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João Pessoa - PB
2007
EDVÂNEA MARIA DA SILVA
João Pessoa - PB
2007
iv
v
...
Muitos cavaleiros falharam ao tentar libertá-
la da prisão.Ela ficou aguardando no quarto
mais alto da mais alta torre por seu verdadeiro
amor e pelo beijo dele.
Como se isso acontecesse.
Quanta...
“Minina, pára de ler. Vai estudar!” Eu tinha 12 anos e essa era/ é a voz de
minha mãe, Marinalva Augusta, a quem, ao longo desses anos, em alguns momentos eu
(des-) obedeci.
A Marinete Vasconcelos, minha tia-fiandeira, que despertou em mim o prazer
em ouvir/ ler o conto maravilhoso.
Aos meus irmãos e sobrinhos, ótimos espectadores-torcedores.
Aos meus alunos, co-responsáveis por meu constante aprendizado.
A Adriana Paiva, Andréa Bühler, Carol Araújo, Ednalva Silva, Fanka Santos,
Gilvan de Melo, Jacinto Santos, Kátia Simone, Luis Diniz, Marcos de Andrade, Mário
Sérgio, Nivaldo Tenório, Rosângela da Silva, Rosanne Bezerra e Zonda (Geyzon Dantas),
amigos generosos que ouviram/ leram essa história (Dissertação) quando ela, muitas vezes,
não passava de uma narrativa tão tão distante.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal da Paraíba, especialmente, à Profª Drª Genilda Azerêdo, minha orientadora, pelo
constante incentivo, sensibilidade, guiando-me, serenamente, pelo reino da Literatura e do
Cinema nos momentos de maior inquietação em minha pesquisa.
A Lúcia Gaspar, da Biblioteca Central Blanche Knopf da Fundação Joaquim
Nabuco.
E, é claro, a ele, Shrek, esse ogro irreverente que não apenas reforçou o meu
encantamento pelos contos de fadas, mas também estreitou a minha relação com a Sétima
Arte, o que tem contribuído para a minha prática em sala de aula.
Resumo
Abstract
The present dissertation aims at investigating how our contemporary society is criticized
through social space in Shrek! (2001), a fairy tale by William Steig, and the movie Shrek 2
(2004), adapted by Andrew Adamson (DreamWorks). For this purpose we mixed
reflections about the socio-cultural context in which the book and the movie have been
produced with an intertextual analysis. We also observed how the author and the director
make parodies of the traditional fairy tales not only to confirm the perennial property of
these narratives, but also to provide readers and spectators with a critical reading of our
society. In this sense, the insertion of symbols revealing of capitalist power in the
construction of the filmic social space constitutes an effective resource once it enlarges
the meanings of the literary text.
Sumário
3.1 –- Do Buraco negro ao castelo maluco: o herói moderno desnuda o espaço social
do conto Shrek!, de William Steig. 52
1 Uma delirante confusão fabulística, versos de Maria Luiza Newlands Silveira para Escola de Samba Imperatriz
Leopoldinense, Carnaval de 2005. Disponível em http://liesa.globo.com/2007/por/ 18-outroscarnavais /carnaval05
/ enredos /imperatriz/imperatriz_meio.htm. Acesso 13 set. 2006.
11
O texto escolhido não poderia ser outro que não um conto de fadas, ainda que
moderno. Trata-se da animação Shrek 2, de Andrews Adamson, uma adaptação do conto
de fada Shrek!, de William Steig. Ao longo deste trabalho, mesclamos reflexões acerca do
contexto sócio-cultural em que livro e filme foram produzidos com análise intertextual,
bem como uma análise paratextual; nesse caso, a relação que o texto mantém com o seu
título.
Na história do ogro-herói, Steig e Adamson, na literatura e no cinema,
utilizam-se da paródia não só para homenagear essas narrativas (infantis, juvenis, adultas),
mas também para criticar a sociedade em que vivemos. Vale ressaltar que livro e filme não
se digladiam. A adaptação, ainda que de maneira indireta, tem o mérito de levar o público
em geral a ter acesso ao texto literário.
A fim de melhor discutir essas questões, dividimos nosso trabalho em três
capítulos: 2 – No reino de Perrault, La Fontaine, Grimm, Andersen: Breve história da boa idade
dos contos de fadas; 3 – Literatura e Cinema: sobre ogros, cebolas e adaptações; 4 – De
Shrek! a Shrek 2: um “reino” não tão distante.
No primeiro capítulo, analisamos a importância dos “primeiros” narradores
para a perenidade dos contos de fadas e das fábulas, bem como a relação dessas narrativas
com o contexto sócio-cultural e econômico em que foram adaptadas. Também
observamos como a história do ogro, quer seja na literatura, quer seja no cinema,
confirma a boa idade dessas narrativas tradicionais, uma vez que, embora às avessas,
recorrem à sua morfologia; falando, como fizeram essas histórias, a públicos diferentes.
O segundo capítulo trata das questões envolvidas no processo de adaptação de
um texto literário, bem como de que maneira certos elementos constituintes da narrativa
são traduzidos e/ ou dilatados na transposição do texto à tela. Discutimos, também, a
relevância do nome e da “figura” do protagonista e por que Shrek! e Shrek 2 são textos
paródicos e satíricos.
Ainda nesse capítulo, procuramos analisar o personagem ogro, à luz da
gramática do monstruoso, e sua relação com o espaço social do texto literário. Quanto ao
texto fílmico, entendemos o espaço social como representação da sociedade
contemporânea. Nesse sentido, os estudos de Adorno e Horkheimer acerca da Indústria
Cultural são uma contribuição valiosa.
13
2 Terceira dimensão.
14
“conto de fada”, uma vez que, apesar de pertencerem ao universo do maravilhoso, ambas as narrativas “apresentam
diferenças essenciais, quando analisadas em função da problemática que lhes serve de fundamento. Grosso modo,
pode-se dizer que o conto maravilhoso tem raízes orientais e gira em torno de uma problemática material/social/sensorial – a
busca de riquezas; a conquista de poder; a satisfação do corpo etc. -, ligada basicamente à realização socioeconômica
do indivíduo em seu meio. Ex: Aladim e a lâmpada maravilhosa; O Gato de Botas; O Pescador e o Gênio; Simbad, o Marujo.
[...] Quanto ao conto de fadas de raízes celtas, gira em torno de uma problemática espiritual/ética/existencial, ligada à
realização interior do indivíduo, basicamente por intermédio do Amor. [...] Ex: Rapunzel, O Pássaro Azul, A Bela
Adormecida, Branca de Neve e os Sete Anões, A Bela e a Fera. Cf. COELHO, 2003, p. 79.
15
Acerca da propagação dos contos de fadas, Warner (p. 21) observa que
A França, assim como outros países desenvolvidos, vive uma nova era. Mas, o
ser humano não. A nosso ver, a (re-) leitura de O Pequeno Polegar, um dos contos da
Mamãe Gansa, permite-nos não só compreender o contexto social da França do séc.
XVII - “período em que a peste e a fome dizimavam a população”, “os pobres comiam
carniça atirada nas ruas por curtidores” e “as mães “expunham” os bebês que não podiam
alimentar, para eles adoecerem e morrerem” (DARNTON, p. 49), mas também
comprovar a atualidade dos contos de fadas, uma vez que essas histórias transmitem uma
verdade importante, desagradável e, acrescentamos, atemporal: “a pobreza e a privação
não melhoram o caráter do homem, mas, sim, o tornam mais egoísta e menos sensível aos
sofrimentos dos outros, e assim sujeito a empreender feitos malvados” (BETTELHEIM,
p. 195). Vejamos:
O lobo e o cordeiro
A razão do mais forte é a que vence no final
(nem sempre o Bem derrota o Mal).
Um cordeiro a sede matava
nas águas limpas de um regato.
Eis que se avista um lobo que por lá passava
em forçado jejum, aventureiro inato,
e lhe diz irritado: - "Que ousadia
a tua, de turvar, em pleno dia,
a água que bebo! Hei de castigar-te!"
- "Majestade, permiti-me um aparte" -
diz o cordeiro. - "Vede
que estou matando a sede
água a jusante,
bem uns vinte passos adiante
de onde vos encontrais. Assim, por conseguinte,
para mim seria impossível
cometer tão grosseiro acinte."
- "Mas turvas, e ainda mais horrível
foi que falaste mal de mim no ano passado.
- "Mas como poderia" - pergunta assustado
o cordeiro -, "se eu não era nascido?"
- "Ah, não? Então deve ter sido
teu irmão." - "Peço-vos perdão
mais uma vez, mas deve ser engano,
pois eu não tenho mano."
- "Então, algum parente: teus tios, teus pais. . .
Cordeiros, cães, pastores, vós não me poupais;
por isso, hei de vingar-me" - e o leva até o recesso
da mata, onde o esquarteja e come sem processo. (La Fontaine)10
Crescemos (ou será que voltamos à infância?) com essas narrativas. Quem não
conhece a história de uma linda garota, maltratada por sua madrasta e filhas, que recebe a
ajuda de sua fada madrinha para ir ao baile real, onde conhece o príncipe, que a tira do
borralho, e os dois vivem felizes para sempre? Ou a história do patinho que, por ser
grande e feio, causava vergonha aos seus irmãos? E, um dia, quando nadava, passou por
dois cisnes que não o enxotaram. O “patinho” estranhou tal atitude. Viu sua imagem
refletida no lago e descobriu que havia se transformado num belo cisne, causando
admiração, inclusive, em seus “irmãos”.
10 Cf. http://www.metaforas.com.br/infantis/oloboeocordeiro.htm
19
11Fabulista grego que viveu por volta do século VI a.C. foi o primeiro criador/ divulgador de fábulas, “seguido em
Roma pelo grande fabulista Fedro (séc. I d. C.)”. Cf. COELHO, 2003, p. 133.
20
Assim como faz a fábula, esse conto de fada, através do lúdico, veicula o
pedagógico, enfatizado pela moral que o encerra. Longe de se aposentar, fábula e conto
gozam de uma boa idade que nasceu adulta, já foi criança e hoje, indiferente à faixa etária,
transita pelo universo do humano. Isso posto, convém definir esses contos fabulosos e
sua morfologia; (re-) conhecer seus mais famosos narradores; cabe, ainda, o
reconhecimento do conto de fadas como gênero de protesto.
No que diz respeito à sua nomenclatura, embora contenham o substantivo
“fada”, muitos contos não apresentam essa personagem. Nesse caso, o vocábulo deve ser
entendido no sentido etimológico da palavra a fim de caracterizar essas narrativas.
Segundo Cunha, A. (2001, p. 347), fada vem do “lat. fāta, pl. de fātum ‘destino’”. Para
Warner (p. 49, grifo nosso),
Os contos de fadas são histórias que, nas mais antigas menções de sua
existência, incluem o círculo de ouvintes, o público; enquanto apontam para
possíveis destinos, possíveis finais felizes, envolvem com sucesso os ouvintes ou
leitores ao levá-los a se identificarem com os protagonistas, com seus
infortúnios e triunfos.
Era uma vez, uma pequena meiga menina da qual todo mundo passava a gostar assim que
a conhecia. Mas ninguém a amava tanto quanto sua vovozinha, que não sabia mais o que fazer para
agradá-la. Certo dia deu a ela um chapeuzinho de veludo vermelho. [...] Um dia sua Mãe lhe chamou e
disse:
- Chapeuzinho, leve este bolo e essa garrafa de vinho para a vovozinha, pois ela está doente
e fraca, e isto lhe fará muito bem. Vá logo. [...] Não se desvie da estrada, senão você poderá cair, quebrar
a garrafa e estragar o bolo, e assim a pobre vovozinha não receberá nada. [...] "Se eu levar um ramalhete
de flores para a vovó, ela ficará muito contente; ainda é bem cedo e eu chegarei a tempo." [...] “Nunca
mais sairei da estrada e penetrarei na floresta, quando isso for proibido por minha mãe”. (GRIMM,
1987, p. 4 et seq.)
Chapeuzinho vermelho é uma das muitas histórias que, apesar de não apresentar
uma fada, aponta um destino, um final feliz. Contudo, o destino desses enredos, no
processo de escritura, nem sempre percorreu um mesmo caminho. Em “O condão
cognitivo: passe de mágica como metonímia” (2005, p. 7), Rocha observa que Cinderela, de
21
Perrault, baseado no conto popular A Gata Borralheira, possui uma versão diferente da dos
Irmãos Grimm:
12 O meio mágico é um auxiliar do herói e corresponde a uma das funções do personagem. Cf. PROPP, 1984, p. 44.
22
13 Parte do título de um excerto de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, adaptado para a prova de Língua
Portuguesa da UFPE-UFRPE/2001. Embora não tenhamos encontrado a expressão (exata) em Freyre, a nosso ver,
ela corresponde ao pensamento do Mestre de Apipucos. Cf. FREYRE, 2004, p. 413-415.
23
Oliveira, a fábula já foi considerada por vários autores como o “estudo da natureza
humana”. La Fontaine (apud Lucena e Oliveira, p. 114) é enfático: “Le fables ne sont pas
ce qu'elles semblent être”14 Essas narrativas “pueris” atravessaram os séculos
denunciando e criticando as injustiças sociais. Elas são, como bem lembram Lucena e
Oliveira, “pequenos repositórios de sabedoria que têm instruído e encantado povos das
mais diversas nações” e atribuem ao seu caráter mitológico a responsabilidade de tirá-las
“do vulgar, do lugar comum” (p. 114).
Era uma vez... Moral da história... Contos de fadas ou fábulas? Mitos. De acordo
com Fiker (2000, p. 39), “o mito se dá originalmente a partir da narrativa oral, não
dispondo em si mesmo de “forma literária”. Esta lhe é dada a posteriori, ao ser escrito ou
anotado”. Assim, sendo filhos da oralidade, os contos de fadas e as fábulas são mitos.
Explicando a origem do termo, Fiker observa que uma das acepções da palavra “mito”
(Do gr, mithos) refere-se a uma “narrativa qualquer” (p. 40). Weinrich (apud Fiker, p. 41)
aponta alguns sinais (a presença de todos não é obrigatória) que caracterizam a narrativa
como mito, dentre eles: sinais situacionais, vários ouvintes reunidos em torno de um
narrador; e sinais textuais persistentes, fórmulas de introdução como “Era uma vez...”15.
Acerca do “parentesco” entre conto de fada e mito – este aqui interpretado
como fábula – Bernadette Bricout (2005, p. 192) observa que ambas as narrativas orais
têm origem na memória coletiva e são contadas “por um grande locutor anônimo de
contornos indecisos”. A inscrição do conto de fada na tradição, contudo, parece revelar as
limitações do narrador. Em outras palavras, o narrador (fiandeira-Sherazade), através de
motivos (Aarne-Thompson) ou das funções dos personagens (Propp) apodera-se do
modelo da tradição oral – foi assim com Perrault, Grimm, Steig e Adamson, conforme
veremos mais adiante – e dá à sua narração uma palavra nova, muitas vezes, em
consonância com o contexto sócio-político-cultural de sua platéia.
O Leão e o Rato, O Lobo e o Cordeiro, Cinderela, Chapeuzinho vermelho - fábulas e
contos de fadas – essas histórias nasceram adultas. De acordo com Mário Corso16, não é
de hoje que o conto de fadas é uma história para todos. Corso cita como exemplo O
Patinho Feio, de Andersen. Trata-se de uma história que não só traduz o desamparo
14
As fábulas não são o que parecem ser (Tradução nossa).
15 Essas informações são dadas na nota de rodapé. Cf. FIKER, 2000, p. 41.
16 Cf. Freud e as fadas Revista Época, nº 384, 26/09/2005. Disponível em
http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,ESP889-1654,00.html. Acesso em 05 jul. 2006.
25
infantil, mas também a sensação de insignificância que temos para com o mundo. Se os
contos de fadas hoje têm um forte apelo junto ao público infantil - basta olhar de soslaio
para a variedade de publicações, reedições e releituras destinadas à garotada -, é graças a
uma revisão do conceito de infância.
A partir dos estudos de Ariès, Corsino observa que as mudanças pelas quais a
sociedade passou, tais como “a ascensão da burguesia e o crescente interesse pela
alfabetização” (p. 12), foram fundamentais para a valorização - e por que não dizer
civilização? - da infância. Zipes (apud Abramowicz, 1998) acredita que a civilidade é “a
chave para se compreender o papel que os contos de fadas tiveram na França e sua
importância dinâmica da civilização”.
À época do já citado Ancien Regime, a infância não era vista como uma fase
“claramente distinta da adolescência, da juventude e da fase adulta por estilos especiais de
vestir e de se comportar” (DARNTON, p. 47). Tal fato acarretava o conhecimento
precoce da vida sexual dos adultos por parte dos seus filhos, uma vez que todos (pessoas
e animais) eram obrigados a dormirem juntos a fim de se aquecerem.
