para per- português, para o ensino da Filosofia, da Escolástica impactaram no direito
cebermos que a difusão de suas ideias Teologia e Humanidades. Os primeiros brasileiro?
esteve associada à expansão marítima cursos superiores de Filosofia e Teolo- Alfredo Storck - A expulsão dos jesu-
e ao processo colonizador espanhol gia no Brasil foram criados na Bahia e ítas de Portugal e do Brasil deve ser
e português. Essa influência deixa-se foram ministrados por Inácio Tolossa vista no contexto político maior das
perceber em diversos aspectos da cul- (teologia) e Gonçalo Leite (dialética mudanças introduzidas pelo Marquês
tura e da vida administrativa do Brasil e filosofia) em 1574. Olhando para a de Pombal (1699-1782) e que levarão
colonial. Um bom exemplo de inte- formação desses professores, teremos à reforma dos estatutos da universida-
lectual do período é o Padre Antônio uma boa ideia de como os cursos eram de portuguesa, em 1772. A Universida-
Veira (1608-1697), nascido em Portu- concebidos. Inácio Tolossa, por exem- de de Évora é extinta e a Universidade
gal, mas que veio com seis anos para plo, era um espanhol que entrou na
o Brasil, estudou no Colégio dos Jesuí- Companhia em 1560 e doutorou-se na  Sebastião José de Carvalho e Melo (Marquês
Universidade de Évora. Ensinou por al- do Pombal – 1699-1782): nobre e estadista por-
tas em Salvador e passou boa parte da tuguês. Foi secretário de Estado do Reino du-
vida entre Portugal e o Brasil. Além de gum tempo em Coimbra, fez seus votos rante o reinado de D. José I (1750-1777), sen-
notabilizar-se pelo gênio literário que e solicitou ser enviado para o Japão, do considerado, ainda hoje, uma das figuras
mas veio parar no Brasil. De sua obra, mais controversas e carismáticas da História
conhecemos em seus Sermões, Vieira Portuguesa. (Nota da IHU On-Line)

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de Coimbra sofre grandes mudanças,
afetando diretamente os estudos jurí-
dicos. Tentava-se com isso banir a in-
fluência dos grandes juristas medievais
e intérpretes do direito romano, como
Bártolo de Sassoferato, bem como o A escolástica e os direitos humanos
uso do método escolástico. Os cursos
jurídicos criados no Brasil seguem o João Madeira entende que a formação escolástica não foi in-
espírito dessa reforma. compatível com uma postura crítica da colonização das Américas
Um bom exemplo de intelectual
brasileiro e jurista brasileiro que vive
nesse período é Tomás Antônio Gon- Por Alfredo Culleton, Márcia Junges e Graziela Wolfart
zaga. Na verdade, trata-se de alguém

“U
nascido em Portugal, de mãe portu-
guesa, pai brasileiro, e que veio morar m estudo aprofundado de temas escolásticos, como a
muito cedo no Brasil. Bastante conhe- diferença entre o direito natural e o direito positivo,
cido na literatura brasileira por Marília o problema do mal, e a noção de ‘corpo político’, cer-
de Dirceu, Tomás era, além de poeta, tamente enriqueceriam o debate sobre as bases da po-
jurista. Cursou direito na Universidade lítica latino-americana, desde o período colonial, pas-
de Coimbra, formando-se bacharel em sando pelos processos de independência dos vários estados e chegando até
1768, ou seja, pouco antes da reforma os dias atuais”. A consideração é de João Madeira, filósofo, na entrevista que
dos estatutos. Tomás escreveu um Tra- concedeu por e-mail à IHU On-Line. Para ele, “o aristotelismo português as-
tado de Direito Natural bem ao sabor sume no Brasil, tanto quanto em Portugal, uma posição média e estratégica
do pensamento da Segunda Escolásti-
para uma perfeita concepção da Filosofia, não só como disciplina normativa
ca. Ele cita amplamente os autores do
suscetível de contingências históricas, mas também como atitude reflexiva
direito romano e os autores escolásti-
cos e ataca os jusnaturalistas moder- atemporal. Os missionários e autoridades da administração do Brasil eram
nos, como Pufendorf e Hugo Grócio. egressos daquele ensino”. E lembra que “a escolástica sempre se pautou
Até o momento, mencionei alguns pela abertura a ideias e a saberes de outras fontes, que não se restringiam
aspectos da influência direta da segun- ao familiar e já conhecido”.
da escolástica no Brasil colonial, pois o Graduado em Filosofia pelas Faculdades Claretianas de Batatais e em Teo-
país foi, naquela época, marcado pelo logia pelo Centro de Estudos da Arquidiocese de Ribeiro Preto, João Madeira é
pensamento de autores portugueses. especialista em Filosofia Contemporânea pela Pontifícia Universidade Católica
Todavia, seria um erro pensar que a de Minas Gerais (PUC-MG), mestre em Filosofia pela Universidade Católica de
influência dos grandes filósofos limi- Louvain-la-Neuve e doutor em Filosofia pela mesma instituição, com a tese
ta-se à sua época. No Brasil, um autor Pedro da Fonseca’s Isagoge Philosophica and the Predicables from Boethius to
da primeira escolástica que marcou e
the Lovanienses. Fez pós-doutorado em História das Ciências na Universidade
continua marcando as mentalidades,
de São Paulo (USP). Membro do Centro de Filosofia Brasileira (CEFIB) da Uni-
tanto no mundo jurídico quanto fora
dele, é, sem dúvida, Tomás de Aqui- versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é professor de História da Filosofia
no. A influência do tomismo praticado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Confira a entrevista.
por diversos filósofos cristãos no sécu-
lo XX é bastante forte, sobretudo na
IHU On-Line - Como a Segunda Es- foi entregue aos jesuítas em 1º de
primeira metade do século passado.
colástica se insere na filosofia no outubro de 1555. Os jesuítas tinham
Mesmo hoje, autores como John Fin-
Brasil? ainda outros colégios em Portugal e
nis, australiano radicado nos Estados
João Madeira - Para contextualizar a a direção da Universidade de Évora.
Unidos e que ensina filosofia do direito
relação entre a Segunda Escolástica O ensino dos jesuítas foi gestado no
em Harvard, reivindica uma versão do
e a filosofia no Brasil, é necessário contexto da Contra-Reforma e ten-
direito natural inspirada em Tomás de
lembrar o fato de que os missionários do como pano de fundo a luta entre
Aquino.
e os encarregados da administração, aristotélicos e antiaristotélicos, que
enviados de Portugal para o Brasil precedeu o surgimento da ciência
ao longo dos primeiros séculos de e da filosofia modernas. Conhecido
 Confira nas Notícias do Dia 12-01-2008, do colonização, foram todos formados como Ratio Studiorum, o método
site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a no contexto da Segunda Escolástica. de estudos dos jesuítas estabeleceu
entrevista com o Prof. Dr. Wilson Engelmann, Talvez, o caso mais emblemático seja regras para o ensino de disciplinas
intitulada As nanotecnologias, Uma reflexão
ética a partir de John Finnis, disponível para o dos missionários jesuítas. Isto por- como a lógica, a psicologia, a ética,
download em http://bit.ly/9DZ2vQ. (Nota da que o Colégio das Artes de Coimbra as matérias referentes às ciências da
IHU On-Line)

30 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342


natureza (especialmente a física) e a desde aquele tempo, há também o
metafísica. O grande objetivo decla-
“O ensino dos jesuítas foi fato de que era uma disciplina geral e,
rado era não apenas ser a melhor pre- portanto, não específica sobre a políti-
paração para os estudos posteriores
gestado no contexto da ca latino-americana. O que posso dizer
de Teologia, de Medicina e de Direito, a este respeito é que um estudo apro-
mas também ser o mais solidamente
Contra-Reforma e tendo fundado de temas escolásticos, como
fundado na doutrina aristotélica, em a diferença entre o direito natural e
Filosofia e no tomismo, em Teologia,
como pano de fundo a o direito positivo, o problema do mal,
sem, contudo, jamais descuidar da e a noção de “corpo político”, certa-
busca pela verdade, quaisquer que
luta entre aristotélicos e mente enriqueceriam o debate sobre
fossem suas fontes. as bases da política latino-americana,
antiaristotélicos” desde o período colonial, passando
Humanismo renascentista pelos processos de independência dos
e escolasticismo Validade objetiva no ensino filosófico vários estados e chegando até os dias
atuais.
Frequentemente se considera que No âmbito da mudança de uma
o humanismo renascentista foi uma tradição científica decadente – o aris- IHU On-Line – O senhor percebe uma
superação completa e que estava em totelismo escolástico refratário ao relação entre a escolástica e os mo-
oposição total ao escolasticismo. Se humanismo – para o modelo matemáti- vimentos revolucionários em nosso
esta separação radical entre estas duas co-experimental das ciências da natu- continente? Se sim, quais seriam es-
orientações filosóficas fosse real, gran- reza, a introdução da necessidade de ses nexos?
de parte da filosofia dos séculos XVI e validade objetiva no ensino filosófico João Madeira – Novamente, tenho que
XVII seria totalmente incompreensí- permitiu aos jesuítas contribuírem, dizer que não sou estudioso dos movi-
vel. A mútua influência e interdepen- através do Ratio Studiorum, não só mentos revolucionários no continente
dência entre renascimento e filosofia para a formação de homens como Ga- americano e, desta maneira, não tenho
escolástica ainda é mais evidente na lileu e Descartes, como também para como analisar possíveis relações com a
filosofia da península ibérica daqueles a superação definitiva do dogmatismo escolástica. O que sei é que o método
dois séculos. O ensino da Filosofia em de que se revestira aquele tipo de escolástico favorecia o debate. Havia
Portugal, entre 1500 e 1772, foi pau- aristotelismo. Independentemente de inclusive um momento importante dos
tado pelo estudo dos clássicos e dos qualquer juízo de valor, a exigência de estudos que os escolásticos chama-
principais autores de cada escola da fi- validade objetiva no estudo filosófico vam de “disputas”. Contudo, entre a
losofia medieval. Este estudo era pos- é por si só suficiente para caracterizar abertura para as disputas em torno de
sível, sobretudo, pela ênfase no ensino um autêntico aristotelismo português ideias e os movimentos revolucioná-
cuidadoso das línguas grega e latina. como sendo também o âmbito das pri- rios há um passo enorme. Ainda que
Um dos objetivos principais do estudo meiras pesquisas filosóficas no Brasil. revoluções sejam inspiradas por ideais
dos clássicos era inculcar nos jovens O aristotelismo português assume no e executadas por indivíduos com ta-
estudantes os mesmos sentimentos e a Brasil, tanto quanto em Portugal, uma lento e combatividade aguçados, não
mesma nobreza de caráter que brota- posição média e estratégica para uma são travadas apenas ao nível das dis-
va dos textos de autores como Cícero perfeita concepção da Filosofia, não cussões teóricas, mas envolvem ações
e Quintiliano. O caráter escolástico só como disciplina normativa suscetí- decisivas. Não era o caso das “dispu-
do ensino de Filosofia sob o Ratio Stu- vel de contingências históricas, mas tas” escolásticas, que exigiam talento
diorum é evidente. Todavia, convém também como atitude reflexiva atem- e combatividade, mas que não eram
destacar que o aristotelismo defendi- poral. Os missionários e autoridades da voltadas para ações. Talvez, não se
do no Colégio das Artes de Coimbra, administração do Brasil eram egressos deva generalizar a partir de poucos
desde a sua fundação, não é o mesmo daquele ensino. exemplos, mas pelo menos no caso de
aristotelismo escolástico combatido Bartolomeu de Las Casas e de Antonio
em várias universidades europeias dos IHU On-Line - Quais são as influên- Vieira, a formação escolástica não foi
séculos XV e XVI. Humanistas contro- cias da escolástica na política latino- incompatível com uma postura crítica
versos como Pedro Ramus, que foi um americana? da colonização das Américas. Pode-se
conhecido professor da Universidade João Madeira - Tenho um pouco de di- dizer que, tendo sido formados den-
de Paris, entraram em polêmica com ficuldade para responder a esta ques- tro do contexto da Segunda Escolásti-
os aristotélicos de seu tempo. tão, pois as áreas da Filosofia em que ca, Las Casas em Salamanca e Vieira
 Marco Túlio Cícero (106 a.C.-43 a.C.): filó- tenho trabalhado nos últimos anos são em Salvador da Bahia, foram árduos
sofo, orador, escritor, advogado e político ro- defensores de uma mudança radical
mano. (Nota da IHU On-Line)
a lógica, a metafísica e a história da
 Marcus Fabius Quintilianus (35-95): profes- Filosofia. Na graduação em Filosofia, no foco da ação de espanhóis e portu-
sor de Retórica na Roma Antiga. (Nota da IHU ainda na juventude, cursei a disciplina gueses nas Américas, principalmente
On-Line) ao defenderem que os indígenas não
 Petrus Ramus (1515–1572): filósofo e huma-
Filosofia Política. Contudo, além dos
(Nota da IHU On-Line)
nista francês. ��������� quase vinte anos que já se passaram podiam ser vistos como meios para o
SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 31
enriquecimento das metrópoles, em “Entre a abertura para João Madeira - A abertura para o diálo-
nenhuma circunstância. go com opiniões diferentes e para con-
as disputas em torno de tribuições de outras áreas da cultura
IHU On-Line - Pode-se falar entre sempre foi uma característica marcante
uma convergência de princípios en- ideias e os movimentos da escolástica. Desde Boécio até Fran-
tre a escolástica e os direitos huma- cisco Suárez houve grande preocupação
nos? Por quê? revolucionários há um com o estudo das sete artes: as três ar-
João Madeira - Do ponto de vista da tes da linguagem e as quatro artes ma-
metafísica, ou seja, dos princípios e passo enorme” temáticas. Foram os escolásticos que se
abordagens gerais da natureza em ge- preocuparam em traduzir as obras dos
ral e da natureza humana em particu- humanos, ou seja, entre um ser huma- filósofos árabes para o latim e que os
lar, fica claro que há uma relação entre no e outro, não haveria diferença es- estudaram com grande interesse, mes-
alguns postulados da escolástica e os pecífica, mas que cada ser humano é mo sabendo que se tratavam de autores
direitos humanos. Uma questão discu- igual em dignidade. Ora, este último de outra religião, com a qual o ociden-
tida na escolástica era a das diferenças ponto está justamente na base da de- te cristão esteve por séculos em guer-
entre as várias espécies que pertencem claração universal dos direitos da pes- ra. Isto me parece sinal evidente de que
a um mesmo gênero e a diferença que soa humana, pois tal declaração inicia- havia abertura para buscar a verdade,
pode haver entre os indivíduos de uma se afirmando a “dignidade inerente a qualquer que fosse a fonte onde pudesse
mesma espécie. No que se refere às todos os membros da família humana”. ser encontrada. Mesmo diante de tantas
diferenças entre diferentes espécies A declaração soma, ao reconhecimento diferenças, os escolásticos não recua-
de um mesmo gênero, os escolásticos desta dignidade, a afirmação dos “di- ram. Portanto, parece acertado dizer
diziam haver uma differentia specifica reitos iguais e inalienáveis” da pessoa que a escolástica sempre se pautou pela
(característica própria de uma espécie humana e diz que são “o fundamento abertura a ideias e a saberes de outras
que estaria ausente de todas as outras da liberdade, da justiça e da paz no fontes, que não se restringiam ao fami-
espécies do mesmo gênero). Assim, os mundo”. A metafísica escolástica seria, liar e já conhecido.
escolásticos diziam que a racionalidade assim, a base da base ética da declara-  Anício Mânlio Torquato Severino Boécio
era uma diferença específica dos seres ção dos direitos humanos. (480-524 ou 525): mais conhecido simples-
humanos e que, portanto, não estaria mente por Boécio, foi um filósofo, estadista
presente em qualquer dos outros ani- e teólogo romano que se notabilizou pela sua
IHU On-Line - Qual é a atualidade tradução e comentário do Isagoge de Porfírio,
mais. O ponto importante era que os da escolástica em termos de diálogo obra que se transformou num dos textos mais
escolásticos diziam que entre os seres com outros saberes? influentes da Filosofia medieval europeia.
(Nota da IHU On-Line)

