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Agora, leitor, que você também chegou até aqui, estou certo de que vai me dizer:
“Momento, isto não é um livro para crianças”. E eu responderei: “Não. Não é. Este
é um livro como a vida. Só é para crianças no começo.”
(Ziraldo, O menino quadradinho)
As perdas
O livro já começa com um inventário de perdas. Maria “queria ficar
sempre no circo. Trabalhando na corda. Era isso que ela queria”. (Bojunga,
1980: 21) Mas precisa se afastar do circo e do casal Barbuda e Foguinho, os
maiores amigos de seus pais, artistas do mesmo circo. Ela é obrigada a ficar
morando com a avó materna, por quem não tem afeição, enquanto os amigos
seguiriam viagem. Na despedida,
Barbuda abraçou e beijou Maria, entrou no elevador e virou a cara
pro canto. Foguinho, já dentro do elevador, prometeu:
- Sempre que o circo passar aqui no Rio a gente vem te visitar, viu,
Maria?
Maria fez que sim, mas não soltou a mão dele.
- E, olha, quando eu voltar, vou fazer cada mágica que vai te deixar
de boca aberta.
Maria fez que sim, mas não largou ele. Foguinho então puxou a mão
com força; o braço do paletó xadrez caiu no chão (era outra mágica que
Foguinho andava treinando: perder braço de paletó e perna de calça). Todo
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Você apresenta Maria assim: “(….) de calça de brim, um embrulho debaixo do braço, ia
levando a tiracolo um arco enfeitado com flor de papel, quase do tamanho dela (não era
muita vantagem: ela já tinha dez anos mas era do tipo miúdo).” (Bojunga, 1981a: 9)
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Bem que Barbuda tinha dito: “Sabe, Dona Maria Cecília, é um pecado
a Maria não ficar com a gente. A senhora é avó, tem direito. A gente não é
nada dela, só amigo, mas eu acho que com a gente ela ia ser muito mais
feliz”. (Bojunga, 1981a: 21) Pois esta avó já fora capaz até de sequestrar a
neta. Simplesmente, aproveitara a hora em que a filha e o genro se
apresentavam, para levar a menina e a esconder dos quatro aos sete anos.
Nesse período, deu de aniversário à Maria uma velha esfomeada (que idéia,
Lygia!), que topou ser contadora de histórias exclusiva de Maria em troca de
morar de graça e comer à vontade: “É isso mesmo, minha boneca: essa velha
é pra você. Quando você quiser ouvir história é só mandar: história! E
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Mesmo tendo sido sequestrada pela avó, Maria terá que morar com ela
quando se tornar órfã, aos dez anos. Na nova casa, fará amizade com um
menino de apenas cinco, que escolhe dividir o quarto. Quando ela chegou,
Quico já passava uma temporada com o avô, marido de Dona Maria Cecília.
Mas…
Foi no dia do teste que veio um telegrama pra Quico: Chegamos
segunda-feira para buscar você beijos mamãe papai. Quico ficou prosa: não
era todo o mundo que recebia telegrama. Mas Maria não gostou de ver
Quico indo embora. Depois do almoço, quando foi pra escola fazer o teste,
não conseguia prestar atenção nas perguntas. Perguntaram figura
geométrica, operação com fração, deram tema pra redação, quiseram saber
um monte de geografia, mas quem diz que ela respondia? Teve entrevista
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As portas
Em 1987, fui à estréia de uma adaptação teatral deste livro. O
espetáculo ficou ruim e ainda me lembro de sua fisionomia constrangida no
fim da apresentação. Não deve ter sido fácil subir ao palco para receber
aquelas flores sob fortes aplausos, o Nelson Rodrigues lotado. Eu já tinha 17
anos e lera o livro em criança, não sei exatamente quando. Lembrava de não
ter gostado tanto quanto dos seus outros livros. Achara este esquisito e não
sei que palavras teria usado para descrevê-lo. Mas minha leitura de Corda
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morrido e, pela primeira vez desde então, Maria fazia uma brincadeira.