Por civilização, compreendemos o processo pelo qual os elementos culturais
de uma sociedade, leiam-se conhecimentos, técnicas, bens materiais, valores, costumes,
etc, são elaborados, desenvolvidos e aprimorados. Elias (apud Brandão, 2003, p. 2)
entende que “o processo civilizador constitui uma mudança na conduta e sentimentos
humanos rumo a uma direção muito específica”.
Nesse sentido, como os contos de fadas poderiam ter “civilizado” a infância?
De acordo Velay-Vallantin (apud Abramowicz, p. 9), o conto era um discurso literário que
tinha por objetivo
nutrir de hábitos, práticas e valores permitindo uma entrada mais fácil na
civilização regida por códigos sociais aristocráticos; é necessário analisar as
narrações como apelos às reivindicações nobres e às novas alianças
socioculturais.
história dos três porquinhos (1993), de Jon Sciezka, é contada sob o ponto de vista do lobo,
que acaba reforçando a história “original” contada há três séculos.
Em O fantástico mistério de Feiurinha (1997), Pedro Bandeira não só vai além do
“Felizes para sempre” – as princesas dos contos de fadas estão velhas e rabugentas – mas
também age como seus predecessores: escreve a história de Feiurinha, colhendo-a da
tradição oral. Suas personagens Jerusa e Escritor têm um papel importante nesta peça
teatral: a primeira resgata a figura da fiandeira; a segunda presta uma homenagem a
Perrault, Grimm, Andersen, dentre outros escritores e escritoras.
Em “Hierarquia” (FERNANDES, M., 1973, p. 123), de forma bem humorada,
Millôr revisita a fábula O Leão e o Rato e propõe-nos não só uma outra moral: “AFINAL
NINGUÉM É TÃO INFERIOR ASSIM”; mas também uma submoral: “NEM TÃO
SUPERIOR, POR FALAR NISSO”. A paródia de Millôr humaniza-nos e sacraliza o
texto de La Fontaine. Por humanização, Candido (1989, p. 117) entende
o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais,
como o exercício da reflexão, aquisição do saber, a boa disposição para com o
próximo, o afinamento das emoções, a capacidade e penetrar nos problemas da
vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o
cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na
medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a
sociedade, o semelhante.
A paródia aos contos de fadas e às fabulas se dá porque “o homem pós-
moderno continua a falar, a produzir seu discurso, embora consciente de que nada mais
pode fazer a não ser reciclar significados já cristalizados” (SOUTO, 1998, p. 198). Nesse
sentido, parece que Perrault, La Fontaine, Grimm e Andersen não só vivem a boa idade
dos contos de fadas, como também estão longe da aposentadoria.
27
Era uma vez um ogro verde, feiíssimo, que cuspia fogo e soprava fumaça pelas orelhas.
Quando já estava “grandinho”, seus pais o expulsaram do buraco negro, de onde ele nunca havia saído.
Shrek (como era chamado), feliz, saiu pela estrada, soltando “puns” e assustando cobras, bruxas,
criancinhas, chuva, relâmpago, trovão e dragão. Mas o ogro também queria saber o que lhe reservava o
futuro. Ao saber que encontraria uma princesa para se casar e que esta era mais feia do que ele, o ogro-
herói vibra e vai ao encontro de sua amada. No caminho, encontra um “alazão”, quer dizer, um burro,
que vai levá-lo até o castelo maluco, onde está a princesa. Lá chegando, zomba do cavaleiro que guarda a
entrada do castelo, cospe uma rajada de fogo nele e deixa-o torradinho nas águas do fosso. Antes de chegar
ao salão onde a princesa mais horrorosa do planeta o aguardava, Shrek se depara com a Sala de
Espelhos: é o momento de revelação, pois o ogro-herói não conhecia a própria imagem. Ao se reconhecer tal
qual se havia imaginado, sente-se cheio de uma raivosa auto-estima; em seguida, encontra a princesa a
quem dedica versos horrorosos que são retribuídos com a mesma intensidade. Os passos seguintes são
trocar mordidas e beliscões, casarem o mais depressa possível e viverem horríveis para sempre.17
cartuns. Em 1968, iniciou uma nova carreira: escritor (e ilustrador) de histórias infantis.
Fazendo uma breve incursão por alguns dos contos18 infantis, de Steig, deparamo-nos
com estórias de animais, particularmente com asnos e porcos, dentre as quais, Sylvester and
The Magic Pebble, Shrek! e The toy brother.
Sylvester and The Magic Pebble é a história de um pequeno asno que coleciona
seixos. Certo dia, o pequeno Sylvester descobre que uma de suas pedras é mágica e que,
ao fazer um pedido, seu desejo torna-se realidade. Um dia, estando em apuros, deseja se
transformar em um rochedo. A partir desse momento, os pais do pequeno asno sofrem
com o seu desaparecimento. Como muitos contos de fadas, essa narrativa tem um final
feliz, mas, como as fábulas, também encerra uma moral: “Be careful what you wish for”.19
Esse conto protagonizou dois momentos díspares: em 1970, a crítica
americana premiou Steig com The Caldecott Medal; no ano seguinte, as associações de
polícias tentaram remover as cópias do livro de várias bibliotecas dos Estados Unidos,
alegando que havia uma representação satírica das polícias como porcos. Irônico, Steig
respondeu que não incomodaria as crianças com propaganda política.20 Os contos de
Steig sempre tiveram uma recepção positiva por parte da crítica, não só americana - que o
agraciou com o American Book Award, em 1983, por Doctor De Soto -, mas também da
crítica italiana, que lhe concedeu o prêmio de melhor livro infantil, em 1990, por The Real
Thief (LORENZ, 1998, p. 673).
Em 1990, aos oitenta e três anos, Steig apresentou ao público americano
Shrek!. Indubitavelmente, esse irreverente conto de fada atingiu um público maior quando
a indústria da animação adaptou a história do ogro, resultando em dois filmes: Shrek
(2001) e Shrek 2 (2004). A escritura dessa narrativa parece a retomada de uma tradição
oral. Explicamos: nos contos de fadas, e com Shrek! não é diferente, é possível
encontrarmos traços do ciclo arturiano – cujas narrativas derivam da tradição oral céltico-
bretã -- como “a freqüência de situações, em que as mais perigosas tarefas são confiadas
ao herói, a presença do amor como força impelente à demanda de aventuras, tendo como
prêmio a bela noiva meta e conquista” (FERREIRA, J., 1979, p. 42).
18 Steig publicou mais de 15 livros infantis entre 1968 e 1998, todavia, a maioria das edições está esgotada, inclusive
nos Estados Unidos. Cf. LORENZ, 1998, p. 673.
19 “Cuidado com o que você deseja” (Tradução nossa).
20 Disponível em < http://www.williamsteig.com> Acesso em 09 jul. 2006.
29
Essa divertida previsão que a bruxa faz para Shrek ratifica o que diz Ferreira, J.
acerca de o amor ser a força que impele o ogro à aventura; todavia, numa inversão
paródica, o “prêmio-meta” é uma noiva bem mais feia que o ogro-herói. Em a História do
Príncipe do Barro Branco e a Princesa do Reino do Vai Não Torna, Severino Milanês da Silva,
poeta cordelista, narra a história do personagem João que é obrigado, pelo príncipe do
Reino do Barro Branco, a trazer a princesa do Reino do Vai Não Torna para que se
casem. Todos os outros enviados sempre falharam e não voltavam porque não
conseguiam esconder-se do livro e do espelho com que os via a princesa. João, auxiliado
por uma ovelha, sai vitorioso e casa-se com a princesa.
[...]
João lhe disse princesa
eu venho aqui obrigado
do príncipe do Barro Branco
eu sou o encarregado
para levar a princesa
na côrte do seu reinado
[...]
João chegou no reinado
estava um desgôsto profundo
tudo coberto de luto
desde o rico ao vagabundo
e o príncipe do Barro branco
morrendo no outro mundo
30
“os ogros têm camadas”: a criança sorrirá da “chatice” do asno, mas o adulto,
provavelmente, entenderá a metáfora21. Texto literário ou texto fílmico, a história do
ogro-herói significa e confirma a boa forma dos contos de fadas. Destarte, a fim de
comprovar nossa assertiva, analisaremos Shrek! e Shrek 2 à luz de algumas das funções das
personagens de Propp.22
Em sua Morfologia do conto maravilhoso, Vladimir Propp tece várias críticas aos
trabalhos que se propuseram a estudar o conto maravilhoso. De acordo com Propp (p.
14),
21Discutiremos essa questão no capítulo 3, “Literatura e Cinema: sobre ogros, cebolas e adaptações”.
22Optamos por analisar apenas os textos Shrek! e Shrek 2 (e não outros contos), tendo em vista que nossas reflexões
ao longo desse trabalho irão recair sobre eles, já que constituem o objeto de nossa pesquisa.
32
deve-se ao fato de que uma elaboração histórica correta está condicionada a uma
elaboração morfológica também correta (p. 23).
Discutindo acerca do “Método e Material” de estudo do conto maravilhoso,
Propp observa que essa narrativa “atribui freqüentemente ações iguais a personagens
diferentes”, permitindo estudar “os contos a partir das funções dos personagens” (p. 25), e que
por função “compreende-se o procedimento de um personagem, definido do ponto de vista de sua
importância para o desenrolar da ação” [grifos do autor] (p. 26), por exemplo, “o herói é
mandado embora de casa”. De acordo com Propp, é essa função que “introduz o herói
no conto” (p. 39). Vale lembrar que o ogro, no conto de Steig, é expulso de casa por seus
pais para fazer sua dose de maldades; na adaptação fílmica, Shrek (2001), ele deixa seu
“lar” porque este havia sido invadido pelas “coisas dos contos de fadas”, o que leva Shrek
a fazer um acordo com Lord Farquaad: salvar a princesa Fiona da guarda do dragão e, em
troca, ter seu pântano de volta.
Acreditamos que (re)conhecer tais vestígios (as funções) no moderno conto de
Steig e nas adaptações de Adamson é relevante porque confirma a perenidade dos contos
de fadas tradicionais, através da escrita palimpsesta de Shrek!, Shrek e Shrek 2. Visando a
uma melhor compreensão por parte do leitor, propomos analisar essas narrativas à luz das
funções de Propp; antes, convém realizar a mesma tarefa com o tradicional conto de fada
A Bela Adormecida, de Perrault. Nossa escolha deve-se ao fato de que na abertura de Shrek
e Shrek 2 os personagens ogro e Encantado fazem, claramente, uma referência ao conto
da Mamãe Gansa.
A história da bela jovem, condenada a dormir por cem anos, começa quando
um sapo (ou rã, depende da adaptação) prevê, para a alegria do casal real, o nascimento de
uma linda princesinha. Com a chegada de tão gracioso presente, o rei e a rainha decidem
dar uma festa para apresentá-la e convidam toda a corte, inclusive as fadas que vêm como
convidadas de honra. Esta seria uma situação inicial23 de A Bela Adormecida. Uma das
fadas, entretanto, foi preterida. Rancorosa, dirige-se ao berço da princesinha, no
momento em que a última fada ofereceria o seu presente, e lança um feitiço: quando a
princesa completar quinze anos vai se ferir com o fuso de uma roca e morrerá. O feitiço é
suavizado pela última fada: a morte se converterá em sono profundo por um século.
23 Grifos nossos a fim de destacar a presença das funções de Propp nos contos de fadas.
33
Impõe-se uma proibição: o rei ordena que todas as rocas do reino sejam
destruídas. Geralmente nos contos de fadas, a proibição é imposta ao herói, mas
conforme observa Propp (p. 26) “as funções de certos personagens dos contos
maravilhosos se transferem para outros personagens. Antecipando, podemos dizer que
existem bem poucas funções, enquanto os personagens são numerosíssimos”. A
proibição é transgredida, pois uma das rocas havia sido esquecida numa velha torre. A
princesa, então com quinze anos, encanta-se com o instrumento e pede a uma velhinha (a
fada-má) para experimentá-lo; no instante seguinte, cumpriu-se o feitiço, o antagonista
causa dano ou prejuízo a um dos membros da família.
Segundo Propp (p. 35), “as formas de dano são extremamente variadas”
dentre elas, o antagonista provoca um desaparecimento repentino [grifos do autor, p. 36). Como
exemplo, Propp cita o caso de uma madrasta que faz o enteado adormecer e sua noiva
desaparece para sempre. Após tocar no fuso da roca, a jovem princesa adormece e com
ela todo o seu reino e em volta do seu castelo surge uma vegetação tão densa que o
encobre, uma espécie de desaparecimento. Um século mais tarde, é divulgada a notícia
do dano ao herói e deixam-no ir. “Esta é a função que introduz o herói no conto”,
afirma Propp (p. 39). O príncipe toma conhecimento da história da bela princesa
adormecida, decide ir ao seu encontro, mas é desencorajado, uma vez que outros bravos
cavaleiros haviam falhado, pois temiam que ele tivesse a mesma sorte.
Na versão adaptada por Perrault, o príncipe enfrenta dificuldades para entrar
no castelo, pois cada vez que ele cortava as plantas que impediam a sua passagem, elas
ressurgiam mais fortes. Uma fada ouve a sua reclamação, vem em seu socorro e
transmite-lhe um auxiliar mágico, uma espada espacial com que ele abriu caminho até
chegar ao interior do castelo, deparar-se com um dragão feroz para em seguida vencê-lo.
Em seguida, o príncipe dirige-se ao quarto onde estava a princesa, beija-a, acordando-a, e
todo seu reino, do sono profundo.
Shrek! trilha um caminho análogo ao dos contos de fadas tradicionais. Ou seja,
o conto começa com uma certa situação inicial. Ficamos conhecendo a descrição dos
pais do herói, o seu nome (Shrek) e suas características físicas e psicológicas. “Embora
esta situação não constitua uma função, nem por isso deixa de ser um elemento
morfológico importante” (PROPP, p. 31). Nos contos de fadas, essa situação inicial é
seguida do afastamento de um dos membros da família, às vezes, por morte ou trabalho.
34
Em Branca de Neve e os sete anões, primeiro morre a mãe da protagonista, depois é a vez de
seu pai, ficando a jovem aos cuidados de sua invejosa madrasta.
No conto de Steig, Shrek é expulso de sua casa e enviado a um mundo
desconhecido, a fim de cumprir uma designação: “fazer sua dose de maldade”. De
acordo com Bettelheim (p. 124), “Ser enviada para o mundo ou abandonada numa
floresta simboliza tanto o desejo dos pais de que a criança se torne independente, quanto
o desejo ou ansiedade da criança pela independência”. Todavia, como bem lembra
Bettelheim, esse impacto sobre a criança só é possível porque, antes de tudo, o conto é
“uma obra de arte” (p. 20).
Sendo esta uma narrativa de transgressões em que o herói é horrendo e sua
expulsão de casa em nada abala a sua moral, é compreensível que ele não respeite a
proibição de não entrar no bosque, do mesmo jeito que assume o papel de agressor,
destruindo “a paz da família feliz” (PROPP, p. 33). Nesse sentido, Shrek é mais
aterrorizante que a bruxa e o dragão, personagens (quase) inofensivos do conto de Steig.
Apesar disso, o ogro, como o príncipe, tem uma carência: ele deseja uma noiva. É nesse
instante que entra a figura do doador, a bruxa. Segundo Propp (p. 41), o doador costuma
ser “encontrado na mata, no caminho, etc. [...] Mas antes de receber o meio mágico, o
herói é submetido a certas ações bem diferentes entre si [...]”.
Nesse sentido, Steig parece ter compreendido a morfologia dos contos de
fadas e aplica-a, ainda que às avessas. Nas narrativas clássicas, é comum o doador mostrar
ao herói um objeto mágico e propor-lhe uma troca. Em Shrek!, é o ogro quem propõe à
senhora dos horrores alguns de seus piolhos raríssimos; em troca, ela lhe diria o seu
futuro. Na busca por sua noiva, é indispensável a ajuda de um meio mágico que pode
ser “maçãs, água, cavalo, espadas, etc.” (PROPP, p. 38). A bruxa de Shrek! oferece-lhe
não a maçã, mas a torta de maçã travestida da palavra mágica “Apfelstrudel”24. Esta será a
senha que levará o ogro ao “meio mágico”: um burro sonolento e apático que, apesar de
levar Shrek até o castelo onde estava a princesa, não participa de suas outras ações como:
assustar um lavrador e outras criaturas, enfrentar relâmpagos, chuvas e trovões e um
dragão enorme.
Além do mais, a escolha de um asno, em vez de um alazão, que levaria o
“herói” à princesa, ratifica duas características importantes desse animal na literatura:
24 Tipo de doce da culinária alemã, semelhante a um folhado, recheado com maçãs.
35
divertir-nos e revelar a tolice alheia. A ignorância do burro pode ser lida como uma
metáfora da alienação humana na sociedade contemporânea, conforme discutiremos mais
adiante. Por ora, cumpre registrar o que nos diz Warner acerca da figura do asno (p. 167)
fingindo tentar se entender com Shrek, o rei convida-o para uma caçada no dia seguinte.
