Você está na página 1de 11

6

Corda Bamba (1979)

Agora, leitor, que você também chegou até aqui, estou certo de que vai me dizer:
“Momento, isto não é um livro para crianças”. E eu responderei: “Não. Não é. Este
é um livro como a vida. Só é para crianças no começo.”
(Ziraldo, O menino quadradinho)

Sabe, uma vez pensei em fazer um projeto de mestrado sobre o


contraste entre a representação da morte na sua obra e nos livros do Paulo
Coelho. Minha intenção era carregada de todos os preconceitos que a gente
costuma ter em relação aos best-sellers, pois isso tem vários anos e ainda
não abri um volume deste autor. Agora vejo que essa questão renderia um
bom trabalho, mas não a levei adiante.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA

Talvez eu a tenha deixado de lado porque andava totalmente afastada


da vida acadêmica, tinha mais de seis anos que terminara o curso de
Jornalismo. Não me lembro o motivo, mas sei que não busquei instrumentos
para formular um projeto. Redigi apenas um esboço, num caderno pequeno,
de capa marrom e espiral preta (quando eu voltar ao Rio vou procurá-lo).
Escrevi no meu quarto, enquanto no quarto ao lado minha mãe tinha uma
doença terminal... Então, provavelmente, a enfermeira me chamou, minha
mãe deve ter precisado de alguma coisa e larguei a idéia para me lembrar
somente agora, quando te escrevo sobre Corda bamba.
A primeira morte que você apresenta é a do Terrível, que foge da
bolsa amarela para participar de uma luta, como galo de briga. A Raquel fica
tão triste quando sabe, que prefere fazer uma adaptação ficcional da
verdadeira história. Na ficção de Raquel, Terrível não perde a vida. A
segunda vez que você fala em morte é em A casa da madrinha, quando a
namorada do Pavão tinha se escondido no porão:
O grupo bem penteado e bem vestido foi embora com tudo resolvido,
tinham comprado a casa, iam fazer um edifício enorme de apartamentos.
Ficaram numa pressa danada de arrasar a casa, o jardim, tudo. A família se
mudou correndo. Chegou um bruto caminhão pra carregar os móveis, e já
chegou junto com trator e máquina e operário. Ainda nem tinham acabado
de tirar os móveis da casa e o trator já estava revirando o gramado,
65

derrubando árvore, empurrando a terra. O pessoal da mudança veio com um


engradado, botou o Pavão dentro, ele não entendeu o que é que estava
acontecendo, quando viu que iam separar ele da Gata da Capa gritou,
gritou, mas na confusão de tanta gente e tanta máquina destruindo tanta
coisa, ninguém ouviu nem ligou. (….) Até que de repente - Gata! Gata! (era
o Pavão gritando) - a janela do porão sumiu atrás do monte de terra, de
toco, de tronco, e pronto: a Gata da Capa ficou presa lá dentro. (Bojunga,
1979: 69)

Isso é triste demais. O contraste entre a delicadeza da gata e a violência


dos homens. O Pavão vendo tudo, sem poder fazer nada. Semelhante ao que
se passou com Maria, de Corda bamba, um mês antes de a história começar.
Ela vira quando seus pais, equilibristas de circo, apresentavam-se sem a
proteção da rede embaixo e caíram lá de cima. De aparência frágil,1 ela não
se lembra da cena e se mantém calada. Lygia, em seus livros anteriores
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA

predomina sua alegria de escrever que já mencionei. Neste Corda bamba,


contudo, te leio gravíssima. É uma história de luto, mas de um luto
especialmente triste: Maria perde, perde, perde.

