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Fichamento: MEDEIROS, Flávia.

Matar o morto: uma etnografia do instituto médico legal


do Rio de Janeiro. Niterói: Eduff, 2016.

Introdução

A sede do IML-RJ, cujo nome homenageia o médico Afrânio Peixoto, realiza em média 17
necropsias por dia. Nessa instituição, que faz parte do quadro da Polícia Técnico-Científica
da Polícia Civil do Rio de Janeiro, corpos de pessoas vítimas de mortes violentas são
examinados e identificados a partir das técnicas de medicina legal, e registros públicos são
construídos através de práticas burocráticas. Os exames dos corpos e a produção de
registros têm como objetivo revelar a causa da morte; determinar a identificação civil do
cadáver, declarando assim o morto; produzir informações sobre a morte e o morto; e
encaminhar o corpo ao enterro (MEDEIROS, 2016, p. 25-26).

Ao discorrer sobre as “mortes violentas”, Miranda e Pita (2011, p. 177) afirmam que
enquanto em Buenos Aires a categoria “mortes violentas” se refere a mortes que agenciam
tanto o sistema de saúde quanto o sistema penal, sendo usada principalmente para
distinguir, no âmbito do sistema de saúde, as mortes que foram advindas de enfermidades
de outras mortes e engloba “mortes por acidentes de trânsito, suicídios e homicídios”, no
Rio Janeiro, de forma semelhante, a categoria “morte violente” tem seu foco na
circunstância da morte e na imposição de um limite aos procedimentos burocráticos e
jurídicos vinculados à morte [...] (MEDEIROS, 2016, p. 25).

Aqui, demonstro como o IML dá prosseguimento à morte na medida em que a define. Esse
prosseguimento se desenvolve em forma de um processo, e em termos nativos é
reconhecido como matar o morto. Isto é, definir quem morreu e como morreu
(MEDEIROS, 2016, p. 26).

Do princípio

Do objeto

Nesse sentido, durante a pesquisa busquei reconhecer as práticas institucionalizadas de


trabalho dos profissionais do IML, no que se refere à produção de registros dos cadáveres.
Assim, observando como era a rotina burocrática da instituição, vi que, mais do que
identificar, ou não, cadáveres enquanto indivíduos ou pessoas, o IML constrói
institucionalmente corpos sem vida enquanto mortos (MEDEIROS, 2016, p. 26).

Devido a minha inserção num grupo de pesquisa que há mais de 15 anos investiga práticas
policiais e jurídicas, destacou-se, também, a importância que esses corpos apresentam,
sendo por vezes fragmentados e olhados através de suas partes destacadas como evidências
criminais que permitem o estabelecimento de verdades policiais. Assim, cadáveres são
construídos enquanto mortos que, transformados em provas de crimes, permitem a
produção e a reprodução de verdades, estando sujeitos a mecanismos institucionalizados de
construção de verdade (MEDEIROS, 2016, p. 34).

Assim, elucido e discuto as formas como mortos são produzidos institucionalmente e


cotidianamente no âmbito dessa instituição policial, bem como analiso um conjunto de
representações sobre a morte e os mortos (MEDEIROS, 2016, p. 34).

Do campo

Esqueleto

Busco, assim, explicitar a organização cultural do IML com o fim de elucidar um ponto
específico: o que orienta a construção institucional dos mortos? (MEDEIROS, 2016, p. 39).

1. Morte

José Carlos Rodrigues (2006)  os processo de construção da representação da morte a


inscreveram culturalmente enquanto uma relação de poder. Com fins de afastar e esquecer a
morte, a sociedade ocidental industrializada constitui maneiras de lidar com esse poder que
impõe para a morte o status de tabu (MEDEIROS, 2016, p. 40).

Banida, produzida, administrada, a morte está em toda parte na sociedade industrial e esta
presença é o grande paradoxo de uma sociedade que pretende divinizar a vida. Este
paradoxo é talvez a mais fundamental explicação desta sociedade (RODRIGUES, 2006, p.
247).