XII Simpósio Internacional IHU – A Experiência


Missioneira: território, cultura e identidade

25 a 28 de outubro de 2010

Data de início: 25 de outubro


de 2010
informações em

Local: Unisinos • Anfiteatro Pe. Werner


www.ihu.unisinos.br
Av. Unisinos, 950 • São Leopoldo • RS
Informações e inscrições:
www.ihu.unisinos.br ou (51) 3591 1122
3URPRomR $SRLR

32 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342


A Escola de Salamanca e a Segunda Escolástica
Contexto e importância da Segunda Escolástica, bem como o projeto Scholastica Colonia-
lis, conduzido por Roberto Hofmeister e Alfredo Culleton, são tema do artigo do filósofo
espanhol Angel Poncela González

Por Ángel Poncela González | Tradução Benno Dischinger

U
ma proposta ambiciosa e necessária para “ativar o interesse pelo estudo e pela difusão
do pensamento da Segunda Escolástica em nível mundial”. Assim o filósofo espanhol Angel
Poncela González define o Projeto Scholastica Colonialis, conduzido por Roberto Hofmeister,
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e Alfredo Culleton, da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. A respeito da Escola de Salamanca, González afirma que
“não existe um acordo unânime dentro da comunidade científica acerca da natureza, dos traços carac-
terísticos e da relação de autores que a integram”. As reflexões fazem parte do artigo a seguir, escrito
especialmente à IHU On-Line.
Ángel Poncela González é licenciado em Filosofia e em Humanidades pela Universidade de Salamanca.
Sua monografia está em processo de edição e intitula-se As raízes do pensamento jurídico europeu. Teo-
rias da justiça e do direito das gentes. É doutor em Filosofia pela Universidade de Salamanca com a tese
Francisco Suárez, leitor de Metafísica IV e XII. Possibilidade e limite da aplicação da tese Onto-teo-lógica
às disputas metafísicas, também em processo de edição. Desde 2008, é professor no Departamento de
Filosofia e Lógica e Filosofia da Ciência da Universidade de Salamanca e é coordenador do bacharelato da
mesma. Confira o artigo.

Penso que deveríamos situar o Zubiri, deixando à margem toda uma por pensar os problemas de seu tempo
principal influxo de Salamanca preci- plêiade de historiadores cuja menção desde uma ótica aristotélico-tomista.
samente na origem do movimento de seria quase impossível esgotar.
recuperação do pensamento escolásti- Partindo do magistério do domini- Interesses do Império
co medieval, ou seja, da Segunda Es- cano Francisco de Vitoria – catedráti-
colástica. Salamanca e, em concreto, co de Prima Teologia no estudo sala- Tais problemas constituíam os
as aulas de seu “Estudo Geral” na atu- manquense desde 1526 até 1546 e sua mesmos que foram demandados pelo
al universidade, é o lugar no qual se ação de implantar a Suma Teológica sistema político do momento, ou
produziu a renovação da Filosofia Es- como livro-texto, em substituição do seja, a monarquia imperial espanho-
colástica e, de maneira particular, da manual oficial (o conhecido Libro de la caracterizada, entre outras mui-
via tomista, que acabou exaurida no las Sentencias de Pedro Lombardo), tas coisas, por atribuir a si a tarefa
século XIV pelos excessos e sutilezas junto à imposição do método do dita- apostólica da salvação das almas de
das diversas interpretações lógicas às do nas salas de aula –, foi se forjando todo o orbe por meio da evangeli-
quais foi submetida, sendo finalmen- uma tendência filosófica caracterizada zação da doutrina cristã católica. É
te eclipsada pelo humanismo italiano. valho, Pampa. Um espaço humano de promes- a partir deste apostolado, primeiro
Tal recuperação daria lugar ao perío- sas e realizações, concedida à IHU On-Line nº nas Índias e mais tarde no continen-
do histórico que, dentro da Filosofia, 190, de 07-08-2006, disponível em http://mi- te europeu, que surge toda uma sé-
gre.me/16MA9. (Nota da IHU On-Line)
conhecemos como a Segunda Escolás-  Xavier Zubiri (1898-1983): filósofo espanhol rie de problemas de tipo pragmático
tica. Assim tem sido reconhecido pela cuja pesquisa e reflexão se concentrou, fun- que o Império deve resolver. São fre-
maioria dos filósofos do século vinte, damentalmente, nos campos da Teoria do Co- quentes, nesta época, as consultas
nhecimento, da Ontologia e da Gnoseologia.
se bem que com diversos matizes, tais Em sua juventude, Zubiri estudou filosofia no dos políticos espanhóis aos teólogos
como Ortega y Gasset, Heidegger ou Instituto Superior de Filosofia da Universidade de Salamanca, presenciais ou me-
 José Ortega y Gasset (1883-1955): filósofo de Louvain, na Bélgica. Em 1921, Zubiri obteve diante correio, buscando os modos
espanhol, que atuou também como ativista doutorado em filosofia pela Universidade Com-
político e jornalista. Sobre o autor, confira a plutense de Madrid. No mesmo ano, foi orde- teóricos de harmonizar o que deno-
entrevista concedida por José Maurício de Car- nado diácono. (Nota da IHU On-Line) minamos o “choque de civilizações”
SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 33
com os interesses do Império espa- do pensamento da Segunda Escolás-
nhol, tanto materiais quanto espiri-
“Desta maneira, a Escola tica em nível mundial. O estudo da
tuais. E, são igualmente frequentes História da Filosofia em geral e, com
as publicações de escritos dos esco-
de Salamanca abandona particular insistência da Filosofia do
lásticos salamanquenses, nos quais século XX, na qual nos educamos como
se oferece resposta aos problemas
sua forma circular jovens investigadores que participa-
gerados pela conquista, por exem- mos do projeto, revela uma reutili-
plo, à questão concreta das Leis No-
perfeita para zação constante, por parte daquelas,
vas (1542); e, em particular, à fór- das metodologias, conceitos e teorias
mula do “requerimento”, ilustrada
converter-se numa herdadas da escolástica, como modo
na apaixonante polêmica sustentada de enfrentar os problemas contempo-
entre Sepúlveda e Las Casas e que
semente comum da qual râneos. Cabe, portanto, pensar não só
terminará nas instruções de Vallado- na genialidade daqueles pensadores
lid, de 1556, nas quais se autorizou
brota o pensamento do período moderno e barroco, senão
o estabelecimento dos espanhóis no na potencialidade daquelas teorias e
Novo Mundo, sem dano nem violên-
moderno conceitos, a fim de serem aplicados
cia aos indígenas. a âmbitos diversos dos originais, de
hispano-americano” maneira semelhante ao modo como
Escola de Salamanca fizeram os membros participantes do
lhes foi demandando sua época. É um
movimento filosófico salamanquense.
eixo que podemos estabelecer desde
Em primeiro lugar, é mister assi- O projeto se encontra, na atuali-
o começo da docência vitoriana até
nalar que, pese ao aparente do caso, dade, em fase de aprovação, embora
meados do século XVII, dois séculos
não existe um acordo unânime dentro caiba pensar que terá uma valoração
que coincidem historicamente com o
da comunidade científica acerca da positiva, dado seu grande interesse.
predomínio da instituição monárquica
natureza, dos traços característicos e Além de fomentar o intercâmbio de
espanhola, no primeiro século, e do
da relação de autores que integram a alunos de mestrado e de investiga-
papado agasalhado pela Companhia
chamada Escola de Salamanca. E, por dores entre todas as universidades
de Jesus, no século seguinte. Des-
isso, é fundamental mostrar, de saí- participantes, se facilitará o acesso
ta maneira, a Escola de Salamanca
da, o conceito que cada investigador e a difusão do conhecimento cientí-
abandona sua forma circular perfei-
maneja acerca da Escola. Se adotar- fico através de ações concretas de
ta para converter-se numa semente
mos uma visão rígida, característica, implementação informática ao cam-
comum da qual brota o pensamento
embora não exclusiva nem excluden- po respectivo; bem como de congres-
moderno hispano-americano. Somen-
te dos estudos puramente teológicos, sos internacionais em cada uma das
te a partir desta concepção ampla e
a escola se vê reduzida à solução dos sedes e seminários de investigação.
flexível - como convém observar -,
problemas que concernem às ques- A Faculdade de Filosofia da Univer-
tem cabimento propor a questão da
tões de fé por parte de um número sidade de Salamanca colaborará de
possível influência do pensamento
de teólogos inferior a trinta. Existe duplo modo: em primeiro lugar, tra-
da Escola de Salamanca na ideologia
na matéria uma relação diretamente tando de levar tudo a termo, dentro
independentista americana. É uma
proporcional entre os enfoques dos das competências específicas enco-
questão interessante, em relação à
investigadores e os interesses de cada mendadas e, em segundo lugar, eco-
qual se tem realizado movimentos de
um de nós. Assim, falamos igualmen- nomicamente. Com o fim de auxiliar
rastreamento muito válidos, dedica-
te da Escola de Salamanca, da Escola na execução do projeto, solicitamos
dos a assinalar a presença de algumas
espanhola de Paz, ou da Escola espa- uma ajuda à Agência Espanhola de
teorias de pensadores desta Escola,
nhola de direito internacional, como Cooperação Internacional, que aca-
concretas e de determinado país, mas
também da Escola espanhola de mo- ba de financiar um novo projeto in-
sobre as quais carecemos hoje de um
ral econômica, ou de Renascimento titulado Scholastica Salmanticensis
estudo de conjunto.
teológico salamanquense do século e que vem complementar o anterior,
XVI, etc. Qualquer uma destas deno- cruzando os objetivos compartilha-
Projeto Scholastica Colonialis
minações é correta, na medida em dos pelas universidades participan-
que corresponde à verdade histórica tes e por ela própria. Esperamos
Acerca do Scholastica Colonia-
contemplada como história dos efei- sinceramente que ambos os projetos
lis, projeto dirigido pelos doutores
tos, ou seja, ao conjunto das diversas logrem o financiamento público ne-
das universidades brasileiras UFRGS
soluções que o numeroso e heterogê- cessário para que possamos desen-
e Unisinos, Roberto Hofmeister e Al-
neo grupo de pensadores, adscritos volvê-los e, assim, oferecer aos alu-
fredo Culleton, hei de comentar-lhes
às diversas cátedras de Salamanca, nos e à comunidade científica novas
que me parece uma aposta tão ambi-
ou antes, educados nesses bancos do idéias e materiais para o estudo e
ciosa como necessária para ativar o
Estudo Geral por mestre e discípu- a reflexão, contribuindo deste modo
interesse pelo estudo e pela difusão
los, apresentaram aos problemas que ao fomento real do conhecimento.
34 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342
O papel de Salamanca na Segunda Escolástica
Um pensamento complexo e extenso. Assim pode ser definida a filosofia desenvolvida na
Escola de Salamanca, aponta José Luis Fuertes Herreros

