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INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS DO TRABALHO E DA EMPRESA

CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO


SOCIAL DO CORPO E DAS FORMAS DE
‘EMBODIMENT’

Tiago José Ferreira Lapa da Silva

JULHO DE 2002
Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

“‘Stability’, said the controller, ‘stability’. No civilization without social stability. No


social stability without individual stability’”
[Aldous Huxley, Brave New World]

“Uma das igrejas de Tlön sustenta, platonicamente, que tal dor, que tal matiz verdoso
do amarelo, que tal temperatura, que tal som, são a única realidade. Todos os homens
no vertiginoso instante do coito, são o mesmo homem. Todos os homens que repetem
uma linha de Shakespeare são William Shakespeare”.

“Um pensador (…) suscitou uma hipótese muito audaz. Essa conjectura feliz
afirmava que há um só sujeito, que esse sujeito indivisível é cada um dos seres do
universo e que estes são os órgãos e máscaras da divindade. (...) Nos hábitos literários
é também todo-poderosa a ideia de um sujeito único. É raro que os livros estejam
assinados. Não existe o conceito de plágio: estabeleceu-se que todas as obras são obra
de um só autor, que é intemporal e é anónimo”.
[Jorge Luís Borges, Ficções]

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO – p. 04

AS EXPERIÊNCIAS DO CORPO E DA DOENÇA COMO SOCIALMENTE


CONSTRUÍDAS – p. 05

CRÍTICAS AO CONSTRUTIVISMO SOCIAL – p. 23

O LUGAR DO CORPO NA TEORIA SOCIAL – p. 30

O CORPO É UMA METÁFORA DA MODERNIDADE OU DA PÓS-


MODERNIDADE? – p. 37

Corpo Moderno – p. 38

Corpo Pós-moderno – p. 40

O Corpo e as Novas Tecnologias – p. 45

CONCLUSÃO – p. 57

BIBLIOGRAFIA – p. 58

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INTRODUÇÃO

É objectivo deste texto levar a cabo uma reflexão teórica sobre o impacto que as
sucessivas cosmologias sobre o corpo têm vindo a ter na vivência e na experiência do
corpo. Pretende-se com este trabalho discutir um objecto de estudo complexo, o corpo,
tentando discutir as suas construções, inscrições, funções e as suas várias dimensões.
A medicina, informada por uma nova biologia empírica, tem sido desafiada
pelas ciências humanas que ameaçam a sua posição quase monopolista enquanto
disciplina legítima para o estudar o corpo humano. A emergência da psicologia, da
antropologia e sociologia oferece diferentes maneiras de descrever o corpo e as suas
funções. E tal como é possível conduzir uma genealogia dos discursos médicos sobre o
corpo, segundo Fox, o mesmo pode ser feito para os discursos das ciências humanas. O
corpo tem assim emergido como um palco onde são investidos vários discursos e
contra-discursos que de certo modo fabricam o corpo. Parece ser cada vez mais evidente
que o corpo humano ultrapassa em muito o plano biológico, sendo social e político,
embora não seja claro até onde é que o corpo é socialmente determinado. Os discursos
inscritos no corpo não são neutros pois tem em vista o exercício do poder. Neste
sentido, a gestão do corpo aparece no processo civilizacional como um meio essencial
de produzir ordem social.
Foucault fundou toda uma linha de pensamento extremamente relevante para o
estudo do corpo que, todavia, precisa de ser criticamente avaliada. Daí que se dedique
parte do trabalho à discussão e crítica das teses de Foucault em articulação com outros
autores. Importante realçar é que o corpo surge em Foucault não como um subcampo do
social mas como o local de inscrição do social e de exercício do poder. Assim sendo, o
corpo assume um lugar central na crítica geral da modernidade e na teoria social de
Foucault. Ora, Foucault inspirou assim uma discussão sobre a importância do corpo no
sistema social, daí que seja pertinente discutir o lugar do corpo na teoria sociológica.
Este texto não foi alheio aos recentes desenvolvimentos tecnológicos, em
especial no âmbito da medicina. Uma reflexão sobre a vivência do corpo e as formas de
‘embodiment’ na sociedade contemporânea tem de levar em conta não apenas o
contexto socio-cultural, mas também o contexto tecnológico 1. Aliás, pode-se

1
Numa postura próxima do determinismo social poderíamos colocar o actual desenvolvimento
tecnológico como consequência do contexto socio-cultural. Contudo, assume-se aqui uma postura que
considera existir uma relação dialéctica entre tecnologia e sociedade.

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argumentar que existe um discurso tecnológico que se inscreve no corpo e que se


diferencia do discurso médico. Verifica-se que o impacto tecnológico, complexifica o
estudo do corpo, tornando-o numa entidade cada vez mais instável e fragmentada. É a
partir deste preceito que se reclama o corpo contemporâneo como pós-moderno.
Todavia, os teóricos tardo-modernos ainda consideram o corpo palco do controlo das
instituições da modernidade e do controlo reflexivo do ‘self’ dos agentes sociais.
Estabelece-se, assim, uma discussão entre o corpo moderno e o corpo pós-moderno.
A sociologia do corpo ainda carece de sistematização, situação compreensível
perante a complexidade do estudo do corpo. Assim sendo, uma abordagem algo
ecléctica torna-se mais ou menos inevitável, contudo, tentarei não me expandir
demasiado. Os temas discutidos neste trabalho irão, sem dúvida suscitar questões
éticas, não sendo propriamente objecto da reflexão sociológica abordar essas questões
éticas, que serão mais do campo da filosofia e da cidadania. Todavia, poderão ser
passíveis de reflexão sociológica, a construção, a constituição social e a utilização
discursiva de tais problemas éticos.

AS EXPERIÊNCIAS DO CORPO E DA DOENÇA COMO


SOCIALMENTE CONSTRUÍDAS

Como Annandale aponta na sociologia médica tradicional a doença, enquanto


estado bio-físico, e a doença, enquanto estado social, eram construídas enquanto
entidades distintas e a doença, enquanto estado social, tornou-se um objecto da
sociologia. Esta dicotomia assume uma base biológica para além do campo do social
sendo as atenções viradas para o estudo do modo como o biológico pode ser sobreposto
pelo social. A sociologia médica ortodoxa (como, por exemplo, a de inspiração
marxista) tem como objectivo expôr os interesses sociais, técnicos e ideológicos que
distorcem e contribuem para a criação de certos tipos de conhecimento. Mas, em última
análise, assumem que apesar de certo conhecimento ser socialmente construído não
deixa de existir um mundo externo real que permanece mais ou menos entendido.
Numa perspectiva foulcauldiana, as doenças, enquanto descrições de estados
bio-físicos, são elas próprias fabricações levadas a cabo por discursos poderosos, em
vez de descobertas ‘verdadeiras’ (e isentas) sobre o corpo e a sua interacção com o

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mundo social. Segundo Armstrong, o olhar (perfurante) da medicina (‘medical gaze’)


representa o processo através do qual categorias de doenças passaram a existir e a
evoluções mais recentes da medicina, tais como a terapia ao nível dos genes, podem ser
vistas como resultado das mudanças ao nível do tal olhar da medicina. Esta visão,
remete-nos então para um construtivismo social que põe em causa as próprias noções de
‘natural’ e de ‘biológico’. Para além disso, para os pós-modernistas, a realidade vai
sendo socialmente construída através da luta entre discursos ou paradigmas de
pensamento concorrentes. No heterogéneo mundo social não existe a ‘verdade’, apenas
múltiplas verdades. As verdades eternas e universais, se existem, não podem ser
especificadas.
Segundo Turner, no período medieval as distinções entre desvio, doença, mal e
crime simplesmente não existiam e os rituais de inclusão e exclusão eram um
mecanismo relativamente indiferenciado de policiamento social. Por exemplo a lepra
era regulada por normas religiosas, legais e sociais sendo entendida como um castigo
por um pecado, uma marca da divina intervenção, levando à proibição da herança, do
casamento, da residência, etc. Com a secularização pode-se argumentar que muitas das
funções morais regulativas da religião foram transferidas para a medicina, que policia o
desvio social através da criação do papel do doente na relação médico-paciente.
Na cultura cristã ocidental emergiram três grandes arranjos institucionais ou
respostas a existência de corpos – a religião, a lei e a medicina – superestruturas
institucionais que são respostas organizadas para os problemas espirituais do
‘embodiment’ humano e para a necessidade para uma gestão e um planeamento das
experiências e vivências do corpo. O desenvolvimento da sociedade em termos de
diferenciação da religião, medicina, direito e governo eventualmente trouxe a separação
de funções entre o médico e o padre, e então transferiu-se a regulação moral da igreja
para o clínico. Esta transferência da confissão como regulação moral do padre para o
médico para a qual tem contribuído o desenvolvimento das teorias freudianas e da
psiquiatria, tornou a confissão mais ‘científica’. A medicina ocupa assim o espaço social
aberto pela erosão da religião e muitas vezes dissimula e legitima funções morais com a
sua aparência ‘científica’ em vez de religiosa. Na transferência do ascetismo da arena
religiosa para a arena secular, a moralidade do corpo é provavelmente ilustrada por um
novo materialismo e pelo novo fascínio em patologias, das quais o SIDA é o exemplo
máximo, que funcionam como metáfora do declínio moral – drogas, homossexualidade,
promiscuidade, prostituição, etc.

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O escrutínio da micro-física das relações de poder em diferentes localidades,


contextos e situações sociais levam Foucault a reconhecer nos sistemas de
conhecimento, nos discursos, a codificação de técnicas e práticas para o exercício do
controlo social e da dominação em contextos particulares O hospital ou o escritório do
psiquiatra são exemplos de locais onde a organização dispersa e em rede do poder é
construída, independentemente de qualquer estratégia sistemática de dominação de
classe. O que acontece em cada nó do poder não poder ser entendido com o recurso a
uma teoria geral holista. A única coisa irredutível em Foucault é o corpo humano, sendo
esse o local onde todas as formas de repressão são registadas.
No contexto da medicina, o argumento é o seguinte: ao longo dos tempos, os
vários paradigmas da medicina foram aprovisionando importantes sistemas de
conhecimento e as suas práticas relacionadas pelos quais nós entendemos ou
conhecemos e experimentamos os nossos corpos. O poder da medicina pode ser visto
como o recurso subjacente e fundamental através do qual as doenças e os estados de
doença são identificados e tratados. A abordagem social construtivista entende o
conhecimento médico não meramente como um dado e objectivo conjunto de ‘factos’
mas como um sistemas de crenças moldado através de relações políticas e sociais.
Ora Jewson tentou demonstrar esta última premisa. Para este autor, as
cosmologias médicas prescrevem o visível e o invisível, o imaginável e o inconcebível e
portanto ao mesmo tempo tanto excluem como incluem. As cosmologias médicas são,
basicamente, tentativas metafísicas para circunscrever e definir sistematicamente a
natureza essencial do universo do discurso médico como um todo. Elas são estruturas
conceptuais, que constituem o quadro de referência através do qual todas as perguntas
são colocadas e todas as respostas são dadas. As cosmologias não são, portanto,
enquadramentos normativos estáticos, são antes geradas, sustentadas e desenvolvidas no
seio de um determinado grupo social. Para além disso, elas funcionam como um
medium através do qual as percepções do ‘eu’ e dos outros são expressas, legitimadas e
institucionalizadas. As cosmologias não são apenas postulados sobre o mundo mas são
também modos de relacionamento com os outros.
A partir da conceptualização do conceito de cosmologia Jewson leva a cabo a
delimitação de alguns perídos na história social do corpo. Ele reconhece uma
cosmologia nas sociedades europeias pré-modernas que designa de ‘bedside
cosmology’, na qual a percepção do doente era feita através da consciência da totalidade
humana - um ponto de vista que transcende, em vez de meramente unir, as distinções e

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os vários ramos da medicina moderna. Isto é, a doença era localizada dentro do contexto
do ‘sistema total do corpo’ em vez de apontada dentro de um determinado orgão ou
tecido particular.
Jewson assinala que na era da ‘bedside medicine’ eram os próprios doentes que
determinavam o curso do conhecimento médico. O poder político e económico dos
patronos assegurava que estes retivessem o derradeiro controlo sobre os investigadores
médicos e sobre o processo de produção do conhecimento médico. Vejamos esta
descrição do séc. XVIII: “His pulse is natural, is appetite is unimpaired, and his belly
loose. His urine is sometimes pale and limpid, at other times of a high colour. Twelve
weeks ago, in coming from the harvest in England, he was attacked with a pain in the
abdomen, attended with vomiting and purging. To these succeeded the pains of which
he has ever since complained and by which he is now rendered very weak. He imputes
his complaints to fatigue incoming home. He has taken many medicines without
relief”2.
Nos diferentes contextos socio-culturais, que se poderão observar ao longo do
tempo, ou em diferentes espaços geográficos, o corpo aparece de diferentes formas.
Para o homem primitivo a representação humana era exclusivamente subjectiva. Na arte
rupestre de Lescaux o corpo humano estava simbolizado entre o pássaro e o bisonte
como que suspenso num espaço representado como prolongamento de um corpo ainda
só primariamente construído. Para a cultura hindu, o corpo é composto de sete
elementos sangue, músculo, gordura, osso, nervos, medula e esperma - nutridos por
humores que através de múltiplos canais fornecem o equilíbrio necessário à vida. Esses
sete elementos associam-se para constituírem, simbolicamente, três humores primários
correspondentes ao ar ou vento, ao fogo e à água, sendo que é o equilíbrio entre estes
humores que condiciona melhor ou pior os desempenhos vitais do corpo. As filosofias
orientais entendem o corpo como corpo humural, metafórico, construído num contexto
de equilíbrio na globalidade do ser. A medicina chinesa fundamenta-se numa
representação das funções englobantes de todas as dimensões do ser: o modelo do corpo
humano seria assim não o de uma máquina onde a falta ou defeito de uma qualquer peça
se exprime por doença, mas tal como o define Fiadeiro, “o de um jardim onde podemos
juntar ou retirar calor, frio, humidade, alimento, para que a planta seja aquilo que é,
cumpra o seu projecto vital pela harmonia das forças que a constituem” 3. O corpo
2
Citado em http://www.shu.ac.uk/schools/cs/teaching/mw/hob/hobwk2.htm
3
FIADEIRO, I. «Lumana e Rakotak” in ALMEIDA, Miguel Vale de, Corpo Presente. Treze reflexões
antropológicas sobre o corpo, Oeiras, Celta, 1994

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exprime-se e fala através das emoções, dos afectos, das relações e serão estes os
mediadores significativos do corpo construído porque entendido, porque sentido.
O Renascimento entre os fins do século XV e o início do século XVI, foi
marcado pelo estudo do corpo humano, através da dissecção, onde se encontra como
primeira figura Leonardo da Vinci, o criador da Anatomia artística. Desejava publicar
um atlas do corpo humano com notas explicativas, julgando ser mais compreensível um
bom desenho, do que longas e pormenorizadas explicações. Os médicos leram e
admiraram os manuais de Anatomia dos clássicos, considerando-os mais correctos que
os da Idade Média e descobrem neles muitos erros, sobretudo quando passaram a
interpretá-los, de acordo com os conhecimentos que iam obtendo na mesa de
dissecações. O interesse pelo estudo do corpo humano, traduzido na análise da sua
anatomia de superfície e na configuração e projecção dos órgãos internos, foi uma das
principais características do movimento Renascentista, que se inspira num acentuado
naturalismo, realismo, numa atenção à figura humana. Pretendia-se aprofundar e
aperfeiçoar os conhecimentos e meios técnicos e uma realização muito mais
comprometida nos aspectos das dimensões e conceptual da anatomia humana. A
dissecção de cadáveres autorizada pela Igreja, o estudo dos modelos vivos em
movimento e ainda a associação de artistas com cientistas, são factos que contribuíram
para a obra do renascimento.
O renascimento foi o período em que os artistas, não só dissecaram, mas
também estudaram os seus modelos vivos em movimento. Miguel Ângelo, no início do
século XVI estudava a fisiognomia do corpo humano. Em 1532, André Vesálio
publicou e divulgou a sua obra De Humani Corporis Fabrica, onde tentou revelar os
mecanismos do corpo humano e dignificar o trabalho de dissecção e o acto cirúrgico,
considerados na altura como impróprios dos médicos.
Mais tarde, em plena era da ‘medicina hospitalar’, que já correlacionava
sintomas externos com lesões internas em vez de distúrbios gerais no sistema corporal
como um todo, o doente tornou-se uma colecção de órgãos sincronizados entre si, cada
um com uma função especializada. Tal é evidente na seguinte descrição: ‘His
appearance was florid, his complexion clear. He complained of a slight headache and
sore throat. His pulse was full and rather frequent, the tongue white, the tonsils slightly
inflamed, the parotid glands were very much enlarged, the bowels were confined, and
there was a little oppression about the chest’4. Foucault aponta que a morte, que era
4
Citado em http://www.shu.ac.uk/schools/cs/teaching/mw/hob/hobwk2.htm