Principalmente, através da figura do cadáver, são colocados desafios à classificação do


mundo social. Esse ser, ao parecer pertencer a conjuntos distintos, o mundo dos humanos e
o mundo dos mortos, impõe uma série de práticas à sociedade para o estabelecimento de
sua posição no sistema classificatório. Para isso, “é preciso exorcizar o cadáver, a morte, e
tudo o que diga respeito a eles” (RODRIGUES, 2006, p. 61). E é através dos ritos
funerários que se constitui o morto enquanto tal e se explicita uma série de particularidades
no que concerne à representação que as sociedades têm da morte (MEDEIROS, 2016, p.
40).

A morte é um acontecimento dos vivos. E é aquilo que predomina até mesmo sobre a
mudança. A morte acontece cotidianamente e, para aqueles que a esperam, ela está no
previsível. O acontecimento faz parte da estrutura, e é a partir dela que visualizamos os
rituais e as representações que as sociedades identificam como o seu modo de lidar com a
morte (MEDEIROS, 2016, p. 45).

No que se refere ao problema que apresento neste livro, não basta discutir apenas o que
concerne à existência, mas também reconhecer o fenômeno morte como algo que acontece
e que coloca questões à ação. A morte é vista como um processo a ser construído. Na
construção desse processo, é o caráter relacional vinculado à interpretação do sujeito social
envolvido que caracteriza a morte como acontecimento (MEDEIROS, 2016, p. 46).

Dessa maneira, considerando que na sociedade brasileira são as relações sociais


estabelecidas entre os indivíduos que as constituem enquanto pessoas (DAMATTA, 1997,
1979), proponho que o processo de construção da morte seja interpretado a partir da
construção dos mortos realizada no IML. Nesse momento de passagem imposto pela morte
que individualiza as pessoas, a transformação de cadáveres em mortos visa a reestabelecer
as relações sociais que foram ressignificadas pelo acontecimento morte (MEDEIROS,
2016, p. 46).

[...] Quero dizer, qualquer situação de morte produz uma transformação na estrutura do
grupo social em que o morto estava inserido. Mas, em uma instituição em que sua função é
o trato com os mortos, não se pode olhar para a morte como tabu a ser esquecido. Dentro
das salas e entre os corredores do IML, a morte não está escondida. O IML é o esconderijo
do tabu da morte (MEDEIROS, 2016, p. 47).

2. Mortos

Há mortos e outros mortos. Entre as diversas mortes-acontecimentos, há mortes-evento que


têm seu significado diferenciado pelo que são, ou melhor, por quem foram os cadáveres. E
são esses corpos apresentados que fazem com que o acontecimentos morte seja
reinterpretado. Assim, quem é o morto e como foi sua morte faz uma morte ser vista, ou
não como um evento no IML (MEDEIROS, 2016, p. 47).

Uma morte evento  todos os procedimentos cotidianos, eventuais e previsíveis àqueles


que trabalham no IML foram reinterpretados (MEDEIROS, 2016, p. 47).

A autora conta o caso de uma morte cuja vítima era uma pessoa conhecida dos agentes
responsáveis pelos procedimentos do IML.

Observei que essa morte não significou a morte que cotidianamente acontece. Esse morto
provocou a apreensão do acontecimento morte de forma diferenciada e, por consequência,
com significados diferenciados. Chamou-me também a atenção, a oração, que destoa do
caráter científico e cético das práticas rotineiras no IML. Esse morto fez da morte um
evento no IMLAP (MEDEITOS, 2016, p. 48).

No Brasil, que se caracteriza pelo holismo hierárquico (DAMATTA, 1997) e pelo elitismo
desigual (O’DONNELL, 1997), o indivíduo morto não importa, pois a morte é vista como
parte do ciclo social que compõe o coletivo, e o lugar que antes era ocupado pelo morto
pode ser suprido por outro indivíduo, sem que isso prejudique ou modifique as
características mais gerais do mundo social (MEDEIROS, 2016, p. 57).
A desigualdade social se faz presente tanto na sociedade e em suas representações
cotidianas (DAMATTA, 1997), quanto no paradoxo legal e no inconsciente jurídico
(KANT DE LIMA, 1995). Dessa forma, os indivíduos são representados desigualmente e
não faz sentido recorrer à memória quando há indivíduos (e mortos) com menos direitos
que outros. A distribuição desigual dos direitos e dos deveres constrói limites nos espaços
e, por consequência, nas relações que podem ser estabelecidas entre os indivíduos. São elas
que controlam os parâmetros de justiça. Assim, tragédias e fatalidades são descritas como
“estar no lugar errado, na hora errada” ou “estava com as companhias erradas”
(MEDEIROS, 2016, p. 57-58).

