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Corrupção

Ensaios e críticas
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitor Clélio Campolina Diniz
Vice-Reitora Rocksane de Carvalho Norton

EDITORA UFMG
Diretor Wander Melo Miranda
Vice-Diretor Roberto Alexandre do Carmo Said

CONSELHO EDITORIAL
Wander Melo Miranda (presidente)
Ana Maria Caetano de Faria
Flavio de Lemos Carsalade
Heloisa Maria Murgel Starling
Márcio Gomes Soares
Maria Helena Damasceno e Silva Megale
Roberto Alexandre do Carmo Said
Leonardo Avritzer
Newton Bignotto
Juarez Guimarães
Heloisa Maria Murgel Starling
Organizadores

Corrupção
Ensaios e críticas

2ª edição

Belo Horizonte
Editora UFMG
2012
© 2008, Os autores
© 2008, Editora UFMG
2012, 2ª ed.
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização
escrita do Editor.

C825 Corrupção : ensaios e críticas / Leonardo Avritzer ...[et al.], (org.). 2. ed. –
Belo Horizonte : Editora UFMG, 2012.
503 p. il. – (Humanitas)

Outros autores: Newton Bignotto, Juarez Guimarães, Heloisa Maria


Murgel Starling.
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-7041-965-1

1. Ciência política – Filosofia. 2. Corrupção. I. Avritzer, Leonardo.


II. Bignotto, Newton. III. Guimarães, Juarez. IV. Starling, Heloisa Maria
Murgel.

CDD: 320
CDU: 32

Elaborada pela Central de Controle de Qualidade da Catalogação


Biblioteca Universitária UFMG

DIRETORA DA COLEÇÃO Heloisa Maria Murgel Starling


COORDENAÇÃO EDITORIAL Danivia Wolff
ASSISTÊNCIA EDITORIAL Euclídia Macedo
COORDENAÇÃO DE TEXTOS Maria do Carmo Leite Ribeiro
PREPARAÇÃO DE TEXTOS Maria do Rosário Alves Pereira
REVISÃO DE PROVAS Michel Gannam e Priscila Iacomini
ATUALIZAÇÃO ORTOGRÁFICA Michel Gannam
PROJETO GRÁFICO Cássio Ribeiro, a partir de Glória Campos – Mangá
FORMATAÇÃO Diêgo Oliveira
COORDENAÇÃO GRÁFICA E CAPA Cássio Ribeiro
IMAGEM DA CAPA Detalhe do desenho de Francesco Solimena (1657-1743)

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Sumário

INTRODUÇÃO 11

Seção I
TEORIA POLíTICA E CORRUPÇÃO

Autores

PLATÃO E ARISTóTELES 21
Sérgio Cardoso

MAQUIAVEL 31
Helton Adverse

ESPINOSA 39
Marilena Chaui

HOBBES 48
Renato Janine Ribeiro

ROUSSEAU E HUME 55
Cícero Araújo

TOCQUEVILLE 62
Marcelo Santus Jasmin

WEBER 68
Jessé Souza
Tradições políticas

LIBERALISMO 78
Álvaro de Vita

REPUBLICANISMO 87
Newton Bignotto

SOCIALISMO 94
Juarez Guimarães

TOTALITARISMO 100
André Macedo Duarte

DEMOCRACIA 106
Wanderley Guilherme dos Santos

Problemas conceituais

ESFERA PúBLICA 112


Leonardo Avritzer

TRANSPARÊNCIA 117
Olgária Chain Féres Matos

INTERESSES 131
Fernando Filgueiras

INTERESSE PúBLICO 138


João Feres Júnior

INTERESSE PúBLICO 147


Juarez Guimarães

PRIVATISMO 152
Rubens Goyatá

PATRIMONIALISMO E NEOPATRIMONIALISMO 158


José Maurício Domingues

CORRUPÇÃO E CIDADE 163


Carlos Antônio Leite Brandão
Seção II
CORRUPÇÃO, HISTóRIA E CULTURA

História brasileira

A CORRUPÇÃO NO BRASIL COLôNIA 174


Luciano Raposo Figueiredo

PERNAMBUCO NO PERíODO COLONIAL 183


Evaldo Cabral de Mello

CORRUPÇÃO NO BRASIL IMPéRIO 191


Lilia Moritz Schwarcz

PASSADO, PRESENTE E FUTURO


DA CORRUPÇÃO BRASILEIRA 200
José Murilo de Carvalho

CORRUPÇÃO NO BRASIL REPUBLICANO – 1954-1964 206


Rodrigo Patto Sá Motta

DITADURA MILITAR 213


Heloisa Maria Murgel Starling

Cultura

MACHADO DE ASSIS 223


Heloisa Maria Murgel Starling

CARICATURA 232
Isabel Lustosa

TEATRO 238
Ram Mandil

TEATRO BRASILEIRO 242


Rosangela Patriota

CINEMA BRASILEIRO 254


Alcides Freire Ramos
CANÇÃO POPULAR 262
Heloisa Maria Murgel Starling

CANÇÃO CAIPIRA 271


Marcela Telles Elian Lima

CARNAVAL E POLíTICA 278


Myrian Sepúlveda dos Santos

RESSENTIMENTO 290
Maria Rita Kehl

Seção III
QUESTõES ATUAIS DA CORRUPÇÃO

Corrupção e sistemas políticos

MARCOS TEóRICOS DA CORRUPÇÃO 299


Fernando Filgueiras

SISTEMA POLíTICO 307


Fátima Anastasia
Luciana Santana

CORRUPÇÃO ELEITORAL 314


Carlos Ranulfo Melo

FINANCIAMENTO DE CAMPANHAS ELEITORAIS 321


André Marenco

Instituições e temas

CORRUPÇÃO, CULTURA E IDEOLOGIA 328


Fábio Wanderley Reis

CORRUPÇÃO POLICIAL 335


Cláudio Beato
CRIME ORGANIZADO 341
Luiz Eduardo Soares

MEIO AMBIENTE 348


Jean Hébette
Raul da Silva Navegantes

GÊNERO 355
Marlise Matos

REFORMA AGRÁRIA 361


Regis Moraes

EMPRESÁRIOS E REDES RENTISTAS 365


Cristina Zurbriggen

ONGS 371
Celi Regina Jardim Pinto

CONTRABANDO E FRONTEIRAS 377


Antônio César Bocheneck

A CORRUPÇÃO NO MéXICO
E O SISTEMA ELEITORAL 388
Alberto Olvera

Controle da corrupção

ACCOuNTABILITy 401
Enrique Peruzzotti

FUNCIONALISMO PúBLICO 407


Francisco Gaetani

TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL 415


Joana Fontoura
Aline Soares

íNDICES DE PERCEPÇÃO DA CORRUPÇÃO 423


Leonardo Avritzer
BANCO MUNDIAL 428
Aaron Schneider

MíDIA 442
Venício A. de Lima

JUDICIÁRIO 448
Rubem Barboza Filho

MINISTéRIO PúBLICO 454


Maria Tereza Sadek

TRIBUNAIS DE CONTAS 461


Bruno Speck

COMISSõES PARLAMENTARES DE INQUéRITO 468


Fernando Filgueiras

CONTROLE EXTERNO 473


Marcelo Barros Gomes
Ricardo de Melo Araújo

CONTROLE INTERNO 482


Mário Spinelli

CORREIÇÃO 486
Vânia Vieira

QUARENTENA 490
Ludovico Feoli

SOBRE OS AUTORES 497


introdução

A corrupção é hoje um tema central para todos os que se preo-


cupam com os destinos das democracias ocidentais. Fenômeno
recorrente na história de muitas nações, na América Latina,
ele tem se mostrado resistente às mudanças institucionais, que
contribuíram para que a vida pública de alguns países pudesse
ser regida por parâmetros democráticos cuja ausência foi uma
das responsáveis pela extensão das práticas corruptas a amplas
esferas da vida pública ao longo do século 20. A história recente
brasileira, particularmente depois da Constituição de 1988,
mostra que a redemocratização do país tornou visíveis fatos
que antes não chegavam ao conhecimento da opinião pública,
mas não evitou que o fenômeno se repetisse. Dos escândalos do
Governo Collor aos acontecimentos mais recentes envolvendo
membros dos governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz
Inácio Lula da Silva, as evidências de que a corrupção está longe
de ser um acontecimento marginal no interior da vida pública se
acumulam. Essa constatação povoa as páginas dos jornais, a cada
vez que surgem fatos incriminadores envolvendo personagens
centrais da República, mas não gera necessariamente uma melhor
compreensão de seus efeitos e de suas raízes. À justa indignação
contra aqueles que são responsáveis pelos atos corruptos, segue-se
com frequência uma condenação moral que, embora essencial,
não dá conta de toda a complexidade do fenômeno. Uma das
ambições deste livro é fornecer para o leitor um conjunto de
referências que, sem negar a pertinência das abordagens morais
e sem recusar a indignação como uma manifestação política
legítima, permita avançar na compreensão de algo que faz parte
da longa história política do Ocidente e resiste a toda análise
unilateral de suas determinações.
Com muita frequência, a corrupção é abordada pelos meios
de comunicação, e por cientistas sociais, por intermédio de índices
que medem a “percepção da corrupção” pela população. Tais
índices revelam a importância concedida a fenômenos que
possuem um peso negativo na avaliação geral das políticas
públicas. Eles apontam para o fato de que a população em geral
não apenas tem consciência do fenômeno, mas se preocupa com
seus efeitos sobre suas vidas. Não podemos, entretanto, esquecer
que eles aferem a percepção, mas não servem para esclarecer
os mecanismos internos aos processos aludidos. Um segundo
instrumento recorrente nas análises da corrupção são os estudos
realizados por institutos, os quais classificam os países segundo
uma tabela que permite a comparação entre experiências distri-
buídas por todos os continentes. Nesse caso, o que se torna
patente é o caráter internacional da corrupção e o fato de que
é possível tanto concordar com um diagnóstico da situação de
uma dada nação que leve em conta parâmetros partilháveis com
outros países, quanto instituir práticas de controle, cuja eficácia
pode ser medida por meio das mesmas referências que servem
para fixar o diagnóstico.
As duas fontes anteriormente citadas nos ajudam a aquilatar
a importância do problema da corrupção, sobretudo quando
pensamos numa avaliação de políticas públicas e das institui-
ções estatais concernidas. Elas possuem, no entanto, algumas
limitações que devem ser levadas em conta. A primeira delas é
que, para chegar a resultados mensuráveis, elas deixam de lado a
grande complexidade do fenômeno estudado. A corrupção existe
tanto em países democráticos quanto em países não democrá-
ticos, assim como em países com ampla liberdade de imprensa
e em países com quase nenhuma liberdade de opinião. Eviden-
temente, a existência de instituições democráticas e a revelação

12
da corrupção estão profundamente associadas, e não é possível
avaliar comparativamente o fenômeno sem levar em conta a
maior ou menor possibilidade de percebê-lo. Tal constatação
nos permite entender um pouco melhor onde situar o Brasil em
uma perspectiva comparada: trata-se de um dos países que tem
mudado fortemente os comportamentos públicos e privados
em relação à corrupção. No que diz respeito a comportamentos
públicos, todos esses atos fazem com que a opinião pública volte
seus olhos para as práticas dos funcionários de Estado.
Um procedimento recorrente nos estudos da corrupção é a
concentração da atenção no comportamento dos funcionários
do Estado que se desviam de suas funções. Essa abordagem do
problema tem suas raízes na maneira como a lei brasileira carac-
teriza a prática da corrupção, mas conserva também as marcas
de uma abordagem teórica, que privilegia o estudo dos desvios
daqueles que estão diretamente ligados à máquina de Estado e
à aplicação de suas determinações como inerente à constituição
do objeto de estudo que deve interessar aos cientistas políticos.
Embora esse seja um aspecto fundamental do problema, tem se
revelado inadequado. Se não podemos descurar das práticas dos
funcionários de Estado, a esfera pública e suas interfaces com a
esfera dos interesses privados têm se mostrado um terreno bem
mais complexo do que aquele sugerido por algumas análises
correntes. é claro que a presença de funcionários públicos nos
escândalos políticos não pode ser descurada, mas com alguma
frequência ela é apenas a ponta de um processo que trans-
cende não apenas os limites do serviço público, mas também as
fronteiras dos Estados. Prestar atenção à dimensão pública
da corrupção pode levar a obscurecer o fato de que ela afeta
igualmente os domínios privados. O funcionário corrupto é apenas
uma parte de uma engrenagem que envolve atores privados, que
representam interesses econômicos ou políticos que não são
explicitados na esfera pública.
Há um senso comum recorrente que associa o fenômeno da
corrupção à própria identidade do brasileiro. Por essa visão, o

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Brasil seria inevitável e definitivamente corrupto devido a certos
valores e práticas que, presentes desde a origem, tornaram-se
parte de seu caráter e de seu jeito de ser. Tal explicação, além de
incorporar uma boa dose de preconceito, essencializa a história
e simplifica ao atribuir uma sobrecarga explicativa à cultura, em
detrimento de suas articulações variadas com outras dimensões
da vida social. Uma coisa é reconhecer que na formação do Esta-
do nacional e na constituição de nosso regime republicano houve
escassos valores públicos e forte privatismo, ambígua situação
legal e baixa adesão a procedimentos impessoais. Outra é deixar
de reconhecer a variação histórica dos padrões de corrupção,
de sua intensidade, generalidade e profundidade, segundo as
várias fases do desenvolvimento econômico e democrático do
país. Uma coisa é identificar sentimentos de conformismo, na
cultura das elites e na cultura popular, em relação ao fenômeno
da corrupção. Outra é deixar de lado, desvalorizar as atitudes e
movimentos de opinião pública que expressam a revolta contra
a reiteração dos fenômenos da corrupção. Enfim, a explicação
tautológica que o Brasil é corrupto em função de sua identidade
quase prescinde de refletir teoricamente e estudar empiricamente
o fenômeno da corrupção. Não deixa de ser, apesar da crítica
aparente, uma forma de se conformar à sua realidade.
Uma das tarefas à qual o livro pretende se dedicar é a de
oferecer um conjunto de reflexões e estudos que alarguem a
compreensão do fenômeno da corrupção para além das fronteiras
que lhe são assinaladas pelos procedimentos analíticos aos quais
nos referimos. Para isso, deixamos de lado o estudo direto dos
casos recentes de corrupção, que foram muito explorados tanto
pelos meios de comunicação quanto pelos estudiosos da vida pú-
blica, para tentar oferecer ao leitor as ferramentas necessárias
para uma abordagem que junta ao estudo do presente o de suas
raízes históricas e culturais. Isso não quer dizer que o livro não
pretenda realizar uma contribuição ao processo de combate à
corrupção: ele pretende mostrar quais são os fundamentos cul-
turais e históricos que determinaram uma trajetória que, muito

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provavelmente, está chegando ao seu final. Ele também aponta
com muita clareza qual é o elemento ou o conceito-chave para
a superação da corrupção: o resgate do conceito de interesse
público. Com esse intuito, a primeira seção do livro está voltada
para as diversas teorias da corrupção.
O ponto de partida é a investigação do pensamento de autores
que desde a Antiguidade se dedicaram a estudar o problema.
A percepção que os antigos tinham da corrupção é que ela estava
ligada à morte do corpo político e às mudanças que afetam os
regimes políticos. Como a vida pública estava submetida aos ciclos
da natureza, a corrupção era inerente a todos os processos, o que
não impedia os pensadores de tentar imaginar formas capazes
de retardar ou até mesmo evitar seus efeitos ao longo do tempo.
Com a modernidade e o abandono das concepções cíclicas da
temporalidade, o problema se transformou e passou a se orientar
por concepções da política em cujo núcleo estavam ideias como
as de contrato. Com as revoluções modernas e a consolidação do
referencial democrático, o tema sofreu uma nova transformação,
que combinou a preocupação pelo sentido da história com os
intensos debates sobre a organização institucional dos Estados.
A crise da modernidade, e suas repercussões na organização da
vida política contemporânea, fecha essa parte do livro e conecta
essa primeira subseção ao restante da obra. Sem pretender
fornecer uma história das teorias sobre a corrupção, o livro
visita momentos fundamentais da história das ideias, procurando
oferecer uma visão ampla do lugar que o debate sobre nosso
tema central ocupou ao longo da história.
Um outro viés importante das teorias da corrupção pode
ser apreendido pelo tratamento que lhe foi dado pelas diversas
tradições políticas que dela se ocuparam, ou que dela foram
originados, como é o caso dos regimes totalitários. Muitas
dessas tradições possuem pontos em comum, mas é interes-
sante constatar como a maneira de abordar a questão que nos
interessa delimita uma identidade teórica para cada uma dessas
tradições. A principal preocupação nessa parte é mostrar como

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concepções concorrentes a respeito da vida política engendram
paradigmas de análise diferentes da corrupção. Isso implica dizer
que um estudo do tema não pode nunca pretender a uma
neutralidade normativa, uma vez que engaja uma visão bem
mais ampla da vida política.
Por fim, são tratados alguns problemas conceituais inerentes
a todos os estudos sobre a corrupção na atualidade. Não temos
a pretensão de ter esgotado os temas possíveis. Mais modesta-
mente, procuramos oferecer uma amostra das questões que não
podem ser evitadas quando se trata de constituir corretamente
nosso objeto de estudo. O eixo dessa parte é o reconhecimento
de que a separação entre o público e o privado oferece um
marco analítico fecundo para a compreensão de nosso tema.
Este marco analítico é baseado em dois conceitos principais, o
de esfera pública e o de interesse público. O conceito de esfera
pública permite abordar o problema da corrupção a partir de
um marco de diferenciação entre público e privado. Este marco
entende o público como todas as ações que adquirem visibili-
dade ou enquanto aquilo que é comum a todos os indivíduos
privados. Podemos perceber aqui a emergência de duas chaves
para o entendimento do problema da corrupção: de um lado
a transparência das ações do governo associada a um processo
correspondente de controle público; de outro, um processo comum
de discussão entre os indivíduos privados sobre o que é o público.
O espaço público se articula com o interesse público. O interesse
é um conceito essencialmente contestado nas sociedades contem-
porâneas devido ao fato básico do pluralismo de interesses e de
valores. No entanto, a pluralidade de interesses e valores não
pode levar à ideia de que o Estado ou a comunidade política
não deva regular tais interesses. Nesse sentido, a constituição
da identidade pública é um processo fundamental, e quando
esta identidade não é clara, a sua apropriação privada torna-se
possível. Assim, cabe tanto a preocupação com o tema do interesse
público em sua generalidade quanto a forma como ele repercutiu
na história brasileira.

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Na segunda seção estão reunidos estudos que dizem respeito
à história brasileira e à cultura. No que se refere à história da
corrupção no Brasil, os organizadores fizeram a opção por um
conjunto pequeno, mas significativo, de ensaios e verbetes. Os
ensaios sobre Brasil colonial, Brasil imperial e Brasil repu-
blicano têm o objetivo de dar uma perspectiva histórica sobre
como a corrupção emergiu e foi tratada ou ignorada em todos
estes períodos. Essa subseção se articula com uma sobre corrupção
e cultura no Brasil. O objetivo delas não é o de naturalizar a
corrupção no Brasil mostrando sua presença constante na his-
tória e na cultura do país. Pelo contrário, trata-se de associar
a presença da corrupção com a sua crítica, tal como ela aprece
no ensaio sobre Machado de Assis. Os estudiosos da formação
da identidade nacional já analisaram a força e a presença da
literatura no nosso imaginário como país, exercendo através de
todo o século 19 e parte do século 20 uma função civilizatória,
expressiva e criativa. A partir de um certo período do século
passado e, cada vez mais, foi em torno principalmente à música
popular brasileira, em suas várias tradições, que se constituiu
um sentimento comum de nação. No Brasil contemporâneo,
é para todos evidente a influência, por exemplo, das novelas
televisivas. Assim, seja formulando tipos como o do malandro
ou do político corrupto, seja tematizando situações como a do
favor oficial ou da impunidade, através da ironia ou protesto,
do chiste e do ridículo, tais repertórios artísticos inserem-se em
um éthos de formação republicano da consciência dos cidadãos.
Trata-se também de associar o combate à corrupção com a cria-
ção de um repertório institucional capaz de coibi-la, combatê-la
e punir tanto os agentes públicos quanto os agentes privados
que a praticam. é baseado nessa visão que organizamos uma
última seção de ensaios e verbetes que tratam do controle e do
combate à corrupção.
Nessa última seção aparecem as análises de temas, problemas
de atualidade e instituições que são imprescindíveis no com-
bate à corrupção. Ensaios sobre o Ministério Público, tribunais

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de conta, comissões parlamentares de inquérito, controle externo,
controle Interno, correição e quarentena oferecem ao leitor uma
compreensão do marco institucional de combate à corrupção
existente no país. O objetivo da seção é fornecer informação ao
leitor sobre a progressiva formação de uma institucionalidade de
combate à corrupção no Brasil, que trilhou um longo caminho
nesse sentido. Certamente, o país avançou em questões-chave no
que diz respeito à punição de funcionários públicos e de indiví-
duos privados a eles associados em diversos casos de corrupção
e de transgressão da fronteira entre o público e o privado.
Não temos nenhuma dúvida de que, sob o ponto de vista do
tratamento institucional da corrupção, o país passou por avanços
significativos. No entanto, do ponto de vista da percepção do
cidadão, o Brasil enfrenta um dilema: quanto mais a corrupção
é combatida, mais ela é noticiada, e quanto mais ela é noticiada,
maior é a sua percepção. Do ponto de vista do cidadão, o com-
bate à corrupção gera a aparência de uma maior presença desta
na vida administrativa do país. O objetivo deste livro é oferecer
ao leitor um instrumental capaz de situá-lo no longo percurso
de combate à corrupção nas democracias ocidentais e no Brasil.
Esperamos que cada leitor se aproprie dele a partir da plurali-
dade de perspectivas inerente a um fenômeno que desperta mais
paixões que qualquer outro na política brasileira contemporânea.

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Seção I
tEoria polítiCa
E Corrupção
AutoreS
Sérgio CardoSo

platão E ariStótElES

Entre os pensadores da Grécia antiga, a política, como


sabemos, refere-se à vida partilhada por muitos no interior de
uma polis, cujas práticas se organizam segundo “formas” ou
regimes de governo, mediante os quais a tendência natural dos
homens à agregação se efetiva e dura. Impelidos, de início, à vida
associativa por suas carências – pela impossibilidade de garantir
solitariamente a sua sobrevivência e pela necessidade da coope-
ração –, os homens alcançam o patamar da ordem propriamente
política ao se verem naturalmente movidos pela aspiração a
uma vida em comum plena, superior a todos os outros modos
de vida e orientada por um princípio regulador último das ações
humanas: seja um Bem soberano, imutável e transcendente (em
vista do qual se unificam e ordenam as relações funcionais de
dependência que constituem a polis), como no caso de Platão,
seja a aspiração ética suprema pela felicidade, a vida boa de
cada um ou o viver o melhor possível, segundo o padrão da
excelência, como em Aristóteles.
No entanto, se a ordem finalizada da natureza põe os homens
no caminho da associação política, a realização de seu comando não
prescinde da colaboração e intervenção deliberada dos próprios
homens. Eles são capazes (num mundo em que o cumprimento
destes fins enfrenta a resistência da matéria e da “causalidade
errante”, o acaso) de fazer prevalecer a razão de sua natureza
ou então mostram-se impotentes para afirmá-la, em função
do obstáculo das paixões ou mesmo de sua incapacidade para
encontrar – no mundo turvo das coisas contingentes – os meios
adequados para sustentá-la. é a consideração desses meios pelos
quais a associação se realiza que nos remete, pois, à questão das
formas possíveis de governo, visto que é através de seu comando
(arkhe) que a cidade se produz, se exprime e age como um todo,
que ela existe, enfim, como verdadeira comunidade. Por isso,
para os pensadores antigos, a ciência prática da política gira
quase exclusivamente em torno das “constituições” ou regimes de
governo – examina suas aptidões para alcançar os fins da cidade,
seus desempenhos e méritos comparados e busca o “melhor
regime”. Desse modo, é no quadro dessas investigações consti-
tucionais que se coloca a questão da duração e da corrupção das
associações políticas.
Firma-se bastante cedo na cultura helênica a ideia de que há
três caminhos possíveis, ou mesmo padrões, para a constituição
do governo das cidades: o de um comando monárquico, o de
um conselho de nobres ou anciões e, por fim, o de um governo
pelos próprios cidadãos, os homens portadores de armas ou
mesmo a multidão. Estas possibilidades – que logo serão forma-
lizadas em termos do número dos governantes ou da extensão do
poder soberano (que seria conferido a um, alguns ou a muitos) –
já delineiam no século 6 a.C., como se verifica pelas Histórias de
Heródoto, o arcabouço de uma teoria das formas constitucionais
(monarquia, aristocracia e democracia, com suas virtudes próprias
e suas realizações retas ou desviantes) que irá balizar o terreno
da reflexão política daí por diante. A força desse legado aparece
claramente na obra de Aristóteles. Suas investigações assumem
com naturalidade a classificação tradicional como ponto de par-
tida para sua definição dos regimes (politeiai): “Visto que”, diz
ele, “a constituição e o governo são o mesmo e que um governo
é o que é soberano nas cidades, é necessário que seja soberano
ou um só, ou poucos, ou um grande número”.1
Podemos nos dispensar de lembrar o enraizamento histórico
destsa doutrina dos regimes que autores como V. Ehrenberg,
M. Finley, J.-P. Vernant, P. Vidal-Naquet dissecaram com

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maestria. Basta-nos aqui assinalar o que há nela de inédito, e
mesmo surpreendente: a inesperada admissão do povo (que, de
imediato, parece representar apenas a contraparte natural do
comando, o objeto de sua atividade) no rol das forças concernidas
com as questões do governo, e ainda a ideia mesma de um regime
“democrático”. Assim, podemos lembrar que a entrada do povo
na cena do poder começa a balizar-se a partir do momento em
que, pelo século 7 a.C., em função de grandes transformações
econômicas ocorridas em toda a Hélade, sentindo-se destituída de
suas condições tradicionais de vida (privada, sobretudo, do acesso
à terra, cada vez mais tomada pelos latifúndios exportadores de
oliva e vinho, oprimida por dívidas e ameaçada por obrigações
insuportáveis), a massa empobrecida começa a protestar contra
a insensibilidade e a arrogância dos ricos (como testemunha,
por exemplo, a poesia de Hesíodo) e a exigir o levantamento
de barreiras legais contra a ambição e a prepotência destes poucos
(oligoi). Verificamos, então, que o demos, o povo, entra ruido-
samente em cena como uma força negativa, uma potência de
oposição e resistência, que as reformas de Sólon (em 594 a.C.)
buscarão neutralizar e acalmar, oferecendo aos destituídos
o escudo da lei e uma parcela de autoridade, capaz de frear e
equilibrar os excessos dos grandes. é certo que o legislador
entende que é o mérito que deve presidir a distribuição das honras
públicas (que ele repartirá segundo classificações censitárias);
mas ele entende também que a preponderância dos melhores
(aristoi) sobre os piores deva ocorrer sem excessos. “Dei ao
povo honras suficientes; (...) aos grandes, fiz de modo a evitar-
-lhes toda desonra: levantei-me e lhes proporcionei, a um lado
e a outro, um escudo resistente, de tal maneira que não é mais
permitido a um oprimir o outro”, diz o poema que a tradição
atribui ao próprio Sólon.
Esboçam-se, pois, nesse momento, noções fundamentais da
política antiga relativas à compreensão do fenômeno da cor-
rupção ou da degradação da ordem constitucional das cidades,
o comprometimento da sua necessária concórdia. Em primeiro

23
lugar, a ideia de que a vida das cidades está submetida a uma
tensão permanente entre forças opostas. De um lado, a atração
agregadora da justiça que, figurada nas leis, promove a associação
a que os homens estão naturalmente impelidos. De outro, a
pulsão particularista e desagregadora das paixões que, aqui, se
desdobra em duas figuras fundamentais: o desejo desenfreado
de bens (riquezas) e de mando (honras) da parte de alguns – a
cupidez que move as oligarquias – e o desejo perverso de liber-
dade, de independência, de viver a vida sem obrigações e
constrangimentos, em segurança, como bem entender – aquela
pulsão maximamente desagregadora que, em Platão, estofará
as democracias e, concentrada em um só, as tiranias.
é o próprio Platão, na República, que produzirá o quadro
mais acabado e refinado da atuação desses princípios de desa-
gregação das comunidades humanas. A partir da figura de seu
regime paradigmático – o da polis justa, a kallipolis governada
pelo filósofo –, compõe, por substituições progressivas dos tipos
de caráter que prevalecem nas diversas formas de governo de
uma cidade, uma luminosa genealogia dos regimes degradados,
oferecendo, assim, uma grade heurística completa para a identi-
ficação da natureza e avaliação moral dos casos efetivamente
observados. A primeira dessas formas é o governo dos homens
de honra – o regime timocrático –, o comando dos “guardiões”,
dos soldados, aquelas almas dominadas pelos ímpetos defen-
sivos da irascibilidade. Pois suas pulsões, ao se verem privadas
da direção do filósofo, deixam de orientar-se para o interesse
geral, a defesa e a glória da cidade, passando a reclamar honras
de natureza pessoal e privada, que introduzem na polis o orgulho
e a violência, cindindo sua unidade harmoniosa e dividindo-a
em castas de dirigentes nobres e dirigidos ignóbeis. Essa aspi-
ração pelas honras privadas, sugere Platão, carregará consigo
para o âmbito do governo todas as motivações dos interesses
particulares, a propriedade (até aí comum entre os guardiões) e
o gosto das riquezas, transformando, assim, paulatinamente, o
regime timocrático em um regime oligárquico – o segundo na

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ordem da degradação –, o governo dos ricos, dominados pelos
apetites e o éthos da acumulação. A avidez de riquezas da classe
dirigente desenha, então, o perfil moral da cidade, que passa a
distribuir suas honras públicas por distinções e privilégios censi-
tários, a valorizar a atividade mercantil e a operosidade; mas, ao
final, como se sabe, as riquezas acabam por produzir um modo
de vida voluptuoso e ocioso, tornando, aos poucos, os homens
dissipadores e inativos, inteiramente subjugados pela obsessão do
prazer. Será essa passagem progressiva e insidiosa da cultura
da acumulação e da riqueza para a hegemonia perdulária do
prazer – que desdenha a posse e dissipa bens – que, ao lado da
equalização perversa das condições (fomentada pelo ócio dos
pobres, destituídos de suas condições de trabalho, e o dos ricos,
tornados inativos pela abundância e virtualmente empobrecidos
pela flutuação das riquezas e a transitoriedade das fortunas), levará
ao regime democrático, o regime do nivelamento, do desprezo
e ressentimento da maioria pobre pelos ricos e por qualquer auto-
ridade. Imperam agora, sem freios, os ímpetos do prazer (que
abomina todo limite e todo governo) e a disposição da massa
para levar sua vida como bem entender.
Platão é implacável com a democracia. Apresenta-a como o
regime do abuso, da leviandade, da permissividade. Ela se aco-
moda a tudo: ao desinteresse dos cidadãos pelo que é comum,
a instituições de qualquer outro regime, a todos os gêneros de
vida. Mais que um excesso de liberdade, reina nela a licença, em
todos os registros. Ela penetra na vida das famílias e contamina,
segundo diz, mesmo os animais.

O pai se acostuma a tratar o filho como igual e a temer as crianças


(...), que não têm mais respeito nem temor pelos pais, por se julgarem
livres (...) O mestre teme e adula seus alunos e estes zombam de seus
mestres e preceptores. (...) os jovens veem os velhos como iguais e os
agridem, com palavras e atos; os velhos, por seu lado, para agradar os
jovens, fazem-se debochados e ridículos. (...) os animais parecem-se com
seus donos; e, assim, veem-se cavalos e asnos, acostumados a passear

25
livres e soberbos, empurrar pelas ruas os transeuntes que não lhes
cedem passagem.2

Este reinado do desrespeito, do arbítrio e da desordem advém,


como se vê, do nivelamento das condições, de uma igualdade
indiscriminada, que decorre, por sua vez, da repulsa a toda autori-
dade, do desejo perverso de independência, de querer viver cada
um a seu bel-prazer. Segundo Platão, o homem democrático é
individualista e politicamente “voluntarista”, pois promove a
vontade momentânea e caprichosa do povo (aglutinada pela
adulação dos demagogos) ao lugar do Bem soberano, a fonte
da justiça eterna – do que vem o caráter arbitrário e instável das
leis nas democracias.
Por essa descrição desoladora do“governo de muitos”, podemos
aquilatar o peso conferido pelo filósofo à figura do povo (quando
deixado a si mesmo, sem a direção de um princípio integrador)
nos processos de corrupção. Pois, para ele, podemos verificar, o
humor popular não é mais apenas o da oposição à opressão, o
da recusa de um comando comprometido exclusivamente com
os interesses de alguns, de uma parte da cidade (a negação que
se refrata na reivindicação de justiça e na busca da proteção
das leis, como ocorre nas reformas de Sólon); manifesta-se
nele o desejo perverso de viver sem leis, ou acima das leis, sem
ser limitado por nada. Em outras palavras: Platão não vê mais
no povo um princípio de negação determinada, de oposição à
particularidade dos interesses; ele radicaliza sua negatividade:
compreende-a como indeterminada e politicamente improdutiva,
como dissipação anárquica. Dissolve-se nela todo vínculo com
a totalidade, toda relação com a lei. Por isso, com a hegemonia
popular, a cidade perece, ou antes, apodrece, transformando-se
em uma massa informe de singularidades errantes, fermentada
pela embriaguez do prazer. Deste extremo da corrupção, a tira-
nia não é senão a expressão final, a concentração especular da
cidade corrompida em um indivíduo, que encarna e figura seu
delírio e a solidão produzida pela sua desagregação.

26
é verdade, entretanto, que não é com esse modelo especu-
lativo (desenhado, como já indicamos, para a identificação e
avaliação dos regimes degradados possíveis) que Platão opera
quando assume a perspectiva prática do legislador, quando se
põe o problema de dar a homens reais leis capazes de moderar
suas inclinações naturais – a irascibilidade e os apetites – e de
dirigi-las para a realização da integração política. Por isso, o
diálogo As leis (em que o motor do debate é a elaboração de um
código de leis para uma colônia a ser fundada) aponta para um
paradigma constitucional tão diverso daquele de A República.
Aí, a prudência do fundador recomendará sobretudo evitar o
excesso de autoridade, o perigo associado à monarquia, e o
excesso de liberdade, próprio das democracias; pois a ambição
de glória e honras públicas – o desejo de poder – deixada a si
mesma desanda em opressão e tirania, e a avidez dos apetites
– com sua reivindicação conexa de liberdade –, quando desem-
baraçada, conduz à licença e ao desprezo da autoridade. Assim,
monarquia e democracia surgem aqui como regimes extremos
(tendentes, ambos, a levar à dissolução da cidade) cujos desvios
devem ser atenuados por fórmulas constitucionais intermediárias,
por um regime misto, em que as inclinações próprias de cada um
mutuamente se equilibrem, contendo seus excessos e permitindo
à cidade resistir ao tempo inevitável da corrupção.
Essa ideia de um “governo misto”, pensado como um expe-
diente anticorrupção e de prolongamento da duração do com-
posto político, já estava presente na experiência constitucional
das poleis (como mostram as instituições de Esparta, elogiadas
por Platão), e permanecerão, depois, como o núcleo mais resis-
tente da tradição do nosso pensamento político. Ela reaparece
em Aristóteles, Políbio e Cícero e, através deles, projeta-se em
uma longa linhagem de reflexão que chega até nós, ainda que
em formulações e contextos intelectuais bastante diversos.
Aristóteles, no contexto clássico que aqui examinamos, nos
dá a medida desta diversidade. Sem abandonar a perspectiva
metafísica sobre a finitude e a contingência radical das coisas

27
terrenas, sem desconsiderar a psicologia das inclinações naturais
que alicerçam a vida dos homens, circunscreve a questão política
das formas de governo em um registro de investigação bem
preciso: o domínio das deliberações e decisões relativas ao que
está em nosso poder – “o que depende de nós” –, o exercício das
escolhas preferenciais da razão prática. Por isso não define mais
os regimes, como faz Platão, pela pulsão que neles prevalece
(o desejo de honras, na timocracia; o de bens, nas oligarquias; o
de prazer, nas democracias), e que os refere, imediatamente,
ao horizonte da corrupção e decomposição final do todo
político. Ao contrário: enquanto produzidos por deliberações
humanas, os regimes, para Aristóteles, fundam-se, antes, em
representações parciais ou compreensões equivocadas quanto
à natureza da justiça, quanto às disposições mais favoráveis à
efetivação e duração da associação política.
Toda ação e toda decisão – lembra o filósofo – tendem para
o bem (“pois é em vista do que lhes parece um bem que todos
os homens fazem o que fazem”),3 um bem certamente realizável,
ao nosso alcance, acomodado à contingência e variabilidade
das coisas terrenas; não um bem absoluto, medido por uma
inteligência divina. Ora, assim se passa também no caso das
escolhas possíveis sobre a organização dos poderes de governo:
os partidários dos diversos regimes visam em princípio ao bem
da cidade, sua felicidade; porém, como em todos os assuntos
humanos, contingentes, põem-se em controvérsias e litígios sobre
os meios de sua realização, sobre a natureza da justiça. Uns, por
exemplo, os pobres, partidários da democracia, veem a justiça na
igual repartição dos poderes, trazendo como critério a igual
liberdade de todos os cidadãos; outros, os ricos, partidários da
oligarquia, a projetam na repartição desigual, segundo a capacidade
e o mérito, materializados nas riquezas. Vem, assim, daí – e não
mais de um destino metafísico e trágico – a instabilidade consti-
tutiva dos regimes observados nas cidades. Sua causa fundamental,
no entender de Aristóteles, encontra-se no fato de “uma das
partes da cidade não obter na constituição uma participação

28
compatível com sua concepção da justiça”.4 A cada vez em que
uma destas partes (para ficarmos naquelas que polarizam efetiva-
mente a vida das poleis) consegue radicalizar institucionalmente
suas pretensões, tende a intensificar a insatisfação da outra e
a provocar sedições, fazendo o regime aproximar-se de seu fim
e reatar o ciclo ininterrupto das revoluções políticas.
Como se vê, na perspectiva de Aristóteles, as mudanças de re-
gime não assinalam diretamente apenas o movimento dispersivo
das paixões, a resistência da matéria e o progresso inevitável
da degradação. Divisa-se ainda nelas as marcas de uma ação,
de um movimento produzido também, em alguma medida, pela
busca da justiça (“todos estes regimes têm algo de justo, ainda que
absolutamente falando sejam errôneos”5). No entanto, se atribui
às revoluções uma dimensão propriamente política, o filósofo não
deixa de denunciar o teor “ideológico” – como hoje diríamos –
das representações que as motivam e também a incapacidade dos
homens para dar à sua natural inclinação para a vida associativa
alguma realização possível, escapando, desse modo, mesmo que
temporariamente (neste mundo imperfeito e sempre inacabado
das coisas transitórias), à interminável polarização e oscilação
entre os regimes. O caminho que se impõe é, ainda aqui, o de um
“governo misto”, o de uma forma constitucional que promova
a integração e o equilíbrio entre as pretensões dos dois partidos
fundamentais em que as cidades normalmente veem-se cindidas.
Esse regime foge aos extremos (que produzem as revoluções) e
nutre-se da tensão entre as partes; ele “força” as instituições e as
disposições legais na direção do “justo meio” e “educa” os dois
lados nos compromissos necessários para a integração e duração
da associação política.
Podemos observar então, em Aristóteles, que a corrupção –
que permanece sempre possível – recua para o fundo da cena e
deixa emergir um certo otimismo constitucional, conquistado
perspicazmente pela transposição da reflexão política para o terreno
da ação (o espaço das escolhas humanas refletidas, dirigidas para
os futuros possíveis), o mundo próprio dos homens, avesso às

29
pretensões transcendentes da metafísica do necessário e a todo
saber de caráter divino. é porque as coisas temporais estão
permeadas pela indeterminação e o acaso e irremediavelmente
sujeitas à corrupção e à morte que se torna possível para o homem
introduzir nessa matéria evanescente, contingente, um pouco de
razão e unidade, criando um mundo à sua imagem e semelhança
– um mundo certamente frágil, sempre inacabado, mas capaz de
lhe dar o gosto de uma vida ativa e produtiva, segundo os padrões
humanos da excelência, e ainda o prazer da comunicação e da
convivência com seus pares, a experiência da amizade, pessoal
e política, vedada aos brutos, e também aos deuses.

NOTAS
1
ARISTóTELES. Política, 1279a 28-29.
2
PLATÃO. A República, 562e-563c.
3
ARISTóTELES. Política, 1252a 3.
4
ARISTóTELES. Política, 1301a 35.
5
ARISTóTELES. Política, 1301a 34.

REFERÊNCIAS
ARISTOTE. Les politiques. Paris: G. F-Flammarion, 1993.
FINLEY, M. I. Política no Mundo Antigo. Lisboa: Edições 70, 1992.
FINLEY, M. I. Democracia Antiga e Moderna. São Paulo: Graal, 1988.
PLATÃO. A República. Belém: EDUFPA, 2000.
PLATÃO. As leis. Belém: EDUFPA, 1980.
VERNANT, J.-P. As origens do pensamento grego. São Paulo: Difel, 1972.
WOLFF, F. Aristóteles e a política. São Paulo: Discurso Editorial, 1999.

30
Helton adverSe

maquiavEl

Em uma primeira abordagem, podemos tomar a corrupção em


Maquiavel como um problema cosmológico, isto é, concernente
ao mundo. Nesse sentido, a corrupção afeta tudo o que existe,
sendo o fim inevitável para o qual os seres, independentemente
de suas naturezas particulares, se destinam. O que nos interessa,
contudo, é o problema da corrupção política, isto é, a degradação
e destruição do corpo político. Dentre os corpos políticos, vamos
nos debruçar sobre as repúblicas. Uma vez especificado nosso
objeto de estudo, é preciso examinar suas causas e remédios
específicos. Recorrer a uma “lei geral da natureza”, exatamente
por sua aplicação indiscriminada a todo o existente, é de pequeno
auxílio para a compreensão de nosso problema. A circunscrição
que fazemos exige que associemos a corrupção do corpo político
às ações dos homens que o constroem.
Vamos iniciar nossas considerações com uma passagem do
capítulo 3 de O príncipe:

Os romanos fizeram nesses casos [o domínio das províncias conquis-


tadas] aquilo que todos os príncipes sábios deveriam fazer: estes
devem não somente se proteger dos distúrbios presentes, mas também
dos futuros e colocar toda sua indústria em impedi-los. Porque se os
vemos de longe e de antemão, são remediados facilmente, mas esperan-
do que eles se aproximem de você, o medicamento não chega a tempo
porque a doença tornou-se incurável. E acontece aí aquilo que os médicos
dizem do tísico: que no princípio seu mal é fácil de curar e difícil de
conhecer, mas com o progresso do tempo, não o tendo no princípio
conhecido nem medicado, torna-se fácil de conhecer e difícil de curar.1

Antecipando à objeção de que aqui Maquiavel não está fa-


lando da corrupção, lembramos que ele estende a aplicação
desse preceito para os problemas do Estado em geral.2
Essas ponderações gerais acerca das perturbações que acometem
um Estado e seus medicamentos constituem o quadro em que
podemos inserir o problema da corrupção. Isso significa que
também para ela deverá valer o preceito de que a prevenção
é melhor do que a cura. Como veremos, Maquiavel vai notar
em diversas ocasiões que a cura para um Estado corrompido
é extremamente difícil, senão impossível, de modo que o mais
prudente é investir nossos esforços em um trabalho profilático.
Para a profilaxia ser eficaz é preciso conhecer a natureza do mal
a combater, e por isso torna-se necessário dirigir nossa atenção
agora para três capítulos do primeiro livro dos Discursos sobre
a primeira década de Tito Lívio.
Esses capítulos (16, 17 e 18) parecem fechar um conjunto de
reflexões acerca dos fundamentos e da corrupção da república.
Nos capítulos anteriores, Maquiavel, tomando Roma como
modelo, havia mostrado que a fundação da liberdade em uma
república está ligada a uma ordenação dos desejos conflitantes
que estruturam a vida política. O quarto capítulo apresenta a
famosa tese segundo a qual os conflitos entre a plebe e o senado
de Roma estão na origem de sua liberdade e potência. Esses “tu-
multos”, nos quais dois “humores” inconciliáveis se enfrentam
(o desejo de dominar – que caracteriza os “grandes” – e o desejo
de não ser dominado, próprio do “povo”),3 engendraram as leis
e as ordenações (instituições) responsáveis pela saúde e vitalidade
do corpo político romano. No estabelecimento desses ordena-
mentos, o povo aparece para Maquiavel como o guardião da
liberdade, uma vez que seu desejo visa precisamente à conservação
desta. Isso significa que a manutenção de uma vida política livre
requer uma constante vigilância a ser exercida pela plebe para

32
frear as ambições dos grandes cujo apetite de dominar é insa-
ciável. As leis e as instituições resultantes desse enfrentamento
terão assim de cumprir uma dupla tarefa: por um lado, limitar o
desejo dos grandes e ordená-lo de modo a ser produtivo para a
república; por outro, conferir ao povo um meio de desafogar seu
humor e assegurar que sua virtù não se arrefeça. Isso nos permite
adiantar que a corrupção, para Maquiavel, é um problema que
deve sempre ser referido ao povo porque cabe a ele defender a
liberdade. Certamente, os grandes podem ser corruptos (o que
não significa que o sejam sempre), mas seu desejo já é corrupto
por natureza, pois querem dominar.
A corrupção pode afetar um dos agentes políticos de uma
cidade (o povo, os grandes ou o príncipe) ou todos eles. Há
casos em que a corrupção afeta somente o príncipe, estando o
povo ainda imune ao mal, como ocorreu em Roma na época
dos tarquínios. Em outras ocasiões, todo o corpo está podre e a
probabilidade de cura é bastante pequena. Mas em que consiste
a corrupção política? Via de regra, Maquiavel parece adotar o
termo em uma acepção tradicional, isto é, entendendo-o como
a escolha do bem privado em detrimento do bem comum. Mais
frequentemente, porém, a corrupção é o desrespeito às leis e o
desprezo pelas instituições cujo efeito é nefasto para qualquer
Estado. O termo está associado também à falta de habilidade e
de visão políticas, de espírito cívico, referindo-se também à falta
de energia e de disposição para a ação. Aliás, é com este último
sentido que o termo aparece no início do capítulo 16 do livro
I dos Discursos. Maquiavel compara ali o povo a um animal
“bruto e feroz” que, por ser mantido preso e alimentado por
muito tempo, não é mais capaz de se orientar e assegurar-se de
si. Uma vez posto em liberdade, esse animal torna-se facilmente
presa do primeiro que queira dele se apoderar.4 O problema que
esse capítulo visa examinar é o seguinte: um povo acostumado a
viver sob o poder de um príncipe muito dificilmente pode con-
servar sua liberdade caso esta, por algum acidente, lhe seja dada.
No entanto, é somente no capítulo seguinte que Maquiavel irá

33
se deter sobre a questão, restringindo-se a discorrer, no capítulo
16, sobre os procedimentos que deve adotar aquele que deseja
tornar-se “tirano em sua pátria”.
O capítulo 17 vai retomar o problema colocando a questão
de outra maneira: quando o governante de uma cidade é deposto
devido ao extremo grau de corrupção que o afetou, ela pode se
manter livre? A resposta vai depender do grau de corrupção do
povo. Se o mal se espalhou pelos “membros” do corpo político, a
perda da liberdade momentânea é certa. Caso tenha se restringido
à “cabeça”, então as expectativas para a fundação de uma vida
política republicana são melhores.5 Maquiavel vai então dirigir
sua atenção para a corrupção do povo, aquilo que nessa ocasião
denomina de “matéria” do Estado.
Como havia ficado claro no capítulo 16, a corrupção do povo
encontra sua origem na corrupção de seus governantes, tese
reforçada no capítulo 29 do livro III.6 Em termos institucionais,
isso significa que o fato de os governantes desrespeitarem com
frequência as leis termina por induzir o mesmo comportamento
(modo) no povo, fazendo-o perder a virtude cívica (virtù). Caso
Roma tivesse suportado por mais “duas ou três gerações”7 os
governos de seus reis corrompidos, teria sido impossível instaurar
um regime de liberdade duradouro, e foi por isso que os tumultos,
que se seguiram pouco após a deposição de seu rei, resultaram na
liberdade. Caso contrário, eles teriam causado danos, pois origi-
nariam a divisão da cidade em partidos, ou melhor, em seitas. Essa
espécie de divisão política impede que o corpo político encontre
unidade e estabilidade, tornando-o suscetível às invasões estrangei-
ras ou à tomada do poder por um tirano. A solução possível para
a matéria corrompida é a virtù de um grande homem, alguém
capaz de servir-se de meios extraordinários para reintroduzir boas
ordens e fazer com que o povo as obedeça. Maquiavel reconhece,
contudo, que dificilmente pode-se recorrer a tal expediente, o
que fica mais claro no capítulo seguinte.
Seu objetivo é mais uma vez mostrar a dificuldade de se reor-
denar uma cidade livre corrompida, mas desconsiderando um dos

34
elementos que entrava na formulação do problema nos capítulos
anteriores (a liberdade adquirida). Ele parte agora de uma cidade
livre e interroga quais são suas possibilidades de conservação
da liberdade quando é atingida pela corrupção. Maquiavel
enfrenta a questão por um outro viés: eliminando a liberação
do jugo de um príncipe, pode agora tomar a corrupção como
um fator interno à própria república. O elemento corrompido
que merece a atenção de Maquiavel continua sendo o povo. O
que o corrompe, porém, não é nenhum agente político, mas a
própria fortuna, ou melhor, a boa fortuna (a prosperidade). Um
povo que tem êxito em suas conquistas acaba por relaxar e
permitir-se degradar. A corrupção se refere primordialmente aos
costumes do povo que, uma vez corrompidos, fazem com que as
boas ordenações (as boas instituições) não produzam mais bons
efeitos e as leis não sejam mais eficazes. Inevitavelmente, essa
inadequação acontece porque os costumes, devido a sua própria
natureza, estão sempre inclinados a se alterar, como se alteram
também os homens. Os costumes são o que há de mais maleável,
de mais flexível e constituem, ao mesmo tempo, o elemento mais
modelável e o que não pode receber uma modelagem definitiva.
As ordenações, por sua vez, são necessariamente constantes e
estabelecidas para resistir aos efeitos do tempo. Sua estabili-
dade, contudo, transforma-se em sua deficiência mais grave. Para
Maquiavel, “as ordenações e as leis criadas em uma república
nascente, quando os homens ainda eram bons, mais tarde deixam
de convir quando eles se tornam maus”.8 Essa inadequação entre
“forma e matéria” é já qualificada por Maquiavel como destrui-
dora da liberdade porque as alterações dos costumes seguem em
direção ao mal. Não respondendo mais às necessidades da vida
livre, as ordenações se tornam instrumentos para a dominação,
como vemos com o exemplo da eleição dos cônsules em Roma,
inicialmente orientada pela virtù e posteriormente pelo poder
privado. Chegado a esse ponto, o corpo político não tem mais
condições de conservar sua liberdade.