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entendida como um fenómeno natural no século XVIII, tornou-se um fenómeno


patológico nos séculos XIX e XX. Assim sendo, verificou-se a concomitante
emergência da medicina hospitalar e da autópsia como instrumentos para estabelecer a
causa patológica da morte. Daí que tenham aparecido descrições como esta: ‘After her
death, the following were the principal morbid appearances, which, as I was afterwards
informed, were observed: The whole of the internal surface of the pericardium was
attached to the heart’’5.
A medicina hospitalar representou o primeiro passo fundamental em direcção à
institucionalização de uma cosmologia médica orientada para um objecto (a patologia).
Nesta perspectiva, Foucault adianta que foi com o ‘iluminismo’ que houve uma
mudança na natureza da realidade da doença em direcção ao status de ‘coisa’ separada
do ‘eu’ e de impressões subjectivas de como os indivíduos se sentem. O doente
encontrou-se então subordinado em relação ao investigador médico, devido à alteração
do paradigma do conhecimento médico que se desviou do estudo do corpo do doente
enquanto totalidade para o estudo de órgãos e tecidos. O controlo do grupo ocupacional
de investigadores médicos ficou centralizado nas mãos dos seus investigadores seniores,
e a profusão de sistemas especulativos característicos da ‘bedside medicine’ foi
substituída por um crescente consenso em torno de certas teorias e terapias. O poder
diferencial entre doentes e pessoal médico foi, então, revertido e na ‘medicina
laboratorial’ o paciente foi simplesmente retirado do campo do investigador médico.
Enquanto que a medicina hospitalar celebrava os interesses e percepções dos clínicos, a
medicina laboratorial fundava-se a partir da cosmologia do investigador científico.
O triunfo das leis cegas da físico-química sobre a idiocracia da experiência
pessoal do doente na cosmologia do investigador médico não ocorreu até este último
conquistar um certo nível de distanciamento face aos desígnios dos doentes. Segundo
Jewson, a ‘medicina laboratorial’ começou a aplicar os conceitos e métodos das ciências
naturais para a solução de problemas médicos. Numerosas descobertas sobre as
propriedades dos tecidos humanos foram organizadas numa síntese coerente pela teoria
celular. Como a célula era entendida como a unidade fundamental da vida, então nela
teria de estar também a origem da doença. A vida começou a ser entendida então como
os processos de interacção dentro e entre as células, e a doença uma forma particular
desses processos físico-químicos. O diagnóstico clínico estava então reorganizado em

5
Idem

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torno da aplicação de uma série de testes químicos das substâncias corporais designados
para identificar processos fisiológicos patológicos.
Ao quebrar o corpo em órgãos e funções, a ciência médica tinha já começado o
processo de dissecção analítica, a partir do qual o paradigma da genética molecular é
uma extensão lógica, apesar de o ser a um nível muito maior de abstracção e de
simulação. Em 1905, Bateson introduz e define o termo “genética” como a ciência da
hereditariedade e da variação. Os trabalhos de Watson e Crick determinaram em 1953 a
estrutura em hélice dupla das moléculas do ADN, explicando assim a autoreprodução
do material hereditário. O conjunto de material hereditário que caracteriza uma dada
espécie é designado de “genoma”. No ano 2000, o projecto do Genoma Humano
determinou a localização cromossómica e decifrou partes do ADN. Hoje procura-se
definir a vida pelo nosso ADN e pelas características genéticas que uma medicina
molecular quer conhecer no infinitamente pequeno, e a partir daí, compreender a nossa
existência. Esta é a nova cosmologia que tenta afirmar a realidade do nosso corpo e até
transfere para impressões genéticas a procura da identidade ontológica.
O código genético é uma abstracção pura do corpo, tal como as fórmulas
matemáticas das ciências naturais são abstracções puras da natureza. Galileu apontou
que a natureza era como um livro e que a linguagem para ler esse livro era a
matemática. Hoje também foi construído um código genético, o ‘livro da vida’,
constituído por um alfabeto de apenas quatro letras (A, T, G, C), a partir do qual se
pretende conhecer os genes e, portanto, os seres. A vida biológica, o corpo, o indivíduo
com o seu genoma estão aí para ser lidos e reduz-se assim o corpo à condição de
informação.
O paradigma funcional e mecanicista tratava cada órgão do corpo como uma
prótese parcial e diferenciada. Na cosmologia genética, cada célula do corpo é
potencialmente uma prótese embrionária do corpo. A fórmula genética inscrita em cada
núcleo celular torna-se a prótese moderna para todos os corpos. Ora, isto terá sem
dúvida consequências ao nível das cosmologias do corpo, contribuirá para a construção
de um corpo informacional, de um corpo que poderá ser replicado, e portanto dá-se uma
machadada final no corpo enquanto globalidade, uno e indivisível como um ponto
perfeitamente distinguível no espaço e no tempo.
Passa-se assim de uma ordem transcendental, corpo espelho da vontade divina,
para um corpo mecanismo, conjunto de órgãos com a progressiva autonomia do
humano, depois para um corpo povoado de células comunicantes entre si através de leis

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físico-químicas, para chegarmos ao corpo da espiritualidade material do ADN, da


informação, do SIDA. Ao longo dos tempos, portanto, houve formas sucessivas e
diferentes de nos colocar experiencialmente face ao mundo.
Foucault identificou na alvorada da modernidade, a emergência de um novo
‘olhar clínico’ (‘clinical gaze’), isto é, uma maneira de olhar penetrantemente o corpo
do paciente, que possibilitou novas formas de acção médica. O olhar clínico é
penetrante para Foulcault, num duplo sentido, não apenas porque pretende sondar o
corpo o mais minuciosamente possível a fim de o descodificar (descodificação que para
o construtivismo social não passa de uma narrativa), mas penetrante também porque
pretende alojar-se na própria consciência dos indivíduos e na maneira como os
indivíduos vivem e experienciam o seu corpo. Para Foucault, ao longo do tempo,
construíram-se diferentes mapas da estrutura do corpo humano, e portanto, diferentes
‘anatomias políticas’ do corpo. É postulado que o conhecimento e as práticas da
medicina participaram na própria constituição do corpo e no modo como a vida dos
indivíduos é entedida e vivida.
A principal tecnologia do poder, em Foucault é o ‘clinical gaze’ investido na
recolha de informação para informar e criar um discurso sobre os seus sujeitos. Os
discursos criam ‘efeitos de verdade’ que não são nem verdadeiros nem falsos. É a partir
da associação entre um poder produtivo e a fabricação de efeitos de verdade que
Foucault fala de poder/conhecimento, um fenómeno que não pode ser reduzido a
nenhum dos dois componentes.
A anatomia política do corpo de Foucault enfatiza a descontinuidade entre os
conhecimentos utilizados para reescrever os corpos humanos, que constituirão a
autoridade e a profissionalização dos médicos, que por sua vez deram legitimidade ao
discurso médico. Segundo Fox, Foucault vai contra as visões nas quais o passado é visto
como um presente imperfeito, isto é, um passado onde são semeadas as sementes da
presente prática médica. Ao ler a medicina moderna através de uma genealogia
descontínua, os temas do desenvolvimento racional e do progresso são substituídos com
a imprevisibilidade e com a descontinuidade dos discursos ‘médicos’.
A mudança no ‘clinical gaze’ deu-se devido à inadequabilidade das velhas
formas de controlo ameaçadas com o desenvolvimento do capitalismo, o crescimento da
população e com a concentração de uma parte significativa da população em espaços
urbanos. Por isso, novos regimes de poder tinham de emergir em torno do controlo e da
monitorização do ‘self’ e do corpo. Portanto, esta ‘bio-política’ direccionava-se à

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predição e ao controlo da população através da vigilância do ‘self’. Há aqui o


reconhecimento que o corpo representa um problema regulatório no desenvolvimento
das civilizações humanas, pelo que os corpos humanos têm em geral de ser
disciplinados, treinados, cultivados, sendo estas as principais características de uma
cultura. Podemos tratar o corpo como alvo das práticas das racionalidades que procuram
regular e dominar o corpo de um indivíduo e os corpos de populações inteiras. A
prescrição da normalidade é aqui central, contudo, para Lupton, o construtivismo social
negligência a clivagem entre os discursos patentes nos textos oficiais e os modos como
os profissionais de saúde e o indivíduo comum praticam e experienciam a medicina.
A crescente importância da medicina preventiva e o uso do conceito ‘estilo de
vida’ para regular os corpos produtivos dos trabalhadores deu azo a uma grande
intervenção das ideias e práticas médicas na realidade quotidiana através da dieta, do
exercício, das normas anti-tabagismo, da regulação sexual, da regulação demográfica. A
inscrição da prática do ‘fitness’ nos corpos daqueles que o praticam não está ligada
simplesmente à regulação da massa muscular, do ritmo cardíaco, ou qualquer coisa do
domínio físico. Em áreas como a vida familiar, o clínico geral substitui, em termos
funcionais, o confessor e o padre.
Segundo Lupton, Foucault partilhou com a crítica tradicional da ‘medicalização’
a preocupação com a ‘dependência’ que a ciência médica contemporânea parece
encorajar. Através da medicalização, a vida social e os problemas sociais tornaram-se
cada vez mais ‘medicalizados’ ou entendidos através do prisma da ciência médica. A
medicina vai cartografando a experiência da vida e incorpora um interesse pelas
actividades diárias dos indivíduos. A medicina torna-se, assim, omnipresente,
monitorizando e vigilando a vida social, normalizando a experiência, a praxis
individual. As principais estratégias do poder disciplinador da medicina são a
observação, a inspecção, a medição e a comparação dos indivíduos em constraste com
uma norma estabelecida. Para Foucault, as sociedades são sujeitas a uma grande
influência da ciência médica, e apesar do poder desta não ter substância, ela serve para
monitorizar e administrar os corpos dos cidadãos de uma dada sociedade num esforço
para regular e manter a ordem social como tanmbém promover uma boa saúde, e assim,
a produtividade6.
Deste modo, não há necessidade de uma repressão física e esta é uma forma de
poder levada a cabo continuamente e com um custo mínimo. O construtivismo social de
6
De notar é que estes objectivos são positivamente concebidos pela perspectiva funcionalista de Parsons.

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Foucault postula que o novo poder disciplinador da medicina funciona através de


processos de inclusão e de normalização, proporciona instruções de como os pacientes
devem entender, regular e experienciar os seus corpos e persuade os indivíduos de que
certas formas de agir e de pensar são mais apropriadas. Tudo o que é necessário é um
olhar e uma auto-regulação interiorizada ao ponto de cada indivíduo exercer a sua
própria vigilância.
A medicalização da vida social é evidente no modo como os avisos sobre os
riscos de saúde se tornaram acontecimentos comuns. Tenta-se persuadir as pessoas para
regerem as suas vidas de modo a evitarem doenças e uma morte prematura. Deste modo,
toda as pessoas vivem sobre o regime médico. Pode-se argumentar que as questões de
saúde pública e a medicina preventiva evitam possivelmente uma forma de
medicalização, mas, por outro lado, apresentam uma outra forma de medicalização que
introduz as preocupções com a saúde nas aspectos mais comuns da vida dos indivíduos
como os seus estados emocionais, a natureza das suas relações interpessoais, a
regulação do ‘stress’, as suas escolhas em termos de estilos de vida.
O ‘clinical gaze’ de Foucault não é intencional no sentido de originar de um
grupo particular à procura da dominação sobre terceiros. Em Foucault, o poder não é
entendido como tendo uma racionalidade política central e, portanto, “power is not
embodied in individuals, social groups or institutions, even though it is clearly played
out in institutional contexts such as the doctor’s surgery, but operates through norms
and technologies which shape the body and mind”7. Em vez disso, o poder é uma
estratégia que é investida em e transmitida por todos os grupos sociais. Na perspectiva
foucaultiana, os médicos não são encarados como uma ‘classe dominante’, mas antes
como ‘nós’ numa rede de relações de poder, através dos quais o poder transcorre, sendo
embora pessoas importantes para a integridade do sistema panóptico.
Em contraponto, a teoria ortodoxa da medicalização, entende os membros da
profissão médica como conscientemente procurando ganhar poder e ‘status’, e limitar o
poder de outros grupos, em grande parte, com o apoio do Estado. Já para Foucault, ao
contrário daqueles que defendem uma visão mais ortodoxa da medicalização, como
Illich, é impossível remover o poder dos profissionais de saúde e entregá-lo aos
pacientes. Aqueles que argumentam que os leigos deveriam tornar-se mais informados
sobre o saber médico, de modo a tomar o controlo sobre os médicos, podem ser
considerados como paradoxalmente defendendo uma maior ‘medicalização’ da vida das
7
ANNANDALE, Ellen, The Sociology of Health & Medicine, Cambridge, Polity Press, 1998, p. 37

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pessoas. De acordo com Lupton, a perspectiva de Foucault também se diferencia da


crítica tradicional da medicalização, postulando que ‘desmedicalizar’ o corpo ou vê-lo
através de enquadramentos de referência alternativos que não são do âmbito da
medicina pode levar a diferentes modos de subjectividade, mas não a mais ‘autênticos’
modos de subjectividade e de vivência do corpo.
O panoptismo pode ser interpretado como uma governamentalidade, que
engloba dois efeitos conflituantes: o reforço da comunidade e a crescente
individualização. Mas nesta govermantabilidade não há um estado discernível por detrás
da política, mas um conjunto mais disseminado de agentes discursivos. O poder na
teoria de Foucault é difuso, operando através da base e não do topo do sistema social,
sendo, portanto, em primeiro lugar, produtivo e não repressivo. Isto contradiz o modelo
marxista para o qual os indivíduos ou, especialmente, os grupos sociais possuem poder.
Para o marxismo, o poder emana de uma fonte central desde o topo até à base e portanto
é essencialmente repressivo.
Com a noção de ‘clinical gaze’, Foucault articula assim a micro-política da
regulação corporal com uma macro-política da vigilância das populações. Os princípios
do panoptismo presentes no ‘clinical gaze’ compreendem o exercício do poder através
de relações observador-observado, sendo a permanência e a totalidade desse poder
mediado pelos seus sujeitos (os observados), e não tanto pela acção contínua dos
observadores (que são nós na rede de poder e que nem sempre estarão a observar).
Aliás, a própria eficácia do princípio do panoptismo é relativizar a relação observador-
observado visto que os indivíduos vigiam-se a si próprios. No modo liberal de
governação que caracteriza o período moderno das sociedades ocidentais é a base, é o
próprio indivíduo comum, que acciona o poder, encorajado a confessar e a elaborar os
detalhe íntimos da sua vida tornando-os aspectos cruciais dos modernos poderes
punitivos, através dos quais o indivíduo está preso no processo de normalização. Isto é
evidente no crescimento da psiquiatria e na vontade de confessar que estimula; no
crescimento da medicina preventiva que está assente na internalização dos discursos
poderosos dos regimes de dieta e de ‘fitness’; e nas técnicas de ‘auto-ajuda’. A
tecnologia da confissão tem sido refinada nas sociedades modernas num incitamento
que continuamente reflecte e regula a conduta de cada um como um ‘sujeito ético’
monitorizando, testando e melhorando o ‘self’ de acordo com objectos morais auto-
impostos.

