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A ANTROPOLOGIA DAS PERTURBAÇÕES MORAIS

Corpo e doença no trânsito dos saberes (Cynthia Sarti)

P. 77

 Corpo e doença, dor e sofrimento – fenômenos sociais e culturais que atravessam barreiras
disciplinares  no caso específico desse artigo, ciências humanas e biológicas, que
transformam corpo e doença em objetos radicalmente diferentes devido aos seus
princípios epistemológicos.

P. 78

 Objetivo do artigo: discutir o campo dos saberes antropológicos sobre o corpo e a doença,
recortando-o a partir da exigência de se situar em relação aos saberes biológicos.
 Modo próprio como a antropologia trata o corpo e a doença.
 Ao tomar o corpo, a saúde e a doença, a dor e o sofrimento, como objetos de estudo, o
antropólogo irá se deparar com um campo de conhecimentos em que os saberes biológicos
são vistos como referência.
 Na nossa sociedade o saber biomédico possui um lugar de saber dotado de poder quando
em relação aos saberes de outras áreas.
 A medicina vista como um aparelho ideológico, que interpela o sujeito esteja ele onde
estiver, que diz como curar a doença, aliviar o sofrimento e também, como se deve viver.
 A biomedicina detém o domínio das concepções de vida e morte em nossa sociedade.
 Biomedicina: campo de saberes biológicos nos quais se baseia a medicina.
 Canguilhem: postulados científicos que se constituem enquanto discursos normativos,
impondo um padrão de normalidade, referência única para pensar a doença, a qual é vista
como uma variação quantitativa / mensurável do estado “normal” de saúde.
 Canguilhem traz um discurso a favor de uma diferença qualitativa da saúde e doença,
permitindo relativizar tais conceitos e trazendo espaço para que experiências clínicas e o
discurso do doente possam dizer sobre a doença.

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 Quando se trata dos estudos sobre o corpo, a saúde, a doença, o objeto de investigação
torna-se direta ou indiretamente o próprio campo científico que produz a verdade sobre
cada uma dessas temáticas no mundo ocidental  a biomedicina.
 Estatuto do saber antropológico: buscar o lugar de reconhecimento e legitimidade para o
discurso do seu “objeto” aqui transformado em sujeito, atribuído de saber. No caso do
campo da saúde isso é bastante relevante pelo não reconhecimento do discurso do doente
em vista do discurso biomédico.
 Não se está reivindicando uma simetria entre os saberes do doente e do biomédico, mas
dar legitimidade ao seu discurso.

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 Dimensão política a se enfrentar no desenvolvimento de estudos antropológicos dentro do


campo da saúde: necessidade de uma atitude, por parte do antropólogo, frente aos saberes
biológicos, que permita estabelecer uma comunicação entre os campos da antropologia e
da biomedicina, frente ao estatuto de “mais verdade” deste último.
 Duas vertentes dentro da antropologia que estuda o corpo, a saúde e a doença: a
antropologia médica, enquadrada na lógica do saber biomédico; e a antropologia da saúde
(ou da doença), que opera a partir de uma noção de cultura frente ao saber biomédico.

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A antropologia médica

 Definição: antropologia de base empírica que analisa a diversidade em torno das


concepções de corpo e de doença, elaborando o que pode ser considerado um rico
inventário dessa variação cultural, situando-se por referência ao sistema biomédico oficial.
 Possui caráter instrumental em relação ao sistema médico.
 A antropologia atua como um tradutor de diferentes linguagens culturais em termos
inteligíveis para o campo biomédico (e vice-versa).
 Ciências biomédicas ocupam um lugar absoluto e a cultura como lugar particular.
 A biomedicina ocidental contemporânea é a referência internalizada (inconsciente,
portanto) para os cuidados das nossas próprias dores e sofrimentos.

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 Divisão usual que atribui os fenômenos coletivos às ciências sociais e os fenômenos


individuais à biomedicina, psicologia e psiquiatria.
 Não se observa que o indivíduo, tanto quanto a coletividade, são categorias sociais
construídas e não dadas naturalmente.
 “Ambas as dimensões – social e individual – são reificadas e naturalizadas,
desconsiderando, de um lado, a dimensão de construção histórica e cultural da categoria
indivíduo e de outro, a complexidade do social enquanto uma categoria simbólica.”
 Identificação errônea da antropologia médica enquanto área do saber dedicada ao âmbito
da saúde pública, da medicina social ou da saúde coletiva  espaço reservado para tratar o
social na área da saúde.
 A antropologia médica confere à antropologia o lugar do saber sobre o outro (exótico),
deixando a biomedicina fora do alcance da análise cultural  deixa-se de perceber que a
própria biomedicina, seus conceitos, seus saberes, são construções (tanto quanto os
conceitos de indivíduo e coletividade) e não um saber inquestionável e único.

A antropologia da saúde

 Augé: há somente uma antropologia com distintos objetos de estudo (saúde, doença,
parentesco, religião).
 Definição: a antropologia da saúde considera todos os sistemas médicos, todos os discursos
sobre o corpo, sobre a saúde e a doença, como categorias culturais, qualquer que seja a sua
procedência, pelo simples fato de que eles existem (Laplantine, 1999).
 Não se exclui do campo de análises da antropologia qualquer objeto, observando a
construção social que há em tudo.
 Divisão corpo e alma, fisiologia (corpo) e social (pessoa que habita o corpo)  para Le
Breton (2001) a raiz dessa separação está nos estudos de anatomia a partir do início do
século XV.
 Separação entre o corpo e o ser social que o habita  indiferença que marca a
biomedicina.
 Estudos de anatomia no Renascimento levam a separação da concepção entre o corpo e
aquele que anima o corpo  ter um corpo e não ser um corpo  estudar somente o corpo,
vazio, morto, sem significado social.
 “O objeto da antropologia da saúde, portanto, não se constitui pelo o que é o corpo, a
saúde e a doença, mas pelo o que sujeitos, em cultura, pensam e vivem o que é o corpo, a
saúde e a doença.”