As perdas
O livro já começa com um inventário de perdas. Maria “queria ficar
sempre no circo. Trabalhando na corda. Era isso que ela queria”. (Bojunga,
1980: 21) Mas precisa se afastar do circo e do casal Barbuda e Foguinho, os
maiores amigos de seus pais, artistas do mesmo circo. Ela é obrigada a ficar
morando com a avó materna, por quem não tem afeição, enquanto os amigos
seguiriam viagem. Na despedida,
Barbuda abraçou e beijou Maria, entrou no elevador e virou a cara
pro canto. Foguinho, já dentro do elevador, prometeu:
- Sempre que o circo passar aqui no Rio a gente vem te visitar, viu,
Maria?
Maria fez que sim, mas não soltou a mão dele.
- E, olha, quando eu voltar, vou fazer cada mágica que vai te deixar
de boca aberta.
Maria fez que sim, mas não largou ele. Foguinho então puxou a mão
com força; o braço do paletó xadrez caiu no chão (era outra mágica que
Foguinho andava treinando: perder braço de paletó e perna de calça). Todo
1
Você apresenta Maria assim: “(….) de calça de brim, um embrulho debaixo do braço, ia
levando a tiracolo um arco enfeitado com flor de papel, quase do tamanho dela (não era
muita vantagem: ela já tinha dez anos mas era do tipo miúdo).” (Bojunga, 1981a: 9)
66

o mundo caiu na gargalhada. Só Maria ficou séria, vendo a porta do


elevador se fechar. (Bojunga, 1981a: 22)

Bem que Barbuda tinha dito: “Sabe, Dona Maria Cecília, é um pecado
a Maria não ficar com a gente. A senhora é avó, tem direito. A gente não é
nada dela, só amigo, mas eu acho que com a gente ela ia ser muito mais
feliz”. (Bojunga, 1981a: 21) Pois esta avó já fora capaz até de sequestrar a
neta. Simplesmente, aproveitara a hora em que a filha e o genro se
apresentavam, para levar a menina e a esconder dos quatro aos sete anos.
Nesse período, deu de aniversário à Maria uma velha esfomeada (que idéia,
Lygia!), que topou ser contadora de histórias exclusiva de Maria em troca de
morar de graça e comer à vontade: “É isso mesmo, minha boneca: essa velha
é pra você. Quando você quiser ouvir história é só mandar: história! E
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA

pronto, ela conta”. (Bojunga, 1981a: 96)


Só que, mal chegou ao local, a velha comeu e bebeu tudo o que viu.
Assim, morreu de congestão (que horror, Lygia!) na frente de Maria, que
correu para avisar:
- O meu presente morreu.
Dona Maria Cecília pegou a Menina, quis tapar a cara dela com uma festa:
- Esquece, minha boneca, esquece.
- A comida nunca deu pra ela.
- O quê?
- Mas aqui tinha demais: ela morreu.
- Esquece, meu amor.
- Não. Não esqueço, não. (Bojunga, 1981a: 104)

Mesmo tendo sido sequestrada pela avó, Maria terá que morar com ela
quando se tornar órfã, aos dez anos. Na nova casa, fará amizade com um
menino de apenas cinco, que escolhe dividir o quarto. Quando ela chegou,
Quico já passava uma temporada com o avô, marido de Dona Maria Cecília.
Mas…
Foi no dia do teste que veio um telegrama pra Quico: Chegamos
segunda-feira para buscar você beijos mamãe papai. Quico ficou prosa: não
era todo o mundo que recebia telegrama. Mas Maria não gostou de ver
Quico indo embora. Depois do almoço, quando foi pra escola fazer o teste,
não conseguia prestar atenção nas perguntas. Perguntaram figura
geométrica, operação com fração, deram tema pra redação, quiseram saber
um monte de geografia, mas quem diz que ela respondia? Teve entrevista
67

com diretora, conversa com orientadora, e mais isso e mais aquilo, e o


pensamento sempre correndo atrás de Quico, Barbuda e Foguinho (todo o
mundo indo embora), correndo pro corredor comprido e abrindo tudo que é
porta.
O teste foi um fracasso. (Bojunga, 1981a: 108-109)