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

Como Fox recorda a superfície do corpo é sem dúvida a superfície mais


discutida, imaginada, prescrita e proscrita, mascarada, remoldada e controlada do
mundo físico, através de múltiplos discursos e agentes, desde o discursos religiosos até
aos discursos hedonistas que postulam a transgressão. E é a partir da ‘visibilidade’
corporal que emergem as políticas do corpo. Neste sentido, Foucault sugere que o
panoptismo compreende a observação e classificação dos indivíduos num contexto
médico, para estabelecer comparações entre doentes, para monitorizar os efeitos de
diferentes medicinas. Na forma do médico e na técnica da examinação médica, o poder
disseminado pelo ‘le regard’ de Foucault permitiu a constituição de um corpo de
saberes sobre a doença, observável em sintomas e sinais corporais. Os sintomas
permitem uma maior invariabilidade na forma da doença, sendo esta simultaneamente
visível e invisível, estando escondida mas contudo passível de ser observada numa
superfície corporal.
Neste âmbito, Fox destingue sintoma de ‘sinal clínico’. Um sinal clínico (que é
depreendido e não observado) é constituído na linguagem e atingido através da
consciência. Para um médico, todos os sintomas deverão transformar-se em sinais, todas
as manifestações patológicas deverão constituir uma linguagem clara e ordenada. Ora
isto afecta o poder entre profissional e paciente, dissolvendo a autenticidade e a
autoridade do paciente. O ‘clinical gaze’ oferece um prospecto, através do exercício do
seu poder para alcançar o conhecimento e a técnica, de conhecer o corpo. A inscrição do
corpo que a medicina decifra através das suas análises não é linear e não pode ser lida
correctamente por qualquer um, pois o leitor do corpo tem de ser um profissional.
Consequentemente esta cientificação da leitura do corpo é alcançada à custa daqueles
que serão sujeitos ao ‘clinical gaze’ e assim sendo os profissionais do corpo estão numa
relação de poder, tanto como estão numa posição de conhecimento.
Ao longo dos tempos, a superfície corporal tem sido palco de um cuidado
escrutínio de vários profissionais que procuram sinais superficiais da personalidade e
dos segredos mais obscuros dos indivíduos ou do seu estado físico interior. Já no séc.
XIX, com o advento da fotografia, houve a tentativa de criar topologias sociais, quando
alguns cientistas pretenderam, associando medidas antropométricas a retratos
fotográficos, cientificar os arquivos policiais. Na mesma ficha fotográfica juntava-se, o
retracto do detido, de frente e de perfil e as medidas antropométricas de aspectos
parcelares, tidos como significativos, do crânio, da face. Julgava-se que com estes
instrumentos de trabalho era possível definir o retrato-robot do criminoso: “orelhas

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

afastadas, cabelos abundantes, barba rala, seios frontais e maxilares enormes; queixo
quadrado e saliente, maças do rosto saliente, gestos frequentes, em suma um tipo
lembrando o mongol e por vezes o negro. Nos Atlas comparavam-se fotografias de
criminosos com as de gente honesta, apontando-se as provas de degenerescência, que
fazia alguns homens regredir até ao estado selvagem e mesmo animal”8.
No paradigma genético emergente é de assinalar, a tentação de tudo explicar
acerca do homem, a sua saúde, os seus comportamentos, através do retrato do genoma.
Esta ideia, ainda é sustentada por vários investigadores, que procuram reduzir os
problemas sociais à sua dimensão biológica, transmitindo deste modo a ideia de que é
possível criar topologias sociais e dar azo a ‘bio-políticas’.
As tipologias sociais, já não são, na era digital, efectuadas a partir de
características do corpo, mas a partir dos testes genéticos, do estudo das disposições
moleculares. A genética não só pode dar azo a um novo ‘olhar clínico’, mas enquanto
‘bio-política’, poderá transformar a medicina cada vez mais num sistema de controlo e
gestão da população, de normalização face a um padrão genético9.
Os progressos na área da genética irão, permitir, em breve, ler a nossa ‘saúde’ e
a dos nossos filhos. Os utensílios de predição da saúde dos indivíduos durante a sua
vida, ou das crianças antes do nascimento terão tendência para se generalizar muito
rapidamente. Um indivíduo poderá ficar a saber que aos 32 anos poderá ter um cancro
ou um infarto aos 50. Assim vai se gerando toda uma nova lógica e um consenso social
em torno da denúncia dos ‘maus’ genes. Em torno deste consenso social estará
eventualmente uma discussão em torno dos binómios
«responsabilidade/irresponsabilidade», «saber/não saber», e em torno da genética
poderão estar a formar-se novas dinâmicas de construção da identidade, novas
representações e relações com mundo devido ao carácter tipológico e preditivo da
genética.
A ontologia de Foucault é ambígua daí que sejam possíveis diferentes leituras de
Foucault que se traduzem em diferentes desenvolvimentos teóricos. Fox localiza
Foucault como um autor pós-moderno. Já Turner aponta que o ‘clinical gaze’ é uma
força racionalizadora dos corpos, colocando Foucault próximo da perspectiva
weberiana.
8
SÉREN, Maria do Carmo, “Do Arquivo dos Preventivos à Tipologia dos Criminosos” in ALVES, M.
Valente, BARBOSA, António, O Corpo na Era Digital, Lisboa, Faculdade de Medicina de Lisboa, 2000,
p. 211
9
Terá assim a cultura humana, de que a genética faz parte, acabado com a selecção natural darwiniana?
Toda esta temática sugere a discussão entre a relação natureza/artifício.

17
Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

Também podemos estabelecer um paralelismo entre a perspectiva foucauldiana e


a teoria crítica que têm em comum a consideração de que qualquer discurso ou narrativa
constituem uma dominação ou tendem para a dominação. A teoria crítica parte da
premissa de Max Weber de que o marco distintivo da sociedade moderna é a crescente
racionalização. Esta crescente racionalização da sociedade depende da
institucionalização do progresso científico e técnico, que invade as esferas institucionais
da sociedade e transformam-se, assim, as próprias instituições e desmoronam-se as
antigas legitimações baseadas nas cosmovisões orientadoras da acção. Marcuse
complexifica o conceito de racionalização de Weber e dota-o de duas funções: uma, a
que já fora apontada por Weber, refere-se ao incremento das forças produtivas, a outra,
que é a introduzida por Marcuse, refere-se à racionalidade técnica enquanto ideologia.
A instrumentalização das coisas transforma-se em instrumentalização do homem –
importa considerar na sociedade industrial avançada duas dimensões analíticas, a
consumação da racionalidade tecnológica e a contenção intencional dessa racionalidade
nas instituições estabelecidas. Qualquer tipo de acção fora do âmbito da racionalidade
instrumental é tida como irracional, qualquer tipo de acção tem de ter uma função social
e não pode ser entendida em si mesma com o risco de ser apelidada de irracional.
Através da racionalização e da secularização pretende-se de certo modo destruir
a presença da diferença ao tornar o mundo o mesmo. Há aqui uma crítica da
normalização e da construção da prática burocrática normal. Segundo Turner a
secularização e medicalização podem ser vistas como racionalização, e mais
especificamente racionalização do trabalho (e portanto do corpo), característica esta
essencial ao desenvolvimento do capitalismo. A racionalização do trabalho engloba as
práticas de disciplina como a dieta, o treinamento e a regulação. A necessidade do corpo
produtivo deu assim azo à medicalização, isto é à aplicação racional do conhecimento
médico e a prática de produção de corpos ‘saudáveis’, eficazes e eficientes. O Estado
também tem interesse em reduzir custos na saúde ao educar o público a não negligenciar
a sua relação com o corpo.
A medicina tem-se constituído como uma regulação poderosa e um
constrangimento para o corpo humano, criando discursos sobre doenças que
monitorizam, e em parte contribuem para, várias formas de desvio. Estas tentativas de
regular o corpo através de uma rede de instituições sociais e normas culturais são a
componente central da ética moderna do controlo do mundo. Esta ética do controlo do
mundo é o projecto da modernidade que advém da imposição da racionalidade

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

instrumental sobre a natureza, as relações sociais e a personalidade. Ora, a subordinação


da carne requer uma intelectualização da vida através do desenvolvimento das ciências
da natureza e das engenharias, da regulação dos corpos e da mente no interesse da
eficiência industrial e da emergência de um sistema monetário através do qual o valor
de todas as acções possa ser racionalizado.
Do pressuposto que considera a ciência enquanto projecto social, Habermas
assinala, que poderá deduzir-se a ideia que uma libertação do homem não se poderia
pensar sem uma revolução prévia da própria ciência e tecnologia para que estas
passassem de dominantes a dominadas. Esta ideia é sugerida na afirmação de Marcuse
que “a transformação qualitativa também compreende uma transformação da base
técnica”10 e pode-se articular com a crítica da ciência levada a cabo por Adorno e
Horkheimer. No entanto, Habermas é bastante céptico quanto a esta ideia,
argumentando que a evolução da técnica corresponde à estrutura da acção racional
dirigida a fins e controlada pelo êxito e isto significa, que corresponde também à
estrutura do trabalho11. Assim, não se pode renunciar à técnica vigente enquanto
houvermos manter a nossa vida por meio do trabalho social e com a ajuda dos meios
que substituem o trabalho. Para o progresso científico-técnico em geral, não existe um
substituto que seria mais humano. E se para Foucault não existem relações de poder sem
resistência, também não existe nenhum sistema utópico que seja capaz de escapar à
relação ‘poder-conhecimento’ de uma forma não repressiva. Aqui Foucault faz ecoar o
pessimismo de Max Weber quanto à habilidade de escapar à ‘jaula de ferro’ da
racionalidade técnica e burocrática. O corpo humano, como o local onde todas as
formas de repressão são registadas, está, em larga medida, condenado à repressão. A
única maneira de ‘libertar o fascismo das nossas cabeças’ é explorar as brechas dos
discursos e intervir na maneira como os discursos são produzidos e construídos nos
locais particulares onde um ‘poder-discurso’ prevalece. Foucault acreditava ser possível
haver uma mudança social que não replicasse de formas diferentes as múltiplas
repressões do capitalismo, apenas se houvesse um ataque multifacetado e pluralista
sobre os discursos repressivos. Neste âmbito, os movimentos feministas, gay, étnicos e
outros tentam exercer esse ataque pluralista.

10
MARCUSE, Herbert; 1982: p. 37
11
Habermas refere a contribuição de Arnold Gehlen: “a evolução técnica ajusta-se ao modelo
interpretativo, segundo o qual o género humano teria projectado uma a uma, ao nível dos meios técnicos,
as componentes elementares do círculo funcional da acção racional teleológica, que inicialmente radica
no organismo humano, e assim ele seria dispensado das funções correspondentes [do aparelho
locomotor, dos sentidos, da produção de energia, e do cérebro]” (HABERMAS, 1994: p. 52)

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

No construtivismo social, o conceito de corpo biológico é constituído


discursivamente pela teologia, pela filosofia, pela bio-medicina e outros discursos.
Poderá haver uma espécie de ‘corpo natural’, mas esse não é passível de ser traduzido
num discurso pelo que não é passível de ser conhecido. Como o corpo é socialmente
construído não é possível conhecer a materialidade do corpo fora das suas significações
culturais, sendo a unidade do corpo é uma criação do poder/conhecimento. Segundo
Fox, o corpo foucauldiano é um ‘corpo-sem-órgãos’, um corpo social.
Mark Poster, também assinala as redefinições atrás referidas. O corpo não é um
objecto natural, isto é, a sua representação é alterada através do sujeito racional, é um
produto da ciência. Segundo Poster, contribui para isto o facto de a sociedade se
confrontar com instrumentos análogos ao corpo humano que se inserem cada vez mais
no espaço social. Poster apresenta aqui uma perspectiva, em larga medida, tecnológica
na abordagem destas questões. Baudrillard também postula a construção social da
experiência humana e, na sua fase pós-moderna, sugere novos modos pelos quais o
corpo pode estar a ser percepcionado. Todavia, para o autor francês, ao contrário de
Foucault, as cosmologias da modernidade estão mortas e com elas o poder. Segundo
este guru do pós-modernismo movemo-nos de um período de modernidade dominado
pela produção industrial para um mundo pós-moderno de alta tecnologia, um mundo
‘hiper-real’ onde os indivíduos já não são movidos pelos interesses capitalistas mas
pelas novas formas tecnológicas: modelos, códigos, cibernética. A fronteira entre a
realidade e a simulação implode e os modelos semânticos e códigos tornam-se a base da
experiência. Por exemplo, os actores que fazem o papel de médico na televisão poderão
transmitir uma imagem mais credível que o próprio clínico geral comum. Mas não é só
a distinção entre o simulacro e o real que se torna nublosa, mas é a própria simulação do
real que se torna mais real que a ‘realidade’.
Sob as condições onde já não é possível distinguir o real da imagem, o corpo
torna-se um objecto passível de reconstrução. Na condição pós-moderna, o corpo
natural torna-se obsoleto, não é mais necessário numa era tecnologicamente avançada.
Sob tais condições não há estruturas estáveis como a ‘raça’ ou o ‘género’. O argumento
de o poder é mobilizado através de discursos localizados falha em apreciar que o poder
está morto, disperso na implosão das fronteiras entre o real e o ilusório, de modo que
não é possível combatê-lo A realidade não é mais verificada, chamada a justificar-se a si
própria, sendo esta a condição ‘hiper-real’. Por exemplo, não apreciamos a ‘realidade’
das doenças e da fome nos países do terceiro mundo. Através das notícias na televisão

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

tomamos conhecimento de tal situação, mas não a encaixamos. Bombardeados que


somos com imensos códigos mensagens e imagens, a fome e a doença nos países do
terceiro mundo tornam-se apenas mais duas imagens acéticas no ecrã, que levam à
aceitação acética e passiva. Os significados são dissolvidos pois a informação dissolve o
significado e o social numa espécie de estado nubloso que leva não a uma onda de
inovação, mas bem pelo contrário à entropia total.
As avançadas técnicas terapêuticas e de diagnóstico como as ecografias ou os
TACs, entre outras, emergem como centrais na prática médica pós-moderna. Seguindo
os argumentos de Baudrillard, a medicina já não lida tanto com corpos físicos, mas com
as imagens e os simulacros dos nossos corpos. As imagens dos corpos exibidas nos
monitores são ‘hiper-reais’, elas tornam-se o verdadeiro paciente. As pessoas
experienciam o seu corpo num ambiente mediático, que repete e reproduz as imagens do
corpo nos corredores e nas salas dos hospitais. Nesta perspectiva, a doença não pertence
mais ao corpo biológico. O médico, em vez de indicar as nossas doenças através do
nosso corpo físico, apresenta-nos imagens e, assim sendo, a doença habita antes as
imagens nos monitores ou as radiografias.
Pós-modernistas como Fox vão procurar inspiração em muitas das assunções de
Foucault. O pós-modernismo defende que as verdades sobre o mundo que parecem
existir foram elas próprias criadas pelo modo como usamos a linguagem. As posições
no espaço social a que nos referimos (velho ou novo, doente ou saudável) são
discursivamente criadas. Em contraste com as teorias modernistas, que analisam
estruturas e assumem que as organizações como os hospitais empregam meios racionais
para atingir objectivos racionais, a abordagem pós-moderna de Fox entende o
conhecimento médico como mitologias constituídas discursivamente para servir
interesses particulares de poder, que não deixam de ser contestadas por outros interesses
de poder no seio dos serviços de saúde12. Para Fox, existe o potencial para o significado
dos acontecimentos ser reconstruído de forma a desfavorecer aqueles que anteriormente
estavam numa posição dominante.

12
O poder não é dado a grupos particulares (por vitude das suas capacidades técnicas, status, etc.), é antes
constantemente recreado e vulnerável à mudança. Fox, na sua etnografia da cirurgia, avança com um
exemplo disto mesmo. Segundo Fox, na sala de operações, estão em confrontação os poderes do
anestesista e do cirurgião. Os desejos de poder aparecem no investimento de definições sobre os
contextos, neste caso, o contexto da sala de operações. O anestesista está interessado na integridade física
do doente na sua totalidade, enquanto que o cirurgião está mais concentrado na remoção da patologia. O
problema do anestesista é que que a acção do cirurgião pode ela própria por em causa a integridade física
do doente. Daqui importa reter que a posição dominante do cirurgião é constituída através de uma luta
com o discurso alternativo do anestesista.

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

No dualismo moderno mente-corpo, a inscrição do corpo seria constituída


através de um duplo processo de disciplina, por um lado, nos comportamentos do corpo
físico, por outro lado, nas representações, ideias, crenças, gostos, julgamentos e
escolhas, códigos de moralidade e conhecimentos. É esta dualidade, do actor humano
racional, afectado pela ‘verdade’ e pela falsa consciência ou ideologia, que é varrida na
posição pós-moderna, para ser substituída por uma noção de ‘embodiment’ na qual o
ego não é mais precedente. A inscrição não é lida pelo ‘self’, a inscrição é o ‘self’ e cria
subjectividade, sendo que os sujeitos não são passivos na inscrição do corpo.
No lugar do corpo anatómico e orgânico da medicina, o corpo de interesse em
Fox é o não-orgânico, a superfície política do corpo ou o ‘corpo-sem-órgãos’, que é
contestável, fragmentado e fluctuante, constituído no social e palco de resistências por
parte do desejo.
A metodologia pós-moderna da desconstrução procura desconstruir as
dualidades do pensamento modernista, revelando-as como artefactos criados a partir de
um modo particular de entender o mundo. No lugar dessas dualidades deve-se colocar a
pluralidade e a heterogeneidade. Para o pós-modernismo, não devemos colocar o
modelo social contra o modelo biomédico pois este é um falso dualismo. As oposições
são, aliás, interdependentes e só podem ser articuladas através do contraste. Um lado de
uma oposição depende do outro lado para a sua própria autenticidade. Anulando-se as
categorias de opostos anula-se a validade das categorizações, permitindo assim uma
sociedade plural.
A medicina e o conceito de saúde tornaram-se centrais para a noção de pessoa
‘normal’ e, portanto, servem para diferenciar grupos sociais, para identificar e propôr
meios de lidar com as desigualdades na saúde e as desvantagens sociais. A ética dos
discursos das teorias modernistas impõe que se combata as desigualdades identificadas,
mas ao identificar essas desigualdades está ao mesmo tempo a construir e a contribuir
para a manutenção dessas desigualdades. A desconstrução, por sua vez, pode começar
por destruir o poder dos discursos normalizantes que são alvo de atenção por parte da
abordagem foucauldiana da experiência individual da saúde. O estado de ‘deficiência’,
de ‘doença’ ou de ‘anormalidade’ depende da existência de uma posição oposta
constituída a partir do que se considera ser ‘normal’, ‘capaz’ e ‘saudável’. A política
inscrita no paradigma moderno, clama pelo reconhecimento da diferença, da
desigualdade e das necessidades particulares por parte dos desfavorecidos para se
atingir a igualdade. A posição pós-moderna, em contraste, argumenta que esta posição é

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

politicamente problemática pois continua a estabelecer a diferença. É postulado que só


quando formos capazes de pensar em termos de um leque variado de capacidades e de
experiências iremos ultrapassar a tendência de normalizar (e estigmatizar) as pessoas
que são encaixadas num grupo particular rotulado de ‘desfavorecido’ ou de ‘deficiente’.
A sociologia pós-moderna ao identificar a contestação sobre o ‘corpo-sem-órgãos’,
toma as políticas dessa contestação como o seu interesse, apresentando uma dupla
preocupação: 1) com os processos de transformação da representação dentro dos
discursos de poder/conhecimento sobre a ‘saúde’ e ‘doença’; 2) com a possibilidade que
as coisas podem ser de outra maneira.
Segundo Fox, a perspectiva pós-moderna não está interessada em alargar o
conceito ‘saúde’ ou limitar o conceito de ‘doença’. ‘Saúde’ e ‘doença’ tornaram-se
aspectos do poder/conhecimento inscritos no corpo-sem-órgãos. Objecto da teoria pós-
moderna é a ‘arqui-saúde’ fragmentada e múltipla que é uma manifestação disseminada
do desejo. Ora Fox sublinha que isto não constitui um relativismo moral, do qual é
acusado a teoria moderna, mas antes uma ética e uma política da acção baseada na
implantação da diferença, da multiplicidade e do jogo. Para Fox a ‘arqui-saúde’ é
baseada em fluxos de desejo, investida consciente e inconcientemente, recusando-se a
ser reduzida à linguagem e ao discurso e jogando com fragmentação e com a pura
diferença.