Esta representaria a situação inicial em Shrek 2. O rei não comparece ao compromisso,
mas envia o Gato de Botas que tem a missão de matar o ogro. Ao tomar tal atitude, o rei
(antagonista) causa um dano. “Essa função é extremamente importante, porque é ela, na
realidade, que dá movimento ao conto maravilhoso” (PROPP, p. 35). Além do mais, a
ordem para matar “é, em essência, uma expulsão modificada (reforçada)” (PROPP, p. 37).
A certeza de que não é bem-vindo ao reino e, conseqüentemente, à vida de
Fiona, abala o ogro. No entanto, como faz um herói-buscador, Shrek reage e vai à
procura da fórmula mágica que lhes traria (a ele e a Fiona) o “Felizes para sempre”. Antes
de partir nessa aventura, Shrek atende ao pedido de clemência do Gato de Botas e
poupa-lhe a vida. O passaporte, leia-se objeto mágico, para um “novo” eu, oferecido
pela Fada Madrinha e recusado pela princesa Fiona, passa a ser agora objeto de desejo do
ogro. Na seqüência do conto, “coloca-se à disposição do herói um novo objeto mágico”
(PROPP, p. 55). Em Shrek 2, junto com o Burro e seu mais novo companheiro, o Gato
de Botas, o ogro rouba a poção mágica do “Felizes para sempre” e, de certa forma, chega
incógnito a Far Far Away.
Todavia, em seu lugar, apresenta-se um falso herói: o Príncipe Encantado,
filho da Fada Madrinha. No decorrer da trama, o verdadeiro herói é reconhecido
“graças a uma marca ou estigma” (PROPP, p. 57). A marca de Shrek é a sua voz.
Simultâneo ao reconhecimento do ogro, ocorre o desmascaramento do príncipe
Encantado. As funções, assim como a narrativa, caminham para o fim: o herói recebe
nova aparência, ou seja, retorna à sua condição ogra; os inimigos são castigados.
Em geral, são castigados apenas o malfeitor da segunda seqüência e o falso
herói; o primeiro antagonista só é castigado no caso de não haver na narrativa
nem combate nem perseguição. Caso contrário, morre durante a luta ou a
perseguição (a bruxa estoura ao tentar beber o mar, etc.) (PROPP, p. 58).
Nesse sentido, a Fada Má-drinha desaparece como bolhas no ar; o rei Harold
volta à sua forma anfíbia e o Encantado termina “nos braços” da Irmã Feia. Quanto a
Lord Farquaad, antagonista de Shrek (primeiro filme), foi devorado por um dragão-fêmea.
Como última função, é comum o herói se casar e subir ao trono. Sendo os
protagonistas desse moderno conto de fadas “marido e mulher”, há, na verdade, uma
renovação do casamento. Isso posto, cabe uma indagação: Qual é a importância dessas
funções na tessitura dos textos de Steig e Adamson?
37
Página por página, cena por cena, Steig e Adamson confirmam a perenidade
dos contos de fadas tradicionais, mas também tecem um retrato mais humano do
“príncipe encantado”. Metamorfoseado em ogro, ele desobedece ao “curso da história”,
vai de encontro ao seu destino, e é feliz. Para BOURJEA (1986, 141-142), “as
metamorfoses são sempre o sinal de um desbloqueamento, simbolizam a liberação das
pulsões contidas por muito tempo e a brusca realização de um desejo”. Na aventura em
busca e pela preservação do “Felizes para sempre”, o ogro revela a (falsa) harmonia do
campo florido e entra em conflito com o reino Tão Tão Distante.
Identificar as funções de Propp na história do ogro verde, sujo e flatulento dá-
nos a impressão de que estamos diante de um palimpsesto. Isso ocorre porque Shrek! e
Shrek 2 possuem camadas de sentidos que são construídos a partir de uma escrita
paródica. Voltando à indagação acima, Propp sugere que o problema “só pode ser
resolvido mediante uma análise dos textos” (p. 59). Destarte, como leitores do irreverente
ogro, na literatura e no cinema, sugerimos não esperar “que uma palavra madrinha” nos
conceda a nós e a nosso “discurso a benção de uma interpretação” (NÓBREGA, 1986, p.
122); antes, propomos partir imediatamente para o próximo capítulo.
38
Enquanto Shrek prova um doce, oferecido por sua amada, que havia ficado sobre sua
cabeça, ouve-se a canção “Accidentally in Love", dos Counting Crows, e só então surge o
letreiro Shrek 2 (2004).
Como em muitas produções cinematográficas, só conheceremos os envolvidos
no processo de realização de Shrek 2, direção, produção, música, figurino, edição e, no
caso de desenhos animados, vozes do elenco, no final da película. Observamos, também,
que a história do ogro não é o resultado de um roteiro original; na verdade, trata-se da
adaptação do moderno conto de fadas Shrek! (2001), de William Steig.
Diferentemente dos contos de fada tradicionais adaptados pela Disney, dentre
eles, Branca de Neve e os sete anões27 (1937), Cinderella (1950), A Bela Adormecida (1959), A Bela
e a Fera (1991), em Shrek (2001) e sua seqüência Shrek 2 (2004), ambos produção da
DreamWorks, a história do ogro-herói tem vida própria; em outras palavras, o texto
fílmico não pretende ser uma cópia do texto literário. Na tradicional história da jovem de
cabelos negros como o ébano, poucas são as intervenções na transposição, o que nos leva,
de certa forma, a buscar um “parentesco”, no sentido de equivalência, entre ambas as
linguagens.
A título de exemplo, destacamos que, no texto literário, os anões não
possuíam nomes; a Rainha tentou diversas vezes, e não uma apenas, matar Branca de
Neve; e, ao invés do beijo salvador do príncipe, os anões são os verdadeiros responsáveis
por sua salvação, uma vez que ao carregarem o esquife de ouro, tropeçam numa pedra e o
pedaço da maçã envenenada salta da garganta da bela, devolvendo-lhe a vida.
Quanto às adaptações do conto de Steig, não somos levados a buscar esse grau
de “parentesco”. Talvez porque só tomemos conhecimento da existência de um texto
“original” nos créditos finais das animações, ou porque, diferente de as Crônicas de Nárnia:
o Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, de C. S. Lewis -- sucesso de crítica e público,
publicadas na metade do século passado e que tiveram o seu relançamento em 2005 -- a
obra de Lewis ainda figure nas prateleiras de livrarias e de grandes estabelecimentos
comerciais.
Shrek e Shrek 2 são textos que parecem ter uma independência maior do texto
que os inspirou. A independência das adaptações em relação ao texto de Steig ocorre
27Primeiro longa de animação da Disney teve 8 relançamentos nos cinemas americanos: 1944, 1952, 1958, 1967,
1975, 1983, 1987 e 1993. Cf. http://www.animatoons.com.br/movies/snow_white/curiosidades.php.
40
Não! Não!
Que dentes enormes você tem.
Brancos e brilhantes. Deve ouvir sempre isso da sua comida. Deve fazer
clareamento porque tem um sorriso ofuscante. Senti um frescor de hortelã?
Sabe o que mais? Sabe o que mais? Você é um dragão moça!
Um filme é, pelo menos num contexto capitalista, uma mercadoria que dá (ou
deve dar) lucro. [...] Mas, não se pode dizer que o lucro seja o único motivo
atrás de cada adaptação fílmica de um romance. George Lukács sugere que as
obras de arte são revitalizadas quando correspondem a ansiedades similares
àquelas do período no qual foram originalmente produzidas. (p. 9)
ordem histórica e social; o outro, de ordem prática. “Para Bazin, o cinema teria realizado,
no nosso século, o que nenhuma atividade artística conseguira ao longo da história
moderna, que foi reacender a popularidade da arte, como só existira na idade média [...]” e
acrescenta “Ora, se os grandes escritores estão sendo adaptados pelo cinema, o público
em geral está tendo acesso indireto a eles, e este já é o argumento de ordem prática [...]”
(p. 20). Noutras palavras, a relação entre a literatura e o cinema não é uma via de mão
única. Acreditamos que muitos leitores não-americanos só tiveram contato com o conto
de Steig após assistirem ao (s) texto (s) fílmico (s).
Além das peculiaridades das linguagens do texto literário e fílmico, Azerêdo
(2003, p. 58) chama a atenção para a importância dos diversos fatores envolvidos no
processo de adaptação:
30 Discutimos acerca da reputação de William Steig, criador de Shrek, no capítulo No reino de Steig e Adamson: a
história do moderno conto de fadas na literatura e no cinema.
44
b) no filme, o ogro faz um acordo com Lord Farquaad: ele salvaria a princesa
Fiona da guarda de um dragão e em troca teria o seu pântano de volta, pois o seu “lar”
havia sido invadido por personagens dos contos de fadas. O Burro não entendia por que
Shrek simplesmente não fazia “umas coisas de ogro” para assustá-los.
A discussão que se inicia é reveladora . . .
“Eu sei. Eu poderia decapitar a vila toda, espetar as cabeças deles, pegar uma
faca, abrir seus baços e beber seus fluidos. Gosta disso?”, pergunta Shrek revoltado.
“Na verdade, não”, afirma o Burro pensativo.
“Os ogros são bem melhores do que as pessoas acham”, diz Shrek, desolado.
“Por exemplo”, indaga o Burro.
“Os ogros são como cebolas”, esperando que o Burro tenha entendido.
“Eles fedem?”, questiona o asno como se tivesse acertado.
“Sim. Não!”, grita Shrek, impaciente.
[..]
“Não! Camadas! As cebolas têm camadas. Os ogros têm camadas. As cebolas
têm camadas. Entendeu? Ambos temos camadas”; irritado, Shrek joga a cebola no chão e
continua a caminhar.
“Ambos têm camadas”, diz o Burro malicioso; cheira a cebola e afirma: “Não
são todos que gostam de cebola”. Em seguida, como se houvesse entendido a metáfora,
salta, gritando, na frente de Shrek: “Bolo! Todos adoram bolo! Os bolos têm camadas!”
45
31 “A cebola é a unidade do múltiplo; o cosmo; a causa primeira; imortalidade; revelação, visto que para alcançar o
centro é necessário limpá-la. Apotropáica, é especialmente poderosa contra os poderes lunares sinistros” (Tradução
nossa).
32 Ampliaremos essa discussão em “Far Far Away: uma alegoria da sociedade contemporânea”, capítulo posterior.
46
33“Foram projetadas e construídas consciente ou inconscientemente por seu (s) autor (es) a fim de projetar uma
agenda específica e incentivar um conjunto particular de respostas” (Tradução nossa).
47
tem o seu pântano de volta. Além disso, em momento algum o ogro mata; antes, age
como um salva-vidas, pois livra a princesa do dragão, quando outros já haviam falhado.
“Apesar de não ser mau, pode fazer o papel de bicho-papão.” É interessante
observar como essa assertiva pode ilustrar uma cena de Shrek. O ogro jantava
tranqüilamente em sua casa, no pântano, quando ouviu um barulho lá fora: eram os
camponeses que, armados com instrumentos de trabalho e tochas, vinham capturá-lo.
Shrek, esperto, sai de casa e segue-os sem ser visto. Ao verem luzes na cabana, deduzem
que o ogro está em casa. Um dos camponeses diz que vai pegá-lo, mas é desencorajado
por um companheiro:
“Sabe o que ele pode fazer com você?” Alguém se antecipa e diz: “É. Ele vai
moer todos os seus ossos”. Shrek sorri; todos olham para trás assustados, e o ogro corrige
a “informação”, ironizando: “Na verdade, isso é coisa de gigante. Agora, os ogros são
piores. Fazem um terno com sua pele recém-arrancada. Cortam seu fígado em fatias,
espremem a geléia dos seus olhos. Fica gostosa na torrada.”
Enquanto descrevia a cena de tortura, Shrek caminhava em direção aos
camponeses que estavam visivelmente aterrorizados. Um dos ex-algozes, contudo, decidiu
enfrentar o ogro: “Para trás, fera! Para trás! Estou lhe avisando”. Indiferente à ameaça,
Shrek molha os dedos com sua saliva e apaga sua tocha; em seguida, dá um grito
assustador e nojento (já que saem “melecas” de sua boca) que apaga as demais tochas.
Paralisados de medo, os camponeses não conseguiam fugir; Shrek, então, calmamente
aproxima sua mão esquerda do rosto e, como se confidenciasse algo, diz: “É nessa parte
que vocês fogem.” Todos largam suas armas e fogem; o ogro, gargalhando, ameaça: “E
fiquem longe daqui!”
Essa agressividade irônica do Shrek, tanto no texto literário como no texto
fílmico, está sintonizada com o seu parônimo “Shriek”. Substantivo ou verbo, esse
vocábulo tanto pode nos remeter à idéia de “som agudo, alto; grito”, como também, se
acrescentarmos a ele a expressão with laugther, “rir às gargalhadas” (MICHAELIS, 2001, p.
286). Acerca do significado do nome, Chevalier e Gheerbrant (2000, p. 641) afirmam que
34 Artigo publicado na Revista Tambor, Recife, v. 01, n. 01, p. 63-69, 2003, da Faculdade de Formação de Professores
de Belo Jardim, Pernambuco. Cf. http://www.secrel.com.br/jpoesia/katiarose3.html
35 nunca são neutros. [...] A nomeação dos personagens é sempre uma parte importante na criação dos autores,
A sátira, em contraste, é:
37 O clichê, a nosso ver, corresponde ao estereótipo do príncipe encantado, da bela princesa, etc.
38 Falamos sobre o esgotamento das composições clássicas, na página 37.
51
ambígua, ou seja, representa o céu e o abismo. Essa assertiva nos remete à expressão “ser
de fronteira”, sobre a qual discutiremos em momento ulterior.
Por ora, convém nos determos na simbologia das cores, mais precisamente na
cor de nosso herói, o verde. Na nossa época, em que o avanço tecnológico permitiu que o
homem, primeiro, fosse à Lua, e mais tarde depositasse um robô em solo marciano, a fim
de que este percorresse a superfície em busca de “seres” vivos, é lugar comum vermos
esses seres tingidos de verde – como outrora Perrault tingiu de azul, o Barba - na tentativa
de mostrar que os marcianos são o avesso da humanidade e que, portanto, devem ser
escondidos para que os papéis “jamais se invertam” (CHEVALIER; GHEERBRANT, p.
942, grifo nosso).
Nesse sentido, ao ser expulso por seus pais, Shrek ameaça a ordem
estabelecida. A semelhança do ogro-marciano com o “homenzinho verde” estende-se,
também, à sua moradia. Em outras palavras, o “planeta” de Shrek, o buraco negro,
aproxima-se do planeta vermelho (não na tonalidade), já que ambos encerravam seres
avessos àquilo que a sociedade, meio em que o indivíduo habitante do planeta Terra vive,
dita como normal.
O personagem de Steig pode ser identificado com o Barba Azul, o marciano, o
herói moderno e fragmentado, o monstro pós-romântico. De acordo com Bellei (2000, p.
11, grifo do autor), “O conceito de “monstruoso” aplica-se, de forma geral, tanto ao
humano quanto ao não-humano e designa principalmente o híbrido e o deformado [...]”.
Etimologicamente, a palavra monstro, dentre outras acepções, significa “ser de
conformação extravagante, imaginado pela mitologia [...], pessoa cruel, desnaturada ou
horrenda” (CUNHA, A., 2001, p. 531). Nesse sentido, Shrek, o ogro, é um monstro, uma
vez que “[...] era capaz de cuspir fogo a cem metros de distância e soprar fumaça pelas
duas orelhas. Só de olhar, ele fazia os jacarés se esconderem de medo. Se uma cobra
bancasse a boba e o mordesse, ela entrava imediatamente em convulsão e morria”.
O ogro (Do fr. ogre) é um ser fantástico, como o bicho-papão, de que se fala
para assustar as crianças. No universo da simbologia, o ogro liga-se à imagem “simbólica
do monstro, que engole e cospe fogo, lugar das metamorfoses, de onde a vítima deve sair
transfigurada” (CHEVALIER; GHEERBRANT, p. 651).
Todavia, no conto de Steig, mesmo quando nos parece que o ogro vai sofrer
uma transformação, tudo não passa de um sonho. A (única) cena que ilustra nosso
55
comentário ocorre quando Shrek “estava fora do ar”, ou seja, ele sonhou que estava
recebendo abraços, beijos e carinhos das crianças. Acordou assustado, mas tranqüilizou-
se: “Ainda bem que foi só um pesadelo... um pesadelo aterrador!”. Ironicamente, o que
acontecia era as pessoas e os fenômenos naturais, como o relâmpago, o trovão e a chuva,
assustarem-se com ele.