Para a maioria das vítimas de violência no Brasil, seja pela violência cotidiana, seja pela
repressão do Estado, o morrer é uma questão de sorte, ou principalmente, de azar
(MEDEIROS, 2016, p. 58).

3. Medicina

A medicina, dessa maneira, reconstrói o significado de pessoa para um olhar médico que vê
o corpo humano sob uma ótica específica. Dentro do idioma da medicina, a categoria
pessoa é inexistente. O indivíduo deixa de ser essa construção social e cultural e passa a ser
um corpo orgânico, um “caso”, um “paciente” ou um “cadáver”. É nesse idioma, nessa
linguagem específica, que os médicos expressam suas observações técnicas e seus
conceitos. A linguagem médica “É um meio diálogo, de confrontação, de interpretação, de
conflito e, às vezes, de transformação” (GOOD, 2003, p. 166). A medicina é uma prática
discursiva específica (MEDEIROS, 2016, p. 61-62).

A morte, à luz da medicina, produz uma das principais ferramentas desse campo do
conhecimento, o corpo morto. “É do alto da morte que se podem ver e analisar as
dependências orgânicas e as sequências patológicas” (FOUCAULT, 1977, p. 165). É pela
morte que a medicina pode olhar, de forma atenta, o conjunto tridimensional que monta de
maneira complexa o corpo humano (MEDEIROS, 2016, p. 63).

A medicina é o discurso disciplinado que disciplina os corpos e, por isso, se constitui


enquanto campo de conhecimento hegemônico em relação aos corpos humanos. A morte
ilumina essa relação que é definida pela própria medicina. São os médicos que têm a
legitimidade para afirmar que o corpo de um indivíduo tornou-se um morto (MEDEIROS,
2016, p. 63).

Quero dizer, não há morte se não há corpo, assim como, institucionalmente, não há morto
se não há a declaração por patê de um médico. A medicina, nesse sentido, se apresenta
como um saber que se relaciona com o poder cartorial (MEDEIROS, 2016, p. 63).

[existe morte sem midiatização? – quais as próximas etapas de reconhecimento e


construção do corpo morto?]
4. Polícia

O surgimento da instituição policial no Brasil coincide com o reconhecimento de um


espaço público que deve ser controlado e vigiado, que não é de todos, mas do Estado. A
polícia, como instituição estatal e jurídica responsável pelo controle social e pela
manutenção da ordem pública, passa a assumir o poder que era exercido privadamente e
que antes era atribuído aos proprietários de escravos. Em oposição à “ordem do rei”, é a
manutenção da “ordem pública” que passa a ser altamente prezada (HOLLOWAY, 1997)
(MEDEIROS, 2016, p. 70).

5. Medicina-legal

No momento em que a medicina legal se instituía no Brasil, o poder do saber médico era
crescente, e este passou a confrontar o direito no que se refere à comprovação da existência
do crime e punição do criminoso (JACÓ-VILELA et al., 2015) (MEDEIROS, 2016, p. 77).

JACÓ-VILELA, Ana Maria; ESPÍRITO SANTO, Adriana Amaral do; PEREIRA, Vivian
Ferraz Studart, Medicina Legal nas teses da faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
(1830-1930): o encontro entre Medicina e Direito, umas das condições de emergência da
psicologia jurídica. Interações, v. 10, n. 19, p. 9-34, 2005.

KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: M. Fontes, 2000.

MARTINS, José de Souza (Org.). A morte e os mortos na sociedade brasileira. São Paulo:
Hucitec, 1983.

Com o surgimento dessa “escola” de Direito Positivo, novas questões surgiam: “significa o
início de um período de disputa entre as instâncias jurídica e médica, pois parece haver uma
exclusão mútua, uma tentativa de substituir um modo de controle pelo outro” (JACÓ-
VILELA et al., 2005, p. 15) (MEDEIROS, 2016, p. 78).