CRÍTICAS AO CONSTRUTIVISMO SOCIAL

Alguns autores apontam limitações ao construtivismo social foucauldiano.


Como na teoria de Foucault o poder está imbuído em todas as relações e práticas
sociais, parece que é virtualmente impossível de o localizar e portanto de o combater.
Pode-se argumentar que as considerações e as observações de Foucault sobre os efeitos
do poder neglegenciam considerações sobre as origens dos discursos do poder durante o
curso da história. Por exemplo, a economia política da saúde, de inspiração marxista,
permite-nos discutir as causas de mudanças particulares nas práticas médicas. Na
mesma linha, Best e Kellner sustentam que a abordagem foucauldiana não permite
perceber até que ponto o poder continua a ser controlado e exercido por agentes
específicos e identificados em posições de poder político e económico.

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

Também Baudrillard, na sua fase pré pós-moderna, aponta uma base material - a
economia, a sociedade de consumo - e um locus de poder - a classe capitalista - que
determina a maneira como nos relacionamos e olhamos o nosso corpo e, tal como a
economia política da saúde, assinala a comodificação do corpo na sociedade capitalista.
Em A Sociedade de Consumo, Baudrillard assinala que as velhas cosmologias religiosas
postulavam que apenas a ‘alma’ interessava, que o corpo realmente não existia. O corpo
e a relação com o corpo, enquanto factos culturais, reflectem as relações sociais e a
relação com a ordem material. Na sociedade capitalista, o estatuto da propriedade
privada aplica-se também ao corpo e à maneira como operamos socialmente com ele e
influencia a representação mental que temos dele. Na ordem tradicional, em especial
para o camponês, não havia um investimento narcisista no corpo ou uma percepção
espectacular do corpo, mas antes uma visão instrumental e mágica. As estruturas
contemporâneas de produção e consumo induzem nos sujeitos uma representação dual
do seu corpo enquanto capital e enquanto objecto de consumo. O corpo tanto emerge
como algo que pode ser usado para vender mercadorias e bens como transforma-se ele
próprio num objecto consumível. Para que seja usado como um objecto na venda de
mercadorias, o corpo tem de ser redescoberto pelo seu ‘proprietário’, e visto numa
lógica narcisista, e não numa lógica meramente funcional. Uma vez libertado enquanto
objecto, o corpo ocupa o seu lugar no sistema dos objectos e só assim poderá ser
explorado. Esta é aliás uma lógica marxista, em Marx a comodificação da força de
trabalho conduzia à sua exploração, Baudrillard apenas substitui a força de trabalho pelo
corpo. Os capitalistas estão assim livres de produzir e comercializar bens e serviços
direccionados para o corpo. Aliás, segundo o autor francês, o corpo tornou-se mesmo o
objecto de consumo mais exemplar. As pessoas investem psicologicamente no seu
corpo, gastando nele cada vez mais atenção e dinheiro. Tornamo-nos consumidores dos
nossos próprios corpos e, assim sendo, consumimos uma panóplia de bens e serviços de
modo a tentar melhorar-lhes o aspecto. A proliferação de produção orientada para o
lazer ajudou a promover um ‘eu’ actuante que trata o corpo como uma máquina e um
símbolo a regular, a cuidar e melhorar – ora isto é acrescido pelo status do corpo como
um símbolo ubíquo na cultura publicitária. Featherstone, por seu lado, aponta que, na
sociedade de consumo, o corpo deixa de ser um antro de pecado e apresenta-se hoje em
dia como um objecto que se mostra dentro e fora do espaço privado – situação esta
rejeitada pelos postulados do Cristianismo. O cuidado intensivo com o corpo demonstra
uma nova cultura, denota uma fé maior em médicos e noutros profissionais ligados à

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

saúde e ao corpo, em detrimento da fé nos padres e na cura da alma. Os indivíduos


parecem hoje procurar a salvação, não tanto pela alma, mas através do corpo o que está
patente nas terapias, nos regimes, e nos sacrifícios associados com o corpo. Tal cultura
serve, portanto, a expansão da sociedade de consumo, de numa economia capitalista
baseada no princípio da destruição criativa para se expandir. Isto é, a expansão da
economia depende da destruição das antigas modas e produtos e da renovação
constante, entre outras coisas, dos adornos do corpo e do corpo ele próprio.
Se é verdade que a classe capitalista está ausente em Foucault como o vértice
estratégico do poder pode-se, todavia, argumentar que a localização do poder nesses
termos não era pura e simplesmente o objecto de estudo de Foucault. A sua preocupação
era fazer uma análise ascendente do poder, começando a partir dos seus mecanismos
infinitesimais, cada qual com a sua própria história, a sua trajectória, as suas próprias
técnicas e tácticas. Sendo depois necessário analisar como esses mecanismos do poder
foram e continuam a ser investidos, colonizados, utilizados, envolvidos, transformados,
deslocados, etc através de formas de dominação global e de mecanismos cada vez mais
gerais. Há assim uma preocupação central com os efeitos do poder nos locais da sua
acção, em vez de o considerar num ponto de vigilância, seja ele o estado ou um grupo
social.
Outras frentes de ataque assinalam que, na ontologia foucauldiana, os discursos
são representados como subjugando a acção humana que se vê com muito pouco espaço
de manobra para resistir e até de perceber o que está em jogo na própria experiência
subjectiva do corpo. Esta abordagem passa, assim, uma imagem do ‘corpo dócil’ do
paciente apanhado pelo olhar panóptico da medicina. Ontologicamente, o modelo de
Foucault parece não ser capaz de analisar as condições através das quais a resistência ao
poder se torna possível, e porque é que há pessoas que resistem e outras não, e como é
que a resistência poderá ser bem sucedida.
É de assinalar que, por vezes, os pacientes não levam em linha de conta as
ordens dos médicos. Por outro lado, aqueles que seguem os conselhos dos médicos, em
vez de serem dados como passivos, poderão ser entendidos como participantes activos
que através das práticas do ‘self’ procuram activamente as práticas médicas num
processo de cooptação que consideram vital para o seu próprio bem-estar e para a sua
liberdade, ameaçada pelo sentimento de desconforto e de dor.
Apesar de a possibilidade de resistência dos discursos constituídos na dualidade
poder/conhecimento ser fundamental para Foucault, este não deixa de apontar que a

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

emancipação do discurso poderá implicar outros sistemas mais totalizantes de relações


de poder. Nesta visão o corpo é passivo e impresso pela História. Por exemplo, a
liberalização sexual da repressão dos desejos poderá não significar libertação de todo,
mas sim a dominação e a sujeição do corpo num discurso normalizante da sexualidade e
do desejo. Já em Fox, como foi anteriormente referido, o ‘corpo-sem-órgãos’ é um
campo contestável com desejos e uma força positiva, sendo que a inscrições do corpo
não é estática, está sempre em fluxo devido ao desafio interminável entre disciplina e
resistência à disciplina.
Contudo, mais tarde, Foucault argumentou que os indivíduos podem promover
novas formas de subjectividade através da transformação reflexiva do ‘eu’. Assim, a
existência de estratégias de poder não corresponde necessariamente a um exercício bem
sucedido desse poder. Para Foucault, o indivíduo pode resistir aos efeitos do poder
através das ‘técnicas do eu (‘self’)’. Depois de o poder ter investido no corpo, apresenta-
se exposto para um contra-ataque no mesmo corpo através de práticas que permitem aos
indivíduos realizar um certo número de operações no seu próprio corpo e mente,
pensamentos, conduta e modo de ser, de modo a enveredar num processo de
transformação para atingir um certo estado de felicidade. A auto-estilização (‘self-
estilization’) permite aos indivíduos explorar as fronteiras da sua auto-identidade, e
enveredar por uma auto-transformação reflexiva sem fim levada a cabo por novas
imagens do ‘eu’, por novas formas corporais ou por novas formas de demonstrar a
masculinidade, a feminidade, a etnicinicidade, etc.
Mas, para McNay, ao reduzir todas as práticas do ‘self’ ao nível da auto-
estilização, Foucault não problematiza suficientemente sobre os determinantes socio-
culturais, que podem, uns mais do que outros, impor práticas sobre os indivíduos. Para
além disso, Lupton nota que a noção de práticas do ‘self’, sugere que um actor social
tem consciência daquilo que está a fazer, e que é capaz de uma avaliação reflexiva da
situação e de corresponder a essa situação de modo a maximizar as suas experiências de
vida. Mas a motivação humana também emana do inconsciente. No pós-estruturalismo,
o ‘eu’ fragmentado e contraditório sofre a influência de várias emoções e desejos,
emergindo simultaneamente do inconsciente e do consciente. A subjectividade pode ser
entendida como dinâmica e contextual em vez de estática, e muitas vezes apresenta-se
repleta de ambivalência, irracionalidade e conflito.
De acordo com Bury, ao representar as ciências e as instituições médicas como
determinadas por interesses de controlo social, o construtivismo social falhou em

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

reconhecer até que ponto a medicina responde genuinamente às necessidades e ao


sofrimento dos seres humanos. Contudo, para Nicolson e McLaughlin, deve ser notado
que o conceito de sinceridade médica é relativo pois os valores e os padrões morais e
éticos estão socialmente localizados e a aplicação desses padrões na medicina são uma
questão que envolve uma larga negociação social. A investigação social deveria, assim,
procurar entender quais são os padrões de sinceridade e de humanidade da profissão
médica, e porque é que tais padrões têm sido adoptados e porque é que divergem com
os critérios aplicados em outras áreas da vida social. Ligada a esta discussão, está a
observação de que há uma falta de ética na abordagem de Foucault.
Nettleton indica que apesar das alegações do construtivismo social de que as
categorias e as práticas de saúde são historicamente variáveis, isto não implica negar o
sofrimento das pessoas que vivem um estado de doença. Aquilo que se pretende
sustentar é que o que se designa, por meio dos discursos dominantes, de emancipação e
liberdade pode ter tanto de emancipatório como de opressivo. A questão é que não
podemos considerar estes valores como garantidos.
Na perspectiva foucauldiana, questões sobre a experiência da dor são elas
próprias fundadas em discursos. A dor é um termo relativo, não se pode efeicazmente
abordar a questão de que as pessoas experienciam menos dor do que no passado, pois a
experiência da ‘dor’ vivida hoje em dia (determinada por um tipo de discurso) é
incomensurável com a experiência da ‘dor’ de outros períodos históricos. Para McNay,
isto significa que as questões em torno da experiencia do doente são eficazmente
neutralizadas, todavia, sem um patamar normativo, o construtivismo social pode cair no
relativismo.
Segundo Bury, os construtivistas sociais falham em reconhecer até que ponto a
realidade física externa impõem-se sobre o conhecimento médico, nem adiantam uma
explicação convincente de como o conhecimento se ajusta e opera instrumentalmente
com a realidade física. Nesta linha, Turner sustenta que algumas estados (‘histeria’)
podem ser mais socialmente construídos do que outros (‘gota’).
Nicolson e McLaughlin, por sua vez, indicam que não se pode esperar uma
correspondência não problemárica e teoricamente neutra entre o conhecimento humano
e o mundo natural porque cada nova experiência no mundo necessariamente interage
com os nosso preconceitos e com as nossas crenças prévias sobre o mundo. Ademais, é
possível conceber o conhecimento médico como sendo simultaneamente realista e
socialmente construído. Mas mais, os autores postulam que o que conta como refutação

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

ou erro de predição é socialmente determinado. Uma teoria é avaliada de acordo a sua


funcionalidade em relação aos propósitos daqueles que lhe deram forma.
Bury não encontra nada de extraórinário na proposta de que o conhecimento
médico é influenciado e moldado por circunstâncias sociais. O que Bury chama a
atenção é que existem limites para as versões ‘hiper-socializadas’ dessa proposta, onde
as realidades biológicas são completamente excluídas. Pode-se dizer que no social
construtivismo qualquer tentativa de explicar fenómenos numa explicação natural é
puro biologismo. E se é certo, como afirma Augusto Santos Silva, de que o trabalho dos
cientistas sociais “tem-se desenvolvido, em larga medida, na permanente “conquista” de
novos domínios de estudo – isto é, na análise de propriedades e factos até então
considerados como não-analisáveis, porque universais ou naturais”, com o social
construtivismo já não são as ciências médicas e biológicas que são acusadas de
imperialismo, mas as próprias ciências sociais. E é possível argumentar que o discurso
das teorias sociais constitui-se ele próprio como uma metanarrativa concorrente do
discurso da medicina. Neste caso, a metanarrativa da sociologia molda o corpo ‘natural’
na sua própria imagem, representando-o como já não sendo ‘natural’. A sociologia
deverá antes ver no corpo o interface entre vários domínios: biológico e social, colectivo
e individual, constrangimento e emancipação.
Para Armstrong, se o corpo pode ser apenas conhecido por uma linguagem
descritiva, então é fútil especular sobre as suas ‘características essenciais’ que nunca
poderão ser descritas. Mas Bury sublinha também que os postulados de Foucault são
auto-refutados. Para Nicolson e McLaughlin, os contrutivistas sociais estão cientes que
se a sociologia do conhecimento não pudesse entender-se a si própria então seria a
refutação cabal das suas próprias teorias. O construtivismo social não deverá ser julgado
a partir do modo como emergiu o conhecimento mas de acordo com a sua produtividade
na investigação empírica. Para Foucault, os indivíduos são fabricações dos mesmo
discursos que constituem a doença ou as técnicas de saúde de um modo particular.
Portanto, não há nenhum ponto de vantagem a partir do qual se poderá criticar a
acusação de relativismo.
Para além disso, Bury sublinha que se os critérios de verdade e de racionalidade
são produtos de períodos temporais e de configuraçãos sociais particulares então o
construtivismo social cai no relativismo.
Como resposta, Nicolson e McLaughlin defendem um certo tipo de ‘relativismo
metodológico’ como uma base sustentável para o estudo das crenças e do

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

conhecimento. Todas as crenças devem ser potencialmente objecto de escrutínio


empírico. Os julgamentos dos cientistas médicos não são excepções válidas e, portanto,
não deixam de depender de modelos e de convenções sociais. Segundo os autores,
quando se diz que uma proposição é verdadeira ou falsa é estar unicamente a dizer que a
natureza da proposição coincide ou não com as nossas príoprias crenças sobre o mundo
que nos rodeia. Portanto, não podemos defender que as nossas crenças são mais do que
aquilo que efectivamente são – os produtos de um tempo específico e de um dado lugar.
De acordo com Nicolson e McNaughlin, a abordagem do conhecimento médico por
parte do construtivismo social, pode proporcionar aos médicos e aos cientistas ligados à
saúde uma oportunidade para serem reflexivos sobre a suas próprias práticas
profissionais, servindo como uma advertência útil de que o conhecimento médico é de
natureza limitada, conjuntural e falível.
Em relação ao ‘relativismo metodológico’, Bury denuncia uma promiscuidade
entre os conceitos de crença e de conhecimento. Pode-se argumentar que a produção do
conhecimento médico pode ser influenciada por forças sociais mas este tipo de
argumentação é muito diferente de sustentar que a ciência médica constitui apenas um
conjunto de crenças.
Bury sublinha também que o construtivismo social nega a possibilidade de
progresso do conhecimento médico. Mas, Nicolson e McLaughlin contrapõem que a
concepção de progresso médico também está contextulamente embuída. O ‘progresso’
pode existir mas não como uma noção neutra, independente do contexto. Pode-se
sustentar que um dos dilemas centrais da medicina moderna ocidental é precisamente
este – os avanços da medicina não comandam um consenso universal porque facções da
sociedade não partilham os interesses e as prioridades dos médicos. O progresso médico
é julgado de acordo com os meios e os interesses específicos dos indivíduos que têm
poder para fazer o julgamento.
Pelo menos até um certo nível mínimo, todas as teorias sociais do corpo são
construtivistas aos reconhecer que a sociedade exerce influência sobre o corpo. A
influência do construtivismo social deriva significativamente da aparente habilidade
para combater as perspectivas naturalistas do corpo que vêm o corpo como uma
entidade biológica, pré-social, que determina a auto-identidade e as instituições sociais.
Nesta perspectiva a cultura não cria as diferenças apenas as replica ou as amplifica. É na
desconstrução destas perspectivas que o construtivismo social é útil na medida em que
analisa a construção histórica e discursiva das diferenças e categorias corporais.