Uns pingos de chuva grossa começaram a cair. Quando batiam na corcunda do
Shrek, chiavam como água na frigideira. “Já viu alguém mais nojento?”, o
Relâmpago perguntou para o Trovão. “Nunca na vida”, trovejou o Trovão.
“Vamos lhe dar uma lição.” O Relâmpago disparou seu raio mais terrível no
cocuruto do Shrek. Shrek nem ligou: engoliu o raio, cuspiu um pouco de
fumaça e deu uma gargalhada. O Relâmpago, o Trovão e a Chuva caíram fora.
A fim de tornarmos nossa análise mais produtiva, e por que não dizer, também
mais prazerosa, convém analisarmos a monstruosidade de Shrek “não apenas como
fantasia exótica, mas como história social” (BELLEI, p. 14). Essa análise será
fundamental quando observarmos a relação entre o personagem e o espaço social.
A história tem-nos legado uma gramática do monstruoso com registro na
Idade Média, na época clássica e no Romantismo. Santo Agostinho, citado por Bellei,
preocupava-se com as formas mais diversas do monstruoso: “E existem homens sem
boca, que vivem apenas absorvendo odores pelo nariz; e outros que têm apenas um
cúbito de altura [...]”. David Williams, também citado por Bellei, observa que a cultura
Medieval européia “dedicou-se assiduamente a estabelecer quadros taxonômicos da
monstruosidade”, e acrescenta: “uma verdadeira gramática do monstruoso que tenta
explicar como o monstro é fabricado com base, principalmente, em quatro tipos diversos
de deformação: deformação por excesso, por falta, por deslocamento e por hibridismo”
(BELLEI, p. 12-13).
A figura do monstro tem se apresentado sempre como um ser de fronteira.
No período medieval, ele participava tanto do mundo material como do espiritual. Bellei
cita, como exemplo, um monstro de três cabeças representando a divina trindade.
Ademais, na cultural medieval, uma forma de “garantir simultaneamente as dimensões
material e simbólica do monstro era imaginá-lo com freqüência como dotado de uma
existência ao mesmo tempo real e incerta [...]” (Williams apud Bellei, p. 15).
No Classicismo, embora continue um ser de fronteira, o monstro é redefinido
sendo visto apenas como aberração da ordem natural das coisas. Tal redefinição não o
impede de querer participar dessa ordem. Diferente do monstro medieval que transitava
56
entre o divino e o terreno, o monstro clássico não tinha a mesma “desenvoltura” uma vez
que “sua condição híbrida de humanidade (que o torna semelhante ao outro superior) e de
monstruosidade (que o torna um outro inferior a ser excluído)” (BELLEI, p. 17). Nesse
sentido, e como afirma Bellei (p. 17-18), trata-se de uma “Criatura da Fronteira marcada
sempre por um não-ser mais do que pelo ser”. Em outras palavras, o monstro clássico
vive tanto dentro da norma como fora dela. No primeiro caso, ele a questiona; no
segundo, confirma-a.
No séc XIX, o monstro sofre uma nova redefinição, em face do contexto
cultural, e, possivelmente, persiste até nossos dias. Segundo Bellei (p. 21), o monstro pós-
romântico distancia-se do monstro clássico: primeiro, porque é ambivalente, ou seja, é
humano e não-humano ao mesmo tempo; segundo porque, embora autônomo, ele está
“condenado a uma permanente falta de identidade”. A insegurança social que vive tem
levado-o a negar “a sua condição anômala”, todavia essa atitude não tem proporcionado a
sua integração completa “no sistema dominante de valores ao qual deseja pertencer”
(BELLEI, p. 11).
A figura do monstruoso, contudo, já aparece na mitologia clássica. Em seu
“Introdução ao Mito dos Heróis”, Brandão (1987, p. 53) observa que
monstro clássico, revela-se como parte do dentro e do fora. Em outras palavras, enquanto
permanecia no buraco negro, longe da “civilização”, Shrek confirmava a ordem: as flores
desabrochavam; a bruxa cantarolava enquanto cozinhava morcegos num caldo de
terebintina e tartaruga; o lavrador ceifava; o dragão, ainda, era assustador, enfim, o mundo
estava harmônico.
Ao ser expulso do buraco negro, o ogro passa a ameaçar a ordem com sua
forma excêntrica, diversa, horrenda, ou seja, humana. Conforme citado anteriormente, a
humanidade persiste na própria deformação. Além disso, como o humano, ele deseja
saber do amanhã: “Diga o meu futuro, dona, que eu lhe dou alguns dos meus piolhos
raríssimos”. A dona com que ele fala é a bruxa, e o pedido é feito depois que ela volta a si.
A revelação que a bruxa lhe faz deixa-o contentíssimo: “Oba, uma princesa!”. “Lá vou
eu!”
Nesse sentido, a atitude de Shrek aproxima-o do herói dos contos de fadas
tradicionais que busca uma princesa com a qual irá se casar; bem como do monstro pós-
romântico uma vez que este, produto da insegurança social, marginalizado, deseja a
confirmação da norma. Todavia, a princesa com que se casou era mais feia do que ele, daí
o seu contentamento; além do mais, o fato de os dois, após o casamento, viverem
horríveis (e não felizes) confirma Shrek, assim como a sua esposa, mais como um não-ser
do que um ser, ou seja, um ser de fronteira.
58
Puseram-no então para fora de casa com um bom pontapé no traseiro. Foi a primeira vez
que Shrek saiu do buraco negro em que fora criado.
Essa é a primeira referência verbal que temos do espaço social onde principia a
ação em Shrek!. Segundo Gancho (2003, p. 23), “Espaço é, por definição, o lugar onde se
passa a ação numa narrativa”. Nelly Novaes Coelho (apud Lins, 1976, p. 74), observa o
espaço social como ambiente natural e ambiente social. O primeiro corresponde à
natureza, paisagem livre; o segundo, à natureza modificada pelo homem, a saber, casa,
castelo.
Nesse sentido, o conto de Steig ocorre tanto em um ambiente natural como
em um ambiente social, uma vez que o cenário onde se desenrola a ação é a estrada, o
mato escuro, o bosque, o meio do caminho, o campo florido, o castelo maluco, a sala de
espelhos e o salão do castelo.
O que nos chama a atenção é o fato de esses lugares, aparentemente, ao
contrário do que preceitua Gancho (p. 25), parecerem não influenciar atitudes,
pensamentos e emoções do personagem ou, ainda, não sofrerem, eles próprios, eventuais
transformações. Principalmente, se levarmos em consideração que o espaço, em alguns
casos, “é o móvel, o fulcro, a fonte da ação” (LINS, 1976, p. 67).
Ademais, que funcionalidade um elemento espacial teria se não estivesse
relacionado a um outro elemento da narrativa? Segundo Lins, “a funcionalidade de um
fator incorporado à narrativa, (sic) só chega a ser devidamente captada e avaliada em
termos de macro-estrutura” (p. 95). Em outras palavras, não poderíamos estudar o
espaço, unidade do sistema complexo narrativo, sem considerarmos, por exemplo, o
tempo, o personagem. Isso ocorre porque as unidades desse sistema “se refletem entre si e
repercutem umas sobre as outras” (p. 95, grifo nosso).
Isso posto, o espaço social em Shrek! pode revelar-se cheio de surpresas. A fim
de confirmar nossa assertiva, começaremos por analisar a “casa” onde Shrek viveu. O
buraco negro, diferente dos demais ambientes da narrativa, passa-nos a idéia de sujeira e
mistério; além disso, a paisagem em volta parece sem vida, devastada.
59
O buraco negro em que Shrek vivia, embora se situasse num mundo obscuro,
não era vazio, uma vez que encerrava possibilidades. Em outras palavras, ele encerrava o
herói moderno, excêntrico, falho, inconformado. Este seria revelado ao mundo, saturado
pelo estereótipo do herói clássico.
Em sua caminhada, Shrek se depara com um cenário diverso do que conhecia:
havia luz, flores, árvores e as duas últimas “vergam-se” à sua passagem ao sentir seus
gases horríveis. Destarte, o ogro se impõe à ordem que impera no ambiente natural da
narrativa.
Convém destacar que o buraco negro e o mato escuro contrastam com a
luminosidade dos demais ambientes de Shrek!. Segundo Schüler, “Desde a antigüidade
clássica, o mundo civilizado é luminoso, são nítidos os contornos dos objetos, a luz da
razão atravessa a realidade. O sombrio, o exótico determinam as fronteiras [grifo nosso] do
mundo civilizado (p. 64)
Dissemos, anteriormente, que Shrek é um ser de fronteira e sua relação com a
norma vai depender do seu grau de distância. Observamos que nosso argumento se
confirma a partir da análise de um outro ser especialista em horrores, a bruxa. Em “Pós-
modernidade e publicidade: a desinvenção da infância”, Tonin (2005, p. 10-11) observa
que nos contos
39Usaremos o vocábulo “floresta” uma vez que este, assim como “mata” e “grande porção de árvores reunidas”, é
um sinônimo para a palavra bosque. Cf. FERREIRA, A., 2001, p. 114.
60
imaginário dos contos de fadas. Crianças e princesas perdem-se nele. Também nos
bosques se encontram os seres sobrenaturais e as bruxas”. A assertiva da autora pode ser
ilustrada com as estórias de “João e Maria” e “Chapeuzinho Vermelho.”
Nesse sentido, o significado do vocábulo bosque passa-nos a idéia de
ambiente aterrador, uma floresta perigosa. De acordo com Chevalier e Gheerbrant, “a
grande floresta devoradora tem sido cantada numa abundante literatura hispano-
americana inspirada pela floresta virgem, a madre-selva [...]”. Os autores registram ainda que
há “outros poetas mais sensíveis ao mistério ambivalente da floresta, que gera, ao mesmo
tempo, angústia e serenidade, opressão e simpatia, como todas as poderosas
manifestações da vida” (p. 439, grifo dos autores).
No conto de Steig, a cena que ocorre à entrada do (a) bosque/floresta
permite-nos observar essas características. Vejamos: ao se aproximar do bosque, Shrek
encontra um cartaz pregado numa árvore com os seguintes dizeres:
O alerta sobre os perigos que o bosque oferecia não deteve o ogro viajante que
seguiu o seu caminho tranqüilamente. Quanto ao mistério ambivalente da floresta,
reconhecemos a opressão, no dragão, e a simpatia, em Shrek.
E, claro, mal entrou no bosque, um dragão enorme cortou seu caminho. Shrek
sorriu e curvou-se, fazendo reverência. O dragão derrubou-o no chão, mas
Shrek nem ligou: ficou ali deitado, achando divertidíssimo.
Convém ressaltar que o caminho percorrido por Shrek, em busca de sua noiva,
paulatinamente, desnuda a (falsa) harmonia do espaço social, revelando seres que, embora
pareçam autômatos e acríticos, não admitem ser questionados. A título de exemplo,
reproduzimos abaixo o diálogo entre Shrek e um lavrador que ceifava e cantava:
“Ei, jeca”, chamou Shrek. “Por que você está tão feliz?” O lavrador cantarolou:
“Eu nunca parei para me perguntar Por que é que eu vivo feliz a ceifar.
Ceifando e cantando eu quero morrer, Então caia fora, cansei de te ver.”
40 Fátima Fernandes apresentou o ensaio “Os contos de fadas na poesia de Fernanda de Castro”, no SEXTO
CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS. Disponível em <
http://www.geocities.com/ail_br/oscontosdefadasnapoesia.htm> Acesso em 11 nov. 2005.
61
“Eu nunca parei para me perguntar”. A fala do lavrador, ao afirmar que nunca
havia se questionado acerca da sua felicidade, está em consonância com o que diz Heller
(1992, p. 37) sobre a vida cotidiana ser aquela que mais se presta à alienação. Para a autora de
O Cotidiano e a História (p. 37-38, grifos da autora),
Na cotidianidade, parece “natural” a desagregação, a separação de ser e
essência. [...] o homem devorado por e em seus “papéis” pode orientar-se na
cotidianidade através do simples cumprimento adequado desses “papéis”. A
assimilação espontânea das normas consuetudinárias dominantes pode
converter-se por si mesma em conformismo, na medida em que aquele que as
assimila é um indivíduo sem “núcleo”; e a particularidade que aspira a uma
“vida boa” sem conflitos reforça ainda mais esse conformismo com a sua fé.
41 Na linguagem pejorativa, trata-se de um indivíduo pouco inteligente; bronco; estúpido. Cf. FERREIRA, A., 2001,
p. 120.
62
A condução da vida supõe, para cada um, uma vida própria, embora mantendo-
se a estrutura da cotidianidade; cada qual deverá apropriar-se a seu modo da
realidade e impor a ela a marca de sua personalidade. [...] a condução da vida
não pode se converter em possibilidade social universal a não ser quando for
abolida e superada a alienação. Mas não é impossível empenhar-se na condução
da vida mesmo enquanto as condições gerais econômico-sociais ainda
favorecem a alienação. Nesse caso, a condução da vida torna-se representativa,
significa um desafio à desumanização [...].
[...]os graus através dos quais o escritor define o espaço: sua liberdade de
escolha (liberdade relativa, pois nunca é indiferente à estrutura global do texto)
oscila entre a pintura minuciosa de uma sala, como em Thomas Mann, à
simples nomeação de uma rua, um hotel, uma cidade etc., havendo ainda os
casos em que nem sequer se chega ao nome, observando-se, em relação ao
espaço, uma imprecisão que de certo modo, nega-o (p. 88, grifo nosso)
observado por Michel Butor (1974, p. 42), “primeiramente, como no teatro de outrora,
bastará uma tabuleta: “lugar magnífico”, “bosque encantador”, “floresta horrível”, “uma
esquina”, “um quarto”. [...] Lugar magnífico, você diz, mas que estilo de magnificência?”
A imprecisão, assim como a precisão, é muito freqüente no tratamento do
espaço e pode ser comprovada a partir da “leitura de relatos inseridos numa tradição
remota, tanto do Ocidente como do Oriente (LINS, p. 88). Como ilustração, citamos os
excertos de “Tema para versos” e “A perfeição”, contos de Eça de Queirós (DUARTE,
2002):
Era, pois, uma vez um rei, moço e valente, senhor de um reino abundante em
cidades e searas, que partira a batalhar por terras distantes, deixando solitária e triste
a sua rainha e um filhinho, que ainda vivia no seu berço, dentro das suas faixas
(p. 138, grifo nosso).
Sentado numa rocha, na ilha de Ogígia, com a barba enterrada entre as mãos,
donde desaparecera a aspereza calosa e tisnada das armas e dos remos, Ulisses,
o mais subtil dos homens, considerava, numa escura e pesada tristeza, o mar
muito azul que mansa e harmoniosamente rolava sobre a areia muito branca (p.
257, grifo nosso).
Há uma outra questão até então não discutida, mas que consideramos
relevante; refere-se à região escolhida por Steig para situar a narrativa: o campo. Por que
não a zona urbana ou o litoral? Segundo Ferreira, A. (2001, p. 132), dentre outras
acepções, o campo se caracteriza como “zona fora do perímetro urbano das grandes
cidades, na qual predominam as atividades agrícolas”. Para Schüler (p. 67), “as regiões que
se distanciam das cidades litorâneas podem atrair por lembrarem o paraíso [...]”.
Nesse sentido, o lugar onde o ogro se encontra quando “está fora do ar”
representa o paraíso: “Sonhou que estava num campo florido, onde as crianças brincavam
e os passarinhos gorjeavam. Algumas delas o abraçavam, cobrindo-o de beijos e carinhos
sem parar.”
A resposta de Shrek a essa demonstração de afeto é o choro. O que nos leva a
supor ser essa uma reação normal, pois, talvez, ele estivesse emocionado com o carinho
recebido. Nossa suposição, contudo, não se confirma uma vez que, no momento
seguinte, o ogro acorda assustado e diz: “Ainda bem que foi só um pesadelo... um
pesadelo aterrador!”
Então, como explicar o choro de Shrek? Uma possível interpretação seria,
justamente, por ele não querer recuperar a condição divina do herói clássico, obediente às
leis divinas, oprimido, conformado, acrítico. Além disso, Shrek é um monstro e ao
divergir da norma, reafirma sua liberdade. Em relação ao espaço (buraco negro), porém,
não há divergência.
Essa liberdade, contudo, é colocada à prova no momento em que o ogro
atravessa a ponte levadiça e adentra no castelo maluco. Shrek, sempre tão seguro, parece
titubear diante de sua até então desconhecida condição: aceitar-se como ser horrendo ou
negar sua condição anômala. Transcrevemos, abaixo, como o ogro se sentiu:
Shrek ficou tão assustado que mal conseguiu dar uma cusparadinha de fogo.
Todos aqueles horrores cuspiram de volta. Ele saiu correndo; todos correram
também. Deu um murro em um deles, mas seu punho atingiu um vidro! Shrek
estava na Sala de Espelhos! “Eles todos são eu!”, admirou-se. “TODOS SÃO
EU!” Olhou-se nos espelhos, cheio de uma raivosa auto-estima, feliz por ser
exatamente como sempre tinha sido.