A medicina legal, surgida entre os séculos XVIII e XIX, é considerada a ciência que se
formou a partir da junção de dois saberes: a medicina e o direito. Como o desenvolvido por
Foucault (2007; 2005; 2004; 1999), está-se diante de uma nova forma de comprovação da
“verdade” em que a ciência surge enquanto critério para a investigação e construções de
provas para inquérito. Tal deslocamento, fruto das transformações políticas e sociais desse
período, produto de eventos como a Revolução Francesa, a Reforma Protestante, a
Revolução Industrial e as chamadas Revoluções Burguesas, possibilitou a emersão de uma
nova linguagem na qual o modo do discurso médico se transformou (MEDEIROS, 2016, p.
78).

Nesse período, o discurso médico deixou de lado as estratégias utilizadas no Antigo


Regime e no absolutismo monárquico e religioso e passou a se referir à centralidade do
corpo e à articulação das patologias com a vida e os grupos sociais. Os médicos passaram a
adquirir maior poder e a medicina a atuar de forma mais concreta em relação aos doentes
(MEDEIROS, 2016, p. 78).

A institucionalização desse campo ocorreu ao longo do século XIX. No Brasil, a primeira


vez que se instituiu a obrigatoriedade da avaliação médica, através de perícias que
produzissem provas periciais, para embasar os julgamentos dos juízes em delitos criminais,
principalmente em homicídios, foi no Código Penal brasileiro de 1830 (CUNHA, 2002).
Em 1856, a medicina legal tornou-se parte da polícia, com a criação de uma assessoria
médica na Polícia da Corte, quando foi criado o necrotério do Rio de Janeiro (MEDEIROS,
2016, p. 79).

Foi a partir da constituição dos Institutos Médico Legais, após a criação da cadeira de
medicina legal nas universidades de medicina, que os procedimentos médicos passaram a
ocupar espaço na investigação policial e nas decisões judiciais. Assim, a adquirir poder
decisório no que concerne às determinações sobre a morte e a vida de indivíduos
(MEDEIROS, 2016, p. 79).

O Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro, nos moldes existentes até hoje, surgiu em
1922. Atualmente, cada estado da República Federativa do Brasil tem seu Instituto Médico-
Legal, todos subordinados à Polícia Técnico-Científica (MEDEIROS, 2016, p. 80).

Contudo, como demonstra Foucault, a tecnologia sobre o saber do corpo é difusa, formada
por discursos descontínuos e não sistematizados. Nas instituições o poder é exercido mais
do que possuído: “não é o privilégio adquirido ou conservado da classe dominante, mas o
efeito de conjunto de suas posições estratégicas – efeito manifestado e às vezes
reconduzido pela posição dos que não dominados” (FOUCAULT, 2007, p. 26). Ou, como
dito por um médico perito IML, “a medicina legal brasileira é formada por vaidades. Aqui a
gente tenta fazer a Medicina-Legal, mas se você for em outro estado, em outro IML, eles
vão dizer que é lá que fazem medicina legal. Hoje, a gente ainda não tem nenhuma
unidade” (MEDEIROS, 2016, p. 81).

O Instituto Médico-Legal

O Instituto Médico Legal é o lugar em que a morte ocorre. Lá os corpos encontram a morte,
por meio da medicina, da polícia, da justiça e da medicina legal e se transformam em
mortos. O IML é a caixa preta das vítimas fatais da cidade do Rio de Janeiro. Nenhum
morto ingressa no IML por acaso. É entre os corredores dessa instituição que as
consequências do considerado “o maior problema da cidade do Rio de Janeiro” são
administradas pela polícia. “Tudo se passa na cidade como se já ninguém morresse”,
afirmou Ariès. No IML tudo se passa como se na cidade todo mundo estivesse morrendo
(MEDEIROS, 2016, p. 81-82).
No que se refere aos corpos humanos sem vida, são realizados exames em cadáveres de
indivíduos que morreram em consequência de algum tipo de violência, ou que não tiveram
a causa da morte diagnosticada quando identificada a morte. Neste caso, vítimas fatais de
acidentes de trânsito; projéteis por arma de fogo – PAF; perfuração por arma branca –
PAB; incêndios afogamentos; atropelamento; desabamentos; envenenamento; suicídios;
acidentes em geral; ossadas; partes de corpos humanos, denominados despojos; cadáveres
encontrados em via pública, residência ou estabelecimento comercial; fetos; ou indivíduos
que morrem em estabelecimentos de saúde sem diagnóstico médico conclusivo têm seus
corpos encaminhados ao IMLAP (MEDEIROS, 2016, p. 82).