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

Todavia, substituir um imperialismo naturalista por um imperialismo social não parece


ser a resposta para um debate sobre a génese das formas de vivência do corpo. Se
considerarmos o corpo e a experiência do corpo como uma tabula rasa, é impossível
reconhecer os custos impostos pelo poder infinitesimal investido sobre o corpo.

O LUGAR DO CORPO NA TEORIA SOCIAL

O status do ‘corpo’ como um conceito sociológico é problemático, pois é um


termo usado de maneiras diferentes numa variedade de contextos. Como aponta
Armstrong, a distinção entre ‘saúde’ e ‘doença’ é hoje em dia menos clara, não havendo
uma relação binário estrita, contudo, isto não quer dizer que a patologia se tivesse
tornado irrelevante, tanto para a medicina como para os que sofrem por causa de uma
doença. Mas, seja como for, fica assente que a ‘saúde’ não é, em todos os contextos um
verdadeiro antónimo de ‘doença’, visto que é um estado (no sentido lato) mais difuso
como, por exemplo, o conceito de ‘saúde subjectiva’ deixa transparecer. E embora a
autoridade profissional e científica dos médicos possa ser mais contestada hoje em dia
do que no passado (tanto por pacientes, como por outros discursos alternativos como os
da ‘medicina alternativa’), isto não quer dizer que o poder da biomedicina e do aparato
médico esteja a caminhar para uma forma mais pluralista.
Para dar conta do crescente interesse sobre o corpo no seio da teoria social,
Shilling aponta a importância que o corpo assume na esfera cultural. Com o declínio da
fé nas entidades religiosas e nas metanarrativas políticas e com a emergência do corpo
na cultura de consumo como um repositório de valor simbólico (Baudrillard), uma nova
percepção reflexiva do corpo emergiu, entendendo este como um princípio de
organização cultural.
Mas, para Turner, a questão do corpo vai para além das reflexões sociológicas
sobre as mudanças culturais contemporâneas. A falta de uma abordagem sociológica
mais abrangente sobre o corpo suscita em Turner uma reflexão mais profunda. Contudo,
é de notar que a preocupação com o corpo está apenas presente na sociologia médica,
mas também na sociologia ‘mainstream’ de autores como Elias ou Bourdieu, onde é
central a ideia do ‘corpo socializado’, do corpo enquanto instância que contem um
memória corporizada da cultura e das estruturas sociais. Tanto em Elias como em

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

Bourdieu a relação de um agente com o seu corpo e com outros corpos é social, são
modos de operação desenvolvidos que são específicos para dadas culturas, para uma
dada posição social (ou para um dado indivíduo). Assim, se percebe que, por exemplo,
exista diferenças na disposição corporal de diferentes classes, temos a pose curvada do
proletariado e a pose direita e distinta das classes burguesas. Elias demonstra que a
demosntração e expressão corporal de emoções é maleável, e numa dada cultura é
necessário saber as condições apropriadas para a demonstração e expressão de certos
comportamentos e emoções. A vida social depende da apresentação, monitorização e
interpretação bem sucedidas do corpo. A ideia de prática em Bourdieu tem com o
objectivo a transcendência do dualismo entre estruturas mentais e o mundo dos
objectos. O corpo tem um papel crucial em Bourdieu nas suas ideias do capital,
nomeadamente o capital cultural. O corpo é uma consequência de práticas de classe pois
as práticas de classe são inscritas no corpo, sendo este um produto social de uma
determinada classe. A gestão do corpo revela as mais fundas disposições do habitus.
Bourdieu frisa a relação entre posições sociais e a regulação, as disposições e os modos
de viver o corpo. O corpo funciona como meio activo onde estão inscritos códigos
culturais. Esta teoria geral da prática pretende resolver os dualismos clássicos
subjectivo/objectivo, agência/estrutura, no entanto, parece haver em Bourdieu pouco
espaço para uma vivência efectiva do corpo, isto é, pouco espaço para a acção, a
intenção e a agência das práticas.
Também Goffman mostrou uma preocupação com o corpo, em especial, uma
preocupação com os vocabulários partilhados do idioma do corpo que apontam para os
limites da estrutura da interacção para aqueles que pretendem manter um ‘self’ social.
Todavia, para Turner, o corpo tem estado, em larga medida, secundarizado na
teoria social. Shilling aponta que é o dualismo mente/corpo que fez com que a teoria
social se esquecesse do corpo. A demissão do corpo é uma herança de Descartes e da
sua premissa Cognito ergo sum, que envolve uma descrença e uma demissão dos
sentidos na relação com o mundo. A obra de António Damásio veio dar um contributo
importante para a refutação biológica da premissa de Descartes, relançando a
importância da corporialidade na relação com o mundo. No entendimento de Turner, a
secundarização do corpo implica e coloca problemas significativos à formulação de uma
perspectiva sociológica dos agentes humanos, da agência em si e da experiência humana
(mediada pelo corpo). Se adoptarmos uma ideia de Sociologia como o estudo científico
da acção, então é necessária uma teoria social do corpo, pois a agência e a interacção

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

humanas envolvem mais do que o conhecimento, a habilidade, a intencionalidade ou


consciência.
No entanto é possível argumentar que não há consequências significativas na
incorporação da sociologia do corpo na sociologia ‘mainstream’. Ora este é um ponto
sensível para Turner que critica as teorias sociais que colocam o corpo como mero
constrangimento à acção, significando isto colocar o corpo fora do actor num certo
sentido. Entre essas teorias sociais estão as próprias teorias da reflexividade que dão um
maior ênfase ao agente pensante que faz escolhas e menos ao agente que sente e é o seu
corpo. Para autor britânico é preciso colocar o corpo na teoria da acção como uma
característica essencial da agência. Há assim um lado corpóreo da acção social pois o
homem não está liberado do corpo. Lavar, limpar, apresentar, a disciplinar, disfarçar, ou
estimular o corpo são práticas que dominam a vida social. As evidências de
‘embodiment’ são várias desde a concepção, a gestação, o nascimento, a menstruação, a
morte, a desintegração física, etc, e muitas práticas sociais são baseadas nestes eventos.
No conceito de ‘embodiment’, podemos quebrar o dualismo de Descartes,
fenomenologicamente apreciando a intima e necessária relação entre o sentido de si dos
indivíduos e entender a percepção de integridade do corpo e a experiência da doença
não apenas como um ataque ao corpo instrumental mas como uma intrusão radical no
‘eu’ inscrito no corpo.
O corpo é também o transporte interaccional e interpessoal de identidades, mas
estas identidades não são individualistas, são baseadas no reconhecimento social e em
memórias colectivas partilhadas pelos indivíduos. O corpo é um elemento essencial de
preservação dessa memória colectiva ao longo do tempo. Daí que o corpo é um
fenómeno social essencial para organizar os fenómenos sociais e daí que Turner coloque
o corpo no dilema teórico agência/estrutura.
É necessária uma ligação teórica entre o indivíduo, o ‘self’ e a sociedade. No
entendimento de Turner, a questão da identidade está intimamente ligada ao corpo, e
isto é reforçado pela relação dos leigos com a esfera tecnológica e, em particular, com a
medicina. Por exemplo, a informação e as estratégias preventivas baseadas na genética
podem levantar questões importantes que se ligam com o corpo, o risco e a identidade.
O indivíduo comum pode, no futuro ser frequentemente confrontado com a sua herança
genética e com os riscos de saúde que tal herança genética pode comportar, tendo esse
indivíduo de fazer cálculos sobre o seu próprio corpo, como também sobre o corpo dos

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

seus filhos ou dos seus parentes13. A identidade depende, portanto, em parte da


ocupação por parte de um agente do seu corpo e uma teoria da acção social tem de fazer
assunções sobre sentimentos, emoções, percepções, identidades e a continuidade dos
agentes através do espaço e do tempo.
Outra importante consequência da introdução do corpo na teoria social poderá
ser a reintegração de várias subdisciplinas tais como a sociologia da idade, das emoções,
as teorias feministas. Para além disso, poderá haver conexões com a teoria social pós-
moderna ao se reconhecer que o corpo tem um estatuto incerto e problemático. Por
exemplo, através da interpenetração das esferas tecnológica, biológica e social, poderão
surgir novas id(entidades) que atravessam o orgânico e o inorgânico.
Turner não fica pelas intenções e acaba mesmo por construir um modelo teórico,
que se poderá inscrever na corrente estrutural-funcionalista, onde o corpo aparece como
elemento central. Turner examina os problemas estruturais colocados pelo corpo para a
manutenção e governo dos sistemas sociais. Para Turner, todos os sistemas sociais têm
de resolver o ‘problema do corpo’, composto por quatro dimensões: a reprodução das
populações através dos tempos, a restrição do desejo, a regulação das populações no
espaço, e a representação dos corpos. Para além disso, podemos pensar o corpo em
termos sociológicos como dividido em espaço interno e espaço externo. O carácter
externo do corpo refere-se às representações dos corpos nos espaços sociais e da sua
regulação e controlo. O problema interno é do retraimento e controlo do desejo, dos
sentimentos e necessidades em prol da estabilidade e organização social.
Pode-se também estabelecer uma dualidade entre corpo individual e corpo das
populações, o problema da reprodução é um problema que diz respeito a todo um
conjunto populacional. Turner organiza estas dimensões (interno/externo; corpo
individual/populações) numa matriz de quatro entradas. Os quatro subsistemas
institucionais - reprodução, retraimento, representação e regulação - podem também ser
definidos por referência a outros quatro subsistemas – patriarquia, ascetismo,
panoptismo e mercadorização, dando lugar ao seguinte quadro:

Populações corpos
Reprodução Retraimento
Tempo Patriarquia Ascetismo Interno

Regulação Representação
13
Panoptismo
Esta questão será reavivada mais adiante Mercadorização

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

Espaço Externo

Fonte: Turner (1992), Regulating Bodies, p. 59

A teoria de Turner abrange a análise do modo de controlo pelo qual uma


sociedade gere cada dimensão do ‘problema do corpo’, do teoria dominante para cada
dimensão, e da doença paradigmática que poderá constituir uma ameaça. Contudo, a
teoria de Turner sofre dos mesmos males que a sua inspiração primária, a teoria
parsoniana. Assim, em Turner parece ainda haver pouco lugar para a teorização da
agência em relação ao corpo. Contudo Turner parece querer colmatar tal falha ao
chamar a atenção para a necessidade de se ter em conta a fenomenologia e a noção de
‘embodiment’ no estudo do corpo. Daí que Turner postule que se deve contrariar a
racionalidade e a intecionalidade da acção através da noção de ‘embodiment’ do actor
humano e do estabelecimento da relação entre emoção e sentimento, por um lado, e
práticas intencionais, por outro. Neste ponto pode-se colocar a seguinte questão: afinal o
corpo é essencialmente um problema sistémico ou um problema da acção? Em termos
teóricos isto significa que devemos seguir uma orientação mais fenomenológica e
menos funcional? Turner postula que é possível articular as duas perspectivas, contudo
na sua teoria parece prevalecer a vertente sistémica do corpo.
O grande contributo de Turner, segundo Shilling, é a separação do corpo em três
dimensões: a classificação do corpo; a ‘realidade’ do corpo; e a vivência do corpo. Esta
perspectiva aceita que, por exemplo, a vivência do envelhecimento seja moldada pelo
género, pela etnia ou até mesmo pela classe social, mas Turner continua a insistir que o
corpo humano tem características biológicas e fisiológicas distintivas.
Mas até aqui continua persistir uma grande dificuldade, que é a pouca
clarificação da noção de corpo. Neste ponto, Turner aponta duas posições contrastantes:
a de Foucault, onde o corpo é um efeito de discursos - já vimos que a emergência do
corpo dócil ilustra a ideia que o corpo é o resultado histórico de formações de
poder/conhecimento que produzem diferentes arranjos do corpo -; sendo a outra
alternativa, inspirada pela fenomenologia, considerar o corpo através da noção de
‘corpo vivido’ (‘lived body’) e tornar o ‘embodiment’ do actor o foco da investigação.
Estes dois caminhos teóricos não precisam de forçar uma escolha teórica exclusiva pois
o estudo do corpo reflecte dois aspectos, a diferença entre ter um corpo (corpo como
constrangimento) e ser um corpo (corpo como capacidade). Poderemos considerar que o

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

corpo é uma potencialidade que é elaborada pela cultura e desenvolvida nas relações
sociais. E isto implica não colocar uma dicotomia absoluta entre comportamento inato e
adquirido, entre cultura e natureza, sendo isto visível, por exemplo, no desenvolvimento
de um certo modo de andar.
O corpo é simultaneamente o resultado e o meio das práticas, nomeadamente das
técnicas do corpo. Os corpos existem entre discursos e instituições, onde discursos
significam o mapeamento das suas possibilidades e limitações. Estes mapeamentos são
a base do paradigma normativo no qual o corpo pode entender-se a si próprio. Por outro
lado, as instituições são os locais ou contextos nos quais essas práticas ocorrem. O
corpo é constituído pela intersecção de pontos com o mesmo peso que são as
instituições, os discursos e a realidade corporal. Se é prudente dizer que o corpo é
multidimensional, não deixa contudo de ser legítimo colocar problemas de hierarquia e
de fronteiras entre as dimensões do corpo sendo as mais apontas as seguintes: corpo
como organismo; corpo como potencialidade; corpo como um sistema de
representações; corpo como experiência vivida. Esta discussão poderá ser bastante útil
pois a partir daqui se poderá relançar, através do estudo do corpo, a questão elementar
da sociologia, a saber, o que é o social?
Apesar de todo o criticismo Annandale sustenta que o construtivismo social e o
pós-modernismo têm uma contribuição a dar direcionando a atenção para os diferentes
discursos e para as novas formações sociais que constroém o indivíduo de maneiras
particulares. A polaridade entre o interior e o exterior do corpo é posta em causa, pois
vários discursos sustentam que o cuidado com interior do corpo transparece na
aparência, e o cuidado com o exterior do corpo pode ajudar à saúde interior. É claro que
nem sempre é assim, como, por exemplo, no caso das raparigas anoréxicas ou no caso
de muitos ‘body builders’, mas mesmo nestes casos a interdependência interior/exterior
está perfeitamente patente, seja através do que se deixa de comer, seja através do
consumo de esteroídes. As práticas relacionadas com a saúde podem elas próprias servir
para desconstruir os dualismos ontológicos contemporâneos. Neste contexto, surgem
teorias sociais que se insurgem contra a ideia modernista da história universal e da
experiência unitária, postulando a ética da diferença, do pluralismo, do jogo.
Ao estabelecer relações complexas entre mudança cultural, estrutura social,
identidade pessoal e transformação do corpo a teoria social poderá proporcionar uma
teoria integrativa que relacione os aspectos comuns de uma grande variedade de
problemas humanos relacionados com a experiência e vivência do corpo.

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

Como Annandale e Turner indicam, a atenção dada ao corpo humano pela teoria
social é essencial pois representa uma contraposição central ao modelo da medicina e ao
reducionismo da sociobiologia. A sociologia do corpo põe em causa o dualismo entre
mente14 e corpo e está empenhada em demostrar a relação dialéctica entre o corpo físico
e a subjectividade humana que pode ser expressa através do conceito de ‘corpo vivido’
(‘lived body’). Os actores sociais que povoam as teorias sociológicas têm corpos que
são uma parte integral da existência humana e portanto é postulado que o corpo deverá
ser objecto de uma consideração central. Os nossos corpos estão intimamente ligados às
nossas acções e eles simultaneamanete moldam e são moldados por relações sociais.
Deste modo os sociólogos reclamam o corpo humano e desenvolvem um
enquadramento teórico mais sofisticado, onde o corpo é entendido como um fenómeno
material, que simultaneamente afecta e é afectado pelo conhecimento e pela sociedade.
Os contextos sociais constroem os corpos, o que se repercurte no comportamento social,
comportamento este que, por sua vez, pode impulsionar uma transformação do corpo
ainda maior. Um exemplo é a anorexia. A anorexia pode ser entendida, por um lado,
como o dualismo contemporâneo mente/corpo, isto é, como a luta da mente sobre o
corpo. Mas a anorexia faz também parte de um processo que incorporou certos valores,
que impulsionam a necessidade de criar um corpo que irá falar pelo ‘eu’ de uma forma
que tenha significado.
Existe, portanto, uma relação dialéctica entre o corpo físico e o contexto social.
Mais ainda, as teorias do pós-modernismo e a noção de ‘tecnologias do eu (self)’, apesar
das críticas, têm o mérito de apontar que nós podemos controlar o corpo de maneiras
que eram impensáveis no passado e de, ao mesmo tempo, indicar que esse mesmo
controlo nos lança na dúvida sobre o que o corpo realmente é e sobre os limites do
corpo, onde um corpo acaba e outro começa.
O estudo do corpo é complexo ainda para mais encruzilhado nas recentes
mudanças sociais, culturais e tecnológicas, sendo que as fronteiras convencionais entre
o natural e o social são constantemente desgastadas e mudadas. O estudo do corpo é
igualmente complexo pois o número de tradições que competem entre si parecem ser
infinitas. Numa posição pós-moderna, que eu diria ser apenas prudente, é apenas
possível predizer que somos incapazes de prever como a teoria social irá articular-se no
futuro com o corpo, com a saúde e a doença. Segundo Fox, o acaso, a descontinuidade,
a emergência de novos discursos e de desafios aos discursos já existentes, significa que
14
Conceito este que por sua vez está dualizado entre razão e sentimento ou emoção.