Seu coração estremeceu, um grito de alegria escapou-lhe dos lábios, e ele saiu
para a luz do sol. Quando o fez, a figura também se moveu, e ele pôde vê-la
claramente. A Infanta! Era um monstro, o monstro mais grotesco que ele vira
em toda a sua vida. Não era formado corretamente como eram todas as outras
pessoas, mas corcunda, com as pernas e os braços tortos, e uma cabeça enorme
com vasta juba de cabelo preto. O Anãozinho franziu o cenho, e o monstro
também franziu o seu. Ele riu, e o outro riu com ele, pousando as mãos nos
quadris, como ele mesmo estava fazendo. [...] Quando a verdade despontou
dentro dele, o Anãozinho soltou um grito louco de desespero e caiu no chão
aos prantos. [...] Por que não o haviam deixado na floresta, onde não havia
espelhos que lhe dissessem o quanto ele era repulsivo? Por que seu pai não o
matara, ao invés de vendê-lo, para passar essa vergonha? (p. 103-105)
-- Ele é realmente feio demais para ter permissão de brincar em qualquer lugar
onde nós estejamos – gritaram as Tulipas.
-- Ele deveria beber suco de papoula e dormir por mil anos – disse um dos
grandes Lírios escarlates, muito acalorado e zangado (WILDE, p. 94).
[...]
-- Não há dúvida de que ele deve permanecer trancado dentro de casa pelo
resto de sua vida – disseram elas. – Olhem só a corcunda dele, e suas pernas
tortas – e começaram a dar uns risinhos entre si. (Ibidem, p. 97)
E a Princesinha...
-- Mas por que não haveria ele de dançar de novo? – perguntou a Infanta rindo.
-- No futuro, os que vierem brincar comigo não devem ter coração – gritou ela
e saiu correndo para o jardim. (Ibidem, p. 107)
Em uma cena como essa, podemos constatar que o narrador guia o leitor do
“world of fantasy” ao “world of reality”42 (MENDONÇA, p. 185). A leitura que temos
feito de Shrek! também aponta nessa direção. O julgamento (preconceituoso) do Trovão,
da Chuva e do Relâmpago, no conto de Steig, é traduzido/ ampliado no mundo fantástico
da animação Shrek (2001): “Os ogros são como cebolas”, “Os ogros têm camadas”, “Os
ogros são melhores do que as pessoas acham”, fazendo um “link” como o mundo real:
“As pessoas julgam-nos por nossa aparência”.
Retomando a questão do espelho nos textos de Steig e Wilde, constatamos que
ambas as cenas das salas de espelhos nos colocam diante de uma indagação feérica e
humana: “Espelho, Espelho meu, há alguém neste mundo mais belo do que eu?” Embora
metonímia da beleza na sociedade contemporânea, ironicamente, os espelhos do castelo
maluco, em Shrek!, multiplicam a feiúra do ogro (pleonasmo?, hipérbole?), subvertendo a
função tradicional que lhe foi atribuída.
Apesar da subversão, a localização da Sala de Espelhos dentro de um castelo,
construção que figura, geralmente, como local “tão inacessível quanto desejável”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, p. 199), confirma a idéia de que o castelo maluco
possui dois dos principais “valores” dessa sociedade: fama e dinheiro. E, mesmo que falte
o fator beleza, essa sociedade leva em consideração a questão financeira. Ilustraremos
nosso argumento com o diálogo entre Shrek e o cavaleiro que guardava a porta do
castelo, onde a princesa se encontrava:
Coelho (2003), por sua vez, analisando “Os contos de fadas e a memória
popular”43 observa que as fábulas de La Fontaine são atemporais, uma vez que se
fundamentam na natureza humana “e esta, como sabemos, continua a mesma através dos
milênios” (p. 23).
43 Trata-se do segundo capítulo do livro O conto de fadas: símbolos mitos arquétipos, de Nelly Novaes Coelho.
70
44Joaquim Pedro de Andrade é o roteirista do filme Macunaíma, o herói de mau caráter (1969), adaptado da obra
Macunaíma: o herói sem nenhum caráter (1928), de Mário de Andrade. Cf. JOHNSON, 1982, p. 39 e 185.
71
diferentes linguagens (verbal e visual) não impediram que os textos de Mário de Andrade
e Joaquim Pedro coincidissem em determinadas questões – no combate à ideologia
dominante, por exemplo – e divergissem em outras.
Quanto aos contos de fadas tradicionais, percebemos que em determinadas
adaptações fílmicas realizadas pela Walt Disney, destaque para Cinderella (1950), quatro
séculos depois da publicação do texto escrito, permanecem vivos os valores da sociedade
patriarcal como a submissão da criança e da mulher e o poder divino nas mãos de
personagens masculinos.
O que dizer, então, do moderno conto de fadas Shrek! (2001), de William Steig,
e suas adaptações na década seguinte? A adaptação Shrek 2 revitalizou, para usarmos a
expressão de Lukács, o já revitalizado45 conto de Steig? Compreendemos a sociedade
retratada na animação “por meio da experiência em nossa própria sociedade”, como disse
Turner? O que vem depois do “viveram felizes”?
Segundo Warner, “Os finais felizes dos contos de fadas são apenas o começo
da história maior, e qualquer estudo que tente dar conta de sua totalidade irá tropeçar e
cair antes que qualquer tipo de final possa ser alcançado” (p. 24). Essa assertiva nos
remete ao texto fílmico Shrek 2, uma vez que Andrew Adamson, roteirista e diretor da
animação, inicia a história com os recém-casados, Shrek e a princesa Fiona, em viagem de
lua-de-mel.
Além do mais, a animação vai discutir o que vem depois do casamento: eles
são felizes – ou horríveis, como queria Steig – para sempre? Vejamos: ao retornarem da lua-
45Atribuímos essa revitalização ao conto Shrek! uma vez que, diferentemente dos contos de fadas tradicionais, o
autor nos apresenta como herói um ogro-herói verde, feiíssimo, que cuspia fogo e soprava fumaça pelas orelhas.
72
de-mel, os recém-casados recebem um convite dos pais de Fiona para irem a Far Far
Away. Shrek não acha que seja uma boa idéia, mas é convencido pela esposa.
No trajeto entre o pântano e Far Far Away, percebemos que a distância do
reino não se restringe à questão denotativa; na verdade, a distância entre o pântano e o
buraco negro em relação ao reino Tão Tão Distante se manifesta, principalmente, no nível
sócio-econômico, uma vez que os personagens não correspondem aos ideais do reino –
sendo este o símbolo da sociedade contemporânea. O reino Tão Tão Distante, assim
como a tríade que forma seu nome, ilustra os valores da sociedade capitalista: fama, beleza
e riqueza.
Dissemos anteriormente, ao citar Turner, que podemos inferir ligações entre
um filme e um movimento social e que uma película pode representar uma alegoria de um
fato contemporâneo. Conscientes da densidade do significado do vocábulo “alegoria”,
que compõe o título deste subcapítulo, convém registrar que o utilizamos no seu sentido
mais comum: “exposição de um pensamento sob forma figurada” (CUNHA, A., 2001, p.
28).
Para Rodella et al. (2005, p. 113),
46 O termo paródia que ora utilizamos, ao contrário do que defende Linda Hutcheon em sua obra Uma teoria da
paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX, corresponde a irônico, jocoso, ridicularizador.
73
47 Com a chegada do pôr-do-sol, Fiona deixava de ser uma linda princesa e transformava-se em uma ogra. O
casamento com Shrek, contudo, fez com que ela passasse, definitivamente, àquela forma anômala.
74
48 “não nos convence de que é um lugar melhor que floresta do Anão” (Tradução nossa).
75
concebem uma casa, uma estrada, um bairro, uma cidade”; o que justificaria, inicialmente,
a desolação do ogro, bem como o fato do criador de Shrek 2 -- assim como fez Wilde e
como fazem os construtores do espaço -- também ter “pensando o espaço do ogro”.
Além do mais, o cenário de Tão Tão Distante, juntamente com a assertiva do Burro,
remete-nos ao pensamento de Adorno e Horkheimer (1985) acerca da Indústria Cultural.
Para os teóricos da Escola de Frankfurt, “a Indústria Cultural permanece a
indústria da diversão” (p. 128). Os autores, contudo, afirmam que essa indústria “não
cessa de lograr seus consumidores quanto àquilo que está continuamente a lhes prometer”
(p. 130) e completam:
A promissória sobre o prazer, emitida pelo enredo e pela encenação, é
prorrogada indefinidamente: maldosamente, a promessa a que afinal se reduz o
espetáculo significa que jamais chegaremos à coisa mesma, que o convidado
deve se contentar com a leitura do cardápio. Ao desejo, excitado por nomes e
imagens cheios de brilho, o que enfim se serve é o simples encômio do
quotidiano cinzento ao qual ele queria escapar (p. 130-131).
Ao se dar conta de que o “chamado” foi feito pela princesa Fiona, a fada se
assusta e diz: “Minha querida. Olhe só como está!” Em seguida, disfarça: “Como você
cresceu”. Fiona indaga: “Quem é você?” E a fada responde: “Que docinho!” “Sou a sua
fada madrinha”. Fiona, desconfiada, pergunta: “Tenho uma fada madrinha?” E a fada,
silenciando-a, responde: “Não se preocupe. Estou aqui para resolver tudo”.
A partir desse momento, a fada começa a cantar uma espécie de “receituário”
do “Felizes para sempre”, acompanhada pelo coro dos amigos-mobília que buscam
adequar a princesa ao universo de Tão Tão Distante, o que nos lembra o fetichismo da
mercadoria; por ora, nos limitaremos a transcrever o “receituário” da fada.
Só com um movimento
Da minha varinha mágica
Seus problemas desaparecerão
Com um toquezinho, ganhará
Um príncipe cheio de grana
Um vestido caríssimo
Dos ratinhos
Sapato de cristal
E chega de estresse
Acabarão as preocupações
E terá paz
Confie nos amigos-mobília
Ajudaremos a achar uma nova
Tendência de moda
- Vou deixá-la diferente, linda!
Bem ao estilo do Príncipe!
Escreverão seu nome no banheiro
“Feliz para sempre?
Ligue para Fiona!”
Carruagem esporte, cheia de estilo
Um chofer muito gato: “Kyle”.
Nada de espinhas nem cáries
E o fim da celulite
77
E já ia me esquecendo
Do bichon frisé!
Uma plasticazinha
Para ganhar o Príncipe bem penteado
Batom, sombras, blush
Para o príncipe saradão
Dia de sorte, ele é gostoso
Você e o seu Príncipe no feno
Olhando para a Lua
Ouvindo esta música
Você será fabulosa
Ele terá abdome desenhado
Suflê, Dia dos Namorados
E fricassê de frango
Uma plasticazinha para
O Príncipe bem penteado...
Fiona grita:
“- Pare! Escute... muito obrigada, Fada Madrinha, mas não preciso disso”.
Tanto a fada como a mobília se surpreendem, e um dos amigos-mobília
retruca:
“- Como quiser”. “Não gostei de você”.
Ao oferecerem à Princesa Fiona “um príncipe cheio de grana”, “vestido
caríssimo”, “uma nova tendência de moda”, “carruagem esporte”, o “fim da celulite”, e
um “príncipe saradão”, o que a fada e os amigos-mobília fazem é ratificar o que já tinha
sido investigado por Marx acerca de as mercadorias exercerem “um poder mágico sobre o
homem” (MARTINS, 1998, p. 67). Para Martins, é possível exemplificar, hoje, quais
seriam os objetos de consumo. Como exemplo, o autor cita “caros automóveis, aparelhos
eletrônicos de última geração, etc” (p. 67).
Fiona é bombardeada com todo esse material publicitário e, ao afirmar que
não precisa disso, é hostilizada com um “Não gostei de você”. De acordo com Martins, a
partir do pensamento do autor de O Capital, “[...] é natural para o homem ter e
desenvolver esses desejos, posto que é um ser social inserido num sistema econômico e
78
quanto mais abundância a produção gera, tanto mais desperta possibilidades de consumo”
(p. 67-68).
Os produtos-fetiche do receituário são oferecidos à princesa-ogra como se
fossem necessidades vitais: Sei o que toda princesa precisa/ Para ter uma vida feliz, diz a fada. A
assertiva de Fiona, recusando o que lhe é oferecido, revela o que acontece na sociedade
capitalista.
Martins observa que no mercado, o qual o autor chama de “instituição
capitalista por excelência”, há uma relação entre coisas, e que, para Marx “há relações
humanas” por trás dessa instituição e que “o mercado ‘personifica as coisas’ e ‘coisifica as
pessoas’ (p. 69). Em outras palavras, o papel de sujeito ativo da produção social não é
desempenhado por Fiona, e sim pelos amigos-mobília (objetos nada inanimados na
narrativa) restando àquela a condição passiva de observadora.
A Indústria Cultural apresenta-se como saciadora das “necessidades”, de que
falou Martins. Para Adorno e Horkheimer, essas necessidades são “de antemão
organizadas de tal sorte que ele [o sujeito] se veja nelas unicamente como um eterno
consumidor, como objeto da indústria cultural” (p. 133). De acordo com Aumont e Marie
(2003, p. 123), os antropólogos vêem o fetiche como “um objeto ao qual se atribuem
poderes mágicos e benéficos”. Nesse sentido, Fiona seria uma consumidora das (pseudo-)
necessidades que lhe são apresentadas, e satisfeitas, pela representante da Indústria
Cultural, ironicamente, a fada.
Outrora conselheira, guardiã de princesas ameaçadas por seres cruéis, a fada
madrinha cumpria seu tradicional papel: como uma mãe zelosa, salvava sua “filha” do
borralho ou da ira de uma madrasta invejosa. Em Perrault e Grimm, a fada é boa; a bruxa é
má. Shrek 2 afasta-se do maniqueísmo dessas narrativas e demole estereótipos: a fada é
uma bruxa. Ironicamente, ao desconstruir esse “modelo”, Adamson resgata a “qualidade”
de conselheira da fada; pois esta, na história do ogro, continua a indicar o caminho que
levaria sua protegida à ascensão social, ou seja, ao príncipe encantado.
A terceira cena, que requer uma análise nossa, diz respeito à “distância” de
Shrek diante da realidade de Far Far Away. Shrek entra no quarto logo após a recusa de
Fiona à “ajuda” da fada. A princesa apresenta-o à mobília e à fada como seu marido. Esta,
perplexa, não entende como isso pôde acontecer, e Fiona lhe explica que Shrek a salvou.
O ogro interrompe a conversa e diz que eles vão voltar para o pântano e Fiona quer saber
79
quando ele tomou essa decisão. Shrek afirma que foi assim que chegou. A fada se
desculpa dizendo que precisa ir embora; antes, contudo, avisa: “[...] lembre-se, querida, se
precisar de mim, a felicidade está a uma lágrima de distância” e entregou-lhe seu “cartão
de visitas”.
Com a saída da fada, o casal de ogros discute: Fiona acusa-o de se comportar
como um ogro; Shrek lhe diz que, seus sogros gostando ou não, ele é um ogro. Desolada,
Fiona responde: “Mudei muita coisa em mim por você, Shrek. Pense nisso!” Em seguida,
retira-se do quarto. Mais tarde, sem conseguir dormir, Shrek vê as horas passarem. Já é
tarde. Levanta-se da cama e olha, também desolado, pela janela e vê o letreiro com o
nome do reino - essa cena, assim como ocorreu com Fiona, não é gratuita: Shrek estava,
de fato, muito distante dos valores daquela sociedade.
O desejo de Shrek de voltar para o pântano, bem como o “deslumbramento”
do Burro em sua chegada ao reino Tão Tão Distante, está em sintonia com a análise que
Ramos (1998) faz sobre a representação do meio urbano na poesia de Mário de Andrade.
Para a autora, “A cidade exerce um fascínio no novo morador, seja pela presença das
luzes noturnas, seja pela sintaxe urbana, constituída por ruas, esquinas, prédios, igrejas,
bairros que se fundem dando um novo colorido a este meio que congrega diferentes
culturas” (p. 39).
Por outro lado, ela (a cidade) “fica indiferente ao desespero de seus filhos, pois
no momento em que eles se sentem ameaçados, devem fugir para casa, para o campo,
abrigo que os acolhe” (p. 39).