35
Na sequência desse capítulo, Maquiavel examinará a possi-
bilidade de reordenação da república e sua recondução à vida
livre. Uma vez que o povo está corrompido parece não restar
alternativa, a não ser a refundação do estado ou a reforma das
instituições por um único homem dotado de incomparável virtù.
A primeira dificuldade se encontra no fato de que raramente
uma cidade corrompida pode engendrar um homem bom. Ad-
mitindo, porém, essa possibilidade, se tal cidadão virtuoso se
dispuser a imprimir as reformas necessárias, irá encontrar grande
resistência: se tentar reformar aos poucos, antes que o edifício
desabe, não será capaz de persuadir os demais da necessidade
da mudança porque “os homens, acostumados a viver de um
modo, não querem mudá-lo”.9 A outra via não promete melhores
resultados: reformar de uma só vez, recorrendo a meios extra-
ordinários “como a violência e as armas”, tornando-se príncipe
em sua cidade, é afazer de um homem mau. Apontando essa
contradição lógica e essa impossibilidade prática, Maquiavel
nos leva a dizer adeus a esse personagem que poderia restituir à
república sua liberdade perdida. Corrobora ainda esse ponto de
vista o fato de Maquiavel saber muito bem que “homens bons”,
se querem fazer algo politicamente relevante, têm de aprender
a “entrar no mal”. Por que esse princípio fundamental da vida
política parece encontrar restrição na república? Porque fazer o
mal para salvar a república acaba por acentuar a própria cor-
rupção, o que fica claro se formos ao capítulo 34 desse mesmo
livro I. Tratando da instituição da ditadura, Maquiavel afirma
que ela, aparentemente um mal, foi benéfica a Roma. Mas apenas
beneficiou porque permaneceu dentro das ordenações públicas,
isto é, a ditadura não consistia em uma tomada da autoridade
por vias extraordinárias. Quando isso acontece, diz Maquiavel,
o mal feito, mesmo se visa ao bem, resulta em grande prejuízo
para a liberdade, porque o desrespeito às leis e às instituições
da parte daqueles que detêm autoridade corrompe os costumes
do povo (neste capítulo, o termo povo parece se referir aos cida-
dãos em geral) ao habituá-lo às vias extraordinárias. Maquiavel

36
parece sugerir então que a solução para o problema se encontra
nas próprias leis e ordenações: são elas que devem evitar a cor-
rupção da matéria, tema que é retomado no capítulo 1 do livro
III dos Discursos.
As repúblicas, consideradas aí como “corpos mistos”, podem
assegurar sua longevidade se suas ordenações as conduzirem
de tempos em tempos a seus princípios, que sempre contêm
em si “alguma bondade”, e, por esse expediente, elas recuperam
“seu prestígio e vigor iniciais”.10 A recondução ao início pode
acontecer ou por “acontecimento extrínseco” (como a luta contra
um invasor) ou por “prudência intrínseca”.11 No segundo caso,
ela provém “de alguma lei que reveja a conduta dos homens
pertencentes àquele corpo, ou de algum homem bom que surja
entre eles e que, com seus exemplos e suas obras virtuosas,
produza o mesmo efeito de uma ordenação”.12 Em ambos os
casos, o resultado a que se chega é o mesmo: retomada das
ordenações, manutenção da justiça e da religiosidade, reforço
dos bons costumes e da virtù entre os cidadãos.
Mas quando a renovação se dá pelos acontecimentos externos o
benefício resulta da fortuna. E Maquiavel não se cansa de lembrar
que não é prudente contar com esta, que o homem de verdadeira
virtù (assim como o povo dotado de virtù) deve fazer frente a ela
(o que ele chama de riscontro) para sempre obter êxito. Resta
então a medida profilática das leis e instituições para evitar a
corrupção, juntamente com a virtù de um homem. Que leis e
ordenações são essas? Os exemplos de Maquiavel: instituições
como os tribunos da plebe, os censores e execuções periódicas
(não devem ultrapassar 10 anos) dos traidores da pátria. Além
disso, a religião desempenha um papel fundamental para a conser-
vação da “civilidade”, mantendo os homens obedientes às leis e
reforçando os laços políticos.
E os homens de virtù? Maquiavel não estaria voltando atrás
e reintroduzindo a figura do salvador da pátria? Os homens de
virtù podem renovar na medida em que servem de exemplos,
ou seja, eles produzem “o mesmo efeito de uma ordenação”.13

37
Os exemplos de virtude cívica educam os homens à proporção
que dão vida a uma ordenação e colocam à mostra a vilania
daqueles que se servem da autoridade para transgredi-la. São
os sacrifícios, as abnegações dos cidadãos que tomam a coisa
pública como um bem comum que inspiram nos demais o desejo
de conservar a liberdade.

NOTAS
1
MAQUIAVEL. O príncipe, p. 12 (tradução modificada). A edição italiana tomada
como referência é a organizada por M. Martelli, Tutte le opere.
2
MAQUIAVEL. O príncipe.
3
Este termo é utilizado por Maquiavel em duas acepções. A primeira, que ado-
tamos na passagem anterior, denota uma parte da totalidade dos cidadãos, em
Roma, se confundindo com a plebe; a segunda denota a própria totalidade.
Muitas vezes não está claro o significado empregado.
4
MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, p. 64.
5
MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, p. 69.
6
MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, p. 407.
7
MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, p. 69.
8
MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, p. 72 (tradução
modificada).
9
MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, p. 75.
10
MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, p. 305-306.
11
MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, p. 306.
12
MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, p. 307.
13
MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, p. 307.

REFERÊNCIAS
MAQUIAVEL, N. Tutte le opere. Organização de M. Martelli. Florença:
Sansoni, 1972.
MAQUIAVEL, N. O príncipe. Tradução de M. J. Goldwasser. São Paulo:
Martins Fontes, 2004.
MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Tra-
dução de M. F. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

38
Marilena CHaui

ESpinoSa

Espinosa expõe seu pensamento político no Tratado teoló-


gico-político (1672) e no Tratado político (1677). No primeiro,
apresenta os fundamentos da política para demonstrar que a
liberdade de pensamento e de palavra é a condição indispensável
para a paz e a segurança da república; no segundo, investiga
as instituições necessárias aos diferentes regimes políticos para
que os homens possam viver em paz, segurança e liberdade.
O alvo do Tratado teológico-político é a crítica do poder
teológico-político, isto é, uma política nascida da superstição,
subordinada à religião e à ideia da transcendência do poder com
relação aos homens (no caso do poder dos deuses) e à sociedade
(no caso do poder dos reis). O objetivo do Tratado político
é articular liberdade e segurança, esta última definida como
ausência de dúvida quanto ao presente e ao futuro e, portanto,
como ausência de medo. Nas duas obras, Espinosa trata do
problema da corrupção. No Tratado teológico-político, o Estado
está corrompido quando o governo se efetua pela violência do
soberano ao impedir a liberdade dos cidadãos, dominando “os
espíritos e as línguas”, isto é, ao vigiar os corpos – por meio da
força policial e militar – e controlar os pensamentos – por meio
da teologia (hoje, diríamos, da ideologia). No Tratado político, a
corrupção provém da má qualidade das instituições políticas,
incapazes de garantir a segurança dos cidadãos ao permitir
que alguns particulares (Espinosa emprega a palavra privatus)
se apresentem com o direito e o poder para tomar as leis em suas
mãos e colocá-las a serviço de seus próprios interesses, desenca-
deando sedições populares. Nas duas obras, a corrupção não é
atribuída a vícios de governantes e cidadãos, mas às condições
do exercício do poder.
Espinosa dispensa a ideia de contrato, em primeiro lugar, porque
parte da sociabilidade natural, determinada pela ocupação
comunitária de um território, pela cooperação, divisão social
do trabalho e troca dos produtos – a materialidade econômica
funda a sociabilidade – e, em segundo, porque o direito civil
(ou o Estado) não é um acordo para transferir a um outro a
potência natural de cada um ou a supressão do direito natural
dos indivíduos, e sim a expressão positiva do direito natural
coletivo ou da potência popular, uma vez que o filósofo afirma
a identidade entre direito e potência ou entre direito e poder.
Como lemos no Tratado político, o direito natural não é senão
o conjunto das “leis ou regras da Natureza conforme as quais
se fazem todas coisas, ou seja, a própria potência da Natureza”
e por isso “o direito natural de toda a Natureza e, portanto, de
todo indivíduo, se estende até chegar a seu poder”. Donde se
conclui que “tudo quanto cada homem faz em virtude das leis de
sua natureza, o faz com o máximo direito da Natureza, e possui
tanto direito quanto possui de poder”. Em estado de natureza,
tudo o que cada um deseja é-lhe permitido e nada lhe é proibido.
Se, escreve Espinosa no Tratado teológico-político, os homens
vivessem guiados pela razão – cujas regras visam ao que é
verdadeiramente útil para cada um e para todos –, cada um
exerceria o direito natural sem dano para os outros; mas como
são naturalmente atravessados pelas paixões, que ultrapassam
em muito sua potência individual, são contrários uns aos outros
mesmo quando precisariam de auxílio mútuo. A discórdia é, pois,
natural e espontânea, vivendo todos sob o medo da destruição
recíproca. Por isso, de fato, o direito natural é uma abstração,
pois não tem condições de exercer-se: porque todos podem tudo,
ninguém pode nada. Ora, a experiência ensina que com a ajuda
mútua os humanos podem conseguir muito mais facilmente

40
aquilo de que têm necessidade e que somente unindo suas forças
podem evitar os perigos que os ameaçam de todos os lados. Se
a experiência mostra a utilidade da vida em comum, a razão,
por seu turno, demonstra que “as coisas que conduzem à socie-
dade dos homens ou as que fazem com que os homens vivam
em concórdia são úteis; ao contrário, são más as que induzem
à discórdia na Cidade”.
A gênese da política não deve, pois, ser procurada nos ensina-
mentos da razão, mas na condição natural dos homens, naturalmente
passionais e racionais. A paixão pode dividi-los, enquanto a razão
necessariamente os une, de maneira que para chegar à instituição
da política é preciso encontrar um ponto de intersecção entre
ambas. Esse ponto de intersecção é o que Espinosa designa com
o nome de lei natural, igualmente válida para a paixão e para a
razão. No que concerne à paixão, trata-se a lei natural segundo
a qual uma paixão só pode ser vencida por uma outra mais forte
e contrária e que nos abstemos de causar um dano por medo
de receber um dano maior. No que concerne à razão, essa lei é
o que nos faz escolher de dois bens o maior e de dois males o
menor e desejar um bem maior futuro de preferência a um bem
menor presente, e um mal menor presente de preferência a um
mal maior futuro. Graças a essa lei natural, que a um só tempo
rege o jogo das paixões e os cálculos da razão, a vida social,
por meio da cooperação (ou da divisão social do trabalho e de
seus produtos) e das regras tácitas da existência em comum (ou
dos costumes), poderá ser estabelecida como alicerce da insti-
tuição da civitas ou do direito civil (as leis e os ordenamentos
institucionais).
Um indivíduo (humano ou não) é uma integração e diferen-
ciação interna de constituintes, que são potências e forças cujo
aumento ou diminuição dependem das relações mantidas com
forças ou potências externas, de tal maneira que os constituintes
fracos de um indivíduo submetem-se às pressões externas, enquanto
os constituintes fortes não só resistem a elas, mas sobretudo as
vencem. Graças a essa concepção da individualidade, Espinosa

41
pode conceber o conflito como interno ao indivíduo, tanto quanto
externo a ele. Trata-se de um conflito de forças contrárias e de
intensidade variável, que depende dos objetos desejados e da
intensidade do desejo. Cada potência individual é constituída
por intensidades de forças concordantes ou conflitantes e se
relaciona com uma exterioridade (os outros indivíduos) cujas
forças podem concordar ou conflitar com a sua, podendo
cada um fortalecer-se ou enfraquecer-se nessa relação. A ideia
do indivíduo como integração interna de potências e forças que
operam como causa única para produzir um efeito único leva
à ideia de um indivíduo coletivo complexo, a multitudo. Além
disso, a ideia do indivíduo como diferenciação interna dos
constituintes pela diferente intensidade de forças dos compo-
nentes permite compreender que a multitudo é constituída
por diferentes intensidades internas de forças, assim como pela
concordância ou pelo conflito entre elas. A multitudo é o sujeito
político e constitui o corpo político cuja alma é a lei.
A potência da multitudo é o direito natural coletivo que se
constitui como soberano ao exprimir-se sob a forma do direito
civil ou do Estado. Lemos no capítulo III do Tratado político:

O direito da Cidade é definido pela potência da massa (potentia


multitudinis) que é conduzida de algum modo pelo mesmo pensamento
e essa união das mentes não pode ser concebida se a Cidade não visa
realizar aquilo que a razão ensina a todos os homens que é útil esperar (...)
o corpo e a alma do Estado têm um direito medido por sua potência,
como era o caso do direito de Natureza; cada cidadão ou súdito
tem, pois, tanto menos direito quanto mais potência tiver a Cidade e,
consequentemente, segundo o direito civil, nenhum cidadão pode ter
ou possuir alguma coisa senão aquilo que pode reivindicar por um
decreto da Cidade.

Um corpo político visa ao equilíbrio interno das potências


individuais por meio de uma ordenação institucional das forças
que constituem o sujeito coletivo (a multitudo), equilíbrio que

42
é determinado pelo instante inicial de constituição do próprio
corpo político, quando a forma política é definida pela decisão
sobre quem tem o direito ao poder e pelo estabelecimento de
uma proporcionalidade geométrica entre três potências: a dos
indivíduos singulares, a da multitudo e a da soberania, isto é,
entre o direito natural (dos indivíduos singulares e do indivíduo
coletivo) e o direito civil (da soberania). Um indivíduo como
cidadão tem tanto mais direito ou poder quanto mais potente
for o direito civil ou a soberania. Assim, o inimigo principal do
corpo político nunca lhe é exterior, mas interno, qual seja, o direito
natural de um particular que, enquanto particular e movido por
interesses privados, arroga-se o direito de promulgar ou abolir
as leis e ocupar o lugar da soberania. Consequentemente, o
equilíbrio das forças é continuamente rompido pela diminuição
ou pelo aumento da intensidade das forças internas (tanto as dos
cidadãos singulares como as da multitudo e as da soberania), de
sorte que a dinâmica das forças permite pensar a duração de um
corpo político, isto é, tanto os meios de sua conservação como
as causas de sua mudança e as de sua corrupção.
Para que a civitas se institua, é necessário que: 1) a potência
soberana seja inversamente proporcional à potência dos indiví-
duos tomados um a um ou somados, isto é, a potência soberana
– o direito civil – deve ser incomensurável ao poder dos cidadãos
– direito natural – tomados um a um ou somados, pois o direito
civil é o direito natural coletivo ou a potência da multitudo
corporificada no direito civil; e 2) a potência dos governantes
seja inversamente proporcional à dos cidadãos, mas agora em
sentido contrário ao anterior, ou seja, tomados coletivamente, os
cidadãos devem ter mais potência do que o governante, pois o
poder coletivo ou potência e direito da multitudo não se iden-
tificam com ninguém. Em outras palavras, o governante ocupa
o poder soberano, mas não se identifica com a soberania, que
permanece sempre com a multitudo ou os cidadão coletiva-
mente tomados. Há distância necessária entre a potência do
governante e a soberania. E porque a figura do governante não

43
se confunde com a do poder soberano, os detentores do poder
soberano, isto é, os cidadãos enquanto multitudo, têm o poder
para depor o governante, se tiverem forças para isso. A soberania
é intransferível, permanecendo sempre com a multitudo. O que
se distribui é o direito de participação no governo. Assim, o
que distingue os regimes políticos não é a origem do poder (a
origem é sempre a mesma, a multitudo como corpo único e causa
única) nem o número de governantes (pois o governante não é
idêntico à soberania), mas a definição do direito de exercer o
poder por meio do governo.
Dessa maneira, embora mantendo a classificação tradicional
dos regimes políticos, Espinosa pode modificar a compreensão
de cada uma deles, na medida em que sua diferença não se en-
contra no número de ocupantes do poder soberano. Ou seja, a
compreensão dos diferentes regimes ou de cada forma política
tem como medida diferenciadora a maneira como se institui
a distribuição proporcional das potências que a constituem e,
portanto, o lugar que em cada uma delas ocupa a multitudo. Na
monarquia, a totalidade da multitudo está excluída do governo;
na aristocracia, opera a divisão social das classes e uma parte da
multitudo – a plebe – está excluída do governo. Na democracia a
proporcionalidade é perfeita, pois o sujeito fundador (a multitudo)
e o governante (os cidadãos em colegiados e assembleias) são
idênticos, sendo por isso o mais estável, o mais seguro e o mais
livre dos regimes políticos. Na tirania e na anarquia não há corpo
político porque não há res publica.
A estrutura do campo político se oferece originariamente
diferenciada: há o sujeito político soberano – a multitudo; há
o cidadão, que participa do exercício do poder conforme sua
distribuição decidida no momento da instituição, participação
que é seu poder para fazer as leis e participar do governo; há
o governante, que executa o que soberania decide, dando às
decisões a forma da lei positiva ou direito civil; e, finalmente,
há o súdito, que está obrigado a obedecer às decisões do sujeito
político, a respeitar as leis postas pelos cidadãos e a submeter-se

44
aos decretos do governante. Na democracia, todas essas figuras
políticas coincidem e também coincidem sua existência empírica
e sua existência política. Nos demais regimes, essa coincidência
desaparece, uma vez que nem todos são cidadãos, embora todos
sejam súditos e, no momento da instituição, todos tomem parte
no sujeito político. A complexidade de potências e forças do
campo político e da multitudo indica que os conflitos são consti-
tutivos da vida política e que o poder da soberania é proporcional
à sua potência para aceitá-los, trabalhá-los e impor-lhes limites.
Cabe, então, indagar: até onde vai o poder do Estado?
O direito natural dos indivíduos oferece a primeira medida
desse poder. Lemos no Tratado político: “o poder que temos em
vista exercer não deve ser medido apenas pela potência do agente,
mas também pela aptidão que o paciente oferece.”A referência ao
“paciente”, isto é, aos cidadãos, faz com que Espinosa apresente a
potência do Estado pela designação de seu limite, ou seja, daquilo
que escapa necessariamente ao seu poder, isto é, tudo aquilo a
que a natureza humana tem horror e que, se lhe fosse imposto,
desencadearia a fúria e a indignação popular. Em suma, escapa
ao poder do Estado tudo o que o faça odiado pelos cidadãos. Se
o Estado deve temer seus inimigos, precisa instituir-se de maneira
a impedir que encontrem meios para surgir e para justificar-se.
Isso significa, por um lado, que o Estado precisa ser respeitado
e temido pelos cidadãos, mas que só pode sê-lo na medida em que
suas exigências forem proporcionais ao que a multitudo pode
respeitar e temer sem se enfurecer. A soberania só pode existir
sob a condição expressa de não ser odiada porque não é odiosa.
Se o Estado exigir mais ou se exigir menos, se corromperá e dei-
xará de ser um corpo político. A segunda medida do poder do
Estado é dada pela maneira como lida com os conflitos internos:
a Cidade não poderá tornar-se inimiga de si mesma, pois isto a
corromperá e a destruirá, portanto os conflitos que a habitam
só podem ser conflitos dos cidadãos sob a lei e não dos cidadãos
contra a lei. Se a Cidade for capaz de impedir a usurpação da lei
por particulares, terá determinado sua autonomia e seu poder.

45
Podemos, então, compreender onde se localiza a corrupção.
De fato, na abertura do Tratado político, opondo-se à tradição
moralizante e utópica da filosofia política, Espinosa se recusa a
situar a corrupção em vícios morais dos governantes. Declara que
um Estado cuja segurança e liberdade dependam das virtudes
privadas dos governantes está fadado à ruína, pois o essencial se
encontra na qualidade das instituições, obriguem os governantes
(sejam eles movidos por vícios ou virtudes) a governar segundo
o interesse comum, posto pelos ordenamentos institucionais ou
as leis. Vícios e virtudes dos cidadãos não são deles, mas da
Cidade, assim como são dela fraqueza e fortaleza, e, portanto,
os costumes ou a moralidade privada e a pública dependem da
qualidade das instituições.
A tradição do pensamento político sempre ofereceu os remédios
contra a corrupção, isto é, contra os vícios do tirano e os da
plebe sediciosa. Seguindo a tradição, Espinosa também parte à
procura dos remédios. O curioso, porém, é que examina todos os
já propostos e os afasta como incapazes de remediar a corrupção,
de tal maneira que somos forçados a reconhecer que não há
remédio algum. O motivo é simples: a causa instituinte de um
corpo político é imanente a ele e nada mais faz do que desenvolver
temporalmente os efeitos que nela já estavam contidos, de sorte
que, se houver corrupção, esta já se encontrava presente desde
o momento da instituição do Estado. Assim, se numa Cidade o
princípio instituinte for impotente para impedir que um punhado
de particulares se aposse das leis para uso de seus interesses
privados ou se for impotente para suprimir as causas econô-
micas, sociais e políticas da sedição, então, a Cidade ainda não foi
verdadeiramente instituída, pois falta-lhe aquilo que a constitui
como tal: o poder da potência soberana para ser reconhecida
como soberana porque portadora da segurança e da liberdade.
A tirania e a oligarquia, de um lado, e a guerra civil, de outro,
assinalam a fraqueza da Cidade e a necessidade de destruí-la para
que tenha lugar uma nova e verdadeira instituição. Em suma,
apontam para a necessidade de uma revolução.

46
REFERÊNCIAS
AURéLIO, D. P. Introdução. In: ESPINOSA. Tratado teológico-político.
Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1988; São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
BALIBAR, E. Spinoza et la politique. Paris: P.U.F., 1985.
BOVE, L. La stratégie du conatus. Affirmation et résistence chez Spinoza.
Paris: Vrin, 1996.
CHAUI, M. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
ESPINOSA. Spinoza Opera. Edição Gebhardt, Heildeberg, Carl Winters,
1925. 4 v.
ESPINOSA. Tratado teológico-político. Tradução, introdução e notas por
Diogo Pires Aurélio. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1988;
São Paulo: Martins Fontes, 2007.
ESPINOSA. Tratado político. Tradução, introdução e notas por Diogo
Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
GIANINI, H.; MOREAU, P.-F.; VERMEREN, P. (Org.) Spinoza et la po-
litique. Paris: L’Harmattan, 1997.
MATHéRON, A. Individu et communauté chez Spinoza. Paris: Minuit,
1969.
MONTAG, W. Bodies, masses, power. Spinoza and his contemporaries.
Londres: Verso, 1999.
NEGRI, A. L’anomalia salvaggia. Saggio su potere e potenza in Baruch
Spinoza. Milão: Feltrinelli, 1981.
STUDIA SPINOZANA. Spinoza’s Philosophy of Society, 1985. v. 1.

47
r e n at o Janine ribeiro

HobbES

Podemos dizer que o pensamento de Hobbes é todo construído


em função da corrupção – na verdade, contra ela – e também
que o tema da corrupção nada tem a ver com sua filosofia. Essa
aparente contradição se explica, na verdade, porque há dois
sentidos de corrupção com os quais aqui se lida.1 O primeiro é
o clássico, que nos vem da Antiguidade, residindo na ideia de
corrupção dos corpos e, no caso dos corpos políticos, de sua degra-
dação pela corrupção dos costumes e, em especial, pelo efemi-
namento: ora, Hobbes se interessa sobretudo pelos corpos – sua
filosofia primeira é uma física – e, no caso dos corpos políticos,
sua preocupação maior é evitar que se degradem, degenerem,
corrompam, morram. O Estado, sendo um “homem artificial”,
é, pois, mortal, e só podemos alongar sua vida, jamais garantir-
-lhe uma – não humana – imortalidade. Mas, com a corrupção
dos costumes e os homens efeminados, Hobbes não se preocupa
nem se ocupa. Por outro lado, o segundo sentido de corrupção
é moderno demais para Hobbes: consiste no desvio do tesouro
público, no furto da coisa que a todos pertence, na apropriação
privada – por alguém dotado de poder – da res publica. Isso, para
Hobbes, não faz sentido. Seu soberano une a pessoa pública à
privada. O melhor soberano é o rei, exatamente por isso: como nele
coincidem plenamente a pessoa pública e a privada, o “sono do
rei” é muito mais curto do que o intervalo entre as reuniões das
assembleias que governam na aristocracia ou na monarquia e, por
isso, o poder pode agir e reagir com uma rapidez e um sigilo
impossíveis nos dois outros regimes.
Hobbes tinha pouco mais de 30 anos quando o ministro
Francis Bacon, visconde e filósofo, cujos ensaios nosso autor
vertera para o latim, a grande língua de comunicação científica
em seu tempo, foi condenado pelo Parlamento por corrupção.
Portanto, a corrupção dos políticos não era assunto ignorado
por Hobbes. Foi esse, porém, o primeiro impeachment da história
constitucional inglesa. Até então, o Parlamento se limitara a
avalizar os bills of attainder de interesse da Coroa, pelos quais
nobres caídos em desgraça eram mandados ao carrasco e seus
bens, confiscados, sem processo legal, apenas por uma lei que
os atingia e lhes tingia (= poluía) o sangue. Sob e contra Jaime
I, contudo, o Parlamento começa a lutar por poder, e inicia com
Bacon o julgamento de ministros corruptos ou tirânicos – abrindo
um processo que durará século e meio, até ser substituído pelo
parlamentarismo, que permite destituir um ministro ou mesmo
um gabinete apenas porque ele não tem mais apoio entre os
deputados e não por causa (ou a pretexto) de um crime. Mas,
se a corrupção dos governantes está assim presente na cena
pública antes mesmo de Hobbes se interessar pela filosofia (e
pela filosofia política), sua filosofia torna impensável esse tipo
de corrupção, ao qual depois voltaremos.
Em compensação, a degeneração dos corpos está inscrita na
condição mortal deles. Isso vale para os corpos em geral, objeto
da física, para os corpos humanos e, ainda, para os corpos huma-
nos em sociedade, assunto da ciência política. De várias formas
procede a corrupção, mas – na política – é basicamente pela
difusão de falsas doutrinas, que induzem os súditos a esquecer
a obediência devida a seus governantes. Curiosamente, a frase
que precede traz consequências muito complexas para nosso
próprio autor, das quais ele procurará fugir ou se resguardar.
Primeiro, se a questão essencial é a obediência, o que cabe ao
autor do Leviatã é ensinar aos súditos qual o seu dever; ora,
esse passo constitui os súditos como leitores, por excelência, da

49
filosofia política, mais que isso, como seus destinatários. Daí que,
segundo, Hobbes se veja em enorme dificuldade na definição de
seu leitor: se desejar ter os reis – ou soberanos – como leitores, o
que certamente deseja,2 estará se intrometendo nos assuntos de
governo. Ele não chama estes de arcana imperii, termo inusitado
na corte de Jaime I e que corresponde às ideias do rei e de Bacon;
longe disso, Hobbes torna inviável essa expressão, porque os
assuntos de governo deixam de ser segredos para poderem ser
conceituados. A própria nutrição de um Estado, isto é, o que o
faz viver, isto é, a economia, é tema de um importante capítulo
do Leviatã, de número XXIV. Mas, por outro lado, se ele disser
que seus leitores são os súditos (Bernard Landry comenta a
diferença entre a obra de Maquiavel, O príncipe, e a de Hobbes,
Do cidadão, dando a entender – o que procurei desenvolver em Ao
leitor sem medo – que se trata de diferentes destinatários, que
portanto definem diferentes políticas), Hobbes estará confiando a
eles um papel de decisão ou pelo menos de opinião nos assuntos
públicos que contrasta com a posição submissa, sub-dicta, que
em geral ele lhes confere.
Este é possivelmente um problema inscrito na questão mesma
da obediência; para se convencer alguém a obedecer só há dois
meios: o francamente irracional, pelo qual se apela a medos
terríveis e geralmente cunhados pela religião, ou o francamente
racional, pelo qual se evoca o interesse daquele que deve obedecer.
Hobbes é completamente contra o primeiro. Sua filosofia é um
ataque em regra às pretensões políticas dos religiosos, expondo os
modos pelos quais eles contribuem para corromper a obediência
devida ao governante legal e, portanto, para corromper o próprio
corpo político. Assim, Hobbes só pode dirigir-se ao leitor comum,
ao súdito, se apelar a seus interesses racionais. Mas, fazendo isso,
ele o constitui como sujeito racional: ora, pode-se demonstrar
racionalmente a alguém que esta pessoa não tem razão suficiente
(pelo menos, razão de Estado) para tomar decisões por conta
própria? Dessa forma, toda vez que entra em cena o cidadão,
com sua obediência, também desponta sua razão – e portanto o

50
risco de que não obedeça. Essa contradição é apontada, ainda
que em outras palavras, por vários de seus detratores e críticos,
já em seu tempo. Ou se obedece, e nesse caso uma certa mística
da realeza é necessária, ou se buscam os interesses, e então fica
frágil a obediência. Mostrar que é racional obedecer a um go-
vernante que, embora nosso representante, age sem nos prestar
contas significa, então, caminhar no fio de uma navalha.
Mas a corrupção vem da disseminação de falsas doutrinas
que levem os súditos a desobedecer – ou, o que é mais provável,3
a obedecer a falsos senhores. A rigor, o que enfraquece o Estado
hobbesiano não é uma propensão (que existe) dos homens a
tentar obter de volta a liberdade de que abriram mão – liberdade
essa vã, porque os leva a uma vida pobre, sórdida, curta e cruel.
O que fere de morte o Estado é a pretensão de outros atores a
ocupar o espaço político: o clero, apavorando as pessoas com
a danação eterna, consegue que elas lhe obedeçam, pois temem
mais uma eternidade de tormentos, que só o clero regula, do que a
execução no patíbulo, que é o máximo que o governante terreno
lhes pode infligir. Em segundo plano temos os deputados, que
alegam serem os representantes do povo, como se o soberano não
fosse, ele sim, o representante por excelência; e os comerciantes,
que querem uma liberdade irrestrita de vender e comprar. São
ideias, ou doutrinas, que corrompem o Estado.
O pressuposto aqui é que a opinião rege o mundo, expressão
que é um topos recorrente nos séculos antes que o capital
assuma o protagonismo social. Mas não devemos confundir essa
ideia de “opinião” com a que hoje temos. Para nós, opinião é
uma forma enfraquecida de convicção. Pesquisas de opinião per-
guntam às pessoas, hoje, em que elas acreditam. Suas respostas,
quase sempre, não vão além do ego, da camada superficial que
é nossa consciência. Um desafio rico em nossos dias é formular
pesquisas de opinião que permitam aceder ao id, ao inconsciente,
ou ao que as pessoas fazem, e não apenas ao que dizem. Ora,
a ideia hobbesiana de opinião está mais perto do id que do
ego. Quando, a leitores possivelmente horrorizados com o que

51
ele disse sobre a condição natural da humanidade, que é a de
guerra de todos contra todos, ele pergunta por que usam chaves
para trancar (a casa, as gavetas), conclui que com esse ato eles
expressam a mesma opinião que Hobbes colocou em palavras
e conceitos.4 A opinião é assim o campo de batalha em que se
decidem as ações. Controlar as opiniões é o modo de impedir a
corrupção do corpo político. Por isso, Hobbes opera uma espé-
cie de reforma da linguagem: é preciso que as palavras digam
exatamente o que significam; que a conotação seja extirpada,
em especial quando converte o discurso em arma subversiva;
que as doutrinas sediciosas sejam combatidas; as universidades,
reformadas; o poder espiritual, integrado ao temporal.
Tudo isso torna impossível, em Hobbes, nossa ideia moderna
de corrupção. Poderá o governante desviar dinheiro? Como, se
tudo já é dele? Um soberano que confisque bens arbitrariamente
– bens que são dele e apenas estão em mãos de súditos – destruirá
a riqueza de seu próprio Estado, e por conseguinte a sua. Embora
Hobbes distinga a pessoa pública e a privada do soberano, ele
sente que tal distinção é precária, e é por isso que a monarquia
é o melhor dos regimes: porque nela o descompasso entre as
duas pessoas do soberano se reduz ao mínimo. Nos regimes
em que o poder é de uma assembleia, poderia haver esse desvio
do que é público para a pessoa privada; mas, curiosamente,
Hobbes não se preocupa nem nesses casos; porque o perigoso,
na aristocracia e na democracia, não é a corrupção “moderna”,
mas a demagogia, o uso descontrolado da palavra conotada e,
por isso, armada. A corrupção que para ele conta é, só, a dos
corpos políticos.
Mas esta corrupção não é dos costumes, ao contrário do que
era para os antigos. Não há uma palavra que eu lembre, em
sua obra, deplorando os mores de seus tempos. Ao contrário,
o que salta aos olhos é sua severa crítica da política dos antigos
(nada causou tanto mal ao Ocidente, ironiza ele,5 quanto o
aprendizado do latim e do grego, que levou as pessoas cultas a
cultuar os Estados populares de Roma e Grécia) – e também

52
ela sem alusão a qualquer decadência de costumes. Sua questão
é, portanto, sui generis: preocupa-se com a corrupção dos Estados
no sentido de sua decadência, como faria um antigo, mas sem
qualquer alusão a costumes decadentes, e não lhe faz sentido a
corrupção dos modernos, porque não teria o governante como
roubar a si mesmo.
Cabe então a pergunta: quais são as condições para que
a corrupção que hoje conhecemos – a de quem descaminha
dinheiro público – advenha como tema político significativo?
Há pelo menos dois requisitos para tanto. Primeiro, que se
produza uma nítida separação entre o público e o privado,
na esfera do poder, incluindo o caráter eletivo, temporário e
alternado dos mandatos; ou seja, que a mortalidade dos gover-
nos e dos partidos hegemônicos se torne algo previsto e mesmo
desejado, em contraste com a mortalidade dos Estados, países e
povos, que se espera seja evitada e adiada o mais que der. A esse
primeiro requisito se pode dar o nome de república. Segundo,
que o patrimônio público seja entendido, cada vez mais, como
um tesouro monetário. O patrimônio hoje não é o conjunto de
costumes de uma sociedade, o que lhe dá orgulho e identidade;
mas, sobretudo, a moeda que está em seu erário. Corromper,
corromper-se é, na modernidade, subtrair dinheiro do tesouro
do Estado. Corrupção é furto. Nenhum destes requisitos aparece
em Hobbes.

NOTAS
1
Ver, para estes e o terceiro sentido, meu texto sobre “Financiamento de campa-
nhas” em AVRITZER; ANASTASIA. Reforma política no Brasil.
2
Mas consta que se teria recusado a tratar com o príncipe de Gales, seu aluno de
matemáticas e futuro rei Carlos II, de assuntos políticos, por entender que não
tinha tal direito.
3
Hobbes fala em desobediência, mas os exemplos que dá são de obediência a
outros que não o governante legal.
4
Cap. 14 do Leviatã.
5
Cap. 21 do Leviatã.

53
REFERÊNCIAS
AVRITZER, Leonardo; ANASTASIA, Fátima. Reforma política no Brasil.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria
Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

54
CíCero araúJo

rouSSEau E HumE

As posições de David Hume e Jean-Jacques Rousseau sobre


a Europa do século 18 e seu futuro são tão dissonantes que
parecerá um tanto problemático discorrer, num mesmo ensaio,
os modos como percebem a corrupção em seu tempo. Contudo,
nota-se um pano de fundo comum, sugerindo uma síntese de
seus respectivos pontos de vista.
O pano de fundo é um tópico relativamente recente para a
intelligentsia europeia do século 18: o problema da socialização
do homem. O tópico tem a ver com a ruptura que tanto Hume
quanto Rousseau ajudarão a promover na tradição do jusnatu-
ralismo e do contratualismo, tão influente em sua época e com
a qual ambos mantêm um estreito diálogo. O termo socialização
sugere a ideia de um processo: a sociedade entendida como um
ente constituído no tempo. Ruptura com a tradição, porque a
sociedade deixa de ser vista essencialmente como o resultado
de uma sequência de atos voluntários e intencionais, conforme
as teorias corporativistas medievais, o resíduo das quais ainda
se faz sentir no contratualismo moderno. Em seu lugar, a ideia
de uma teia complexa de relações que se expande, pelo menos
inicialmente, de uma série inumerável e quase irrefletida de atos,
os quais vão adquirindo uma consistência e um padrão.
Mas pensar que a sociedade é um processo, uma acumulação,
não significa necessariamente identificá-la com um ente que
progride, que se aperfeiçoa moral e politicamente – vale dizer, o
aperfeiçoamento de cada ser humano que toma parte dessa teia
de relações e as instituições que dela emergem. Progresso, aqui,
indica uma qualificação de valor, uma interpretação filosófica ou
normativa sobre aquilo que o processo social traz à vida humana,
e isso depende do modo como cada autor se apropria da ideia.
Os dois autores aqui considerados, evidentemente, divergirão
nesse ponto. Importa, porém, que o farão refletindo sobre o
mesmo objeto, isto é, o processo, e através de um método muito
similar: sua reconstrução, digamos, mental, segundo uma ordem
“lógica” e não “cronológica” dos acontecimentos humanos – uma
conjectura, portanto. Trata-se então de especular sobre o que teria
sido o homem num passado remotíssimo, nas “origens”, despido
das camadas de socialização que o tempo lhe impôs, e sobre qual
necessária série de transformações – os sucessivos “estágios” ou
“eras” – deveria ter passado até chegar ao ser familiar de hoje.
Rousseau é o autor que extrai desse tipo de reflexão as conse-
quências mais inusitadas. Como ele concluirá no seu texto mais
cristalino a respeito, o Discurso sobre a origem e os fundamentos
da desigualdade entre os homens (ou Segundo discurso), do alto
grau de socialidade do presente é possível chegar à socialidade
zero das origens, isto é, o homem associal, embrutecido e solitá-
rio, mas, ao mesmo tempo, livre e inocente. Rousseau quer, por
certo, almejar a tese religiosa de que o homem é um ser decaído
por natureza, que carrega em toda a sua existência terrena uma
mácula de origem, que explica suas fraquezas, suas perversões
e, por conseguinte, sua tendência permanente à corrupção. Sua
pretensão é mostrar, ao contrário, que não há “pecado origi-
nal”, e que se há corrupção no homem, ela é fruto da própria
sociedade. Mais amplamente ainda, ele sugere o questionamento
mesmo da noção de “natureza humana”, ao minimizar a ideia de
um núcleo fixo de características apto a transcender a mudança
histórica. Não que rejeite por completo qualquer “constante”
humana, porém aceita apenas o mínimo necessário para expli-
car, não a sua perversão, mas a liberdade e a inocência do ser
original, e a sua quase infinita “perfectibilidade”, ou ductibilidade,

56
o potencial para moldar a vida em praticamente qualquer for-
mato ou direção.
Note-se a radicalidade da tese. Por um lado, a crítica de
toda tentativa de confundir a condição presente com um destino
inelutável; a responsabilização da sociedade, e não do ser humano
individualizado, pelas mazelas da própria vida social. Por outro, a
contraface bastante otimista da crítica, a ampla abertura para
a ideia da reforma social, desde que a responsabilização da
sociedade, particularmente de suas instituições políticas, sig-
nifica também a tomada de consciência da necessidade de sua
transformação em bases satisfatórias e justas: o Contrato Social.
Também fascinado pela ideia da socialização, o ponto de
partida de Hume é, contudo, uma socialidade mínima (a prole
advinda da reprodução sexual), e não a socialidade zero. E sua
narrativa é fortemente orientada pela ideia de natureza humana,
que serve de fio condutor para explicar a “origem da justiça e
da propriedade”. (Não por acaso, seu livro de estreia chama-se
Tratado da natureza humana.) A prole primitiva, claro, é ante-
rior à origem da propriedade – entre uma e outra há todo um
percurso histórico, dividido em etapas, que Hume reconstrói,
como Rousseau, ao modo de uma conjectura. Lançando mão
de análises e metáforas econômicas, a justiça aparece em sua
narrativa para resolver um problema de intercâmbio: a separação
do “meu” e do “teu” – daí que o problema se confunda com o
da instituição da propriedade. De modo semelhante, o governo
aparece para dar conta de problemas de estabilidade e coordena-
ção social, insuficientemente resolvidos pela fundação da justiça,
o principal deles sendo a clara separação entre o “nosso” (o que
é de todos) e o “meu”. E aqui se ingressa no significado mais
estrito do termo corrupção.
Hume tem em mente uma definição tradicional do termo – a
apropriação privada do bem público –, que em seu esquema
abstrato significa a fusão indevida do “meu” com o “nosso”. A cor-
rupção, propriamente dita, é um fenômeno que apenas faz sentido
com a emergência de instituições de governo, pois é nelas que

57
se constituem pessoas públicas (governantes, funcionários etc.) e
bem público, como algo distinto de pessoas privadas, bem privado
etc., donde a possibilidade de suas fronteiras recíprocas e
de sua transgressão. Em sua hipótese, porém, esse fenômeno de
mescla indevida do “meu” e do “nosso” remete a uma questão
anterior e de maior profundidade, que diz respeito ao processo
mesmo que torna mais extensa e complexa a teia social. Ocorre que
a instituição da justiça e da propriedade, abstraída do governo,
ao resolver um problema de intercâmbio, torna também possível
uma ampliação inédita dos contatos humanos, para muito
além das relações familiares e de vizinhança, estendendo-as
ao “estranho”. Mas enquanto as instituições da justiça e as regras
da propriedade são relativamente simples, e seu esquema de
conjunto transparente a todos – reflexo de uma socialização
ampliada ainda incipiente –, a autossustentação daquelas regras
permanece firme, pois invoca de imediato o interesse de cada um.
A partir de um determinado momento do processo, no entanto,
aquilo que era transparente torna-se opaco: há um turning point
pelo qual o próprio emaranhado social nubla a cognição direta
dos interesses, travando a ação recíproca (eu me abstenho do
“teu”, você se abstém do “meu”), que é a base da autossustentação.
E então se fazem necessárias novas instituições – órgãos de
arbitragem e controle – que se sobrepõem às primeiras, que por
sua vez também vão se emaranhando, até ocorrer algo como uma
especialização formal: o governo e a separação entre público e
privado. As atividades de coordenação social são desse modo
parcialmente alienadas a pessoas distinguidas para tal, o que vai
requerer a construção de toda uma infraestrutura normativa, e
também material, para promovê-las.
Mas por que a opacidade que atinge as pessoas comuns não
afetaria também os governantes? Eis como se coloca, na pers-
pectiva humeana, o problema de fundo da corrupção: a perda
de visibilidade, para cada “ponto”, para cada participante da
teia social, do funcionamento do esquema como um todo – uma

58
perda da compreensão clara, imediata, de como o “teu” promove
o “meu” e, depois, de como o “nosso” promove o “meu”. Um
problema que certamente também atingirá as autoridades
públicas, o que vai exigir mais instituições sobrepostas, dessa
vez na forma de órgãos governamentais de controle mútuo, a
“balança da constituição”, e assim indefinidamente.
Contudo, essa apresentação crítica, concentrada na explicação
da corrupção, insere-se numa narrativa de conjunto mais mati-
zada, desde que Hume realça também os ganhos existenciais
do próprio processo de socialização: o enriquecimento material
e cultural, o avanço da ciência e da técnica, o crescimento da
sensibilidade moral e estética, o declínio da superstição etc.
Nas palavras usadas com frequência em seus Ensaios, a lenta
superação da barbárie em prol da civilização, não ausente de
custos, mas que no final das contas é amplamente vantajosa.
A leitura inconsolavelmente crítica do processo vem mesmo
de Rousseau, e isso repercute em seu modo de perceber a cor-
rupção. Menos levado por análises e metáforas econômicas,
nem por isso Rousseau mantém-se alheio à virada de época
que a Europa, em particular a Grã-Bretanha e a França, está
passando, a qual desloca cada vez mais para o centro da vida
social as questões da afluência econômica. Essa constatação, em
vez de inspirá-lo positivamente, desperta-lhe uma visão sombria
do presente. Sua conclusão é clara: ao socializar-se, o homem
deixou as condições mais duras e primitivas da sua existência
em prol das aparentes doçuras da vida civilizada, mas perdeu
seu bem mais precioso, a liberdade natural, sem ter a garantia
de recuperá-la, depois, de alguma outra forma. A dúvida recai
inteira sobre a validade da compensação: primeiro, porque as
vantagens não são iguais – a socialização produz ricos e pobres,
os primeiros oprimindo os segundos; segundo, porque aquilo que
Hume descreve como alienação da coordenação social para as
mãos de um governo significa para Rousseau a instauração do
mais insidioso despotismo, este sim oprimindo a todos.

59
Por conta disso, Rousseau é levado a descarregar na corrupção
uma consequência bem mais politizante. Antes de entendê-la
como certos atos com qualidades bem determinadas e impu-
táveis a certas pessoas, Rousseau se refere à corrupção como
um modo de vida que envolve toda uma coletividade. De que se
trata? Numa sentença, do gradual, no início quase imperceptível,
abandono do controle da própria vida, a sua transferência para o
alheio, identificável em figuras concretas como “proprietários”,
“governantes” etc., na realidade apenas manifestações do pro-
cesso de fundo, anônimo, da socialização. Enfim, a corrupção
como a “compra e venda da liberdade”. Essa expressão geral, é
claro, pode exibir variações em épocas e lugares distintos, inclusive
a tradicional apropriação indébita do patrimônio público.A última,
porém, só se eleva ao primeiro plano quando o próprio bem
comum, a tradução da liberdade em termos coletivos, adquire a
forma numerável da economia moderna, tornando-se então pas-
sível da compra e venda no sentido literal. Não sendo, portanto,
um fenômeno circunstancial, mas algo muito bem fincado a um
modo de vida, essa perspectiva acaba exigindo que a corrupção
seja enfrentada à luz da reforma social, e não principalmente
através de um esquema qualquer – por mais engenhoso que
seja – de contenção de um ser perverso, o corrupto, que é apenas
a sombra do verdadeiro protagonista.

REFERÊNCIAS
BERRY, C. Sociality and socialization. In: BROADIE,A. (Ed.). The Cambridge
Companion to the Scottish Enlightenment. Cambridge: Cambridge Uni-
versity Press, 2003.
HUME, D. Tratado da natureza humana. Livro III, Parte II. Tradução de
Déborah Danowski. São Paulo: Editora Unesp/Imprensa Oficial de São
Paulo, 2000.
HUME, D. Ensaios morais, políticos e literários. Tradução de Luciano
Trigo. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

60
ROUSSEAU, J.-J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigual-
dade entre os homens e Do contrato social. Tradução de Lourdes Santos
Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores)
STAROBINSKI, J. A palavra “civilização” e O remédio no mal: o pensamento
de Rousseau. In: ______. As máscaras da civilização – Ensaios. Tradução
de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.

61
MarCelo SantuS JaSMin

toCquEvillE

Há corrupção quando se obtém alguma coisa que não é


devida, através do favorecimento daquele que a fornece.
Há corrupção da parte do candidato que paga pelos votos
do eleitor. Há corrupção da parte do particular que obtém
um favor do funcionário [público] em troca de dinheiro.
Mas, quando os funcionários lançam mão do tesouro do
Estado por sua própria conta, não há corrupção, há roubo.
(Tocqueville, em suas notas para
A democracia na América,
Livro I, Parte II, Capítulo V)

Podemos apreender dois sentidos básicos do termo corrupção


nas obras maiores de Tocqueville, A democracia na América (1835-
1840) e O Antigo Regime e a Revolução (1856). O primeiro deles
se identifica ao sentido clássico, encontrável em Montesquieu,
e que se refere à corrupção dos princípios, no sentido de corrosão
dos alicerces de uma estrutura política, social ou mental e, por
consequência, do seu declínio. é assim, por exemplo, que, ao
tratar da história do Antigo Regime, Tocqueville concebe que
a centralização administrativa que se seguiu à derrocada do
poder da aristocracia, e produziu a via francesa de transição do
feudalismo ao mundo da Revolução Francesa, é consequência
da corrupção do princípio tradicional da reciprocidade entre
nobres e plebeus que caracterizava os laços feudais. “Quando
a nobreza possui não apenas privilégios, mas poderes, quando
ela governa e administra, os seus direitos particulares podem
ser ao mesmo tempo os maiores e os menos sentidos.” Nos
tempos feudais, os nobres possuíam privilégios que nos parecem
constrangedores, mas, ao mesmo tempo, “asseguravam a ordem
pública, distribuíam a justiça, faziam executar a lei, vinham ao
auxílio do fraco, dirigiam os negócios comuns”. O processo de
centralização administrativa do Estado francês, que se dá jus-
tamente pela penetração progressiva dos funcionários e agências
estatais ali onde os nobres abandonaram a sua posição de
mando, alterou completamente o equilíbrio interno ao princípio
feudal. Em meados do século 18, o senhor não mais administra
nem controla os negócios públicos, sendo apenas “um primeiro
habitante” separado e isolado dos demais por imunidades e
privilégios. O único setor da administração pública no qual
ainda se notava a sua presença era a justiça, mas já o fazia antes
por vantagens pecuniárias do que pelo exercício do verdadeiro
poder público. A função política da nobreza, a sua posição de
aristocracia dirigente, se esvaziara; o feudalismo deixara de ser
uma instituição política para restringir-se a uma moldura civil.
Anunciava-se aí, com a recusa da nobreza francesa de cumprir
o seu dever ser – ao contrário do que acontecera, por exemplo, na
Inglaterra –, a corrupção do princípio aristocrático da desigualdade
hierárquica em que se fundara a legitimidade e a estabilidade
da ordem feudal. Corrompido o seu princípio, o edifício se
pôs em movimento e promoveu o declínio daquela ordem e a sua
substituição pela centralização administrativa do Antigo Regime
que fornecerá o contexto para a eclosão da Revolução Francesa.1
Do mesmo modo, encontramos esse primeiro sentido do termo
no tratamento do “despotismo democrático”, antevisão teórica
de um futuro tenebroso para as sociedades democráticas modernas.
Dado que a democracia se funda no princípio da igualdade de
condições sociais e significa uma sociedade em que todos os
postos, posições e honrarias estão, teoricamente, acessíveis a
qualquer indivíduo, sem as interdições a priori encontradas no
mundo da desigualdade hierárquica, o governo democrático deve
ser aquele que abarca a vontade de todos os cidadãos iguais.