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

quaisquer desenvolvimentos teóricos são improváveis de seguir um programa racional


no futuro.

O CORPO É UMA METÁFORA


DA MODERNIDADE OU DA PÓS-MODERNIDADE?

O interesse analítico em volta do corpo tem tido um ímpeto devido ao impacto


das tecnologias avançadas da medicina no corpo. É necessário reconsiderar o papel da
tecnologia médica pois, segundo Williams,: por um lado, a tecnologia médica torna a
‘realidade’ do corpo e o conceito de corpo cada vez mais incertos, e por outro lado, o
conceito de cyborg torna-se um cada vez mais usado para dar forma aos modelos
contemporâneos da experiência humana incutidos (ou em vias de ser incutidos) pela
medicina moderna. O corpo humano interage com o exterior, pelo que a natureza do
corpo é mutável, instável e efémera. Avanços em termos de transplantes, fertilização in
vitro e engenharia genética têm quebrado as fronteiras entre orgânico e inorgânico.
Enquanto que exercemos um controlo sem precedentes sobre os nossos corpos, vivemos
numa época que lança uma dúvida radical sobre a ‘realidade’ do corpo e sobre os
limites e as consequências desse controlo. Novas leituras das práticas da medicina
moderna têm surgido tanto na esfera das teorias da modernidade avançada, como das
teorias da pós-modernidade.

Corpo Moderno

As teorias da modernidade avançada entendem a vida social contemporânea


como uma ordem reflexiva, onde apenas agora se começa a consciencializar “as
consequências da modernidade”. Nesta corrente as reflexões sobre o ‘self’, sobre a
identidade pessoal têm ocupado um lugar central quando se articula a mente do sujeitos
sociais com o seu corpo.
A corrente da modernidade avançada considera a tecnologia médica como uma
força racionalizadora simultaneamente positiva e nefasta. A uma inovação, a uma novo
tecnologia está subjacente a sua própria negatividade: a electricidade/electrocução,
automóvel/acidente, engenharia genética/?... Daí que Beck aponte que há um novo

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

ambiente social, no qual a percepção do risco está cada vez mais presente na
consciência pública, dando aso à emergência de novas formas políticas. Os modos de
vivência na sociedade de risco estão significativamente ligados à ‘sub-política tecno-
económica’ das industrias e instituições ligadas à saúde. Neste contexto, a medicina está
implicada numa estratégia de mercado que lucra com o risco. Argumenta Beck que “in
more and more fields of action a reality defined and throughly structured by medicine is
becoming the prerequisite of thought and action (...) an insatiable appetite for medicine
is produced, a permanently expanding market for the services of the medical profession
whose ramifications echo into the distant depths” 15. Os riscos para a saúde e os perigos
que assombram os nossos corpos tornam-se factores económicos, pois novos mercados
são gerados. E é a própria ciência que tenta definir e gerir os riscos que ela própria
produz. Um exemplo é a cirurgia estética, os riscos para saúde deste tipo de cirurgia
podem ser enormes, no entanto a decisão de a levar por diante faz parte da emergência
da identidade pessoal (‘self’) enquanto projecto reflexivo.
Giddens sugere um incremento da individualização do corpo, e uma colonização
do corpo pela modernidade, tendo sido arrastado para a organização reflexiva da ordem
social, de tal modo que somos responsáveis pelo design dos nossos corpos. Na
modernidade avançada o corpo é mobilizado reflexivamente, tornado-se num alvo de
escolas e opções. Assim sendo, o corpo não é passivo, mas uma parte visível do ‘self’,
que necessita de ser monitorizado pelos indivíduos, que consideram oportunidade e
riscos e que são virtualmente forçados a moldar os seus próprios corpos sob
considerável incerteza. A anorexia é paradigmática da incerteza fabricada no quotidiano
e decidir o que comer é decidir como nos apresentar corporalmente.
A auto-monitorização implica um projecto no qual há uma avaliação contínua da
informação e das práticas sobre o nosso corpo. Giddens refere-se a esta actividade como
reflexiva, sendo esta uma característica central da modernidade. “O self é hoje para
todos um projecto reflexivo – uma interrogação mais ou menos contínua sobre o
passado, o presente e o futuro. É um projecto levado a cabo no interior de uma
profusão de recursos reflexivos: terapia e manuais de auto-ajuda de todos os tipos,
programas de televisão e artigos de revista.”16. Com a multiplicidade de fontes de
informação as decisões dos indivíduos tornam-se mais complexas, ainda para mais num

15
BECK, Ulrich, Risk Society: Towards a New Modernity, Londres, Sage, 1992, p. 211
16
GIDDENS, Anthony, Transformações da Intimidade, Oeiras, Celta, 1995, p. 22

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

cenário onde a panóplia de serviços e produtos ou de recursos reflexivos não para de


crescer.
Tanto para Giddens como para Beck, as condições globais da modernidade
avançada leva-nos a reconsiderar a experiência individual. É certo que a reflexividade
pode conduzir a um saber mais informado por parte das pessoas comuns, ficando estas
mais a par das questões relacionadas com a saúde, contudo, os indivíduos, ao serem
forçados a fazer escolhas perante uma panóplia de informação especializada, entram
numa condição de incerteza, o que pode criar um estado de ansiedade considerável. Para
Giddens, nesta época cada vez mais reflexiva, uma considerável ambivalência está
presente na percepção pública e na avaliação dos leigos da ciência (médica) e da
tecnologia. A confiança nos profissionais médicos e nos sistemas abstractos, neste caso
a medicina, é crucial para a estilização reflexiva do ‘self’ e para o desenvolvimento de
uma segurança ontológica. Os indivíduos mais do que nunca voltam-se para a medicina
à procura de uma solução para as suas doenças, desde a substituição de bacias até ao
transplantes de órgãos. Todavia, assiste-se muitas vezes a expectativas irrealistas
associadas a uma percepção cada vez mais marcada dos riscos da medicina invasiva. A
medicina é simultaneamente uma fonte de esperança e uma fonte de desespero. Daqui
surgem tensões e dilemas. Nas controvérsias que rodeiam as novas tecnologias
biomédicas, como a engenharia genética, os pesadelos da ‘ciência à solta’ coexistem
com as demonstrações dos ‘milagres’ que a medicina pode conseguir.
Beck e Giddens partilham de um número de assunções sobre a modernidade e a
subjectividade que são questionadas pelo pós-estruturalismo de Foucault. Ambos os
autores tecem considerações sobre os riscos para a auto-criação da identidade e para o
sentido pessoal de segurança, que estão subjacentes às dinâmicas da modernidade. Para
além disso, as suas teorias da reflexividade são acusadas de comportarem as limitações
ligadas, em grande parte, à sua visão modernista do ‘self’, da ciência e da sociedade.
Como já foi apontado as teorias da reflexividade de Giddens e Beck são criticadas por
colocarem de certa forma o corpo dos agentes fora do ‘self’, havendo portanto nesses
autores o reconhecimento insuficiente de que o ‘self’, a identidade está inscrita no
corpo, daí que possa haver um viés cognitivo na seu entendimento de reflexividade.
Depois o conceito de actor racional autónomo parece permanecer aberto a um escrutínio
crítico.

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

Corpo Pós-moderno

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

As teorias pós-modernas oscilam entre, por um lado, a postulação da emergência


de metanarrativas sobre o corpo radicalmente diferentes e que quebram com as
categorias modernas e, por outro, a postulação da implosão, pura e simples, das
metanarrativas existentes sobre o corpo. Mas em comum têm a desmisitificação da
‘razão’ e da ‘verdade’, e dos postulados universalitas, que são acusados de serem
metanarrativas logocêntricas. Recusam também liminarmente qualquer noção linear e
progressiva da História, ciência e tecnologia. Nesta linha, também o conceito de corpo é
alvo de escrutínio e de contestação, tornando-se numa metáfora da sociedade.
As perspectivas pós-estruturalistas ou pós-modernas postulam uma transição na
sociedade, onde as categorias unificadoras da cultura, dos papeis sociais, do ‘self’ e da
identidade são substituídas por relações sociais fragmentadas e desorganizadas, daí que
nestas perspectivas exista um interesse central nas ‘múltiplas realidade’ e no ‘self’
complexo e fragmentado. Este tipo de perspectiva está sobretudo preocupado, na senda
de Foucault, em traçar as relações entre saber e poder e os modos como a linguagem e
os discursos constituem ou constróem a realidade (incluindo a subjectividade). Do
embate entre o corpo ‘natural’ e o corpo ‘social’, emerge segundo Fox, o corpo ‘pós-
moderno’, que ataca a própria ‘realidade’ do corpo. Através das relações de poder que
positivamente constituem o corpo, os corpos tornam-se significantes, isto é, são lhes
atribuídos significados, e podem ser lidos por outros e re-escritos como um texto,
carregando saber e poder.

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

A mudança na ênfase cultural para o consumo e para a saúde, a par de um


aparato médico mais pluralista (e podemos lançar sérias dúvidas se assim é em
Portugal), no qual crescem grupos de ‘auto-ajuda’, sistemas mediáticos de informação e
medicinas alternativas, ajuda a que se constitua a transformação do ‘moderno’ para o
‘pós-moderno’. Na constituição do corpo pós-moderno podemos observar dois
processos. Por um lado, perante o crescimento da reflexividade social e a crescente
complexidade do ‘self’, cuja imagem marcante é o ‘self’ fragmentado’, assiste-se ao
ataque pós-moderno ao actor racional, Cartesiano. Segundo as teorias pós-modernas, os
sujeitos são demasiado complexos para serem entendidos apenas por um binómio
emoção/razão. Por outro lado, a proliferação de novas tecnologias construídas com o
intuito de controlar, (re)desenhar o corpo e de mediar as nossas relações corporais com
os outros, faz com que o nosso sentido daquilo que o corpo é ou do que pode vir a ser se
torne cada vez mais incerto. O corpo, colocado num mosaico de imperativos, escolhas e
opções, tem vindo a transformar-se num projecto, que está cada vez mais reflexiva e
tecnologicamente aberto ao controlo. Assiste-se aqui a um paradoxo, quanto mais
controlo se tem sobre o corpo menos certo ele se torna.
Fox pretende ir além das teorias de Foucault de modo a conceptualizar o desejo
corporal, apontando que existem fontes de resistências corporais e o investimento
positivo nos corpos de poderes que poderão desafiar os discursos dominantes das
‘saúdes’ e ‘doenças’. Num certo sentido a abordagem pós-moderna aponta mais um luto
moderno, o do próprio corpo, pegando na ideia de que a noção de corpo não foi senão
afinal uma construção histórica, apesar de importante e necessária para que a
experiência moderna se pudesse contratualizar de modo a governar e gerir. Sendo a
noção de corpo sempre construída, ela está aberta ao desafio, à heterodoxia que se
levanta contra as ortodoxias e as determinações biologistas do corpo, e que é levada a
cabo na arte, nas modas, no quotidiano, na hetero- homo- bi- ou trans- sexualidade.
A arte enquanto olhar para realidades possíveis e alternativas tem muitas vezes
se debruçado nesta relação híbrida. Sterlac, por exemplo, tem vindo a demonstrar a
largos anos a simbiose entre o seu corpo orgânico e mecanismos robotizados. Corpo na
arte, também como campo de experimentação e conhecimento, como lugar de reunião
simbólica unificadora das diferenças duma sociedade composta por múltiplas
racionalidades e finalidades. Vários processos parecem estar a acontecer ao corpo –
deformações, contaminações, amputações, próteses, transmutações, e ainda,
imaterializações, animações e fantasmarizações. O corpo pode parecer hoje desfigurado

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

pelas suas múltiplas figurações, pela perda da sua familiar evidência, pela profusão das
suas novas possibilidades, isto é, pela perda do que julgávamos ser o seu conjunto
estável de atributos. A ideia de um corpo ‘sem género’ ou até ‘sem órgãos’, são
metáforas para as libertações do corpo tornadas possíveis com as actuais tecnologias,
libertações de um corpo próprio, de um corpo, por exemplo, propriamente feminino ou
propriamente masculino, ou mesmo de um corpo propriamente biológico, orgânico e
humano. Observações como a do artista Sterlac, “o corpo está obsoleto”, apontam que a
noção de ‘corpo’ está em crise.

Sterlac: a simbiose homem-máquina

Pela eleição da mediação privilegiada do corpo, como lugar da relação com o


instituído, a cultura, o simbólico e os poderes, ocorreram por sua vez domesticações
várias, adestramentos e sujeições e, por isso, o corpo foi também um lugar de luta. De
tudo isto, se tem retirado pois, como implicação maior a ideia de que o corpo é uma
invenção, uma figura, uma abstracção, composta por um conjunto de atributos, aliás tão
«incorporais» quanto materiais: de género (feminino/masculino) de espécie (racional),
políticos (livre, soberano), etc... No conjunto são estes atributos que nos têm permitido
falar de um corpo propriamente humano, que a anatomia, a bioquímica e a biofísica
deveriam por sua vez poder confirmar, no seio de uma história natural. Ora, o que é
abstracto é precisamente aquilo que pode tomar muitas formas. E é neste aspecto que o

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

corpo revela hoje não ser menos incorporal do que a alma, ela própria objecto de
desfigurações e reconfigurações fundamentais nas narrativas do humano. A surpresa é
hoje que a noção de corpo seja afinal tão pouco evidente quanto a alma e que isso abra
espaço, não apenas ao problema da ligação entre corpo e alma, mas também ao
problema da ligação entre corpo e carne, mostrando que estas conexões são, em cada
um dos casos, frágeis e instáveis.
O ‘fim do corpo’ é o fim de uma ‘corporiedade’ dada (ou naturalizada) e a
entrada na era de uma invenção ou experimentação do corpo, que alguns designam
como ‘corpo pósmoderno’. Por entre as diversas figuras emergentes deste ‘corpo pós-
moderno’, o cyborg (cybernetic organism) aparece com uma particular dominância.
Assim é pelo facto de o corpo cyborg incluir ele mesmo uma enorme variedade de
figuras e representar por isso, exemplarmente, a instabilidade e a plasticidade que são
conotadas ao corpo contemporânea.
Haraway ao olhar para a realidade social e científica das sociedades ocidentais
contemporâneas, entende que uma parte significativa (e em crescendo) dos sujeitos
sociais são cyborgs. De um modo abrangente, o cyborg existe desde que dois tipos de
fronteiras sejam simultaneamente quebradas: em primeiro lugar, o cyborg é uma figura
híbrida que origina do interface entre autómato e autónomo, natureza e cultura,
masculino e feminino, ‘self’ e outro, etc.; em segundo lugar, torna estas divisões
indeterminadas oferecendo-nos assim o potencial de escapar aos limites impostos pelas
oposições. De um modo mais restrito, um cyborg é uma entidade híbrida entre
mecanismos cibernéticos e organismos biológicos. O cyborg surge assim como um
nome para uma nova ontologia, a da vida penetrada pela técnica.
Haraway e Gray apontam que há cyborgs por todo o lado desde a dos pilotos dos
caças da força aérea até à avozinha com um pacemaker. O corpo se vai tornando
biónico devido aos pacemakers cardíacos, às válvulas, às bacias de titânio, às veias
sintetizadas, aos olhos electrónicos aos implantes no ouvido, etc. O cyborg é talvez
melhor conceptualizado num contínuo entre dois tipos puros: o organismo humano,
num lado, e as máquinas autómatas ou a inteligência artificial, no outro.
Neste processo, a ciência biomédica tem tido um papel central, desde a cirurgia
estética, passando pela engenharia genética, até aos avanços no campo da
nanotecnologia. As gerações contemporâneas poderão tornar-se nas últimas gerações de
humanos ‘puros’. Segundo Gray, da cabeça aos pés, existem uma grande variedade de
maneiras pelas quais a medicina pode transformar os humanos em cyborgs. A figura

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

(pós-moderna) do cyborg, essa forma nublosa entre o artificial e o corpo, pode vir trazer
um desafio e uma áurea problemática às antigas formas de viver e entender o corpo.
Um exemplo da penetração dos preceitos pós-modernistas na arte é Orlan, uma
artista que utiliza o próprio corpo como forma de arte, isto é, transforma as suas
sucessivas operações plásticas num processo reflexivo, transformando o seu corpo numa
peça a ser exibida em várias galerias de arte, dai que afirme que “This is my body... This
is my Software...” Orlan rege-se pelo dito de Eugenie Lemoine-Luccioni: "The skin is
deceptive... in life one only has one's skin...there is an error in human relations because
one is never what one has... I have an angel's skin, but I am a jackal... a crocodile's skin
but I am a puppy, a black skin but I am white, a woman's skin but I am a man; I never
have the skin of what I am. There is no exception to the rule because I am never what I
have..."