As portas
Em 1987, fui à estréia de uma adaptação teatral deste livro. O
espetáculo ficou ruim e ainda me lembro de sua fisionomia constrangida no
fim da apresentação. Não deve ter sido fácil subir ao palco para receber
aquelas flores sob fortes aplausos, o Nelson Rodrigues lotado. Eu já tinha 17
anos e lera o livro em criança, não sei exatamente quando. Lembrava de não
ter gostado tanto quanto dos seus outros livros. Achara este esquisito e não
sei que palavras teria usado para descrevê-lo. Mas minha leitura de Corda
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA

bamba realizou-se sob certo desapontamento, a história era talvez muito


abstrata e obscura para os meus poucos anos.
Não reli para ir assistir à peça e também não seria a peça que me
levaria a reler. Do espetáculo, guardo o trabalho fraco de uma atriz que se
apresentava insegura numa montagem chatíssima. No cenário, portas
coloridas que rodavam, abrindo, fechando, a atriz passando por uma e por
outra… De tudo, ficou-me a imagem de sua fisionomia constrangida
recebendo os aplausos, além daquelas portas que rodavam, rodavam, chega
eu fico tonta só de lembrar, vai ver que estava sentada muito perto do palco,
o pior foi que as portas rodavam cada vez com mais velocidade, mas não
adiantava o diretor insistir, porque essa peça era tão ruim quanto o livro é tão
bom. Lygia, ainda bem que reli.
A falta de palavras na boca de Maria chama atenção desde a primeira
página, pois enquanto os outros falam entre si e com ela, ela apenas faz um
ou outro gesto. No primeiro capítulo, outros seis personagens somam 95
falas, enquanto Maria tem apenas três - que grifo a seguir -, todas em relação
à corda que ganha. Pedro, o marido da avó, pergunta:
- Quer de presente?
- Toda?
- Se você quer…
68

Olharam bem um pro outro.


- Quero, sim.
(….)
Maria botou o embrulho no chão e ficou segurando o rolo com as duas
mãos. Quico perguntou:
- Pra que que você quer essa corda, hem?
Maria franziu a testa: é mesmo: pra quê?
- Acho ela bonita. (Bojunga, 1981a: 16-17)

Enquanto não rememora a cena da morte dos pais, Maria somente


fala ou age em relação à sua corda. Quando não se trata disso, permanece
passiva, quieta, como quem espera. Ao experimentar a corda nova, por
exemplo, chega a pregar uma peça em quem assiste ao número: finge que vai
cair, balançando no ar como só podem fazer os bons equilibristas. Então,
Barbuda e Foguinho se entreolham. Fazia um mês que seus pais haviam
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA

morrido e, pela primeira vez desde então, Maria fazia uma brincadeira.
Também, pela primeira vez, andava na corda... (Bojunga, 1981a: 16)
Depois, ao amarrar a corda da janela do quarto à janela em frente,
Maria
resolveu que a corda ia ser o calçadão dela: todo o dia de manhã cedo ela ia
sair pra passear. Sentiu o coração batendo emocionado. Até fechou o olho
pra escutar melhor. Mas lembrou que já ia ser hora do café, da aula
particular, do cachorro esparramado, onde é que ela ia botar o pé? Ai. Abriu
o olho: escutar pra quê? se o coração já estava batendo tão chateado.
(Bojunga, 1981a: 48)

A corda, amarrada assim, dá acesso à memória. No intervalo que faz


toda madrugada, ao ir caminhar/ equilibrar-se, Maria entra pela outra janela
e chega a um corredor que tem portas fechadas. Abrindo uma e outra,
relembra a história que havia esquecido. Dia a dia, pouco a pouco, monta o
quebra-cabeça: a história de amor dos seus pais, as brigas deles com sua avó,
o sequestro sofrido e, principalmente, a cena da morte do casal de
equilibristas. Por telefone, avisa à Barbuda: "É que… escuta… é que… eu
me lembrei de tudo, viu? de tudo. E agora… todo o dia eu lembro de novo
um pouco. Pra ir acostumando, sabe?". (Bojunga, 1981a: 122)
O livro termina anunciando um tempo de portas novas no mesmo
corredor. Portas que projetam um futuro melhor, com as saídas possíveis. Se
69