Por Márcia Junges e Alfredo Culleton | Tradução Benno Dischinger

M
uito complexo e extenso. Assim é o papel da Escola de Salamanca na Segunda Escolástica,
avalia o filósofo espanhol José Luis Fuertes Herreros na entrevista que concedeu, por e-
mail, à IHU On-Line. A originalidade e as contribuições inovadoras de Salamanca num se-
gundo momento “e, em concreto, de Francisco de Vitoria se devem à sua nova proposta do
pensamento escolástico, o qual parte de uma reta interpretação do sistema tomista. Neste
sentido, Vitoria insiste na distinção entre a ordem natural e a sobrenatural”. E continua: “Em Salaman-
ca, desde a segunda metade do século XV, o pensamento foi se concentrando em torno ao que podia ser
um núcleo de elementos seguros e fundamentais para servir de guia nessa etapa do Renascimento”.
Herreros é catedrático e diretor do departamento de Filosofia e Lógica e do de Filosofia da Ciência,
ambos da Faculdade de Filosofia da Universidade de Salamanca, na Espanha. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é o papel de Sala- to, Pedro Martínez de Osma ocupava a obra de Pedro de Osma, para discer-
manca na Segunda Escolástica? a cátedra de Filosofia Moral (1457- nir e orientar os novos tempos é o da
José Luis Fuertes Herreros - O papel 1463) e em 1463 ele acedia à cátedra fé e o relato que a partir dela emerge
de Salamanca na Segunda Escolástica, de Prima Teologia na Universidade de como ordem que dá sentido e inteligi-
a qual pode abarcar desde a segunda Salamanca, sucedendo na mesma os bilidade. É o discurso que, tal como já
metade do século XV até todo o século dominicanos que o haviam precedido, havia acontecido com Santo Agostinho,
XVII, é muito complexo e extenso. Por Lope de Barrientos (1416-1436?) e Ál- ao transfigurar a realidade e colocar-
isso vou restringir-me a dois momentos: varo de Osório (1436?-1463). Pedro de nos num âmbito distinto de significa-
O primeiro, que estaria representado Osma permaneceria em dita cátedra ções e sentido, mostrava as insuficiên-
por Pedro Martínez de Osma (1424- até 30 de abril de 1479. cias dos outros discursos ou filosofias.
1480), a partir da segunda metade do Em tempos posteriores se está A fé, tal como é confessada pela Igreja
século XV, e o segundo que se iniciaria no Concílio de Basiléia (1431-1437 [- no Simbolum quicumque, o credo da
com Francisco de Vitoria (1483-1546), 1449]). Após a experiência do que ha- Igreja universal, é sobre este que ele
quando chega a Salamanca, em 1526, a via sido o cisma de Avignon, fazia-se publicará um importante comentário,
cátedra de Prima Teologia, e nos quais necessário oferecer uma doutrina com- In simbolum quicumque: (1472-1474).
teremos, como algumas das notas dis- provada e segura para guiar e blindar
tintivas importantes, o tomar-se como frente aos perigos da Fé e da Igreja Cristandade resplandecente
guia Santo Tomás para a renovação da e para permitir uma navegação sere-
Teologia, bem como a elaboração de na nestes novos tempos que se haviam E os demais pressupostos, como
uma teoria do direito internacional e aberto. E já estamos no Renascimen- fontes e rios, da mesma forma como
dos povos, uma teoria econômica e a to e ante a diversidade de filosofias e ocorrerá em Melchior Cano em De lo-
incessante proclamação da igualdade linhas de pensamento que se haviam cis theologicis (Salamanca, 1536), que
de todos os seres humanos que “foram aberto. A Universidade de Salamanca de algum modo derivam e são neces-
naturais das terras de lá como de cá”. não iria ser alheia a estas exigências e, sários para vir em socorro e ajudar a
Com respeito ao primeiro momen- sentindo com estes tempos e, desde a fé: obsequium rationale da razão à
fidelidade à Igreja, trataria de dar res- fé, o valor da tradição e dos doctores
FUERTES HERREROS, J. L. Lógica y Filosofía
�������������������������
en la Universidad de Salamanca, siglos XII-
posta às mesmas. E Pedro Martínez de antiqui, não às novidades e às coisas
XVII, In: Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares Osma seria um de seus mestres mais não necessárias ou supérfluas, retóri-
e Juan Luis Polo Rodríguez (Coord.), Historia notáveis em buscar e encontrar o ca-
de la Universidad de Salamanca, vol. III, 1:  Frei Melchior Cano (1590-1560): teólogo
Saberes y confluencias (Ediciones Universidad
minho adequado. espanhol, entrou na Ordem dos Pregadores
de Salamanca 2006), p. 491-586. (Nota do en- O principal pressuposto que envolve no convento de Salamanca. (Nota da IHU On-
trevistado) Line)

SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 35


ca em vez de dialética, existência em mas, eram também, se assim se quiser O.P. [(1507-15760, 1564-1577] e Bar-
sua finitude e contingência, concórdia contemplá-los, tempos de generosida- tolomé de Medina O.P. [(1527-1580),
e melhor república a partir de seus co- de e de paixão. Era preciso pensar e 1577-1580] até chegar a Domingo
mentários a Aristóteles. Estes são, em repensar, ordenar e reordenar, nascer Bañez O.P. (1528-1604), [1580-1604].
definitivo, os conteúdos de suas obras e renascer e, em meio de tudo isso, A Ordem dominicana, através do
que foi expondo e a direção que cla- apostar, com o risco de equivocar- controle ininterrupto que exercerá em
ramente foi marcando para a Univer- se. Era preciso encontrar o caminho, torno a dita cátedra de Prima Teolo-
sidade de Salamanca nas cátedras que fazer o caminho para ir à verdade e gia, será a valoradora de um discurso
ocupou e que a Ordem dominicana se não ad narragoniam com os loucos e dos saberes que, com Domingo Bañez,
encarregaria de seguir. néscios de Sebastián Brant e Erasmo se expressará em sua Apología (1595),
Santo Tomás era o melhor guia que de Rotterdam. E também restaurar confrontando na polêmica De auxiliis
se oferecia. A Suma teológica dispu- a cristandade nesta que parecia ser o novo discurso que a Companhia de
nha, como discurso, dos elementos nova Idade de ouro. Jesus ia pondo em circulação.
necessários. Só era preciso pegá-la e A doutrina de Santo Tomás era a que
haurir, como de uma fonte, a água viva Impulsos renovadores parecia mais segura, ou ao menos ela as-
para que fecundasse em seu comentá- sim aparecia até fins desse século XVI,
rio o presente que devia ser o de Igre- As frentes de reflexão para a esco- quando Francisco Suarez terminava em
ja e cristandade resplandecente. lástica de Salamanca e para o magis- 1597, aqui em Salamanca, no velho Co-
Assim se empreendia um caminho tério que, a partir dela, se iria exer- légio da Companhia, as Disputationes
em Salamanca, na nave de um discur- cendo a partir deste momento serão Metaphysicae, depois de ter permaneci-
so perfeitamente blindado na fé e en- principalmente duas, que vão a par: o do vários anos em Roma, entre 1580-85,
caixado em Santo Tomás e Aristóteles, da cristandade europeia no contexto no Colégio Romano, fundado por Santo
com o qual se pretendia navegar antes da Monarquia hispânica e a elabora- Inácio, e após perceber para onde ia a
do Descobrimento da América no tempo ção de uma nova teoria unificadora ciência e o mundo moderno e contem-
da história, em direção à eternidade, da história e da comunidade humana plar o distanciamento que estava se
tal como nestes mesmos anos, desde que fosse capaz de nela integrar todas produzindo com respeito àquele sistema
outra perspectiva, assinalava Werne- as gentes e povos recém-descobertos, filosófico e teológico; e isso ocorria en-
rius Rolewinck (1425-1502) em seu Fas- a partir de uma consideração de uma quanto a filosofia cética, com atitudes
ciculus temporum (Colônia, 1474). dignidade igual para todos os huma- nitidamente pirrônicas, estava abrindo
Neste primeiro momento seguirão nos. Era a primeira vez que se assu- seu próprio caminho e se expressava
Pedro de Martínez de Osma na cátedra mia uma empresa desse porte, fazen- nos Ensayos (1580-1588) de Montaigne,
de Prima Teologia, Diego de Deza O.P. do-a merecedora de ser a criadora do ou naquele Que nada se sabe (1581) de
(1480-1486), Fernando de Roa (1494- direito das gentes e do direito inter- Francisco Sánchez.
1497), Juan de Santo Domingo O.P. nacional, ao mesmo tempo em que se Luis de Molina (1535-1600) com seu
(1497-1507) e Pedro de León O.P. (1507- elaborava uma nova teoria econômica, Concordia liberi arbitrii com gratiae
1526). Pode-se considerar que um segun- como meio de conduzir uma nova ges- donis, divina praescientia, providen-
do momento acontece em torno às três tão do planeta e administrar recursos tia, praedestinatione et reprobatio-
primeiras décadas do século XVI. a favor de seus moradores. ne, que publicava em Lisboa em 1588,
Neste século parecia que o âmbi- Neste novo contexto e com novos havia tecido novos caminhos em filo-
to espiritual da cristandade se sentia impulsos renovadores, aparece Fran- sofia e teologia. E Francisco Suarez
comovido. Era a recuperação da an- cisco de Vitoria (1483-1546) que, em (1548-1617) com suas Disputationes
tiguidade clássica, a transformação 1526, recebe a cátedra de Prima Teo- Metaphysicae e seu Tractatus de le-
do mundo pela ciência, a técnica e a logia (1526-1546) na Universidade de gibus ac Deo legislatore (1612) abria
arte, a descoberta de novos mundos e Salamanca, onde atuou no sentido de outros caminhos e perspectivas.
o impacto de novos modelos de racio- impor progressivamente a Suma teoló-
nalidade, a pujança das nacionalida- gica como livro-texto. Renovação que IHU On-Line - Qual é a importância
des, as propostas de reforma para a seria continuada por Melchior Cano do pensamento desenvolvido em
cristandade e para a vida cristã, pondo O.P. [(1509-1560), 1546-1551], Domin- MOLINA, Luis de. Concordia de libero arbi-
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em circulação renovadas filosofias, va- go de Soto [(1495-1560), 1552-1560], trio con los dones de la gracia y la presciencia,
lores distintos e tantas esperanças. Pedro De Sotomayor [(1511-1564), providencia, predestinación y reprobación di-
vinas. Tradução, introdução e notas por Juan
Eram tempos de efervescência, de 1560-1564]. Mancio de Corpus Christi Antonio Hevia Echevarría, Pentalfa Ediciones,
pujança e de novidade, tempos que,  Erasmo de Rotterdam (1466-1536): teólogo Oviedo 2007. (Nota do entrevistado)
na expressão de muitos, foram se e humanista neerlandês, conhecido como Eras-  BAÑEZ, Domingo. Apología de los herma-
mo de Roterdã. Seu principal livro foi Elogio da nos dominicos contra la “Concordia” de Luis
tornando robustos depois destas três loucura. (Nota da IHU On-Line) de Molina. Tradução, introdução e apêndice
primeiras décadas, conforme iam se FUENTES HERREROS, J. L. Relatos sobre el
������������������������� por Juan Antonio Hevia Echevarría, Pentalfa
produzindo os sucessivos dilaceramen- hombre en torno al De indis prior de Francisco Ediciones, Oviedo 2002, cf. XX e XXIII. Bañez
de Vitoria. In: Cuadernos Salmantinos de Fi- é lúcido neste sentido e se dá perfeitamente
tos na cristandade pelas reformas; losofía, XXX (2003), 371-384. (Nota do entre- conta de para onde conduz Molina. ���������
(Nota do
vistado) entrevistado)