63
Diferentemente do que ocorre na aristocracia, onde o governo
representa a dominação da nobreza no seio da hierarquia
aristocrática, o governo democrático não é compatível com a
existência de privilégios, nem de prerrogativas que não sejam
compatíveis com a igualdade de condições. Daí a justificativa
histórico-sociológica para a necessidade do governo represen-
tativo neste contexto, pois, dados o tamanho e a natureza das
modernas sociedades de massa da primeira metade do século 19,
tornara-se virtualmente impossível uma cidadania ativa e perma-
nente por parte de todos os iguais em todos os temas relevantes
da comunidade. No entanto, de acordo com o que reivindica o
princípio da igualdade democrática, os representantes eleitos,
ao contrário do que acontecia com os dirigentes aristocráticos,
não representam a si mesmos: eles devem constituir-se como
uma espécie de mostra, de população em miniatura, que expresse
a vontade do conjunto dos cidadãos que os elegeram. A garantia
dessa correspondência dependerá da capacidade dos eleitores
se manterem ativos e exigentes em relação ao que fazem os
seus representantes. Para Tocqueville, se anuncia aqui o tema
da liberdade política nas condições do governo representativo
moderno. Pois, ou a forma representativa virá alimentada por
um princípio cívico de cidadania ativa capaz de infundir conteúdo
de bem comum na representação, ou esta última ganhará auto-
nomia em relação à fonte legítima do poder democrático e se
transformará numa espécie de nova casta. Tocqueville imagina
que um futuro possível para a democracia seria aquele no
qual os indivíduos abririam mão das virtudes cívicas inscritas
no princípio da liberdade democrática para ficarem apenas com
o direito do voto que, exercido esporadicamente, acabaria por
alienar os eleitores do processo político entre as eleições. Se é
verdade, para Tocqueville, que o princípio da igualdade social
permanece preservado nessa forma de governo representativo,
o princípio da liberdade estaria corrompido pela ausência de
efetivação do dever ser da cidadania democrática (para nós, valeria
dizer, republicana). Corrompido o princípio da liberdade política,

64
o governo democrático se move em direção a um despotismo
que instaura a alternativa igualitária da servidão.2
Vale notar que, embora esse primeiro significado tradicional
do conceito corrupção esteja presente nesses e em muitos outros
momentos da sua obra, a palavra corrupção não é mobilizada
com frequência por Tocqueville para denotá-lo. O mesmo já não
acontece com o uso do significado mais restrito do conceito e que
remete às transações ilícitas dirigidas a alguém ou por alguém
em posição de poder beneficiar um objetivo privado. Numa
seção de capítulo especialmente dedicada ao tema, e intitulada
“Da corrupção e dos vícios dos governantes na democracia; dos
efeitos que dela resultam sobre a moralidade pública”,3 Tocqueville
desenvolve, sempre a partir da sociologia histórica comparativa
entre as sociedades aristocráticas e as democráticas, o tema das
condições mais ou menos propícias para o desenvolvimento da
corrupção naqueles dois tipos de sociedade.
São basicamente três os argumentos comparativos. O primeiro
deles afirma que, sendo os mais ricos os que governam nas socie-
dades aristocráticas, o apelo à corrupção dos governantes por
dinheiro é, neste contexto, baixo. Os dirigentes aristocráticos,
quando se dispõem ao governo, o fazem prioritariamente pela
ânsia ou pelo amor ao poder, já que a riqueza não é um assunto
com o qual precisem se preocupar. Já no mundo democrático,
o quadro mais frequente é aquele em que os mais ricos estão
prioritariamente dedicados à economia e à gestão dos negócios
privados que lhes garantem a fortuna. Por isso mesmo, o mais
comum é que aqueles que se dispõem a governar nas sociedades
igualitárias são originários das camadas menos abastadas e veem
no governo (e na carreira política) uma via possível de enrique-
cimento. Daí a especial propensão à corrupção dos governantes
no moderno mundo das massas.
Isso não significa que não haja corrupção nas sociedades aris-
tocráticas. Ela existe, mas a sua natureza não é a mesma daquela
que se encontra na democracia. Eis o segundo argumento. Nas
aristocracias, os ricos que querem chegar ao poder têm de contar

65
com o apoio de alguns poucos, embora grandes, eleitores. Isso
faz com que os cargos de governo estejam permanentemente sob
uma espécie de “leilão” entre aqueles que, também sendo grandes
e ricos, os desejam e os buscam alcançar em troca de apoio aos
pares. Já no mundo democrático, são muitos os responsáveis
pela eleição de um dirigente ao governo. Teoricamente, no
limite, são todos os indivíduos que têm o mesmo direito ao voto
que é universal, o que torna a barganha entre o candidato e o
eleitor, no mínimo, difícil de ser realizada pela via do dinheiro.
é provável que nas democracias, pensa Tocqueville, haja mais
homens (e votos) à venda do que os que se podem contar nas
aristocracias; mas é viável que haja os seus compradores nas
democracias, pois estes teriam de comprar muita gente. Daí a
conclusão de que, nas aristocracias, a corrupção é exercida
para se chegar ao poder, enquanto nas democracias ela é mais
frequente entre os que já são governantes. A consequência disso
é que a corrupção aristocrática ataca a moralidade dos eleitores,
enquanto a democrática, os cofres do tesouro público. Então, se
é fato que há corrupção nos dois tipos de sociedade, o seu objeto
varia: nas aristocracias se exerce sobre alguns poucos governados;
na democracia, sobre o próprio governo. Significa também dizer
que, nas aristocracias, os que querem dirigir corrompem alguns
outros para se tornarem governantes; nas democracias, os diri-
gentes se corrompem a si mesmos.
O terceiro argumento se refere aos riscos relativamente muito
maiores que são inerentes ao tipo de corrupção democrática, dada
a natureza da comunicação entre os indivíduos nas condições
sociais igualitárias. As sociedades aristocráticas são estruturadas
a partir da desigualdade hierárquica entre nobres e plebeus, o que
torna a separação, a distância e, consequentemente, a ausência
de comunicação frequente elementos efetivos e permanentes
de isolamento entre eles. O conhecimento da “depravação de
grandes senhores” permanece restrito ao pequeno círculo dos
dirigentes nobres, e o povo raramente penetra o “labirinto obs-
curo do espírito de corte”. Já nas democracias, a corrupção que

66
ataca os cofres públicos contagia multidões pelo exemplo: a
venda, por dinheiro, dos favores do Estado “é compreensível por
qualquer miserável” e, o que é pior, que ainda pode querer imitá-la,
pois nela identifica a ação de um igual que enriquece às custas
do erário público.

Na democracia, os simples cidadãos veem um homem que sai de


suas fileiras para alcançar, em poucos anos, a riqueza e o poder; eles
buscam compreender como aquele que era ontem um igual, tem hoje
o direito de dirigi-los. Atribuir a sua elevação aos seus talentos ou às
suas virtudes é incômodo, pois é confessar que eles mesmos são menos
virtuosos e hábeis do que ele. Eles atribuem então, como a principal
causa [do sucesso daquele], alguns de seus vícios, e, com frequência, têm
razão em fazê-lo. Opera-se assim não sei que mistura odiosa entre as
ideias de baixeza e de poder, de indignidade e de sucesso, de utilidade
e de desonra.4

São essas identidades entre baixeza e poder, indignidade e


sucesso, utilidade e desonra que constituem as consequências mais
avançadas da corrosão dos costumes públicos promovida pela
corrupção nas sociedades democráticas. Poderíamos acrescentar,
relendo a epígrafe deste ensaio, que quando se chega a confundir
a corrupção com o puro roubo, se está a conferir dignidade
conceitual ao que é apenas ignomínia.

NOTAS
1
Ver O Antigo Regime e a Revolução, Livro Segundo, especialmente o Capítulo V.
2
Ver A democracia na América, especialmente Livro II, Quarta Parte, Capítulo VI.
3
Tomo I, Segunda Parte, Capítulo V: “Do governo da democracia na América”.
4
A democracia na América, v. I.

67
JeSSé Souza

WEbEr

Não existe, que eu conheça, nenhuma discussão sistemática


acerca do tema da “corrupção” em Max Weber. Ele, no entanto,
emprestou a “autoridade científica”, ainda que por meio de mal-
-entendidos, à forma dominante como os brasileiros percebem o
tema da corrupção. O conceito central da sociologia e da ciência
política brasileira, desde a publicação de Raízes do Brasil de
Sérgio Buarque em 1936 até hoje, é o de “patrimonialismo”,
retirado, supostamente, da obra weberiana. Essa noção é a pedra
fundamental das ciências sociais brasileiras, porque ela é o
núcleo da concepção dominante, ainda hoje na academia e fora
dela, de como o Brasil contemporâneo percebe a si próprio. Como
essa concepção percebe o Brasil contemporâneo como “pré-
-moderno”, o conceito weberiano de patrimonialismo, que é um
dos subtipos de dominação política tradicional “pré-moderna”,
é o instrumento fundamental para toda a forma dominante de
como o Brasil e seus problemas são compreendidos.
Como o conceito de patrimonialismo envolve a ideia da confu-
são entre bens particulares e bens públicos, o tema da corrupção,
percebido como uma característica atávica e essencial das relações
sociais no Brasil, vai estar no centro mesmo de concepções ex-
tremamente influentes que se pensam como crítica da realidade
brasileira. A tese que irei defender neste texto é a de que esse tipo
de teorização, dominante entre nós, é apenas “aparentemente”
crítica e, na verdade, profundamente conservadora, além de
muito frágil teoricamente. A centralidade do tema da corrupção
é paga, na verdade, com a moeda do esquecimento sistemá-
tico de nossos conflitos sociais mais importantes. A principal
consequência da centralidade do conceito de patrimonialismo
entre nós e, portanto, também do tema da corrupção como
característica atávica da sociedade brasileira, é, certamente, o
extraordinário empobrecimento do debate acadêmico e político
brasileiro atual.
Para que possamos compreender esse conceito e sua trajetória
vitoriosa entre nós, é necessário – como sempre temos que fazer
quando queremos verdadeiramente “compreender” alguma
ideia e as razões da sua influência – recuperar a sua “gênese”.
Não se compreende, no entanto, o uso do conceito de “patri-
monialismo” entre nós se não o cotejamos com seu “irmão
gêmeo”, a noção de “personalismo”. Ainda que o “pai” da ideia
de “personalismo” tenha sido Gilberto Freyre,1 quem a sistema-
tizou e a ligou umbilicalmente à noção de patrimonialismo
foi o “filho rebelde” de Freyre:2 Sérgio Buarque de Holanda. Em
Sérgio Buarque temos, também, a montagem do arcabouço
completo da interpretação do Brasil contemporâneo como
“pré-moderno”, que influenciará praticamente todos os grandes
intérpretes da singularidade brasileira no século 20,3 sejam eles
“personalistas”, como Roberto DaMatta, ou “patrimonialistas”,
como Raymundo Faoro.
A categoria do “personalismo” em Buarque é indissociável
da noção de patrimonialismo. Ela é construída, passo a passo,
enquanto uma contraposição especular – onde um elemento
reflete o outro como sua imagem invertida – com o “pioneiro”
protestante ascético norte-americano. O pioneiro americano
é a figura histórica, sabemos todos, que mais se parece com o
tipo ideal weberiano do protestante ascético, enquanto “suporte
social” por excelência daquilo que Weber denominava de “racio-
nalismo ocidental”. Esse racionalismo que Weber denomina de
“racionalismo da dominação do mundo”,4 ambíguo de fio a
pavio para ele,5 é transformado em “modelo absoluto” de ação
moral e política pelas mãos de Buarque (como aliás em toda

69
apropriação liberal de Weber em todos os lugares) para explicitar
precisamente aquilo que o “homem cordial” brasileiro não é.
Enquanto o pioneiro protestante americano seria movido
por interesses racionais que permitiriam a construção de
instituições modernas como mercado capitalista competitivo
e Estado racional centralizado, o “homem cordial” seria domi-
nado por emoções que não controla. Uma das consequências
práticas principais desse descontrole emotivo seria uma visão
quase exclusiva do interesse próprio, na verdade uma forma de
interesse próprio mal compreendido, já que não se conseguiria
perceber interesses coletivos de qualquer espécie. Essa é a ligação
entre a noção de personalismo, como atributo das relações
intersubjetivas entre nós, e a noção de patrimonialismo, com-
preendida como uma espécie de “materialização institucional”
do personalismo. Enquanto o personalismo é representado pela
prática social do homem cordial na esfera privada e pública, o
patrimonialismo representaria o homem cordial como membro
de um suposto “estamento” estatal. Como ele usaria o poder estatal
em suas mãos se ele não vê nada além do próprio interesse?
é a partir desse raciocínio que o tema da corrupção política
passa a ser um dos temas mais centrais e recorrentes do debate
acadêmico e político brasileiro. Observe o leitor, no entanto,
que, de modo muitíssimo curioso, apenas o “Estado” passa a ser
percebido como o fundamento material e simbólico do patrimonia-
lismo brasileiro. Ora, se todos somos “cordiais”, por que apenas
quando estamos no Estado desenvolvemos as consequências
patológicas dessa nossa “herança maldita”? Por que o mercado,
por exemplo, não é percebido do mesmo modo? E por que, ao
contrário, o mercado é inclusive visto como a principal vítima da
ação parasitária estatal?
é que de Max Weber, de onde se retira a autoridade científica
e a “palavra”, no sentido do “nome” e não do “conceito científico”,
para a legitimação científica dessa noção central para a auto-
compreensão dos brasileiros, tem-se muito pouco. Entre nós o
conceito de patrimonialismo perde qualquer contextualização

70
histórica, fundamental no seu uso por Max Weber,6 e passa a
designar uma espécie de “mal de origem” da atuação do Estado
enquanto tal em qualquer período histórico. Em Raymundo
Faoro,7 por exemplo, que fez dessa noção seu mote investigativo
– ao passo que na maioria dos intelectuais brasileiros ela é um
pressuposto implícito, embora fundamental –, a noção de patri-
monialismo carece de qualquer precisão histórica e conceitual.
Historicamente, na visão de Faoro, existiria patrimonialismo
desde o Portugal medieval, onde não havia sequer a noção de
“soberania popular” e, portanto, se não havia sequer a ideia da
separação entre bem privado (do Rei) e bem público, o Rei e
seus prepostos não podiam “roubar” o que já era dele de direito.
Em segundo lugar, no âmbito de suas generalizações socio-
lógicas, o patrimonialismo acaba se transformando, de forma
implícita, em um equivalente funcional para a mera intervenção
estatal. No decorrer do livro de Faoro, o conceito de patrimonia-
lismo perde crescentemente qualquer vínculo concreto, passando
a ser substitutivo da mera noção de intervenção do Estado, seja
quando este é furiosamente tributário e dilapidador, por ocasião
da exploração das minas no século 18, seja quando o mesmo
é benignamente interventor, quando D. João cria, no início do
século 19, as precondições para o desenvolvimento do comércio
e da economia monetária, quadruplicando a receita estatal e
introduzindo inúmeras melhorias públicas.
A imprecisão contamina até a noção central de “estamento”,
uma suposta “elite” incrustada no Estado, que seria o suporte
social do patrimonialismo. O tal “estamento” é composto, afinal,
por quem? Pelos juízes, pelo presidente, pelos burocratas? O que
dizer do empresariado brasileiro, especialmente o paulista,8 que foi,
no caso brasileiro, o principal beneficiário do processo de indus-
trialização brasileiro financiado pelo Estado interventor desde
Vargas? Ele também é parte do “estamento” estatal? Deveria ser,
pois foi quem econômica e socialmente mais ganhou com o suposto
“Estado patrimonial” brasileiro. Como fica, em vista disso, a
falsa oposição entre mercado “idealizado” e Estado “corrupto”?

71
A noção de patrimonialismo “simplifica” e “distorce” a realida-
de social de diversas maneiras e sempre em um único sentido:
aquele que simplifica e “idealiza” o mercado e subjetiviza e
“demoniza” o Estado. De weberiano, pelo menos, esse processo
não tem nada. A marca da riqueza da reflexão weberiana é
precisamente perceber a ambiguidade constitutiva dessas insti-
tuições fundamentais do mundo moderno e, com isso, perceber
a ambiguidade imanente ao próprio racionalismo ocidental. O
mercado cria riquezas com uma eficiência singular, mas produz,
simultaneamente, desigualdades de todo tipo. O Estado pode
agir das mais diversas maneiras, dependendo da correlação de
forças políticas que estejam no controle do poder de Estado.
Importante é perceber que “ambas” as instituições não são
“boas” ou “más” em si mesmas. Tanto mercado quanto Estado
também não são “coisas”, no sentido de um conjunto de “máqui-
nas” e “prédios”. Mercado e Estado são, ambos, processos de
aprendizado social que foram materializados, institucionalizados
e tornados relativamente autônomos no seu funcionamento.
Como eles funcionam “independentemente” de nossa vontade
e possuem uma lógica própria, nós tendemos a pensá-los não
como “produto humano”, mas como “coisas” que existem fora
e acima de nós mesmos.
O processo de aprendizado que resultou no mercado competi-
tivo é aquele que diz que, se quisermos ter grande produção de
mercadorias e serviços a baixo preço, se quisermos ter “rique-
za” material, portanto, a busca do lucro “egoísta” tem que
ter, no âmbito da esfera econômica, livre curso. O processo de
aprendizado que levou ao Estado de Direito é aquele que institu-
cionalizou uma série de direitos e de deveres dos cidadãos, que
possuem validade obrigatória em todas as esferas da vida, e que
organizam e normatizam a vida em comum segundo critérios de
justiça. Daí a necessidade de “legitimação periódica”, por meio
de eleições, do arranjo normativo e valorativo contingente
que se materializa, a cada tempo, no Estado.

72
Na história recente das nações modernas, essa dialética entre
mercado e Estado tem assumido a forma de limitar a ação deste
a certas esferas específicas da vida social e deixar que a livre
ação do mercado impere nas outras esferas. Assim, chegou-se ao
consenso de que na educação e na saúde, por exemplo, a ação do
mercado, deixado a si próprio, termina por dar educação e saúde
de alta qualidade aos ricos e privilegiados e educação e saúde
de baixa qualidade aos pobres. Como essa dialética se resolve
em cada caso, tem a ver com as lutas sociais de grupos e classes
para fazer a balança pender para seus interesses e necessidades.
Como a tese do patrimonialismo vê a relação mercado – Estado?
Ao invés de percebê-los como instituições ambivalentes cujo raio
de ação será definido por lutas sociais concretas, essa tese sequer
deixa que o elemento do conflito social surja na argumentação.
Como isso é conseguido? Ora, basta supor que toda contradição
e todo conflito social se encerram na própria definição de Estado
e de mercado, de tal modo que um deles seja o “bem em si” e o
outro “o mal a ser combatido”. Assim, os “termos do conflito”,
classes e grupos em luta por recursos escassos sequer são tema-
tizados ou, melhor ainda, para uma ideologia elitista, sequer são
“percebidos” como conflito. Para esse tipo de pseudocrítica social,
todo conflito social visível está embutido na oposição entre mer-
cado e Estado. A tese do patrimonialismo pressupõe, portanto,
tanto que se esconda e se esqueça a “sociedade”, e com ela os
conflitos sociais como arena da disputa por recursos escassos,
como também a simplificação de mercado e Estado onde um é o
mocinho e o outro é o vilão. Esse é o nome da operação ideoló-
gica que permite que o tipo de liberalismo redutor e mesquinho
hegemônico entre nós possa ser visto, ainda por cima, com o
“flair” de uma teoria crítica da sociedade.
Para se amesquinhar ainda mais o horizonte reflexivo e retirar
qualquer atenção aos consensos sociais e inarticulados que
constituem a referência última de qualquer ação política, basta
personalizar o debate político, de modo consequente, ao nível
das telenovelas. À personalização, subjetivização e simplificação

73
do Estado na noção de “estamento estatal” todo-poderoso, é
acrescentada uma teatralização da política como espetáculo bufo:
deixamos de ter “interesses e ideias em conflito” e passamos a
ter um mundo político dividido entre “honestos” e “corruptos”.
O tema do patrimonialismo não só oferece a semântica através
da qual toda a sociedade compreende a si própria, mas também
coloniza a forma peculiar como o próprio debate político se
articula entre nós.
Como uma hipótese tão frágil, pode-se perguntar o leitor
atento, conseguiu até hoje ser o conceito central da reflexão
brasileira, a tal ponto que é repetido, ainda hoje, não só pela
maioria dos intelectuais, na universidade e fora dela, mas também
pela mídia e pelos cidadãos comuns nos bares de esquina do
Brasil afora? Uma possível resposta precisa articular dimensões
distintas que se complementam. Em primeiro lugar, a existência
de uma esfera acadêmica onde, ainda que não faltem talentos
individuais, a ausência de efetivo debate crítico e aberto permite
que teorias ultrapassadas e anacrônicas continuem, desde quase 80
anos, como referência implícita ou explícita da compreensão do
Brasil contemporâneo. Nesse sentido, como as interpretações
da sociedade são quase sempre produtos de intelectuais, a
pobreza do debate acadêmico condiciona a pobreza do debate
político mais amplo.
Em segundo lugar, se quisermos responder a essa questão
“weberianamente”, o Max Weber crítico que sempre se inte-
ressou pela forma como indivíduos e classes “legitimam” seus
“interesses” materiais e ideais criando “racionalizações convin-
centes”, temos que perceber as necessidades e interesses que este
tipo de visão de mundo justifica. A quem interessa “demonizar” o
Estado, pleitear o Estado mínimo, criticar a incipiente assistência
social estatal, e, em suma, reduzir os interesses da sociedade aos
interesses da reprodução do mercado? O leitor atento saberá
responder com seu próprio poder de observação da realidade
a sua volta.

74
Quaisquer que sejam os interesses em jogo, o tema do patri-
monialismo, precisamente por sua aparência de “crítica radical”,
dramatiza um conflito aparente e falso, aquele entre mercado
idealizado e um Estado “corrupto”, sob o preço de deixar à
sombra todas as contradições sociais de uma sociedade – e nela
incluindo tanto seu mercado quanto seu Estado – que natura-
liza desigualdades sociais abissais e um cotidiano de carência e
exclusão.9

NOTAS
1
Ver SOUZA. O casamento secreto entre identidade nacional e teoria emocional
da ação, ou por que é tão difícil o debate aberto e crítico entre nós.
2
Ver HOLANDA. Raízes do Brasil. Aprendi com Robert Wegner, um de nossos
melhores especialistas em Buarque, que este retirou, das edições posteriores de
seu livro clássico, todas as referências a Gilberto Freyre. Sobre a influência, quase
nunca adequadamente reconhecida, de Freyre em Buarque de Holanda, ver
SOUZA. A modernização seletiva.
3
Acerca da posição heterodoxa de Florestan Fernandes, ver SOUZA. Por uma
teoria da ação social da modernidade periférica: um diálogo crítico com Florestan
Fernandes.
4
WEBER. A ética protestante e o espírito do capitalismo.
5
Ver SOUZA. Patologias da modernidade: um diálogo entre Weber e Habermas.
6
Ver, sobre a necessária articulação da noção de patrimonialismo com legitimação
religiosa da autoridade política, ausência de economia monetária desenvolvida
e ausência de direito racional e previsível. WEBER. Die Wirtschaftsethik der
Weltreligionen: Konfuzianismus und Taoismus. Não existe tradução para o
português.
7
FAORO. Os donos do poder.
8
Para uma brilhante exposição acerca do uso político dessa categoria, ver VIANNA.
Weber e a interpretação do Brasil.
9
O meu próprio trabalho recente se concentra na crítica de nossa tradição socio-
lógica dominante e na construção de uma alternativa verdadeiramente crítica.
Ver SOUZA. A construção social da subcidadania; A invisibilidade da desigual-
dade brasileira; e O Brasil além do mito: quem é e como vive a “ralé” brasileira.
Ver também as pesquisas desenvolvidas no âmbito do CEPEDES/UFJF: <www.
cepedes.ufjf.br>.

75
REFERÊNCIAS
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Rio de Janeiro: Globo, 1984.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia. das
Letras, 2002.
SOUZA, Jessé. Patologias da modernidade: um diálogo entre Weber e
Habermas. São Paulo: Annablume, 1997.
SOUZA, Jessé. A modernização seletiva. Brasília: Ed. UnB, 2000.
SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia
política da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
SOUZA, Jessé. O casamento secreto entre identidade nacional e teoria
emocional da ação, ou porque é tão difícil o debate aberto e crítico entre
nós. In: ______. (Org.). A invisibilidade da desigualdade brasileira. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2006.
SOUZA, Jessé. A invisibilidade da desigualdade brasileira. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2006.
SOUZA, Jessé. Por uma teoria da ação social da modernidade periférica:
um diálogo crítico com Florestan Fernandes. In: ______. (Org.). A invisibi-
lidade da desigualdade brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
SOUZA, Jessé. O Brasil além do mito: quem é e como vive a “ralé” brasileira.
(No prelo).
VIANNA, Werneck. Weber e a interpretação do Brasil. In: SOUZA, Jessé
(Org.). O malandro e o protestante. Brasília: Ed. UnB, 1999.
WEBER, Max. Die Wirtschaftsethik der Weltreligionen: Konfuzianismus
und Taoismus. Tübingeh: J.C.B Mohr, 1991.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo:
Cia. das Letras, 2004.

76
trAdIçõeS polítIcAS
Á l va r o de v i ta

libEraliSmo

é impossível empregar a palavra “liberalismo” para designar


uma doutrina ou uma ideologia política única. O que se fará a
seguir é contrastar duas formas muito distintas de conceber, na
complexa tradição do liberalismo político, as relações entre ética
e política. O que justifica essa escolha de delimitação é a supo-
sição de que não há como pensar a corrupção política a não ser
tendo-se por base algum entendimento do slogan, que se tornou
onipresente no debate público de muitos países, “mais ética na
política”. O que o liberalismo político pode nos dizer sobre isso?
Principiemos por uma ideia que, formulada no grau máximo
de generalidade possível, está presente em toda a tradição do
liberalismo político, clássico e contemporâneo. Uma comunidade
política liberal justa é aquela que propicia a seus membros as
condições para que cada um possa agir com base em suas próprias
convicções sobre aquilo que tem valor intrínseco na vida. Apesar
de genérica, essa ideia já tem um potencial de discriminação
normativa que não é negligenciável. De acordo com essa visão,
não cabe à autoridade política determinar que objetivos e fins
– quer isso diga respeito a “nobres” ideais morais, religiosos ou
políticos ou ao interesse próprio individual – as pessoas devem
se empenhar em realizar em suas vidas. O poder político não
pode ser exercido com base na suposição de que há uma doutrina
verdadeira, quer se trate de uma religião ou de uma doutrina
moral ou política, sobre o que constitui a boa vida para o homem,
à qual os indivíduos, coercitivamente se necessário, devem se
conformar; e dispor de soberania para determinar que convicções
de valor moral deverão guiar as próprias escolhas é aquilo que,
para qualquer variante de liberalismo político, responde pela
ideia de liberdade individual. A primeira formulação dessa visão,
ainda que não inteiramente despida de ambiguidades, é a que se
encontra na Carta acerca da tolerância (publicada em 1689), de
John Locke.1 E essa é essencialmente a visão que vamos encontrar
nas obras políticas de uma longa linhagem de pensadores que
contribuíram para o liberalismo político, como Immanuel Kant,2
Benjamin Constant3 e John Stuart Mill.4
Mas como se deveriam entender as condições que capacitam
cada cidadão a agir de acordo com suas próprias convicções de
valor moral? As controvérsias sobre essa questão respondem
pela diferenciação de posições no campo do liberalismo político
contemporâneo, pelo menos quando o que está em questão são
as relações entre ética e política. Aqui seria o caso de recorrer a
uma noção de “justiça procedimental”. Um Estado liberal justo
deveria limitar sua intervenção à garantia de uma estrutura de
instituições políticas, legais (o Estado de Direito) e socioeco-
nômicas sob a qual indivíduos e grupos podem perseguir os fins e
objetivos que julgarem corretos – sujeitando-se a algo similar ao
“Harm Principle” de John Stuart Mill, segundo o qual a coerção
coletiva da sociedade só pode ser empregada para restringir a
liberdade individual quando isso for necessário para evitar que
danos sejam causados a outros.5 A justiça é “procedimental” no
sentido de que o emprego da coerção coletiva, sob um Estado
liberal justo, não é guiado por uma doutrina religiosa, por uma
visão sobre o que constitui o bem humano supremo ou a felicidade
humana, ou ainda por um plano de reorganização da sociedade
em bases supostamente racionais; o emprego da coerção coletiva
só se justifica para garantir uma estrutura institucional equitativa
sob a qual os cidadãos (como pessoas privadas) têm a discrição
de viver de acordo com seus próprios valores, fins e preferências
e a responsabilidade de assumir as consequências de suas próprias
escolhas. Se a estrutura institucional pode ser justificada como

79
um procedimento justo, então quaisquer resultados que se pro-
duzam da aplicação consistente desse procedimento – nisso se
incluindo posições relativas desiguais na distribuição de renda
e riqueza e de outras vantagens sociais – deverão também ser
considerados justos.6
Mas tudo o que conseguimos, até aqui, foi alterar a formu-
lação da pergunta feita no início do parágrafo precedente. Como
deveríamos interpretar as exigências da justiça procedimental? A
resposta a essa pergunta delimita duas vertentes muito distintas
no campo do liberalismo político contemporâneo. Uma delas
pode ser designada pelo neologismo “libertarianismo” e está
associada a teóricos como Friedrich Hayek,7 James Buchanan8 e
Robert Nozick.9 O valor central, para essa vertente, é uma noção
de liberdade negativa10 que tem por foco a não interferência,
sobretudo por parte da autoridade política (mesmo quando
exercida de forma democrática), em direitos de propriedades ou
“titularidades” adquiridos por meio de uma cadeia de transações
de mercado voluntárias e não fraudulentas. O slogan “mais ética
na política” é interpretado, dessa perspectiva, por referência a
deveres de caráter negativo – “não interfira na integridade física
e nos direitos de propriedade de outros”, “não descumpra suas
promessas e contratos válidos”, “não aja de forma desonesta
ou fraudulenta”, e assim por diante – que agentes privados e
públicos não devem jamais descumprir, ainda que as motivações
para fazê-lo sejam fins socialmente desejáveis, e não práticas
e atividades corruptas. A justiça, nesse caso, é uma virtude da
conduta individual11 e se exprime por meio de interdições “deonto-
lógicas”– deveres negativos de caráter não excepcionável – que se
impõem às linhas de ação que podem ser adotadas pelos agen-
tes, em especial quando se trata do exercício do poder político.
Denominemos esse liberalismo “deontológico”.
O liberalismo deontológico se presta à perfeição para dotar
de um fundamento ético o ponto de vista daqueles que querem
restringir as decisões políticas e a intervenção estatal ao mínimo

80
indispensável à manutenção da ordem pública, à garantia de
direitos de propriedade e de cumprimento dos contratos e
à vigência de normas que coíbam termos fraudulentos de
concorrência econômica. Há uma clara afinidade eletiva entre o
liberalismo deontológico e a vertente da teoria econômica que
se estruturou a partir da noção de “sociedade rent-seeking”.
Para economistas como Gordon Tullock, Anne Krueger, Robert
Tollison e James Buchanan,12 a intervenção estatal na economia,
por meio de taxas, tributos, concessão de monopólios e de sub-
sídios, de licenças de importação e contratos de fornecimento de
produtos e serviços a órgãos públicos, gera “rendas”. Por “renda”,
entenda-se aquele prêmio que supera o lucro que os agentes
econômicos obteriam em transações mutuamente benéficas,
entre um vendedor e um comprador de um produto ou serviço,
em um mercado competitivo. Para essa literatura, a intervenção
na economia por meio do processo político gera incentivos para
que os agentes econômicos, ao invés de competirem por meio
da redução de custos e do aumento de produtividade, dissipem
recursos competindo entre si para influenciar as autoridades e
burocratas do Estado que instituem e controlam as formas de
intervenção que geram “rendas”. Essa competição para capturar
rendas envolve atividades tais como fazer lobby, campanhas
de relações públicas e o suborno de autoridades e funcionários
públicos. As recomendações de reforma institucional e de política
pública que se seguem são claras: quanto menos intervenção
estatal na economia, e quanto mais o Estado ficar restrito às fun-
ções prescritas pelo Estado mínimo do liberalismo deontológico,
mais recursos serão liberados para usos que são economicamente
eficientes (profit-seeking) e menos oportunidades haverá para
as atividades rent-seeking, entre as quais se encontram aquelas
que envolvem corrupção política.
Em forte contraste com o liberalismo deontológico, as exi-
gências da noção de justiça procedimental são interpretadas
de forma muito distinta por uma outra vertente do liberalismo

81
político. Para essa segunda vertente, não é suficiente, para que
cada cidadão disponha das condições que lhe permitem viver de
acordo com suas próprias convicções de valor moral, que seja
institucionalmente garantida uma esfera de liberdade negativa;
ademais, é preciso que os arranjos institucionais básicos da
sociedade, políticos e socioeconômicos, propiciem a cada cida-
dão os meios efetivos de fazê-lo, nisso se incluindo um quinhão
equitativo de oportunidades sociais, renda e riqueza. A preocu-
pação central segue sendo com procedimentos justos, não com
resultados justos ou com resultados iguais. Mas o valor central,
para essa segunda vertente, é uma noção de liberdade efetiva.
Aos cidadãos, coletivamente, cabe a responsabilidade de tornar
as instituições políticas e socioeconômicas de sua sociedade um
“procedimento justo”, que distribua oportunidades sociais
e recursos sociais escassos de forma a permitir que cada cidadão
tenha como viver de acordo com os fins que julga mais corretos
e exercer seus direitos civis e políticos de forma efetiva; aos
cidadãos, individualmente, cabe a responsabilidade de ajustar
suas aspirações àquilo que podem razoavelmente esperar das
instituições de sua sociedade e assumir a responsabilidade pelas
consequências de suas próprias escolhas.
“Mais ética na política”, nessa segunda variante de libera-
lismo político, não significa somente fazer com que se cumpra
um rol de interdições deontológicas que se aplicam à conduta
de cidadãos individuais e de agentes públicos, e sim diz respeito,
essencialmente, aos esforços que os cidadãos e seus representantes
devem realizar para tornar os arranjos institucionais básicos de
sua sociedade um “procedimento justo” no sentido especificado
no parágrafo anterior. A política se torna mais ética aprimo-
rando-se a justiça das instituições, e não, primariamente, pela
observância estrita de deveres morais que se aplicam à conduta
individual. O foco da avaliação ética recai na distribuição insti-
tucional de direitos, liberdades, oportunidades e recursos sociais
escassos, e não na medida em que a conduta de autoridades e

82
funcionários públicos se conforma a deveres morais deontológicos.
E como quer que se interpretem as implicações institucionais e
de política pública dessa visão, um vasto papel é reservado à
intervenção estatal. Longe de ser um mal necessário, como é
visto pelo liberalismo deontológico e pela teoria da “sociedade
do rent-seeking”, o Estado tem um papel ativo a desempenhar
para libertar as pessoas de circunstâncias desfavoráveis, como
a pobreza, desigualdades sociais profundas e arraigadas e vastas
disparidades de oportunidades de vida e para capacitar os
cidadãos econômica e politicamente. Essa linhagem de libera-
lismo político, às vezes denominada “liberalismo de bem-estar
social”, tem um considerável pedigree histórico, que remonta
a pensadores liberais britânicos como Thomas Hill Green13 e
Leonard Trelawny Hobhouse.14 Mas é no “liberalismo igua-
litário” proposto por autores contemporâneos, entre os quais
sobressaem John Rawls15 e Ronald Dworkin,16 que esse ponto de
vista encontra uma formulação teórica mais clara e sofisticada.
Para finalizar, mencionem-se as questões em aberto que
permanecem, da ótica da temática discutida neste volume, para
cada uma das vertentes de liberalismo político que aqui foram
examinadas. Será que as políticas de desregulamentação econô-
mica e de redução da intervenção estatal nos mercados, recomen-
dadas pelo liberalismo deontológico e pela teoria econômica da
“sociedade rent-seeeking”, de fato contribuem para a redução da
corrupção política? A resposta a essa questão, que está longe de
ser óbvia, depende de estudos empíricos.17 E, inversamente, será
verdade que um Estado liberal comprometido ativamente com
a realização institucional de uma visão de justiça social, reco-
mendado pelo liberalismo de bem-estar social e pelo liberalismo
igualitário, necessariamente abre mais espaço para a corrupção
política? Big government, como se diz com sentido depreciativo nos
Estados Unidos, é sinônimo de mais corrupção? Sobre isso, não
é possível dizer muita coisa, no momento, além de apontar para
o caso dos países escandinavos, que combinam big government

83
– um setor público grande, que resulta dos sistemas tributários
e de transferências dos welfare states mais redistributivos que
existem no mundo – com níveis mínimos de corrupção política.
Isso sugere que o tamanho do Estado e o grau de intervenção
estatal na economia não são necessariamente as variáveis-chave
para explicar a corrupção.

NOTAS
1
LOCKE. Carta acerca da tolerância.
2
KANT. On the common saying: “This may be true in theory, but it does not
apply in practice”.
3
CONSTANT. Escritos de política.
4
MILL. On liberty.
5
MILL. On liberty.
6
RAWLS. A theory of justice, p. 84-87.
7
HAYEK. Law, legislation and liberty.
8
BUCHANAN. The limits of liberty. Between anarchy and Leviathan.
9
NOZICK. Anarchy, State, and utopia.
10
BERLIN. Dois conceitos de liberdade.
11
HAYEK. Law, legislation and liberty, p. 31-56. v. 2.
12
KRUEGER. The political economy of the rent-seeking society; TOLLISON.
Rent-seeking: a survey.
13
GREEN. Liberal legislation and freedom of contract.
14
HOBHOUSE. Liberalism.
15
RAWLS. A theory of justice; RAWLS. O liberalismo político.
16
DWORKIN. Liberalism; DWORKIN. Liberal community.
17
Um esforço nessa direção é GERRING; THACKER. Do neoliberal policies deter
political corruption?

84
REFERÊNCIAS
BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade. In: HARDY, H.; HAUSHEER,
R. (Org.). Estudos sobre a humanidade. Uma antologia de ensaios. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.
BUCHANAN, James. The limits of liberty. Between anarchy and Leviathan.
Chicago: The University of Chicago Press, 1975.
CONSTANT, Benjamin. Escritos de política. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
DWORKIN, Ronald. Liberalism. In: HAMPSHIRE, S. Public and private
morality. Cambridge-Mass.: Harvard University Press, 1978.
DWORKIN, Ronald. Liberal community. In: ______. Sovereign virtue.
The theory and practice of equality. Cambridge-Mass.: Harvard University
Press, 2000.
GERRING, John; THACKER, Strom C. Do neoliberal policies deter politi-
cal corruption? International Organization, 59, p. 233-254, 2005.
GREEN, Thomas Hill. Liberal legislation and freedom of contract. In:
______. Collected works. Londres: Macmillan, 1892.
HAYEK, Friedrich. Law, legislation and liberty. Chicago: The University
of Chicago Press, 1976. 3 v.
HOBHOUSE, Leonard Trelawny. Liberalism. Oxford: Oxford University
Press, 1911.
KANT, Immanuel. On the common saying: “This may be true in theory,
but it does not apply in practice”. In: REISS, H. (Org.). Kant’s political
writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.
KRUEGER, Anne. The political economy of the rent-seeking society. Ame-
rican Economic Review, 64, p. 291-303, 1974.
LOCKE, John. Carta acerca da tolerância. In: LOCKE, J. Carta acerca da
tolerância; Segundo tratado sobre o governo; Ensaio sobre o entendimento
humano. Tradução de Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. São Paulo: Abril
Cultural, 1978.
MILL, John Stuart. On liberty. In: COHEN, M. (Org.). The philosophy
of John Stuart Mill. Ethical, political and religious. New York: Random
House, 1961.
NOZICK, Robert. Anarchy, State, and utopia. New York: Basic Books, 1974.
RAWLS, John. A theory of justice. Cambridge-Mass.: Harvard University
Press, 1971.

85
RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000.
RYAN, Alan. Liberalism. In: GOODIN, R. E.; PETTIT, P. (Org.). A com-
panion to contemporary political philosophy. Oxford: Blackwell, 1995.
TOLLISON, Robert. Rent-seeking: a survey. Kyklos, 35, p. 575-602, 1982.
VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário. Sociedade democrática e justiça
internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

86
newton bignotto

rEpubliCaniSmo

O tema da corrupção faz parte da filosofia política antiga da


mesma maneira que o debate sobre o melhor regime, sobre a
felicidade ou sobre a condição do bom cidadão. Primariamente,
ele dizia respeito não apenas à esfera dos negócios humanos, mas
às coisas em geral.Assim, em Aristóteles, corrupção e geração eram
termos essenciais para compreender as mudanças que ocorrem
na natureza. Num sentido amplo, a corrupção descrevia um
movimento interior às coisas, que estavam submetidas a um
tempo circular, que transformava continuamente o reino sublunar.
Dela escapavam apenas as esferas que transcendiam o reino
imperfeito dos homens e da matéria terrestre.
Do ponto de vista da política, a afirmação da inevitabilidade
da corrupção e da possibilidade da regeneração em função do
caráter circular do tempo significa que todas as formas políticas
morrem e estão submetidas a uma lei da qual não podem escapar
por suas próprias forças. A consequência principal, para Platão,
como para Aristóteles, é que, para escapar da destruição das cida-
des, os homens devem procurar construir regimes capazes de
resistir à passagem do tempo da melhor maneira possível. Dessa
preocupação surgiu o tema do regime misto. Ele foi desenvolvido
a partir da República de Platão e está presente na Política de
Aristóteles. Mais tarde foi difundido pelo historiador Políbio, que
insistiu no fato de que o número de formas de governo possíveis
é finito e que cada uma delas está submetida a um “defeito”
particular. Esse “defeito” nada mais é, para ele, do que seu caráter
particular, que as torna vulneráveis à passagem do tempo e à ação
dos homens. A solução para a corrupção dos regimes, como ele
sublinhou em seu livro sobre a história romana, é a construção
de um regime que misture as características das três formas prin-
cipais de governo – a monarquia, a aristocracia e a democracia –,
tornando dessa maneira o corpo político mais resistente aos
ataques do tempo, mas não invulnerável a seus efeitos.
Embora não possamos desprezar a importância de Políbio
para a propagação da ideia do regime misto, particularmente
no início da modernidade, nem sempre sua abordagem foi a
mais fecunda, quando pensamos do ponto de vista da tradição
republicana. Se tomarmos como referência apenas a obra de
Aristóteles, veremos que ele possui uma visão bem mais nuançada
do problema. Em primeiro lugar, ele destaca no quinto livro da
Política que as causas que levam às mudanças no interior dos
regimes estão no mais das vezes relacionadas com as disputas em
torno de bens e direitos e a sentimentos relativos à igualdade ou
à desigualdade. O sentimento de desigualdade entre os cidadãos
é, para ele, um dos motores mais poderosos das transformações
que alteram os corpos políticos. A resistência a elas depende da
existência de um corpo de leis capaz de conter as razões, muitas
vezes insignificantes, das discórdias, e não apenas a mistura de
aspectos formais dos diversos regimes. A corrupção afeta os
sentimentos dos cidadãos, mas, antes de mais nada, destrói as
leis essenciais das cidades. Como sublinha Sérgio Cardoso: “a
politeia é essencialmente o ‘governo da lei’, antes que o governo
do Bem ou o governo de homens movidos por princípios de atu-
ação específicos (a sabedoria, a virtude, a riqueza ou a liberdade),
como no caso dos demais regimes.”1
A tradição republicana moderna, iniciada com os huma-
nistas italianos do século 15 – Salutati, Bruni, Palmieri e outros –,
desenvolvida por pensadores do século 16 como Maquiavel e
Guicciardini, herdou muito dos princípios desenvolvidos pelos
antigos e soube dar-lhes uma feição adaptada aos novos tempos.
Maquiavel, em particular, mostrou ser a corrupção a degradação

88
da liberdade política e a destruição de seus efeitos positivos no
interior das cidades. De forma resumida, podemos dizer que o pen-
sador florentino fez da corrupção, ou dos regimes corrompidos,
o oposto simétrico das repúblicas. Como para ele a república não
é um ideal utópico, mas a melhor forma de governo possível, a
corrupção é sempre a perda de uma possibilidade de ação, que
baseada na prevalência do bem comum, torna a forma republi-
cana a mais capaz de se desenvolver e se expandir.
Dois pensadores foram essenciais para a recepção e trans-
formação da questão da corrupção e do tratamento dado a
ela pela tradição republicana. Rousseau foi o responsável pelo
desenvolvimento de uma teoria republicana da corrupção, que
não partia mais da ideia de um tempo circular, nem de conside-
rações a respeito do regime misto. Para ele, a história humana
é já uma corrupção do estado de natureza e implica a perda da
bondade, que não pode mais ser recuperada uma vez constituídas
as sociedades políticas. Esse primeiro sentido da corrupção é im-
portante porque ajuda a compreender os capítulos dedicados
à morte do corpo político no Contrato social. Assim, no décimo
capítulo do terceiro livro, Rousseau afirma que nada pode deter
a tendência do corpo político a degenerar, o que está de acordo
com suas observações a respeito dos efeitos nefastos da perda
da transparência original. O mais importante, no entanto, não
é a constatação da coerência interna de sua filosofia, mas a
afirmação de que a corrupção é antes de tudo a destruição da
vontade soberana expressa no contrato. Quanto mais se afasta
dos desígnios da vontade geral, mais o corpo político se corrompe.
Na linguagem atual, podemos dizer que Rousseau faz da corrupção
o processo de degradação do sentido das leis fundamentais
expresso nas constituições.
Na mesma época, Montesquieu, um pensador que não podemos
associar diretamente à tradição republicana, pelo menos em sentido
estrito, deu uma grande contribuição para o desenvolvimento de
uma teoria moderna sobre o problema, ao mesmo tempo em que
colaborou para o surgimento de alguns impasses contra os quais

89
os teóricos republicanos têm de lutar até hoje. No oitavo livro
do Espírito das leis, ele afirma: “A corrupção de cada governo
começa quase sempre pela dos princípios.” Ora, Montesquieu
definia a república, como os outros regimes, por seu princípio,
que no caso específico é a virtude. A perda da virtude por parte
dos cidadãos era, para ele, um sinal evidente da corrupção do
regime. Montesquieu tinha dúvidas quanto à possibilidade de
que em seu tempo pudesse ser erigida uma república nos mol-
des daquelas da Antiguidade. À luz dessa afirmação, muitos
pensadores acabaram concluindo que a experiência republicana
baseada no princípio da virtude é impossível nos nossos dias, o
que parece desautorizar qualquer análise da questão da corrupção
a partir daquela da virtude. Mas as dúvidas de Montesquieu
não anulam o alcance de suas considerações sobre nosso tema.
A virtude era um referencial de ação numa república, o que não
significava que ela estava presente nas ações de todos os cida-
dãos. O que ele quer dizer é que a virtude orienta as ações dos
habitantes de uma república e que, quando ela desaparece ou
deixa de guiar as ações políticas, todo um conjunto de valores
desaparece, ou deixa de ser fundamental. Por isso, o regime se
corrompe, ou perde sua identidade, expressa no mais das vezes
em suas leis fundamentais.
A ideia de tratar a corrupção a partir do regime político vai
ao longo do século 19 perdendo força, para dar lugar à noção
de corrupção dos atores políticos. O pensamento liberal dos
últimos dois séculos baseou suas formulações na ideia de que a
associação da virtude à política é uma obra da Antiguidade,
que não tem mais lugar nas sociedades modernas. Os homens
agem sempre por interesse e, por isso, não há como ligar direta-
mente suas ações a um conjunto de valores associados à tradição
republicana. Para muitos, como é o caso, no século 20, de
Berlim, a reivindicação de uma virtude republicana é um risco
terrível para as sociedades democráticas. Essas críticas estão
no centro do debate entre pensadores liberais e republicanos e

90
influenciaram diretamente as formulações sobre a corrupção no
seio do republicanismo contemporâneo.
Podemos apontar duas vertentes interessantes na atualida-
de para o tratamento da questão da corrupção no interior do
pensamento republicano. A primeira está presente na obra de
Philip Pettit, Republicanism. Ele parte da ideia de que as pes-
soas, que ocupam o poder, não são todas corruptas, mas são
todas corruptíveis. Se todas fossem corruptas, nota Pettit, isso
implicaria dizer que as instituições republicanas são incapazes
de lidar com a virtude dos cidadãos. Como, para ele, esse não é
o caso, o acento deve estar na preservação do caráter virtuoso
de alguns atores políticos e no combate ao vício de outros. O
autor reconhece o papel da educação, da profissionalização dos
quadros burocráticos e mesmo o papel emulador da virtude no
combate à corrupção. Para ele, no entanto, esses mecanismos
são insuficientes para lidar com a corrupção em um Estado
republicano. O melhor é abordar o problema no plano institu-
cional, recorrendo a sanções, tanto positivas quanto negativas, e
a “filtros ou proteções”, que afetam as oportunidades oferecidas
aos agentes públicos, mas não agem sobre os incentivos. A tônica
da abordagem de Pettit é a construção de mecanismos que,
conferindo pouco peso à virtude dos cidadãos, prefere afirmar
o terreno das instituições como aquele no qual é possível lidar
com o fenômeno da degradação das condições necessárias para
a existência de um Estado democrático republicano de maneira
realista.
A segunda vertente de análise está presente nos escritos de Charles
Taylor. Para o pensador canadense, a corrupção está associada
diretamente à incapacidade institucional de permitir a parti-
cipação dos indivíduos na vida pública. A corrupção afeta os
indivíduos, mas é na falência de seus vínculos com a sociedade
que ela se manifesta de forma efetiva. Incapazes de participar,
ou de assumir seu papel na instituição de um autogoverno, que
para ele deve caracterizar um Estado republicano, os cidadãos
perdem o sentido de identidade coletiva, que está na raiz de

91
sociedades fortes e florescentes. A ideia de bem comum só pode
aparecer, segundo ele, em comunidades nas quais o sentimento de
pertencimento a um todo é capaz de levar os indivíduos a agir em
favor de objetivos que são reconhecidos e aceitos como de toda a
comunidade. Perdida a identidade com o Estado republicano, as
portas estão abertas para uma série de processos que ameaçam
a sobrevivência das sociedades democráticas.
Na esteira dos escritos de Taylor, é possível pensar o problema
da corrupção levando em conta uma concepção do republica-
nismo diferente daquele de Pettit, que em muitos aspectos está
bastante próximo das teses defendidas por autores liberais, que
tendem a pensar a corrupção, sobretudo, a partir do compor-
tamento dos agentes públicos. Recuperando algumas definições
clássicas, podemos dizer que a corrupção descreve para o
republicanismo cívico não apenas comportamentos desviantes
de indivíduos, mas também a perda de referenciais, que levam
os homens a agir em prol do interesse público. Conservando a
herança de Maquiavel, que via na corrupção a perda da liber-
dade política, aquela de Rousseau, para quem a corrupção é a
destruição da vontade soberana, é possível dizer que uma teoria
republicana atual realça, em acordo com essas duas formulações,
a ideia de que a corrupção é um processo que pode ser analisado
a partir da destruição dos interesses públicos não apenas por
atores individuais, mas também por partidos políticos e atores
econômicos. Esse traço já estava presente em pensadores antigos,
mas ganha uma importância especial numa época que tende a
pensar a política apenas como um jogo de equilíbrio entre as
vontades particulares.