a avó é irremediavelmente distante e autoritária, tem um marido, Pedro, que


é boa-praça e não obedece à esposa. (Aliás, Maria trata a avó por “senhora”
e Pedro por “você”.) Se Quico voltou para casa, as aulas vão começar e
novos amigos vão aparecer. Se não é mais possível viver no circo, talvez
Maria passe as férias seguintes na companhia de Barbuda e Foguinho.
Lygia, Corda bamba acaba antes da solução, assim como acontece
em A casa da madrinha. O futuro melhor fica por vir, é uma possibilidade
que se abre. Já seus três primeiros livros apresentam o chamado final feliz:
em Angélica, a peça é um sucesso e Porco chega a despir o disfarce, em Os
colegas, a turma é contratada no circo e Cara-de-Pau até sorri, em A bolsa
amarela, Raquel solta as vontades como pipas, guardando para sempre a
vontade de escrever...
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA

Não que você elimine, ao final, o conflito que moveu toda a história.
Isso nunca. Você, como escreveu Denise do Passo Ramalho,
propõe a seus leitores (crianças, jovens e adultos) temas tão dilacerantes
como o abandono, o suicídio, o assassinato, a desintegração familiar, o
preconceito, a indiferença e a morte, os coloca diante não de histórias que
resgatam a paz e a serenidade, ou que lhes ofereçam, ao final, uma moral
apaziguadora e apaziguante. Não. Suas histórias falam da vida e de como é
possível seguir vivendo, ou seja, de como se pode transformar em
experiência – competência para estar no mundo – as pequenas e grandes
tragédias que se incorporam ao cotidiano de quem está no mundo.
(Ramalho, 2006: 12)

Nos três primeiros títulos, mesmo assim, os personagens terminam


com motivos para sorrir. Já em A casa da madrinha e em Corda bamba, não.
Tudo continua triste no final. A chave que fica com Alexandre e as novas
portas que Maria encontra apresentam uma saída como suposição. O irmão
mais velho havia dito que, quando Alexandre tivesse a chave no bolso,
resolveria todos os problemas. Maria pensa em pedir a Pedro que convença
sua avó a deixá-la passar as férias com Barbuda e Foguinho. O marido da
avó é simpático e já ofereceu apoio algumas vezes.
Nos dois casos, portanto, cria-se um espaço de amadurecimento. A
casa da madrinha e o corredor para onde a corda leva são um intervalo para
Alexandre e Maria crescerem. Alexandre ainda não resolveu nada, quando o
70

livro termina. Da mesma forma, ao final da história de Maria, supõe-se que o


dia dela vai chegar. Não será o dia ideal, com seus pais vivos, mas será o dia
que Maria poderá ter.

Por dentro
Corda bamba foi lançado em 1979. No ano seguinte, Eliana Yunes já
chamava atenção para o comportamento das narrativas encaixadas em sua
obra. Num exercício criativo que continua até hoje, você já escrevia histórias
dentro da história, sendo que o desenvolvimento das histórias menores
costumam ser de responsabilidade de um ou outro personagem. (Yunes,
1980) Mais recentemente, Denise do Passo Ramalho notava que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA

essas narrativas encaixadas de certo modo funcionam como o espaço de


conscientização das personagens, posto que, através delas é que os conflitos
apresentados nas obras irão encontrar as suas soluções. (Ramalho, 2006:
21)

Em Corda bamba, mais uma vez você trabalha com a criação de um


espaço interno, agora pela protagonista. Pela metáfora da corda por onde a
menina, exímia equilibrista, faz o caminho da rememoração-criação da
história de amor dos seus pais, passando pelo seu próprio nascimento e
chegando ao momento em que testemunhara a morte do casal. Pela
imaginação, portanto, pela busca de um caminho dentro do seu corpo, pela
busca desse corpo, a personagem passa a poder abrir, ela mesma, as portas.