36 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342


Salamanca durante a conquista da Vitoria define o ius gentium segundo pela Escola de Salamanca?
América? a fórmula de Gaio, na qual substitui a José Luis Fuertes Herreros - Em Sa-
José Luis Fuertes Herreros - A origina- palavra homines por gentes. O direito lamanca, desde a segunda metade do
lidade e as contribuições inovadoras de das gentes é aquele que a razão natu- século XV, o pensamento foi se concen-
Salamanca neste segundo momento e, ral estabeleceu entre todas as gentes trando em torno ao que podia ser um
em concreto, de Francisco de Vitoria se [ou povos], assim definido, é parte núcleo de elementos seguros e funda-
devem à sua nova proposta do pensa- do direito natural; porém a vontade mentais para servir de guia nessa etapa
mento escolástico, o qual parte de uma humana, expressa ou tácita, dá lugar do Renascimento. É a volta aos docto-
reta interpretação do sistema tomista. ademais a um direito das gentes posi- res antiqui, a Santo Tomás, às fontes,
Neste sentido, Vitoria insiste na distin- tivo, porque o orbe todo, que de certa à fé da Igreja, à Sagrada Escritura, à
ção entre a ordem natural e a sobre- maneira forma uma só república, tem tradição e a um começar a priorizar a
natural. Embora já Santo Tomás tenha o poder de dar leis justas e a todos existência sobre a essência.
levantado a questão, será Vitoria quem convenientes. Após a ampliação da imago mundi
lhe dará uma formulação exata. Segun- Consequência da ideia do orbe e com os novos descobrimentos, tratar-
do Francisco de Vitoria, a ordem natural de um direito natural e positivo das se-á de responder aos novos desafios
é o que é próprio da natureza humana gentes, de alcance ecumênico, é o que ia levantando tanto o Renascimen-
enquanto tal e independentemente da reconhecimento da personalidade ju- to e a situação da cristandade euro-
ordem da Graça, à qual pode ser ele- rídico-internacional das comunidades peia como os que se iam suscitando
vado: esta última seria a ordem sobre- não-cristãs. O domínio não depende no Novo Mundo, onde nos primeiros
natural. O homem, enquanto ser criado de um título religioso, senão simples- momentos parecia que a ambição e os
com corpo e alma, pertence à ordem da mente de um título jurídico-natural. interesses iriam sobrepor-se à razão e
Natureza e tem, por sua simples condi- Com isso obtínhamos a doutrina vito- à fé. É neste momento que, a partir
ção de homem, um conjunto de direitos riana da comunidade jurídica interna- das aulas de Salamanca, se começa a
fundamentais inerentes à sua personali- cional. ouvir o juízo moral que mereciam es-
dade. A ordem sobrenatural, por supos- E, são suas contribuições sobre o tes acontecimentos.
to, não os nega, já que ambas as ordens direito natural e das gentes o que fará E, com Francisco de Vitoria, em
não só não se contradizem, senão que se que se vá construindo toda uma tradi- sintonia com as fidelidades da eta-
complementam. ção, ou a Escola espanhola, ou os clás- pa anterior, se começa, no De Indis
Ambas as ordens correspondem a sicos do direito natural e das gentes, (1539), a elaborar uma doutrina que
dois tipos de sociedade, a natural ou entre os quais cabe destacar: Domingo busca na existência o ponto de con-
civil e a sobrenatural ou eclesiástica, de Soto, De iustitia et iure (1540), Mel- córdia e encontro entre todos os seres
com fins e meios, súditos e autoridades chior Cano, De iustitia et iure (1545), humanos. E se visa o relato da criação
distintos. E, no âmbito desta doutrina, Miguel de Palácios, De legibus (1554), do Gênesis, onde Deus fez o homem
ocupa lugar preeminente a doutrina da Diego de Covarrubias, Questionum à sua imagem e semelhança e se fun-
pessoa humana. Segundo esta, o ho- practicarum líber unus (1556), Juan damenta aí sua dignidade e grandeza
mem, centro da Criação, é uma pessoa de la Peña, De iustitia et iure (1559), e também se constrói uma nova his-
racional, livre, moral e responsável, Mancio de Corpus Christi, De iustitia tória, a de uma comunidade humana
composta de dois elementos substan- et iure (1566), Fray Luis de León, De que saiu das mãos de Deus. O restante
ciais, corpo e alma, que o constituem legibus (1571), Bartolomé Medina, De já o indiquei, assim como os grandes
em sujeito jurídico com uma série de legibus (1574), Luís de Molina, De ius- mestres, até se elaborar o direito das
direitos naturais inatos. A sociedade titia et iure (1578), Domingo Bañez, gentes e o direito internacional.
natural ou civil é possível porque exis- De iustitia et iure (1580), Francisco Quiçá tudo isto se poderia compre-
te uma dimensão social da pessoa. Suarez, Quaestiones de iustitia et iure ender melhor caso se lesse também um
Para Vitoria a comunidade interna- (1585) e De legibus et de Deo legisla- breve tratado de profunda meditação
cional resulta da sociedade natural do tore (1612), Gregório de Valencia, De de Domingo de Soto, ou seja, o Trata-
homem, o qual não se detém nos limi- legibus (1603), Gabriel Vázquez, De do del amor de Dios, que nos acerca
tes de seu povo, senão que se estende legibus (1605), e Pedro de Lorca, De da via del beneficio, e a Fray Luis de
à universalidade do gênero humano. legibus (1609). Granada (1504-1588), onde o homem
Sua origem não é contratual, como aparecerá como a obra mais formosa
não o é o da comunidade estatal. Seu IHU On-Line - Como era tratado o e excelsa da criação. Porém, sempre
vínculo é o ius gentium, que Vitoria tema da conquista e da escravidão também estarão presentes as Juntas
concebe num duplo sentido: por um TRUYOL SERRA, A. Historia de la Filosofía
������������������� de Valladolid (1550-51), Bartolomeu
lado, como direito universal da hu- del Derecho y del Derecho y del Estado. II. Del de las Casas (1484-1566) e Ginés de
Renacimiento a Kant, Revista de Occidente,
manidade, à maneira romana, e, por Madrid 1975, 55-56. (Nota do entrevistado) Sepúlveda (1490-1573), para assinalar,
outro, como direito dos povos como LEÓN, Fray Luis de. De legibus o tratado de
��������������������� mais além das aulas de Salamanca, o
tais em suas relações recíprocas (ius las leyes, 1571. Introducción y edición críti- dolente que realmente acontecia ou
ca bilingüe por Luciano Pereña, CSIC, Madrid
inter gentes). Nesta última acepção, 1963, LXXXIII-LXXXVI. ����������������������
(Nota do entrevistado) convinha fazer.
 Idem, ibídem.

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A contribuição dos jesuítas à Segunda Escolástica
Junto dos dominicanos e franciscanos, os jesuítas desenvolveram o conceito de “forma-
ção pela ciência”. Método do “Direito natural” fundamenta uma ética e um direito que
“ultrapassa culturas”, acentua Ludger Honnefelder

Por Márcia Junges e Alfredo Culleton | Tradução Benno Dischinger

“A
o lado das ordens religiosas mais antigas dos franciscanos e dominicanos, são os
jesuítas que, no âmbito da segunda escolástica, já no século XIII desenvolveram
ulteriormente o emergente conceito da ‘formação pela ciência’, tornando-a o fun-
damento da formação para as pessoas da modernidade”. A afirmação é do filósofo
alemão Ludger Honnefelder, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele,
através do método do Direito natural, “os jesuítas desenvolveram uma ética e um direito que ultrapassa
as culturas e permite uma ação responsável em vista da moderna ampliação e transformação do Velho
no Novo Mundo”.
Ludger Honnefelder é professor emérito de Filosofia da Universidade de Bonn, na Alemanha. Em 1999
foi diretor do Centro de Referência Alemã para a Ética nas Ciências da Vida. Cursou Filosofia nas univer-
sidades de Bonn, Innsbruck e Bochum, na Alemanha. Tem doutorado e pós-doutorado em Filosofia pela
Universidade de Bonn. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é o valor e a im- franciscanos e dominicanos, são os


portância da segunda escolástica?
“A Segunda Escolástica jesuítas que, no âmbito da segunda
Ludger Honnefelder - A Segunda Esco- escolástica, já no século XIII desen-
lástica tem pensamentos centrais que,
tem pensamentos volveram ulteriormente o emergen-
surgidos na primeira Escolástica, isto te conceito da “formação pela ciên-
é, na filosofia da Idade Média, foram
centrais que, surgidos cia”, tornando-a o fundamento da
ulteriormente desenvolvidos e trans- formação para as pessoas da moder-
mitidos à Idade Moderna.
na primeira Escolástica, nidade. O conceito por eles desen-
- Em nível teórico trata-se do pen- volvido da ratio studiorum tornou-se
samento que só podemos entender a
isto é, na filosofia da modelo para o desenvolvimento ul-
realidade por uma rede de diversas terior da universidade.
ciências. Pertence a isso uma nova
Idade Média, foram Além disso, pelo método do “Direi-
racionalidade científica diferenciada to natural”, sobretudo por Francisco
e uma disciplina básica (na forma da
ulteriormente Suarez e Gabriel Vásquez, os jesuítas
metafísica), na qual é tratada a ques- desenvolveram uma ética e um direito
tão da compreensão da realidade pela
desenvolvidos e que ultrapassa as culturas e permite
qual nos guiamos. uma ação responsável em vista da mo-
- No nível prático é dada válida ao
transmitidos à Idade derna ampliação e transformação do
pensamento de que é traço distintivo Velho no Novo Mundo.
do ser humano ser ele próprio autor
Moderna”
de seu agir e determinar-se livremen- IHU On-Line - Por que é relevante es-
te a si próprio pela razão. A cada ho- tudar em nossos dias a Escolástica?
mem é própria a “lei natural” que, IHU On-Line - Qual é o papel dos je- Ludger Honnefelder - O mundo atual
por força de sua razão, o capacita a suítas na segunda escolástica? encontra-se ante uma questão decisi-
distinguir entre o bem e o mal e vin- Ludger Honnefelder - Ao lado das va, a saber, como pode ser pensada a
cular-se em seu agir ao bem por con- ordens religiosas mais antigas dos “unidade na diversidade”.
cepção pessoal.
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Entrevista da Semana
Grandes grupos industriais são donos do Rio Uruguai
“As hidrelétricas são obras gigantes, de lucros vultuosos e estão totalmente atreladas a
um modelo explorador e exportador que nada tem a ver com o desenvolvimento equili-
brado e equitativo das regiões do país”, afirmam Lucia Ortiz e Bruna Cristina Engel