NOTA
1
CARDOSO. Que República? Notas sobre a tradição do governo misto, p. 40.

92
REFERÊNCIAS
ARISTOTE. La politique. Paris: J. Vrin, 1982.
BRUGGER, B. Republican theory in political thought. London: MacMillan
Press, 1999.
CARDOSO, S. Que República? Notas sobre a tradição do governo misto.
In: BIGNOTTO, N. Pensar a República. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2000. p. 27-48.
DAGGER, R. Civic virtues. Oxford: Oxford University Press, 1997.
HONOHAN, I. Civic Republicanism. London: Routledge, 2002.
MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.
MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Abril, 1979.
PETTIT, P. Republicanism. Oxford: Oxford University Press, 1999.
POLYBIUS. The rise of the Roman Empire. London: Penguin Books, 1979.
ROUSSEAU, J.-J. Du contrat social. In: ______. Oeuvres complètes. Paris:
Gallimard, 1964.
TAYLOR, C. Argumentos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000.
VIROLI, M. Repubblicanesimo. Roma-Bari: Laterza, 1999.

93
Juarez guiMarãeS

SoCialiSmo

Diante da autopresumida identificação entre o socialismo e


uma sociedade autogerida, com a progressiva superação do Estado
como corpo separado e intransparente, e a crítica liberal que
vincula socialismo ao estatismo e à expansão inaudita da corrupção,
seria necessário fundar um campo coerente de reflexão.
O centro da crítica liberal identifica a centralização estatal
da vida econômica e a concentração do poder como origem
inevitável do caráter sistêmico, onipresente e difuso do fenô-
meno da corrupção no socialismo. A restrição às liberdades, o
princípio do partido único, a perda de autonomia dos poderes
Legislativo e Judiciário frente ao Executivo conspirariam para
tornar crônico o fenômeno da corrupção, insuperável nos marcos
institucionais referidos. Por fim, a adoção de uma cerrada mística
coletivista, na prática substituída por uma moral instrumental
de justificação dos meios pelos fins, legitimaria os privilégios de
uma elite dirigente.
No campo da própria cultura socialista, que foi se tornando
predominantemente crítica à experiência da União Soviética
(URSS) a partir dos anos de 1950/1960, formaram-se três campos
alternativos de análise.
O primeiro deles foi a interpretação do surgimento de uma
camada burocrática que, incapaz de alterar os fundamentos
coletivistas do modo de produção, passou a concentrar despo-
ticamente o poder e a se apropriar para benefício próprio de
parcelas do produto social. A segunda interpretação identifica a
formação de uma nova classe dominante, baseada em um novo
tipo de exploração de classe, através do controle estatal dos
meios de produção. Uma terceira interpretação diagnosticou
uma restauração do capitalismo como resultado da incapaci-
dade do proletariado (e seu partido) manter-se dominante na
luta de classes no período da transição.
De um lado, a crítica programática do liberalismo falha ao
correlacionar unilateralmente tamanho de Estado e corrupção.
Os Estados do Bem-Estar Social do Norte da Europa são, por
exemplo, conhecidos tanto pela expansão de seus sistemas esta-
tais como por padrões dos mais reduzidos de corrupção. O
retorno da antiga URSS ao capitalismo, por sua vez, através de
um programa generalizado de privatizações, foi acompanhado
por uma exponenciação dos circuitos da corrupção. De outro
lado, as reflexões mais típicas da cultura socialista limitam-se à
identificação de diferentes modalidades de desvio histórico em
relação ao paradigma teórico do socialismo, como se este esti-
vesse esclarecido e estabilizado em seus fundamentos teóricos.
A precisa questão que deve, em consequência, ser respondi-
da é: há na obra de Marx, fundador da principal tradição do
socialismo moderno, a construção de um princípio coerente de
universalização de uma nova ordem política crítica e alternativa
aos fundamentos liberais particularistas da ordem capitalista?
Um princípio capaz de elaborar a gramática republicana do inte-
resse público e permitir identificar, por oposição, o fenômeno
da corrupção?

MARXISMO E REPUBLICANISMO
A resposta a esta pergunta deve ser condicionada e ambivalente.
De um lado, todo o desenvolvimento intelectual e político de
Marx pode ser compreendido através do esforço em compreender
e denunciar o particularismo do Estado prussiano e da sua mais
alta justificação filosófica, formulada no sistema hegeliano e,

95
depois, da ordem política liberal e de seu fundamento civilizatório
expresso na tradição da economia política.
Neste percurso, é possível identificar a crítica do funda-
mento teológico do Estado prussiano (feita, em um primeiro
momento, em uma linguagem hegeliana, a partir da noção de
Estado racional), do princípio da legitimidade monárquica (a
partir da figura rousseaniana do demos total, da permanente
instituição do povo), do princípio ético-universal do Estado
prussiano (a partir dos interesses dominantes na sociedade civil
burguesa). Em A questão judaica, aparece o sentido unilateral e
limitado da liberdade política concebida em chave liberal, que
cindiria a figura do cidadão em relação a sua condição social
subalterna na vida social e na economia. O Manifesto comunista
historiciza e denuncia o caráter classista dos Estados liberais
censitários e elitistas do século 19. No 18 Brumário de Louis
Bonaparte e em A guerra civil na França, Marx elabora, enfim,
a crítica de um Estado centralizado, autonomizado do controle
da sociedade, formando a sua vasta burocracia e a diferenciação
de seus privilégios.
Por fim, o trabalho intelectual de Marx que amadurece em O
capital antepõe às figuras liberais do trabalho livre, da troca
de equivalentes e da ordem autônoma e natural do mercado,
o conceito central de capital, que articula, em seu circuito de
valorização, as várias dimensões de dominação da vida social.
De outro lado, toda a obra de Marx pode ser lida a partir da
sua incapacidade de estabilizar um princípio de universalização
coerente e alternativo à ordem liberal.
Em uma primeira fase, que vai até 1844, Marx ainda trabalha
a partir de uma perspectiva democrática radical e republicana.
Mas a sua crítica ao liberalismo ainda carece de uma compre-
ensão da gramática que articula o solo da moderna sociedade
capitalista em expansão. Daí que a sua figura de povo seja ainda
sociologicamente abstrata e indeterminada.
Em uma segunda fase, em que vai amadurecendo um campo
analítico-normativo da sociedade capitalista moderna e suas

96
tendências de desenvolvimento, ele está distanciado das figuras
do republicanismo e trabalha com um princípio de universali-
zação alternativo à noção de soberania popular.
Central nesta passagem da perspectiva democrática radical
e republicana para a identidade socialista e revolucionária
é a figuração do proletariado como classe universal, não em
sua existência empírica, mas em suas tendências imanentes de
desenvolvimento a partir de sua central e própria inserção nas
contradições do capitalismo. Ora, essa identificação de uma
classe com um sentido imanente universalista expressa uma
filosofia da história e só pode ser atualizada historicamente pela
presença de um particular que assume, por autoproclamação,
as figuras de um tal universalismo. Que o proletariado, por se
definir pela própria contradição com o capitalismo, seja a classe
potencialmente mais em condições de vir a desenvolver projetos
alternativos ao capitalismo não faz dele necessariamente uma classe
universal nem revolucionária.
Há, assim, ao mesmo tempo na obra de Marx uma crítica
fecunda ao particularismo da sociedade mercantil estruturada
a partir de pressupostos liberais e uma alternativa de princípio
de universalização – a condição historicamente imanente do
proletariado – que não fundamenta, de um ponto de vista repu-
blicano, a legitimidade do interesse público. A ligar a crítica e
a falta está certamente o fato de a crítica da economia política
em Marx ser feita em seu próprio terreno, isto é, na análise das
tendências de desenvolvimento do sistema capitalista, e não ser
expandida aos seus fundamentos ético-políticos liberais.
O liberalismo não é apenas o princípio de legitimação de
um determinado modo de produção, mas também de uma cultura
e de um Estado que organizam todas as dimensões da vida social.
é, pois, um princípio completo de civilização e a construção de
uma alternativa a ele exigiria um desenvolvimento ético-político
do marxismo, como refletiu Antonio Gramsci nos Cadernos do
cárcere. A filosofia da história que está presente na atribuição de
um sentido universal histórico imanente ao proletariado impede

97
este desenvolvimento ético-político pleno do marxismo. Ela cobre
justamente a falta na obra de Marx de um desenvolvimento de
uma teoria democrática e republicana que vá além dos limites
do liberalismo.
Este limite e esta falta na obra de Marx não justificam, decerto,
como pretende um certo paradigma de interpretação histórica
liberal, a acusação de que a origem dos crimes cometidos nas
sociedades que se reivindicavam do socialismo deve ser encon-
trada no pensamento do fundador do socialismo moderno. As
mediações entre a teoria e a história não são, assim, idealmente
configuradas: as mediações culturais, a ordem do contingente,
do acaso e do arbítrio fazem sempre valer a sua força. Mas seria
um erro simétrico explicar os desacertos da experiência como
pura negação da teoria que as inspirou, como se a história não
estivesse à altura do paradigma celebrado.

SOCIALISMO E INTERESSE PúBLICO


A compatibilização da cultura do socialismo com o conceito
de interesse público demandaria, ao menos, três desenvolvi-
mentos conceituais.
Em primeiro lugar, o retorno do socialismo ao solo da soberania
popular e do republicanismo, escorando a noção de interesse
público em um fundamento da vontade das maiorias em seu
exercício institucionalmente livre e plural de opinião, discussão,
deliberação e regulação.
Em segundo lugar, retomando a noção de economia do setor
público, democraticamente regulada com fins universalistas, a
partir da crítica e alternativa ao capital como princípio de orga-
nização da vida econômica e social. Mais além da definição do
capital como uma relação social historicamente produzida, que
aparece no volume III de O capital, seria necessário compreender
o capital como uma relação política de dominação. Isto é, não
são relações sociais externas ou antecedentes ao Estado, mas
estruturas de propriedade, de produção e de apropriação definidas,

98
reguladas e alimentadas pelo controle de um Estado que vai
construindo sua legitimidade a partir de pressupostos liberais.
Essa combinação de um Estado fundado em princípios de
soberania popular e de economia do setor público demandaria
a elaboração e desenvolvimento de uma ética pública, centrada
na cultura dos valores e virtudes que legitimam os interesses
deliberados como comuns aos cidadãos, bem como a regulação
do exercício de seus interesses particulares em relação a estes
interesses comuns.

99
andré MaCedo duarte

totalitariSmo

Discutir a relação entre totalitarismo e corrupção exige, em


primeiro lugar, tomar posição em relação à própria categoria do
totalitarismo, dado o seu caráter polêmico. Conforme o Dicio-
nário de política de Bobbio, Mateucci e Pasquino, ela começou
a ser utilizada na Itália fascista, a partir do início dos anos de
1930, mas somente se tornou frequente entre os teóricos da
política a partir dos anos de 1940. Karl Popper, em seu livro A
sociedade aberta e seus inimigos, de 1943, já a emprega, embora
não a refira a formas específicas de organização da vida política,
mas a um conflito que perpassaria a tradição do pensamento
filosófico de Platão a Marx, entre os teóricos das sociedades
abertas, universalistas e racionalistas, e os teóricos das sociedades
fechadas, totalitárias e irracionais.
A noção de totalitarismo alcançou seu apogeu durante a
Guerra Fria, quando foi por vezes empregada como adjetivo
depreciativo contra os regimes comunistas, tornando-se rejeitada
por alguns teóricos como carente de especificidade analítica.
Mais recentemente, teóricos como Domenico Losurdo1 e Slavoj
Zizek2 têm recusado e denunciado a categoria de totalitarismo
por nela reconhecerem um instrumento ideológico que visaria
encobrir as deficiências e patologias da democracia liberal no
mundo pós-totalitário. Para Losurdo, se a categoria de totalita-
rismo continua a ser empregada atualmente, no pós-Guerra Fria,
isso se deve a uma trágica contradição performativa: a contínua
denúncia dos horrores do totalitarismo serviria à exigência de
obliterar os crimes cometidos pelas democracias liberais oci-
dentais, particularmente pelos Estados Unidos, país em torno
do qual se organiza a nova frente de combate contra o perigo
do totalitarismo fundamentalista islâmico. De maneira similar,
para Zizek, o emprego contemporâneo da noção de totalitarismo
serviria ao propósito de impedir o pensamento e a ação dos
grupos políticos situados para além do horizonte da democracia
representativa liberal, constituindo, portanto, um recurso ideo-
lógico para desqualificar a priori os seus críticos e adversários.
Trata-se aí do emprego chantagista do termo totalitarismo,
por meio do qual se acena com os perigos do centralismo, do
assassinato em massa e da estagnação econômica a quem quer
que apresente alternativas políticas democráticas radicais ou
critique as insuficiências da democracia liberal parlamentar e
da economia de mercado.
No entanto, se é fato que a categoria de totalitarismo foi e tem
sido utilizada como recurso para a desqualificação ideológica dos
críticos da democracia liberal, nem por isso tal argumento seria
suficiente para invalidar sua relevância teórica. O conceito de
totalitarismo permanece indispensável no presente, pois recupera
a memória de uma catástrofe política cujas sombras continuam
a projetar-se sobre o presente e o futuro da democracia. Como
salientou Enzo Traverso,3 a despeito de polêmico, o conceito de
totalitarismo se impõe como ferramenta crítica indispensável
para manter aberto o horizonte da liberdade.
Dentre os teóricos que se dedicaram a pensar o totalita-
rismo como categoria analítica e explicativa, Hannah Arendt
(1906-1975) é talvez a mais notável. Em sua obra Origens do
totalitarismo, de 1951, empregou tal categoria para descrever e
analisar o nacional-socialismo de Hitler (1933-1945) e o stali-
nismo soviético (1930-1953), compreendendo tais regimes em
suas semelhanças estruturais e neles enxergando o surgimento
de um fenômeno político sem precedentes históricos. A partir
da análise de sua peculiar forma de organização institucional,
centrada na ideologia, no terror e nos campos de concentração e

101
extermínio, Arendt concluiu que o totalitarismo impusera uma
ruptura em relação às principais categorias políticas da tradição
do pensamento político ocidental, como direita e esquerda,
autoritarismo, ditadura, despotismo, tirania etc., as quais não
seriam aptas para compreendê-lo. Para a autora, o totalitarismo
não apenas transcende o escopo teórico das categorias políticas
tradicionais, como também subverte os princípios éticos e jurí-
dicos que nortearam as mais variadas formas de organização da
vida política do Ocidente, tornando, por exemplo, o genocídio
uma prática legal e rotineira, burocraticamente organizada e
implementada com recursos tecnológicos avançados.
Dada a originalidade do fenômeno totalitário, consequente-
mente, a corrupção que ali se observa não deve ser entendida
em sentido corriqueiro, tal como ela se manifesta nos regimes
políticos convencionais, isto é, de maneira geral, enquanto
desvio dos padrões legais por parte de funcionários públicos
ou representantes políticos, os quais visariam obter vantagens
ilícitas por tal meio. Em outras palavras, pensar a relação entre
totalitarismo e corrupção a partir da caracterização arendtiana
do fenômeno totalitário implica estabelecer uma correspondência
fundamental entre ambos os termos. Neste sentido, o fenô-
meno totalitário impõe a corrupção, entendida como perversão,
dos padrões normativos políticos e jurídicos que orientam as
práticas políticas dos demais regimes existentes. Para Arendt,
a novidade do totalitarismo consiste em que ele corrompe as
distinções fundamentais entre público e privado, entre Estado e
sociedade civil, entre culpados e inocentes, entre bons cidadãos
e assassinos, entre exceção e regra, entre razão de Estado, com
seus imperativos estratégicos e instrumentais, e o paroxismo de
uma lógica de atuação contraproducente e antiutilitária. Pode-se
mesmo afirmar, segundo a interpretação arendtiana, que o obje-
tivo dos governos totalitários é a corrupção do ser humano ao
reduzi-lo ao mínimo denominador comum da vida orgânica, isto
é, a um feixe de reações mecânicas condicionado por estímulos
externos, desprovido de autonomia, liberdade e espontaneidade,

102
motivo pelo qual os campos de concentração e extermínio são
suas principais instituições.
Para Arendt, o fenômeno totalitário corrompe a distinção
entre governos baseados nas leis e governos desprovidos de
legalidade, assentados na pura vontade arbitrária do déspota. Em
sua pretensão de subordinar a liberdade humana e a totalidade
da vida privada, social e política aos seus imperativos ideológicos,
apagando a distinção entre as esferas pública, privada e social, os
governos totalitários não deixam de pautar suas ações pelas leis
que promulgam. Mais importante é o fato de que os governos
totalitários alteram radicalmente o próprio conceito tradicional
da legalidade ao compreendê-la por referência a supostas leis
gerais do movimento da Natureza (nazismo) ou da História
(stalinismo). Sob o totalitarismo, as leis positivas deixam de
ser canais estáveis de limitação e promoção de novas relações
entre os homens para tornarem-se o instrumento de transformação
e criação da nova realidade totalitária. Esta, por sua vez, deve ser
conforme à ideologia exposta e imposta pelo líder absoluto do
movimento, o qual concentra em si a liderança do partido
único, do Estado e da polícia secreta, que se transforma em
poderoso braço de aplicação da legalidade totalitária.
Para Arendt, os pilares de sustentação dos regimes totalitários
são o terror, a ideologia e os campos de extermínio, instâncias que
se articulam de maneira complementar: se a ideologia totalitária
afirma que as raças inferiores ou as classes sociais decadentes
conspiram contra o governo e truncam o desenvolvimento pro-
gressivo do curso da história ou da natureza, então o terror
deve aniquilar tais raças, classes e traidores a fim de que a
história e a natureza possam seguir seu curso. Por sua vez, para
que a operação meticulosamente programada do extermínio de
milhões seja levada a cabo, todo um conjunto de prescrições
ideológicas legalizadas positivamente deve ser estritamente
respeitado e posto em prática pela polícia secreta. Garante-se
assim a privação de direitos, a remoção forçada para guetos e
campos de concentração, a desmoralização, a desnutrição, a

103
tortura e finalmente o próprio massacre e corrupção de seres
humanos transformados em vermes e parasitas abjetos. Tudo
isso significa que, sob condições totalitárias, corrompe-se a
concepção convencional a respeito dos inimigos do regime, os
quais não são designados em função do que pensem, façam ou
falem, como nas ditaduras, despotismos ou tiranias, pois o sim-
ples fato de existirem determina sua condição de inimigo objetivo
ou socialmente indesejável, destinando-os ao abate. é por isso
que as principais instituições dos governos totalitários são as
fábricas da morte, os campos de concentração e extermínio nos
quais se testa a possibilidade de reduzir os seres humanos à con-
dição da vida nua que pode ser eliminada sem mais, segundo a
terminologia empregada por Giorgio Agamben4 em seu diálogo
com a análise arendtiana do totalitarismo.
Ao considerar o totalitarismo como um fenômeno político sem
precedentes históricos, Arendt não deixou de pensá-lo como
fenômeno especificamente moderno, no qual se cristalizaram
experiências históricas e políticas tipicamente modernas, como:
racismo, xenofobia, apatia política decorrente do processo de
isolamento dos cidadãos, atomização e massificação dos indi-
víduos, imperialismo econômico, multiplicação das minorias,
dos apátridas e refugiados, bem como a crescente superfluidade
de massas humanas desprovidas de cidadania e de ocupação
social digna. Ademais, como advertiu Zygmunt Bauman,5 em
análise inspirada nas concepções arendtianas, o totalitarismo
é um evento político especificamente moderno, na medida em
que resulta de uma série de condições históricas e sociais que
tornaram possível a conjugação da ciência, da tecnologia e da
burocracia administrativa para a eliminação de todo aquele que
estorve a fabricação planejada de uma sociedade purificada e
homogênea, corrompendo-se assim a pluralidade como condição
da vida política democrática.

104
NOTAS
1
LOSURDO. Para uma crítica da categoria de totalitarismo.
2
ZIZEK. Quién dijo totalitarismo? Cinco intervenciones sobre el (mal) uso de una
noción.
3
TRAVERSO. Totalitarismo. Historia de un debate.
4
AGAMBEN. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua.
5
BAUMAN. Modernidad y Holocausto.

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Hori-
zonte: Editora UFMG, 2002.
ARENDT, H. The origins of totalitarianism. “Antisemitism”, “Imperialism”,
“Totalitarianism”. Nova York: Harvester Books, 1968. 3 v. [As origens
do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000.]
BAUMAN, Z. Modernidad y Holocausto. Toledo: Sequitur, 1997.
BOBBIO, N.; MATEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política.
Distrito Federal: Ed. UnB, 1986.
LOSURDO, D. Para uma crítica da categoria de totalitarismo. Crítica
marxista, Rio de Janeiro, v. 17, 2003.
POPPER, K. A sociedade aberta e seus inimigos. São Paulo: Edusp, 1987.
TRAVERSO, E. Totalitarismo. Historia de un debate. Buenos Aires: Edi-
torial Universidad de Buenos Aires, 2001.
ZIZEK, S. Quién dijo totalitarismo? Cinco intervenciones sobre el (mal)
uso de una noción. Valencia: Pre-textos, 2002.

105
wa n d e r l e y guilHerMe doS SantoS

dEmoCraCia

A se acreditar na veracidade do aforismo denunciando que “o


poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”,
não há como evitar as demais derivações do mesmo aforismo: “o
poder oligárquico corrompe oligarquicamente e o poder demo-
crático corrompe democraticamente”. Uma interpretação cínica
dos dísticos insinuaria ser a corrupção parte integral da espécie
humana, variando apenas nos meios, frequência e magnitude.
Sem cinismo, antes com amargura, esta vem sendo a melancólica
conclusão de bem argumentada tradição de pensamento. Desde
as considerações da Grécia clássica, com Hesíodo, até o desespero
existencialista do século 20, antecipado por Maquiavel e Hobbes,
entre outros, tem estado presente a imagem humana como algo
decadente ou em decadência, sem esquecer a metáfora bíblica
da expulsão do Paraíso. Por essa escala, a democracia estaria
talvez condenada a ser a mais corrupta das ordens políticas,
precisamente pela multiplicidade dos meios que oferece, pelo
número de transações entre pessoas privadas e poderes públicos
que estimula e, normalmente, pelo volume dos recursos a serem
distribuídos mediante deliberação coletiva. Comparada às ordens
absolutistas e oligárquicas, a democracia seria, em princípio, o
mais vulnerável dos sistemas políticos conhecidos.
Convém, contudo, distinguir entre corruptos e corruptores e,
desse modo, dar mais nitidez à ideia de “corrupção democrática”.
Assim como a sucessão das ordens absolutistas, oligárquicas e
democráticas se distinguem pelo crescente número de pessoas
a participarem da escolha dos que irão governá-las, também é
crescente o número de lugares de poder público a ser ocupado.
De um Estado concentrado na figura do rei e de seus ministros,
por ele indicados, passa-se a um Estado mais diferenciado e
complexo cuja tripulação é regularmente renovada por escolha
de restrito número de participantes – os diminutos eleitorados
dos sistemas representativos oligárquicos. Finalmente, no
Estado democrático moderno, é bastante elevada a quantidade
de postos de poder público cuja ocupação é submetida à escolha
de um eleitorado universalizado. Há, portanto, de um lado, um
aumento nas oportunidades de transações ilegítimas entre o
público e o privado e, de outro, a ausência de restrições ao acesso
aos lugares de poder. São as facilidades ou dificuldades de acesso
ao poder que distinguem o poder absolutista do oligárquico e
este do democrático. Garantido o direito de abordagem, escolha e
participação no poder público, transferem-se para o conjunto
da sociedade os atributos do poder absolutista. Na mesma
extensão em que se distribui o poder, distribuem-se as oportuni-
dades de corrupção nele implícitas. Por isso, a corrupção demo-
crática identifica a face deteriorada do direito de participação
popular na constituição e exercício do poder político, tal como
Aristóteles havia antecipado.
Se a história permite remontar as práticas de corrupção à Anti-
guidade clássica, o noticiário cotidiano dá conta dos episódios
da contemporaneidade. Fragmentos e discursos inteiros dos
grandes oradores da Atenas pré-cristã, preservados pelo tempo,
se referem repetidamente a fatos e processos envolvendo relações
ilícitas entre cidadãos e poderes públicos. Assim, Demóstenes, no
discurso Sobre a falsa embaixada, acusa de corrupção a outro
orador famoso, Esquines, e é por sua vez acusado por Dinarcos
de receber suborno para deixar escapar um preso político. Ando-
cides, outro clássico, membro da equipe que negociava paz com
Esparta, foi igualmente acusado de corrupção, enquanto Lysias,
um dos mais brilhantes, era denunciado como capaz de defender
qualquer opinião mediante pagamento. é conhecida a prática

107
de compra e venda de posições nas instituições clássicas gregas
preenchidas por sorteios, forma embrionária do costume poste-
rior, medieval, de venda de títulos nobiliárquicos, por parte de
reis e rainhas, e de indulgências, por parte da Igreja Católica.
Nestes últimos casos, a prática era às claras e aceita como lícita,
mas obviamente a qualidade intrínseca do objeto da transação
se deteriorava no comércio. Um nobre por efeito de compra e
venda da titulação não era visto como merecedor da mesma
deferência de outro, cuja origem se supunha estar perdida no
início dos tempos.
Através dos séculos, instituições e diferentes formas de orga-
nização política encontram-se vestígios de usos clandestinos do
poder, testemunhando que o problema, caso tenha alguma raiz na
psicologia natural do ser humano, não obteve, até aqui, solução
eficiente no nível da engenharia institucional. Códigos criminais,
manuais administrativos ou sistemas eleitorais não foram
capazes de suprimir a existência do comércio ilegal em que o
público é a vítima da ilegalidade. A organização Transparência
Internacional, nos dias correntes, assegura que em todos os países
pesquisados ou acompanhados por seus representantes não há
um só em que se possa registrar a ausência do fenômeno da
corrupção. Países ricos, como os Estados Unidos e a França,
para exemplificar com duas culturas distintas, ou Alemanha e
Argentina, comparecem nas listas dos países em que se verifica a
rotina do suborno, que é a forma de corrupção mais disseminada
no mundo. E o suborno é uma prática de mão dupla: os países
sofrem internamente, mas também promovem externamente em
seus negócios com outros países. O relatório da Transparência
Internacional relativo ao índice de Pagadores de Suborno, para
2006, assinala que, segundo o depoimento dos entrevistados,
com elevado grau de convergência nas informações (reduzido
valor no desvio padrão das respostas), os três últimos lugares
na escala de suborno no exterior eram ocupados por países em
acelerado processo de desenvolvimento. Em ordem crescente de
prática do ilícito encontravam-se a Federação Russa, a China e a

108
índia. A pesquisa limitou-se aos 30 maiores países exportadores
do mundo e, nessa tabela, o Brasil colocou-se no vigésimo terceiro
lugar. Os três países em que se identificaram as menores taxas
de corrupção específica foram a Suíça, a Suécia e a Austrália. Os
Estados Unidos ficaram com a nona posição, juntamente com
a Bélgica, e o Japão vem em décimo primeiro lugar. Outra vez,
a distribuição de atos ilegítimos desconheceu culturas, níveis de
desenvolvimento ou diferentes sistemas políticos. O desânimo
das populações nacionais diante do fenômeno vem transcrito
em outro documento da Transparência Internacional, Relatório
sobre o Barômetro da Corrupção Global, ano 2007, no qual
a expectativa da opinião pública era pessimista em relação
ao crescimento da corrupção nos próximos anos, comparada à
expectativa de 2003, na América Latina, na América do Norte,
na União Europeia e na Ásia do Pacífico. Somente na África e
no Sudeste da Europa é que a expectativa para o futuro revelou
progressos em relação às esperanças do passado. Não seria
ofensivo comentar, todavia, que, na África, estimar aumento
nas taxas de corrupção, em comparação com a que já existe,
seria desesperador.
A corrupção atravessa séculos, culturas e sistemas políticos,
por certo, mas nem por isso deixa de ter um aparente denomi-
nador comum em todas as manifestações. Faz-se necessária a
qualificação de “aparente” porque a história pode surpreender e
fazer surgir um exemplo contradizendo o registro aqui realizado.
Mas, com tal grão de cautela, é razoável anotar que hábitos de
corrupção existem em todas as sociedades hospitaleiras ao fenô-
meno do lucro. Onde quer que a estratificação social dependa,
pelo menos em parte, da acumulação de riqueza material, aí se
descobrirá a incidência de transações ilícitas entre o público e
o privado. é grande a variação da magnitude da prática entre
as sociedades, sem dúvida, mas a variação do fenômeno não
anula sua existência e, portanto, a procedência do diagnóstico.
A ambição do lucro está na origem da conduta transgressora,
o que não quer dizer que todo lucro seja fruto de costumes

109
corrompidos. Nem todo lucro decorre de corrupção, mas toda
corrupção deriva da ambição do lucro.
As sociedades iletradas, em outros tempos denominadas de
“primitivas”, regidas pela regra da reciprocidade, têm estado
isentas de fenômenos equivalentes à corrupção nas sociedades
submetidas à busca do lucro. A competição existente é por mais
despojamento, antes que por acumulação direta de bens materiais
ou simbólicos. Claro que, mediante raciocínio tortuoso, se poderia
interpretar o altruísmo como forma sublimada de egoísmo,
supondo-se que o objetivo último do altruísta estaria concen-
trado no retorno posterior do “investimento” solidário. Mas,
atribuindo-se veracidade a uma suposição do observador sobre
suposta suposição do observado, torna-se impossível progredir
na argumentação. Sem evidências efetivas, permanece legítima
a reflexão de que, em sociedades iletradas, regidas pela regra da
reciprocidade, não existem indícios de atividades de corrupção
passiva ou ativa.
A história não se repete e, por isso, seria contraproducente
imaginar que o único anteparo à difusão de práticas corruptivas
seria um retorno às condições utópicas das sociedades iletradas.
O motivo do lucro é responsável por vários outros fenômenos,
além da corrupção. O que há de bem-estar material no mundo
contemporâneo se deve, em grande parte, senão totalmente, à
ambição do lucro. E se a desmedida, a hybris grega, é a respon-
sável pelos resultados negativos de sua ação, impõe-se tratá-los
como a outras externalidades negativas de um bem comum: por
previdência e compensações, sanções no caso. A democracia não
é responsável pela corrupção existente no mundo. A negligência
e a impunidade, sim.

110
problemAS conceItuAIS
leonardo av r i t z e r

ESfEra públiCa

O conceito de esfera pública é o conceito mais importante


elaborado pela teoria política na segunda metade do século 20.
Ele foi capaz de retirar a teoria democrática do dilema entre
uma concepção elitista e uma concepção direta do exercício da
política e criar uma terceira opção interativo-participativa. Dois
autores se situam no centro desta transformação: Hannah Arendt
e Jürgen Habermas. Hannah Arendt reelaborou o conceito
de esfera pública na sua obra magna A condição humana,
entendendo-o como tudo aquilo que “pode ser visto e ouvido
por todos e adquire a maior visibilidade possível”.1 Para ela, o
elemento central da política é o da demarcação entre o público
e o privado, sendo o privado a experiência menos comunicável
ou menos partilhável possível, como é o caso da dor. Assim,
temos uma dicotomia expressa em uma dupla chave de ação e de
interação entre os indivíduos, dicotomia essa pensada a partir
do contraste entre o que é visível e partilhável e o que é invisível
e não partilhável. Esta dicotomia irá ajudar a autora a propor
uma nova forma de entendimento da política. Para ela, a política
é aquela atividade puramente humana, isto é, que não depende
da intermediação da natureza e que, precisamente devido a esta
característica da visibilidade em comum, adquire permanência.
Se o mundo contém um espaço público, este deve ser obra de
diversas gerações e deve transcender o tempo de vida dos homens
e das mulheres. Aqui reside a origem da crítica fundamental de
Hannah Arendt à política moderna: a redução da política ao
social e aos interesses e a despolitização da condição humana.
Para a autora, o que a sociedade de massas e a ascensão do social
fizeram foi despolitizar a condição humana transferindo para as
atividades privadas e, em especial, para o consumo, o centro das
atividades humanas. Ao mesmo tempo, tal fato afeta a política
porque introduz no seu interior a dimensão do interesse privado
gerando aquilo que podemos denominar de societalização
da política. A resposta arendtiana a este fenômeno é clara: é
necessário que a política volte a adquirir a dimensão da perma-
nência e do comum entre os indivíduos e, para tal, é necessário
restabelecer um processo de demarcação entre público e privado.
Jürgen Habermas, na sua obra mais conhecida, A mudança estru-
tural da esfera pública, lançou os fundamentos de um conceito mais
contemporâneo de esfera pública. Diferentemente do conceito
arendtiano, o conceito de esfera pública em Habermas tem como
modelo a formação de dois tipos de públicos, os públicos políticos
formados na Inglaterra junto com o surgimento da imprensa e
os públicos culturais formados nos salões franceses do século
18. A ideia central que está por trás dos dois tipos de públicos é
a formação de um grupo de indivíduos privados que questionam
o poder e o dinheiro enquanto geradores de propostas políticas
ou do melhor argumento. Para Habermas, o debate na esfera
pública se deu a princípio “sem levar em consideração as hierar-
quias sociais e políticas preexistentes e esteve de acordo apenas
com regras universais”.2 A ideia que está por trás do conceito
de publicidade, tal como proposto por Habermas, é a ideia de
um debate público desvinculado das estruturas de poder. Este
conceito adquiriu concretude política em um caso específico, o
da formação da esfera pública inglesa no século 17, processo este
vinculado à proliferação de cafés em Londres e à consequente
publicização e discussão das decisões tomadas pelo parlamento,
por um público constituído por indivíduos privados. Para
Habermas, a reunião de um grupo de indivíduos privados nos
cafés londrinos do século 17 se deu ao mesmo tempo em que foram
liberadas as restrições para a discussão das decisões tomadas

113
pelo parlamento. Com o surgimento de órgãos de imprensa tais
como Examiner, estes indivíduos passaram a discutir em público
as decisões tomadas pela autoridade política. Esta é a principal
dimensão da esfera pública política: a desvinculação entre o
exercício do poder e a discussão sobre o conteúdo das decisões
tomadas pela autoridade política. é a partir dessa dimensão que
esfera pública e Estado passaram a constituir duas dimensões
diferentes em boa parte da teoria democrática contemporânea (a
despeito da influente tese do jovem Habermas sobre a decadência
da esfera pública, uma tese muito parecida com a tese arendtiana
sobre a ascensão do social).
O conceito de esfera pública, tal como lançado por Hannah
Arendt e operacionalizado por Habermas, sofreu uma série de
críticas, entre as quais valeria a pena destacar: a crítica de Nancy
Fraser, que levanta o papel das desigualdades sociais que precedem
o processo de formação do espaço público; a crítica dos histo-
riadores ingleses, que levantam a seletividade da escolha dos
cafés enquanto esfera pública burguesa, no mesmo momento
em que havia movimentos muito mais igualitários como era o
caso dos levellers na Inglaterra; a crítica das diferentes teóricas
feministas sobre o papel das mulheres na constituição de públicos
plurais; a crítica dos teóricos especialistas em mídia que sugerem
um papel muito mais complexo e ambíguo da mídia privada no
interior da esfera pública. Todas essas críticas foram examinadas
por Habermas em um influente livro denominado Habermas
e a esfera pública, organizado pelo sociólogo norte-americano
Craig Calhoum. Em sua resposta às diferentes críticas, Habermas
destacou duas mudanças necessárias no conceito de esfera pública
para que ele desempenhe um papel relevante nas democracias
contemporâneas: a primeira destas mudanças é a aceitação da
diversidade dos atores sociais que compõem o espaço público.
De fato, Habermas aceita a crítica dos historiadores ingleses
e reconhece que a esfera pública é formada por um conjunto
de atores sociais diversos, aí incluída tanto a diversidade social
quanto a diversidade racial, de gênero e cultural. A esfera pública

114
para ser democrática deve ser constituída pelo debate entre estes
diferentes atores. Em segundo lugar, Habermas modifica a tese
da decadência da esfera pública aceitando a tese de que seguem
existindo espaços relevantes através dos quais os atores sociais
continuam sendo capazes de debater questões politicamente rele-
vantes e de controlar o exercício da autoridade política. Este é
o conceito de espaço público que tem sido utilizado pela teoria
democrática contemporânea.
Ainda que o problema da corrupção, entendido seja como
corrupção dos pilares da institucionalidade política ou como
corrupção dos indivíduos, não seja o objeto da obra de nenhum
dos dois autores, há um conceito de corrupção das características
do espaço público que pode ser encontrado tanto em Hannah
Arendt quanto em Habermas. Para Hannah Arendt, a corrupção
do público se dá pela substituição da ação pela fabricação. A
fabricação, ao adentrar o espaço da política, corrompe uma das
principais características do espaço público, qual seja, a condição
humana da pluralidade. O público é para Hannah Arendt estru-
turalmente dependente da pluralidade humana. é esta última
que irá garantir o novo começo, isto é, um processo de inovação
da política cuja possibilidade reside na diferença feita por cada
nova vida humana. A repetição ou a fabricação corrompe este
elemento. Já para Jürgen Habermas a corrupção do espaço público
está vinculada ao desenvolvimento de formas de comunicação
que manipulam a opinião através da fixação de conteúdos. Para
Habermas, a corrupção está ligada à corrosão das formas de comu-
nicação face a face que caracterizam a política moderna e são
desfeitas pelas estruturas da sociedade de massas. A corrupção
tanto para Hannah Arendt quanto para Habermas está ligada
a uma disputa pela forma da política. Nesse sentido, ambos os
autores oferecem no interior de um marco teórico contempo-
râneo um conceito de corrupção da política que não implica a
corrupção da forma de governo.

115
NOTAS
1
ARENDT. A condição humana, p. 50.
2
HABERMAS. The structural transformation of the public sphere, p. 54.

REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A condição humana. Chicago: Chicago University
Press, 1958.
CALHOUM, Craig. Habermas and the public sphere. Cambridge: MIT
Press, 1992.
HABERMAS, Jürgen. The structural transformation of the public sphere.
Cambridge: MIT Press, 1989.

116
olgÁria CHain FéreS M at o S

tranSparênCia

Há uma máxima do direito romano antigo segundo a qual in


claris cessat interpretatio, em que se alude à clareza do verda-
deiro. Não sendo, porém, um dado imediato da consciência,
a claridade é o resultado do esclarecimento e da vitória contra
preconceitos e obscurantismos – na ciência, na política, na moral,
na cultura. Assim, o hermetismo no conhecimento e o “segredo
da informação” na política diminuem seu poder com o aces-
so público às razões da ciência e do Estado, com o advento do
“Estado de Direito”. Da ágora grega à esfera pública iluminista,
trata-se da política como transparência e visibilidade. Assim, cla-
ridade e saber coincidem, como o demonstram o idein (ver) grego
e eidénai (saber): se eidos é aspecto visível e essência inteligível,
o conhecimento é uma forma de visão. Cultura da visibilidade
é a da democracia grega que, em tragédias e comédias, inventa
a quintessência do espetáculo no qual “tudo é visto por todos
os lados, tudo está manifesto e reveste-se dos sinais exteriores
da visibilidade”.1 A ágora é circular e tem um centro, comum
a todos os cidadãos, e para ele os olhares convergem, pois é a
ordem criada pelos iguais, pois todos igualmente legisladores.
Na ágora, o orador da assembleia do povo – “o melhor entre
os iguais” – que “aconselha” a cidade “atrai todos os olhares
e brilha por sua doxa, no duplo sentido do ponto de vista que
ele tem sobre as coisas (opinião) e do ponto de vista que se tem
sobre ele(reputação)”.2
Retomada por Rousseau, a relação entre igualdade e transpa-
rência sofre uma reversão da política à natureza. O estado de
natureza é o da virtude ou da benevolência universal, o estado
civil é corrupção, máscara e desigualdade entre os homens, pois
transforma a visibilidade em aparência e simulacro. Com tônus
moral, a crítica rousseaunística à mentira liga-se ao dever de
veracidade na política. No Discurso da desigualdade lê-se: “ser
e parecer tornaram-se duas coisas inteiramente diferentes. Desta
distinção resultaram o fausto imponente, a astúcia enganadora
e todos os vícios que constituem o seu cortejo.”3 A crítica rous-
seaunística da aparência alia a questão moral à econômica:

...os políticos antigos falavam incessantemente de bons costumes


e virtudes, os nossos só falam de comércio e dinheiro (...) Que nossos
políticos se dignem a suspender seus cálculos para refletir sobre estes
exemplos, e que aprendam de uma vez por todas que se tem tudo com
dinheiro, salvo bons costumes e cidadãos.4

O pensamento político de Rousseau se estabelece como


um “prolongado devaneio” sobre a transparência e o véu, a
transparência torna tudo mais próximo e com ela a infelicidade
da distância das coisas se atenua. Na Nouvelle Héloïse, como
nas reflexões sobre a botânica, a transparência e a visibilidade
constituem o símbolo da inocência perdida na História. Escreve
Bento Prado Jr.:

...o mal desenhou-se quando algo escapou à publicidade dos olhares,


quando o homem voltou-se sobre si mesmo, cavando um espaço privado
e secreto: o mal está do lado das trevas e do invisível. Já que nenhuma
câmara secreta se esconde sob esta fina película que é a superfície da
planta, a consciência pode abandonar-se às aparências e coincidir
novamente com as sensações.5

118
A distância de homem a homem é determinada pelos obstáculos
que os separam e pelos sofrimentos que as desigualdades sociais
produzem, a cidade se vê dividida entre privilégios, de um lado,
e miséria, de outro, de modo que a corrupção dos costumes
abrange a sociedade inteira. No artigo “Economia política”,
Rousseau escreve: “as leis são impotentes contra os tesouros
do rico e a miséria do pobre; o primeiro consegue iludi-las e o
segundo lhes escapa, um rompe a tela, o outro simplesmente
passa através dela.”6
Passado um século, nos anos de 1848, a insurreição de operários
de Paris atesta, em escritos e panfletos, a extrema desigualdade
entre “indigentes” e “opulentos” que, inseparáveis, bloqueiam
a sociedade de direitos, corrompendo todo o “corpo político”:
“de um advêm os promotores da tirania e do outro os tiranos (...) Um
compra, o outro vende.”7 O “homem de Rousseau” é o “mestre da
suspeita”: desconfiança do progresso das ciências e das artes,
desconfiança das benesses da razão, desconfiança do indivíduo
e seu amor-próprio. Sociedade e razão desfiguram a natureza
primeira e afastam o homem da simplicidade da origem, como
o homem “deve ter sido ao sair das mãos da natureza.”
Apropriada pelos revolucionários franceses de 1789, a filosofia
de Rousseau concorreu para a associação de virtude e visibili-
dade, contrapostas à intimidade, ao egoísmo, ao segredo e ao
vício. Na Revolução Francesa o egoísmo era depravação natural
e contra ele se ergueu a linguagem “piedosa” dos revolucionários,
o coração tomado como a fonte primeira da virtude política.
O altruísmo exaltado por Robespierre se inspira em Rousseau:

...foi essa comparação que pôs sua marca indelével sobre o revolu-
cionário e a sua convicção mais profunda de que o valor de uma
política deve ser avaliado pela medida em que contraria todos os
interesses particulares e que o valor de um homem pode ser julgado
pela medida em que ele atua contra o seu próprio interesse e contra
sua própria vontade.8

119
Em Robespierre, o heroísmo da sinceridade desconhece
qualquer divisão interna, pretendendo a perfeita coerência entre
os sentimentos confessados e os que se experimentam no íntimo
de si mesmo. Robespierre é a máscara do herói sem máscara:

...o poderoso chefe dos jacobinos (...) sentia muito bem que o
mistério de seu poder residia inteiramente na seriedade. A que se devia o
mistério de seu poder? À opinião que soubera impor a todos, no tocante
a sua probidade incorruptível e a seu caráter imutável (...) Robespierre
só enganava os outros porque, com espantosa habilidade que nele era
instintiva, antes de mais nada enganava a si mesmo (...) Robespierre,
grande artista, amante da arte, e em especial das artes da intriga. Neste
sentido, Robespierre foi o primeiro autor dramático da época.9

Eis o segredo que permitiu a um povo tão crítico como o francês,


segundo Michelet, tão afeito aos prazeres e a considerandos
críticos, aceitar de maneira praticamente irrestrita o poder des-
medido de um homem só.
Procedendo a um deslocamento das análises de Rousseau e
da denúncia das aparências – dimensão da falsidade e do vício –,
Robespierre lança a essência contra a aparência, da qual nascem
todos os conflitos e males. Razão pela qual Robespierre e Saint-Just
concebem uma política da autenticidade fundada na ideia de um
ser verdadeiro, de um homem reconciliado consigo mesmo e da
sociedade transparente a si própria, Robespierre clamando sua
atração pelos hommes faibles, pelo povo toujours malheureux,
a massa sofredora, mas não sem antes tê-los despersonalizado. é
através da abstração e da piedade tagarela que os revolucionários
concebem o amor ao povo como combate à corrupção e com a
mais implacável repressão: “Chamam-me cruel”, exclama Marat,
após recomendar a matança de uma série de opositores políticos,
“e no entanto não posso ver sofrer uma mosca”.10 Robespierre, o
incorruptível, é o homem da “ frieza burguesa”, que condena
Camille Desmoulins à guilhotina por ter ele sentido piedade.
“Natureza corrompida”, na linguagem dos revolucionários

120
de 1789, a compaixão é “depravação natural”. A “frieza” é a
“única virtude verdadeiramente burguesa”, ela é o contrário da
compaixão, “desde a virtus romana, passando pelos Medicis até
a efficency da família Ford”.11 A compaixão, longe de ser uma
virtude, é apenas

uma fraqueza nascida do temor e do infortúnio (...) A doutrina


da pecaminosidade da compaixão é uma velha herança burguesa (...)
A compaixão não resiste à filosofia, e o próprio Kant não constituiu
exceção. Para Kant, ela é “uma certa sentimentalidade” e não teria em
si “a dignidade da virtude”.12

Dissociada a moral com respeito a sentimentos e paixões, se


consolida o conceito de homem que por sua vez coincide, para
Horkheimer e Adorno, com o advento do homem como conceito,
pura abstração, puro “alvo” em uma “área de tiro”.
A razão totalitária, preparada pelo Iluminismo e seu “sistema
do conceito”, começa por qualificar o adversário abstratamente
– inimigo do povo, conspirador, perigoso agitador – com pala-
vras infamantes – traidor, corrupto, inimigo ou criminoso – até
atingir os limites últimos de seu poder absoluto, onde culmina sua
lógica, a do extermínio: “o eu abstrato, o título que dá o direito
de protocolar e a sistematizar, não tem diante de si outra coisa
senão o material abstrato para semelhante posse.”13 A abstração
é o instrumento da razão que se converte em instrumento de
produção da universalidade. Patologias do universal – Povo,
Nação, Classe –, estes trazem consigo a retórica da “corrupção
dos dominantes” e do “ homem novo virtuoso”: a Revolução
Francesa, no desejo de identificar a humanidade com o Povo,
o Nazismo, com a Nação, o Comunismo, com o Proletaria-
do. Para constituir essas identidades, a calúnia é instrumento
eficaz: “os corruptos” de Robespierre e Saint-Just – os nobres,
magistrados e açambarcadores –, os “renegados” de Lênin – a
socialdemocracia parlamentar de Kautski –, os “degenerados”
de Hitler – judeus, ciganos e povos inferiores – dissimulam a

121
persistência da injustiça e de desigualdades. Com a promessa de
felicidade e de uma existência cheia de sentido para todos, mas
a persistência da desigualdade e da miséria, os revolucionários
da Revolução Francesa responderam à força das coisas com as
perseguições que se faziam em nome do combate ao vício e à
hipocrisia, atributos dos “opulentos” e de todos que “conspi-
ravam contra o povo”.14 Refletindo sobre os revolucionários
franceses e as revoluções modernas, Tocqueville procura resolver
seu enigma, comparando a Revolução Francesa à Revolução
Americana, demarcando-as na noção de “limite”. Franceses e
americanos aproximam-se no pathos da novidade: cidadãos
inovadores, audaciosos, críticos, cultores da igualdade. Mas
a ousadia, justamente, os separa, regulada que é, a Revolução
Americana, pela noção do limite que lhe vem do mundo moral
e da religião, moderadora dos costumes e da inteligência. Já o
revolucionário francês é um “extra-vagante”, em meio a uma
revolução que aboliu ao mesmo tempo as leis religiosas e as
leis civis, provocando o “desregramento do espírito humano”:
“o revolucionário moderno como extravagante se definira por
três características: uma audácia que se avizinha da loucura; o
pathos da novidade; o amoralismo além do bem e do mal.”15
Este deslimite do espírito encontra-se na linhagem da revolução
científica dos tempos modernos.
Reconstituindo a conjuntura intelectual que inaugura a moder-
nidade científica entre os séculos 15 e 16, Isabelle Queval
indica, também, de que maneira esta revolução nos quadros
do pensamento abrangeu todos os domínios da vida, da ética
à política, da religião aos comportamentos, pois, com o fim do
cosmos hierarquizado medieval e seus graus de realidade e perfei-
ção, de Deus a demônios, adveio um universo “interminado”,
indefinido, infinito:

...o abalo do mundo foi a passagem também da theoria à práxis,


da meditação à ação. Da mesma forma, foi talvez ainda o fim da ata-
raxia, pois, nessa necessidade de ação, naquilo que de alguma forma

122
joga o homem para fora de si mesmo, reside a passagem da quietude
à inquietação, como preço do progresso, do despertar, da liberdade.16

Se completude e perfeição encontravam-se na ideia de limite, a moder-


nidade passa a entendê-las como obstáculo,confundindo-se
onipotência e liberdade. Extinguem-se os ideais de paciência,
moderação das paixões e dos desejos, a busca dos fins últimos – o
bem viver e a justa vida – no conhecimento e na ação.
Na Revolução Francesa, o elogio do ascetismo e da pobreza.
Como anotou Horkheimer,

a pregação acerca do caráter honroso da pobreza, tema cotidiano da


época que sem dúvida fez da riqueza seu deus (...) significa para o
instinto mais profundo de quem escuta (...) a permanência do trabalho
duro, do mau salário e uma subordinação e impotência efetiva diante
daqueles que não necessitam realizar nenhum sacrifício para serem
honestos. A igualdade que em tais momentos os indivíduos da massa
exigem e sentem como justa é, então, o rebaixamento geral a essa
vida de pobreza que com tanta insistência se lhes recomenda.17

Na reordenação do capitalismo na globalização contempo-


rânea – o fim das ideias de Nação, identidades, tradições – e do
estabelecimento de relações assimétricas de dependência entre os
Estados – na economia, na política, na ética, na cultura, deu-se
o trânsito do capitalismo de produção, baseado no estoque e
no longo prazo, ao descartável e ao curto prazo, referido agora
ao capital financeiro, cuja base é o “tempo da urgência”, geral e
abstrato, um tempo sem duração, segundo a uniformalização do
tempo mundial. Neste quadro, a cultura capitalista renunciou à
“civilização dos costumes” e estabeleceu o excesso como ideal
– obesidade mórbida, consumo imoderado de drogas, anorexia,
hiperatividade, terrorismos, guerras do capital, pesquisas cientí-
ficas e tecnológicas agressivas, resultando nas sociedades do
desrecalque e da desinibição, a affluent society, de abundância

123
e seu culto do excesso. Peter Sloterdijk em suas Esferas indica
que a universalização da corrupção no aparelho do Estado e nos
negócios privados atesta que, malgrado a permanência da retórica
da escassez, a abundância e a riqueza reais são desinibidoras de
barreiras morais e legais, tendo-se ultrapassado o patamar do
médio e longo prazo, no elogio à pressa e à imediatez. Sloterdijk
observa que nos anos da Revolução Francesa o imperativo da
igualdade conviveu com a desigualdade de tal modo que, para
satisfazer a lei da igualdade, teria sido necessário às revoluções
transformar milhões de descontentes em burgueses satisfeitos.
Mas sendo “os bons lugares sociais” raros, permanecem conflitos
que darão continuidade a futuros combates: “depois que, em
1789, o Terceiro Estado vitorioso apropriou-se do que lhe era
devido, os perdedores de então querem também esse acesso
– quero falar dos oradores do Quarto Estado – aqueles excluídos
do festim da burguesia.”18
Se durante as revoluções conhecidas o estado de exceção
suspende as leis positivas e os direitos individuais, o estado de
exceção contemporâneo, diversamente, consiste na oscilação
entre democracia e ditadura, o Estado de Direito convivendo com
um estado de sítio latente ou manifesto – insegurança jurídica,
descrença na eficácia da lei e sua real inaplicabilidade. Se a demo-
cracia é a forma de convivência política em que há segurança,
bem-estar, justiça e paz, com a diminuição do poder da contin-
gência sobre cada um, a “corrupção política”, dos “costumes”
e o “limbo jurídico” – como no caso de procedimentos formais
de expulsão sumária de estrangeiros clandestinos considerados
indesejáveis pelo Estado19 – atestam a liberdade extrajudiciária
do Estado, o que, de alguma forma, significa o retorno do segredo
ou das razões de Estado. Se nada mais permanece escondido na
modernidade midiática, nada de fato pode ser compreendido
ou conhecido, dado o modo de produção e difusão das mídias
que mescla verdades e mentiras e descontextualiza notícias e
acontecimentos:

124
...a transparência não é de modo algum o inimigo do segredo, mas
seu parceiro privilegiado (...) A transparência é a máscara do segredo.
Convocando a sinceridade na aparência, ela estimula o engodo e a
astúcia. A multiplicação da informação política disponível, o caráter
espetacular do campo político, organizado à volta da competição
eleitoral, a publicidade do debate, tanto parlamentar quanto o de
opinião, na imprensa, e também o rádio e a televisão, a evolução das
técnicas de uma propaganda retrabalhada em marketing político não
podem fazer esquecer o que de segredo aí persiste. é onde se manifesta
o mais visível que se esconde o mais dissimulado.20

Mas porque existe na política democrática o Estado de Direito


e também uma face de exceção, isso se deve ao aspecto reticular,
comunicante, conectivo do poder e do que se denomina corrupção,
noção que abrange tanto a degenerescência política, quanto
a moral, a jurídica, a econômica, todas com um eixo comum.
Escrevem Luc Boltansk e Ève Chiapello:

...pode-se, com efeito, definir a corrupção como o fato de tirar-se


proveito pessoal de uma posição institucional. é por conferir esta
posição institucional um certo poder que aquele que a exerce pode
transformá-la em moeda (monnayer) e dela tirar proveitos pessoais em
detrimento da organização [pública ou privada] que o nomeou e que,
sem o saber, será levado, por exemplo, a pagar mais um fornecedor ou
a aceitar o faturamento de prestações fictícias.21

À semelhança da ideologia, a corrupção é, ela também, inversão


de sujeito e objeto, é “falsa consciência”, é “alienação tornada
consciência verdadeira” – o que resulta na dissociação entre
prática individual permissiva e exigência de ética na política.
Como observa Walter Benjamin, no mundo burguês,

o homem (...) pode, se for o caso, colocar ostensivamente sua vida


privada em contradição com as máximas que ele defende implaca-
velmente na vida pública e considera, secretamente, sem a mínima

125
perturbação de consciência, sua própria conduta como a prova mais
constrangedora da autoridade dos princípios que ele exibe.22

Na falta de uma esfera pública, cujos valores conferissem


confiança e rigor à prática política, a denúncia midiática da
corrupção torna-a polivalente e invencível, fazendo dela um
problema amplamente divulgado, mas ao qual falta enunciação,
pois “quanto mais confuso é um conceito, mais é dócil a uma
apropriação oportunista”.23
Ao final dos anos de 1930, Horkheimer, por sua vez, consi-
derava que a ordem capitalista alcançara tais desenvolvimentos
e proporções que impossibilitavam compreendê-la através das
categorias do capitalismo liberal e suas noções de trabalho, classe
social, organizações políticas, economia, ciência, civilidade,
cultura. Para Horkheimer e outros autores contemporâneos,
como Pierre Rosenvallon, André Groz, V. Guajelac, a moder-
nidade capitalista não mais se dá a conhecer através de classes
sociais e suas formas de organização, solidariedade, éthos e
valores, mas encontra-se à margem da lei, como se constata nas
práticas de grupos, cliques ou gangues – os Rackets:

...os Rackets que dominam a sociedade compõem-se de “espe-


cialistas”, managers de toda espécie, inclusive o dirigente sindical, o
político, os médicos, os engenheiros mais altamente qualificados, advo-
gados etc. O Racket torna-se por isso a categoria central, porque a
sociedade não se encontra mais em uma fase crescente ou estabilizada,
mas em uma fase “regressiva”.24

é no âmbito do poder, na dinâmica de alianças e conflitos,


que a última teoria crítica compreende a sociedade administrada
(vewaltete Gesellschaft) como a forma do poder e da dominação
no presente: “em todo lugar a tendência é para uma multiplicação
e coordenação dos Rackets” que monopolizam o dinheiro e mani-
pulam o poder: “a sociedade é regida por cliques, os parlamentos

126
são dominados por elas, seja porque seus defensores foram eleitos
diretamente para o parlamento, seja por intermédio de lobbies.”25
Se a judicialização da política é seu esvaziamento – que denota
a passividade e a fragilização política de que faz parte a corrupção –,
isto se dá porque, nas condições do capitalismo contemporâneo,26
instituiu-se a cultura do excesso na qual se manifesta a sugestão
anarquista e o princípio utópico de um país de Cocagne, segundo
os quais, no culto do supérfluo e do hedonismo, as melhores
coisas que o mundo animado pelo dinheiro oferece deveriam
ser, no fundo, grátis.