A solidão é o que move a escritura


O modo “privado” invadiu todas as esferas na contemporaneidade,
inclusive a morte. O espaço da morte é, hoje, privado. A dor causada pela
morte de uma pessoa querida, Lygia, pontua a solidão e o desamparo em que
a modernidade nos lançou. A gente não tem mais uma igreja onde comungar,
uma aldeia onde ouvir nossa própria história já pronta, não. É este
justamente o problema que sua obra apresenta muitas vezes e, também,
através do sentimento da menina Maria.
71

Ela só pode reagir ao que a vida lhe preparou da forma que ela
mesma conseguir criar para reagir. Maria não tem uma tradição para copiar e
não está inserida num grupo social que lhe dê amparo. Ela mesma terá que
construir um amparo para si. É como a bolsa da Raquel, o ovo da Angélica e
outros exemplos frequentemente citados nesta carta que te escrevo: a corda
de Maria termina por ser um intervalo onde ela pode recriar sua existência -
a partir de sua inexorável solidão.
Lygia, toda sua obra fala de mundos extremamente pessoais, mas isso
não quer dizer que seus personagens sejam autocentrados ou egoístas.
Ocorre, sim - e isso fica mais claro ainda em Corda bamba - que eles se
deparem com situações de vida que não lhes deixam alternativa senão o
recolhimento passageiro. Algumas vezes, porém, deixei-me confundir por
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA

você. A partir de 1988, quando passou a publicar textos memorialísticos, seu


discurso se autoqualifica como impregnado da tradição oral e, logo,
vinculado ao artesanato. Em consequência, aquilo que Benjamin fala sobre o
“narrador” eu aplicava grosseiramente a você.
Na verdade, minha confusão era um pouco mais grave… Eu
confundia, também, a marca do artesão de que Benjamin fala com a
assinatura do autor moderno. Eu identificava, assim, a experiência possível
de ser transmitida pelo narrador referido por Benjamin com a experiência
particular de personagens como Maria. Fui salva, ainda bem, pela minha
professora Vera. Ela só faltou me sacudir durante o Exame de Qualificação,
para ver se eu acordava do sonho de te auratizar… Deixei passar um tempo
para reler Benjamin e finalmente entender que:
Justamente porque as experiências não eram criativas, mas seguiam
uma norma, o “narrador” transmitia um saber útil aos ouvintes. A
experiência que podia ser transmitida pelo “narrador” estava de acordo com
a tradição. Ao contrário da literatura moderna, portanto, a tradição oral
veiculava um texto de “dimensão utilitária” e
Essa utilidade pode consistir num provérbio ou numa norma de vida - de
qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas se
dar conselhos parece hoje algo antiquado, é porque as experiências estão
72

deixando de ser comunicáveis. Em consequencia, não podemos dar


conselhos nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos
responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de
uma história que está sendo narrada. (Benjamin, 1993: 200)

É importante frisar ainda que Benjamin não localiza a tradição oral


num tempo e num espaço específicos, limitando-se a determinar seus traços
opostos ao “romance moderno”. Para exemplificar a narrativa tradicional, ele
aponta parte da obra do russo Nikolai Leskov, que viveu entre 1831 e 1895,
mas não restringe os traços do narrador ao que encontra na obra em questão.
Benjamin inicia assim seu artigo:
Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente
entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia
ainda mais. Descrever um Leskov como narrador não significa trazê-lo
mais perto de nós, e sim, pelo contrário, aumentar a distância que nos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA

separa dele. Vistos de uma certa distância, os traços grandes e simples que
caracterizam o narrador se destacam nele. Ou melhor, esses traços
aparecem, como um rosto humano ou um corpo de animal aparecem num
rochedo, para um observador localizado numa distância apropriada e num
ângulo favorável. (Benjamin, 1993: 196)

A evocação do passado atende assim principalmente à


problematização da arte contemporânea. Benjamin continua: “Uma
experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e desse
ângulo de observação. É a experiência de que a arte de narrar está em vias de
extinção.”2 (Benjamin, 1993: 197) A técnica de impressão, ao desvincular a
circulação do texto de quem o conta, seria um elemento decisivo para essa
extinção:

O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o


surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o
romance da narrativa (e da epopéia no sentido estrito) é que ele está
essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna
possível com a invenção da imprensa. (Benjamin, 1993: 201)