No dia seguinte à discussão com Fiona, Shrek descobre que seu sogro havia
contratado o Gato de Botas para matá-lo. O ogro desabafa e diz que seria melhor para
Fiona se ele fosse um príncipe encantado. O Burro lembra-lhe que Fiona sabe que ele
faria tudo por ela, e o ogro responde: “Se eu pudesse, eu mudava”. “Só queria fazê-la
feliz”. Nesse momento, Shrek lembra-se do cartão que a fada deu a Fiona, mas que ele
interceptou. De um lado do cartão, lia-se “Felicidade”; do outro, “A uma lágrima de
distância”. A pedido de Shrek, mas forçado pelo Gato de Botas, o Burro chora e sua
lágrima traz a figura da fada como em uma gravação telefônica ou programa de televisão:
80
Shrek, então, decide ir ao chalé/ fábrica de poções mágicas da fada para lhe
pedir ajuda. Na fábrica, o funcionário diz que a fada está, mas não pode recebê-los. Shrek,
juntamente com o Gato e o Burro, diz que são do sindicato e pergunta se ele tem alguma
queixa a fazer. O funcionário estranha: “Sindicato?” Shrek diz que eles representam os
operários da indústria de magia tanto negra como branca e pergunta-lhe se ele se sente
menosprezado ou oprimido. Ele diz que um pouco, pois não tem assistência dentária.
Shrek aproveita a deixa e diz que irá dar uma “olhada”; pede-lhe, contudo, que não avise à
fada. O funcionário, cúmplice, libera sua entrada. O ogro, com seus amigos, encontram a
fada trabalhando em uma nova poção mágica com os seguintes ingredientes:
Uma dose de desejo
Uma pitada de paixão
E só uma alusão de luxúria!
Picante!
Ao perceber a presença de Shrek, a fada esconde seu mais novo experimento e
quer saber o que ele faz ali. Shrek diz que veio à sua procura, pois Fiona parece não estar
muito feliz. A fada ri irônica e diz: “Há alguma dúvida de qual seja o motivo?” Dirige-se a
uma estante onde há livros com contos de fadas e vai lendo o final das histórias:
“Viveram felizes para sempre”. “Cinderela, nenhum ogro!” – ela frisa. “Branca de Neve,
um belo príncipe”. “Bela Adormecida, nenhum ogro”. “João e Maria? Não”. “Tumbelina?
Não”. “Pássaro Dourado, Pequena Sereia, Uma linda mulher... Não, não, não, não!” E
completa: “Vê? Ogros não vivem felizes para sempre”.
Nesse bombardeio feito pela fada, três questões merecem nossa atenção:
a) dentre os contos de fadas tradicionais elencados, a fada cita o moderno (mas
não menos tradicional) “Uma linda mulher”;
b) essas histórias não apresentam nenhum ogro;
c) o fato de ogros não viverem felizes para sempre.
49Nesta cena, a fada age como se estivesse diante de uma câmera, o que gera ironia, devido à explicitação do recurso
discursivo.
81
Uma linda mulher (Pretty Woman, 1990), filme dirigido por Garry Marshall, tenta
mostrar que o quase impossível pode se tornar realidade: Vivian (Julia Roberts) é uma
bela garota de programa que “trabalha” na Hollywood Boulevard e conhece por acaso
Edward Lewis (Richard Gere), homem milionário, que a contrata por algumas noites e
acaba se apaixonando por ela.
Em outras palavras, na película, a Cinderela moderna (prostituta) encontra seu
príncipe encantado (homem de negócios) e são felizes para sempre. Convém ressaltar que
a idéia de quase impossível é reforçada com uma mensagem no final do filme que diz “[...]
Qual é o seu sonho? Todo mundo vem aqui. Isso é Hollywood, terra dos sonhos. Alguns
se realizam, outros não. Mas continue sonhando. [...]”
No que diz respeito ao fato de os ogros não serem felizes para sempre, os
contos de fadas têm difundido essa idéia de geração a geração por vários séculos, uma vez
que não há espaço para o bizarro, para o estrangeiro nessas histórias. Além disso, é
comum a associação do belo com o bom, e do feio com o mau: heróis, heroínas e fadas
são bons e bonitos; vilões e bruxas são feios.
Ademais, quando povoam os contos de fadas, os ogros são maus como o
Barba Azul ou príncipes vítimas de algum encantamento, como a Fera do conto “A Bela e
a Fera”, e o sapo em “A Princesa e o Sapo”; neste caso, contudo, são redimidos de sua
monstruosidade e transformam-se em belos príncipes.
Embora não a tenhamos citado como cena emblemática - mas que julgamos
igualmente importante – convém ressaltar que o momento em que a fada cita os
“ingredientes” de uma nova poção mágica remete-nos às simpatias ensinadas por sites e
revistas esotéricas como algo do tipo “apimente o sexo”, “mantenha o fogo da paixão” e
“melhore o apetite sexual”.
Voltando à descrição da cena em que a fada é categórica ao dizer que “ogros
não são felizes para sempre”, Shrek não se conforma e, com a ajuda de seus amigos,
dirige-se a uma espécie de depósito de poções mágicas. Lá, pede ao Gato de Botas que
procure algo como “beleza”; o Gato encontra o frasco “Felizes para sempre”, cujo efeito
é o de “beleza divina”, localizado numa prateleira de uma estante muito alta onde se lê
“Acesso Restrito”.
Segundo a bula da poção mágica, se um dos apaixonados bebesse a fórmula,
os efeitos prometidos - “Felicidade, Bem-estar e Beleza Divina” - seriam sentidos por
82
ambos. Antes de beber a fórmula, o Burro lembra a Shrek que ele não fará mais as coisas
de que gosta como: “chafurdar na lama” e “coçar o traseiro”. Além disso, ele “ama ser
ogro”. Shrek concorda; mas, acredita que, se tornando um príncipe encantado, seria aceito
pelos pais de Fiona, o que a deixaria feliz. Em seguida, bebe o resto50 do conteúdo do
vidro.
Nesse ínterim, Fiona, sentindo a ausência do marido, diz aos pais que foi um
erro trazer Shrek e que iria “consertar as coisas”. O rei prontamente concorda: “Essa é a
minha menina!” Sendo assim, ela comunica que vai procurá-lo para juntos voltarem ao
pântano que é o lugar deles.
A idéia de que aquele reino não é o seu lugar é ratificada quando na noite do
baile, em meio a fogos de artifícios, a voz do espelho-mágico-locutor anuncia: “Abdomes
fabulosos e glúteos que são o máximo aqui no Baile Real de Tão Tão Distante!”
“Carruagens fazem fila para as celebridades descerem... Todos os famosos vieram...” - sua
fala é completada por uma apresentadora - “... homenagear a Princesa Fiona e o Príncipe
Shrek.” “Nossa! Os trajes são maravilhosos.” “Vejam! João e Maria! – e, irônica, completa
- Para que essas migalhas?” “E, atrás deles, o Pequeno Polegar e Tumbelina! Não são
adoráveis?!”
50 O Burro, num gesto de amizade ao ogro, toma boa parte da poção mágica. No dia seguinte, ele tem se
No que diz respeito aos votos de felicidade da fada “Que todos os seus finais
sejam felizes...”, eles não se estendem a todos, uma vez que, como a fada havia dito a
Shrek, não há ogros nos contos de fadas nem eles são felizes para sempre. Ou seja, não há
espaço para o diferente, para a subjetividade, para o “amar ser ogro”.
Na sociedade contemporânea, da qual Far Far Away é uma alegoria, não há
espaço para a originalidade de Shrek uma vez que vivemos sob a ditadura da moda em
que, segundo Goblot (apud Santos, 1987, p. 36, grifos dos autores),
[...] cada qual deve tornar-se semelhante aos outros. É preciso “fazer como
todo mundo”; não devemos “nos fazer notar”. Pois fazer-se notar, não fazer
como todo mundo, é se excluir do meio social ao qual se pertence. Ser “ ‘um
original’ é ser uma pessoa isolada. O que a sociedade, em geral, e cada uma das
sociedades restritas que a compõem perdoam menos é todo ato pelo qual um
dos seus membros dela se separa.
com sua forma ogra. Montado em um belo cavalo branco, com roupas finas e aparência
elegante, o “príncipe” Shrek atrai os olhares de todos: as mulheres suspiram à sua
passagem, e os aldeões, sisudos e armados com ferramentas de trabalho, sorriem e
retribuem o tímido aceno do ogro que estava receoso da recepção que teria. Ao constatar
que agora é “aceito”, ou seja, ele não está mais tão distante dos valores daquele reino,
Shrek parte a galope ao encontro de Fiona.
Com a transformação, o lugar de Shrek, e conseqüentemente de Fiona, não é
mais o pântano, e sim, o reino Tão Tão Distante. Nesse sentido, convém registrar a
análise que Mayer (1994) faz acerca da ambientação:
O lugar é aquele onde o indivíduo se encontra ambientado, no qual está
integrado. Ele faz parte do seu mundo, dos seus sentimentos e afeições e é o
“Centro de significância ou um foco de ação emocional do homem”. O lugar não é toda e
qualquer localidade, mas aquela que tem significância afetiva para uma pessoa
ou grupo de pessoas (p. 94, grifo do autor).
De certa forma, o reino Tão Tão Distante tem significância para Shrek, uma
vez que ele julgava ser aquele o lar de sua amada e, para vê-la feliz, procura adequar-se à
nova realidade. Sua transformação, porém, não surte o efeito desejado, pois, ao chegar ao
castelo, os ex-ogros se desencontram, e como Fiona desconhecesse a forma humana de
Shrek, confunde-o com Encantado51, o príncipe que deveria salvá-la.
Do quarto de Fiona, impedido de sair pela fada, Shrek vê Fiona sendo
abraçada por outro homem. A fada zomba de seu desespero e lhe diz que ele já
atrapalhou bastante a vida de Fiona, mas que agora “ela achou o príncipe dos sonhos”.
Além disso, a fada diz que é hora de ele parar de viver num conto de fadas, pois Fiona é
uma princesa, e ele é um ogro e que nenhuma poção poderá mudar isso.
Na verdade, Shrek continuava distante daquele cenário de lojas caras, carros
luxuosos e mansões magníficas. Como havia alertado o Burro, ele ainda era o mesmo por
dentro, permanecendo, assim, um estrangeiro na sociedade do espetáculo. Deprimido, o
ogro dirige-se à taberna “The Poison Apple”52, lugar reles onde os seres anômalos dos
contos de fadas, como os ciclopes53, o capitão Gancho e a irmã Feia trabalham.
Enquanto a Irmã Feia tecia comentário à beleza do Príncipe Encantado, Shrek
e seus amigos percebem que o rei Harold entra na taberna disfarçado e dirige-se a uma
sala onde estão a fada e o seu filho. O rei sugere que desistam de fazer com que Fiona se
apaixone pelo príncipe, pois diz que não se pode forçar uma pessoa a isso. A fada
discorda, alegando que faz isso sempre, e entrega ao rei uma nova poção mágica que deve
ser dada a Fiona. Este, contudo, recusa, e a fada, ameaçadora, lembra-lhe que o ajudou
com o “seu feliz para sempre” e que pode desfazer o encanto facilmente. O rei esmorece
e desiste de enfrentar a fada.
Acerca desse episódio, convém observar que o esmorecimento dá-se porque,
inicialmente, o rei Harold é o ex-sapo da história “A Princesa e o Sapo”; em um segundo
momento, porque ele era um prisioneiro da Indústria Cultural. Nossa assertiva confirma-
se a partir da mise-en-scène54 do seu quarto, em que o tom verde é predominante nos
quadros, cortinas e roupas de cama. Ademais, a inserção desse personagem (também
verde) parece-nos um indício de quão semelhantes são sogro e ogro. Segundo, porque ele
(o rei) não é livre para tomar suas decisões; caso insista, será punido com a exclusão da
sociedade do espetáculo.
A ameaça que a fada faz ao rei Harold está em consonância com o que diz
Adorno e Horkheimer:
Sob o monopólio privado da cultura “a tirania deixa o corpo livre e vai direto à
alma. O mestre não diz mais: você pensará como eu ou morrerá. Ele diz: você é
livre de não pensar como eu: sua vida, seus bens, tudo você há de conservar,
mas de hoje em diante você será um estrangeiro entre nós” (p. 125).
54 “Apesar da flutuação em sua definição, a noção de “mise-en-scène” guarda o vestígio do valor espacial da cena Cf.
AUMOT, 2003, p. 45
55 Expressão utilizada por Milton Santos em sua obra O espaço do cidadão.
56 Privado da liberdade, constrangido, subjugado. Maniatar ou manietar Cf. FERREIRA, A., p. 476.
87
É compreensível que o rei, acuado pela fada, retrocedesse, uma vez que não
desejava voltar a ter a condição estrangeira de seu genro e filha. A condição anômala de
Shrek diante do universo de Far Far Away não se restringe à questão da beleza física; na
verdade, ela representa a luta de classes na sociedade contemporânea. Para Chauí (1995),
“A luta de classes é o quotidiano da sociedade civil. Está na política salarial, sanitária e
educacional, está na propaganda e no consumo [...]” (p. 76). De acordo com a autora de O
que é ideologia,
(um apartamento estilo “mediterrâneo” vale um “modo de viver”, um cigarro
vale “um estilo de vida”, um automóvel zero km. vale “um jeito de viver”, uma
bebida vale “a alegria de viver”, uma calça vale “uma vida jovem”, etc., etc.) (p.
57).
57(...) a voz-over com freqüência, apenas inicia a estória e é subseqüentemente substituída pelo diálogo sincrônico,
permitindo à diegese “falar por si mesma”. Cf. DOANE, 1983, p. 466.
88
Vendo que o casal de ogros se aproximava cada vez mais, o rei propõe fingir
que não estão em casa; Shrek, por sua vez, sugere a Fiona irem embora enquanto eles não
acendem as tochas. Fiona afirma que são seus pais, mas Shrek lembra-lhe que eles a
trancaram na torre, e ela diz que foi para seu próprio bem.
Além disso, a torre muito alta, assim como o pântano, a taberna “Maçã
Envenenada”, o buraco negro e o mato escuro representam os lugares onde estão
encerrados os seres anômalos e que lá devem permanecer. Sair desses “guetos”, antes que
haja alguma mudança, significa ameaçar a ordem estabelecida.
Em outras palavras, houvesse Fiona beijado o Príncipe Encantado, e Shrek
permanecido encerrado no pântano com os demais personagens anômalos de contos
fadas (vale ressaltar que não fazem parte desse grupo as belas: Adormecida, Cinderela e
Rapunzel), dificilmente o reino se chamaria Tão Tão Distante; ademais, esse reino faz eco
à significação do vocábulo “espaço”. De acordo com Santos, o “espaço é, na linguagem
filosófica, sinônimo de objetificação, coisificação, reificação [...]” (p. 60).
Nesse sentido, Far Far Away é o palco onde os sujeitos são reduzidos a valores
de coisas. O autor também chama a nossa atenção para o fato de que o valor de cada
homem “depende de sua localização no território” (p. 81). O “valor” de Shrek
corresponde ao valor que o rei Harold dá ao pântano: “Um ogro do pântano. Que
original!”
No início deste subcapítulo, observamos que, segundo Turner, é possível
inferir ligações entre um filme e os fatos contemporâneos. Paulo Emílio Gomes (apud
Lopes, 2000, p. 67), afirma que “Qualquer filme exprime, ao seu jeito, muito do tempo
em que foi realizado”. Essas assertivas, de certo modo, respaldam a análise que
procuramos fazer acerca do espaço social do texto fílmico Shrek 2, pois acreditamos que
Far Far Away revela muito da sociedade contemporânea em que vivemos.
Procuramos, também, seguir o que preceitua Lins (1976, p. 92):
espaço da narrativa, uma vez que constamos como o “receituário” da fada duplica a idéia
de que Shrek e Fiona estão distantes da tríade da sociedade contemporânea, representada
no cenário de Far Far Away por mansões magníficas, lojas caras e carros luxuosos.
91
O autor afirma ainda que, num filme com pessoas reais, a câmera pegaria
todos os detalhes de uma determinada cena de forma indiferenciada; mas, em uma
animação, serão relacionados apenas aqueles “que forem considerados importantes para a
cena do desenho de acordo com escolhas de estilo e possibilidades técnicas” (p. 86).
Contrariando o pensamento de Almeida, em 2001, a DreamWorks lançou em
3D, Shrek. Acerca da técnica, Jeffrey Katzenberg, produtor da animação, observa que
“Este foi somente o quarto filme já feito com essa técnica, e para algo ainda em sua
infância, o tipo de progresso que ocorre do dia para noite é algo de tirar o fôlego”59.
Dentre os vários avanços, podemos citar a criação de ambientes ricos e orgânicos, o
vestuário que se move, enruga e reage à luz como um tecido na vida real.60
Para Simon J. Smith (Head of layout)61, o que se aprende sobre filmagens em 3D
“[...] é que você precisa imitar todas as grandes técnicas cinematográficas que já foram
usadas anteriormente em filmes de ação ao vivo”; além do mais, no filme em 3D, “o céu é
o limite para a câmera” e foi preciso que os produtores abdicassem de ângulos
impossíveis, a fim de manter a naturalidade de Shrek.