NOTAS
1
WOLFF. Aristóteles e a política, p. 11-12.
2
Cf. WOLFF. Aristóteles e a política.
3
ROUSSEAU. Discours de l´origine de l´inégalité, p. 76.
4
ROUSSEAU. Oeuvres complètes, p. 19. v. III.
5
PRADO JR. Filosofia, música e botânica: de Rousseau a Lévi-Strauss, p. 178.
6
Cf. ROUSSEAU. Oeuvres complètes, p. 258. v. III.
7
Publicação anônima do ano de 1848, apud SPITZ. Conservadorismo e progres-
sismo, p. 280.
8
ARENDT. Sobre a revolução, p. 79.
9
MICHELET. Histoire de la révolution, p. 671-672, livro XV, cap. III, t. II.
10
Marat apud HORKHEIMER. Egosimus und Freiheitsbewegung, p. 228.
11
Cf. HORKHEIMER; ADORNO. Dialética do esclarecimento, p. 98. Ao tratarem
dos carrascos nos campos de extermínio na Segunda Guerra Mundial, Adorno
e Hannah Arendt consideram, respectivamente, a “volatilização da culpa” e a
“banalidade do Mal”, na modernidade, a indiferença diante da dor do Outro,
que provém da desresponsabilização dos atos pela organização burocrática, ins-
trumental e abstrata do “sistema de competência” do “especialista”: “o universo
formal, matriz da competência, esconde um outro em que a verdadeira realidade
se concentra, em que os poderes se reforçam tanto mais quanto menos se tem os
meios de dominá-los. Nesta relação, [a responsabilidade] se dissocia das pessoas,
constitui-se a partir de sistemas instrumentais, ela se exprime por intermédio da
linguagem de especialistas.” (BALANDIER. Le grand dérangement, p. 67.)
12
HORKHEIMER; ADORNO. Dialética do esclarecimento, p. 98.
13
HORKHEIMER; ADORNO. Dilaética do esclarecimento, p. 38.
14
O inimigo do povo, de classe ou de raça, contamina e corrompe a sociedade, e
por isso deve ser eliminado. Em todos os movimentos em que o ressentimento

127
se expressa no desejo de vingança, surge a linguagem da “purificação” da so-
ciedade – extermínio de nobres e dos poderosos, dos burgueses, ou “ limpeza
étnica” – para que a sociedade possa coincidir consigo mesma e ser um todo
homogêneo. BROSSAT (La paix barbare: essais sur la politique contyemporaine)
interroga as razões pelas quais há um “dever de memória” no que diz respeito
aos campos de extermínio nazistas e uma amnésia correspondente aos campos
de concentração na União Soviética, apesar de os mesmos terem sido postos em
funcionamento a partir de 1918. De Romain Rolland – nos anos de 1930 – ao
prêmio Nobel de física soviético Leo Davidovirch Laudau – nos anos de 1950 –,
ensaios reconhecem em Lênin um “precursor do fascismo italiano”, envolvido
na retórica da “emancipação do proletariado”. Também Sloterdijk observa:
“as diretivas de Lênin, a partir do fim do outono de 1917, desencadearam
as primeiras iniciativas autenticamente fascistas do século 20 (...) Agitação
permanente da ‘sociedade’ para fins de mobilização, transposição do habitus
militar para a produção econômica; rigoroso centralismo dos estados-maiores
de direção; o culto do militantismo como forma de vida, o coletivismo ascético,
o ódio contra as formas de comércio liberal, entusiasmo obrigatório em favor
da causa revolucionária, monopolização do espaço público pela propaganda
do partido, rejeição global da cultura e da civilização burguesas, sujeição da
ciência à obrigatoriedade de tomar partido pelo marxismo oficial, o trabalho
visando tornar desprezíveis os ideais pacifistas, desconfiança com respeito ao
individualismo, ao cosmopolitismo e ao pluralismo; espionagem permanente
de seu próprio círculo próximo; extermínio do adversário político e, por último,
a tendência, inspirada pelo Terror jacobino, a processos sumários nos quais
a acusação contém já o veredicto da culpa.”(SLOTERDIJK. Zorn und Zeit,
p. 207-208)
15
Cf. ABENSOUR. O heroísmo e o enigma do herói revolucionário, p. 208.
16
Cf. QUEVAL. S’accomplir ou se dépasser: essai sur le sport contemporain, p. 90.
17
HORKHEIMER. Egosimus und Freiheitsbewegung, p. 121.
18
Cf. SLOTERDIJK. Colère et temps, p. 156.
19
WACQUANT. La Sobre-encarcelación de inmigrantes en la Unión Europea.
20
ZETLAQUI. Les mirages technologiques de la transparence administrative, p. 69.
21
Cf. BOLTANSK; CHIAPELLO. Le nouvel esprit du capitalisme, p. 487. Em
uma nota lê-se: “as grandes empresas teriam interesse coletivo em ver reduzida
a corrupção de seus intermediários de modo a não mais dever desempenhar
o papel de corruptor coagido a pagar para obter certos mercados e que corrói
certamente sua lucratividade.”(p. 756).
22
Cf. BENJAMIN. Ministério do Exterior.
23
DERRIDA. Le “concept” du 11 septembre, p. 158.
24
Cf. HORKHEIMER. GS 14, p. 335, Fischer, Frankfurt, 1985-1996. E à página
359 Horkheimer observa: “o especialista, junto com seus colegas, detém um
monopólio sobre seu domínio [de conhecimento]. Ele se une a eles e assim surgem
rackets de toda ordem de grandeza.”
25
GS 14, p. 317.

128
26
Cf. OLIVEIRA. Capitalismo e política: um paradoxo letal. Neste ensaio, o autor
retira as consequências, para a política e a democracia, da independência do
Banco Central: “a política transforma-se em polícia e toma, necessariamente,
a forma de favores clientelísticos (...) A independência do Banco Central é a
promessa de que ele não será contaminado por nenhum outro valor societário,
principalmente pela política (...) A empresa econômica assume cada vez mais o
centro da política. Se é conhecido o fato de sempre ter havido financiamento de
campanhas e corrupção de políticos pelas empresas, a novidade agora é que tais
‘doações’ devem ser declaradas; pensa-se, ingenuamente, que essas declarações
tornam o processo mais transparente. Elas apenas legitimam as pressões das
empresas sobre os políticos, e não diminuem em nada o famoso caixa dois, isto
é, os financiamentos por fora e além dos limites permitidos pela legislação (...)
As empresas são as verdadeiras formuladoras das políticas econômicas gerais e
setoriais que os governos adotam vindo a ocupar a ‘direção moral’ da sociedade.”
(p. 286-289).

REFERÊNCIAS
ABENSOUR, M. O heroísmo e o enigma do herói revolucionário. In: NOVAES,
Adauto (Org.). Tempo e história. São Paulo: Cia. das Letras,1992.
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclareci-
mento. Tradução de Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
ARENDT, H. Sobre a revolução. Lisboa: Moraes Editores, 1971.
BALANDIER, G. Le grand dérangement. Paris: PUF, 2005.
BENJAMIN, Walter. Ministério do Exterior. In: ______. Rua de mão única.
São Paulo: Brasiliense, 2004.
BOLTANSK, Luc; CHIAPELLO, Ève. Le nouvel esprit du capitalisme.
Paris: Gallimard, 1999.
BROSSAT, Alain. La paix barbare: essais sur la politique contyemporaine.
Paris: Harmattan, 2001.
DERRIDA, J. Le “ concept” du 11 septembre. Paris: Galilée, 2004.
HORKHEIMER. Egosimus und Freiheitsbewegung. In: ______. Zeitschrift
für Saozialfroschung. Munique: DesutsherTaschenbuch Verlag, 1980.
MICHELET, J. Histoire de la révolution. Paris: Bouquins, 1979. Livro
XV, cap. III, t. II.
OLIVEIRA, Francisco. Capitalismo e política: um paradoxo letal. In:
NOVAES, Adauto (Org.). O esquecimento da política. Rio de Janeiro:
Agir, 2007.

129
PRADO JR., Bento. Filosofia, música e botânica: de Rousseau a Lévi-
-Strauss.Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 15/16, 1968.
QUEVAL, Isabelle. S´accomplir ou se dépasser: essai sur le sport contem-
porain. Paris: Gallimard, 2004.
ROUSSEAU. Discours de l´origine de l´inégalité. Paris: Garnier, 1962.
ROUSSEAU. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1964. v. III. (Coleção
Bibliothèque de la Pléiade)
SLOTERDIJK, P. Zorn und Zeit. Frankfurt: Suhrkamp, 2006.
SLOTERDIJK, P. Colère et temps. Tradução de Olivier Mannoni. Paris:
Libella/Maren Seel, 2007.
SPITZ, Jean-Fabien. Conservadorismo e progressismo. In: NOVAES,
Adauto (Org.). O esquecimento da política. Rio de Janeiro: Agir, 2007.
WACQUANT, Loïc. La sobre-encarcelación de inmigrantes en la Unión
Europea. Revista Zigurat, ano 7, n. 6, nov. 2006.
WOLFF, Francis. Aristóteles e a política. Tradução de Thereza Christina
Ferreira Stummer e Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Discurso Editorial,
1999.
ZETLAQUI, Téphaine. Les mirages technologiques de la transparence
administrative. Quaderni, n. 52, outono 2005.

130
Fernando FilgueiraS

intErESSES

A etimologia da palavra interesse, em seu sentido moderno,


remete à ideia de lucro ou, em outras palavras, aos benefícios
obtidos por meio de transações comerciais. Com relação ao
problema da corrupção, o senso comum admite a ideia de que
seu conceito está relacionado com a sobreposição dos interesses
privados ao interesse público.
Uma análise mais atenta do problema dos interesses em re-
lação ao problema da corrupção, entretanto, deve dar conta de
pensar a recepção do primeiro conceito como o elemento central
para a definição do segundo. O conceito de interesses, ao remeter
ao plano de sociedades mercantis, cria um invólucro valorativo,
em que a política passa a ser concebida, fundamentalmente, como
o mundo dos interesses.
De fato assim o é, se observarmos o mundo cotidiano da
política. No sentido atribuído por Hannah Arendt à societali-
zação da esfera pública, percebe-se que o interesse passou a
ser o elemento fundamental da ação política, na modernidade.1
No entanto, nem sempre o problema da corrupção foi pensado
como um problema exclusivamente de interesses. Interesse, na
dimensão da política, é um conceito que envolve muito mais
os seus aspectos morais do que propriamente uma transação
comercial. O conceito de interesses está alicerçado em uma con-
cepção moral de mundo. Por consequência, há uma tendência a
naturalizar o conceito de interesses para a política, promovendo
a ideia de que ela seja, por definição, o espaço dos vícios, onde
os interesses privados imperam em relação ao interesse público.
A recepção da palavra interesse na semântica da política
ocorre apenas na modernidade. No mundo antigo, incluindo
Grécia e Roma, a palavra interesse tinha uma acepção negativa
na política, sendo ele o elemento que explicava a corrupção.
Agir pelos interesses, para a filosofia política grega e romana,
não significava agir virtuosamente. Pelo contrário, agir pelos
interesses representava os vícios do político, que deveriam ser
combatidos com a força do império da lei, visando à manutenção
da ordem política.
Para Aristóteles, toda associação política estava orientada
para dois fins: o bem viver e a vida. O bem viver é uma finali-
dade de uma associação política, tendo em vista a identificação
entre os indivíduos em torno de valores comuns, pertencentes
a uma ordem de distinção. O bem viver é a orientação da ação
pelas virtudes do político, tais como coragem, honra, glória e
prudência.Toda associação política está marcada por um princípio
de distinção, em que as elites políticas são constantemente ava-
liadas por suas virtudes. Pensando os termos de uma distinção,
o bem viver marca as diferenças, no plano dos valores, entre
aristocratas e plebeus. Daí Aristóteles afirmar, em A política,
que os aristocratas representavam o elemento de equilíbrio nos
regimes políticos.2
A vida, por outro lado, representa o mundo das necessidades.
Representa um plano cotidiano da política, em que importa
não os elementos de distinção presentes nas virtudes do político,
mas o mundo dos interesses. Toda associação política, segundo
Aristóteles, tem um cotidiano no qual os desejos e as paixões
imperam, marcando um traço, tão comum ao mundo antigo,
de plebeísmo. Desejos e paixões representavam os elementos
de corrupção da ordem política, porquanto os elementos de
distinção rebaixavam-se ao plano de um cotidiano dominado
pelo mundo plebeu.

132
Os interesses, que estariam relacionados a toda a dimensão
do mundo cotidiano da vida, estariam associados, para o mundo
antigo, às ideias de paixões e desejos. Por isso Aristóteles conside-
rava a democracia uma forma de governo corrompida. Pensando
o exercício efetivo do poder político, a democracia, segundo
Aristóteles, seria a forma de governo que comportaria este
mundo dos desejos e das paixões, porquanto os elementos de
distinção das elites estamentais não existam, sendo a forma de
governo dominada pelo populacho.
Os antigos desconfiavam da presença da plebe no exercício
efetivo do poder político, sendo a democracia considerada o
mundo das paixões e dos desejos, porque continha, dentro de
sua ordem, uma corrupção permanente. Como a ordem polí-
tica deveria sempre perseguir o bem viver, a legitimidade seria
construída apenas com a eliminação dos desejos e das paixões
dos agentes políticos. Os antigos não admitiam a presença do
mundo privado na política, porque as necessidades corrompem
o poder político.
Apenas na passagem do mundo antigo para o mundo mo-
derno a relação entre interesses e corrupção é modificada. A
ascensão de sociedades mercantis modificou a semântica original
da palavra interesse, que deixou de ter uma conotação negativa
para se tornar o elemento central da moralidade política dos
modernos. Interesse deixou de ser um vício para se tornar um
valor. Não uma virtude propriamente dita, mas um valor político
fundamental.
Albert Hirschman3 demonstra que o interesse se tornou, no
mundo moderno, um domesticador das paixões, à medida que
foi moralizado como um valor político do próprio capitalismo. As
sociedades mercantis passaram a valorizar as transações comer-
ciais como elemento de liberdade, convertendo o interesse em
um conceito político, em que seu alcance está no conjunto das
práticas realizadas pelos indivíduos. O interesse, nesse sentido,
tornou-se um elemento de individuação de primeira ordem.

133
A mudança no significado da palavra interesse, portanto, está
relacionada à passagem do antigo para o moderno, em que ela
deixou de ter um significado negativo, ligado à própria ideia
de corrupção, para se tornar um elemento positivo da ação dos
indivíduos. O interesse deixou de ser um elemento de corrupção
para se tornar um elemento de construção e justificação da ordem
política. A relação de interesses, segundo Hirschman, é inerente
à modernidade capitalista, que só pode admitir a democracia
como regime político.
Se o interesse passou a ter um sentido positivo na semântica
política, da mesma maneira a democracia passou a ter uma
acepção positiva entre os modernos. O capitalismo apenas admite
a democracia como regime político, porque ela é o regime de
liberdades individuais que se dão no plano da representação dos
interesses. Não se trata, portanto, de qualquer democracia, mas
de uma democracia que permite ao indivíduo racional egoísta
da modernidade representar seus interesses na esfera pública.
Por esta assertiva, a relação entre interesse e corrupção só
pode ser pensada no plano dos regimes democráticos. O capita-
lismo triunfou como modo de produção, trazendo para dentro
da política o plano de um cotidiano em que cidadãos agem pau-
tados por suas necessidades, englobando, nesses termos, desejos e
paixões. O interesse representa um conceito moral, em que os
valores estejam assentados no plano do cotidiano político, e não
em uma ordem de distinção, como no mundo antigo.
O pensamento político moderno trabalha com o problema da
corrupção através de uma semântica distinta do mundo antigo,
moralizando os interesses e encobrindo o tema das virtudes,
reproduzindo a ordem por uma organização das necessidades
em contextos econômicos. Como observa Hume,4 o interesse é a
amarra das paixões e dos vícios, sobretudo porque oferece a con-
fiança necessária na regularidade futura da conduta dos homens.
Além disso, é essa regularidade e essa confiança, fundadas no
interesse, que permitem a moderação e a abstinência através
do seu conflito, pressuposto nos princípios de justiça, já que “o

134
egoísmo humano é atiçado pela escassez de nossos bens, quando
comparados às necessidades; e é para restringir esse egoísmo que
os homens se viram obrigados a se separar da comunidade e a
distinguir entre seus próprios bens e os dos outros”.5
Sendo o interesse um elemento moral da vida moderna, ele
promove previsibilidade nas relações sociais. Por ser o interesse
a busca por vantagens comerciais, presume-se que todo indivíduo
que perseguir seu interesse faz com que ao outro também seja
vantajoso perseguir seu interesse. A possibilidade de um ganho
mútuo promove previsibilidade da ação social, criando um mundo
racional que pode ser compreendido apenas por seus fins. A tese
da racionalização de Weber está balizada no mundo dos interesses,
no qual o capitalismo criou um mundo previsível em seus fins
pelo fato de ser ele o principal elemento da racionalidade.
De um ponto de vista cultural, o Ocidente protestante criou a
noção de que agir pelo interesse significa uma atividade inocente,
em que o ganhar dinheiro e o comércio se tornaram centrais para
conceber o sentido da ação social.6 Para Weber, a modernidade
promoveu um processo de racionalização que está na base da
cultura, da sociedade, da economia e da política ocidentais. Dessa
maneira, suas instituições, dentre elas o Direito, estão balizadas
em um mundo racional, ditado pelo próprio capitalismo. O
Direito absorve, segundo Weber, no plano de suas fontes, esse
elemento de racionalidade dos interesses.7
O Direito, sendo o elemento de controle da ação política,
transforma-se de um mundo organizado pela tradição para um
mundo da modernidade capitalista. Com relação a suas fontes, deixa
de consolidar-se pela presença de fontes materiais irracionais para
um mundo de fontes formais ditadas pelos interesses representa-
dos no plano das democracias. Para Weber, Direito, democracia
e Estado têm uma correlação mútua, em que a legitimidade é
construída com base na existência de regras constitucionais está-
veis. No mundo moderno, o Direito deixa de ser dependente
da tradição e de seu forte apelo ao plano comunitário para se
converter em um sistema de controle racional da vida social.

135
Se o interesse não depende da comunidade nem das virtudes, a
corrupção ocorre apenas numa distinção artificial e naturalizada
entre público e privado, ensejando componentes funcionais de
representação da sociedade perante o Estado. O essencial, na
lógica dos interesses, é a reprodução de uma ordem sem haver
a dependência de uma virtude moral ou disposição humana. O
interesse público, dessa forma, é um artifício criado em torno
de um sentimento de aprovação moral, e não de uma virtude ou
disposição dos atores perante a política.
O Direito, dessa forma, racionaliza o mundo dos interesses, de
forma a criar uma organização funcional, ditada pela burocracia,
que separa o mundo privado do mundo público. O público, por
conseguinte, não significa mais um espaço de deliberação política,
mas a conjunção de elementos institucionais e organizacionais da
representação política. Ele passa a se confundir com o próprio
Estado, que encarna a burocracia e racionaliza a relação entre
o cidadão e a própria política, tendo em vista seus interesses,
na sociedade.
Assim, dada a compreensão dos interesses, pensar a corrupção
significa pensar os elementos funcionais ligados ao plano das
instituições políticas. O senso comum, hoje, nos diz que a
corrupção significa a sobreposição dos interesses privados
ao interesse público, de maneira que o problema da corrupção
deixou de ser um problema político para se tornar um problema
econômico.
Se, por outro lado, o interesse for compreendido como um
valor e não apenas como ganho monetário no plano de socie-
dades comerciais, percebe-se que pensar a questão da corrupção
significa pensar os elementos ligados à própria moralidade da
política, como fez Tocqueville ao discutir o interesse bem com-
preendido.8 E essa moralidade da política está em pensar a
corrupção em confronto com a própria democracia, a qual
representa o regime dos interesses, sem os quais não se domes-
ticam as paixões e, muito menos, se pode pensar um valor típico
de sociedades que se queiram democráticas.

136
NOTAS
1
ARENDT. A condição humana.
2
ARISTóTELES. A política.
3
HIRSCHMAN. As paixões e os interesses. Argumentos políticos para o capita-
lismo antes de seu triunfo.
4
HUME. Tratado da natureza humana.
5
HUME. Tratado da natureza humana, p. 535.
6
WEBER. A ética protestante e o espírito do capitalismo.
7
WEBER. Sociologia do Direito.
8
TOCQUEVILLE. A democracia na América. Sentimentos e opiniões.

REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Univer-
sitária, 2001.
ARISTóTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
HIRSCHMAN, Albert O. As paixões e os interesses. Argumentos políticos
para o capitalismo antes de seu triunfo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
HUME, David. Tratado da natureza humana. São Paulo: Editora da
UNESP/Imprensa Oficial, 2001.
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. Sentimentos e opiniões.
São Paulo: Martins Fontes, 1998. v. II.
WEBER, Max. Sociologia do Direito. In: ______. Economia e sociedade.
Brasília: Ed. UnB, 1999. v. 2.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.

137
João FereS Júnior

intErESSE públiCo

Trata-se aqui de ensaio que contém um conjunto de reflexões


sobre o conceito de interesse público em perspectiva histórica. A
dimensão reduzida do texto não permite uma análise exaustiva
da história de tal conceito, de maneira que pretendo apontar
somente para alguns elementos mais importantes de sua traje-
tória diacrônica. Interessa aqui também atentar somente para
“interesse público” como conceito político, excetuando assim
outros usos e significados que a expressão possa ter assumido
no decorrer de sua história.
Primeiramente, devemos notar que a expressão “interesse pú-
blico” não fazia parte do discurso político da Antiguidade clássica
nem tampouco dos autores daquele período que se convencionou
chamar de medievo. E isso não se deu devido ao adjetivo “pú-
blico”, de origem latina, e presente constantemente na reflexão
política desde a Antiguidade, mas sim ao substantivo “interesse”,
que se tornou uma inovação ao ser transplantado para o voca-
bulário político. Inovação léxica mais do que semântica, pois,
como veremos, o conceito de interesse público teve antecedentes
importantes na reflexão política antiga e medieval. Podemos dizer
que o conceito de interesse público é bem mais antigo que a
expressão “interesse público”, ainda que essa afirmação necessite
de qualificação, que será dada mais a seguir.
Comecemos, portanto, com o conceito de interesse. No tocan-
te a essa palavra de origem latina, o português teve um desenvol-
vimento único. Em grande parte das línguas europeias modernas o
vocábulo latino veio dar origem a dois significados bem distintos:
primeiro, o que nos é comum, o de interesse como “aquilo que
retém a atenção, que prende o espírito, que é importante, útil
ou vantajoso”;1 e, segundo, de juro, ou seja, lucro auferido de
transações com o capital. Ainda que essa segunda acepção esteja
presente no dicionário, como última definição, ela raramente é
usada na linguagem cotidiana.
O termo latino interest é produto da fusão do prefixo inter
(entre) com o verbo esse (ser), cujo significado original parece
ter sido literalmente “estar entre”, “estar em meio de”, que logo
evoluiu para “participar”, “tomar parte em algo”, e daí para
“fazer diferença” ou “afetar”.2 Foi somente por meio do direi-
to romano que o termo se espalhou por toda Europa, sendo
assim incorporado pelas línguas vernáculas que surgiram após a
dissolução do Império. Mais especificamente, a difusão se deu
majoritariamente com o emprego da fórmula id quod interest
que significava “aquilo que é afetado” ou “aquilo em que um
toma parte”. A expressão veio a denominar toda uma área do
direito dedicada à execução de contratos que regem a alocação
de propriedade.3
No latim medieval o termo interesse se opunha a usura, pois
essa significava auferir ganho pecuniário a partir do emprego
do próprio dinheiro, prática proibida pelo Direito canônico. No
Direito romano, a fórmula id quod interest era aplicada como
compensação ao credor nos casos de inadimplência do devedor.
Importância especificada no contrato, o interesse era calculado
levando em conta a posição provável que o credor teria se a
dívida tivesse sido quitada, isto é, ele era uma compensação
por dano, daí a outra fórmula jurídica latina damna et interest.
Esse uso era tão importante que em francês a palavra intérêt foi
empregada predominantemente com o significado de domage
(dano) até o século 16.4
Na acepção técnico-jurídica de “ter uma parte, título ou direito
em alguma propriedade”, o termo interest foi empregado, por
exemplo, em inglês desde o século 15, continuando até o século 19.

139
Mas é só do século 16 em diante que ele passa a ser consistente-
mente usado para denominar o lucro proveniente de transações
financeiras.5 Essa mudança é muito importante. Na Inglaterra
a prática da cobrança de juros sobre empréstimos e transações
financeiras foi sancionada por Henrique VIII, em 1545, proibida
novamente em 1552 e finalmente reinstituída em 1571. Para
se ter uma ideia da lentidão com a qual essa prática adquiriu
legitimidade, pelo menos no plano linguístico das justificativas
morais, ainda em 1767, Blackstone comenta:

...a prática do empréstimo de uma soma de dinheiro por meio de


contrato para que aumente como forma de compensação pelo seu uso
é chamada juro (interest), por aqueles que a consideram legal, e usura,
por parte daqueles que não.6

E em 1788 Bentham publica um livro com o seguinte título:


Defence of usury: showing the impolicy of the present legal
restraints on the terms of pecuniary bargains.7
Mas a questão que queremos responder é a de quando
a expressão “interesse público” começou a ser usada e em que
sentido. Se tomarmos a história da filosofia política, a resposta
é um pouco decepcionante, mas previsível. Maquiavel não emprega
a palavra interesse uma só vez nos seus principais escritos polí-
ticos, Il Principe e Discorsi sopra la prima Deca di Tito Lívio,
nem tampouco em Istorie fiorentine.8 Não é de estranhar que
em países católicos um termo tão facilmente associado à usura
não fosse guindado ao status de conceito político, ainda mais de
um conceito político com viés positivo como interesse público.
Apesar do termo não estar presente na obra do florentino,
Albert Hirschman, autor do perspicaz The passions and the in-
terests, defende que Maquiavel, por meio da defesa da ideia de
Razão de Estado, muitas vezes também referida como Interesse
de Estado por seus comentadores, foi fundamental para o desen-
volvimento da estratégia do controle das paixões (danosas) por
meio de outras paixões (potencialmente produtivas). Segundo

140
Hirschman, a primeira solução para o problema de se pensar
filosofia política tomando o homem como ele é, e não como
deveria ser, foi o Estado repressivo hobbesiano. Daí houve uma
evolução para a ideia do controle mútuo dos poderes via teoria do
contrato e, finalmente, chegamos a uma solução em que algumas
paixões, bem identificadas e rebatizadas “interesses”, exerceriam
o papel de controle sobre as outras paixões, produzindo assim
o bom governo e o bem comum.9 Não cabe comentar aqui em
detalhe essa tese complexa, mas simplesmente dizer que, se cor-
reto, Hirschman aponta para o processo de politização do termo
interesse, caminho alternativo ao nosso que é o de examinar a
expressão “interesse público” mais diretamente, ainda que esses
caminhos necessariamente se cruzem.
A expressão public interest aparece em Hobbes, mas muito
raramente. O autor a utiliza uma vez no De Cive com o sentido de
“conhecimento público”.10 No Leviathan o termo faz-se presente
somente duas vezes em uma passagem que merece ser citada:

E, ainda que ele seja cuidadoso em sua pessoa política para


procurar o interesse comum, ele é mais, ou não menos, cuidadoso
para perseguir seu próprio interesse privado, e aquele de sua família,
parentes e amigos. E na maioria das vezes, se o interesse público muda
de direção e passa a interferir com o privado, ele prefere o privado: pois
as paixões dos homens são comumente mais potentes que sua razão.
Daí conclui-se que quando os interesses público e privado estão mais
fortemente unidos, o [interesse] público é mais bem promovido.11

O que importa notar aqui não é o argumento de defesa


da monarquia, mas a informação léxica e semântica contida na
passagem. Notamos primeiro que interesse público aparece
como sinônimo de interesse comum (common interest) e em
oposição ao interesse privado, ainda que o trecho proponha uma
solução prática para resolver as consequências ameaçadoras
dessa oposição.

141
O moralista inglês John Brown em um ensaio de 1751 dá um
exemplo talvez mais representativo do significado comum da
palavra em seu tempo: o do interesse público como necessário
para uma ideia correta de virtudes sociais como a generosidade,
a afabilidade (kindness) e a compaixão, que estariam ameaçadas
pelo excesso de afeições privadas, as quais ele também denomina
self-passions.12
Mas foram os autores do Iluminismo escocês que trabalharam
mais profundamente a questão da relação entre os interesses
privado e público. David Hume usa a expressão três vezes em um
só parágrafo do Treatise on human nature, enquanto examina
os conceitos de justiça e honestidade. Nesse trecho nota-se um
desenvolvimento semântico importante, pois interesse público
aparece em oposição não ao interesse privado puro e simples,
mas somente àquele sem limites, “que age com total liberdade”.
Ainda na passagem, interesse público é usado em dois sentidos,
o de bem comum e o daquilo que é visível ao público.13 Hume
então conclui que, dada a condição de necessidade e insuficiente
benevolência do homem, as leis da justiça são um instrumento
para irmanar nosso próprio interesse (privado) ao interesse
público.14 Mas os dois interesses não são equipotentes, pois se
houvesse somente interesse público, que o autor às vezes chama
também de a strong extensive benevolence, não haveria necessi-
dade de justiça, já que se houvesse somente interesse próprio o
mundo degeneraria em injustiça e violência.15 Mas é em Essays,
moral and political, publicado em 1741, ao discutir o bom governo,
que Hume apresenta ideias mais claramente políticas a respeito
da ligação entre interesse público e privado. Segundo o autor
escocês, a divisão de poderes em um governo é que permite
ao interesse privado de cada “corte” ou divisão do Estado ser
controlado pelo interesse público das outras. Caso contrário,
sem o controle do interesse privado, o governo degeneraria em
“facção, desordem e tirania”.16 Ou seja, confirma-se aqui em
parte o argumento de Hirschman da criação de um estratagema

142
de controle dos interesses, que seriam destrutivos se deixados
livres, pelos próprios interesses.
Mas nem tudo é inovação, principalmente se focamos a semân-
tica do conceito de interesse público. Na mesma passagem,
Hume deixa claro que esse interesse público não deve ser confun-
dido com o interesse da maioria, que é também faccioso e violento.
Esse é o mesmo argumento que Aristóteles faz ao distinguir
governos virtuosos, que tem por finalidade o bem comum de suas
formas perversas, que visam ao bem (privado) da facção, seja esta
composta de muitos, poucos ou um só homem.17 Daqui pode-
mos sacar uma das conclusões desse ensaio, a de que o conceito
de interesse público foi um neologismo moderno, por ter sido
uma das vias de incorporação do vocábulo “interesse” à teoria
política, mas ao mesmo tempo herdou e compartilhou em grande
medida a carga semântica da expressão “bem comum”, tão cara
à filosofia política da Antiguidade até, pelo menos, o final do
século 18 – período a partir do qual ela não perdeu totalmente
sua importância, mas passou a sofrer a concorrência de outras
visões de mundo que concebem diferentemente a finalidade da
política. Portanto, não se trata de um termo cujo significado
foi objeto de grande disputa, como despotismo, absolutismo,
virtude etc., mas sim uma expressão com um sentido bastante
convencional, como mostra uma miríade de usos do termo por
parte de mentes menos filosóficas do próprio século 18.18
Enquanto Hume sugere um desenho institucional de Estado
para resolver a tensão entre interesse privado e público, Adam
Smith adota outra solução. Para este autor, tal tensão de fato não
existe, ou, muito pelo contrário, é somente por meio da busca
do interesse individual que os cidadãos produzem o interesse
público. O Estado então é substituído pela ideia de “mão invi-
sível”, de uma razão que está além das capacidades cognitivas
dos agentes. Não é coincidência o fato de que a expressão “mão
invisível” faz uma de suas raras aparições na Riqueza das nações
justamente em um trecho em que a expressão “interesse comum”,
também rara, aparece.19

143
A noção de vontade geral em Rousseau representou uma
radicalização da concepção convencional de interesse público,
seja ela entendida como aquele interesse que é universalmente
partilhado por todos os cidadãos20 ou ainda como aquele inte-
resse pelo bem da comunidade que está além da contingência
do interesse privado de cada um. Mas Rousseau trabalha pela
preservação da ideia de bem comum enquanto o movimento feito
por Adam Smith é sua dissolução perante a “única” realidade
palpável: o interesse individual do homo oeconomicus. Assim,
o grande inimigo das abstrações e ficções Jeremy Bentham foi
capaz de concluir:

A comunidade é um corpo fictício, composto de pessoas individuais


que são suas partes constituintes, como se fossem membros. O que é,
portanto, o interesse da comunidade? A soma dos interesses dos vários
membros que a compõem.21

Aqui, finalmente parece ter se operado uma cisão que dura


até os dias de hoje, entre aqueles que apostam na relevância do
conceito de interesse público, ou bem comum, que às vezes são
chamados de republicanos, e aqueles que tomam tal termo como
o mero agregado de interesses particulares, ou ainda pura ficção.
Esta última posição parece ter se tornado hegemônica nos dias
de hoje, mesmo entre os profissionais da ciência política. Como
lamentava um colega nos idos de 1974:

O domínio da política do interesse torna impossível dentro da


ciência política atual qualquer noção crível de interesse público ou
bem comum. Não pode haver qualquer interesse público, pois não há
público ou comunidade além de um mero agregado de indivíduos e
dos grupos de interesse que eles formam.22

144
NOTAS
1
DICIONÁRIO ELETRôNICO HOUAISS DA LíNGUA PORTUGUESA.
2
ORTH. Interesse, p. 305.
3
ORTH. Interesse, p. 307.
4
SIMPSON; WEINER. Interest, noun.
5
SIMPSON; WEINER. Interest, noun.
6
BLACKSTONE. Commentaries on the laws of England..II. xxx..p. 454.
7
Tradução: Defesa da usura: mostrando falta de razoabilidade dos limites legais
impostos aos termos das transações pecuniárias.
8
Pesquisa feita na Biblioteca Italiana da Università degli Studi di Roma “La
Sapienza”. <http://www.bibliotecaitaliana.it/index.php>.
9
HIRSCHMAN. The passions and the interests: political arguments for capitalism
before its triumph.
10
HOBBES. De Cive. Preface. Para. 7/10.
11
HOBBES. Leviathan. Pt. 2, Ch. 19, Para. 1/23. As traduções das citações dos
originais em inglês neste texto são de exclusiva autoria e responsabilidade do
autor.
12
BROWN. On the motives to virtue. v. 2, Essay II, section III.
13
HUME. Treatise on human nature. Livro 3, Pt. 2, Sec. 1, Para. 1/19.
14
HUME. Treatise on human nature. Livro 3 Pt. 2 Sec. 2 Para. 19/28.
15
HUME. Treatise on human nature. Livro 3 Pt. 2 Sec. 2 Para. 21/28.
16
HUME. Essays, moral and political, p. 86.
17
ARISTóTELES. Política. Livro III. Cap. VII.
18
Uma pesquisa na base de textos Eighteenth Century Collections Online (http://
gale.cengage.com/eighteenthcentury) localizou 1.611 textos que utilizam a ex-
pressão, em sua imensa maioria na acepção convencional de bem comum.
19
SMITH. An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations, p. 185.
20
Como sugere Theodore M. Benditt baseado em sua leitura do Contrato social.
BENDITT. The Public Interest, p. 291-311.
21
BENTHAM. An introduction to the principles of morals and legislation, p. 8.
22
COCHRAN. Political science and “The public interest”, p. 327-355.

145
REFERÊNCIAS
ARISTóTELES. Política. Livro III. Cap. VII.
BENDITT, Theodore M. The public interest. Philosophy and Public Affairs,
v. 2, n. 3, p. 291-311, 1973.
BENTHAM, Jeremy. Defence of usury; showing the impolicy of the present
legal restraints on the terms of pecuniary bargains. In a series of letters to
a friend. Dublin: printed for Messrs. D. Williams, Colles, White, Byrne,
Lewis, Jones, and Moore, 1788.
BENTHAM, Jeremy. An introduction to the principles of morals and
legislation. London: printed for T. Payne, and Son, 1789.
BLACKSTONE. Commentaries on the laws of England..II. xxx..p. 454.
SMITH, Adam. An inquiry into the nature and causes of the wealth of
nations. London: printed for A. Strahan; and T. Cadell Jun. and W. Davies,
1799.
BROWN, John. On the motives to virtue. v. 2, Essay II, section III. 1751.
COCHRAN, Clarke E. Political science and “The public interest”. The
Journal of Politics, v. 36, n. 2, p. 327-355.
DICIONÁRIO ELETRôNICO HOUAISS DA LíNGUA PORTUGUESA.
Versão 1.0. Dezembro de 2001.
HIRSCHMAN, Albert O. The passions and the interests: political argu-
ments for capitalism before its triumph. Princeton: Princeton University
Press, 1977.
HOBBES, Thomas. De Cive. Preface. Para. 7/10.
HOBBES, Thomas. Leviathan. Pt. 2, Ch. 19, Para. 1/23.
HUME, David. Treatise on human nature. Livro 3, Pt. 2, Sec. 1, Para. 1/19.
HUME, David. Essays, moral and political. Edinburgh: printed by R. Fleming
and A. Alison, for A. Kincaid, 1741. Essay VIII.
ORTH, Ernst Wolfgang. Interesse. In: BRUNNER, Otto; CONZE, Werner;
KOSELLECK, Reinhart (Ed.). Geschichtliche Grundbegriffe. Stuttgart:
Ernst Klett Verlag, 1982.
SIMPSON, J. A.; WEINER, E. S. C. Interest, noun. In: THE OXFORD
ENGLISH DICTIONARY. 2. ed. Oxford/New York: Clarendon Press/
Oxford University Press, 1991.

146
Juarez guiMarãeS

intErESSE públiCo

O conceito de interesse público não deve ser banalizado já


que não se encontra formulado de modo estável nas diferentes
tradições da filosofia política e muito menos na cultura democrá-
tica contemporânea. No entanto, ele é central para a definição e
análise do fenômeno da corrupção, já que esta, como dimensão
derivada e negativa, precisa de um referente conceitual positivo.
O conceito de corrupção variará segundo o que se define em cada
corpo político como interesse público. Assim, a corrupção pode
ser definida como ato de transgressão do interesse público, que
implica uma apropriação privatista ilegítima de recursos, bens,
patrimônios ou serviços públicos.
O conceito de interesse público deveria se diferenciar, em pri-
meiro lugar, da noção de bem comum de inspiração tomista. A
noção tradicional de bem comum fundamenta-se na possibilidade
de uma afirmação transcendental do que seja o bem, a partir das
leis naturais, por sua vez parte das leis eternas de origem divina
acessíveis aos homens pela razão. As leis humanas ou positivas
assim o seriam por dedução ou especificação das leis naturais. As
leis injustas, que induzem a corrupção do corpo político, seriam
transgressoras ou incompatíveis com as leis naturais.
Nessa tradição tomista, a própria noção de bem assimila-a
à virtude, distanciando-a e, com mais frequência, opondo-a à
noção de interesse. Além disso, a afirmação de uma comunidade
do bem se baseia em uma visão organicista do corpo político, isto
é, organizado funcionalmente em suas partes e não constituído
na cisão, contradição ou conflito irresolúvel do corpo político.
Por esta natureza organicista do corpo político, transita-se sem
tensões entre o interesse da parte e o bem de todos. Por fim, a
noção tradicional do bem comum prescindiria de sua funda-
mentação democrática, ou seja, a definição soberana por parte da
maioria deste corpo político do que se entende como bem comum.
A noção de interesse – em contraste com a interdição, subordi-
nação ou secundarização da virtude – ocupa um lugar central na
visão de mundo liberal clássica ou contemporânea, mas ganha
uma conotação nitidamente atomista, autocentrada ou individua-
lista. O grande desafio das tradições liberais, em seu pluralismo,
será sempre o de como conceber a passagem e a compatibilização
entre os interesses individuais e os interesses gerais ou comuns
do corpo político.
Um primeiro caminho de passagem é o da mecânica da socia-
bilidade e interdependência inscrita nas formas mercantis da
economia proposta por Adam Smith. Postulando uma aborda-
gem realista dos sentimentos morais, na qual o interesse próprio
dominante não exclui de todo o altruísmo, Smith vê como
possível a vida social harmoniosa mesmo sem a intervenção do
sentimento da benevolência, a partir do sentimento da utilidade
do intercâmbio interessado de serviços mútuos. A harmonia no
campo econômico seria resultado involuntário e espontâneo
das ações isoladas dos indivíduos interessados em maximizar os
seus interesses, ilustrada pela metáfora da mão invisível. Desde
Keynes, pelo menos, esta visão liberal espontaneísta e mecanicista
de um ótimo econômico pelo livre jogo das forças de mercado
está severamente posta em questão.
Um segundo caminho de passagem que resultou da inteligência
histórica e analítica de Alexis de Tocqueville, em seu estudo
clássico sobre a democracia americana das décadas iniciais do
século 19, é o do interesse bem compreendido. A disseminação
de uma cultura do associativismo civil voluntário faria com que,
externamente a uma regulação direta do Estado, os indivíduos
fizessem um aprendizado cívico da cooperação e dos interesses

148
comuns, mediando e amortecendo as pulsões dos interesses indi-
viduais, compatibilizando-os com os interesses gerais do corpo
político. Esta realidade sociológica refletida por Tocqueville, na
qual dinâmicas associativas e comunitaristas servem de contra-
peso a uma moderna sociedade industrial ainda em seus estágios
iniciais de formação, está historicamente defasada em relação ao
predomínio dos grandes grupos corporativos de interesses que
dominam a cena contemporânea, possibilidade de resultados
antidemocráticos apenas entrevistos por Tocqueville.
Foi, no entanto, através da filosofia do utilitarismo que o libera-
lismo moderno procurou assentar uma gramática de passagem
entre o interesse individual e o interesse coletivo. A máxima utili-
tarista, proposta por Bentham e atualizada por John Stuart Mill,
adota o critério da maximização da felicidade do maior número.
é uma ética de sentido consequencialista, por não se apoiar na
transcendência de valores ou intenções, que se baseia no cálculo
racional da utilidade de cada um e, através da agregação, esta-
belece um ótimo social.
A crítica que se impôs ao utilitarismo questionou o seu sentido
quantitativo (a soma pressupõe unidades equivalentes, o que
leva a um reducionismo ou simplificação artificial do que é
utilidade para cada um), a possibilidade da contradição aguda
de interesses entre maioria e minorias, levando a situações em
que a maximização dos interesses da maioria fere fortemente
o interesse de minorias, e, por fim, o distanciamento da ética
utilitarista dos valores normativos de justiça.

SOCIALISMO E INTERESSE PúBLICO


O conceito de interesse público, por sua vez, tem nas tradições
socialistas modernas uma dificuldade de estabilização devido a
razões inversas àquelas enfrentadas pelas tradições liberais: a de
transitar do universalismo presumido da cultura coletivista e da
afirmação unitária de valores para o reconhecimento do conflito
de interesses, da autonomia do indivíduo e do pluralismo.

149
A afirmação do sentido universalista histórico imanente do
proletariado está na base da presunção da harmonia em uma
sociedade sem classes. Os pensamentos críticos no interior da
própria tradição socialista questionaram a filosofia da história
que fundamenta a afirmação do sentido universalista imanente
ao proletariado, colocaram em questão as dificuldades de uma
efetiva socialização dos meios de produção e as mazelas dos
interesses particularistas da burocracia e reconheceram a estrei-
teza do enfoque classista para subsumir o leque dos conflitos
de interesses em torno do gênero, raça, religião, nacionalidade
e cultura.
Tendências críticas socialistas retomaram os princípios básicos
da liberdade e da autonomia individual, subjetivaram-se através
do fértil diálogo com a obra de Freud, formularam novas gramá-
ticas de direitos individuais. Assim, foi sendo progressivamente
problematizado o primado incontrastável da classe, do partido
ou do Estado, resistindo a identificar igualdade com a homoge-
neização, recusando a redução do indivíduo a mero epifenômeno
das relações sociais.
O reconhecimento da permanência do conflito, mesmo que em
novas bases, em uma sociedade pós-capitalista, a retomada do
valor central do conceito de indivíduo e o enriquecimento de uma
cultura pluralista repõe diante da cultura socialista o desafio
republicano e democrático da formação do interesse público.