Dessa maneira, a produção da morte como fato a partir da construção de cadáveres como
mortos, bem como a produção de qualquer verdade científica, depende necessariamente de
estratégias e procedimentos extremamente eficazes e poderosos, que logrem eliminar os
vestígios da trajetória na qual ele foi produzido. É a materialização dos fatos, característica
da construção de verdade médica e policial, por meio da “inscrição literária” (LATOUR;
WOOLGAR, 1997), que formaliza os fatos e produz aquela realidade. Tal inscrição, essa
forma específica de registrar os fatos, elabora enunciados que dizem a “verdade”
(MEDEIROS, 2016, p. 84).

Como demonstrei até aqui, dizer se alguém está morto, ou não, é uma atividade social. A
institucionalização dos processos de morrer e da morte constitui uma série de práticas
científicas e burocráticas que define, se uma pessoa está morta, se é um cadáver. Assim, no
IML, dizer se alguém está morto tornou-se uma atividade institucional, atividade essa
realizada no IML-RJ a partir da combinação de saberes e poderes legitimados
(MEDEIROS, 2016, p. 84).

Carne e sangue

Caminhos que no IML realizam os atos de instituição (BOURDIEU, 2008) da morte


enquanto acontecimento nos registros públicos. Caminhos que levam cadáveres em mesas
por corredores, ao mesmo tempo que constroem um labirinto de papéis (TISCORNIA,
2009) e de procedimentos médico-legais e burocráticos. Caminhos que fazem parte da
complexa malha formada pelo sistema de justiça criminal brasileiro (KANT DE LIMA,
1995) e transformam o acontecimento morte em registro. Caminhos que, após cruzados por
corpos sem vida, constroem mortos (MEDEIROS, 2016, p. 86).

1. Entre linhas

[...] Nesse de significados para os cadáveres, realizados nesse espaço institucional, que
permitem afirmá-los enquanto tais. Logo, é nessa burocracia pública estatal, o IML, que
corpos sem vida atravessam, institucionalmente, a linha de divisão entre os vivos e os
mortos (MEDEIROS, 2016, p. 87).
Les rites de Passage Van Gennep

Aqui, me interessa particularmente o que Van Gennep destacou em relação aos ritos de
morte enquanto ritos de passagem. Nesses, o luto é um “estado de margem para os
sobreviventes” (p. 129), que por vezes coincide com o período de margem dos mortos.
Sobreviventes e mortos se localizam na margem; indivíduos com vida em busca da
reintegração no mundo social; e indivíduos sem vida buscando a agregação no mundo dos
mortos. Nesse sentido, vivos e mortos compõem um mesmo grupo social que se situa entre
dois mundos, o dos vivos e o dos mortos (MEDEIROS, 2016, p. 88).

Ora, a linha que divide é a mesma que separa. Como argumentado por Pierre Bourdieu
(2008, p. 97), o rito tem como efeito essencial “separar aqueles que já passaram por ele
daqueles que ainda não o fizeram”, e é o que institui a diferença entre os que foram e os que
não foram atingidos pelos efeitos da linha de separação. Bourdieu propõe que, nesse
sentido, deve-se pensar em “ritos de instituição”. Tais ritos consagram ou legitimam os
limites. Mais do que focalizar a passagem, esse autor propõe que focalizemos a linha. E vai
além: não olhar apenas o que está de um lado ou de outro da linha, os sobreviventes e os
mortos, nos termos de Van Gennep, mas os que estão fora das possibilidades de estarem de
um dos lados dessa linha, os vivos (MEDEIROS, 2016, p. 88).