A diferenciação entre as duas fases da literatura é marcada ainda pela

2
Lygia, existe um problema de tradução para o português do artigo O narrador, do
pensador alemão. O título original significaria, ao pé da letra, “o contador de histórias”.
Benjamin não se refere a quem narra experiências em geral, mas ao narrador vinculado à
73

presença, na tradição oral, do “extraordinário” e do “miraculoso”, sem que


“o contexto psicológico da ação” seja explicitado. A interpretação do fato
narrado ficaria, assim, inteiramente nas mãos do ouvinte/leitor. (Benjamin:
1993, 203)
Neste artigo, portanto, recupera-se uma figura do passado para
criticar as relações contemporâneas. Para Benjamin, na modernidade não se
pode transmitir experiências. O “narrador” é o contador de histórias que,
autorizado pela tradição, tece a narrativa das experiências de vida da
comunidade-ouvinte, que vive sob a égide da tradição. Já seus livros, como
você bem sabe, tratam da solidão e do desamparo contemporâneos - neste
Corda bamba, pontuados com o luto.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA

A sua aura que eu vejo


A gente que te lê tem mesmo tendência a te colocar no pedestal. A
você atribuímos a tal aura que, também segundo Benjamin, teria
desaparecido com a reprodução em série. É como se você iluminasse o
escuro por onde se passa… E assim acaba iluminando mesmo, mas não é por
isso que preciso acreditar em tudo o que você acredita.
Um dado que sem dúvida contribuiu muito para a sua auratização foi
o Prêmio Hans Christian Andersen, pelo conjunto da obra, recebido em
1982. Pela primeira vez este prêmio era concedido a autor não pertencente
ao chamado Primeiro Mundo e demorou mais 18 anos para que outro
brasileiro também o recebesse.3 A partir do anúncio de que você era a
vencedora, houve uma verdadeira consagração internacional, que levou sua
obra a ser traduzida para mais de vinte idiomas.
Além disso, você tinha publicado apenas mais um, além deste quinto
título. Os autores da sua geração, contudo, dedicados também ao público
infanto-juvenil, costumavam publicar títulos em série. Sylvia Orthof, por
exemplo, faleceu em 1997, aos 65 anos, com cerca de 120 títulos no

tradição oral, muito anterior ao livro.


3
Ana Maria Machado recebeu o prêmio em 2000.
74

mercado. Ruth Rocha, atualmente aos 78, tem 143 títulos em circulação. Ana
Maria Machado, aos 67 anos, tem 128 títulos. Em contraste, você, aos 77
anos, acaba de publicar seu 22o livro4.
Mais de vinte livros em não sei quantos idiomas e em milhares de
edições de milhares de exemplares distribuídos mundialmente. Mesmo
assim, você se diz “artesã da escrita”, tenta fazer livro à mão, diz que faz
“mambembada”… A gente, que te lê, tende a assumir um modo de te ver
que não é mais, na verdade, que o seu modo de nos seduzir. O francês
Philippe Lejeune, que é a referência internacional para os estudos do gênero
autobiográfico, disse em entrevista de 2002:
Une autobiographie, par opposition à la fiction, mais aussi à la biographie
ou à l´histoire, est un texte relationnel: l´auteur demande au lecteur quelque
chose, et il lui propose quelque chose… (…) Quelque chose de très
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA

particulier! Il demande au lecteur de l´aimer en tant qu´homme et de


l´approuver. Le discours autobiographique implique une demande de
reconnaissance, ce qui n´est pas le cas du discours de fiction. (Lejeune,
2002: 22)

Citei esta fala no meu projeto de tese e minha professora Vera


aprovou. Segundo ela, essa definição se encaixa perfeitamente com você.
Tanto que se mostrou preocupada com algumas coisas que eu tinha escrito
no projeto. Chegou a afirmar que, se eu não conseguisse desconfiar do seu
discurso, era melhor… eu não fazer a tese sobre você! Depois, brincou que a
banca tinha me aprovado por unanimidade e me aconselhado a… matar a
mãe!
Adorei esse conselho, sabia?, “matar a mãe” está uma delícia. Minha
professora Vera sabe muito, Lygia, mas não sabia que: este exercício de
desconfiar de você faria eu te amar assim - tão mais.

4
O texto sobre Corda bamba foi redigido em julho. Você completaria os 77 em 26 de agosto.

Você também pode gostar