INTERESSE PúBLICO E REPUBLICANISMO


A estabilização do conceito de interesse público demandaria,
em primeiro lugar, a afirmação de um princípio cultural de legiti-
mação, que tem exatamente no republicanismo a sua tipicidade.
Em um estado de natureza patrimonialista, por exemplo, em que
não há clara delimitação do que é público e o que é privado, tal
conceito de interesse público carece de uma base legitimada de
fundamentação. Em um regime monárquico, o conceito de inte-
resse público ficará sempre incerto, ao sabor das relações entre

150
o arbítrio do monarca e a tradição. A legitimidade republicana de
um Estado confere o primado legal do interesse público, diante do
qual os interesses privados devem ser compatibilizados, regulados
ou mesmo contidos.
Um segundo princípio fundamental ao conceito de interesse
público é o da sua historicização, de sua variação no tempo e no
espaço, de sua interação dinâmica com os diferentes contextos
socioculturais. O que é o interesse público, sobre que âmbito se
exerce e sobre seus conteúdos não é algo fixado ou adquirido
apenas por um ato de criação. Daí ser correto associar a noção
de interesse público a um éthos de formação cívico, cultural e
institucional, que tem como meta permanente a plena realização
do princípio republicano.
Um terceiro princípio-chave, derivado do próprio princípio
republicano da autonomia e do autogoverno dos cidadãos, é o
da procedimentalização democrática do interesse público. A defi-
nição do que é o interesse público passa pela ação democrática
da maioria, único modo de produzir sínteses legitimadas em um
quadro de pluralismo de valores e de conflitos de interesses. Essa
procedimentalização democrática, de fundamento constitutivo
do corpo político, deve se expressar em todo um sistema legal e
de instituições, regulando a compatibilização do interesse público
com os direitos individuais e adequando os interesses privados
aos interesses públicos.
Por fim, seria necessário afirmar o princípio da universali-
zação, isto é, o interesse público deve ser universalizável, não
necessariamente consensual. Seu âmbito de aplicação não deve
se exercer sobre situações particulares que não influenciem os
interesses gerais do corpo político, nem pode contrariar direitos
de minorias que não caracterizem privilégios ou que não afetem
negativamente os direitos da maioria dos cidadãos. Este princípio
de autocontenção do interesse público é fundamental para evitar
os riscos de uma extensão totalitária ou simplesmente opressiva
do interesse público.

151
rubenS g o yatÁ

privatiSmo

O vocábulo privatismo é uma espécie de neologismo criado


pela reflexão sociológica e política. O termo está ausente nos
principais dicionários gerais de idiomas, seja no nosso português,
seja em inglês, francês, italiano, espanhol ou alemão. No entanto,
é amplamente usado, aqui e alhures, em escritos teóricos e aca-
dêmicos e na discussão política, quase sempre com a conotação
de crítica a um peso excessivo e deletério da esfera particular,
reservada, egoística, que se traduz, na vida contemporânea, na
valorização unilateral da propriedade, do consumo e do lucro
em detrimento dos valores da solidariedade e da justiça social,
característicos de uma esfera pública, cívica, coletiva.
Assim, privatismo é, basicamente, um conceito da linguagem
teórica e ideológica de atores sociopolíticos identificados a posi-
ções esquerdistas, coletivistas, republicanas ou substantivamente
democráticas. No entanto, nem sempre a demanda por equilíbrio
entre as esferas particular e coletiva da vida social foi distintiva
somente desse espectro de posicionamento político-ideológico.
Há cerca de 200 anos atrás, um pensador comumente identifi-
cado ao conservadorismo político como Hegel já afirmava que
a pessoa concreta que é para si mesma um fim particular é um
dos fundamentos da sociedade civil, mas que, como esta pessoa
particular só se realiza, só se efetiva, na relação com outras parti-
cularidades, a mediação da universalidade é o outro fundamento
desta sociedade civil.
Também no Brasil não é de hoje a crítica ao desequilíbrio entre
o particular e o coletivo, em desfavor deste último. Na primeira
metade do século passado, na época ensaística, pré-acadêmica, da
reflexão sociopolítica nacional, as obras de autores conservadores,
como Oliveira Vianna e Gilberto Freyre, já se serviam, de forma
impressionista, mas poderosamente intuitiva, do conceito de
privatismo, emprestando-lhe fundamental importância em suas
interpretações do Brasil.
Oliveira Vianna, cuja formação ideológica se fez na contra-
posição ao liberalismo formal, oligárquico e descentralizador
da República Velha, tinha no conceito de privatismo civil uma
das chaves de seu entendimento sobre a formação brasileira.
Nacionalista, cientificista e influenciado pela tradição positivista
gaúcho-platina, Vianna sustentava que tanto a maior parte das
elites quanto o “povo-massa” haviam se formado historicamente
sob o mais extremado privatismo. A sociedade brasileira cons-
tituíra-se de forma clânica, não urbana, insolidária, dominada
por latifúndios semiautônomos e isolados, que produziam um
senhoriato de estreita visão e capacidade coletiva, uma massa
escrava oprimida e um contingente de pobres marginalizados,
sem raiz ou identidade própria. Formou-se, assim, uma população
carente de mentalidade coletivista, associativa, solidária, da qual,
segundo ele, brotaria o respeito natural à lei e à ordem, a tendência
à cooperação, a compreensão do valor da autoridade e da hierar-
quia – pilares, todos, do civismo e da democracia. Desprovido,
assim, dessa “cultura cívico-democrática”, o brasileiro seria um
povo essencialmente privatista, despreparado para lidar com
a administração do bem comum e da coisa pública, bases dos
modernos Estados nacionais. Para se construir um verdadeiro
Estado nacional, o fundamental seria implantar um Estado corpo-
rativo forte, ao invés de se importar e imitar, de forma literal e
acrítica, modelos político-institucionais exógenos como faziam
nossas elites políticas aculturadas. Só o aprendizado cívico nas
entidades corporativas, sob a firme condução estatal, possibilitaria
ao brasileiro superar seu privatismo.

153
Também Gilberto Freyre utiliza o conceito de privatismo,
em sua abordagem culturalista sui generis, na qual a ênfase no
estudo original, criativo e intuitivo do mundo privado, particular,
tem como contrapartida o abandono da consideração dos con-
textos mais amplos, estruturais, de tais fenômenos. Para Freyre,
o privatismo patriarcal é a nota tônica da formação inicial da
sociedade brasileira, resultado de um padrão de povoamento e
colonização que se apoiou antes nas energias dos particulares,
das grandes famílias latifundiárias, que na ação da metrópole
colonial. Sem encontrar, no Estado, na Igreja ou em uma ordem
social preexistente limites a seu poder de senhores de terras e
de gentes, esse privatismo patriarcal teve, segundo ele, seu lado
ruim, despótico e sádico, mas também sua contraparte inclusiva
e generosa. Para Freyre, a vida pública, no Brasil, é mesquinha,
acanhada e artificial, já a vida privada é pujante, rica, complexa
– é por isso que quando, após a Independência, a sociedade
começa a se urbanizar e o Estado deixa de ser aquela entidade
ausente da época colonial, o privatismo patriarcal se projeta na
política, tornando-a espaço de mandonismo e autoritarismo. E
é por isso que a casa, sobretudo em seu aspecto simbólico, de
espaço do privado enquanto familiar e conhecido, é vista, aqui,
como o polo positivo da vida social, mesmo com suas taras,
seu sadomasoquismo, em contraste com a rua, entendida como
espaço do público, isto é, da competição, do desconhecido, do
perigo: “por muito tempo foram quase inimigos, o sobrado e a
rua”, afirma Freyre.
Nestor Duarte foi outro que utilizou o conceito de privatismo
em sua interpretação da formação brasileira. Partindo da dicotomia
privado/político, ele afirma que a característica mais profunda da
história brasileira é a de um penoso e ainda incerto processo de
construção de uma sociedade política a partir das bases de uma
sociedade privatista. Tais bases remontam, segundo Duarte, à
sociedade portuguesa, composta por um povo que não cortou os
laços com grupos intermédios entre o indivíduo e a sociedade, como
a família e a Igreja, um povo cuja índole seria a do fragmentário,

154
do familístico, que construiu um Estado mais extensivo que
intensivo, em suma, um povo mais privado que político. No
Brasil, esse privatismo luso viria a reforçar o familismo, que
Duarte, de maneira similar a Freyre e Vianna, considera o único
centro efetivo de organização na nossa sociedade colonial. Com
a Independência, o liberalismo importado dos países centrais só
faz estimular o privatismo, assim como a distância entre ideo-
logia e prática – idealmente, os governantes distanciam-se das
grandes famílias proprietárias, mas permanecem, pragmatica-
mente, vinculados a elas, a seus objetivos e interesses. Duarte,
entretanto, enxerga nesse “idealismo legal” o primeiro esforço
de diferenciação política, um esboço de construção de um domínio
que ultrapasse os estreitos limites da ordem privada. Mas nem tal
esforço nem o fenômeno da centralização política são suficientes
para, em si, modificarem o que ele chama de índole do poder no
Brasil, que é a de exercer uma função privada e não uma função
política ou pública.
Esta afirmação de Duarte é importante por trazer, junto com
o tema da centralização/descentralização política, a questão do
estatismo, tido por muitos como a antítese do privatismo. O
conceito de estatismo cumpre, para os atores sociopolíticos libe-
rais, formados em torno do paradigma do mercado, função
análoga à desempenhada pelo conceito de privatismo para os
atores republicanos e coletivistas: a função não só descritiva, mas
também normativa, de crítica, no caso, a uma ordem estatal
obsoleta, emperrada e corrupta, que impede a manifestação e
fruição, livres e necessárias, das liberdades e dos interesses priva-
dos. Costuma-se ressaltar, por exemplo, que a obra de Raymundo
Faoro traz um argumento radicalmente oposto ao de Duarte e de
Vianna, ao salientar não o privatismo, mas a preponderância e
o domínio de um estado patrimonial sobre a sociedade ao longo
da história brasileira. E a denúncia, feita por Faoro, do garrotea-
mento da sociedade pelo Estado permitiu que ideólogos liberais
usassem sua obra como libelo antiestatista. Contudo, Faoro
também aponta que este Estado patrimonial é, na verdade,

155
instrumentalizado por um estamento burocrático, que assim impõe
ao restante da sociedade seus critérios e objetivos particularistas
– por esse viés seu argumento foi parcialmente incorporado por
pensadores de esquerda como Florestan Fernandes, dentre outros.
Lembremos, então, a advertência de Duarte: não é a questão
da centralização política, ou seja, do incremento de poder nas
mãos do Estado, que faz com que a índole do poder político seja
pública ou privada. No Brasil, tivemos arranjos sociopolíticos
identificados ao predomínio seja do privatismo, como a
República Velha e o neoliberalismo da década de 1990, seja do
estatismo, como os governos Vargas e o regime militar. Pois bem,
malgrado as inúmeras e marcantes diferenças entre eles, há um
substrato comum: a ausência de uma sólida esfera pública de
universalização de direitos, democraticamente controlada pela
sociedade. Este o verdadeiro sentido do privatismo no Brasil –
entre governos que estatizam ou que privatizam, o que sempre
falta é a coisa pública, em sua acepção democrática.
Faltando esta coisa pública, o caminho para a corrupção está
aberto. O tema da corrupção e de sua ligação com o privatismo
– tão salientado atualmente – não foi particularmente destacado
nas obras dos ensaístas que refletiram sobre nosso privatismo.
Eles não deixaram, porém, de alertar para as consequências
deletérias de um padrão de mentalidade que tem dificuldade de
perceber e valorizar a dimensão coletiva da vida, aquela inarre-
dável dimensão universal de que falava Hegel, tão importante
quanto a dimensão particular.
Tal dificuldade é, sem dúvida, uma característica cultural do
povo brasileiro. Com isso, não se está querendo dizer que ela é
uma marca indelével, uma espécie de “essência” imutável, de
“caráter” de nossa população, mas sim que ela é fruto de nossa
formação histórica, de nossas especificidades, de nossas institui-
ções familiares e políticas, que pode, e deve, ser mudada, embora
tal tarefa não seja fácil. é neste sentido, por exemplo, que Florestan
Fernandes também vem a destacar a vigência, especialmente entre
as camadas desfavorecidas da população, de um código de

156
vida socialmente disruptivo, rudemente egoísta e individualista,
que se explica não por uma “característica cultural”, mas pela
necessidade premente e cotidiana de sobrevivência, pelo estado
de anomia e de falta de reconhecimento e adequação em que
estas foram historicamente colocadas.
O privatismo, portanto, enquanto bloqueio ou deficiência da
percepção da dimensão coletiva da vida, alimenta a corrupção tanto
diretamente, ao criar um campo propício a práticas danosas
ao bem comum, quanto indiretamente, pelo modo como é geral-
mente concebido o problema da corrupção – como se ela fosse um
defeito, uma perversidade, puramente particular dos corruptos,
como se ela não expressasse e não se alimentasse de formas de
vida que a sociedade brasileira construiu historicamente.

REFERÊNCIAS
DUARTE, Nestor. A ordem privada e a organização nacional - contribuição
à sociologia política brasileira. 2. ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional,
1966.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder – formação do patronato político
brasileiro. 13. ed. São Paulo: Globo, 1988.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes.
3. ed. São Paulo: Ática, 1978.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala – formação da família brasileira
sob o regime da economia patriarcal. 51. ed. São Paulo: Global Editora,
2006.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. 4. ed.
Lisboa: Guimarães Editores Ltda., 1990.
VIANNA, Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras.
3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1974.

157
JoSé MauríCio doMingueS

patrimonialiSmo E
nEopatrimonialiSmo

Uma das suposições fundamentais a respeito do Estado


moderno é a da separação entre o público e o privado. Esta
concepção emergiu na Europa ocidental com o pensamento
liberal, foi incorporada pelos diversos socialismos, encontra-se
formalmente vigente na totalidade dos países europeus e nas
Américas, assim como em muitas outras partes do mundo.
O patrimônio estatal, agora público, dissociou-se de seus
governantes e funcionários, doravante privado. Isso se
contrapôs a uma visão patrimonialista do Estado, segundo a
qual posições e cargos deveriam ser naturalmente explorados
por governantes e funcionários, cujos recursos eram indistintos
em relação aos do Estado ou advinham da exploração daquelas
posições e cargos como prebendas que lhes permitiam extrair
benesses pessoais.
A principal teorização deste tema deve-se a Weber. Ele
definiu três formas de “dominação”. A primeira era a racional-
-legal, moderna, na qual uma burocracia funcionava de acordo
com normas e regras universais, buscando eficiência em um
Estado em que seus membros estão separados dos “meios da
administração”. A segunda seria a tradicional, dentro da qual o
patrimonialismo era variante fundamental. Nela não haveria
separação entre público e privado, meios de administração e
funcionários ou governantes, beneficiando-se estes livremente
da exploração de suas posições e cargos. Ademais, a dominação
tradicional, como o nome indica, voltar-se-ia para o passado,
legitimando-se pela repetição, não pela eficiência e pela transfor-
mação. Enfim, a dominação carismática dependia do reconhe-
cimento das qualidades extraordinárias de um indivíduo, líder
que teria seguidores dedicados, caracterizando-se esta forma por
sua instabilidade.
Que dizer dos países latino-americanos e do Brasil em
particular nessa conexão? A tradição absolutista do período
colonial implicava clara mistura do tesouro do Estado espanhol
e português com o do rei e da nobreza (os principais funcionários
do Estado), além de uma grande dificuldade da metrópole em
controlar seus prepostos na remota América. Com as indepen-
dências, Estados de feição formal moderna se estabeleceram,
separando-se público e privado. Isso não implicou o desapa-
recimento absoluto das características patrimonialistas desses
Estados, mas transformou-as de forma decisiva.
Há vários estudos sobre o tema no Brasil. Para Faoro, há
uma profunda continuidade, desde o período colonial até dias
recentes, no controle que um “estamento burocrático” mantém
sobre o Estado, sugando assim a nação, ininterrupta e cama-
leonicamente. Outros, como Fernandes e Franco, com ênfases
distintas, chamaram a atenção para o momento societário do
patrimonialismo. Ou seja, o Estado possuiria aspectos patrimo-
nialistas, mas parte ao menos de seus impulsos nesse sentido vem
de setores da própria sociedade, que se apropriam do aparelho
de Estado e de seus recursos para enriquecer-se. Já Schwartzman
(apoiando-se em Shmuel Eisenstadt) acentuou o momento esta-
tal do patrimonialismo no Brasil, porém descartou seu aspecto
tradicional: o Estado neopatrimonialista seria explorado por
governantes e funcionários, mas teria também caráter altamente
modernizador, legitimando-se pelo futuro, não pela reiteração
do passado.
Três elementos da questão devem ser aqui destacados. Em
primeiro lugar, é preciso acentuar que, embora o patrimonialismo

159
contemporâneo tenha no Estado o fulcro de sua realização, ele
se conecta também à atuação dos agentes societários. é na
vinculação entre interesses privados, do indivíduo isolado que
suborna o guarda de trânsito à grande empresa que se articula a
parlamentares e ministérios, passando pelo financiamento de
campanhas eleitorais, que as próprias posições e cargos estatais
são tomados como objeto de posse privada de seus ocupantes.
Não há inocência hoje da sociedade em relação ao tema, não se
trata de um Estado todo-poderoso que a vampiriza contra seu
desejo, mas sim de um mecanismo que engaja vastas camadas
da população, das empresas e diversas outras organizações, não
obstante alguns se beneficiarem com isso muito mais que outros.
Isso não quer tampouco dizer que todos os funcionários públicos
e políticos eleitos ou administradores por eles indicados, a exemplo
do que ocorre com a população em geral, estejam engajados
nesse mecanismo institucional patrimonial, como se esta fosse
uma instância universalmente definidora do Estado, ou ao menos
absoluta nos quadros da América de colonização ibérica.
O segundo elemento a ser considerado é o caráter moderno
e modernizador do neopatrimonialismo contemporâneo. Na
América Latina ou em outras partes do mundo em que há uma
institucionalização do caráter patrimonial do Estado, os Estados
nacionais não se legitimam pela reprodução do passado, ou o
fazem de forma apenas parcial. Ou seja, não se trataria de uma
forma de dominação que se poderia classificar como tradicional.
O desenvolvimento econômico e social é tema central para sua
existência e amiúde a eficiência da burocracia não está em contra-
dição com aqueles elementos patrimoniais.
Enfim, o terceiro elemento a ser destacado aponta para uma
lógica dual no funcionamento de muitos dos Estados cujo
caráter neopatrimonial é claro – com certeza o caso do Estado
brasileiro e seus congêneres latino-americanos. Originalmente, o
patrimonialismo era em larga medida aberto e explícito – quando
se ocultava trata-se de disputas entre setores do próprio Estado
(realeza metropolitana versus administradores coloniais, por

160
exemplo). Esse já não é o caso. A legitimação dos Estados latino-
-americanos modernos se calca em sua definição como Estados
racional-legais, baseados na vontade do cidadão e nos quais
impera a separação entre o público e o privado, entre funcionários
e governantes e os meios e recursos da administração. Esta é
a lógica explícita e aberta que os rege, seguida por muitos, em
diversos momentos e trajetórias organizacionais e pessoais. Uma
outra lógica, a patrimonial, segue contudo operando oculta e
cada vez tem mais dificuldade para se legitimar no plano macro,
conquanto no plano micro (aquele das pequenas propinas e apro-
priações que grande parte da população pratica) não haja maior
questionamento de sua ilegitimidade formal. Assim, a corrupção
se desenha como elemento perverso do neopatrimonialismo
contemporâneo, instituição que não pode se revelar mas continua
informalmente operando em toda a extensão do aparelho estatal
e através de seus vínculos vários com a sociedade.
Vale observar que, por um lado, é possível falar em uma
institucionalidade (neo)patrimonialista para muitos Estados
contemporâneos modernos. Outros, contudo, podem apresentar
traços deste tipo sem que se possa falar propriamente de uma
lógica institucional patrimonial.
Há inúmeras expressões do caráter patrimonial do Estado,
desde essa corrupção direta envolvendo-o com a sociedade até
a circulação de funcionários entre o aparelho estatal e o mundo
dos negócios (como no Brasil, onde não há qualquer regulação
quanto a quarentenas de funcionários de agências reguladoras
ou do Banco Central, por exemplo, que carregam para as firmas
privadas que abrem ou onde passam a trabalhar informações
importantes acerca das operações do Estado). Isso pode se dar
sobretudo no espaço recortado pelo Estado nacional, mas pode
passar também por ações de agentes internos a este que têm
então o exterior como território privilegiado (em processos colo-
niais ou de ocupação militar), seja com uma institucionalidade
patrimonial se instalando, seja com traços menos consolidados
se fazendo presentes.

161
Seria possível opor o Estado institucionalmente neopatri-
monial ao dos cidadãos? Seria este um Estado que exclui no
fim das contas a cidadania, ao recusar as regras universais e
a transparência democrática que tal arranjo suporia? Não, na
medida em que vastas camadas da população estão engajadas no
plano micro ou mesmo macro nesse tipo de prática, sem prejuízo
de outros elementos típicos do Estado racional-legal e de ampla
participação política, sem que isso exclua uma tensão forte entre
essas duas lógicas de funcionamento societário e estatal. Na
verdade, em parte, no que tange ao indivíduo, o neopatrimonia-
lismo tem grau de legitimidade muitas vezes alto, embora isso
não signifique necessariamente que ele aceite de bom grado que
outros o pratiquem, sobretudo quando envolve funcionários
públicos de alto escalão e políticos eleitos. Pode ser que no
longo prazo modificações nessa lógica dual venham a ocorrer,
com a patrimonial perdendo força, todavia apenas na medida
em que a população passe a valorizar uma normatividade que
hoje contradiz boa parte de suas próprias práticas cotidianas,
em todas as classes e setores sociais.

REFERÊNCIAS
DOMINGUES, José Maurício. Latin America and contemporary moder-
nity. A sociological interpretation. Londres/Nova Iorque: Routledge, 2008.
FAORO, Raimundo. Os donos do poder. 2. ed. Porto Alegre: Editora Globo,
1975. v. 1-2. [1958, 1ª edição]
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro:
Zahar, 1975.
FRANCO, Maria Sílvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata.
São Paulo: Unesp, 1997. [1969, 1ª edição]
WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: Ed. UnB, 1991-1994.
v.1-2. [1921-1922, 1ª edição]

162
CarloS antônio leite brandão

Corrupção E CidadE 1

Em português, o termo “cidade” remete tanto ao espaço público


e político contido no grego polis quanto ao espaço físico contido
no latim urbe. Corromper significa degradar, deteriorar ou
decompor as propriedades originais de alguma coisa. A cidade
corrompe-se, principalmente, ao perder-se a ideia, o projeto e os
fins da polis, e ao deteriorarem-se o mundo público e o tempo
que constituem a urbe.
Em grego, polis deriva de “murar”, de proteger um espaço,
um acervo e serviços comuns, desde víveres e munições até os
não imediatamente produtivos como os patrimônios religiosos
e culturais. Assim, preservados no “recipiente” de um espaço
que pertence a todos, garante-se a permanência e a salvaguarda
de uma comunidade e de seu acervo, com auxílio de “muros”
e regulamentos comuns, seja frente aos inimigos externos, seja
frente aos interesses de grupos e facções internas.
Do histórico da cidade destilam-se as noções e funções que
estão na sua origem: a constituição de um centro simbólico,
político e econômico comum capaz de atrair e de ser preservado
pela sociedade e suas várias partes; a capacidade de guardar e
transmitir bens comuns, materiais e espirituais; a participação
ativa do cidadão livre nas questões da polis, nas decisões de
uma comunidade e na celebração de uma tradição e destinos
compartilhados; o encontro com o outro, a realização de trocas
de ideias e experiências diversas; a construção de um espaço de
diálogo, de uma língua, de uma memória, de uma cultura, de
uma lei e de uma medida comum através dos quais as intera-
ções fazem-se em regime de igualdade; a marca da liberdade,
entendida como a ambiência na qual realizar-se-ia “o humano
do homem” e a expansão das nossas energias, inventividade,
imaginação, linguagens e potencialidades enquanto seres hu-
manos e membros de uma comunidade, o que não é possível
em condições de isolamento; a primazia dos bens e dos direitos
comuns sobre os interesses privados, destinando à construção
e preservação daqueles o melhor de nossos esforços, de nossas
leis e de nossas instituições.
Na corrupção dessas ideias começa a da cidade. Do ponto de
vista da polis, dá-se a corrupção quando dilui-se o “muro”
entre a esfera pública e o interesse privado, facultando a este
roubar – privare – aqueles bens e serviços comuns. Corrompe-se,
assim, não apenas o patrimônio público, mas, antes, o próprio
corpo político que o constituiu e as leis que o mantinham.2 Não
se trata de pensar a corrupção apenas como degeneração moral
do governante ou do agente público, mas, principalmente, como
deterioração da polis e das ideias de cidade e de bem público no
interior de toda a comunidade política; não apenas de condenar
o legislador ou funcionário público corrupto, mas também o
próprio corruptor anônimo que se fortalece num universo em
que o bem comum, a polis e sua lei encontram-se fragilizados.
Corromper a cidade enquanto projeto não é apenas cegar-nos
ao seu futuro e colocá-lo nas mãos dos outros, mas abdicar do
desejo de regulamentação, ordenação e coesão interna comuns,
deixando-a ao reboque das entidades privadas ou dos indiví-
duos, a reclamarem o direito de portarem leis em si mesmos e
digladiarem entre si. Num círculo vicioso, a autonomia da polis
fica na dependência do poder privado, o qual se nutre do bem
público, até corroê-lo totalmente. Sem projeto, a cidade fica à
deriva e torna-se o exílio de cidadãos corroídos e sem pátria,
sem patrimônio e sem leis comuns, totalmente controlados e
dispostos a corromperem e serem corrompidos.

164
Se a cidade não é vista como fruto de minhas decisões e ações
lançadas no corpo e no jogo político, entendido como a inte-
ração entre culturas e desejos diversos submetidos ao norte do
bem público; se a comunidade perde a capacidade e autonomia
de decidir sobre seus assuntos, suas leis e suas regulações; se a
cidade não é vista mais como território onde compartilham-se
interesses, memória e destinos, mas apenas como o espaço onde
confrontam-se as coisas, as vontades e os apetites privados relativos
aos grupos, associações e indivíduos, cujas forças colocam-se
como superiores às da lei até transgredi-las e ferir a constituição
e o Estado de Direito; se a cidade não é vista como instrumento
para a liberdade, troca de experiências, diálogo e encontro com o
outro, ela deixa de ser um projeto de vida comum para tornar-se
um objeto de consumo e apropriação de ordem privada. Em vez
de local da visibilidade e do face a face, ela torna-se o local das
sombras, em que nos encapsulamos progressivamente: a cidade,
então, não vive mais em nós.
Perdidos a ideia de um bem comum maior e o projeto inter-
minável de fazer-nos sempre melhores do que somos, do plano
individual ao coletivo, vê-se a cidade atomizada, resumida a
local de disputas de interesses privados em colisão e sem serem
regulados por um espaço, uma memória e um destino comuns
e concebidos segundo uma permanência e uma temporalidade
mais longas do que aquele que move a satisfação imediata dos
desejos do consumo, dos interesses e dos direitos particulares e
transitórios.3 Ao lado da violência, a troca de favores, incluído
o suborno, entra no lugar da vida política esvaziada; a servidão
voluntária substitui a liberdade; a inércia, o luxo e o encanta-
mento do privado cassam o espaço público, a palavra viva e a
vida ativa; o consumo e o excesso de informações consomem
as energias criativas e tornam-nos todos espectadores passivos.
Hybris e gozo são adubos da corrupção e indícios da perda de
coesão, retração e declínio da res publica. Os exemplos são vários: o
império de Xerxes, descrito em Os persas, por ésquilo; a Atenas de
Péricles, como assinala L. Munford; Roma, segundo as Memórias de

165
Adriano, de M. Youcenar; Florença, depois de passado o conflito
com Milão e sob o despotismo de Lourenço; a cidade do “corte-
são”, de Castiglione, onde a vida política é domesticada pela vida
social; a cidade dos gabinetes de curiosidades do século 16, onde
o exotismo atrai mais do que a dimensão cívica da arte; Paris,
das “passagens” de Walter Benjamin e do spleen de Baudelaire;
a cidade de “irrealidades cotidianas”, do pós-modernismo e do
pós-historicismo americanos; a butique metropolitana, onde
quase todos, de uma forma ou de outra, se fazem mercadorias e
produtos em exposição, para serem consumidos, comprados e,
por que não, subornados.
A filosofia na alcova, do Marquês de Sade, indica o caminho
em que a corrupção propaga-se na cidade: a devassidão do
corrupto, ao multiplicar-se, passa a autorizar, servir de modelo
e encobrir a de todos os demais. Escrevendo logo após a Revo-
lução Francesa, Sade mostra como, num espaço fechado, a jovem
Eugénie é iniciada na libertinagem até o ponto de querer levar
seu gozo para “o meio das ruas” e projetar a esfera sombria do
boudoir sobre a cidade e a sociedade. Liberdade e pensamento
ficam a reboque da pulsão sexual e do imperativo do gozo, e
exige-se fazer de toda a república uma imensa alcova governada pelos
atos de corromper e de ser corrompido. Aí, a esfera pública e
política perdeu sua autoridade e sua distinção diante da privada.
Aí, o dever do Estado restringe-se a garantir os meios para que
o indivíduo se satisfaça com os objetos de gozo que lhe são
disponibilizados, inclusive os outros. O mundo aberto do face
a face republicano é encoberto pelo do sigilo, como na alcova:
“engrossemos os véus”, recomenda o Marquês. A liberdade, a
justiça e a lei da polis cedem seu lugar ao desejo despótico de
cada um subjugar o outro para satisfazer-se a qualquer custo.
O desejo de corromper, como avalia Leffort, excede o do próprio
gozo. Por isso, a transgressão é permanente e não há limite
para a violência e os seus excessos, a não ser o completo desa-
parecimento do outro, o que deixaria o indivíduo sem o objeto

166
sobre o qual exercer seu despotismo. Na verdade, o libertino não
encontra o outro, pois só almeja o encontro consigo mesmo. A
corrupção, portanto, deixa de ser mera consequência, mas um
valor perseguido como fim pela cidade onde o espaço público
tornou-se um grande boudoir, frequentado por uma sociedade
que tem na falsidade o meio essencial para se alcançar o êxito.
Como os atos cometidos na alcova da Senhora de Saint-Ange,
o que justificaria a corrupção seriam o hedonismo como fim
de toda a vida, a concepção de que cada um está por si só no
mundo, a aniquilação do outro, a interpretação da liberdade
como irrestrita licenciosidade, fruto da estratégia que sempre faz
o vício passar por virtude, e vice-versa, e a concepção de uma
natureza humana vil, ao contrário da de Rousseau, comandada
pelos apetites primários os mais mesquinhos.4
O que corrompe a ideia de cidade é fazer do indivíduo, e não
do cidadão, a unidade mínima que fundamenta o espaço público,
como ao pensarmos no direito individual e esquecermos o inte-
resse da comunidade consubstanciado na lei e no direito maior,
ao qual o indivíduo está concretamente aderido. A cidade e seu
espaço público não estão nos indivíduos, mas entre eles: é frente
a esse espaço intersticial que se definem o cidadão e o éthos de
uma coletividade. Ao não fazer dele objeto de nosso cuidado e
não vê-lo como espaço doador de uma felicidade que se realiza
a partir do mundo comum, o interesse privado tende a engoli-lo
e a destruí-lo, política e fisicamente, pois toda felicidade passa a
assentar-se exclusivamente no território do indivíduo destituído
de laços éticos, como domina na sociedade de consumo.
Também corrompe a cidade substituir a precedência do vínculo
político matricial que a engendrou pelos vínculos exclusivamente
econômicos, utilitários e técnicos, os quais engolem aquele. Se
tais vínculos são subprodutos da cidade, não são, contudo, os
que a devem regular, pois isso significa confundir o campo do
político com o campo do poder técnico-econômico privado; não
corrigir, através da política, as assimetrias geradas por este poder

167
técnico-econômico e, por fim, substituir as relações de encontro
e de solidariedade pelas relações mercantis e utilitárias. Ou seja,
“despolitiza-se” a polis, em nome da eficiência e da economia,
privatizando-a, subordinando a política às finanças e à técnica,
fazendo o mundo da necessidade da casa privada dominar o
da liberdade, pensando, enfim, a cidade como uma oikia grande
e high-tech.
Nessa perspectiva, o espaço público passa a ser apenas o
ambiente amorfo onde se acomodam e articulam os interesses
do privado e a moralidade dele decorrente. Os espaços simbó-
licos – como os que imantam a ideia de concórdia e igualdade, de
produção, tradição e destino coletivos e culturais comuns e que
se colocam no centro de nossa vida cotidiana, para referenciá-la
e direcionar nosso agir – também são desvalorizados e enfraque-
cidos em sua força de monumento público capaz de transmitir as
mensagens dos contextos históricos em que foram feitos para a
sociedade em seu devir. Corrompemos o mundo público, como
ao privatizá-lo ou ao permitir sua degradação irrecuperável,
quando as nossas posses privadas minam a durabilidade do
espaço e do tempo comuns, quando não nos destinamos a uma
permanência maior que a de nossa presença corporal terrena,
quando sujeitamos o valor de uso, histórico e público, ao sempre
cambiante valor de troca.
Secretário da chancelaria de Florença ao final do século 15,
Maquiavel verificou estarem associadas a corrupção, a perda da
liberdade e independência da cidade, a degradação das institui-
ções do mundo cívico e das leis e a alienação dos cidadãos frente
aos negócios públicos. é o bem comum o que constitui a potência
e a liberdade das repúblicas. Estas se corrompem quando aquele
perde sua proeminência, quando se permite monopolizar a cidade
em proveito de interesses privados, quando se perde a virtù,
a capacidade e a vontade de agir em defesa de leis e obras
que traduzem aquela liberdade e que são permanentemente
ameaçadas de destruição. Mas isso não é novo no mundo e nem
restrito a um contexto particular. Para Maquiavel, essa corrupção

168
não decorre de uma corrupção da natureza humana, mas da
própria evolução histórica da vida das cidades e suas crescentes
desigualdades. Ela é intrínseca a um ciclo universal que se verifica
ao longo da história e no interior da sociedade que se encontra
toda corrompida. A melhor estratégia para resistir a ela, segun-
do o secretário florentino, estaria em visitar constantemente os
momentos de fundação da república, refundá-la continuamente
frente às insídias do presente e sua transformação permanente,
sempre colocar em exercício a virtù que a constituiu em seus
embates com a fortuna, sempre trazer à cena a memória da liber-
dade e os percalços para conquistá-la. Frente a uma corrupção
inexorável, cumpre reinventar a polis e a liberdade oriundas das
ações de “sujeitos políticos”, diariamente; cumpre enfrentar o
ataque do tempo, da natureza e dos homens, ao mesmo tempo
comprimidos numa massa e confinados em si mesmos, em seus
interesses próprios e em regime de desigualdade e desarmonia
extremas. A corrupção se instala na cidade quando se embaça
a liberdade maior, proporcionada pela vida em comum e pelo
encontro com os outros na ágora, no mercado, nas universidades
e demais espaços de ação e diálogo que concentram a ideia e a
potência da cidade. São neles que nos definimos, são eles que
nos libertam da submissão e do reino exclusivo das necessida-
des. São eles que a “refundação contínua” da cidade pretende
preservar. Essa liberdade é a condição, e não a consequência, do
livre-arbítrio e das vontades individuais. Sem o diálogo, a ação,
o mundo comum e a relação com os outros em condições de
igualdade e reciprocidade, até a relação consigo mesmo torna-
-se corrompida. Como nas alcovas de Sade e da cidade do gozo,
onde a única forma de governo possível é a tirania da vontade.
Nelas, onde a soberania de cada um pretende se fazer à custa da
soberania dos outros, gozo e violência andam juntos.5

169
NOTAS
1
Este estudo integra nossa produção na pesquisa “Arquitetura, Humanismo e
República” desenvolvida junto ao CNPq.
2
Cf. BIGNOTTO. Corrupção e Estado de Direito, p. 82-85.
3
Sobre isso veja-se o nosso texto Cidades e futuro: reflexão e crítica, p. 213-221.
4
Cf. SADE. A filosofia na alcova; e LEFFORT. Sade: o boudoir e a cidade, p. 93-111.
5
Cf. BIGNOTTO. Maquiavel republicano. Sobre a perda do mundo público, cf.
ARENDT. Entre o passado e o futuro.

REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva,
1997.
BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo: Loyola, 1991.
BIGNOTTO, Newton. Corrupção e Estado de Direito. In: AVRITZER, Leo-
nardo; ANASTASIA, Fátima (Org.). Reforma política no Brasil. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2006.
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Cidades e futuro: reflexão e crítica. In:
MACHADO, Denise Barcellos Pinheiro (Org.). Sobre o urbanismo. Rio
de Janeiro: Viana & Mosley/Prourb, 2006.
LEFFORT, Claude. Sade: o boudoir e a cidade. In: ______. Desafios da
escrita política. São Paulo: Discurso Editorial, 1999.
SADE, Marquês de. A filosofia na alcova. São Paulo: Iluminuras, 2003.

170
Seção II
Corrupção,
HiStória E Cultura
a rES públiCa, Em privado
HIStórIA brASIleIrA
luCiano rapoSo Figueiredo

a Corrupção no
braSil Colônia

A interpretação do fenômeno da corrupção na época colonial


exige seu enquadramento sob diretrizes gerais que marcavam
a cultura política, as práticas administrativas e a dinâmica da
colonização mercantilista na América portuguesa. Fora desses
quadros a compreensão das condutas de funcionários régios e
moradores tende a aparecer cercada por anacronismo, simplifi-
cação e teleologia.
A recomendação acima não é gratuita.A incidência da corrupção
ao longo da formação do país e sua recorrência na vida contem-
porânea cristalizaram a ideia de que ela resulta de uma espécie
de destino atávico que finca raízes na tradição portuguesa,
como a sementeira dos males atuais.
O processo de desprendimento em relação a este modelo não
é fácil, esbarrando na carência da historiografia atual de inves-
tigações exaustivas dedicadas a estudos de casos, especialmente
sobre o desempenho do poder e da ação de funcionários em sua
relação com os governados e com as instâncias superiores da
administração no Brasil Colônia.1
A aproximação com o tema não é tarefa fácil. Marco signifi-
cativo que delimita alguns impasses para seu entendimento reside
na força das interpretações historiográficas dos séculos 19 e 20
que modelaram a sociedade e a administração no período colo-
nial com traços de dissolução, desregramento e desordem. Não
são poucos os exemplos que erigiram a corrupção na administração
colonial como uma das heranças perversas da colonização.2
Mesmo um dos grandes intérpretes do Brasil, Caio Prado Júnior, ao
deixar flagrante em Formação do Brasil contemporâneo (1942)3
seu ceticismo em relação à organicidade da sociedade colonial,
registra e reitera a “ausência de nexo moral”, com “raças e
indivíduos [que] mal se unem, não se fundem num todo coeso:
justapõem-se antes uns aos outros; constituem-se unidades e grupos
incoerentes que apenas coexistem e se tocam”.4 A corrupção
manifesta-se como um desdobramento natural. “Numa palavra,
e para sintetizar o panorama da sociedade colonial: incoerência
e instabilidade no povoamento; pobreza e miséria na economia;
dissolução nos costumes; inércia e corrupção nos dirigentes leigos
e eclesiásticos.”5 A situação fica ainda mais delicada quando ao
desconhecimento se somam textos marcados por anacronismos,
que transferem para o passado juízos éticos e morais atuais que
não inexistiam na época moderna.6
A fim de contrabalançar tais considerações, o exame da natureza
da administração e da forma de exercício do poder no Antigo
Regime, que se estendem para as rotinas do processo de coloni-
zação do Brasil oferece, à luz das revisões recentes sobre adminis-
tração, justiça, e os poderes em Portugal,7 outra compreensão a
respeito das condutas dos funcionários régios.
A confusão de leis, a morosidade e os caprichos da máquina
legal, a justaposição de funções administrativas, suas remu-
nerações desniveladas, a acumulação de cargos pelos mesmos
oficiais e as recorrentes contradições no teor dos códigos legais
aparentam desordem, mas são flagrantes das condições de orga-
nização típicas do Estado moderno em fase de centralização.
Inexistia então um sistema jurídico ordenado e organogramas
que obedecessem à distribuição racional de funções, méritos,
divisão calculada de tarefas e carreiras pontuadas pelo mérito.
Tampouco se firmara, ao tempo da colonização do Brasil, a
dicotomia entre público e privado.8

175
A figura do soberano plasmava, na gestão dos negócios do
reino e suas colônias, o equilíbrio de poderes dos grupos sociais
com os quais convivia. Oficiais servindo ao rei constituíam um
conjunto variado e desigual apresentando situações nas quais se
exigia para o cargo formação específica ou não, salários pagos
pelo erário régio, propinas ou remuneração advinda do próprio
cargo, duração vitalícia ou temporária, exercícios comissionados
ou eletivos.
Tal era o retrato da administração, quando o rei aciona oficiais
distribuídos sem uma lógica burocrática para o cumprimento das
tarefas de garantia do bem comum, voltadas à justiça, fazenda,
defesa ou religião. Se o respeito ao compromisso com o governo
justo que desejava um rei cristão era o condicionante geral que
orientava o exercício de funções régias, a ocupação do cargo
dava-se por uma cessão patrimonial por parte do soberano.
“O cargo público ou ofício na administração colonial pertencia
ao rei, por ser um atributo de sua soberania”, afirmam Arno
e Maria José Wehling.9 Seguindo conveniências, el-rei poderia
vender, arrendar ou cedê-los, temporária ou vitaliciamente. Além
de servir ao rei, arte das mais concorridas no Antigo Regime, o
oficial esperava contrapartidas que se traduzissem em ascensão
social. A combinação seria perfeita se às honras e privilégios se
somassem ganhos pecuniários.
A política régia de remunerar mal seus servidores tornava
tácita a possibilidade de complementação com ganhos relacio-
nados à sua atividade, especialmente nas colônias. Charles Boxer,
ao examinar o conjunto do império colonial português, admite
que, se a coroa não tolerasse alguma margem de lucro por parte
dos funcionários, ela sequer encontraria candidatos aos cargos.10
Não eram poucas as oportunidades que a experiência colonial
oferecia nas diferentes esferas do governo régio ou das funções
cedidas a particulares, como os arrendamentos fiscais. Solução
das mais frequentes foi a participação de autoridades em ativi-
dades comerciais, dividindo os ganhos com os cofres régios.
Diante dos baixos salários, nada havia de ilegal na conduta de

176
funcionários ultramarinos autorizados, até 1720, a comercializar.
“Os governadores coloniais e os altos funcionários tornavam-se
frequentemente sócios comanditários de empresas mercantis, ou
usurários numa escala considerável.”11
Magistrados, capitães, governadores, vice-reis, meirinhos,
contratadores, eclesiásticos não desperdiçaram chances de
cultivar ganhos paralelos. Em troca deles guardas facilitavam a
soltura de condenados, juízes calibravam o rigor das sentenças,
fiscais unhavam parte das mercadorias que deveriam tributar. A
participação em atividades de contrabando revelava-se também
tolerada. Afinal era recomendável, ao menos tacitamente, parti-
cipar das oportunidades da economia colonial amealhando
ganhos para o patrimônio familiar. Essa lógica que tornava
natural a recepção por parte dos funcionários de ganhos no
exercício de funções em nome do rei integrava o universo cultural
em diversas escalas, desde o ambiente das relações locais em que
a autoridade atuava, que aceitavam, até as esferas decisórias na
metrópole, que toleravam.
Como bem salientam Arno e Maria José Wehling:

Se a fidelidade política e doutrinária era indiscutível, o peso dos


interesses pessoais ou de grupo foi muito grande. Quando juízes
dilatavam decisões para beneficiar-se financeiramente, clérigos cobra-
vam exageradamente por seus serviços religiosos, militares recebiam
dinheiro para “esquecer” recrutas que deveriam ir para as guerras do
sul, escrivães e tabeliães aumentavam as custas, todos justificavam-se
explicitamente pelos baixos rendimentos dos ofícios e implicitamente
pelo clima predatório de “fazer a América” que caracterizou boa parte
da colonização.12

é preciso considerar que, a despeito do clima de soltura que


presidia a ação dos funcionários nos trópicos, distinta era a ação
permissiva que gerava rendas particulares para autoridades em
exercício de funções régias e a prática de extorsões, desrespeito
às leis estabelecidas ou algumas práticas de violências que

177
transgredissem as determinações das leis e costumes do reino.
Ainda que os limites que distingam as esferas de participação entre
aquelas consentidas e aquelas efetivamente proibidas e ilegais
sejam geralmente imprecisos, havia extremos como o contra-
bando ou o recebimento de propinas, de um lado, e a fabricação
de moeda falsa, participação em desvios de receitas da coroa e
outros crimes, de outro.
Certo juízo de Charles Boxer confirma: “As queixas acerca
da rapacidade e da venalidade dos funcionários governamentais
em geral (...) são um tema constante da correspondência parti-
cular e oficial durante mais de três séculos.”13 Se inexiste cor-
rupção nas vantagens que os funcionários alcançavam, quando
amparados pela concordância tácita do soberano, onde residia
a transgressão que motivou rios de tintas que jorraram com
denúncias de roubos e violências praticadas por funcionários de
todos os quadrantes do império? Decerto ela não é tangível no
vocabulário da época, no qual “corrupção” aparece significando
deteriorização material e moral, sem o emprego objetivo do termo
para se referir às condutas ilícitas de oficiais régios.14
Além das denúncias produzidas por inimizades e disputas
de grupos em torno do controle de poderes na colônia e das
atividades contrárias aos estatutos legais, alcançava-se o terreno
onde o modo de operar dos funcionários, ainda que lícito, feria os
direitos dos súditos. Situação que pareceu predominar refere-se
aos abusos, opressão ao patrimônio, segurança e justiça, quando
o poder do funcionário fere as regras do bom governo, segundo
as quais os direitos deveriam ser respeitados sem que os súditos
fossem vexados.
O problema ocupou sem trégua as formulações de eruditos,
acionando a justificativa teológico-política que condenava a
ambição e a corrosão das bases que deveriam regular a conduta
harmônica e virtuosa da comunidade cristã. Sua condenação
não escapou da matéria de muitas crônicas, sátiras e sermões,
cartas e pareceres.

178
A formulação do Padre Antônio Vieira em diversos sermões
é límpida como denúncia dos perigos políticos que cercam a
conduta dos servidores do rei: “alguns ministros de Sua Majestade
não vêm cá buscar o nosso bem, vem cá buscar nossos bens”,
arremata. A tópica da doença do corpo da República apresenta-se
confrontada com a tarefa colonizadora:

El-rei manda-os tomar Pernambuco, e eles contentam-se com o


tomar... Este tomar o alheio, ou seja, o do Rei ou o dos povos, é a
origem da doença; e as várias artes e modos e instrumentos de tomar
são os sintomas, que, sendo de sua natureza muito perigosa, a fazem
por momentos mais mortal. E senão, pergunto...: Toma nesta terra o
ministro da Justiça? – sim, toma. – Toma o ministro da fazenda? – sim,
toma. – Toma o ministro da milícia? – sim, toma. (...) E como tantos
sintomas lhe sobrevêm ao pobre enfermo, e todos acometem à cabeça
e ao coração (...) fica tomado todo o corpo e tolhido de pés e mãos,
sem haver mão esquerda que castigue, nem mão direita que premie.15

Especificamente no “Sermão do bom ladrão”16 ataca a corrupção


governamental, assinalando que o problema da distância e da
demora dos meios de coação provocam a generalização do
furto que, com regularidade, torna-se uma prática legal. Através
da motivação teológico-política, Vieira alcança de maneira
amplificada o que se passava no Brasil: a ocorrência intensa e
frequente de desajustes estimulada pelo caráter da colonização.
No giro permissivo da administração da América portuguesa
os recursos que o Estado deixou de receber irrigaram o patri-
mônio de grupos sociais, redes, famílias que o Novo Mundo
atraiu. Sob extrema dinâmica que equilibrava estabilidade e
instabilidade política, os desgastes e tensões gerados pelos
abusos, ambição e rapacidade dos servidores régios feriram os
ideais de bom governo no ultramar.

179
NOTAS
1
Com temática afeta ao tema destacam-se PIJNING. Conflicts in the portuguese
colonial administration: trial and errors of Luís Lopes Pegado e Serpa, provedor-
-mor da Fazenda Real in Salvador, Brazil, 1718-1721, p. 403-423; PIJNING.
Controlling contraband: mentality, economy and society in eighteenth-century
Rio de Janeiro; e CAVALCANTE. Negócios de trapaça: caminhos e descaminhos
na América Portuguesa (1700-1750).
2
Ver, dentre outros exemplos, VARNHAGEN. História geral do Brasil (antes
da sua separação e independência de Portugal); e LISBOA. Crônica do Brasil
colonial (apontamentos para a história do Maranhão).
3
PRADO JR. Formação do Brasil contemporâneo.
4
PRADO JR. Formação do Brasil contemporâneo, p. 341.
5
PRADO JR. Formação do Brasil contemporâneo, p. 356.
6
BUENO. A coroa, a cruz e a espada. Lei, ordem e corrupção no Brasil Colônia.
1548-1558, p. 34; ARAúJO. O teatro dos vícios. Transgressão e transigência
na sociedade urbana colonial.
7
HESPANHA. Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político - Portugal
(século XVII); SUBTIL. O Desembargo do Paço: 1750-1833.
8
GODINHO. Finanças públicas e estrutura do Estado, p. 29-74.
9
WEHLING; WEHLING. O funcionário colonial entre a sociedade e o rei, p. 143.
10
BOXER. O império colonial português (1415-1825), p. 309.
11
BOXER. O império colonial português (1415-1825), p. 308.
12
WEHLING; WEHLING. O funcionário colonial entre a sociedade e o rei, p. 159.
13
BOXER. O império colonial português (1415-1825), p. 308.
14
SILVA. Grande dicionário da língua portuguesa, p. 599; ver a compilação de
leis em Ius Lusitaniae, Fontes Históricas de Direito português. Disponível em:
<www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt>.
15
Apud FAORO. Os donos do poder, p. 173.
16
PéCORA. Escritos históricos e políticos do Padre Antônio Vieira, p. XX.