Os ritos de instituição que consagram os cadáveres realizam uma definição legítima dessa
classificação. No entanto, não podem ser tomados como definições naturais. Se há alguns
indivíduos, vivos ou mortos, aguardando a definição de suas novas classificações. Quero
dizer, as linhas e as classificações são construídas (MEDEIROS, 2016, p. 89).

A construção dessa linha se dá por sujeitos determinados, na discussão apresentada neste


livro, pelos funcionários do IML, “porta-vozes autorizados” (BOURDIEU, 2008) desse rito
de instituição que ao mesmo tempo que determinam e instituem os cadáveres, também
comunicam aos sobreviventes e as outras instituições essa nova definição (MEDEIROS,
2016, p. 89).

A partir da maneira como são realizadas as operações de nomeação, classificação e


instituição do IML, que foram por mim tomadas como objeto, observei que liminaridade
proposta por Van Gennep e Turner nos estudos de ritos de morte não se inscreve nas
práticas cotidianas dos meus interlocutores, os funcionários do IML. Eles constroem as
linhas e as classificações institucionalmente e são objeto de crença daqueles que se
inscrevem na liminaridade, mas nem sempre são passíveis desta (MEDEIROS, 2016, p.
89).

Tais profissionais, policiais civis em sua maioria, lidam enquanto mortos. São agentes que
detêm o poder autorizado sobre a morte. A eficácia ritual de seus atos é possível não apenas
pela “crença de todos” como afirma Bourdieu (2008), mas também pelo poder exercido
pela instituição da qual fazem parte (MEDEIROS, 2016, p. 89-90).
Assim, nos termos desse autor, esses profissionais são detentores de uma autoridade
simbólica, porta-vozes do Estado e, por consequência, do que é público. Em nome da
instituição, e como vou explicitar a partir daqui, definem a morte e matam os mortos
(MEDEIROS, 2016, p. 90).

2. A remoção

Como já informei, para que um cadáver chegue ao IML, a morte deve ter sido causada por
alguma motivação violenta; sem algum esclarecimento natural; ou sem uma explicação
médico-patológica. Vítimas fatais de acidentes de trânsito, projéteis por arma de fogo –
PAF, perfuração por arma branca – PAB, incêndios, afogamentos, atropelamentos,
desabamentos, envenenamentos e suicídios fazem parte do primeiro grupo. Ossadas; partes
de corpos – denominados despojos -, cadáveres sem sinais explícitos de violência,
encontrados em via pública, residência ou estabelecimento comercial, e fetos compõem o
segundo grupo. Indivíduos que morrem em estabelecimentos de saúde sem diagnóstico
médico conclusivo também têm seus corpos encaminhados ao IML para que seja realizado
o Serviço de Verificação de Óbito (SVO), e fazem parte do terceiro grupo (MEDEIROS,
2016, p. 90).

3. A guia de Remoção de Cadáveres

Assim, os itens que indicam data; hora; DP que solicitou a remoção; os números da GRC e
do Registro de Ocorrência (RO); a quem se refere o cadáver (nome, caso identificado, e
sexo); a viatura do rabecão, o nome e o número de matrícula da motorista são sempre
preenchidos. Os itens que apresentam campos de descrição das características do cadáver,
como cor da pele; cor e tipo de cabelo; se o cadáver apresentava barba ou bigode; qual
idade; e outras características externas, quase sempre são deixados em branco, ou
incompletos. Os itens que se referem ao fato morte, como a causa da morte e em que
circunstâncias esta ocorreu são, na maioria das vezes, completados com restrições, como “a
esclarecer” e “desconhecimento da dinâmica dos fatos” (MEDEIROS, 2016, p. 94).

Assim, a delegacia policial abre mão de determinar informações em relação à morte e ao


cadáver, preocupando-se em cartorializar as atividades e os procedimentos dos bombeiros e
policiais em relação aos cadáveres. Muito mais do que os indicadores que possibilitam a
identificação do corpo, o registro da GRC serve para a burocratização das atividades dos
profissionais. A respostas que se referem ao cadáver são deixadas para o Instituto Médico
Legal (MEDEIROS, 2016, p. 94).

4. Na permanência

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