Orlan: «cirugia-espectáculo» ou a manipulação do corpo como arte

Ainda no campo artístico, Cindy Sherman fotografa-se a si própria em vários


disfarces que relembram cenas iconográficas ou estereotipadas do cinema ou da vida.
Talvez a palavra disfarce neste contexto não seja a mais indicada de facto a fotógrafa
encarna as várias personagens que assume diante a câmara, sendo as suas fotografias
retratos de um ‘eu’ adaptável transfigurado no corpo, fruto de uma colagem de
fragmentos, incessante na sua transformação e sempre aberto à experiência nova.
Sherman foca a máscara sem que esta tenha qualquer significado social. O significado
social reside na actividade de se mascarar. O romancista Salman Rushdie afirma que o
eu (pós-) moderno é um edifício instável que construímos com restos, dogmas, traumas
de infância, artigos de jornal, observações casuais, filmes antigos, pequenas vitórias,
pessoas detestadas, pessoas amadas. Para ele uma narrativa de vida apresenta-se como
uma colagem, uma montagem do acidental, do achado e do improvisado. Aqui denota-
se uma ênfase na descontinuidade que espelha de certo modo a compressão espacio-

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

temporal e a explosão de discursos, de imagens e de sub-culturas no presente contexto


social. Sherman e Orlan querem demonstrar a plasticidade da personalidade humana
através da maleabilidade das aparências e das superfícies corporais. O corpo
contemporâneo parece ter perdido a temporalidade, tornando-se numa metáfora da falta
de profundidade da produção cultural contemporânea preocupada com o impacto
instantâneo de modas, eventos, espectáculos, acontecimentos e imagens dos media.
Contudo na vida quotidiana haverá de certo limites para o corpo pós-moderno.
Um corpo sem rotinas e sem uma base estável poderá ter um impacto considerável no
agente e imaginar uma vida e um corpo maleável ao sabor de impulsos momentâneos,
de acção a curto prazo, destituída de uma base identitária e de uma narrativa estável, é
imaginar uma existência algo esquizofrénica e sem sentido. Giddens aponta para o valor
primário do hábito (e, podemos acrescentar, da estabilidade do corpo) tanto nas práticas
sociais como na auto-compreensão: só se experimentam alternativas a hábitos que já se
tenham dominado. Aqui poderá estar o argumento mais forte do corpo moderno. Afinal
procura-se que o corpo seja mais ou menos estável, que seja, na maior parte das vezes,
melhorado e não radicalmente transformado. Parece continuar um desejo generalizado
pela continuidade e não pela descontinuidade do corpo, desejo que parece ser
confirmado pela medicina moderna que sempre tentou controlar cada vez mais a
natureza, embora essa busca do controlo possa revelar efeitos não intencionais e
perversos.

O Corpo e as Novas Tecnologias

Um campo de investigação engloba o estudo de como a tecnologia se relaciona


com formas de ‘embodiment’ e qual o seu impacto na vivência do corpo. No sentido
lato a noção de ‘tecnologia’ refere-se a qualquer técnica que é racionalizada como um
meio para um fim particular. No período moderno a medicina tornou-se muito
‘tecnológica’, perdendo o sua áurea prévia de arte. A intrusão da tecnologia no corpo e a
tecnificação do próprio corpo (vivo ou morto), pode ser entendida como uma
medicalização radical fazendo com que a medicina seja cada vez mais uma instituição
dominante que molda os modos como pensamos e vivemos os nossos corpos.
A ideia do ‘corpo plástico’ tem vindo a emergir em paralelo com o
desenvolvimento da cirurgia plástica e cosmética, que, por sua vez, tem vindo a

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

expandir os limites de como o corpo poderá ser reconstruído, moldado ou estilizado.


Nas clínicas que praticam esta escultura do corpo, material biológico é adicionado ou
retirado, são locais onde se pede um queixo, um nariz ou os lábios de uma actriz ou de
um actor famosos por encomenda, sendo este processo uma espécie de arranjo
tecnológico estético tendo em vista a normalização dos indivíduos aos padrões de beleza
vigentes.
Nas representações sobre a cirurgia plástica poderá estar presente uma tendência
para confundir beleza com saúde, daí que esse tipo de cirurgia pode ganhar uma
aceitação pública cada vez maior nas próximas décadas. Neste processo é de notar a
ideologia dominante e a táctica de legitimação usada por muitos cirurgiões que consiste
em apontar que a cirurgia plástica não é apenas um arranjo estético mas um arranjo
psicológico da pessoa que não se sentia bem com o seu corpo. A cirurgia plástica liberta
a um extremo a mercantilização do corpo na sociedade de consumo, abrindo múltiplas
possibilidades de moldar o corpo segundo as identidades pessoais e os ditames culturais
de beleza. Os cirurgiões passam assim a vender não só correcções, mas modas. A
cirugia estética é tanto um sintoma como uma solução, isto é, constitui tanto como
opressão como emancipação, algo que poderá dar aos agentes sociais uma sensação de
serem sujeitos que controlam o seu corpo, ‘embodied subjects’, em vez de corpos
objectivados, insensível aos ditames do ‘self’. O que fica por questionar é todo o
processo social de construção dos padrões de beleza, sendo que a ‘normalização’
perpetrada pela cirurgia estética poderá dificultar cada vez mais o processo de
negociação sobre os padrões de beleza dominantes. Nada garante que o corpo ‘pós-
moderno’ seja um corpo em larga medida polimórfico, como alguns autores julgam, em
particular, Haraway.
Devido às novas tecnologias os corpos têm vindo a ser cada vez mais
‘comunais’, isto é, há cada vez mais trocas entre corpos através da doação de órgãos e
dos transplantes. As partes do corpo tornam-se assim itens estandardizados, que poderão
ser substituídos quando necessário. Através de medicamentos e de substâncias químicas,
o material humano está a ser estruturalmente, quimicamente e funcionalmente
transformado para o tornar mais universal, como se de uma parte substituível se
tratasse. Na economia capitalista os transplantes poderão ser, não tanto um feito
altruísta, mas poderá vir a constituir um mercado internacional em busca do lucro,
transformando cada parte do corpo mercantilizável. Poderemos de facto imaginar

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

vendas por catálogo, e sistemas de comercialização de um orção-produto específico,


com as subjacentes estratégias de marketing.
Os cadáveres poderão ser vistos como ‘cyborgs dadores’ visto que o corpo físico
pode ser reprogramado e reutilizado para novos fins. O cadáver é reduzido assim ao
estado tecnológico, as partes do cadáver são tecnologia, dispersas e distribuídas para
vários outros corpos. E não é só entre os humanos que os órgãos são transferíveis, mas
também entre diferentes espécies de animais. A ‘xenotransplantação’ é o nome que
designa o uso de órgãos de animais em pacientes humanos. Está em curso o
desenvolvimento e a criação de animais ‘transgénicos’ cujos órgãos sejam menos
susceptíveis de causar uma rejeição fatal no receptor humano. Ora isto suscita questões
sobre o significado da corporialidade, da auto identidade e da natureza da morte. Qual
será o impacto na identidade e na visão do mundo de um indivíduo que recebeu um
coração de um suíno? Por exemplo, poderemos neste tipo de práticas estar frente a uma
transgressão de fronteiras culturais, o porco é ritualmente um animal ‘sujo’, anti-
higiénico. Será que o corpo está em vias de se tornar ‘grotesco’? E até que extremos as
pessoas estão dispostas a chegar para salvar a vida?
Aqui poderá haver um choque cultural entre as crenças e as ideologias dos leigos
sobre o corpo e a ideia de corpo das ciências médicas como um conjunto de partes.
Williams, citando outro autor, Sharp, aponta que os pacientes levam a cabo uma
reestruturação da sua identidade pessoal depois de um transplante, a partir da qual se
nota um disjunção entre a necessidade de personalizar e a necessidade de objectivar
corpos e órgãos. O discurso do pessoal médico denota um ênfase na objectivação e na
mecanização do coração, sendo este entendido como uma válvula. Contudo, os
pacientes trazem consigo todo um conjunto de padrões culturais onde está presente a
crença na incorporação da identidade pessoal no coração e na natureza sagrada do
coração como o núcleo sentimental da pessoa.
Para Andersen, a génetica constitui o quarto grande passo da história da
medicina no combate e na prevenção de doenças. O primeiro grande estádio, foi a
concretização de medidas de saúde pública, o segundo, a introdução da cirurgia com
anestesia, e o terceiro, o uso de vacinas e antibióticos.
Actualmente o conhecimento na área da genética ainda é limitado mas questões
sobre a discriminação social que se prendem com o desenvolvimento da despistagem
genética começam a emergir e a merecer reflexões. Qual será a atitude de seguradoras e

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

empregadores perante tal possibilidade tecnológica? E será que a terapia genética


deverá englobar as células reprodutivas, causando efeitos na descendência do paciente?
As novas tecnologias permitem também transformar o plástico em tecidos,
eventualmente, partes do corpo complexas, tais como mãos ou braços, poderão ser
produzidos através destas formas de engenharia biológica de tecidos e órgãos
sintetizados. Com o ‘destino’ técnico em que parece estarmos lançados, nas próximas
décadas a ciência médica, poderá mover-se da prática da transplantação para a era da
fabricação, da manufactura de órgãos numa produção em série, possível através de uma
engenharia genética que constitui qualquer célula de um corpo como um dador
universal.
As abordagens ‘modernas’ da reprodução técnicas baseiam-se no controlo sobre
os corpo e os processos reprodutivos através da monitorização, do planeamento, da
limitação e do estabelecimento de fronteiras tendo em vista uma variedade de
propósitos. Em contraste com essas abordagens parecem estar as novas tecnologias de
procriação que permitem, por exemplo, dotar uma criança de três mães: a doadora de
cromossomas, a dadora do óvulo, a dadora do útero. Ora, isto vai colocar desafios às
categorias tradicionais da experiência heterossexual e ameaça a noção de ‘paternidade’
ou de ‘maternidade’, podendo causar problemas de identidade nos agentes envolvidos.
Estão em curso o aperfeiçoamento de técnicas tais como a transplante de esperma doado
nos túbulos seminíferos dos testículos de homens inférteis. No campo da contracepção
estão em estudo vacinas, tanto para homens como para mulheres, capazes de
interromper a função do esperma.
As estratégias pós-modernas das novas tecnologias da reprodução concentram-se
no design, na moldagem e transformação dos corpos reprodutivos através, por exemplo,
da inseminação artificial, dos tratamentos hormonais, ou de outras possibilidades,
satisfazendo os desejos daqueles que desejam ter um filho. No limite, as novas
tecnologias ameaçam também transformar os bebés em ‘mercadorias’ que poderão ser
compradas e escolhidas com as características ao gosto dos pais-consumidores.
A tecnologia poderá dar a possibilidade aos potenciais pais de saberem, antes do
nascimento, se existe alguma ‘anormalidade’ no material genético do filho. A medicina
moderna encerra também a promessa de eventuais eliminações de alguns defeitos antes
que a concepção tenha lugar. Estes novas tecnologias estendem as fronteiras e as
possibilidades mas ameaçam o entendimento humano, a moralidade pública e o próprio
projecto do controlo, podendo haver novos perigos desconhecidos para pais e filhos.

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

Mas também poderão dar causar uma ferida no ‘self’ dos indivíduos, do seu amor-
próprio e poderá alargar as possibilidades de aplicação de políticas eugénicas que
colocam um alto valor em certas vidas e um baixo valor noutras e que interferem no
processo na ‘naturalidade’ da reprodução. Os agentes poderão ter de assumir o risco se
serem reduzidos aos seus códigos genéticos (defeituosos), podendo a subjectividade
humana ser transformada num ‘objecto’ que poderá fornecer vários tipos de informação
detectável e utilizável. Dois dos discursos concorrentes na medicina parecem ser, por
um lado, os discursos sobre os códigos da vida, e, por outro lado, os discursos sobre o
‘combate’ às doenças.
As tecnologias da reprodução tem merecido uma atenta reflexão por parte dos
círculos feministas. Estas tecnologias são vistas nestes círculos como um passo final no
desejo dos homens de controlar e apropriar o poder reprodutivo. As mães biológicas
poderão eventualmente ser transformadas em ‘mães-máquinas’, degradando-se assim
cada vez mais a privacidade corporal e metafísica da mulher. Um facto é que
fisiologicamente o corpo da mulher tem sido cada vez mais aberto ao escrutínio e à
manipulação de partes corporais que são extraídas e depois reintroduzidas no corpo. A
medicina ao alterar e remover partes corporais da mulher revela uma tendência cada vez
maior de objectivar as partes da mulher e de construir discursos sobre essas partes fora
do contexto corporal, quase como se essas partes não pertencessem a um determinado
corpo.
Com as tecnologias reprodutivas assiste-se, portanto, à emergência dos ‘cyborgs
fetais’ e às ‘tecno-mães’. Entidades biológicas tornam-se entidades tecnológicas no
processo de colonização do mundo da vida pela tecnologia. Ora isto verifica-se nas
tecnologias de visualização e de diagnóstico do fecto, nas tecnologias que possibilitam
um fecto viver no corpo de uma mulher clinicamente morta, nas tecnologias que
transformam fetos abortados em ‘material’ tecnológico para a investigação científica e
para a investigação de novas formas de terapia biomédica, nas tecnologias que
produzem conhecimento fisiológico sobre os fetos e em todo o leque de terapias.
Com ‘tecnificação’ do útero e do material reprodutivo, as mulheres podem ser
alienadas, despersonalizadas e quase arredadas do processo reprodutivo. No entanto, é
claro que não são só apenas as tecnologias em si que são problemáticas, mas todo o
contexto em que elas são desenvolvidas e aplicadas. É na análise dos contextos onde as
tecnologias se desenvolvem que surgem questões sobre o acesso e a aplicação dessas
tecnologias, questão como: quem será permitida a conceber?

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

A tecnologia médica ao manipular as próprias fundações básicas da vida poderá


abrir debates em esferas que pertenciam ao que eram antes ‘os imperativos da natureza’.
A socialização dos mecanismos biológicos poderá facilitar a emergência da política da
vida na qual surgem problemas existenciais, morais e legais relacionados com a posse e
o controlo do corpo humano. O que está a ser potencialmente transformado por as novas
tecnologias reprodutivas são as concepções vigentes do que é ser humano, homem,
mulher, reprodutivo, pai, filho, feto, família, ‘raça’ e até do que é ser uma população.
Todas estas noções necessitarão de ser postas entre parêntesis e renegociadas como
consequência destes desenvolvimentos tecnológicos.
Parece simplista exigir pura e simplesmente um retorno à ‘maternidade natural’.
As mulheres e a sociedade em geral têem de participar tanto no desenvolvimento e na
(re)avaliação das novas tecnologias reprodutivas. Para além disso, não parece certo
considerar a mulher como um agente passivo nas mãos da medicina reprodutiva. Muitas
mulheres poderão recorrer reflexivamente aos serviços da medicina, podendo estes
serem vistos também como recursos e não apenas como mecanismos de controlo
opressores. A partir de uma visão pós-estruturalista, pode-se defender que o corpo
feminino é tanto inscrito como constituído através das práticas discursivas e dos
processos reprodutivos. Segundo esta perspectiva, as tecnologias reprodutivas poderão
produzir subjectividade em vez de uma ‘falsa consciência’. As lutas e as resistências
entre os discursos das mulheres e os discursos (masculinos) da medicina poderão
constituir novas configurações de poder/conhecimento. É desejável um corpo feminino
e uma política que permita as mulheres falar sobre os seus corpos nos seus próprios
termos, resistindo assim aos discursos científicos e tecnológicos dominantes.
Verificam-se também novos desenvolvimentos na medicina ‘virtual’ e nas
técnicas cirúrgicas com um efeito iatrogénico mínimo. Estas tecnologias ainda estão na
sua infância, contudo já prometem uma grande transformação nas técnicas cirúrgicas
tradicionais. Pretende-se com essas técnicas reduzir o trauma das cirurgias e reduzir o
número de intervenções, o que pode resultar num convalescência mais rápida, não sendo
assim necessário ficar muito tempo no hospital. Estes desenvolvimentos técnicos
associados a uma possível maior mercantilização e privatização da saúde e a uma
pressão capitalista para reduzir custos e aumentar os lucros poderá tornar o hospital
mais uma instituição de tratamento per se, onde se presta quase exclusivamente esse
serviço, do que uma instituição de convalescência. A verificarem-se estas tendências o
hospital enquanto instituição total poderá começar a declinar. O paciente entendido