REFERÊNCIAS
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reference to the administration of the Marquis of Lavradio, Viceroy, 1769-
1779. Berkeley: University of California Press, 1968.
ARAúJO, Emanuel. O teatro dos vícios. Transgressão e transigência na
sociedade urbana colonial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

180
BOXER, Charles R. O império colonial português (1415-1825). Lisboa:
Edições 70, 1981.
BUENO, Eduardo. A coroa, a cruz e a espada. Lei, ordem e corrupção
no Brasil Colônia. 1548-1558. Rio de janeiro: Objetiva, 2006. (Terra
Brasilis, 4)
CAVALCANTE, Paulo. Negócios de trapaça: caminhos e descaminhos
na América Portuguesa (1700-1750). São Paulo: HUCITEC/FAPESP, 2005.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Porto Alegre: Globo, 1979. v. 1.
FIGUEIREDO, Luciano R. A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial na
América Portuguesa. Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, 1640-1761. Tese
(Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996. Mimeografado.
GODINHO, Vitorino Magalhães. Finanças públicas e estrutura do Esta-
do. In: ______. Ensaios: sobre a História de Portugal. 2. ed. Lisboa: Sá da
Costa, 1978. v. II.
HESPANHA, António Manuel. Às vésperas do Leviathan: instituições e
poder político - Portugal (século XVII). Coimbra: Almedina, 1994.
LISBOA, João Francisco. Crônica do Brasil colonial (apontamentos para
a história do Maranhão). Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976.
PéCORA, Alcir. Escritos históricos e políticos do Padre Antônio Vieira.
São Paulo: Martins Fontes, 1995.
PIJNING, Ernst. Conflicts in the portuguese colonial administration: trial
and errors of Luís Lopes Pegado e Serpa, provedor-mor da Fazenda Real in
Salvador, Brazil, 1718-1721. Colonial Latin American Historical Review,
2(4), p. 403-423, 1993.
PIJNING, Ernst. Controlling contraband: mentality, economy and society
in eighteenth-century Rio de Janeiro. Tese (Doutorado) – The Johns
Hopkins University, 1997.
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo:
Brasiliense, 1979.
SALGADO, Graça (Coord.). Fiscais e meirinhos. Administração no Brasil
colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília: INL, 1985.
SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial – a supre-
ma corte da Bahia e seus juízes: 1609-1751. São Paulo: Perspectiva, 1979.
(Estudos, 50)
SILVA, António de Morais. Grande dicionário da língua portuguesa.
10. ed. rev. cor. aum. e atual. Lisboa: Confluência, 1949. v. III.

181
SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na
América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. O Desembargo do Paço: 1750-1833.
Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1994.
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil (antes da sua
separação e independência de Portugal). 10. ed. Belo Horizonte: Itatiaia;
São Paulo: Edusp, 1981. 3 v.
WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. O funcionário colonial entre
a sociedade e o rei. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). Revisão do paraíso.
Os brasileiros e o Estado em 500 anos de história. São Paulo: Campus,
2000. p. 139-159.

182
e va l d o Cabral de Mello

pErnambuCo no
pEríodo Colonial

Como compensação pelos modestos ordenados pagos às


autoridades ultramarinas, o recrutamento em Portugal de gover-
nadores, magistrados e outros funcionários já pressupunha que
a coroa fecharia os olhos às irregularidades cometidas por
seus agentes, desde que atendidas duas condições implícitas:
a primeira, a de não atentar contra as receitas régias; a segunda,
a de agirem com um mínimo de discrição. Sem essa cumplicidade
tácita, não seria possível recrutá-los ao menos nas camadas da
nobreza e da burocracia metropolitanas, pois o nomeado, ou
melhor diria, o agraciado, só se prestaria a servir fora do Reino
na expectativa de fazer o pé de meia que lhe garantiria uma
existência tranquila após o regresso a Portugal. Afinal de contas,
como afirmava um governador de Pernambuco de começos do
século 18, “sair um homem de sua casa e tornar como foi, [ape-
nas] com esperança de mercês, não é bom nem seguro”. Daí a
dificuldade de preencher os postos pouco rentáveis, que eram
apenas “de merecimentos”, mas não “de proveito”.
Oficialmente, os governadores de Pernambuco recebiam à
partida de Lisboa cotas de gêneros alimentícios que podiam
ser comutados em dinheiro; e ao desembarcarem em Recife,
embolsavam ajuda de custo. A Câmara de Olinda também lhes
pagava uma mesada. Na cidade, dispunham de acomodações
adequadas no velho paço construído por Vidal de Negreiros e
ao se deslocarem ao Recife e ao interior tinham direito à aposen-
tadoria, hospedando-se geralmente nos conventos. Durante o
exercício trienal do cargo, tinham direito a uma comissão sobre
o valor dos contratos de arrecadação de impostos, dada a título
de incentivo para que garantissem que as arrematações seriam
efetuadas pelos montantes favoráveis do ponto de vista da real
fazenda, mas também para desestimulá-los de participarem de
tais operações por intermédio de testas de ferro. Na realidade,
os governadores continuaram a se imiscuir no assunto para
favorecer amigos e parceiros comerciais, entrando em conflito
com as câmaras, que obviamente também os tinham.
Como acentuado, a coroa mostrava-se implacável com
as interferências governamentais com a fazenda real. Alguns dos
primeiros governadores nomeados para Pernambuco após a
restauração da capitania do domínio holandês tiveram os bens
sequestrados em seu regresso a Lisboa, de modo a ressarcir o
erário régio dos prejuízos que lhe teriam causado. O próprio
Francisco de Brito Freyre, autor da Nova Lusitânia ou história
da guerra brasílica, retornou ao Reino preso sobre a acusação de
descaminho de pau-brasil, o qual, como se recorda, era mono-
pólio régio. E se D. João de Souza deixou boa recordação na
terra, foi por haver sido “o governador que leva deste governo
menos fazenda”, certamente por haver comerciado em menor
escala ou com menos proveito.
Nenhum, porém, ganhou a palma a Jerônimo de Mendonça
Furtado, deposto em 1666 pela Câmara de Olinda. Ignorando os
privilégios da Companhia Geral, adquiriu grande quantidade
de pau-brasil, monopólio régio, para enviar a Portugal.Ao coman-
dante da armada da Companhia Francesa das índias Orientais,
que se vira na contingência de ancorar no Recife, vendera igual-
mente uma partida da madeira como condição da ajuda em
víveres e aguada a ser dispensada à esquadra. Havendo a coroa
ordenado a recunhagem das moedas de ouro e prata que circulavam
na colônia, Mendonça Furtado encarregara-se ele próprio da
tarefa em sua casa e com a ajuda de seus criados, empregando

184
marcas que mandou especialmente fundir. Além de embolsar
parte da verba destinada ao sustento da tropa de linha, tomara
8.000 cruzados da receita do imposto destinado a pagar o dote
de D. Catarina de Bragança, casada com Carlos II, da Inglaterra,
e a indenizar os Países Baixos pela perda do Brasil holandês.
Escusado aduzir que seus bens foram sequestrados pela justiça:
20 anos depois do seu governo, o litígio entre seus herdeiros e a
coroa ainda rolava pelas repartições do Reino.
Tolerava-se o comércio dos governadores e dos magistrados
da coroa (ouvidores e juízes de fora) desde que exercido através de
testas de ferro, geralmente criados das autoridades ou comerciantes
já estabelecidos. Em 1670, a Câmara de Olinda representou ao
regente D. Pedro contra “os governadores usarem de mercancia
tão absolutamente, que serve de estanque a todo o comércio”,
solicitando que nenhum “trate de negócio nem mande abrir loja
de vara e côvado em que assista pessoa de sua casa e não molestem
as pessoas que lançam e arrendam os impostos aplicados para
o sustento dos soldados”. Um destes governadores, acusado
de monopolizar o comércio de couro das reses abatidas pelo
consumo da população, adquirindo-as por metade do preço de
mercado, recrutará, quando interpelado a respeito, que “quanto
a isto de couros, hei-de comprá-los como os comprei até agora,
pois meus antecessores assim o faziam”.
Relativamente aos ouvidores, queixava-se em 1673 à Câmara
de Olinda de que eles eram via de regra “pessoas pobres” que,
sem perspectivas no Reino, só tratavam de amealhar uns cobres,
fazendo-se “regatões” e pouco se lhes dando o direito das partes.
Magistrados houve que transformaram suas residências em casas
comerciais. Pouco tempo decorrido de sua chegada à terra, à raiz
da guerra dos mascates e das devassas a que deu lugar, o ouvidor
João Marque Bacalhau já despachava para o Reino 50 caixas de
açúcar e 5.000 cruzados em espécie. De outro ouvidor, João de
Sepúlveda e Matos, sabe-se que curtia couros no próprio gabinete
em que despachava, “como se sua ocupação só fora de comprar
e vender”. Subordinada aos magistrados, achava-se a provedoria

185
de defuntos e ausentes, cujo tesoureiro, especialmente por ocasião
de epidemias como a da febre amarela na segunda metade de
Seiscentos, administrava importantes recursos, que podiam ser
aplicados em proveito próprio mediante o adiantamento da sua
remessa aos legítimos proprietários no Reino.
A carta régia de 1671 proibiu aos governadores e funcionários
da fazenda, justiça e guerra “comerciar com lojas abertas em
suas casas nem atravessar [isto é, açambarcar] fazenda alguma,
nem por nelas e nos frutos da terra estanque”, ou seja, mono-
pólio, nem participar na arrecadação dos contratos de impostos
ou fixar os preços aos gêneros e fretes. Outra decisão da coroa
(1678) vedou a associação direta ou indireta da burocracia régia
em tais atividades no Reino e no ultramar. As ordens não foram
obedecidas, mas ao menos terão servido para moderar as práticas,
dando-lhes aparência aceitável. Quando Caetano de Melo e
Castro reclamou da modéstia do ordenado, que seria apenas
suficiente ao sustento da casa, el-rei autorizou aos governadores
do Brasil “aquele comércio lícito para dele se ajudarem para os
gastos que fazem na assistência dos seus governos”. A permissão,
reiterada em 1709, produziu consequências tão negativas que
em 1720 D. João V restabeleceu a interdição, combinada desta
feita a uma melhoria dos vencimentos.
A prática continuou assim mesmo. Como governador do
Funchal, Duarte Sodré Pereira, que governaria Pernambuco nos
anos 30 do século 18, chegou a comandar uma verdadeira rede
comercial que, baseada no eixo Lisboa-Londres, englobava o
Atlântico desde Boston, Nova Iorque e Filadélfia até à Bahia,
o Recife e o Rio de Janeiro, passando por Curaçau, Barbados,
Jamaica, Angola, os Açores, Hamburgo e Amsterdã. O negócio
abrangia grande variedade de produtos: cereais, vinho, tecidos,
açúcar, azeite, escravos, material de construção naval, armas e
munições, sendo que no Recife seu comissário era um dos merca-
dores mais ativos da praça.
À partida para o Brasil, governadores e magistrados entravam
em parcerias com mercadores de Lisboa ou do Porto, que se

186
obrigavam a adiantar quantidade certa de produtos a serem
comercializados localmente pelas autoridades contra o paga-
mento de juros de 4 a 6%, a promessa da investigação oficial na
cobrança e execução de eventuais devedores e a condição de que
as mercadorias seriam escoadas durante o triênio funcional. Daí
que no seu derradeiro ano de cargo, governadores e magistrados
se apressassem em liquidar as operações e embolsar seus créditos,
conscientes de que, fora das funções, já não teriam podido fazê-lo
pontualmente. Ao desembarcarem no Brasil, governadores e
magistrados se associavam a comerciantes locais ou contratavam
caixeiro próprio para comercializarem as fazendas, geralmente
a crédito, engajando-se inclusive no comércio de produtos e de
escravos entre Pernambuco e as Minas Gerais através do Rio de
Janeiro ou do sertão do São Francisco.
A atuação dos testas de ferro era coberta, inclusive manu militar,
graças aos poderes governamentais de capitão-general. Castro e
Caldas, que governou o Rio de Janeiro, onde foi acusado de
contrabando com navios franceses, e Pernambuco, de onde teve
de fugir para escapar a um levante da nobreza da terra, dizia
conhecer “por experiência o que pode um governador, que valem
mais o seu respeito e intervenção do que quantas sentenças se
possam alcançar por todos os caminhos”. A aliança entre a buro-
cracia régia e os mercadores do Recife, que se forjou ao longo
da segunda metade do século 17 e ao longo do 18, baseou-se
nessas conivências lucrativas bem mais do que nos laços de soli-
dariedade reinol ou na convicção, por parte das autoridades
da coroa, de que seus conterrâneos eram vassalos mais fiéis do
que a gente da terra.
Algumas das outras oportunidades de ganho ilícito que se
ofereciam a um governador ultramarino advinham da nomeação
para cargos civis que não requeriam provisão régia, ou que
estavam autorizados a preencher por prazo limitado, na depen-
dência de confirmação pelo governador-geral e por el-rei.
Por trás das disputas jurisdicionais entre os governadores de
Pernambuco e o governo-geral na Bahia, atuava muitas vezes

187
a concorrência pelo direito a nomear para cargos lucrativos, que
podiam ser rateados pelo séquito do governador, que, por sua
vez, ficava com uma parcela dos proventos. No primeiro decênio
do século 18, quando suas competências haviam sido podadas
pelo regulamento de 1670, os governadores de Pernambuco ainda
dispunham, ademais dos cargos subalternos na capitania, dos
existentes nas chamadas “capitanias anexas” como a Paraíba, o
Rio Grande do Norte e o Ceará. Igualmente rentável era a regalia
de prover os postos militares, também de natureza subalterna, da
tropa de linha sediada em Olinda e no Recife. A própria tropa
representou certa feita a el-rei contra “a grande sede da cobiça
e ambição” com que os governadores “puseram por instituição
de se venderem os postos militares, tirando a justiça e o direito
aos pobres soldados beneméritos, dando os postos aos mais
vis e ignorantes”. Com a criação dos contingentes de paulistas
no Rio Grande e em Palmares, eles passaram a designar todas
as suas patentes até capitão de infantaria, sem necessidade de
aprovação da coroa.
Ainda outras fontes de ganho ilícito reportavam-se à compe-
tência dos governadores como superintendentes das fortificações,
o que lhes rendia comissões de empreiteiros; ao controle que
exerciam sobre a partida dos navios que fundeavam no Recife,
inclusive a autorização a embarcações estrangeiras para ancorarem;
à responsabilidade pelo suprimento de farinha de mandioca e de
carne ao Recife e a Olinda, em violação da jurisdição das câmaras
municipais; e ao poder de desterrar vassalos da coroa para outras
partes do ultramar, sem mencionar as inúmeras finezas que podia
fazer em esferas que, em princípio, escapavam à sua jurisdição,
mas não à sua influência.
Antônio Barbosa de Lima, que entre o fim do século 17 e o
começo do 18 ocupou a secretaria do governo de Pernambuco,
aconselhava a um dos governadores que regateasse as mercês,
“vendendo-as mui caras e, se puder, com um só favor, obrigar
a muitos intercessores”, pois era esta a “política de que usaram

188
alguns governadores destros”. Recomendava, porém, que ele
preservasse as aparências, não aceitando presente algum de quem
quer que fosse,“exceto bagatelas” de amigos, de maneira a fazer
“o seu negócio com segredo e com cautela, porque isto alimpa
e aquilo mancha”. Essa exigência de compostura explica que
Brito Freyre se negasse a receber os fechos (pequenas caixas de
açúcar) com que se costumava presentear os governadores; e que
Câmara Coutinho mandasse devolver os doces que lhe enviara
o reitor da Companhia de Jesus.
A “residência” revelou-se um mecanismo invariavelmente
inoperante de controle de autoridades arbitrárias ou corruptas.
Assim se chamava a investigação tirada pelo ouvidor que entrara
em exercício, o qual escolhia a dedo certo número de indivíduos
para virem depor sobre a gestão do governador ou do magistrado
cujo triênio findara. Terminado o prazo de 30 dias, o ouvidor
formulava suas conclusões, enviando o dossiê para Lisboa. Escu-
sado aduzir que as “residências” eram geralmente manipuladas.
No tocante às dos governadores, tudo dependia das relações que
mantivera com o ouvidor. Mas relativamente aos magistrados o
espírito corporativo falava mais alto, viciando os resultados do
inquérito, sendo que, no Reino, a “residência” ainda podia dar
origem a conflitos intermináveis entre o Conselho Ultramarino
e o Desembargo do Paço.
As câmaras municipais não seriam, aliás, menos corruptas
que as autoridades de nomeação régia. Ocorria, apenas, que
lhes faltava ocasião, salvo em se tratando de uma municipa-
lidade, como Olinda, que administrava as receitas substanciais
dos impostos extraordinários (cerca de 70 a 80 mil cruzados
na segunda metade do século 17) criados durante a guerra
holandesa e que continuaram a ser cobrados pela coroa. Tais
recursos serviam para cobrir as despesas com a tropa de linha e
outros gastos de defesa (no tocante aos quais as irregularidades
eram costumeiras), ao passo que as sobras eram aplicadas em
gratificações e ajudas de custo a vereadores e outras autoridades.

189
Destarte, a Câmara de Olinda, os governadores e as autoridades
fazendárias disputaram durante mais de 50 anos a arrecadação
e a gestão destes fundos, que só após a derrota do partido da
nobreza na guerra dos mascastes passaram a ser gerenciados
pela fazenda régia.

190
lilia Moritz S C H wa r C z

Corrupção no
braSil império

Durante o Império brasileiro o termo corrupção foi raramente


utilizado ou mesmo referido. Conceitos carregam suas próprias
datações e a transposição no tempo traz consigo mudanças
evidentes de sentido. A noção de corrupção está, por outro lado,
vinculada normalmente a um tipo de Estado cuja lógica advém
da ideia de igualdade de direitos, modelo que não fazia parte das
concepções de um governo que, a despeito de seu caráter mais
ou menos esclarecido, nunca abriu mão do poder moderador:
um quarto poder – de exclusividade do monarca – e que anulava
os demais. Além do mais, o soberano foi associado – por meio
dos rituais, das gravuras oficiais e dos documentos largamente
disseminados – à imagem do monarca divino, daquele que era
julgado não por seus atos entre os homens, mas por outro tipo
de justiça, menos terrena. Dessa forma, é preciso um esforço de
“tradução” do termo: ele possui um sentido diverso, apesar de
muitas vezes paralelo.
Já durante o Primeiro Reinado, a despeito da situação política
conturbada – o fechamento da Assembleia Constituinte e mesmo
a crise que resultaria na partida de D. Pedro I para Portugal –,
nos jornais e atas da Câmara, a noção de corrupção pouco apare-
ce ou mesmo qualquer outro termo de significado semelhante.
Com efeito, instalada uma monarquia constitucional em meio à
América republicana, questões do dia a dia eram debatidas em
termos acalorados, mas preservava-se o Estado e seu governante.
Tal constatação torna-se ainda mais evidente durante o
Segundo Reinado, e, sobretudo, nos momentos de maior popu-
laridade do Império, quando D. Pedro II passou a ser lembrado
como um monarca de direito divino e um mecenas das artes.
Ao lado da prosperidade econômica que se afirmou durante os
anos de 1850 e 1870, vingou a imagem deste sistema político,
que parecia pairar acima das demais questões “mundanas”. No
entanto, com o final da Guerra do Paraguai, o Império de D.
Pedro II viveria seu momento de maior apogeu, mas também
o início de sua decadência. é nesse contexto que a questão do
abolicionismo toma força, que o Partido Republicano é fundado
e que o exército, como instituição, passa a se opor frontalmente
a sua antiga ocupação como “caçador de escravos fugidos”. Aí
estavam os primeiros sinais de oposição direta ao regime, que se
tornariam mais fortes a partir de então, assim como os estopins
para a derrocada de um sistema que começava a mostrar suas
rachaduras internas.
A situação seria, porém, adiada com as sucessivas viagens de
D. Pedro ao exterior, por uma série de leis de caráter paliativo e
evidentemente conservador – como a lei do Ventre Livre e a lei
dos Sexagenários –, e com as mudanças sucessivas de ministério.
A partir da década de 1880, porém, o Império seria assolado
por questões que inaugurariam uma nova agenda de acusações,
estando na linha de frente a própria idoneidade do sistema. Se
o conceito de corrupção está vinculado ao ato de “corromper”,
e à ação de “subornar”, o fato é que pela primeira vez o regime
seria caracterizado por esse tipo de prática. Num momento em
que o monarca e seu governo mostravam fragilidades, uma série
de casos começava a aparecer na imprensa e causava escândalo.
Não se quer dizer com isso que antes não existissem exem-
plos de descontentamento; mas o mais importante é que nesse
contexto eles saiam do espaço privado e ganhavam o público.
Ao mesmo tempo, passavam a se constituir como demarcadores
poderosos a sinalizar os limites deste sistema, crescentemente
associado a expedientes que implicavam subornar funcionários e

192
cidadãos, ou evitar que a lei vingasse. Pela primeira vez, também,
se questionava o poder do monarca, e a imprensa passava a se
imiscuir em sua vida privada. Com efeito, num sistema como a
monarquia, a fronteira entre esferas públicas e privadas é tão
relativa como porosa, e até então D. Pedro parecia apartado e
protegido deste tipo de problema.
Não há como elencar todos os incidentes que poderiam, neste
momento, ser vinculados à noção de corrupção do Estado. No
entanto, diante da impossibilidade de trazer um quadro mais
geral, fiquemos com um evento exemplar, que pode ajudar a
iluminar facetas específicas da corrupção que efetivamente ocorria
durante o Império. Por vezes, determinados fatos sintetizam um
conjunto de significações e a análise de um determinado aconteci-
mento pode iluminar situações de maior escala. Comecemos pela
ideia de que enquanto o regime esteve forte pareceu imune a este
tipo de questionamento. Foi só a sua fragilidade, cada vez mais
pública, que fez com que certos temas deixados normalmente
embaixo do tapete entrassem na sala de jantar.
Nesse sentido, um dos episódios mais emblemáticos do final
do Império ficou na época conhecido como o “roubo das joias
da coroa”. Estamos no ano de 1882, mais exatamente na ma-
drugada de 17 para 18 de março. Nesse dia, um gatuno teria
entrado nos aposentos do Palácio de São Cristóvão – residência
íntima da família imperial – e retirado do interior de um armá-
rio todas as jóias da Imperatriz Teresa Cristina e de sua filha, a
Princesa Isabel. Até esse ponto, o Império seria antes vítima deste
processo e não o seu agente deflagrador. Porém, o desenrolar dos
acontecimentos, e suas consequências políticas, devem menos
ao valor pecuniário dos objetos roubados do que a seu caráter
político e simbólico.
O episódio entraria em cheio na pauta da oposição, que
passou a acusar o governo imperial de negligência e omissão na
condução dos temas privados, e que agora se tornavam públicos.
Afinal, se o Paço poderia ser devassado com tal facilidade, o que
dizer da situação dos súditos? Aí estava apenas o começo de uma

193
longa história, que acabaria por se desdobrar em acusações de
suborno, suspeitas de adultério e de inépcia administrativa; um
prato cheio para a imprensa folhetinesca da época. Para uma
família tão acostumada à discrição, pela primeira vez ocorrências
da vida privada ganhavam as primeiras páginas dos jornais. Mas
vamos à sequência de fatos: a Imperatriz teria usado as joias no
baile em que comemorara seus 60 anos. Depois, o casal imperial
rumara para Petrópolis, não sem antes deixar as joias deposi-
tadas numa caixa e sob os cuidados de Francisco de Paula Lobo,
membro do serviço particular do Paço. Dizem os autos que, como
o funcionário não teria encontrado as chaves do cofre junto com
outro empregado – José Virgílio Tavares –, optara por deixar a
caixa dentro de um armário, do qual teria desaparecido.
Nesse momento da investigação a família apenas sofria por
conta de funcionários ineptos. No entanto, como joias da coroa
são objetos públicos, foi logo convocada a cúpula da polícia da
corte – nas pessoas de seu chefe Trigo de Loureiro e do dele-
gado Macedo de Aguiar – e o próprio ministro da justiça. A
polícia, que trabalhava com os indícios existentes, logo se deparou
com algumas cordas deixadas no muro de São Cristóvão. A
primeira impressão foi, pois, de que o furto era obra de um
larápio comum. Não obstante, monarcas não são simplesmente
roubados. E, com o andamento do processo, ficou logo claro
que as provas eram artificiais, uma vez que o furto partira de
dentro da própria estrutura do Paço. Dois funcionários foram
imediatamente detidos, assim como um ex-empregado – Manuel
de Paiva – suspeito de ter entrado no prédio no mesmo dia do
sumiço das preciosidades da coroa.
Para complicar o mistério, e começar a resolvê-lo, alguns
dias depois uma carta anônima indicou onde estariam as joias:
numa caixa de biscoitos enterrada nos fundos da casa do último
suspeito. Ali foram encontrados não só os objetos que Teresa
Cristina havia usado na noite de seu aniversário, como dezenas
de outros adornos. Porém, por mais que o crime tivesse sido
resolvido rapidamente e com certa eficiência, o episódio foi

194
utilizado para iluminar as falácias morais do governo. Fatos
tornam-se eventos quando ganham significações políticas e cultu-
rais de maior abrangência. O que desgastou a monarquia não
foi exatamente o furto, mas uma determinada conivência com
ele e a falta de medidas punitivas. Por exemplo: Paiva, o prin-
cipal suspeito, havia sido afastado formalmente do serviço no
Paço, mas continuava contando com a proteção do monarca;
morava num terreno situado dentro da Quinta da Boa Vista, a
poucos metros do local onde foram encontradas as joias. Além
disso, mantivera consigo as chaves do palácio, apesar de não
estar mais no desempenho de suas funções oficiais. Por fim, os
três implicados no roubo haviam sido soltos imediatamente e
com o consentimento prévio do imperador. Nesse meio tempo,
Trigo Loureiro e o tenente Lírio, os dois policiais que atuaram
no caso, foram agraciados com ordens honoríficas: o primeiro
com a Comenda da Rosa, e o segundo com o grau de Cavaleiro.
Tais gestos foram prontamente interpretados pela imprensa
como uma tentativa de “silenciar” os policiais e de “amaciá-los”
com títulos em geral reservados à nobreza. Os termos eram outros,
mas se referiam à noção de corrupção política ou favoritismo.
Por outro lado, a confusão nos conceitos utilizados nos autos
indicava a alta temperatura reinante. Se o caso fosse entendido
como um “roubo” – ou seja, subtração de objetos com uso de
violência ou não –, Paiva teria que continuar preso. Todavia,
como o que ocorrera fora interpretado nas esferas oficiais como
um simples “furto”, somente a vítima poderia dar prosseguimento
ao processo. E a vítima era tão simplesmente o imperador. O
fato é que D. Pedro resolveu encerrar o caso, Paiva voltou para
casa e a indignação na imprensa foi geral. A Gazeta de Notícias
bradava que “no Brasil não havia legalidade (...) era uma folia or-
ganizada”. Dizia-se também que, assim como as joias – que foram
encontradas no meio de um lamaçal –, a justiça do Império havia
sido “enterrada” e que tudo não passava de um “mar de lama”.
O caso também ganhou o judiciário, com a Câmara e o Senado
reclamando uma atitude do ministro da justiça e do imperador.

195
D. Pedro, por sua vez, apenas enviou uma declaração, por
meio de seu mordomo-mor, atestando que não interferiria mais
na investigação: dava-a por encerrada. Para se entender o im-
pacto do “roubo”, basta lembrar que nessa época três escritores
publicaram folhetins na imprensa, todos inspirados no mesmo
incidente: Raul Pompeia, José do Patrocínio e Artur de Azevedo.
Os três eram figuras de visibilidade na sociedade local e o objetivo
parecia comum: revelar a fragilidade das instituições imperiais
e lançar dúvidas sobre a capacidade de governo de D. Pedro II.
Isso não se esquecendo da suspeita que pairava em cada um dos
artigos: o que tanto temiam o imperador e o Estado?
Pompeia, por exemplo, que na época era um jovem escritor
de 19 anos, publicou na Gazeta de Notícias, entre 30 de março e
1º de abril, folhetins em que comparava a decadência do reinado
de Luiz XV com a situação experimentada no Brasil. Escreveu
uma bela paródia em que o principal personagem era o duque de
Bragantina (com certeza uma alusão a Pedro II), sempre interes-
sado em mocinhas e contando com a intermediação de seu criado
Manuel Pavia (numa clara referência a Manuel de Paiva). Para
ganhar o silêncio do servo, o duque promete-lhe impunidade, uma
vez que Manuel roubara as joias da duquesa. A história é quase
óbvia em sua tentativa de mostrar como o episódio sinalizaria
a própria depravação da monarquia. Quem compra o silêncio
de quem é difícil dizer. Por sua vez, José do Patrocínio, famoso
líder abolicionista, publica um folhetim também na Gazeta, entre
março e outubro de 1882. Igualmente, D. Pedro aparece total-
mente submisso a seu criado alcoviteiro, Manuel, que encobre
seus affairs com jovens da corte. Artur de Azevedo segue o mesmo
argumento na sua engraçada opereta: “Um roubo no Olimpo”.
O libreto foi publicado na Gazetinha entre 31 de março e 5 de
abril do mesmo ano, mas as personagens de Azevedo ganham
uma figuração mitológica, bem ao gosto da arte neoclássica que
D. Pedro patrocinava. Se os autores dos diálogos fazem parte da
mitologia romana, já os diálogos apresentam um tom bem mais
coloquial. Mais ainda, ao sabor de sátira os personagens recebem

196
Escândalo na corte de D. Pedro. A. Agostini, 1882.

197
uma ambientação no Brasil imperial: Júpiter é o deus supremo
e também D. Pedro II; Juno é a esposa ciumenta de Júpiter, mas
também Teresa Cristina, a qual, segundo o autor, andava sem-
pre às voltas com as amásias do marido. Por fim, Mercúrio é o
mensageiro de Júpiter numa clara referência à cumplicidade que
teria se estabelecido entre Paiva e D. Pedro. Num diálogo bem
humorado, Argos (o chefe da polícia) solta Mercúrio a mando
de Júpiter. E é Mercúrio quem pergunta a Argos: “Pois há ordem
superior à lei?” Por sua vez, o chefe de polícia responde: “E há
lei superior à ordem?”
Também Angelo Agostini entrou na história, e dedicou ao
tema uma página de seu jornal, cujo título já desmerecia o sis-
tema: “Roubo, lama e mistério”. O caricaturista fazia pouco da
polícia e do imperador e terminava dizendo que “infelizmente o
véu do mistério não é bastante espesso para que através dele não
se veja um poder que a opinião pública julga justa ou injustamente
envolvido nesse triste negócio”. Falta de lei, carência de ordem,
um poder público frágil, uma monarquia desacreditada, uma
polícia dominada por interesses vis; aí estavam acusações que
fragilizariam qualquer sistema que se pretendia pautado pela
justiça e pela legalidade.
Não seria essa a primeira vez que histórias escandalosas
envolviam as monarquias e simbolizavam sua decadência. Caso
semelhante é o do colar de diamantes encomendado por Luiz
XV para a sua amante – Madame Du Barry – e que, no entanto,
com a morte do rei, seria associado à figura de Maria Antonieta,
detestada pelos franceses ao resumir na sua pessoa o consumo
excessivo da corte e o consequente empobrecimento dos súditos.
Interessante é pensar, pois, na especificidade da noção de
corrupção nesse Brasil imperial. Em primeiro lugar, atacar o
imperador era sinônimo de atacar o Estado, uma vez que ele
o personificava. O caso do colar da imperatriz, por mais que
parecesse uma questão pessoal, prontamente resolvida, era muito
mais do que (apenas) isso. O monarca representava o país e ser
apresentado na imprensa a partir de sua esfera privada já era

198
em si sinal de sua decadência política. Como dizia Etienne de la
Boitie, com relação a Luiz XVI, “um monarca que foge – e que
é percebido desta maneira – é a cada dia menos rei”. O mesmo
vale para o nosso imperador. Um soberano que faz simples
acordos com seus funcionários é cada vez menos um soberano
do Estado, pois está sujeito às mesmas tentações de seus súditos.
Não se quer dizer que D. Pedro estivesse imune a tentações. Mais
relevante é pensar, porém, por que nesse momento elas se tornam
compartilhadas. Corrupção é, portanto, uma noção que surge
nesse contexto – mesmo que sob outros nomes –, como forma de
acusação ao sistema, o qual, para existir, precisava estar acima
dela. Dentre as especificidades da monarquia está justamente esta
complicada relação entre esferas públicas e privadas. O que cabe
ao rei, o que é parte das responsabilidades do Estado é difícil de
dizer ou afirmar. Dessa vez, pois, criticar o monarca significava,
de alguma maneira, lancetar o sistema em sua idoneidade. Esta-
mos em 1882 e o Império cairia apenas em 1889. Mas, a partir
da primeira data os jornais estariam repletos de fatos desse tipo
ou parecidos com este. Como dizia o famoso conto de Andersen,
“o monarca estava nu”, e mal havia notado.

REFERÊNCIAS
CARVALHO, José Murilo. D. Pedro II, ser ou não ser. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2007.
CARVALHO, José Murilo. A elite política imperial; teatro de sombras.
Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.
DAIBERT, Bárbara Simões; DAIBERT JUNIOR, Robert. Extra! Roubaram
as joias da imperatriz. Revista de História da Biblioteca Nacional, p. 68-
71, jun. 2007.
PAULA, Sérgio Góes. um monarca da fuzarca. Rio de Janeiro: Relume-
-Dumará, 1998.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2002.

199
JoSé Murilo de C a r va l H o

paSSado, prESEntE E futuro


da Corrupção braSilEira

CARÁTER HISTóRICO DA CORRUPÇÃO


Corrupção política, como tudo mais, é fenômeno histórico.
Como tal, ela é antiga e mutante. Os republicanos da propa-
ganda acusavam o sistema imperial de corrupto e despótico. Os
revolucionários de 1930 acusavam a Primeira República e seus
políticos de carcomidos. Getúlio Vargas foi derrubado em
1954 sob a acusação de ter criado um mar de lama no Catete.
O golpe de 1964 foi dado em nome da luta contra a subversão
e a corrupção. A ditadura militar chegou ao fim sob acusações
de corrupção, despotismo, desrespeito pela coisa pública. Após
a redemocratização, Fernando Collor foi eleito em 1989 com a
promessa de caça aos marajás e foi expulso do poder por fazer
o que condenou. De 2005 para cá, as denúncias de escândalos
surgem com regularidade quase monótona.
Mas, se a palavra é a mesma, é preciso perguntar se a coisa
continua inalterada. A corrupção de hoje é a mesma que a de 100
anos atrás? Há mais corrupção hoje do que antes? Aumentou a
corrupção ou aumentou a percepção dela e a postura diante dela?

MUDANÇA SEMâNTICA
Mudou o sentido da corrupção. As acusações de corrupção
dirigidas ao Império e à Primeira República não se referiam a
pessoas, mas principalmente ao sistema. Nenhum republicano
acusava D. Pedro II de presidir uma administração corrupta ou
de ser ele mesmo corrupto. Em 1930, quando os revolucionários
chamavam de carcomidos aos políticos da Velha República, não
queriam dizer que eram ladrões. Nos dois casos, a acusação era
dirigida ao sistema, não às pessoas. Corruptos eram os sistemas,
monárquico ou republicano, por serem, na visão dos acusadores,
despóticos, oligárquicos, e não promoverem o bem público.
A partir de 1945, no entanto, houve alteração semântica
no conceito. A oposição a Vargas, comandada pelos políticos da
UDN, voltou sua baterias contra a corrupção individual, contra a
falta de moralidade das pessoas. Corruptos eram os indivíduos,
os políticos getulistas, o próprio Vargas. Expulsos o presidente e
seus aliados, voltaria a correr água cristalina nas tubulações da
República. Nessa chave, os indivíduos eram corruptos porque
roubavam dinheiro público para se enriquecerem e enriquecerem
os amigos. Postura semelhante presidiu à justificativa do golpe
de 1964, executado, como se alegou, contra subversivos e
corruptos. A solução consistia em se livrar desses indesejáveis
por meio de Inquéritos Policial-Militares. Ao final do governo
Sarney, o grito de guerra de Collor, que o levou à presidência,
foi também a caça a pessoas, aos marajás. Algo desta tradição,
que ganhou exatamente o nome de udenista, está presente na
grita de hoje contra mensaleiros e outros tipos de predadores
da coisa pública.
Mas, no debate atual sobre corrupção, está também presente
um ingrediente sistêmico de caráter ideológico, análogo ao do
Império e da Primeira República. A reação mais lúcida à corrupção
envolve, sim, o comportamento individual, mas o enquadra em
perspectiva política e sistêmica, não moralista. Para essa posição,
a corrupção seria inaceitável por minar a própria essência do
sistema democrático-representativo. Do mesmo modo, os que
respondem à crítica, acusando-a de udenista, buscam defender
um conceito de bom governo. A bondade do governo estaria
no cumprimento de finalidade coletiva, a promoção do interesse
dos excluídos, a redução da desigualdade social. O ingrediente

201
sistêmico seria, no primeiro caso, a concepção do bom governo
como gestão correta, eficiente e honesta do bem público. No
segundo, a visão do governo como instrumento de promoção
da igualdade, sem maior preocupação com a correção dos meios
adotados.

MUDANÇA DE DIMENSÃO
Mudou também o tamanho da corrupção política. A corrup-
ção depende da natureza e do tamanho do Estado. Quanto
mais despótico o Estado, maior a corrupção pela dificuldade
de combatê-la. Quanto maior o Estado, quanto mais recursos
ele controlar, maiores as oportunidades de corrupção. Ora, tem
havido, desde 1930, um crescimento acelerado da máquina
estatal que ampliou as oportunidades para as práticas cliente-
lísticas e patrimoniais e aumentou o predomínio do Executivo
sobre o Legislativo. A ditadura militar agravou a situação, pois
à proteção do arbítrio dos governantes acrescentou um grande
crescimento da máquina estatal. Outro fator agravante foi a
construção de Brasília. A nova capital libertou congressistas e
executivos do controle das ruas, ampliando a sensação e a rea-
lidade da impunidade. Brasília tornou-se uma corte corrupta e
corruptora. A oportunidade de corrupção transforma-se em mais
corrupção quando há impunidade. A impunidade foi grande nas
duas ditaduras e persiste na democracia, graças à ineficiência dos
sistemas policial e judiciário. Pode-se dizer, então, que hoje há
mais corrupção e que ela adquire maior amplitude ao penetrar
nas engrenagens de uma máquina cada vez mais gigantesca.

REAÇÃO À CORRUPÇÃO
Mudou ainda a reação à corrupção. Reagem contra a corrupção
os que dela não se beneficiam e que, ao mesmo tempo, dispõem
de recursos para identificá-la e combatê-la. Vale dizer que a
reação à corrupção varia na razão direta do tamanho da classe

202
média. Essa classe é a que está mais cercada pela lei em função de
sua inserção profissional. é sobre ela que recai grande parcela dos
impostos. é ela que menos se beneficia de políticas sociais.
Também depende menos do poder privado e do poder do Es-
tado, exceto a pequena parcela absorvida pela máquina estatal.
De outro lado, graças à sua alta escolaridade, ela pode formular
uma visão crítica da política e de seus agentes. é ela que forma
a opinião pública do país, se por isso entendermos a opinião
bem informada e crítica expressa na mídia e na internet. Daí
que maior a classe média urbana e piores suas condições de vida,
maior a grita por moralidade. Foi, sobretudo, a classe média que
contribuiu para derrubar Fernando Collor e foi ela que esteve à
frente da reação ao mensalão.
Mas aqui também houve mudanças. A classe média permanece
à frente da luta contra a corrupção, mas agora não tem mais a
solidariedade dos setores sociais que se localizam acima e abaixo
dela. Os de cima não têm razões de queixa, graças à alta lucra-
tividade dos grandes negócios nos setores financeiro, agrícola
e industrial. Os de baixo também não reclamam, beneficiados
que são pelas políticas sociais. Daí que hoje, à diferença da época
da eleição e do processo de impedimento de Collor, a classe
média está sozinha, não tem a cumplicidade dos pobres nem
dos ricos. O desencontro entre classe média e setores populares
pode ser caracterizado como um distanciamento entre a opinião
pública e a opinião popular. Um deputado mensaleiro justificou
assim seu comportamento: “a opinião pública me condena,
mas a opinião popular me absolve.” Como a opinião popular
é majoritária, 84% do eleitorado, se a medirmos pelo número
dos que não chegaram a completar o segundo grau, ela vencerá
sempre a opinião pública nas eleições e reduz o impacto político
da reação à corrupção.

203
ATITUDES DIANTE DA CORRUPÇÃO
São muito diversificadas as atitudes diante da corrupção. Há
os moralistas, que a julgam sinal da degradação dos costumes.
Há os céticos fatalistas, para quem ela sempre está no DNA
do brasileiro. Há os cínicos, para quem o país é assim mesmo,
o melhor é aproveitar. Há os instrumentais, que a consideram
um meio para atingir objetivos. Em chave conservadora, é o
instrumentalismo do rouba, mas faz. Em chave de esquerda, é a
ideia de meio para promover a justiça social. Há os sistêmicos
de esquerda para quem o que deve ser virtuoso é o sistema, não
importando os vícios das pessoas. E há os sistêmicos liberais, não
moralistas, para quem também o mais importante é a virtude
do sistema, mas que considera o governo honesto e eficiente
como parte integrante da virtude do sistema, um fim em si e
não apenas meio.

DINâMICA DA CORRUPÇÃO
Pode-se formular uma hipótese otimista em relação ao per-
curso da corrupção política entre nós, baseada na evolução de
outros países.
A corrupção tem variado em função da expansão da elite e do
povo políticos e do tamanho do Estado. No Império e na Primeira
República, a elite era pequena, o povo político, diminuto, o Estado,
raquítico. A vigilância do imperador ajudava a manter em nível
razoavelmente alto o padrão de comportamento político entre
a elite. Foi o fim dessa sociedade patrícia, o começo da entrada
em massa do povo na política e a expansão da máquina estatal
iniciados em 1930, mas acelerados após 1945, que abriram as
portas para o florescimento da corrupção na forma de cliente-
lismo, patrimonialismo, nepotismo, ou simples gatunagem de
dinheiro público. Mais recursos disponíveis, mais demanda dos
eleitores e menos escrúpulos dos políticos operaram a mudança.
A corrupção entrou em curva ascendente.

204
Mas a própria expansão democrática pós-1985, dentro de
um quadro institucional estável, começa a produzir a reação.
Maior escolaridade e redução da pobreza tornam os eleitores
mais atentos e menos dependentes da necessidade de favores de
governos. Ao mesmo tempo, o fortalecimento da consciência do
cidadão e do contribuinte reforça a exigência de transparência
no uso de dinheiros que não são do Estado, mas de quem paga
impostos. Cresce a pressão por reformas políticas e no sistema
policial e judiciário no sentido de impedir o desvio de recursos
públicos e de punir os culpados.Aos poucos, a curva ascendente da
corrupção começará a inflectir para baixo, assumindo a clássica
forma do sino, até o ponto em que seja considerada tolerável. O
processo será lento, mas firme.

205
rodrigo pat t o SÁ M o t ta

Corrupção no braSil rEpubliCano


1954-1964

A corrupção – no sentido de malversação de recursos pú-


blicos – foi um tema candente no debate político brasileiro dos
anos de 1950 e 1960, ecoando, principalmente, na imprensa e
nas disputas parlamentares. A questão tornou-se mais grave no
contexto da crise do segundo Governo Vargas, que culminou
no suicídio do presidente em agosto de 1954. A denúncia de
práticas políticas e administrativas corruptas cometidas pelo
grupo varguista tornou-se uma das principais bandeiras da
oposição liberal, notadamente da UDN. O discurso contra a
corrupção calava fundo também nos meios castrenses, cujos
valores morais eram particularmente sensíveis às acusações de
malversação da coisa pública. Acusou-se Vargas e seus auxiliares
de se aproveitarem de verbas públicas em benefício próprio,
enriquecendo à custa do tesouro nacional. Quanto à pessoa
do presidente Vargas não havia muito que dizer, a não ser o
fato de ter arranjado financiamento do Banco do Brasil para
a montagem do jornal Última Hora, criado para apoiá-lo num
contexto em que a grande imprensa era hostil ao governo. As
críticas mais pesadas dirigiram-se ao grupo palaciano em torno
do presidente, e o próprio Vargas parece ter se assustado com a
dimensão do problema.
Cunhou-se, na época, para representar a sensação de que o
governo estava tomado pela corrupção, a expressão “mar de
lama”, que seria usada em contextos semelhantes no futuro,
sobretudo durante a gestão do presidente João Goulart. As
denúncias contra a corrupção conferiam destaque à máquina
sindical corporativista criada por Vargas, considerada pelos libe-
rais um antro de favorecimentos ilícitos. Os udenistas entendiam
que a máquina estatal corrupta construída sob os auspícios de
Vargas explicava as grandes votações colhidas pelos candidatos
de orientação trabalhista, que eles preferiam chamar de dema-
gogos e pelegos. Essa avaliação do impacto eleitoral da “máquina”
varguista, algo exagerada, servia de justificativa e consolo para
as derrotas da UDN, que viu, com desgosto, nas eleições de
1955, a vitória de um candidato pertencente ao campo getulista,
Juscelino Kubitschek.
JK herdou parte do capital eleitoral de Vargas, mas também
os adversários. Ele foi visto pela oposição conservadora e liberal
como um continuador do varguismo, inclusive no mau uso da
máquina pública. Kubitschek encontrou sérias dificuldades para
tomar posse e seu governo já começou com problemas. Logo no
início da gestão ocorreu o episódio de Jacareacanga, base aérea
situada na selva amazônica tomada por pequeno grupo de ofi-
ciais da Força Aérea rebelados contra o novo governo, a quem
acusavam de tolerante com a corrupção e o comunismo. O
projeto desenvolvimentista do Governo Kubitschek, cuja marca
foi a realização de grandes obras, notadamente a construção
de Brasília, forneceu aos opositores novos argumentos para
denunciar a corrupção, com frequência mencionando o próprio
presidente.
Significativamente, a campanha eleitoral de Jânio Quadros nas
eleições de 1960 foi estruturada à base da promessa de acabar
com a corrupção no país, discurso que atraiu os votos dos setores
sensíveis à maré de críticas contra o trabalhismo/varguismo. A
adoção da vassoura como símbolo da candidatura Quadros é
reveladora do principal ponto da campanha: varrer do Estado a
corrupção e seus praticantes. A expressiva vitória alcançada por
Jânio (ele alcançou 48% dos votos no pleito) pode ser explicada,

207
parcialmente ao menos, pela boa receptividade da campanha
anticorrupção.
Como não poderia deixar de ser, a renúncia de Quadros e a
ascensão de Goulart gerou grande frustração nos segmentos da
sociedade tocados pelo argumento de que o varguismo estava
intimamente conectado à corrupção. O retorno da aliança PTB-
-PSD ao poder com Goulart significava, aos olhos de tais grupos,
que o problema não fora resolvido. Assim, parte da indisposição
contra o governo de Jango deveu-se à convicção de que o presi-
dente era tolerante com a corrupção, característica que seria
típica de seu grupo político. De acordo com seus adversários,
a corrupção seria prática corriqueira na gestão Goulart e esse
foi argumento importante na mobilização liberal-conservadora
responsável pelo golpe de 1964.
é bom ressalvar que Goulart não foi o único líder acusado
de práticas ilícitas nesse período. Ademar de Barros, político de
estilo populista que governara o Estado de São Paulo por duas
vezes nos anos de 1940 e 1950, a primeira delas como interventor
no Estado Novo, também foi alvo de muitas denúncias. Barros
ficou popularmente conhecido como administrador corrupto,
aliás, ele não fazia questão de negar a acusação, pois aliados
apresentavam-no ao eleitorado como o que “rouba, mas faz”.
Candidatou-se mais uma vez ao executivo paulista em 1962 e,
na campanha, adversários e parte da imprensa concentraram os
ataques na denúncia de suas práticas corruptas, mas não impe-
diram sua vitória nas urnas.
Não obstante outros líderes serem acusados de corrupção
nos anos de 1960, e com envolvimento em casos mais graves, o
fato é que os ataques a Goulart tiveram maior repercussão, por
terem ajudado a abrir caminho ao golpe. As primeiras acusações
a Goulart ocorreram logo no início de seu governo. Durante a fugaz
gestão de Jânio Quadros, a retórica do combate à corrupção o
levou a criar algumas sindicâncias para investigar corrupção
na máquina pública durante a gestão Vargas. Quando Goulart
assumiu, seus adversários divulgaram que a primeira ação do

208
novo presidente foi cancelar inquéritos abertos por Quadros,
uma acusação implícita de conivência com atos ilícitos para
proteger seus aliados.
Um dos casos mais rumorosos de denúncia de corrupção
no Governo Goulart ocorreu em janeiro de 1964, em meio ao
agravamento da crise política. Surgiram graves acusações envol-
vendo a diretoria da Petrobras e o caso repercutiu amplamente
na imprensa. A pressão foi forte ao ponto de o Congresso
Nacional instalar uma comissão parlamentar de inquérito para
investigar as denúncias. O escândalo levou Jango a demitir o
presidente da Petrobras, o general Albino Silva, e nomear para
seu lugar outro general, Osvino Alves. As denúncias apontavam
para a existência de desvios de recursos da estatal, que esta-
riam tomando duas direções. De um lado, seriam usados para
financiar atividades de grupos de esquerda, como organização
de eventos e publicações; a outra parcela do dinheiro desviado
teria rumado diretamente para os bolsos de alguns diretores da
Petrobras.
Um dos ingredientes mais quentes da crise da estatal envolvia
a presença de comunistas na empresa. Parte do teor explosivo
do caso decorreu da sensibilidade anticomunista da grande im-
prensa, que apontou a existência de dois militantes do PCB na
diretoria da empresa, acusados de desviar dinheiro para custear
congressos estudantis, subvencionar jornais de esquerda e pagar
viagens a países socialistas. Logo após sua demissão, o general
Albino Silva abriu fogo contra os comunistas, atribuindo a eles
toda a responsabilidade pelas irregularidades.
Existe uma linha de interpretação historiográfica que vê na
luta contra a subversão e a corrupção a principal motivação dos
golpistas de 1964. Seria mais preciso trocar o termo genéri-
co subversão por comunismo, e considerar que as denúncias
sobre corrupção foram tema secundário na campanha contra o
Governo Goulart. O problema da corrupção estava presente no
debate político desde alguns anos, mas não produziria chama
necessária para colocar em combustão aquela crise. A análise do

209
debate público da época demonstra que a corrupção foi assunto de
segundo plano em meio às críticas a João Goulart e seus aliados.
Para sustentar esse ponto de vista podemos recorrer a três
argumentos. Primeiramente, é preciso destacar que não apareceu
nenhum caso rumoroso de corrupção envolvendo pessoalmente
o presidente Goulart; segundo, ainda estava muito próxima a sen-
sação de decepção causada por Jânio Quadros, líder eleito para
varrer a sujeira e cuja renúncia inexplicável deixou perplexos seus
seguidores, tornando mais difíceis os esforços visando mobilizar
a sociedade por meio de discursos anticorrupção; finalmente,
dado o agravamento do quadro político no decorrer da gestão
Goulart, e a sensação de iminente ruptura institucional ou guerra
civil, acusações sobre improbidade administrativa tornaram-se
problema menor.
A temática da corrupção adquiriu centralidade no discurso
dos líderes do golpe somente após o sucesso do movimento militar,
quando ficou evidente que a ameaça comunista havia sido supe-
restimada. é no período imediatamente posterior ao 31 de março
de 1964 que se consolida o discurso de que o golpe visava a um
inimigo duplo, subversão-corrupção, e as ações repressivas são
apontadas nessa direção. E o aparato repressivo encontrou aí
tanto a motivação para operar quanto a necessária justificação
para seus atos. Os militares e aliados civis que se empenharam
na chamada operação limpeza tinham em mira expurgar do país
esse mal duplo e, é importante referir, para alguns deles tratava-se
do mesmo problema, pois enxergavam comunismo e corrupção
imbricados um no outro.
As inúmeras investigações (muitas delas coordenadas pela
Comissão Geral de Investigações, CGI), comissões de sindicância
e inquéritos (sobretudo os famigerados Inquéritos Policial-
-Militares, IPM) varejaram o país para purgá-lo desses males.
Entre os milhares de punidos, desde os que tiveram seus direitos
políticos cassados aos demitidos do serviço público, uma par-
cela difícil de quantificar foi acusada de corrupção. E esse ânimo
purificador permaneceu forte entre uma parcela dos apoiadores

210
do regime militar durante vários anos. Por exemplo: no início da
década de 1970, portanto quase 10 anos após o golpe, os militares
responsáveis pela Divisão de Segurança e Informações do MEC
continuavam à cata de corruptos. Empenhados em monitorar
a comunidade universitária, vigiavam não somente os inimigos
políticos, como também os gastos dos dirigentes universitários
e mesmo das organizações estudantis, à procura de atos ilícitos.
Paradoxalmente, a fidelidade de parte da corporação militar
aos compromissos assumidos em 1964 levou a choques internos
ao grupo dominante, posto que nem todos mantiveram a mesma
preocupação. A inspiração para o surgimento da “linha-dura”
veio exatamente daí: a sensação de que o Governo Castello
Branco, primeiro dos generais-presidentes, não estava sendo
duro o suficiente nos expurgos. A chamada linha-dura, composta
principalmente de militares, mas com importantes aliados civis,
começou a atuar ainda no ano de 1964, e uma das primeiras
crises, paradoxalmente, envolveu um dos nomes principais
do golpe: Ademar de Barros. O governador de São Paulo era
um aliado incômodo na ótica da linha-dura, pois tratava-se
de um dos políticos mais corruptos do país, ou pelo menos
era assim considerado. O fato de Castello Branco, por razões
políticas, ter inicialmente protegido Barros das investigações de
corrupção exasperou os membros da linha-dura, que acusaram
publicamente o governo de traição aos ideais da “revolução”.
Tiveram reação semelhante quando os tribunais recusaram-se
a aceitar denúncias de corrupção envolvendo JK (por falta de
provas consistentes), o que alicerçou nos “duros” a convicção
de ser necessário “aprofundar a revolução”, ou seja, restringir
as liberdades e garantias individuais e aumentar o poder
discricionário do Estado. Uma das motivações para aplicar o Ato
Institucional 5 foi exatamente essa: aumentar o poder do Estado
para retirar os entraves à desejada limpeza do país.
Com o recrudescimento autoritário no contexto do AI5 a
campanha anticorrupção ganhou novo fôlego, mas efêmero.
Os projetos de crescimento econômico geraram grandes obras

211
e negócios, mas também oportunidades para negociatas, e logo
figuras de destaque dos governos militares envolveram-se em
casos escusos, levando ao descrédito as campanhas anticor-
rupção. Em 1975 ocorreu um caso emblemático, que pode servir
de epitáfio às promessas do regime militar de limpar o país. O
adido militar brasileiro em Paris registrou denúncias (Relatório
Saraiva) apontando o envolvimento de alta figura do regime
militar em esquema de propinas com bancos franceses. O SNI
arquivou o caso e a imprensa foi impedida de tocar no assunto,
que só veio a público durante a redemocratização.