A título de exemplo, Bob Whitehill (Layout Artist)62 explica que, em uma cena
de ação ao vivo, tentou imitar uma “steady-cam” (câmera parada) para captar a cena em
que o Burro e Shrek cruzam a ponte cambaleante, até o castelo do dragão, para salvar
Fiona. O objetivo era que o espectador percebesse que ele podia estar ali. “Esse é o ponto
de vista da câmera, e dá a impressão de que a ponte é muito mais do que é, que ela sacode
e balança muito mais do que está.”
Sobre outros efeitos criados, como o vento, a poeira, a fumaça e o fogo,
Andrew Adamson, diretor de Shrek e Shrek 2, afirma que eles “adicionam riqueza e
realidade ao nosso mundo, o que é valioso quando se tenta criar essa ilusão de vida”.
Essas considerações, além de enfatizarem a aproximação entre as técnicas utilizadas em
3D e aquelas de filmes “com pessoas reais”, permitem-nos empregar as expressões: plano,
cena, mise-en-scène, plongée, câmera subjetiva, dentre outras, na análise do texto fílmico Shrek
59 As informações aqui colocadas sobre a técnica de Shrek são transcritas do “Special Features” (Recursos Especiais)
do DVD, uma vez que não tivemos acesso ao Roteiro. Acreditamos não haver um roteiro da animação, no sentido
cinematográfico da palavra. As várias seqüências do filme foram feitas a partir de storyboards criadas por diferentes
desenhistas, o que ratifica a nossa assertiva.
60 Essas informações são dadas por Leo Laporte, narrador do “Special Features”.
61 Responsável pelo “layout”; aquele que está à frente da equipe do “layout”.
62 Artista/ profissional que trabalha com “layout”.
94
Por onde quer que o Shrek passasse, todas as criaturas fugiam. Como é que ele
podia gostar de ser tão repulsivo?
“Eles todos são eu!”, admirou-se. “TODOS SÃO EU!” Olhou-se nos espelhos,
cheio de uma raivosa auto-estima, feliz por ser exatamente como sempre tinha
sido.
63 De acordo com Genette (apud REIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina M. 1988, p.27), diegese é “o universo do
significado, o “mundo possível” que enquadra, valida e confere inteligibilidade à história” (Grifos do autor).
64 A voz-off “refere-se a momentos nos quais ouvimos a voz de um personagem o qual não é visível no quadro” (Cf.
65 “Em narrativas “contadas”, tais como épicas e a maioria dos romances, a função narrativa é atribuída a um
conjunto dos indicadores que são “arbitrários”, que não são análogos às ações, aos personagens, ou aos cenários que
eles significam. Em histórias “mostradas”, tais como filmes narrativos, ambos os personagens e as ações tendem a
ser representados de forma icônica ou “motivada”. Por exemplo, o leitor de Outcast of the Islands de Joseph Conrad
pode encontrar pouco sentido nos nomes “Willems” ou “Lingard” ou, certamente, nos epítetos descritivos aplicados
a eles pelo narrador para compor uma imagem mental precisa do romance na versão fílmica de Carol Reed.”
(Tradução nossa)
66 Ao contrário da voz-off, a voz-over é descorporalizada, ou seja, não pertence à diegese; dessa maneira, não pode ser
“localizável, por não ser escrava de um corpo” Cf. DOANE, 1983, p. 466.
67 O narrator cinemático não deve ser identificado com a narração em voz-over. A voz-over pode ser um componente
da exibição total, um dos recursos do narrator cinemático, mas, a contribuição da voz-over do narrador é quase
sempre transitória; raramente ele ou ela domina um filme do mesmo modo que um narrator literário domina um
romance – ou seja, de modo a informar cada unidade de representação semiótica. (Tradução nossa)
96
cujo significado em inglês antigo é “branca”68. Tal significado, a nosso ver, além de
corresponder à locução adjetiva “bem nascida”, é uma paródia à cor da pele das princesas
dos contos de fadas tradicionais, com destaque para Branca de Neve.
Diferentemente do conto, em que o dragão habitava o bosque e foi derrotado
por uma das “pestilentas chamas azuis” de Shrek, na animação69 o dragão-fêmea que
guarda o castelo apaixona-se pelo Burro. Quanto aos personagens, lavrador e criaturas
que no texto literário fogem do ogro, na animação, embora assustados, tentam capturar
Shrek em troca de uma recompensa. O Trovão, a Chuva e o Relâmpago, por sua vez, não
são transpostos para a tela.
As intervenções que sofreram esses personagens, no processo de transposição
do conto ao filme, estendem-se também ao protagonista da história, Shrek. A auto-estima
elevada do ogro-herói, personagem literária, é abalada por causa de um “mal entendido”:
o ogro ouviu uma conversa entre o Burro e a princesa, e esta dizia-lhe que “Princesa e
feiúra não combinam”. Fiona falava da própria feiúra, pois o Burro havia descoberto que,
ao entardecer, a princesa se transformava numa ogra. Tentando acalmá-la, disse-lhe que,
embora fosse muito feia, ela só era uma ogra à noite; já Shrek era feio o dia inteiro. A
princesa, inconformada, questiona: “Mas Burro, eu sou uma princesa, e não é assim que
uma princesa deve ser?”
Então, o Burro sugere que ela não se case com o Lord Farquaad; mas ela
contesta: “Só o beijo do meu verdadeiro amor quebrará o encanto”. O Burro insiste,
lembrando-lhe que é “meio ogro” e que ela e Shrek têm “muito em comum”. Surpresa,
Fiona indaga: “Shrek?” Essa cena intercala-se com outra em que Shrek vai ao encontro da
princesa, levando-lhe um girassol, e “ensaia” o que vai lhe dizer: “Achei esta flor e pensei
em você porque ela é bonita e, bem... Não gostei muito, mas achei que gostaria, porque
você é bonita. Mas gosto de você assim mesmo [...]”.
Ao se aproximar da porta da cabana, Shrek ouve o que Fiona dizia ao Burro:
“Quem amaria uma fera tão medonha e feia? Princesa e Feiúra não combinam. Não
posso ficar com o Shrek. A única chance de ser feliz é casando com meu verdadeiro
amor. Está vendo, Burro? É assim que tem que ser.” Shrek, triste, deixa cair a flor e
afasta-se da cabana, sem ouvir o que Fiona diz em seguida: “O encanto deve ser
68 Cf. http://www.mingaudigital.com.br/article.php3?id_article=526.
69 Trata-se do filme Shrek (2001).
98
quebrado.” E o Burro lhe diz: “Conte a verdade para o Shrek.” A intercalação dessas
cenas é importante, uma vez que ilustra a “personagem como reflexo da pessoa humana”
(BRAIT, 2004, p. 23), e alguém que está em conflito com o mundo do conformismo e das
convenções.
Embora amasse ser ogro e gostasse de Fiona mesmo ela sendo bonita, Shrek
percebe que, no mundo das convenções, Princesa e feiúra não combinam. Essa situação se
exarceba em Shrek 2 quando, já casados, Shrek e Fiona chegam a Far Far Away e têm uma
recepção nada calorosa por parte do rei Harold (pai de Fiona), dos seus súditos e,
principalmente, da Fada Madrinha: “Ogros não vivem felizes para sempre.”
A auto-confiança do ogro, no conto -- “Eles todos são eu!” --, é minada pelo
mundo de Fiona, principalmente, em Shrek 2, o que o leva a adequar-se às convenções,
beber da fórmula “Felizes para sempre” a fim de obter felicidade, bem-estar e beleza
divina. A poção mágica dá a Shrek um nariz bonito, cabelo ondulado e bunda durinha, o
que o faz sentir-se “lindo”. Na Sala dos Espelhos do conto, o ogro está “feliz por ser
exatamente como sempre tinha sido; no filme, ao ver sua imagem refletida em um balde
de água, Shrek fica feliz por não ser mais um ogro. Tal intervenção por parte dos
adaptadores aproxima cada vez mais o anti-herói Shrek de Steig, do herói problemático de
Lukács. Segundo o autor de A teoria do romance (2000, p. 82),
a individualidade do personagem à medida que ele contrasta “com aquilo que se diferencia
dele” (p. 68). Essa assertiva corrobora a idéia de individualidade de Shrek; além do mais,
está claro o contraste do ogro com o campo florido e Far Far Away, espaços sociais do
conto e do filme, respectivamente.
Acerca dos valores espaciais, Santos e Oliveira chamam-nos a atenção para o
fato de que “Quando falamos de espaço na análise de uma narrativa literária, pensamos,
imediatamente, no espaço físico por onde as personagens circulam” (p. 68); observam
também que “é impossível dissociar, do espaço físico, o modo como ele é percebido”(p.
69). Nesse sentido, buscamos ampliar a análise do espaço, no conto e no filme, para além
do “componente físico – paisagens, interiores, decorações objetos etc.”, ou seja, como
lugar de “configurações sociais” (p. 79).
Por configurações sociais, entendemos o estilo de vida de Far Far Away, que é
apregoado por uma voz-over, tanto na chegada de Shrek, Fiona e do Burro ao reino Tão
Tão Distante: “Piscinas! Estrelas de cinema”, como na voz do espelho-mágico-locutor
que anuncia o baile real: “Abdomes fabulosos e glúteos que são o máximo aqui no Baile
Real de Tão Tão Distante!” “Carruagens fazem fila para as celebridades descerem... Todos
os famosos vieram...”. Outros exemplos de configurações sociais, a nosso ver, dizem
respeito ao “receituário”70 da Fada Madrinha e à poção mágica do “Felizes para sempre”.
70Discutimos a relevância do “receituário” da Fada Madrinha, no item 3.2 “Far Far Away: uma alegoria da sociedade
contemporânea”.
101
paródia a lojas de grife famosas como a Versace, e aos castelos/mansões das Estrelas-
atrizes-princesas dos contos de fadas.
Sobre o fato de a câmera mostrar as lojas de grife e o outdoor da Fada
Madrinha, Michael Andrews, editor de Shrek 2, observa que os críticos disseram tratar-se
de “merchandising”. Segundo Aron Warner, produtor de Shrek e Shrek 2, a idéia não era
fazer propaganda, “mas sim mostrar como tudo se tornou homogeneizado” e que “Todos
os lugares com dinheiro hoje em dia têm uma similaridade”. Michael Andrews corrobora
a assertiva de Aron e afirma:
Todas as sementes que plantamos, ao longo do filme, desde o diário até a
seqüência do jantar, são para fazer o Shrek pensar: “De repente eu não
pertenço aqui71.
Bowen (apud Stevick, 1967, p. 314) argumenta que “Scene is only justified in
the novel where it can be shown, or at least felt, to act upon action or character. In fact,
where it has dramatic use.”72 Nesse sentido, os elementos “plantados” no espaço social da
narrativa fílmica, como carruagem-limusine e celebridades que, provavelmente, possuem
abdomes fabulosos, correspondem à tríade de Far Far Away: dinheiro, fama e beleza, que
não estão distantes dos valores da sociedade do espetáculo em que vivemos.
Em A sociedade do espetáculo (1997, p. 30-31), Debord observa que
O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social.
Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada
além dela: o mundo que se vê é o seu mundo. A produção econômica moderna
espalha, extensa e intensivamente, sua ditadura. Nos lugares menos
industrializados, seu reino já está em algumas mercadorias célebres e sob a
forma de dominação imperialista pelas zonas que lideram o desenvolvimento da
produtividade. Nessas zonas avançadas, o espaço social é invadido pela
superposição contínua de camadas geológicas de mercadorias.
Ao beber a poção do “Feliz para sempre”, Shrek se desdiz, faz como todo
mundo, nega a sua originalidade. Isso ocorre porque a tríade de Tão Tão Distante “mina”
a feiúra, o diferente do monstruoso, o “amar ser ogro”. Na sociedade de consumo, é
preciso ser igual para ser aceito. Essa “uniformidade”, ofertada através da publicidade,
vende o sonho de uma vida “perfeita”: os problemas desaparecem, assim como as
celulites, as espinhas e as cáries; é o início de uma nova “era”: carro esporte, vestidos
caros, plásticas que tornam as mulheres lindas e desejáveis, por homens-príncipes ricos e
donos de corpos esculturais.
De acordo com Silva, A. (2001, p. 93-94),
Em Far Far Away, a oferta da vida “perfeita” vai do outdoor à entrada do reino
ao “cartão de visitas”, espécie de cartão de crédito oferecido pela Fada Madrinha a Fiona,
cuja senha para a felicidade é uma lágrima. Ironicamente, o cartão de crédito (objeto
destituído de vida, passaporte para o consumo) necessita de “uma lágrima” (sentimento),
que é “símbolo da dor e da intercessão” (CHEVALIER; GHEERBRANT, p. 533).
Em Shrek 2, as lágrimas remetem ao sentimento de dor, tristeza, amargor. São
as lágrimas de Fiona que “chamam” a Fada que, dentro de uma bolha-lágrima, oferece à
princesa um “doce remédio”, a cura para os seus problemas: “Sei o que toda princesa
precisa/ Para ter uma vida feliz”, diz a Fada. As (pseudo-) necessidades propagadas pela
Fada são criadas pela sociedade de consumo, que através da publicidade, busca vender a
103
Na animação, após beber do “Felizes para sempre”, Shrek tem seu corpo
enquadrado num certo padrão de beleza: cabelo ondulado, nariz bonito, bumbum
durinho. Metamorfoseado, este corpo movimenta-se pelas ruas de Tão Tão Distante, sem
causar repulsa aos seus moradores, uma vez que o ex-ogro, ao menos na aparência, está
sintonizado com o glamour do reino. Agora, Far Far Away é a “sua casa” e a localização do
castelo confirma o status dele. Embora existam exceções, de acordo com Tuan (1983, p.
43-44),
As localizações residenciais têm a mesma hierarquia de valores. Assim como em
uma casa as áreas de serviço estão escondidas no porão, [...] e as casas
particulares aumentam de prestígio com a elevação. Os ricos e poderosos não
somente possuem mais bens imóveis do que os menos privilegiados, como
também dominam mais espaço visual. O status deles se torna evidente aos
estranhos pela localização superior de suas residências; e de suas residências os
ricos reafirmam sua posição na vida a cada vez que olham pela janela e vêem o
mundo aos seus pés.
Mas não é só a “Romeo Drive” (avenida principal de Far Far Away) que separa
ogros e princesas; na verdade, é dentro do castelo real que o conflito de classes se
exacerba. Nesse sentido, a seqüência do jantar é significativa, pois ilustra a opressão do
espaço social através da mise-en-scène. Sobre o conceito de mise-en-scène, Turner (1997, p. 43)
observa que ela “nos permite falar de modo como os elementos dentro de um quadro ou
filme, ou de uma tomada composta de muitos quadros consecutivos, são dispostos,
movimentados e iluminados”. Estáticos ou em movimento, esses elementos podem
significar.
A título de exemplificação, destacamos a iluminação obscurecida da sala de
jantar do castelo real de Shrek 2 que, assim como os demais elementos postos em cena,
significa. Turner observa que há dois tipos de iluminação: high-key (luz alta) e low-key (luz
baixa). Enquanto a primeira é realista, a segunda é expressiva e nos dá “uma impressão de
ambigüidade ou ameaça” (p. 62). Para Turner, isso acontece porque
As gafes do ogro não param por aí. Tentando fugir do clima pesado que se
instaurara à mesa, Shrek concentra-se em tomar o que julga ser uma “sopa”. Fiona,
contudo, corrige-o, mostrando que se trata de um recipiente para lavar as mãos. O
constrangimento do ogro só não é maior do que a ira do rei Harold, o seu sogro.
Incentivados pela rainha, os ogros iniciam uma descrição do lugar em que vivem. Shrek,
no entanto, buscando ser aceito pela família real, “floreia” na descrição do pântano: “É
uma floresta encantada, repleta de esquilos e lindos patinhos e ...”; jocoso, o Burro revela
a verdadeira imagem do pântano. Após essa revelação, a face do rei passa do tom
ameaçador ao irônico e comenta: “Um ogro do pântano. Que original!”
Está claro que Shrek não pertence àquele espaço social. Para o rei, o lugar de
“tipos” como Shrek era o pântano e não Far Far Away. Não há mais espaço para a
tentativa de cordialidade. Em suas posições, ogro e rei dão início a um duelo verbal que é
interrompido pelo chef. Enquanto os garçons colocam os pratos sobre a mesa, a câmera,
num jogo campo-contracampo, focaliza Shrek e o rei que se olham ameaçadores puxando
os pratos principais para si, como se preparassem para a segunda fase do duelo, o verbo-
gastronômico. A música extra-diegética, que durante a primeira parte do jantar era
discreta, a partir desse momento, é mais intensa e dá o ritmo dos garçons que, em volta da
mesa, servem o jantar como se valsassem. Toda essa cena é mostrada por uma câmera
plongée73, que faz uma panorâmica da mesa de jantar, captando, inclusive, parte dos
requintados lustres.