Por Graziela Wolfart

“A
produção de metano é outro problema ambiental grave que pouco se discute. A hi-
drelétrica vendida com energia limpa e renovável é na verdade uma falsa solução
para o combate às mudanças climáticas, pois produz grandes quantidades de metano
devido à massa verde submersa pelo lago e sedimentos carreados pelo rio e deposi-
tados no fundo do lago. As hidrelétricas podem ter o mesmo grau de poluição de uma
termelétrica”, afirmam Lucia Ortiz e Bruna Cristina Engel, da Organização Não-Governamental Amigos
da Terra Brasil, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Elas contribuem para o debate levan-
tado na última edição da revista, sobre as hidrelétricas no Rio Grande do Sul (http://bit.ly/cvHKgp).
Lucia Ortiz é coordenadora do Núcleo Amigos da Terra e do GT Energia do Fórum Brasileiro de ONGs
e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. É geóloga e mestre em Geociências.
Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como os Amigos da Ter- deve-se ao fato da concentração no de hidrelétricas. Para o Brasil crescer,
ra Brasil definem hoje a política de Brasil dos setores industriais eletroin- precisamos de mais energiai Essa é a
construção de hidrelétricas no Brasil tensivos, voltados à exportação de frase que ouvimos durante décadas e
e no Rio Grande do Sul, principal- alumínio, ferro, aço, celulose e a pro- que caracteriza um sistema de cresci-
mente na região do Alto Uruguai? dução de cimento, que tem na água e mento econômico atrelado a processos
Lucia Ortiz e Bruna Engel - Uma po- na energia barata uma fonte de lucro. industriais altamente dependentes de
lítica atrasada que prioriza os inte- Obviamente as indústrias são o prin- grande quantidade de energia e bens
resses do setor industrial sem avaliar cipal consumidor de energia no país e naturais que não vêem na destruição
outras dimensões senão a econômica. batem constantemente seus recordes dos rios um limite para o seu cresci-
Enquanto o setor elétrico apresenta de consumo: no mês de julho consu- mento. Com financiamento público
supostas novas estratégias de comuni- miram 15.915 GWh (Gigawatts hora), através do BNDES (principalmente
cação e de opções técnicas, como as 13,7% a mais que o mesmo período do fundos de pensão), licenciamento am-
tais “usinas plataforma”, os projetos ano passado. biental feito a toque de caixa, audiên-
são os mesmos inventariados que lo- cias públicas de fachada e atropelo da
tearam os rios brasileiros na ditadura Cresce demanda total legislação ambiental, grandes grupos
militar e são impostos com o mesmo por energia elétrica industriais como a Votorantin Cimen-
autoritarismo que desconsidera outras to, Alcoa Alumínio S.A., Vale, Gerdau,
opções e demandas por melhores con- Dados da EPE revelam também que CPFL Energia, GDF Suez, CSN, Camargo
dições de vida por parte das popula- a demanda total por energia elétrica Corrêa, Andrade Gutierres, Bradesco e
ções regionais. cresceu 8,5% comparada com igual outros são considerados os donos do
Segundo a Empresa de Pesquisa período do ano passado. A leitura rio Uruguai. As hidrelétricas são proje-
Energética (EPE), o setor industrial foi que pode ser feita desses dados é o tadas e construídas sem respeito pela
responsável pelo consumo de 46,1% da aumento do poder de consumo da ati- população local e sem objetivar o seu
energia elétrica em 2008, enquanto o vidade industrial, e o resultado disso abastecimento energético. A energia
setor residencial por apenas 24%. Este são mais investimentos em construção gerada e lançada no SIN – Sistema In-
desbalanço na distribuição de energia terligado Nacional – atende a demanda
40 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342
de indústrias instaladas em todo o Bra-
sil. Ou seja, se a Alcoa está precisando
“Para o Brasil crescer, fertilizantes agrícolas. A partir da li-
beração da exploração mineral em
de energia para transformar a bauxi-
ta lá no Pará e é oportuno construir
precisamos de mais todo território nacional para fabrica-
ção de fertilizantes, encabeçada pela
uma hidrelétrica aqui no sul, ela o faz,
joga a energia produzida no SIN e paga
energia. Essa é a frase Vale, a produção de energia precisa
acompanhar o crescimento do setor
um valor subsidiado muito inferior ao
MWhora que pagamos os cidadãos e ci-
que ouvimos durante do agronegócio que, ao contrário do
modelo da agroecologia, é altamente
dadãs brasileiros. A região do rio Uru-
guai não é diferente do resto do país.
décadas e que intensivo em energia, consumida na
fabricação destes insumos, bem como
O rio Uruguai é um rio de corredeiras
encalhado na serra da mata atlântica,
caracteriza um sistema no uso de maquinário pesado e na lo-
gística ineficiente de distribuição glo-
entre os estados do Rio Grande do Sul
e Santa Catarina e com alto potencial
de crescimento balizada. Outra demanda é a produção
e exportação de celulose, também um
elétrico, 12.816 MW ou 5,1% do poten-
cial nacional, dos quais 5.186MW já
econômico atrelado a setor eletrointensivo que tem crescido
sua autoprodução de energia utilizan-
foram aproveitados e o restante está
inventariado. As sete usinas já instala-
processos industriais do resíduos madeireiros e carvão mi-
neral nos seus processos industriais,
das geram aproximadamente R$3,2bi
anuais de lucro para os consórcios que
altamente dependentes mas também investido em projetos
conjuntos de geração hidrelétrica. No
possuem a concessão das usinas. As
hidrelétricas são obras gigantes, de
de grande quantidade de Rio Grande do Sul, onde o Pampa está
sendo dizimado por monoculturas de
lucros vultuosos e estão totalmente
atreladas a um modelo explorador e
energia e bens naturais árvores exóticas para atender a de-
mandas das plantas de produção de
exportador que nada tem a ver com o
desenvolvimento equilibrado e equita-
que não vêem na celulose, estas se erguem como gigan-
tes famintos de energia, água, terras,
tivo das regiões do país. destruição dos rios um madeira e mão de obra barata.

IHU On-Line - Como entender a de-


senfreada expansão de hidrelétricas
limite para o seu IHU On-Line - Como as hidrelétricas
impactam especificamente a realida-
no Brasil e no Rio Grande do Sul? O
que está na origem disso?
crescimento” de social e ambiental do Rio Grande
do Sul?
Lucia Ortiz e Bruna Engel - Ainda na Lucia Ortiz e Bruna Engel - O Movi-
época do regime militar o Brasil ini- de antigos projetos de aproveitamen- mento dos Atingidos por Barragens
ciou uma abertura aos investimen- to hidrelétrico projetados no regime (MAB) aponta que aproximadamente
tos internacionais e à colonização da militar. Um planejamento setorial vol- 60 mil pessoas já foram atingidas por
região norte do país. Para atender a tado a apresentar oportunidades de empreendimentos hidrelétricos no Rio
demanda crescente por energia que negócios, desvinculado de um projeto Grande do Sul e no máximo 30% dessa
as mineradoras precisavam, o Estado de futuro para o país. A usina de Barra população foi indenizada e reconheci-
inventariou os rios brasileiros de for- Grande no rio Pelotas é um exemplo da como atingida por barragens. Um
ma a aproveitar cada MW em potencial disso, com histórico de irregularidades estudo da Universidade de Passo Fun-
existente. Exemplo dessa política são e mobilizações que não foram suficien- do - UPF aponta que após alguns anos
as megarepresas de Tucuruí e Itaipu. tes para barrá-la. Outra é a UHE Gari- de implantação de uma hidrelétrica
Muitos daqueles projetos hidrelétricos baldi, no rio Canoas, ambas nas cabe- na região do alto rio Uruguai, os indi-
foram arquivados por serem inviáveis ceiras do rio Uruguai. A UHE Garibaldi, cadores de desenvolvimento mostram
tecnicamente, ou polêmicos demais, com LP emitida pela FATMA – SC, está queda de aproximadamente 40%. Por
como as dezenas de hidrelétricas pro- locada dentro do PAC e visa atender a exemplo, a produção (-40%), o comér-
jetadas para o coração da Amazônia demanda crescente por energia prin- cio (-43%), o emprego (-43%), produ-
que hoje estão sendo impostas goela cipalmente na região sudeste do país ção agropecuária (-36%), as relações
a abaixo com a justificativa do cresci- onde se dá a maior concentração de sociais e culturais (-40%), as relações
mento do país. A partir dos anos 1990 indústrias eletrointensivas. de amizade e familiares (-71%), meio
com a privatização do setor elétrico ambiente natural em geral (-31%). Isso
houve, além do aumento do desempre- IHU On-Line - Que relação podemos mostra que a chegada de um empre-
go e da precarização do trabalho, um estabelecer entre a construção de endimento hidrelétrico está longe de
período de ausência do planejamento hidrelétricas e o agronegócio? promover o desenvolvimento local ou
energético por parte do Estado que le- Lucia Ortiz e Bruna Engel - A constru- aquecer a economia a nível regional.
vou à crise de energia de 2001, quando ção de hidrelétricas está mais relacio- Outros estudos feitos pela Comissão
se iniciou uma nova onda de retomada nada à fabricação de insumos, como Mundial de Represas, na década de

SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 41


1990, apontam para o mesmo cenário “As hidrelétricas são regime militar os governos eram total-
de retrocesso e desestruturação das mente favoráveis às hidrelétricas, os
relações sociais, culturais e econô- projetadas e construídas órgãos públicos responsáveis tinham
micas que chegam com as barragens pouca autonomia para barrar o proces-
independente da região do globo. O sem respeito pela so de expansão da oferta. Atualmen-
impacto no ambiente natural talvez te, em regime democrático, a situação
seja mais grave devido às proporções população local e sem não mudou quase nada. O Estado, ao
do impacto social associado. Pegando promover políticas desenvolvimentis-
o caso de Barra Grande, onde foram objetivar o seu tas, com programas de aceleração do
inundados mais de 6000 ha de matas crescimento (os PACs), afeta a deman-
de araucárias, se deu a migração de abastecimento da por energia abrindo mercado para
animais para regiões habitadas nos expansão da oferta. O PDE 2010 apon-
campos de cima da serra. O apareci- energético” ta aumento da produção de energia de
mento de animais silvestres em sítios 3.333 MW anuais para acompanhar as
e cidades da região tem deixado os taxas de crescimento econômico. O
moradores preocupados com a segu- hidrelétricas podem ter o mesmo grau desmonte e enfraquecimento dos ór-
rança de crianças, por exemplo. Esses de poluição de uma termelétrica. gãos públicos tem se intensificado na
animais agora perambulam em busca medida em que os investimentos em
de um lar e alimento e por conta disso IHU On-Line - Quais as principais projetos de alto impacto ambiental
acabam atacando animais domésticos questões políticas que envolvem a aumentam. Casos de demissão sema-
e pessoas. construção de barragens no Rio Gran- nas antes da emissão das licenças ou
A região do Alto Uruguai, caracte- de do Sul? a troca de técnicos para outros seto-
rística por ter solos férteis, rios ricos Lucia Ortiz e Bruna Engel - São em- res são comuns em época de falta de
em peixes e uma economia baseada preendimentos que da mesma forma diálogo entre os políticos, pesquisado-
na agricultura familiar corre o risco de que a construção de estradas, dão res e a sociedade civil. O exemplo da
mudar drasticamente o perfil econô- votos porque vendem a falsa ideia de Fepam, que alertou antecipadamente
mico e sofrer forte impacto ambiental desenvolvimento. Atualmente políticos o IBAMA sobre a fraude da UHE Bar-
nas cabeceiras, como está ocorrendo e empresas renovaram o discurso na ra Grande em 2004, nos últimos anos
no rio Canoas, onde mais de mil famí- tentativa de vender a ideia da susten- foi gritante: de um órgão público am-
lias de pequenos agricultores que são tabilidade, sem mudar a sua lógica de biental exemplar para todo o Brasil em
atores da economia local e vivem com exploração da natureza. Os governos termos de qualificação dos seus técni-
qualidade de vida nas margens do rio têm ajudado na organização e concen- cos e de transparência na obtenção de
estão ameaçados de serem desloca- tração dos atores do grande capital, informações por parte da sociedade,
dos. Os projetos hidrelétricos Garibal- planejando, promovendo e financiando virou um balcão de atendimento prio-
di, Pai Querê e Passo do Cadeia, se im- com dinheiro público as grandes obras ritário às empresas com casos de emis-
plantados, podem iniciar um processo das mesmas grandes indústrias que fi- são de licenças prévias ao recebimen-
de morte do bioma Mata Atlântica na nanciam as campanhas eleitorais, de to e análise dos estudos de impacto
região. A área do Alto Uruguai, rica em direita ou de esquerda. A concentração ambiental para a construção de barra-
espécies endêmicas, corre o risco de da produção de celulose, o aço da Ger- gens, onde os técnicos passaram a ser
desaparecer por causa dos lagos artifi- dau, o Pólo Petroquímico, assim como perseguidos e afastados dos processos
ciais que impedem a passagem de ani- o parque industrial da região sudeste, de licenciamento ou de formulação de
mais de uma margem a outra, isolando exigem alta produção de energia. Ape- políticas como as que se discutem no
populações, além da modificação rápi- sar da pressão da sociedade por fontes Consema-RS.
da e radical do ambiente aquático que alternativas, a falta de políticas de in-
afeta não só a população de fauna e centivo e planejamento para a produ- IHU On-Line - Quais os principais da-
flora aquática mas toda a cadeia trófi- ção descentralizada segue uma forma nos que as hidrelétricas podem pro-
ca, inclusive o modo de subsistência de de criminalizar como cara as fontes vocar à biodiversidade gaúcha?
populações humanas que dependem do mais sustentáveis de energia. Por outro Lucia Ortiz e Bruna Engel - A bacia
rio para sobreviver. A produção de me- lado, políticas publicas subsidiam ener- do rio Uruguai se caracteriza por altas
tano é outro problema ambiental gra- gia cara e suja de termelétricas a car- taxas de endemismo nos vales forma-
ve que pouco se discute. A hidrelétrica vão e nuclear e fortalecem a indústria dos nas cabeceiras, no Alto Uruguai. A
vendida com energia limpa e renovável das hidrelétricas. construção de lagos provoca a morte
é na verdade uma falsa solução para o de populações de animais, a extinção
combate às mudanças climáticas, pois IHU On-Line - Como os órgãos públi- de espécies endêmicas e a consequen-
produz grandes quantidades de me- cos responsáveis e os governos do te perda da biodiversidade. A região
tano devido à massa verde submersa estado têm lidado com a questão das abriga uma das maiores populações de
pelo lago e sedimentos carreados pelo hidrelétricas ao longo da história? araucárias, o pinheiro brasileiro, que
rio e depositados no fundo do lago. As Lucia Ortiz e Bruna Engel - Quando no está em risco eminente de extinção.
42 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342
O Salto do Yucumã, maior queda lon- atua como principal banco de fomento mente concentradora de lucros, com-
gitudinal do mundo e símbolo cultural, e chega a financiar 80% das obras de parativamente a outros setores me-
pode desaparecer com a construção de hidreletricidade para depois entregar nos geradora de empregos, poluidora
usinas como a de Itapiranga e Garabi, todos os lucros ao capital privado. São e que põe em risco a biodiversidade e
esta última com 2800MW, projetada investimentos de alto risco ambiental a qualidade de vida da população. A
para o rio Uruguai entre o Rio Grande e social em expansão no Brasil e fora hidroeletriciade pode ser considerada
do Sul e a Argentina, outro projeto da de forma autoritária para alavancar sustentável, talvez, se produzida de
época do regime e que voltou um pou- o país a qualquer preço, mesmo que forma descentralizada, com controle
co reformulado, mas com o mesmo po- seja para destruir com a diversidade social para atender a demanda local.
tencial de destruição que o anterior. biológica e social dos territórios. Se- Deve-se ter muito cuidado ao apoiar
Não se sabe ainda qual a exata locali- gundo levantamento da Rede Brasil iniciativas de pequenas centrais hi-
zação da usina, sabe-se que está entre sobre Instituições Financeiras Multila- drelétricas (PCHs), as quais se repro-
as províncias de Corrientes e Missiones terais, de 2004 a 2009, quase 70% dos duzem em projetos de autoprodução
do lado argentino e Garruchos do lado desembolsos do BNDES para a região das mesmas indústrias que investem
brasileiro. Só em solo argentino esti- Sul do país foram para a construção nas UHEs, pelo risco de essas usinas
ma-se que cerca de 30000 pessoas se- de hidrelétricas, o equivalente a R$ minarem a calha de um rio, desvia-
rão atingidas pela obra. A projeção da 4.672.617.910,00 (4,67 bilhões de rem as águas, secar trechos à jusante
área de alagamento é de 730km². As reais). Ao contrário das instituições e impedir a reprodução de peixes. O
pessoas que vivem na terra manejam internacionais mencionadas, o BNDES que vemos hoje é a proliferação de
e resguardam agrobiodiversidade que não tem uma política de informação PCHs em escada num único rio, inclu-
pode ficar sob as águas em regiões im- sobre seus investimentos públicos no sive em áreas na bacia do rio Uruguai
portantes do nosso território. exterior e não apresentou à sociedade para onde populações afetadas pe-
sua política de salvaguardas ambien- las grandes barragens já foram reas-
IHU On-Line - Quais as possíveis con- tais, enquanto que muitos empreen- sentadas, sendo vendidas como uma
sequências de uma alteração na sen- dimentos financiados pelo banco são solução às grandes hidrelétricas, no-
sibilidade ambiental do clima gaúcho denunciados na justiça pelo descum- vamente uma falsa solução. A susten-
em função das hidrelétricas? primento das leis ambientais e princí- tabilidade de uma sociedade não se
Lucia Ortiz e Bruna Engel - A mu- pios da administração pública, como encontra apenas na busca de alterna-
dança no clima pode ocorrer em es- é o caso das usinas do rio Madeira e tivas de fontes de energia para suprir
cala regional, o lago pode aumentar Belo Monte no Xingu, ou da condena- seus modos de vida, mas sim no ques-
a umidade relativa e alterar o regi- ção do banco pela propaganda ten- tionamento das causas e dos valores
me de chuvas da região. O conjun- denciosa dos financiamentos para o que levam a sociedade a destruir a
to de lagos pode também tornar-se setor de celulose no Rio Grande do natureza da qual faz parte e depen-
um corredor de ventos fortes e au- Sul. A iniciativa da Plataforma BNDES de para viver. Este questionamento é
mentar a vulnerabilidade regional a é que disponibiliza as informações o que pode gerar maior criatividade,
eventos climáticos extremos, como sobre os financiamentos públicos do soluções e mudanças estruturais no
tornados e vendavais. Os rios sofrem Banco no Brasil, assim como um mapa caminho da construção de sociedades
alterações no fluxo onde a consequ- onde os casos controversos podem ser sustentáveis.
ência pode ser desde o assoreamen- denunciados por organizações da so-
to até diminuição da fertilização das ciedade civil.
margens, afetando diretamente a
agricultura tradicional. Estudos da IHU On-Line - O que é desenvolvi- Leia Mais...
Secretaria Estadual de Saúde de- mento sustentável para os gaúchos
>> Sobre o tema das hidrelétricas leia
monstram também o aumento de hoje, quando pensamos, por exem- também:
vetores de doenças, como a prolife- plo, na questão das hidrelétricas no
ração de ratos e mosquito, devido às estado? * Hidrelétricas no Rio Grande do Sul. Impactos
sociais e ambientais. Revista IHU On-Line, núme-
alterações climáticas e ambientais Lucia Ortiz e Bruna Engel - A pro- ro 341, de 30-08-2010, disponível em http://bit.
locais no entorno das barragens do dução de energia no estado não se ly/cvHKgp;
rio Uruguai. sustenta. Uma mega barragem que * Hidrelétricas no Rio Uruguai: uma floresta in-
teira extinta. Entrevista com Rafael Cabral Cruz,
impede o fluxo natural de um rio, publicada nas Notícias do Dia do sítio do IHU e
IHU On-Line - Qual deveria ser a pos- provoca a morte e extinção de espé- disponível em http://bit.ly/ddoKus
tura do BID e outros bancos em rela- cies, desestabiliza os sistemas sociais * Itapiranga: uma luta de mais de 30 anos. Entre-
vista com Pedro Melchior, publicada nas Notícias
ção ao financiamento dos leilões de e quebra com a economia local não do Dia do sítio do IHU e disponível em http://bit.
construção de hidrelétricas? pode ser considerada sustentável. ly/9qmfeu
Lucia Ortiz e Bruna Engel - Se antes Além do mais, essa energia é produ- * Manifesto de Itapiranga. “Em defesa da natu-
reza, do povo, pelo desenvolvimento sem barra-
os principais atores financeiros eram zida principalmente para atender a gem’’, publicada nas Notícias do Dia do sítio do
bancos internacionais multilaterais demanda industrial eletrointensiva IHU e disponível em http://bit.ly/8X4h96
como o BID e o BIRD, hoje o BNDES extrativa, uma cadeia produtiva alta-
SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 43
Passione! A indústria da telenovela no
balizamento entre o merchandising
social e o comercial
Por Jacqueline Lima Dourado*

As emissoras de televisão, enquan- alegorias bem peculiares, como a


to indústrias culturais, desenvolvem decadência física, desequilíbrio
processos estratégicos desenvolvidos emocional, desagregação da família
que estão relacionados, muitas vezes, que servem de mote de discussão
com temas ou questões que se repor- intra e extranovela. Traz ainda a es-
tam a situações enfrentadas por uma fera do debate temas motes como
sociedade em diferentes domínios. pedofilia, exploração e prostituição
Esses atuam desde a coletividade, no de menores. Essas abordagens não
campo educacional, político, religio- são colaterais ao enredo, mas a par-
so, tecnológico e ambiental, como na tir delas há um novo olhar sobre o
esfera individual, em relação ao com- tema da novela. Ressalte-se que os
portamento, práticas urbanas, solida- dois assuntos dominam noticiários e
riedade, usando para isso táticas de revistas no país.
merchandising social, protagonismo Esses movimentos é o que chama-
social e marketing social. mos de cidadania televisiva. Entende-
A telenovela “das oito”, Passione mos que, para adotar este conceito, é
(da Rede Globo, 21h:00min), retoma necessário concebê-lo como conjunto
temas sociais, tais como dependência de temas voltados para os direitos so-
química, infidelidade, sexualidade, ciais, educativos e morais presentes
pedofilia, prostituição entre outros na programação. De alguma maneira,
antes demarcados, somente, à esfera surge na grade, sob a forma de di-
íntima. Com a mediação televisiva, ferentes temas, problemáticas que,
migram para a esfera pública, propor- tradicionalmente, antes, não estavam
cionando novas pautas e debates, além inseridas. Começam a ganhar contor-
do agendamento de outras mídias. nos próprios por meio de operações e
Dessa vez, a Rede Globo afirma estratégias peculiares, inerentes ao
não fazer de forma mais explíci- próprio regime e à discursividade da
ta nenhum merchandising social. TV. Supomos que são escolhas deli-
Contudo, retoma temas sociais que beradas via agendas que a mídia faz
resgatam a prática especulativa do para tratar simbolicamente, e, com
tema ao trazer o consumo e depen- sistematicidade, questões relativas a
dência de drogas ao enredo com desafios enfrentados em dados mo-

* Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, pro-
fessora do mestrado em Políticas Públicas e do curso de Comunicação Social da Universidade Fede-
ral do Piauí – UFPI, e líder do Grupo de Pesquisas COMUM/UFPI. Email: jacdourado@uol.com.br.

44 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342


mentos por determinada sociedade. “Qualquer que seja o 1995 se define essa fase da TV brasilei-
Ao observarmos o fenômeno por ra, a partir da obra de Valério Brittos,
meio do eixo da Economia Política da país, a inserção da e é nesse panorama que se dá a re-
Comunicação – EPC, avaliamos que, estruturação dos mercados televisivos
pela ordem capitalista contemporâ- programação televisiva contemporâneos, ávidos por alternati-
nea, tais injunções são absorvidas vas para seu fortalecimento frente à
como alerta para a integração com como elemento concorrência.
outros agentes do capital, na tenta- Ocorre ainda a associação dos ato-
tiva de manter barreiras à expansão estratégico fortalece res a práticas de merchandsing como
desmesurada de corporações comuni- Hospital São Luiz e o ator como perso-
cacionais. Qualquer que seja o país, relações de poder, nagem X, Houston Bike com os perso-
a inserção da programação televisiva nagens Danilo e Sinval (Cauã Reymond
como elemento estratégico fortalece embora a função macro e Kaiky Brito), e a C&A - rede de varejo
relações de poder, embora a função de moda do Brasil com a personagem
macro da comunicação midiática deva da comunicação Melina (Mayana Moura).
se restringir a acompanhar as mudan- “Cidadania, a gente vê por
ças sociais e não a produzi-las. midiática deva se aqui!” - O que se observa na Rede
Também como elemento indisso- Globo de Televisão é a autorrefe-
ciável ao estudo está a ponderação restringir a acompanhar rência (a partir dos slogans adota-
acerca da postura do telespectador dos que surgem como palavras de
frente à programação da Rede Glo- as mudanças sociais e ordem), como locus promotor de
bo de Televisão. É preciso verificar cidadania ao longo da programa-
se há espaço para a reflexividade ou não a produzi-las” ção. Mas não se pode esquecer é
se a grade somente fortalece even- que, enquanto instituição privada,
tuais mecanismos regulatórios, res- cujos interesses são, em sua essên-
Concomitantemente a esses meca-
ponsáveis por coletividades passivas cia, particulares, essa cidadania
nismos, observam-se ainda determina-
e meramente consumidoras. Há in- é tematizada na grade e imprime
das práticas de mercado com o fito do
dicativos de que esses mecanismos uma feição de prática capitalista,
enfrentamento da multiplicidade de
representam fonte de interferência ou seja, emerge como configura-
ofertas de produtos culturais à dispo-
na autonomia das pessoas e em sua ção de administração do capital.
sição do público tais como CDs com a
capacidade de discernir sobre a par- O capitalismo, como qualquer outro
trilha sonora da novela nacional e in-
ticipação em questões importantes à sistema, mesmo abarcando um rol de
ternacional entre outros subprodutos.
sua própria vida, tornando-as, cada injustiças, às vezes, irreparável, não
A fase da multiplicidade da oferta
vez mais, reféns dos ditames do modo pode estar sujeito às críticas contínuas.
é perceptível desde o início da década
de vida imposto pelas regras de con- Se assim for, inviabilizará qualquer tipo
de 1990, quando há mais opções para
vivência entre Estado, mercado e so- de adesão. Precisa oferecer, minima-
os telespectadores e crescente dispu-
ciedade, a partir da lógica capitalista mente, vantagens que assegurem sua
ta por audiência. Porém, somente em
contemporânea. manutenção e, quiçá, sua melhoria.

SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 45


Destaques On-Line
Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponíveis Usina de Estreito e seus impactos socio-
nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br) de ambientais
31-08-2010 a 03-09-2010. Entrevista com Cirineu da Rocha, co-
ordenador do Movimento dos Atingidos
Direito, trabalho e novas tecnologias por Barragens (MAB)
Entrevista com Marcos Wachowicz, pro- Confira nas Notícias do Dia de 02-09-2010
fessor na Universidade Federal de Santa Disponível no link http://bit.ly/b00Zfi
Catarina Cirineu da Rocha comenta a situação dos moradores que
Confira nas Notícias do Dia de 31-08-2010 vivem próximo à obra da nova usina hidrelétrica na divisa
Disponível no link http://bit.ly/bga9OE do Tocantins com o Maranhão. Segundo ele, a construção da
Marcos Wachowicz propõe uma discussão sobre o uso das hidrelétrica na cidade de Estreito, no Maranhão, irá atingir
novas tecnologias e defende que a partir delas o esforço doze cidades, povos indígenas, ribeirinhos e outras pessoas
humano, que antes era braçal, virou intelectual. E ques- que dependem do rio.
tiona: “Qual sociedade nós queremos para o futuro?”.
O Brasil em chamas
Quatro rios unidos contra as Entrevista com Saulo Freitas, professor
“monstro-hidrelétricas” na Universidade Federal do Rio Grande do
Entrevista com Telma Monteiro, coordena- Norte e no Instituto Nacional de Pesquisas
dora de Energia e Infraestrutura Amazônia da Espaciais – INPE
Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé Confira nas Notícias do Dia de 03-09-2010
Confira nas Notícias do Dia de 01-09-2010 Disponível no link http://bit.ly/975R99
Disponível no link http://bit.ly/9VeUrV De acordo com o físico Saulo Freitas, o mês de setembro
Telma Monteiro, comenta sua participação no I Encontro dos deve seguir a tendência do mês de agosto, com tempo
Povos e Comunidades Atingidas e Ameaçadas por grandes pro- extremamente seco em função das queimadas. Ele ex-
jetos de infraestrutura, nas bacias dos rios da Amazônia: Ma- plica que “a fumaça fica na atmosfera por uns 10 dias,
deira, Tapajós, Teles Pires e Xingu, que aconteceu em Itaituba, mas os gases do efeito estufa ficam centenas de anos”.
no Pará. Mais de 600 pessoas protestaram contra Belo Monte.

EAD - Jesus e o Reino no Evangelho de Marcos


Data de Início: 16/08/2010

informações em www.ihu.unisinos.br

46 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342


Confira, a seguir, algumas das entrevistas que foram Entrevista com Rodrigo Vieira de Ávila e
publicadas pela IHU On-Line no site, no período em que Luciana Genro
a revista esteve em recesso, coincidente com as férias Confira nas Notícias do Dia de 18-07-2010
dos alunos da Unisinos. Disponível no link http://bit.ly/9z94fr
De volta à pauta da Câmara, o Imposto sobre
Homeopatia: medicina popular a serviço Grandes Fortunas está na Constituição, mas
de todos nunca foi regulamentado. “Grande parte dos parlamen-
Entrevista com Edna do Amaral, psicóloga tares representa os interesses da burguesia, que é quem
Confira nas Notícias do Dia de 17-07- detém grandes fortunas”, diz Luciana Genro.
2010
Disponível no link http://bit.ly/axPJoC Um homem ameaçado de morte
A psicóloga Edna do Amaral analisa a relação das mul- Entrevista com Javier Giraldo
heres e das comunidades em relação à medicina alter- Confira nas Notícias do Dia de 19-07-2010
nativa. E explica: “Se a pessoa não conseguir perceber Disponível no link http://bit.ly/bhDmqo
essa relação dela com o ambiente, com as pessoas e “A Colômbia é realmente um país que não vai bem.
com ela mesma, a homeopatia se inviabiliza enquanto Creio que o presidente Santos compartilhará das mes-
tratamento”. mas coisas que Uribe defende. Não acredito que ele vá
mudar essa estratégia de manejar dois tipos de grupos
Imposto sobre grandes fortunas: 22 anos sem regula- paramilitares”, opina o jesuíta ameaçado de morte.
mentação

publicações do Instituto Humanitas Unisinos - IHU


Disponíveis em www.ihu.unisinos.br

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Agenda da Semana
Confira os eventos desta semana realizados pelo IHU.
A programação completa dos eventos pode ser conferida no sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

Data: 6-9-2010
Evento: EAD - Jesus e o Reino no Evangelho de Marcos
SEGUNDA ETAPA - JESUS RESPONSÁVEL PELA VIDA (Mc 1,16-3,6)
Dia 8-9-2010
Evento: Ciclo de Estudos em EAD: Sociedade Sustentável
A questão energética no mundo contemporâneo
Dia 9-9-2010
Evento: Ciclo de Palestra Jogue Roayvu: História e Histórias dos Guarani. Pré-evento do XII Simpósio
Internacional IHU: A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade
Profa. Dra. Maria Cristina Bohn Martins – Unisinos
As missões e reduções dos Guarani
Evento: Ciclo de Filmes e Debates - Subjetividade e Normalização: Discutindo políticas de identidade
e saúde mental na sociedade contemporânea - Pré-evento ao XI Simpósio Internacional IHU: O
(des)governo biopolítico da vida humana
Prof. Dr. Carlos A. Gadea - PPGCS/ Unisinos
Exibição e debate do Filme Blade Runner, de Ridley Scott (EUA)
Dia 13-09-2010
Evento: XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana
Conferências simultâneas: Prof. Dr. Paulo C. Leivas - MP/RS, Prof. Dr. Márcio Seligmann-Silva -
Unicamp. Abertura: Prof. Dr. Frédéric Gros – Université de Paris XII
XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana
Evento: Ciclo de Estudos em EAD – Repensando os Clássicos da Economia - Edição 2010
As concepções teórico-analíticas e as proposições de
políticas econômica de KEYNES - John Maynard Keynes, 1883-1946

Leia a Entrevista do Dia em


www.ihu.unisinos.br

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XI SIMPÓSIO INTERNACIONAL I
O (DES)GOVERN
DA VIDA HUMAN
13 a 16 de setembro de 2010 A
Informações e inscrições: www.ihu.unisinos.br
ou Central de Relacionamento Unisinos - (51) 3591 1122
50 Local: Unisinos • Anfiteatro Pe. Werner • Av. Unisinos, 95006•DESão
SÃO LEOPOLDO, Leopoldo
SETEMBRO DE 2010 •| RS
EDIÇÃO 342
IHU:
NO BIOPOLÍTICO
NA
Apoio: Promoção:

SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 51


Eventos

Ajuda para reverter as mudanças climáticas


Em setembro, pessoas, organizações civis e igrejas se unem pela proteção do meio ambiente e pela
conscientização sobre as mudanças climáticas. O “Tempo da Criação”, período de oração promovi-
do pelas Igrejas cristãs, começou no dia 1º de setembro e irá se estender até o dia 10 de outubro,
data-chave para a campanha 10:10:10

Por Moisés Sbardelotto

É possível reverter as mudanças e pela 350.org, campanha que busca e atitudes pessoais e coletivas com as
climáticas? Segundo Julia Marton-Le- soluções para a crise climática a par- necessidades dos ecossistemas da na-
fèvre, diretora-geral da União Interna- tir de uma conscientização em torno tureza, para que toda a fauna e a flora
cional pela Conservação da Natureza das 350 partes por milhão de CO2, taxa do mundo e do universo possam viver,
– UICN, que reúne governos, ONGs e que, se for superada, segundo os cien- florescer e ser preservadas”.
cientistas, em entrevista à IHU On- tistas, acelerará ainda mais os danos Dentro desse espírito ecumênico, o
Line (http://bit.ly/bqpWNW), “o im- causados pelo aquecimento global, Instituto Humanitas Unisinos – IHU tam-
pacto das mudanças climáticas (…) que são já visíveis. bém se somou à campanha 10:10:10 e
se tornarão sempre mais graves se as Outra grande parceria da campa- publicará diversos materiais de cons-
emissões de gás de efeito estufa não nha 10:10:10 é o Conselho Mundial cientização e reflexão sobre o Tempo
forem imediatamente reduzidas”. Fe- de Igrejas, que organiza anualmente da Criação, nas Notícias do Dia, nas
lizmente, afirma, “a natureza também o “Tempo da Criação”, um período Entrevistas do Dia, no Blog do IHU e
está em condições de nos fornecer privilegiado para que as igrejas cris- na revista IHU On-Line, assim como irá
utensílios poderosos para lutar contra tãs reflitam e rezem pela proteção do dar passos concretos nesse sentido.
as mudanças climáticas”. meio ambiente “como Criação divina Uma iniciativa é a publicação, nas
Talvez, um dos “utensílios” mais e herança compartilhada”, nas pala- Notícias do Dia, publicadas de segunda
poderosos fornecidos pela natureza vras do Patriarca Ecumênico da Igreja a domingo no sítio do IHU, de reflexões
contra as mudanças climáticas seja, Ortodoxa, Bartolomeu I. Neste ano, sobre as principais leituras das celebra-
em primeiro lugar, o próprio ser hu- excepcionalmente, o Tempo da Cria- ções dominicais do Lecionário Comum
mano. “Cabe a cada um adotar gestos ção irá encerrar no dia 10 de outubro, das Igrejas Cristãs. Entre os dias 5 de
ecológicos no cotidiano”, diz Marton- para se unir à campanha 10:10:10 com setembro e 10 de outubro, sempre aos
Lefèvre. E esse é o desafio proposto orações, vigílias e ações concretas. O domingos, serão publicados textos de
pela campanha mundial 10:10:10. A tema deste ano – Criação florescen- autoria do reverendo anglicano inglês
proposta é assumir o compromisso de te: Um momento para a celebração e Keith D. Innes, membro do Churches To-
reduzir 10% do consumo de carbono ao o cuidado – também está relacionado gether in Britain and Ireland (www.ctbi.
longo de um ano, a partir do dia 10 de ao Ano Internacional da Biodiversidade org.uk), órgão ecumênico que reúne
outubro de 2010. das Nações Unidas. diversas Igrejas cristãs dos dois países
Nessa data, serão realizadas inú- Por ocasião do Dia da Proteção do nórdicos. Os artigos buscam incentivar
meras ações concretas e de conscien- Meio Ambiente, celebrado pela Igreja e apoiar estas igrejas na observação do
tização em todo o mundo, para que Ortodoxa no dia 1º de setembro, o Pa- Tempo da Criação a partir das leituras
esse seja o dia com o maior número triarca Ecumênico Bartolomeu I divul- bíblicas, para a proteção da criação de
de ações positivas contra as mudanças gou uma mensagem em que convoca os Deus e a promoção de estilos de vida
climáticas da história. O foco é a re- fiéis a “tomar parte na batalha titânica sustentáveis.
dução das emissões de CO2 e um menor e justa para aliviar a crise ambiental As Notícias do Dia também inicia-
consumo de carbono. e prevenir os resultados ainda piores ram a publicação de uma seção cha-
A campanha é promovida pela 10:10 que derivam de suas consequências.  O título da primeira reflexão é “Tempo
Global, organização fundada em 2009 Motivemo-nos a harmonizar nossa vida da Criação”: Soberania de Deus, respon-
por Franny Armstrong, diretora do fil-  Sobre Bartolomeu I leia mais nas Notí- sabilidade humana e está disponível em
me-documentário A Era da Estupidez, cias do Dia do sítio do IHU em http://bit. http://bit.ly/cRSA7T (Nota da IHU On-
ly/aBPk2F (Nota da IHU On-Line) Line)
52 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342
mada “Faça a sua parte” como mais 2. Consuma produtos locais: o trans- de TV que falam sobre meio ambiente e
um gesto concreto de participar da porte de produtos que vêm de longe desenvolvimento sustentável.
campanha 10.10.10 e do Tempo da consome petróleo e aumenta o efeito 12. Não use papel: utilize a tecnolo-
Criação. estufa. gia digital para enviar e receber do-
O IHU também está divulgando e 3. Diminua a temperatura de gela- cumentos e para se informar. Assim,
participando da campanha do Dia sem deiras, ar condicionados e estufas no você salva árvores e não polui com o
Carro, no dia 22 de setembro. inverno e aumente no verão: assim, transporte.
Além disso, no Blog do IHU, também você vive melhor e polui menos. 13. Escove os dentes, mas com inte-
serão disponibilizados subsídios para 4. Use melhor os eletrodomésticos: ligência: se deixar a torneira aberta,
uma semana de oração pela Criação, desligue o computador e a televisão você joga fora 30 litros de água. Abra
entre os dias 4 e 10 de outubro. Pre- quando não são utilizados. O modo a torneira só quando for preciso.
parados pela pastora valdense italiana stand-by consome energia e, portan- 14. Use lâmpadas econômicas: conso-
Letizia Tomassone, vice-presidente da to, polui. mem cinco vezes menos e duram 10
Federação das Igrejas Evangélicas da 5. Pegue sol. Como? Com painéis so- vezes mais.
Itália – FCEI, os momentos de oração, lares. 15. Coma de forma sadia, prefira o or-
de segunda-feira a domingo, são com- 6. Troque (se puder) de carro; prefira gânico: é um método de cultivo que
postos por uma leitura bíblica, infor- os movidos a gás ou etanol. E, princi- respeita o meio ambiente.
mações científicas sobre a ecologia e a palmente, use-os o menos possível. 16. Coma com consciência: os ham-
Criação, gestos concretos que podem 7. Fique com os pés no chão: os aviões búrgueres são bons, mas, para serem
ser feitos no dia a dia para preservar a provocam 10% do efeito estufa mundial. produzidos, destroem florestas intei-
natureza e uma oração final. 8. Coma frutas e verduras (se orgâni- ras. Pense nisso.
Para dar um pontapé inicial nos ges- cas, melhor): carne de ovinos e carne 17. Um banho é bom se dura pouco:
tos concretos em torno da proteção da de bovinos são responsáveis por 18% em três minutos, você consome 40 li-
Criação, buscando a meta proposta pela das emissões mundiais de gás carbôni- tros d’água. Em 10 minutos, mais de
campanha 10:10:10, publicamos aqui 20 co, além de favorecer o desmatamen- 130 litros.
medidas simples e inteligentes que po- to devido à sua exploração intensiva. 18. Pense sempre que todo objeto que
dem ser realizadas em nosso cotidiano 9. Use fraldas ecocompatíveis: a bio- você usa irá se tornar lixo: faça com
para ajudar o meio ambiente e reduzir o degradação das fraldas tradicionais que ele dure o máximo possível.
nosso consumo de carbono e emissão de leva 500 anos. 19. Usar e jogar fora? Não, obrigado. Por
CO2. As sugestões também são de auto- 10. Para conservar os alimentos, use exemplo, use pilhas recarregáveis: po-
ria da pastora Letizia Tomassone. vidro e não alumínio ou plástico: estes dem ser recarregadas até 500 vezes.
poluem e, para a sua produção, o des- 20. Faça a coleta seletiva: é a con-
1. Faça de conta que as sacolas plásti- perdício energético é enorme. tribuição mais inteligente e mais im-
cas não existem: use bolsas e sacolas 11. Informe-se com inteligência: exis- portante que você pode dar ao meio
de algodão para carregar compras. tem centenas de sítios, revistas e canais ambiente.