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 Questionamento, por parte de Hertz, sobre um postulado de Broca a respeito da


proeminência do uso da mão direita. Broca afirma que há proeminência do uso da mão
devido ao nosso cérebro ser canhoto (cérebro mais desenvolvido no hemisfério esquerdo,
que controla os movimentos do lado direito do corpo). Hertz questiona e inverte tal
postulado, perguntando: não seríamos canhotos no cérebro justamente porque somos
destros no uso de nossas mãos?

O corpo

 O corpo é constitutivamente simbólico e as experiências fisiológicas do corpo requerem


conhecimento das categorias sociais que lhe dão sentido.
 Viver é corporal (nascer, crescer, desenvolver-se e morrer). Mas a forma como cada
pessoas irá viver sua realidade corporal e concebe o corpo que habita é tributária da noção
de pessoa, própria do coletivo de que faz parte.
 “Não há uma existência corporal prévia, uma ordem natural que anteceda à intervenção
cultural. O corpo faz-se humano porque está constitutivamente inscrito em um sistema
simbólico.”
 Nas ciências biológicas o corpo é pensado como uma realidade objetiva, separada do ser
social que o habita. E é pensado dessa forma porque é necessário que assim o seja para que
se dê inclusive a constituição da área das ciências biológicas.
 Já a antropologia nos mostra como a forma de pensar a estrutura e funcionamento do
corpo é distinta em várias organizações sociais distintas.

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 Estudos que gênero que trazem problematizam a construção social dos corpos de homens e
mulheres.
 Século XVIII – criação da ginecologia, especialidade médica dirigida à mulher.
 Modelo de moral e de família  controle disciplinar do corpo e da sexualidade da mulher.
 Noções de corpo e indivíduo: na sociedade ocidental moderna são noções que caminham
juntas, em que o corpo traz a noção atomizada do indivíduo, do eu. Já no mundo
tradicional, o indivíduo encontra-se submerso em meio à coletividade (lembrar do texto de
Mauss sobre a noção do indivíduo).
 O indivíduo é um valor e não um dado objetivo da natureza.
 Ideologia individualista  anseios modernos de liberdade e autonomia  século XVIII:
Revolução Francesa e Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
 Psiquiatria e saberes psicológicos: somente são possíveis após essa definição moderna de
sujeito, de indivíduo.

P. 86 e 87

A doença
 A noção de doença é tributária das noções de corpo e de indivíduo.
 Os sistemas classificatórios de doenças são igualmente construções simbólicas.
 Duas tendências de representação da doença:
 Modelo ontológico (predominante na sociedade ocidental atual): medicina
centralizada na doença (ideia de ser da doença);
 Modelo relacional ou dinâmico: medicina centralizada no doente (considera-se a
dinâmica interna do organismo como um todo e sua relação com o meio).
 Na sociedade ocidental atual, a doença é uma entidade autônoma, que fala por si mesma.
 Canguilhem e Foucault são os maiores críticos da pretensa objetividade das ciências
biológicas.

 Canguilhem: parte do ponto de vista do ser e de suas vivências.


 As pessoas vivem em um estado paradoxal – de um ser que pode ser
constantemente atingido pela doença – inscrito na normatividade da vida, que está
polarizada entre valores positivos e negativos.
 Um ser normal que pode estar saudável ou ser acometido pela doença.
 A doença é parte da vida, é um modo de estar na vida, exprimindo um outro modo
de viver tão possível quanto qualquer uma.
 Não há nada que seja normal ou patológico em si.
 Portanto, não há cura sem que haja a doença. A cura só existe a partir do momento
em que há algo que precise ser curado. Ou seja, um estado que precise ser mudado.
 A medicina existe porque há homens que se sentem doentes e não porque há
médicos que informam a estes homens sobre suas doenças.

 Foucault: parte do ponto de vista das instituições


 O nascimento histórico da biomedicina, o desenvolvimento social e político das
normas médicas, o ponto de vista do médico e das instituições que estão por trás dele.
 A doença está submetida ao olhar médico, que é normatizado e normatizador.
 As instituições nesse caso legitimam a relação entre médicos (aqueles que olham) e
pacientes (aqueles que são olhados).
 Portanto, não há sujeitos que sofrem, há sim estruturas que levam ao sofrimento –
doenças.

Considerações finais

 De acordo com Foucault, a antropologia, assim como a psicanálise, interroga a região que
torna possível um saber sobre o homem (e não o homem em si).
 Traçar o contorno das representações que os homens, numa civilização, podem dar a si
mesmos.

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 A antropologia não pode deixar suas práticas de lado, mesmo quando se trata de estudos
em áreas como a biomedicina, em que se lida com saberes considerados objetivos e
inquestionáveis.
 O papel da antropologia é justamente o de mostrar que mesmo dentro de espaços como
estes da atuação da biomedicina existem diversos componentes culturais que constituem
esse campo do saber.

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