Também, pela primeira vez, andava na corda... (Bojunga, 1981a: 16)
Depois, ao amarrar a corda da janela do quarto à janela em frente,
Maria
resolveu que a corda ia ser o calçadão dela: todo o dia de manhã cedo ela ia
sair pra passear. Sentiu o coração batendo emocionado. Até fechou o olho
pra escutar melhor. Mas lembrou que já ia ser hora do café, da aula
particular, do cachorro esparramado, onde é que ela ia botar o pé? Ai. Abriu
o olho: escutar pra quê? se o coração já estava batendo tão chateado.
(Bojunga, 1981a: 48)
Não que você elimine, ao final, o conflito que moveu toda a história.
Isso nunca. Você, como escreveu Denise do Passo Ramalho,
propõe a seus leitores (crianças, jovens e adultos) temas tão dilacerantes
como o abandono, o suicídio, o assassinato, a desintegração familiar, o
preconceito, a indiferença e a morte, os coloca diante não de histórias que
resgatam a paz e a serenidade, ou que lhes ofereçam, ao final, uma moral
apaziguadora e apaziguante. Não. Suas histórias falam da vida e de como é
possível seguir vivendo, ou seja, de como se pode transformar em
experiência – competência para estar no mundo – as pequenas e grandes
tragédias que se incorporam ao cotidiano de quem está no mundo.
(Ramalho, 2006: 12)
Por dentro
Corda bamba foi lançado em 1979. No ano seguinte, Eliana Yunes já
chamava atenção para o comportamento das narrativas encaixadas em sua
obra. Num exercício criativo que continua até hoje, você já escrevia histórias
dentro da história, sendo que o desenvolvimento das histórias menores
costumam ser de responsabilidade de um ou outro personagem. (Yunes,
1980) Mais recentemente, Denise do Passo Ramalho notava que
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Ela só pode reagir ao que a vida lhe preparou da forma que ela
mesma conseguir criar para reagir. Maria não tem uma tradição para copiar e
não está inserida num grupo social que lhe dê amparo. Ela mesma terá que
construir um amparo para si. É como a bolsa da Raquel, o ovo da Angélica e
outros exemplos frequentemente citados nesta carta que te escrevo: a corda
de Maria termina por ser um intervalo onde ela pode recriar sua existência -
a partir de sua inexorável solidão.
Lygia, toda sua obra fala de mundos extremamente pessoais, mas isso
não quer dizer que seus personagens sejam autocentrados ou egoístas.
Ocorre, sim - e isso fica mais claro ainda em Corda bamba - que eles se
deparem com situações de vida que não lhes deixam alternativa senão o
recolhimento passageiro. Algumas vezes, porém, deixei-me confundir por
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separa dele. Vistos de uma certa distância, os traços grandes e simples que
caracterizam o narrador se destacam nele. Ou melhor, esses traços
aparecem, como um rosto humano ou um corpo de animal aparecem num
rochedo, para um observador localizado numa distância apropriada e num
ângulo favorável. (Benjamin, 1993: 196)
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Lygia, existe um problema de tradução para o português do artigo O narrador, do
pensador alemão. O título original significaria, ao pé da letra, “o contador de histórias”.
Benjamin não se refere a quem narra experiências em geral, mas ao narrador vinculado à
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mercado. Ruth Rocha, atualmente aos 78, tem 143 títulos em circulação. Ana
Maria Machado, aos 67 anos, tem 128 títulos. Em contraste, você, aos 77
anos, acaba de publicar seu 22o livro4.
Mais de vinte livros em não sei quantos idiomas e em milhares de
edições de milhares de exemplares distribuídos mundialmente. Mesmo
assim, você se diz “artesã da escrita”, tenta fazer livro à mão, diz que faz
“mambembada”… A gente, que te lê, tende a assumir um modo de te ver
que não é mais, na verdade, que o seu modo de nos seduzir. O francês
Philippe Lejeune, que é a referência internacional para os estudos do gênero
autobiográfico, disse em entrevista de 2002:
Une autobiographie, par opposition à la fiction, mais aussi à la biographie
ou à l´histoire, est un texte relationnel: l´auteur demande au lecteur quelque
chose, et il lui propose quelque chose… (…) Quelque chose de très
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O texto sobre Corda bamba foi redigido em julho. Você completaria os 77 em 26 de agosto.