Ciclo de Palestra Jogue Roayvu: História


e Histórias dos Guarani. Pré - evento do XII
Simpósio Internacional IHU: A Experiência
Missioneira: território, cultura e identidade

Informações www.ihu.unisinos.br

SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342 53


IHU Repórter
Hélio Paz
Por Graziela Wolfart e Patricia Fachin | Foto Arquivo Pessoal

N
ascido em Porto Alegre e apaixonado pela internet, o professor Hélio Paz,
do curso de Comunicação Digital da Unisinos, conta nesta entrevista os prin-
cipais aspectos de sua trajetória pessoal e profissional. Encantado com a
carreira acadêmica, ele relata sua experiência em sala de aula e ainda
divide um pouco da sua visão de mundo e seus sonhos. Confira:

Origens – Nasci em Porto Alegre. da escola. Assim que acabei o tercei- ternet, vi um anúncio de que estavam
Meu pai era engenheiro de minas e ro ano, passei no vestibular da UFRGS precisando alguém para trabalhar com
metalurgia, trabalhava na rede ferro- para Jornalismo. Depois, quando esta- criação. Comprei um livro de HTML e
viária federal. Minha mãe sempre foi va no terceiro semestre, pedi transfe- aprendi a desenhar uma página. Fiz
dona de casa. Tenho três irmãos e eu rência interna para Publicidade. Não a entrevista e entrei em 1997 para a
sou o filho mais novo. Quando eu nas- é que eu não tenha gostado do Jorna- empresa que virou o Zaz que, depois
ci meu pai já estava estabelecido em lismo, mas criei mais afinidade com os de comprado pela Telefônica, virou
Porto Alegre. Meus irmãos passaram colegas de Publicidade e, ao mesmo Terra. Fiquei um ano e meio ali. Nesse
por uma época em que meu pai, que tempo, comecei a descobrir qualida- meio tempo eu dava alguns cursos de
recém tinha iniciado a carreira, era des minhas que eu não conhecia até Photoshop. Em 2002, o professor Alex
transferido de cidade em cidade. Me então, de trabalhar com foto e mani- Primo, da UFRGS, estava saindo para
criei no Bairro Auxiliadora, um bairro pular imagem com computação gráfi- fazer o doutorado e me avisou que
de classe média, com amigos que te- ca. Passei a gostar muito de tudo isso, abriria vaga para professor substitu-
nho até hoje. Foi uma infância diver- que eram coisas mais relacionadas com to. Ele sabia que eu queria dar aula.
tida, andando de bicicleta, brincando a Publicidade. Depois de vários anos Eu levei a documentação até lá, fui
de esconde-esconde, pulando dentro tentando, passei na seleção do mes- aprovado e fiquei um ano dando aula
da casa dos outros, porque não tinha trado em Ciências da Comunicação da como substituto na UFRGS. Essa expe-
grades. A gente jogava futebol e sem- Unisinos, que concluí em 2009. riência foi fantástica e decidi que não
pre fazia algum outro esporte, como queria saber de fazer outra coisa na
natação, karatê ou judô. Paixão pela internet - Descobri a vida. Também trabalhei um semestre
internet no final da faculdade. E pas- na Unifra, em Santa Maria. Mas quan-
Formação – Estudei em colégio pú- sei a me apaixonar por esse universo. do terminei o mestrado, não tinha ins-
blico, na Escola General Daltro Filho. Dentro da UFRGS, no Centro de Pro- tituição para lecionar. Praticamente
Era uma escola muito boa se comparar- cessamento de Dados – CPD, eles da- quase um ano depois da minha defesa
mos com o ensino público de hoje. Fui vam uma conta de e-mail para a gen- fui chamado pelo professor Daniel Bit-
privilegiado e talvez eu seja da última te. Não existia nem web ainda, não tencourt para trabalhar na Comunica-
geração que pegou o ensino público tinha interface gráfica. Era tudo por ção Digital da Unisinos. Estou bastante
de uma qualidade excelente. Os pro- linha de comando, bem rudimentar. satisfeito, porque é um curso de van-
fessores de todas as disciplinas eram Mesmo assim já se podiam estabelecer guarda. Nosso currículo não tem igual
ótimos. Depois, fiz o segundo grau no relações com as pessoas. Quando apa- no Brasil. Temos uma divisão clara en-
Instituto Porto Alegre - IPA, que é uma receu a web, comecei a utilizar acesso tre a prática e a teoria.
escola particular. Todo mundo teria discado em casa, mas era muito lento,
continuado no Daltro Filho se tivesse uma carroça. União – Vivo com a Lúcia, minha
segundo grau. O IPA dava muita ênfase companheira, há mais de cinco anos.
aos esportes. Eu não cheguei à seleção Trajetória profissional - Comecei  Leia uma entrevista exclusiva com Alex
nenhuma porque eu não tinha tanta trabalhando em algumas agências de Primo, publicada nas Notícias do Dia do
habilidade, mas fui do grupo de teatro publicidade. Já familiarizado com a in- sítio do IHU e disponível em http://bit.
ly/dzOKF0 (Nota da IHU On-Line)
54 SÃO LEOPOLDO, 06 DE SETEMBRO DE 2010 | EDIÇÃO 342
Não tenho filhos. Ela tem um fi- O que não posso praticar, gosto de cer. Percebo que estamos lidando
lho do primeiro casamento, que assistir. Ah, e sou gremista. com pessoas especiais, com um
já tem 21 anos, o Leo. Ele não propósito muito humano em tudo
mora com a gente. E nós moramos Sonhos – Tenho vários sonhos. o que fazem. O espírito da Uni-
com a minha mãe, que é viúva. Eu Um deles é que quero que todos sinos é de trabalhar em prol das
tenho vontade de ter filhos, mas saibam que aquilo em que eu par- comunidades onde ela está inse-
a Lúcia já vai fazer 43 anos. Não ticipei, no esforço conjunto com rida. E é isso o que faz com que
sei se a gente arrisca ou se de re- várias outras pessoas, levou a um a Unisinos seja hoje uma das me-
pente adotamos uma criança mais passo além. Outro sonho é entrar lhores universidades particulares
adiante. Eu sou filho adotivo. No no doutorado. Quero seguir a vida do país e a melhor da região sul.
começo eu tinha uma certa pre- no ensino, na pesquisa e na exten- É um privilégio, uma responsabi-
ocupação em relação a isso, mas são. Sonho em ver uma socieda- lidade e um orgulho muito grande
agora já não tenho mais. A Lúcia de com mais conhecimento, com estar aqui.
trabalha o dia inteiro em uma far- mais segurança e mais saúde. O
mácia e faz faculdade de História grande problema é a baixa auto- IHU – Visito seguidamente o
da UFRGS, estando 12 horas ocu- estima das pessoas, principalmen- site do IHU para ler as matérias,
pada todos os dias. Então agora te nas camadas mais populares. pego algumas revistas e cadernos
quero mais é ajudá-la a concluir do IHU para ler e gosto muito.
o curso. Unisinos – Sensacional. Aqui Esse trabalho é muito difícil de
na universidade é muito difícil encontrar em qualquer universi-
Nas horas livres – Gosto de ci- chegar em algum setor e encon- dade. Até porque aqui dentro da
nema, de assistir vários tipos de trar um funcionário de má von- Unisinos o IHU é muito divulgado,
filmes, de drama, comédia e filme tade ou alguém que não tenha a é apresentado para toda a comu-
europeu. Adoro esportes em geral. informação correta para ofere- nidade.

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Destaques
“Tempo da Criação” e a campanha 10:10:10
Desde 1º de setembro, as Igrejas cristãs iniciaram um tempo de re-
flexão e de oração pela natureza chamado “Tempo da Criação”. Do dia 1º de
setembro (primeiro dia do ano para a Igreja Ortodoxa) até o dia 4 de outubro (festa de São
Francisco de Assis para a tradição católica), o “Tempo da Criação” é um período para que as
igrejas reflitam e rezem pela proteção do meio ambiente. Neste ano, o “Tempo da Cri-
ação” irá encerrar no dia 10 de outubro, para se unir à campanha 10:10:10 com orações,
vigílias e ações concretas. Essa campanha visa incentivar indivíduos e organizações a reduzir o con-
sumo de carbono em 10% durante um ano, a partir de 2010. O IHU também se somou à campanha
10:10:10 e publicará diversos materiais de conscientização e reflexão sobre o “Tempo da Criação”,
nas Notícias do Dia, nas Entrevistas do Dia, no blog e na revista IHU On-Line, assim como irá dar pas-
sos concretos nesse sentido. Saiba mais em http://bit.ly/aJidHn

22 de setembro: Dia Mundial Sem Carro


Você anda de carro todos os dias? Seria capaz de ficar um dia sem usá-lo? Pois no dia
22 deste mês, é hora de aderir ao Dia Mundial Sem Carro. O principal motivo
da celebração é diminuir a quantidade de carros individuais nas cidades,
poupando grandes congestionamentos, poluição do ar e sonora, isolamento
urbano, acidentes fatais, problemas de saúde, alto consumo de combustíveis
fósseis, gastos aos cofres públicos, queda de produtividade e redução da
qualidade de vida. Hoje, mais de 40 países celebram o Dia Mundial Sem
Carro. Combater a “cultura do carro” que se instalou fazendo com que as
pessoas sonhem com carro próprio suportando um modelo insustentável,
também é uma forma de contribuir para a Campanha 10:10:10, no intuito
de reduzir o consumo de carbono. Para saber mais clique em http://bit.ly/bWLt0Y e leia a revista
IHU On-Line número 116, “Na cidade sem carro”, disponível em http://bit.ly/aIWWfv

Platão e os guarani
O texto Platão e os Guarani, de autoria da Prof. Dra. Be-
atriz Helena Domingues, da UFJF, acaba de ser publicado
no número 140 dos Cadernos IHU ideias, cuja versão em
PDF estará disponível no sítio do IHU dia 08 de setembro.
A publicação é mais um subsídio para o XII Simpósio Inter-
nacional IHU – A Experiência Missioneira: território, cul-
Apoio:
tura e identidade, que acontece em outubro na Unisinos.
A versão impressa pode ser adquirida na Livraria Cultural
da Unisinos. Saiba mais em http://bit.ly/bn5tcH

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