Acerca da composição audiovisual, Aumont e Marie (2003, p. 205) observam
que ela tem, dentre outras funções, a de ilustrar ou criar “uma atmosfera correspondente à
situação dramática (cena lírica, violenta, elegíaca etc)”. Nesse sentido, o cenário do castelo
73“Fala-se de enquadramento plongée, quando o objeto é filmado de cima; em contra-plongée quando ele é filmado de
baixo [...]” (AUMONT; MARIE, 2003, p. 98)
106
real de Tão Tão Distante com sua low-key; a disposição dos protagonistas desse duelo à
mesa do requintado jantar; as gafes cometidas pelo ogro; as tomadas da câmera que
revelam/ narram a inabilidade e o desconforto do ogro diante de tamanha opulência; a
música que se exacerba na terceira parte do duelo, o gastronômico; tudo corrobora uma
atmosfera dramática que ratifica o quanto um ogro do pântano está distante daquela
realidade.
Fenda, esteira, shopping, rua, Far Far Away. . . O que têm em comum esses
espaços? De acordo com Marc Augé, são todos não-lugares. Augé (1994, p. 87) entende
por não-lugar “duas realidades complementares, porém distintas: espaços constituídos em
relação a certos fins (transporte, trânsito, comércio, lazer) e a relação que os indivíduos
mantêm com esses espaços”. Idéia esta corroborada por Relph (apud MAIA, 2004, p. 3-4)
para quem os não-lugares não se definem apenas por seus aspectos físicos, mas também
por ser “uma atitude e uma expressão desta atitude que está se tornando cada vez mais
dominante”.
Em seu artigo “Shopping center – entre a identidade e a inautenticidade na
construção do lugar”, a partir da leitura de Relph, Maia (p. 4) observa que os não-lugares
são “fruto de uma atitude inautêntica das pessoas, que cada vez agem como os outros
agem, sem qualquer reflexão, porque este é o comportamento aceito”. Em outras
palavras: é preciso “fazer como todo mundo”.
Substantivos concretos, espaços e lugares carregam significados que, muitas
vezes, parecem sinônimos. A narrativa classifica o espaço como físico, social e
psicológico. Na nossa pesquisa, tem nos interessado o estudo do espaço social, quer seja
no texto literário, quer seja no texto fílmico.
Por outro lado, sentimos necessidade de abrir um espaço (!) para discutirmos o
lugar como expressão geográfica de singularidade. Essa discussão nos permitirá entender
o não-lugar -- como queria Augé – de Shrek no reino Tão Tão Distante, e como este se
transforma no melhor lugar; antes, retomaremos a caracterização do espaço social, à luz da
geografia humanística.
De acordo com Santos (2004, p. 55), “O espaço social, como toda realidade
social, é definido metodológica e teoricamente por três conceitos gerais: a forma, a
estrutura e a função” e, ao citar Lefèbvre, observa que esse espaço é passível de uma
análise correspondente, ou seja, “formal, funcional e estrutural”.
Quanto à forma do espaço social, Lefèbvre (apud Santos, p 32) destaca que ela
é “o encontro, a reunião, a simultaneidade”. E, não sendo ele uma forma vazia, uma vez
que é cúmplice da estrutura social, Santos argumenta que “com o desenvolvimento das
forças produtivas e a extensão da divisão do trabalho, o espaço é manipulado para
aprofundar as diferenças de classes” (p. 32).
A assertiva de Santos acerca da não neutralidade do espaço social pode ser
comprovada se atentarmos para o fato de que desconhecemos localidades que não
“abriguem” diferentes classes sociais e relações de poder entre elas. Mesmo nos bairros
nobres é comum, mas nem sempre pacífica, a convivência de ricos e miseráveis. Nas
principais capitais do país, as favelas estão ao lado dos shopping centers, ou de prédios
luxuosos, alguns deles apenas com um apartamento por andar. A título de exemplos,
citamos a cidade do Recife e a cidade de São Paulo – o que não impede de encontramos
exemplos semelhantes em outras cidades e/ ou países -- por apresentarem duas realidades
díspares.
Na primeira, o maior centro de compras da América Latina – essa referência
nos remete ao que diz Tuan (p. 193) sobre o fato de os líderes das cidades novas, carentes
de “um passado venerável”, através da propaganda, promoverem-na por suas “excelências
abstratas e geométricas”: “a maior”, “a mais alta”, dentre outros superlativos --, fica à
entrada da favela Entra a Pulso, uma das principais da Veneza Brasileira, cujos moradores
buscaram assessoria jurídica, na década de 80, para garantir o direito de permanecer na
área ocupada desde os anos 50 do século passado.
Na capital paulista, há um exemplo semelhante: nos fundos da butique de luxo
Daslu está a favela Coliseu, cuja renda mensal somada das 215 famílias correspondia,
segundos dados do Censo do IBGE de 2000, ao valor de duas calças jeans de grifes
110
famosas, conforme a matéria “Entre falcões e peruas”, publicada no site da revista Caros
Amigos.75
Apesar da proximidade geográfica entre as favelas e os centros de consumo
acima citados, há uma distância social que separa os personagens que habitam esses
lugares ou circulam por eles. De acordo com Tuan (p. 56), “A distância social pode ser o
inverso da distância geográfica. O criado vive perto do patrão, mas ambos não são amigos
chegados”.
Guardadas as devidas proporções, essa distância social não impede que a
parcela menos favorecida da sociedade freqüente esses lugares e fique tentada a consumir
os mesmos bens dos “patrões”. De acordo com Santos (1987, p. 34), “O poder do
consumo é contagiante, e sua capacidade de alienação é tão forte que a sua exclusão
atribui às pessoas a condição de alienados”. O consumo de um ou de vários itens de grifes
famosas, contudo, não é suficiente para diminuir a distância entre ricos e pobres, uma vez
que ambos pertencem a mundos diferentes. O lugar de um dominado não é o mesmo da
classe dominante.
Sendo assim, o “encontro” de que falou Lefèbvre revela-se um desencontro, uma
vez que, para o autor de Pensando o espaço do homem,
Acerca dessa questão, mas sem se ater aos elementos constituintes do texto
narrativo, Tuan (p. 40) afirma que “Homem e mundo indicam idéias complexas”. É
possível entender essa complexidade se apreendermos, por exemplo, o sentido de lugar.
Em “Cultura e territorialidades urbanas – uma abordagem da pequena cidade”, Silva, J.
(2000, p. 17) observa que
Neste recuo aos níveis mais ínfimos, parece que a dimensão cultural da cidade é
dissolvida num desmesurado ambiente natural, formado pela noite, o frio, a
chuva, a lama, a neve, o vento, a escuridão. Cuspida do universo da técnica e do
objeto manufaturado, Gervaise retorna a uma situação primitiva que procura
superar usando o próprio corpo como objeto negociável. Ou seja: indo ao cabo
do processo alienador, ela se define como coisa, no espaço de um mundo que
lhe nega condições para se humanizar (p. 79).
Nesse sentido, à personagem de Zola cabe o Pavé aux vaches76; assim como
convém a Shrek o seu pântano. Embora mais de um século e gêneros narrativos
diferentes separem L’Assommoir e Shrek 2, ambos os textos, através de seus espaços sociais
assépticos, expulsam seus personagens. É a luta de classes. No texto de Zola, após o
casamento -- realizado de má vontade pelo padre, “entre duas missas de verdade”
(CANDIDO, p. 48) --, Gervaise, Coupeau e seus convidados são discriminados ao saírem
às ruas para comemorar as bodas.
Uma vez que são operários (portanto, ogros), eles não têm direito ao “Felizes
para sempre”. De acordo com Candido (p. 48),
[...] é nas ruas do centro que a marginalidade explode, definida pelo riso com
que é recebido o desejo de, pelo menos uma vez na vida, o operário vestir e
passear como os burgueses. Nesse espaço ele não cabe, tem um ar de bicho de
Nesse sentido, viajar, comprar, repousar são ações que resumem a relação
indivíduos/ espaços. De acordo com Augé (p. 87-88), coube às palavras o papel de
mediadoras dessa relação: “Sabemos, antes de mais nada, que existem palavras que fazem
imagem, ou melhor, imagens: a imaginação de cada um daqueles que nunca foram ao Taiti
ou a Marrakesh pode se dar livre curso apenas ao ler ou ouvir esses nomes”.
Os não-lugares são criados pela supermodernidade que não integra a si os
lugares antropológicos que o passado criou. De acordo com Augé (p. 101), diferente da
116
é esquecer o “amar ser ogro” para tornar-se um príncipe encantado. Adentrar em Tão
Tão Distante metamorfoseado, e não ser rechaçado por seus habitantes, dá a Shrek a
sensação de pertencer àquele reino. De acordo com Augé (p. 99),
Discutindo acerca dos “Efeitos de lugar” (p. 165), Pierre Bourdieu observa
que “certos lugares, e em particular, os mais “seletos” -- entendam-se bairros chiques ou
residências de luxos -- exigem não somente capital econômico e capital cultural como
também capital social”. Bourdieu chama de efeito de clube a “associação durável de pessoas
e de coisas, que sendo diferentes da grande maioria, têm em comum não serem comuns”
(p. 165). Todavia, estão exclusos desse “círculo” todos aqueles que “não apresentam as
propriedades desejadas ou que apresentam uma (pelo menos) das propriedades
indesejáveis” (p. 166).
Sobre as considerações de Bourdieu, duas questões chamam a nossa atenção: o
“efeito de clube” e a “exclusão dos diferentes”. A primeira remete-nos ao comentário de
Shrek sobre não ser bem-vindo ao “country club”, ou seja, a Far Far Away, lugar chique
com mansões luxuosas e lojas caras. A segunda, conforme haviam lhe lembrado a Fada
Madrinha e o Burro, que, apesar de seu gesto, beber da fórmula do “Felizes para sempre”,
ele continuava o mesmo por dentro. Em outras palavras, ele não só não apresentava todas
as propriedades desejadas (faltavam-lhe fama e dinheiro) como, ainda, possuía uma das
indesejáveis: era um ogro.
Essas considerações, a nosso ver, ratificam o espaço social da narrativa fílmica
como um não-lugar. Este, contudo, “ascende” à categoria de melhor lugar. Longe de fazer
apologia ao modo de vida de Far Far Away, acreditamos que o reino Tão Tão Distante é o
lugar certo para discutirmos a marginalização e intolerância de que o ogro é vítima. Ao
experienciar esse não-lugar, Shrek quebra os padrões estabelecidos e leva-nos a repensar a
sociedade, seus valores, as instituições e as regras dominantes.
Acerca da experiência, Tuan (p. 10) afirma que
78a palavra é tomada no seu sentido clássico, “sentido definido por atos retóricos como a peroração, a acusação, o
elogio, a censura, a recomendação, a advertência etc” (AUGÉ, 1994, p. 99).
118
existe certamente o não-lugar como o lugar: ele nunca existe sob uma forma
pura; lugares se recompõem nele; relações se reconstituem nele [...] O lugar e o
não-lugar são, antes, polaridades fugidias: o primeiro nunca é completamente
apagado e o segundo nunca se realiza totalmente – palimpsestos em que se
reinscreve, sem cessar, o jogo embaralhado da identidade e da relação.
79“Que tem experiência”. Difere de “esperto”: indivíduo inteligente que “entende tudo o que lhe explicam”. Cf.
FERREIRA, A., 2001, p. 311; 330, respectivamente.
119
personagens: príncipe/ ogro; princesa/ horrorosa; alazão/ burro; bruxa/ dragão (quase)
inofensivos.
Falamos em desconstrução, não no sentido de destruição -- uma vez que seria
negar a história do ogro verde sujo e flatulento, quer seja na literatura quer seja no cinema,
como uma escrita palimpsesta dos contos de fadas tradicionais – mas como
recomposição, renovação. Ora, o que fizeram os textos de Steig e Adamson senão nos
apresentar novas possibilidades que vieram re-significar o clichê, o Príncipe Encantado,
por exemplo?!
A re-significação dos personagens em Shrek!, Shrek e Shrek 2 – esta ainda tem o
mérito de ampliar os significados do texto-fonte com a inserção de Far Far Away, espaço
social que se revela excludente uma vez que apresenta seres preocupados com o Ter – a
nosso ver, é uma sátira ao que Coelho (p. 95) chama de lei do mercado. Embora a discussão
da autora refira-se à “mitologia cibernética” (p. 94), ela se aplica, também, ao nosso
debate. Segundo Coelho, essa lei é “perversa, pois transforma tudo e todos em produtos”.
Nesse “sistema”, o indivíduo é levado a “consumir” ou “ser consumido” (p. 95).
Trazendo essas considerações para a reflexão de nosso objeto de pesquisa,
observamos que o “receituário” proposto pela Fada Madrinha é um exemplo contundente
de que a princesa Fiona deverá consumir para ser consumida. Em outras palavras, se usar “um
vestido caríssimo”, possuir “uma carruagem esporte, cheia de estilo” e fizer “uma
plasticazinha”, “escreverão seu nome no banheiro: Feliz para sempre?, Ligue para Fiona!”. O
“receituário” convida-nos a fazer parte do espetáculo, na maioria das vezes como
espectadores/ consumidores do que está exposto em revistas semanais como “Quem”,
“Caras”, “Contigo!”; sites de fofocas como “O Fuxico” e “Babado”, bem como de
programas televisivos vespertinos como “De olho nas estrelas”, da Rede Bandeirantes, e
“TV Fama”, da Rede TV!, dentre outros.
Mas há, também, casos em que o indivíduo “ascende” à condição de ser
consumido, ratificando o que diz Adorno e Horkheimer acerca de “A felicidade não deve
chegar para todos, mas para quem tira a sorte, ou melhor, para quem é designado por uma
potência superior – na maioria das vezes a própria indústria do prazer [...]” (p. 135). A
título de exemplo, citamos o quadro Dia de Princesa do extinto “Programa Domingo da
Gente” (2005), da Rede Record.
122
indubitavelmente, amplia o conto Shrek! uma vez o espaço social sai da condição de mero
lugar onde ocorre a narrativa para a condição de antagonista, opressor do ogro-herói.
Nossa assertiva se respalda em duas cenas que representam o encontro/
desencontro do ogro com o lugar e o não-lugar. A primeira corresponde à chegada de
Shrek e Fiona ao pântano, após a lua-de-mel. Nela, constatamos a satisfação do ogro por
retornar ao seu lugar; o mesmo não acontece quando o casal de ogros adentra em Far Far
Away. Intimidado, Shrek olha aquele cenário de luxo e ostentação, certo de que,
definitivamente, eles não estavam mais no pântano, estavam em um não-lugar.
Mas, como nos programas de TV, Shrek tem direito à sua versão masculina
do Dia de Princesa. A (usurpada) poção do “Felizes para sempre” eleva a auto-estima do
ogro, pois lhe proporciona um “tratamento” de beleza: nariz bonito, cabelo ondulado,
bunda durinha, enfim, Shrek estava lindo e Far Far Away passa a vê-lo como um dos seus.
Apesar de o preço para entrar no “country club” ser a alienação, e dela foram vítimas o
Shrek e o rei, é em Far Far Away que ambos recobram a sua originalidade: ogro e sapo,
respectivamente.
Esta cena final ocorre no meio do baile, na presença dos “famosos”, e é
“costurada” por falas e gestos que confirmam Far Far Away, agora, como o melhor lugar
para se discutir a valorização do Ser:
“Desculpe, Lillian. Só queria ser o homem que você merece”, diz o sapo-rei.
“E agora você é esse homem mais do que nunca. Com rugas e verrugas”,
responde, feliz, a rainha.
Mas, é meia-noite, hora da transformação. Enquanto nos contos de fadas
tradicionais, tudo é feito à revelia do personagem, em Shrek 2 -- embora deseje o que toda
princesa quer: “Viver feliz para sempre com o ogro com quem me casei” --, a princesa
Fiona escolhe ser feia porque Shrek é feio e sua origem é ogra.
De volta à forma anômala, o casal de ogros é aplaudido pelos famosos que
vieram homenageá-los. Isso posto, os textos de Steig e de Adamson permitem a quebra
de padrões estabelecidos, levam-nos, através do riso, a repensar a sociedade, seus valores,
as instituições e as regras dominantes.
The End ?
124
Ainda não!
Percebemos que foi na condição de curiosos que começamos a tecer esse texto
que, como a tapeçaria de Penélope, encontra-se, ainda, à espera de novos fios
(argumentos) que se juntem a estes a fim de recobrir as lacunas desse tecido, corrigir-lhe
as falhas, mas sem nunca preenchê-lo, pois acreditamos que assim como aquele que “[...]
se indaga é incompleto” – já dizia Rodrigo S. M., narrador de A hora da estrela
(LISPECTOR, 1998, p. 15) --, essa narrativa (Dissertação), como um conto de fada, segue
também incompleta, ansiosa de outros (novos) narradores-leitores-pesquisadores-
adaptadores!
125
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Discografia:
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