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

como consumidor começaria a ser entendido como um decisor e senhor do seu corpo
numa nova cultura médica. Contudo, como aponta Foucault, o poder repressivo da
medicina não está circunscrito pelas paredes do hospital, embora possa ter uma maior
eficácia num contexto particular.
Fox acredita que a tecnologia tem constituído um discurso alternativo ao
discursos prévio dos profissionais médicos. A tecnologia pode até obscurecer o carácter
social dos julgamentos que são feitos como consequência de resultados de testes e
diagnósticos. As reavaliações tradicionais dos profissionais médicos poderão estar a ser
suplantadas pela dependência nas tecnologias e pela aparente racionalização que a
tecnologia traz ao difícil processo de diagnosticação.
As tecnologias informativas e ‘preventivas’ tais como os testes, os diagnóticos,
as despistagens criam um novo status, os indivíduos ‘em risco’. As despistagens e os
testes médicos penetram nos recantos mais escondidos e inimagináveis do nosso corpo,
criando doenças em potência. Cria-se assim uma nova áurea na noção de doença. A
doença fica assim envolta em mistério, invadindo silenciosamente o corpo à espera de, a
qualquer momento, começar a causar os seus efeitos. O sentimento de que se está
saudável é dissociado da condição de estar saudável. A integridade do corpo de uma
pessoa que espera um determinado diagnóstico é assim posta em causa.
E o facto de se saber um certo resultado de um teste médico pode constituir um
benefício pessoal para uns, mas para outros poderá aprofundar um sentimento de
desesperança ou até mesmo de culpa. Para além disso, as intervenções cirúrgicas, no
âmbito de uma medicina preventiva poderão dirigir-se a corpos em risco e não a corpos
doentes propriamente ditos. Aliás, com estas práticas médicas é o próprio conceito de
doença ou de corpo doente que se torna mais incerto.
A colonização técnica do corpo também expande-se através de representações
do corpo nos ecrãs e monitores. Para Paul Virilio, a telepresença, ao introduzir-nos o
outro imaterialmente (através da imagem), estabelece um curto-circuito relacional,
pondo em causa o sentido do nosso próprio corpo. As ligações instantâneas em tempo
real, através da Internet e das auto-estradas electrónicas da cidade global (dividida e
subdividida, multicêntrica, multicultural) assimilam virtualmente o espaço real,
desestruturando-o.
E quando se afirma que no futuro computadores miniaturizados serão capazes de
assistir a memória do indivíduo, já não se está na perspectiva da terapia. Das tecnologias
de apoio à vida passamos às tecnologias concorrente, entrando-se na esfera do homem-

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

prótese. Desde os braços mio-eléctricos, passando pelas próteses da anca e da mama, até
aos implantes cocleares e do pénis, praticamente todos os órgãos do homem são
passíveis de serem substituídos por mecanismos. A miniaturização dos objectos, que se
designa por nanotecnologias, é a possibilidade de realizar micromáquinas susceptíveis
de se integrarem nas nossas vísceras, alterando assim o conceito de organismo. Esta
tecnologia vai miniaturizar, não o corpo humano, mas as suas propriedades. Perante este
cenário não é de admirar que vários autores apontem a colonização do corpo vivo por
biotecnologias.
Segundo Virilio, cerca de 80% da produção microelectrónica é composta por
captadores, sensores ou teledetectores. Eles poderão permitir tele-ouvir, tele-ver e até
tele-tocar, coisa que é permitida pela luva de telecontacto com retorno de esforço que
permite tocar e sentir a pressão à distância, a milhares de quilómetros, da mão do outro
ou através de um datasuit – um fato de informações ou de dados – que permite sentir o
corpo do outro contra si. O mais recente captador é o captador olfativo que permite
cheirar à distância, pelo que, assiste-se a uma maneira de tirar do corpo as suas
sensações.
Mas será que com as novas tecnologias da medicina os indivíduos irão encarar
os mecanismos, o artificial da mesma maneira que antigamente? Poderá estar a ocorrer
todo um processo de naturalização das novas tecnologias, das novas próteses. Máquinas,
tecidos sintetizados, mecanismos, vai se imbricando por baixo da nossa pele, ou são a
nossa própria pele. Como escreve Baudrillard: “Am I a man or a machine? There is no
ambiguity in the traditional relationship between man and machine: the worker is
always, in a way, a stranger to the machine he operates, and alienated by it. But at least
he retains the precious status of alienated man. The new technologies, with their new
machines, new images and interactive screens, do not alienate me. Rather, they form an
integrated circuit with me. Video screens, televisions, computers and Minitels resemble
nothing so much as contact lenses in that they are so many transparent prostheses,
integrated into the body to the point of being almost part of its genetic make-up: they
are like pacemakers”17.
Para Baudrilard, a prótese mais invisível e transparente é a manipulação
genética. Uma prótese é um artefacto que substitui um órgão defeituoso, ou uma
extensão instrumental do corpo. A molécula de DNA, contudo, que contém toda a
17
BAUDRILLARD, Jean, The Transparency of Evil, Essays on Extreme Phenomena, Londres, Verso,
1993, p. 58

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

informação relativa a um corpo, é a prótese mais exemplar por permite o corpo replicar
e substituir a ele próprio infinitamente, pelo menos teoricamente. Todas as nossas
células são próteses potenciais e abstractas, ou uma matrizes, desse mesmo corpo, na
sua totalidade. A prótese cibernética constituída a partir da engenharia genética é de
longe mais subtil do que uma prótese mecânica. Qualquer parte abstraída do todo e
tornada autónoma converte-se em prótese artificial que altera o todo, pois substitui esse
todo. Assim sendo, o código genético, que contém toda a informação de uma dada
pessoa é, com efeito, uma condensação da globalidade vital dessa pessoa.
Sabemos já hoje que a cosmologia cibernética e informática da replicação
genética, tem na clonagem o estado último da história da modelização do corpo. A
molécula do ADN, como informação que permite replicar infinitamente esse corpo,
representaria a precedência absoluta do modelo genético sobre todos os corpos
possíveis. Isto traz consigo a possibilidade de um mundo sem reprodução sexuada, que
poderá trazer consigo novas narrativas, substituindo a criação ou a reprodução pela
replicação, que responderia ao hibridismo com o estado da técnica. A reprodução sexual
seria assim uma estratégia de reprodução entre outras, uma ideologia específica que
poderá no futuro chocar com a racionalidade dominante das sociedades do capitalismo
eficiente, que poderá suscitar estratégias de optimização genética.
Tal como Walter Benjamim escreveu sobre a arte na era da reprodução
mecânica, também podemos dizer que com a cosmologia genética e informacional o
corpo perde a ‘aura’, a sua qualidade única do aqui e agora, perde a sua originalidade,
sendo que a autenticidade do original apenas pode ser constituída pela história. O corpo
é portanto reduzido à condição de signo, de mensagem, o corpo torna-se molecular,
silencioso, privado do Outro, da contextualização, da sensação, da memória individual.
Segundo, Haraway, as fronteiras essenciais para as próprias ciências da natureza
com as que separam organismo/máquina, animal/humano, corpo/mente estariam a ser
‘digeridas’ pelo desenvolvimento tecnológico. O holismo que caracteriza a nossa noção
de organismo daria lugar a uma noção polimórfica. Contudo mais do que um
determinismo tecnológico, que se substituiria aqui a um determinismo biológico, trata-
se aqui de um design tecnológico do organismo, que põe então em causa a existência de
uma separação ontológica entre máquina e organismo, entre técnico e orgânico.
Tal condição é então confirmada pela biologia moderna, ao entrar na era da
tradução do mundo em codificação e, portanto, na era da inscrição, da montagem e
desmontagem, da sintetização, do design, da engenharia. Na engenharia genética a

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

hibridação tem a ver com uma maquinação do organismo, de que resultam novas
morfologias ou organismos, organismos de design com patentes, fabricados em
laboratórios.
O corpo está a transformar-se num suporte variável, espaço de uma identidade
escolhida e sempre revogável, que decide em cada momento a orientação para a sua
existência. Daí que o conceito de corpo tenha vindo a complexificar-se, exacerbado pelo
controlo tecnológico e numa altura em que este conceito se dissemina praticamente por
todas as áreas da experiência e do saber, tornando-se cada vez mais efémero, indefinido
e indeterminado.
Os avanços tecnológicos parecem ser tanto instrumentais como sintomáticos da
crise da corporialidade nas sociedades ocidentais. Apesar das interpretações pós-
modernas, a medicina e a engenharia do corpo parece ser ainda um empreendimento das
dinâmicas e das ideologias da modernidade, imbricadas na tradição científica na qual a
‘verdade’, a ‘ordem’ e o ‘progresso’ ainda são entendidas como virtudes a atingir. Pode-
se argumentar quer os desenvolvimentos em curso representam uma extensão dos
imperativos modernistas centrados no controlo racional e na dominação da ‘natureza’. É
o próprio processo de ‘racionalização’ e de ´modernização’ que, através de uma ordem
social reflexiva, cria as seus próprios riscos e incertezas e que desafia os seus próprios
propósitos. “Tudo o que é sólido derrete no ar”, este é o mote da modernização, um
carrossel contínuo de renovação, de desinstitucionalização e de institucionalização.
Neste sentido, os médicos M. Valente Alves e António Barbosa escrevem:
“Entre a jubilação da descoberta (prometeica) da biologia molecular e o medo da
monstruosidade (frankensteiniana) do pós-humano, o fantasma do aperfeiçoamento da
condição humana parece afastar-se do terreno do religioso, do jurídico e do político,
instalando-se com uma vitalidade surpreendente no campo da genética e
simultaneamente no da bioética. Se a abolição do mal não parece socialmente possível,
se não se pode melhorar o social enquanto tal, então aja-se sobre as microestruturas do
indivíduo, procurando modelar um ser susceptível de conter todas as qualidades –
saúde, aparência, existência”.
A tecnologia médica tem sem dúvida um controlo sem precedentes sobre o
corpo, contudo, paradoxalmente, este desenvolvimento pode conduzir a uma crise de
identidade cada vez maior, deixando os agentes sociais confusos e apreensivos sobre
quais serão as fronteiras do corpo e sobre que formas o corpo poderá tomar no futuro.

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

Para além disso é possível argumentar que o pós-modernismo é apenas uma


opção para os ‘saudáveis’ e não para os doentes. Quando a doença torna problemática e
contingente a relação com o nosso corpo, é a medicina moderna que tenta oferecer um
projecto coerente de estabilização da nossa relação com o corpo. Daí que a medicina
moderna, apesar das suas limitações e consequências iatrogénas, é tanto uma fonte de
esperança como uma fonte de desespero.
A figura do cyborg continua a fazer sentido no paradigma da modernidade
avançada. Todavia, poderemos contrapor à visão optimista de Haraway o argumento de
que o advento das novas tecnologias poderá conter, em vez de transcender, as categorias
ou formas de corporialidade já existentes. Por exemplo, o cyborg e as práticas
contemporâneas da medicina em vez de desafiarem a tradicional dicotomia entre corpo
e mente poderão exacerbar um neo-platonismo, dando razão à frase “plus ça change,
plus c’est la meme chose”.
A partir da aplicação das novas tecnologias médicas, vários problemas
emergem: desde os riscos físicos e psicológicos da cirurgia estética, o espectro da
eugenia ou a prospectiva de poder haver bebés por encomenda. Contudo, não se pode
pura e simplesmente diabolizar a medicina moderna. Também devemos ter em conta as
contribuições significativas que a medicina moderna teve nas nossas vidas, desde
melhoramentos na nossa qualidade de vida e no prolongamento da própria vida. Mas,
sem dúvida, que tais tecnologias terão os seus impactos, convidam a reconfigurações
culturais e identitárias, e abrangem os seus próprios efeitos perversos. Quanto à
constituição e construção de opções éticas em áreas controversas como a terapia
genética, certas formas de tratamento poderão ser vistas mais como uma obrigação
moral e menos como uma opção. As tecnologias médicas expressam simbolicamente os
dilemas da vida na era da incerteza e o corpo, sendo uma espécie de metáfora desses
dilemas, é palco tanto da estabilidade como do fluxo, da ordem e da transgressão.
Podemos apontar certas consequências sociais da tecnologia tais como a
despersonalização, a medicalização e o envolvimento de interesses comerciais sem,
contudo, nos arrastarmos em determinismos sociais. Não é possível reduzir o físico em
epifenómenos sociais, embora, o social esteja implícito em muita ciência e os valores
estejam explícitos nas tecnologias.
Habermas não fala directamente sobres as questões da saúde mas estas poderão
ser articuladas com as considerações que o autor tece sobre a relação entre ciência,
técnica e democracia. Habermas refere que: “as definições publicamente admitidas

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

referem-se ao que queremos para viver, mas não ao como queríamos viver, se
relativamente ao potencial alcançável, descobríssemos como poderíamos viver”18.
Nesta linha, da articulação entre técnica e sistema político resulta um claro défice
democrático pois “a direcção do progresso técnico é hoje determinada ainda em
grande parte pelos interesses sociais que provêm espontaneamente da coacção à
reprodução da vida social sem que sobre eles, enquanto tais, se reflicta e sem que
sejam confrontados com a autocompreensão política esclarecida dos grupos sociais”19.
Habermas argumenta que “a questão não é se esgotamos um potencial disponível ou
ainda a desenvolver, mas se escolhemos aquele que podemos querer em vista da paz e
da satisfação da existência”20. A resposta a esta questão só se poderá obter através de
uma racionalização ao nível do marco institucional, articulando-se técnica e democracia.
Tendo em vista esse fim, Habermas postula uma acção comunicativa, que poderia,
acrescentamos nós, questionar as normas e as cosmologias vigentes no modo como
vivemos e entendemos o corpo. Em geral, Habermas conceptualiza uma acção que tenda
a redefinir todos os domínios do social, que promova uma integração que reconheça o
verdadeiro sentido histórico da sua acção e que recuse uma integração social
compulsiva, sem reflexão e distanciamento, como forma de normalização do
comportamento potencialmente perigoso à estabilização dos sistemas. É necessária uma
agenda sobre política da vida, presente na esfera pública, que questiona e negoceia os
modos de vivência do mundo e a ‘natureza humana’. A identidade dos indivíduos tem
de surgir de uma forma que seja aceite, partilhada e justificável aos olhos de todos, não
sendo nem imutável ou dogmática nem estanque a críticas, reinterpretações ou revisões,
e ilustrando simultaneamente uma individualidade máxima e uma máxima
universalidade.
Os imperativos tecnológicos e racionais da medicina na modernidade avançada
precisam de ser temperados por uma perspectiva mais humanista dos cuidados de saúde,
uma perspectiva que coloque os sentimentos e as emoções dos pacientes num plano
central no processo de tratamento médico. E porque não ir buscar inspiração à ética pós-
moderna de desconstrução das categorias, de modo a levar a cabo um tratamento
baseado na confiança e no compromisso espontâneo com o ‘outro’ e evitar formas
(modernas) possessivas, repetitivas e negativas de dependência que disciplinam e
envolvem o indivíduo.
18
HABERMAS, Jürgen; Técnica e Ciência Como «Ideologia», Lisboa, Edições 70, 1994, p. 89
19
Idem, Ibidem, p. 119
20
Idem, Ibidem, p. 89

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

CONCLUSÃO

As ciências sociais ao contestarem o modelo biomédico, fundaram uma


perspectiva distintamente social. No entanto, a ‘natureza’ do social é ele própria alvo de
acesos debates. O construtivismo social parece sofrer dos mesmos males de
reducionismo que o modelo biomédico. O estudo do corpo para assim reclamar uma
abordagem dialéctica na relação entre processos biológicos e sociais, entre indivíduo e
sociedade.
O corpo tem sido um campo de reflexão crítica em relação às ideias iluminismo,
sugeriu a Foucault uma reconceptualização do poder e aparece actualmente como
metáfora das mudanças nas condições sociais do capitalismo tardio, que nos permite
controlar o corpo de formas impossíveis até agora.
O percurso deste texto confirma que o estudo do corpo e das formas de
‘embodiment’ é complexo por várias razões. O conceito de corpo é multidimensional,
onde é investido o interesse de vários saberes, medicina, psicologia, antropologia,
sociologia, etc. É um conceito sempre aberto a debate e a contestação nos vários
discursos. É difícil estabelecer fronteiras rígidas entre os seus vários níveis, pelo que
não se sabe até onde é que o corpo é social. Sendo o corpo, pelo menos até certo ponto
(qual?), inscrito pelo contexto socio-cultural ele é uma entidade fugidia que vai
flutuando ao sabor da mudança social. Como a modernidade é definida pela mudança
social e tecnológica acelerada é de esperar que o corpo acompanhe de certo modo essa
compressão do tempo de mudança. A discussão do corpo no seio da sociologia,
enquanto ciência da acção, esbarra também com o dilema central, agência/estrutura,
ainda por resolver. A abordagem do corpo é assim ambiciosa e árdua. Este percurso
demonstra também que o estudo do corpo na sociologia ainda está pouco sistematizado
e difuso. Várias subdisciplinas abordam com as suas perspectivas próprias. O sociologia
do corpo carece assim de um corpo teórico sintetizado e unificado que dê conta de
fenómenos dispares relacionados com o corpo mas que tenham uma estrutura
semelhante.
Mas apesar das dificuldades, se parece hoje tão evidente que o corpo deve
ocupar um lugar central na teoria social isso deve às teorias fundadoras de Foucault. Foi

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Saúde, Medicina e Sociedade: Considerações Sobre a Construção Social do Corpo e das Formas de ‘Embodiment’

toda uma agenda de questões que se abriu e que se revelou profícua e que inspirou tanto
a corrente da modernidade avançada como a corrente pós-moderna. E um estudo
depurado das teses de Foucault integrado com os recentes avanços teóricos poderá ser a
base de um corpo teórico mais unificado para o estudo do corpo, integrando as várias
formas de ‘embodiment’, as várias formas de sentir e viver o corpo ou as suas próteses
tecnológicas, as várias formas de viver a velhice, a juventude, de viver a doença, a dor,
etc

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