212
HeloiSa Maria Murgel S ta r l i n g

ditadura militar

Combater a corrupção e derrotar o comunismo: os dois pro-


pósitos serviram de conduto para articular em uma retórica comum
as diversas conspirações que fermentavam no meio militar, às
vésperas do golpe que derrubou o Governo João Goulart, em
março de 1964. O anticomunismo feroz que se instalou nos quar-
téis brasileiros durante boa parte da nossa história republicana
tem, na sua origem, dois ingredientes explosivos: por um lado,
o imaginário mitológico gerado pelo impacto da insurreição
de 1935 – a frustrada tentativa dos comunistas de tomar o
poder no país pela via do levante militar armado; por outro, as
motivações ideológicas consolidadas no contexto da Guerra Fria
e politicamente desdobradas tanto na formulação da chamada
Doutrina de Segurança Nacional quanto no conceito de guerra
revolucionária.
Já a noção de corrupção assimilada pelas forças armadas
sempre esteve associada à identificação de uma desonestidade
específica: o mau trato do dinheiro público. Reduzia-se a furto.
Na fantasmagoria do quartel, corrupção era resultado dos vícios
produzidos por uma vida política de baixa qualidade moral e
vinha associada, às vésperas do golpe, ao comportamento viciado
dos políticos diretamente vinculados ao regime nacional-de-
senvolvimentista. No meio militar, em geral, o juízo era sempre
o mesmo: um problema de ordem moral, fácil de detectar e
medir, e a qualidade de seu controle, razoavelmente simples de
ser obtida: diante da corrupção dos dinheiros, a honestidade se
fazia força e, se os velhos padrões de demagogia e desonestidade
continuavam vigorando na parte corrupta do país – o Estado, a
vida política –, sempre era possível regenerar a sociedade. Uma
sociedade vista por eles, diga-se de passagem, como incapaz de
solucionar por si o que o regime nacional-desenvolvimentista não
queria ou não conseguia resolver: os políticos desonestos podiam
trocar de cargos, mas continuavam os mesmos; a democracia
não alcançava destituí-los.
A convicção de que a sociedade se regenera, mas a política
continua perversa moldou a lógica que orientou o regime militar
no combate à corrupção. Nessa lógica, o golpe de 1964 justificou
parte importante de sua funcionalidade ao produzir uma espécie
de intervenção ex machina capaz de acabar com os corruptos e
garantir aquilo que os militares acreditavam ser a boa ordem
punitiva: o julgamento dos civis considerados incapazes de gerir
a coisa pública. Animado por essa lógica, tão logo iniciou seu
governo, o marechal Castello Branco prometeu dar ampla divul-
gação às provas de corrupção do regime anterior por meio da
publicação de um livro branco da corrupção – promessa jamais
cumprida por ele, entre outras coisas, porque provavelmente
também seria preciso admitir o envolvimento de militares nos
episódios de corrupção que o pretenso livro deveria relatar.
Mas a promessa de Castello não podia ser cumprida prin-
cipalmente por um segundo motivo: desde o início o regime
militar fracassou no combate à corrupção. Parte expressiva da
conta desse fracasso deve ser debitada à enorme dificuldade
dos militares em ir além de uma visão estritamente moral da
corrupção. O resultado dessa visão torta é previsível: numa
perspectiva moralista a coisa pública não se recupera; ela con-
tinua inexoravelmente concentrada no mesmo padrão anterior
de corrupção. Dito de outra forma: mantido o ponto de vista
moral, o vício é sempre público, a virtude sempre privada e nada
chega à política. Essa redução do político ao que ele não é – a
moral individual, a alternativa salvacionista – definiu o desastre
da estratégia de combate à corrupção do regime militar brasileiro,

214
ao mesmo tempo em que determinou o comportamento público
de boa parte de suas principais lideranças,preocupadas em valorizar
ao extremo algo chamado de decência pessoal: o patrimônio do
general Castello Branco, por exemplo, se restringia a um Aero
Willis preto e um imóvel em Ipanema; o general Médici adiou
um aumento do preço da carne para vender na baixa os bois de
sua estância e desviou o traçado de uma estrada para que ela não
lhe valorizasse as terras; o general Geisel recusou-se a comprar
um apartamento, embora tivesse economias suficientes, porque
“estou indo para a Petrobras, e se eu comprar esse apartamento,
vão logo dizer que estou roubando”.
Contudo, as demonstrações de decência pessoal por parte dos
generais apresentaram parcos resultados para a vida pública do
país. O regime militar conviveu tanto com os corruptos e com sua
disposição de fazer parte do governo fosse qual fosse sua natureza
política, quanto com a face mais exibida da corrupção, que graças
aos dribles na censura foi capaz de chegar às páginas dos jornais
e compor a lista dos grandes escândalos de ladroagem da ditadura
– como ocorreu, por exemplo, entre vários outros episódios
que ficaram célebres, com o escândalo do Instituto Brasileiro do
Café; o caso Hanna Mining Company; o caso Delfin; o projeto
Jari; a construção da ponte Rio-Niterói e da Transamazônica; a
operação Capemi. O próprio Castello Branco descobriu depressa
que esconjurar a corrupção era tarefa fácil; prender corrupto
era outra conversa: “o problema mais grave do Brasil não é
a subversão. é a corrupção, muito mais difícil de caracterizar,
punir e erradicar.”
A declaração de Castello ocorreu meses depois de iniciados
os trabalhos da recém-criada Comissão Geral de Investigações.
A CGI foi projetada, ainda no fragor da vitória golpista, pelo
autodenominado Comando Supremo da Revolução, com a
incumbência de conduzir os Inquéritos Policial-Militares que
deveriam identificar o grau de comprometimento dos acusa-
dos em atividades de subversão da ordem ou de corrupção. A
Comissão dispunha de jurisdição em todo território nacional,

215
os processos obedeciam a rito sumário e seus membros eram
recrutados entre os oficiais radicais da marinha e da aeronáu-
tica que buscavam utilizar a CGI para construir uma base de
poder próprio e paralelo ao do presidente da República. Com
seu discurso anticomunista e de defesa da moralidade pública, a
CGI produziu uma quantidade impressionante de informações
que, embora não estivessem submetidas a regras fixas de com-
provação, subsidiaram os processos de cassação de mandatos
eletivos e de suspensão dos direitos políticos dos cidadãos, além
das prisões e dos expurgos de funcionários civis e militares nas
instituições públicas.
O presidente Juscelino Kubitschek, por exemplo, foi um desses
cidadãos. Em 1965, às vésperas da edição do Ato Institucional
nº2, JK foi submetido a uma série interminável de interrogatórios
e de depoimentos diários que visavam arrancar confissões tanto
de supostas ligações com o Instituto Superior de Estudos Brasi-
leiros (ISEB) e com a direção do Partido Comunista Brasileiro,
quanto de desvio de dinheiro público. As acusações de corrupção
contra Juscelino incluíam compras de lotes de terrenos na Pam-
pulha, em Belo Horizonte, a partir de informações privilegiadas;
vantagens escusas fornecidas a empreiteiros durante a construção
de Brasília; corrupção nas negociações sobre a construção da
ponte de ligação entre o Brasil e o Paraguai. Empresas foram
investigadas, bancos americanos e suíços foram contatados na
tentativa de localizar provas contra o ex-presidente. Ao final de
duas semanas e de 60 horas de inquirição, alquebrado e doente,
JK deixou o Brasil. Nenhuma das acusações foi comprovada.
O Ato Institucional nº5, editado em 13 de dezembro de 1968,
deu início ao período mais violento e repressivo do regime dita-
torial brasileiro – e, de quebra, ampliou significativamente o
alcance dos mecanismos instituídos pelos militares para defender
a moralidade pública. Uma nova CGI foi gerada no âmbito do
Ministério da Justiça com a tarefa de realizar investigações e
abrir inquéritos para fazer cumprir o estabelecido pelo artigo 8
do AI-5. Graças a esse artigo, o presidente da República passou

216
a dispor de poder suficiente para executar o confisco de bens de
“todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício
de cargo ou função pública”.
Para agir sobre o nível de corrupção e dar conta da mora-
lidade pública, os militares trabalharam tanto com a natureza
ditatorial do regime quanto com a posição de vantagem forne-
cida pela legislação punitiva, o que deu em nada. Desde 1968
até 1978, quando foi extinta pelo general Geisel, a CGI mancou
das duas pernas. De um lado, seus integrantes alimentaram a
arrogante certeza de que era possível impedir desvio de verbas,
superfaturamento ou qualquer outra forma de rapinagem
dos dinheiros públicos através da mera intimidação representada
pela convocação para esclarecimentos daqueles cidadãos
tidos como larápios potenciais. Os agentes da CGI nomearam
seu truculento estratagema de ameaçar tudo e nada de “ação
catalítica” – segundo diziam, essa era uma delicada técnica de
comedimento e contenção política, muito eficaz no controle da
corrupção.
De outro lado, a CGI atribuiu-se a megalomaníaca tarefa de
transformar o combate à corrupção numa rede nacional muito
complexa capaz de funcionar simultaneamente como um tribunal
administrativo especial e como uma agência de investigação e
informação. Assim, seja por estar convencida da capacidade de
acionar racionalmente os mecanismos de constrangimento de
que dispunha, seja por acreditar na possibilidade de operar sobre
uma sociedade que definia como redutível a uma multiplicidade
enumerável e controlável de indivíduos, a CGI tratou de alargar,
ao máximo, sua área de atuação. Passo seguinte, a Comissão sub-
mergiu na própria mediocridade, enredada em um campo de
ação cujas fronteiras ela mesma demarcou e que incluía investigar,
por exemplo, o atraso dos salários das professoras municipais de
São José do Mipibu, no Rio Grande do Norte; a compra de adubo
superfaturado pela Secretaria de Agricultura de Minas Gerais; o
aumento de salários dos auditores e procuradores do Paraná; a
cobrança de taxas escolares no Espírito Santo; as acusações de

217
irregularidades na Federação Baiana de Futebol; a alta do preço
da carne em Manaus. Entre os anos de 1968 e 1973 os integrantes
da CGI produziram cerca de 1.153 processos. Desse conjunto,
1.000 foram arquivados; 58 foram efetivamente transformados
em propostas de confisco de bens por enriquecimento ilícito; 41
casos foram alvo de decreto presidencial.
Mas a conta do fracasso das medidas de combate à corrupção
não deve ser creditada exclusivamente aos desacertos da CGI
ou à recusa de parte dos membros da nova ordem política em pagar
o preço da moralidade pública apregoada por seus generais. Na
realidade, a corrupção não poupou o regime militar brasileiro
basicamente porque estava representada na própria natureza
desse regime – vale dizer, estava inscrita em sua estrutura de
poder e no princípio de funcionamento de seu governo. Há duas
maneiras de enxergar essa inscrição. A primeira delas: se o sentido
político da corrupção está associado diretamente à incapacidade
institucional de permitir a participação dos indivíduos na vida
pública, numa ditadura onde governar é reprimir, não há jeito de
evitar que a corrupção se inscreva como desagregação do espaço
público e consequente degradação da ideia de interesse público.
No caso brasileiro, fez parte da estratégia de sobrevivência
política do regime militar a montagem de um Estado, na aparên-
cia, muito forte, principalmente em razão de sua capacidade de
proceder continuamente ao alargamento dos instrumentos de
arbítrio e de violência. Nesse mundo regido pelo arbítrio, não
cabia regra capaz de impedir a desmedida: havia privilégios, havia
desigualdade, havia apropriação privada do que seria o bem
público, havia impunidade, havia excessos. Dito de outra forma:
a corrupção fazia parte da essência do regime militar – e, em
qualquer circunstância, representa uma ameaça à sobrevivência
das sociedades democráticas – não apenas porque conduzia à
perda de referenciais que levam os homens a agir em prol do
interesse público, mas principalmente porque ela desata o processo
da vida política que destrói a coisa pública.

218
Como se vê, a corrupção não era um problema para a dita-
dura; ao contrário, ela alimentou o comportamento desviante
do regime militar, degradou a lei em arbítrio, esvaziou o corpo
político de seu significado público e espalhou o mal. Com efeito, a
outra maneira pela qual a corrupção se inscreve na própria natu-
reza do regime militar fica visível a partir de sua associação com
a tortura – o máximo de corrupção de nossa natureza humana.
A existência da tortura não surgiu na história do regime
militar nem como incidente, como algo que escapou ao controle,
nem como resíduo, efeito não controlado de uma guerra que se
desenrolou apenas e de forma incipiente nos porões da ditadura,
em determinados momentos muito restritos. Ao contrário, o argu-
mento apresentado por Elio Gaspari, no seu notável A ditadura
escancarada, é outro: a prática da tortura se instalou ainda no
início do Governo Castello Branco, teve consequências muito
pesadas na composição das alianças militares que sustentaram
a atuação política da dupla Geisel e Golbery, propagou-se como
um fungo que era do conhecimento de todos, sobretudo graças ao
silêncio conivente dos participantes do núcleo militar do poder,
para, finalmente, em sua dinâmica de alastramento, produzir
muita corrupção. No caso, corrupção significou degradação de
valores do mundo ético e do mundo público, gerou um quadro
de carência interna de moralidade e mergulhou a tortura no
coração do arbítrio desencadeado pelo regime militar – no Brasil,
a prática da tortura política não foi fruto das ações incidentais
de personalidades desequilibradas e, nessa constatação, reside
o escândalo e a dor.
Ao se materializar sob a forma de política de Estado durante
a ditadura, em especial durante o período compreendido entre
os anos de 1969 e 1977, a tortura tornou-se inseparável dos
mecanismos de corrupção. Uma sustentava-se na outra. Quando
tortura e corrupção se juntaram, o regime militar elevou o tortu-
rador à condição de intocável: recompensas funcionais por meio
de promoções convencionais e gratificações salariais foram garan-
tidas aos membros do aparelho de repressão política montado

219
pela ditadura; também foi concedido ao torturador recompensa
pública por conta de suas ações. Caso exemplar: a concessão
da Medalha do Pacificador, condecoração meritória destinada a
reconhecer atos de bravura, ao delegado Sérgio Paranhos Fleury.
Da mesma forma, quando a tortura precisou transbordar para
outras áreas da atividade pública de modo a obter cumplicidade
e ver reconhecida a legitimidade de seus resultados, a corrupção
garantiu-lhe passagem. Para a tortura funcionar é preciso que na
máquina judiciária existam aqueles que reconheçam como legais
e verossímeis processos absurdos, confissões renegadas, laudos
periciais mentirosos; também é preciso encontrar, nos hospitais,
gente disposta a fraudar autópsias, autos de corpo de delito e a
receber presos marcados pela violência física; é preciso, ainda,
descobrir, na luz do dia, empresários dispostos a fornecerem
dotações extraorçamentárias para que a máquina de repressão
política funcione com maior precisão e eficácia.
Na sua origem grega, a palavra corrupção aponta para dois
movimentos: algo se quebra em um vínculo; algo se degrada no
momento dessa ruptura. As consequências são consideráveis. De
um lado, quebra-se o princípio da confiança, o elo que permite ao
cidadão associar-se para interferir na vida de seu país. De outro,
degrada-se o sentido do público. Por conta disso, nas ditaduras,
a corrupção tem funcionalidade: serve para garantir a dissipação
da vida pública. Nas democracias – e diante da República – seu
efeito é outro: serve para dissolver os princípios políticos que
sustentam as condições para o exercício da virtude do cidadão.
O regime militar brasileiro fracassou no combate à corrupção
por uma razão simples: só há um remédio contra a corrupção,
mais democracia.

220
REFERÊNCIAS
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221
culturA
HeloiSa Maria Murgel S ta r l i n g

maCHado dE aSSiS

Durante a década de 1880, na cidade do Rio de Janeiro, a


rua transformou-se no locus capaz de fazer convergir acon-
tecimentos e temas da vida política do país e o homem comum.
Símbolo dessa transformação, a rua do Ouvidor sediava, com
sucesso, o fenômeno de reconfiguração política do espaço urbano.
Lugar privilegiado de formação de consenso e ampliação da
esfera pública, à primeira vista a rua do Ouvidor era uma desi-
lusão: apertada, pouco extensa, mal calçada, escura, suja – na
descrição de Coelho Neto, por exemplo, a avenida da elegância
e do espírito fluminense não passava “de uma viela atarracada”.
Mas foi essa rua que cortou transversalmente a polis, integrou
públicos diversos – literatos, boêmios, políticos, intelectuais,
músicos, jornalistas, capitalistas, damas da sociedade, moças
suburbanas, funcionários públicos, comerciantes, caixeiros,
empregados e vendedores, cocottes, operários –, providenciou
motivo e vocabulário para realização do debate sobre a cena
política nacional. Tema insistentemente frequentado pela rua
do Ouvidor, a ideia de República vinha em geral associada à
difusão de uma nova cultura política que incluía o manejo de
uma ampla agenda de reformas, de uma imagem de futuro, de
um ideal de progresso e, é claro, de um programa de avanço
científico influenciado pelas novas correntes de pensamento
desembarcadas da Europa como, por exemplo, o positivismo,
o materialismo ou o evolucionismo – na linguagem pública das
ruas, a ideia de República fornecia a sintaxe de um novo idioma
do mundo culto.
Em 1882 – seis anos antes da Proclamação da República no
Brasil – Machado de Assis, em um de seus poucos contos de sátira
explicitamente política, “Sereníssima República”, distinguiu,
nesse novo idioma, a ironia como um tropo retórico e uma
estratégia de discurso capaz de avaliar as chances de expansão e
consolidação de uma experiência republicana e democrática no
país. Numa sociedade formada por aranhas, imaginou Machado,
e disposta a se deixar impressionar pelas roupas, pela estatura
e pela flauta de um cônego que lhes conhecia o idioma e vai
relatando, como em uma conferência, seus esforços no sentido
de instruí-las politicamente para uma vida em comum, a cons-
trução da ordem republicana produziu, como principal carac-
terística, uma estrutura de poder público ossificada, um sistema
de poder viciado, a cristalização dos atores políticos em cena e
a ausência de qualquer projeto mais significativo de produção
de bens sociais.
Mas, principalmente, insistia Machado de Assis, a vida polí-
tica das aranhas na “Sereníssima República” produziu muita
corrupção. Antes de significar desvio ou roubo do patrimônio
público, a corrupção que cabe no conto de Machado significa
degradação dos valores do mundo público – é preciso garantir a
existência de um padrão ético, uma medida de decência, uma
regra de justiça nas relações políticas para se implantar uma
República, até mesmo no caso de uma República formada
por aranhas, condenada a uma existência insípida, no interior
de uma árvore oca ou num recanto do jardim de uma chácara
qualquer, na cidade do Rio de Janeiro.
Sintomaticamente, essa não era uma sociedade formada
ostensivamente por grupos de aranhas aproveitadoras, vorazes,
cínicas, egoístas ou desonestas. Diferentes das abelhas hedonistas,
viciosas e trapaceiras de Mandeville, por exemplo, seus membros
eram especialmente operosos, práticos, razoavelmente frugais,
eficientes e muito pragmáticos, aranhas mais afeitas à rotina

224
do que à aventura. Em política, ensinava Machado, apenas a
geometria as separava sem, no entanto, chegar a apaixoná-las:

Uns entendem que a aranha deve fazer as teias com fios retos, é o
partido retilíneo; – outros pensam, ao contrário, que as teias devem
ser trabalhadas com fios curvos – é o partido curvilíneo. Há ainda um
terceiro partido, misto e central, com este postulado: as teias devem
ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido reto-curvilíneo; e
finalmente, uma quarta divisão política, o partido antirreto-curvilíneo,
que fez tábua rasa de todos os princípios litigantes, e propõe o uso de
umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve em que não há linhas
de espécie alguma.

Assim, o traço distintivo do padrão de conduta política dessa


sociedade não era nem o egoísmo sem freios nem a condição de
abulia e resignação social por parte de seus membros dispostos
a se deixarem levar pela vida. Ao contrário, vistas em separado,
cada aranha parecia acreditar sinceramente na combinação
entre esforço adequado e algum sacrifício para melhorar de
vida; contudo, a convicção individual não era suficiente para
capacitá-las a agir com reciprocidade e buscar objetivos comuns.
Por conta disso, a escolha de um modelo de República aristo-
crática, explicitamente associada com a experiência veneziana
do século 13, tinha, por objetivo, explicava Machado, “meter à
prova as aptidões políticas da nova sociedade” – além, é claro,
de levar as aranhas a adotarem uma forma de vida em comum
“obsoleta, sem nenhuma analogia, em suas feições gerais, com
qualquer outro governo vivo”, o que certamente evitaria expô-la
“a comparações que poderiam amesquinhá-la”.
A perspectiva irônica do conto de Machado começava por
Veneza – mas o alvo real era a incerteza democrática da disposição
republicana que percorria a rua do Ouvidor. Boa parte da ima-
ginação política do Setecentos europeu alimentou o culto a
Veneza – a mais famosa república que jamais existiu – e, se esse
culto permaneceu impermeável à teorização política portuguesa,

225
foi vulgarizado na Europa com obras que vinham sendo publi-
cadas desde o século 17 sobre o milagre da imutável constituição
veneziana e a superioridade de suas instituições. Contudo, a
alusão de Machado a um enunciado de República extraído do
modelo veneziano tanto apontava para a estabilidade do modelo
quanto repercutia com mordacidade a natureza mesma de um
experimento republicano cujo centro de equilíbrio sustentava-se
num sistema constitucional rigidamente oligárquico, que estava
longe de conter uma preocupação com a ampliação da partici-
pação política dos grupos sociais existentes na condução dos
negócios públicos.
De quebra, porém, a reprodução do modelo veneziano pelas
aranhas significava assegurar soluções sólidas para o problema
político representado pela ambição dos cidadãos, soluções que
visam proteger o experimento republicano contra a ameaça de
corrupção interna. Nesse caso, as aranhas do conto de Machado
de Assis pareciam convencidas de que a adoção de um sistema
eleitoral de rotação de cargos era capaz de estimular a partici-
pação dos cidadãos nos assuntos públicos e, ao mesmo tempo,
afastar o perigo de apropriação do poder de forma individual
ou por uma facção. Apenas não levaram em conta os efeitos
corrosivos da ambição e suas consequentes empreitadas conspi-
ratórias, e o fato de que, ao menos na ficção, as aranhas, como
os nobres de Veneza, jamais se conformam com o simples desejo
de conservar o que já possuem e, na ânsia de conquistar novas
posições de poder, sempre terminam por colocar a liberdade
republicana em risco.
Na vida política da “Sereníssima República”, portanto, o
aparecimento do processo de corrupção não é o resultado da
ausência de instituições intrinsecamente boas ou dos efeitos da
desigualdade social na constituição das formas políticas; tam-
pouco resulta da baixa incidência, nessa sociedade, de cidadãos
naturalmente virtuosos. Na prática, sugeria Machado de Assis,
a corrupção sempre provém de outra coisa: da incapacidade dos
homens – e das aranhas – produzirem um mundo de significados

226
comuns, vale dizer, produzirem um lugar, uma linguagem e uma
história que lhes permitam criar as condições para partilharem
um conjunto específico de valores e decidirem, com base nesses
valores, sobre quais critérios aplicar diante de sua própria condição
de insaciabilidade.
Assim, no vasto universo de desejos, aspirações e interesses
particulares que rodeava a vida política das aranhas imaginadas
por Machado de Assis, o experimento republicano e democrático
aparece invariavelmente deformado pelo efeito da corrupção,
em especial, pela profunda perturbação introduzida por esse
efeito na base de valores que oferecem sustentação e estabili-
dade a uma comunidade política. A rigor, esse efeito acentua,
principalmente, o sentimento de exploração e de impotência
diante da falta de confiança que os habitantes de uma Repú-
blica passam a alimentar uns nos outros, vale dizer, diante da
expectativa experimentada por quase todos de que os demais
provavelmente não seguirão as regras comuns. Mais do que
isso, talvez, o efeito da corrupção política acentua as condições
de adesão da maioria ao argumento, na aparência, irrefutável,
de que parece tolice obedecer às regras quando se espera que os
demais venham a desobedecê-las e quem, porventura, deixa esca-
par uma chance de obter algum tipo de vantagem ou benefício
pessoal nessa sociedade, ainda que trapaceando suas normas,
passa necessariamente por otário.
Mas a ironia de Machado de Assis, no conto, também revela
a força dos mecanismos de corrupção na República a partir de
ângulos muito diversos. Evidentemente, seu alvo mais visível é
histórico: o conto foi publicado à época da Lei Saraiva, promul-
gada em 1881, lei que reduziu drasticamente o número de eleitores
no país. Nessa chave, seu argumento orienta-se pela futilidade
das alternativas eleitorais de um sistema político destituído de
virtude, com participação reduzida e voto torcido pelas chances
de manipulação dos resultados – argumento explicitado em nota
de rodapé pelo autor ao final da primeira edição de Papéis avulsos.
Desse ponto de vista, o processo de corrupção é sempre um

227
risco inevitável para um regime republicano em que a virtude
orientadora do mundo público perdeu terreno para os interesses
particulares, um impasse do corpo político produzido, como diria
o próprio Machado, por “teorias do papel, válidas no papel e
mancas na prática”.
Contudo, a comunidade política das aranhas que forma
a “Sereníssima República” é, também, uma miniatura em alta
definição da sociedade brasileira tal como a percebia Machado
de Assis: uma sociedade precária, sempre ameaçada pelo risco
de ter de saltar, à maneira do personagem Brás Cubas, “de um
retrato a um epitáfio”, da perversidade das formas de dominação
inscritas na realidade nacional por um agonizante século 19 a
uma presunção de modernidade que entra incólume pelo século
21 afora. A rigor, a principal característica dessa sociedade que
oscila constrangida entre os séculos é a incerteza completa quan-
to ao seu prazo no tempo, fruto, em parte, da cínica e funesta
expectativa, alimentada pela maior parte de seus habitantes, de
que a corrupção pode vir a se transformar, como aconteceu na
“Sereníssima República”, em uma norma geral de conduta.
A convicção de viver numa sociedade em que os indivíduos
confiam que os demais, em algum momento, irão violar as re-
gras preestabelecidas de convivência, não só muda a forma das
relações sociais e políticas oitocentistas, observa Machado de
Assis, como confirma e promove, na prática, um novo padrão de
comportamento para seus personagens, marcado por uma atmos-
fera de ambição desmesurada, cinismo, competição, galhofa,
desdém, ociosidade e arrivismo. Esse padrão de comportamento
reflete, em boa medida, o tipo de mecanismos e de procedimentos
que orientam o desenrolar dos processos de corrupção dos atores
políticos. Ou, para dizer de outro modo: num mundo em que as
aranhas perderam o sentido original da transparência que deve
cercar suas ações na cena pública não adianta tecer, destecer, e
tecer novamente a urna republicana, dar-lhe forma triangular,
cilíndrica ou “o aspecto de uma ampulheta, cujo inconveniente
se reconheceu ser igual ao triângulo, e então adotou-se a forma

228
de um crescente, etc.” Nada, nesse caso, pode deter a tendência
do corpo político a se degenerar – não se cria República em
cidade corrompida.
Na espetacular desenvoltura da prosa narrativa de Machado
de Assis, o acento amargo, as piruetas retóricas petulantes, a am-
biguidade moral, o desplante tranquilo e a intenção irônica do
narrador alimentam um mecanismo de corrosão que opera sobre
a própria estrutura da narrativa produzindo, como consequência,
um duplo efeito. Em primeiro lugar, esse efeito potencializa, pela
via da ficção, o sentido de mímesis das relações de dominação
próprias à sociedade brasileira, vale dizer, o sentido de imita-
ção fiel da desfaçatez de classe própria das elites nacionais
que, como definia Brás Cubas, com seus “fumos de pacholice”,
sua “encadernação luxuosa”, sua inacreditável disposição para
amar o próximo “durante quinze meses e onze contos de réis;
nada menos”, terminam sempre por desfigurar e subordinar ao
seu controle tudo aquilo que foi trazido à cena nacional pelo
moderno: as filosofias e as teorias científicas, as invenções tecno-
lógicas, os processos de democratização, as instituições políticas,
a própria República.
Em segundo lugar, porém, esse mesmo efeito característico
de mímesis também permite à prosa narrativa de Machado de
Assis tomar partido das ilusões e da sorte de uma gente que se
equilibra no outro polo da sociedade brasileira oitocentista: a
população pobre do Rio de Janeiro, nem proprietária nem escra-
va, com sua rotina anônima e obscura e com a vida organizada
para cumprir o destino de dependência e servilidade a que a
estrutura patriarcal brasileira, fixada no arcaísmo das relações
de trabalho e na violência do vínculo com a escravidão, obriga
suas camadas subalternas. A vida dessa gente carece de objetivo,
parece sugerir Machado, é uma vida improdutiva, unilateral,
alimentada por um ritmo de espantosa passividade e pelo uso
constante dos artifícios de sobrevivência a que são obrigados a
lançar mão em momentos de crise e de maior evidência das dife-
renças sociais. Artifícios profundamente dúbios já que exigem

229
manipular de maneira muito criativa os rituais de dominação
senhorial associados à sua própria condição de subordinação – e
que, por isso mesmo, também exigem, para seu uso e por parte
de suas vítimas, a manutenção e o reforço desses mesmos rituais
de dominação.
Uma população profundamente servil, como servil era a con-
dição de vida das aranhas republicanas – “fia, tece, trabalha e
morre”. E cuja vida parece imitar – ao menos literariamente – o
cotidiano de um país capaz de ingressar na modernidade mergu-
lhado num tempo paradoxal, um tempo que passa em vão e deixa
tudo como estava porque em seu horizonte a dimensão política
da existência carece de sentido: não havia a possibilidade da
cidadania, não havia caminhos de participação pública. Em seu
horizonte a República não era para valer.
Vista desse outro ângulo, a corrupção está diretamente
associada à incapacidade institucional do experimento
republicano conduzir a participação do cidadão na vida pública.
Nesse caso, a ironia de Machado é certeira: perdida a condição de
exercer participação ativa nos espaços políticos que constituem a
base de sustentação de uma vida pública, perde-se o referencial
comum, perde-se a identidade republicana. Quando isso ocorre
seja em Veneza, seja na rua do Ouvidor, seja numa comunidade
de aranhas instalada num recanto do jardim de uma chácara
qualquer, na cidade do Rio de Janeiro, não importa, a República
é um experimento vazio – e os homens, entediados com o que
possuem, passam a gerir a vida política orientados somente
pela lógica imediata das disputas eleitorais, pela desmedida das
vontades particulares.

230
REFERÊNCIAS
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BéJAR, H. El corazón de la República; avatares de la virtud política. Buenos
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São Paulo: Duas Cidades, 1990.
VELLOSO, M. P. A cultura das ruas no Rio de Janeiro (1900-1930). Rio
de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2004.

231
iSabel luStoSa

CariCatura

O comércio mais ativo era o de princípios, de opiniões, de


votos, de caráter e até o da alma. Toda a gente era nego-
ciante. Dizem alguns paleontologistas que até a própria
justiça tinha uma venda.
Mendes Fradique

A eficácia de uma caricatura depende da capacidade que tenha


seu realizador de apreender e apresentar de forma exagerada as
características mais marcantes de uma pessoa, de um personagem
ou de uma situação. Assim, a caricatura é um trabalho de imitação
da realidade elaborado a partir de uma certa faculdade criadora.
Quanto mais sofisticada for a caricatura, de menos elementos
precisará para passar a sua mensagem. Melhor será aquela cari-
catura que for capaz de passar através de uma simples expressão
fisionômica ou mesmo de um gesto aquilo que compõe a essência
do caricaturado.
A eficácia humorística da caricatura também depende da
familiaridade que o observador tenha com o tema para que se
possa estabelecer a cumplicidade necessária entre ele e o carica-
turista. Ou, como disse Bergson tratando do cômico, para que se
estabeleça essa cumplicidade é preciso que tanto o autor quanto
seu objeto e público compartilhem dos mesmos códigos. Por lidar
com fatos objetivos, o poder da caricatura se perde quando a
vigência destes fatos cai no esquecimento. A caricatura oscila,
portanto, entre a arte e a notícia, pode funcionar tanto como um
elemento de crítica poderoso quanto como divertido comentário
de pé de página às matérias do dia, mas seu lugar de predileção
será sempre a página impressa do periódico.
Não há tema mais adequado para a caricatura do que a
corrupção. Se, desde as comédias de Molière, o corrupto/
corruptor é um personagem que se presta maravilhosamente
aos jogos humorísticos da farsa, ele também vai ter excelente
aproveitamento na caricatura. O tipo que engana, que finge ser
o que não é, que fala algo em cena e na frente do palco pisca
o olho para a plateia revelando suas verdadeiras e malévolas
intenções serviu perfeitamente à caricatura dos primeiros anos
do século 20.
Entre os inúmeros recursos de que a caricatura dispõe está
o deslocamento. Ao colocar um personagem em ambiente ou
situação que supostamente não teria nada a ver com ele, o carica-
turista estabelece uma associação logo compreendida pelo seu
público. O inusitado da imagem desperta o riso do leitor tanto
por perceber a engenhosa elaboração da mensagem quanto pelo
prazer de ver desmascarado alguém a cujo papel de destaque na
sociedade deveria se associar uma atitude exemplar e que, no
entanto, o desmoraliza pela desonestidade.
O corrupto é alguém que finge ser o que não é para tirar proveito
daquele a que está iludindo. Maroto, enganador, mentiroso e
farsante como os personagens da comédia, na caricatura, ele pode
tanto ser um tipo popular como o malandro, o ladrão, a mulata
ou o português da venda ou um personagem da elite como o
político, o bispo, o jornalista ou o empresário importante. Com
sua esperteza ingênua, o pequeno corrupto, assim como o Pedro
Malasartes da literatura de cordel, aparece na caricatura, com
um ar ladino, triunfando sobre os poderosos através de pequenos
expedientes. é uma figura que, tanto na comédia de costumes,
quanto na página impressa, conquista a simpatia do público por
sua situação social, em que os pequenos golpes – ou, o chamado
“jeitinho” – são vistos como estratégias de sobrevivência em um
mundo onde há poucas chances para os mais pobres.

233
Esse corrupto de baixa extração faz contraste com o grande
corrupto, aquele que aufere vantagens através de golpes contra
pessoas indefesas e não conquista o público que, ao contrário,
lhe tem ojeriza. Naturalmente que os limites entre essas duas
malandragens são tênues e um pequeno malandro pode vir a
se transformar em um malandrão ou este pode, pela recorrente
exposição de sua imagem, se tornar simpático.
Alguns recursos se tornam corriqueiros para representar o
corrupto. Da mesma maneira que, antigamente, em algumas
imagens, o ladrão era facilmente reconhecido porque sempre
usava uma pequena máscara negra sobre os olhos, o grande
corrupto era sempre representado de fraque e cartola aos quais
se associavam alguns elementos alternativos com que também
a imprensa de esquerda costumava representar a burguesia: um
ar canalha, um saco de dinheiro, ou alguns cifrões em volta da
figura tornavam mais óbvia a mensagem. Estabelecia-se uma
relação direta e necessária entre ganhar dinheiro e ser corrupto,
realçando a antipatia natural pelo homem que só visa ao lucro e
que não se detém diante de nada para obtê-lo, nem mesmo diante
do crime. Naturalmente que cada representação dessas está contida
pelos elementos de datação que reduzem o poder de comunicar da
caricatura ao tempo em que foi produzida.
A corrupção, tema tão frequente na história de nossa imprensa,
foi também muito representada na caricatura brasileira. O
foco se concentrou, na maior parte das vezes, na vida política,
a partir da qual, conforme as circunstâncias, foram figurados
presidentes, ministros, o parlamento, prefeitos, os jornalistas
(quando a serviço de políticos), membros da alta hierarquia da
Igreja (principalmente durante o Segundo Reinado). Na vida civil,
o alvo preferencial foram sempre os comerciantes portugueses,
tão visados pelo humor brasileiro e sempre acusados de roubar
no peso das mercadorias, misturar água no leite e areia na massa
do pão.
As primeiras caricaturas publicadas no Brasil apareceram em
dezembro de 1837, sob a forma de litografias avulsas vendidas

234
em algumas lojas do Rio de Janeiro. Seu tema foi a contratação
do jornalista Justiniano, por um elevadíssimo salário, para ser
o editor do Correio Oficial, fato que a caricatura explicitava
ao apresentar o mulato Justiniano da Rocha, todo ataviado,
recebendo, de joelhos, um saco de dinheiro. Elaborada em um
formato que faz lembrar uma grande cena teatral, essa primeira
caricatura visava, menos do que a fisionomia do caricaturado,
à situação em que um homem tido como íntegro vendera sua
pena ao governo. “Honra tenho e probidade/ Que mais quer
d’um redator?”, dizia um dos versinhos que acompanhavam a
imagem.
Depois de Justiniano o segundo personagem da história do
Brasil a figurar em uma caricatura impressa foi o ministro Bernardo
Pereira de Vasconcelos. Semiparalítico, Vasconcelos, que da própria
tribuna parlamentar arremedava gestos e vozes dos colegas e
destruía reputações com “versinhos” maldosos, será sempre
representado ora de muletas, ora com as pernas atrofiadas. As
caricaturas também o mostram junto de negros acorrentados,
alusão ao fato de ter tentado subornar um adversário, man-
dando-lhe escravos, de presente.
A forma e o contexto dessas imagens – elaboradas por Manuel
de Araújo Porto Alegre, amigo dos Andradas que eram adver-
sários de Vasconcelos – fazem também pensar sobre o papel
corrosivo da caricatura na destruição da imagem de pessoas
conhecidas. Ao exagerar e/ou distorcer aspectos, ela os ilumina,
mas também confunde e pode ser um eficaz instrumento de
combate político. Sem dúvidas, os desenhos altamente deprecia-
tivos de Maria Antonieta publicados na imprensa contribuíram
para aprofundar os ressentimentos do povo francês contra a rainha
e tiveram papel decisivo no desfecho trágico de seu processo.
No Brasil, a caricatura nunca foi tão longe. Gaiata, moleque,
mais humorística do que satírica, foi quase sempre benevolente
com seus alvos. Mesmo quando visava de forma intensiva a per-
sonagens polêmicos como Floriano Peixoto, Hermes da Fonseca
ou Getúlio Vargas, nunca desceu à ofensa pessoal e chegou a

235
ser francamente cortesã com o presidente Rodrigues Alves. As
espertezas de Vargas, tal como foram apresentadas no traço de
vários caricaturistas do período, mais ajudaram a conquistar a
simpatia de seu eleitorado do que o contrário.
No Brasil, uma longa história de convivência com a corrupção
naturalizou atitudes moralmente condenáveis. Acostumado a
ver os processos eleitorais manipulados com o voto de bico
de pena, de cabresto ou comprado; com a comissão paga ao
funcionário para levar vantagem na concorrência por uma
outra obra pública; a pagar a cervejinha do guarda para não
ser multado, o brasileiro não vê a corrupção com a gravidade
que ela merece. Assim, também na caricatura, ela aparece como
mais um dos temas da agenda de temas tipicamente brasileiros.
E se, rindo, castigam-se os costumes, no Brasil, rindo, confrater-
nizamos e naturalizamos maus costumes.

REFERÊNCIAS
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Janeiro: Jorge Zahar/FGV, 1999.
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VELLOSO, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro – turunas e
quixotes. FGV, 1996.

237
raM Mandil

tEatro

Uma cena conhecida em Hamlet, de Shakespeare, é aquela


em que o protagonista prepara uma pequena apresentação de
teatro para ser exibida diante do casal real, de modo a capturar
a consciência culpada do rei.
O rei é seu próprio tio, recém-casado com sua mãe, após ter
assassinado seu pai enquanto este dormia. Como dirá o príncipe
Hamlet numa célebre passagem da cena II do segundo ato, “the
play’s the thing/Wherein I’ll catch the conscience of the king”,
o que pode ser traduzido livremente como “A peça é a coisa que
eu usarei/para capturar a consciência do rei”.1
O argumento de Hamlet para utilizar uma peça de teatro a fim
de ter a prova definitiva do ato homicida cometido pelo seu tio é
exposto algumas linhas antes: “Ouvi dizer/que certos criminosos,
assistindo a uma peça,/foram tão tocados pelas sugestões das
cenas,/que imediatamente confessaram seus crimes;/pois embora
o assassinato seja mudo,/fala por algum órgão misterioso.”2
O teatro, ou melhor dizendo, o teatro dentro do teatro será
então esse “órgão misterioso” capaz de fazer vir à tona o incon-
fessável, de capturar o que não se diz, de fisgar o que está oculto.
A cena em Hamlet se conclui com uma estranha inversão de
luminosidade: aquele cujo crime estava nas sombras pede “Luz!”,
e desse modo põe fim ao espetáculo.
Essa breve introdução permite pensar as relações entre o
teatro e a corrupção a partir da perspectiva da cena, do jogo
entre o que se mostra e o que se esconde, aspecto essencial de
todo espetáculo teatral.
Sabemos que o teatro é um tipo de representação pela ação
que aciona tanto a dimensão visual – a palavra grega theatron já
indica isso – quanto a dimensão auditiva do espectador. Um dos
recursos da representação teatral é a “cena”, que antes de adquirir
o sentido atual, que a confunde com o palco, com o que está em
foco, era exatamente um dispositivo – uma barraca, a skene – que
criava, diante do espectador, um obstáculo à sua visão. A cena
é assim um elemento fundamental que permite distinguir dois
espaços definidos – o que é passível de ser representado e o que
deve permanecer fora do campo visual – sem os quais a ação
teatral jamais poderia produzir os efeitos que só ela é capaz de
gerar, seja nos seus aspectos estéticos, seja na sua capacidade de
intervir nos debates políticos da cidade.
A cena, nesse sentido, cumpre aquilo que o psicanalista Jacques
Lacan chama de “a função do véu”, que não é apenas a de enco-
brir, mas também a de criar, na imaginação, aquilo que está mais
além, como ausência.3 Se tomarmos a cena nesta perspectiva do
véu, devemos considerá-la como um dispositivo cuja função não
é unicamente a de impedir a visão, mas um recurso que permite
dar lugar àquilo que só podemos conceber como ausência. Nesse
sentido vale a pena relembrar como o teatro grego operava
com o que não deveria ser exposto à visão, fundamentalmente
as cenas que poderiam produzir um excesso de excitação, e que
poderiam colocar em risco o tratamento a ser dado “ao terror e
à piedade”, que exige a distinção entre os espaços do que pode
estar em cena e do que deve permanecer fora da cena.
Tocamos aqui num aspecto essencial de nossa vida contem-
porânea, da chamada “sociedade do espetáculo” e sua tendência
em colocar em cena, em transformar em espetáculo um leque
cada vez mais amplo das atividades humanas.
Se o conteúdo do que hoje vai para a cena midiática globali-
zada nos inquieta, o que na realidade deve nos deixar alertas é
a impressão de que se produziu um rompimento do pacto que

239
constitui a própria noção de cena, a saber, do jogo entre o que
deve vir à luz e do que só se diz através da sombra, colocando
em xeque a relação necessária que há entre a transparência e a
opacidade, um dos temas caros a Rousseau.
Vemos aqui duas perspectivas que se confrontam, com
consequências éticas distintas: aquela que julga possível transpor
integralmente para a cena tudo que é da ordem do humano,
perspectiva esta que, justamente, tangencia o obsceno, e outra
que reconhece que a humanização deriva exatamente do fato de
que existem coisas no mundo que não são passíveis de serem ence-
nadas – impossibilidade esta que não procede necessariamente
de uma interdição – e que muito melhor estaríamos se fôssemos
capazes de reconhecer, na cena, as marcas do que não se deixa
capturar inteiramente pelas imagens e pelos símbolos.
Aqui nos aproximamos do tema da corrupção. Ela pode ser enten-
dida num sentido específico – como a corrupção política – ou
num sentido mais amplo, como a própria palavra indica, referida
a algo que se rompe, que se desfaz. Não estamos longe da noção
freudiana de pulsão de morte, como princípio de desagregação,
de desarticulação, de destruição, que tem seu contraponto em
Eros, o princípio de agregação, de geração e de conservação dos
laços sociais. Conhecemos também as formas em que os dois
princípios convergem.
Em termos teatrais, dizemos que há uma afinidade entre a
corrupção e os bastidores. O seu habitat natural é a sombra, a
escuridão, a dissimulação, o que não está no primeiro plano.
Sobre a pulsão de morte, Freud dizia que ela era “silenciosa”.
Talvez seja esta a razão pela qual organismos internacionais
julguem que a melhor maneira de se combater a corrupção seja
a de acentuar a transparência, em outras palavras, de criar um
mundo em que as ações sejam visíveis, previsíveis e imediata-
mente compreensíveis, reduzindo ao mínimo o espaço para o
que permanece fora da cena. é como se a corrupção tendesse a
desaparecer ao se eliminar o habitat em que ela prolifera.

240
Não há dúvida de que há um consenso em relação a esta pers-
pectiva. No entanto, não podemos deixar de considerar as suas
limitações na medida em que seu horizonte visa a um apagamento
da distinção entre a cena e o fora da cena, ao desconsiderar o
jogo entre opacidade e transparência, fundamental para dar
tratamento aos conflitos e às paixões humanas.
Nesse sentido vale a pena evocar aqui o argumento utilizado
pelo diretor de teatro Antunes Filho para justificar a montagem
de sua peça Nova velha estória (1991), na qual retoma o mito de
Chapeuzinho Vermelho. Considerando o final da estória, em que
o lobo é morto, como um grave erro ético, Antunes Filho propõe
um outro final que não fosse aquele que produz a miragem de
que o mal pode ser definitivamente eliminado.4 Trata-se, para o
diretor, de “colocar o mal no lugar certo, sem matar”. A solução
que encontra em sua montagem é a de isolar o lobo mau numa
grande bola de acrílico e de içá-lo ao céu, mantendo-o numa
região entre a cena e o fora da cena. A peça pode então concluir
sem produzir a ilusão de que o jogo entre as luzes e as trevas
pode ser definitivamente vencido por uma das partes.

NOTAS
1
Millôr Fernandes propõe a seguinte tradução: “O negócio é a peça, que eu usarei/
pra explodir a consciência do rei.” In: SHAKESPEARE. Hamlet, p. 60.
2
SHAKESPEARE. Hamlet, p. 60.
3
LACAN. A função do véu, p. 153-166.
4
Ver O TEATRO apolíneo de Antunes Filho, p. 4-15.

REFERÊNCIAS
LACAN, J. A função do véu. In: ______. O Seminário, livro 4: a relação
de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
O TEATRO apolíneo de Antunes Filho. Folha de S.Paulo, 6 fev. 2000.
Caderno Mais!, p. 4-15.
SHAKESPEARE, W. Hamlet. Porto Alegre: L&PM, 1997.

241
roSangela pat r i o ta

tEatro braSilEiro

Em termos conceituais, no Dicionário de Política, o termo


corrupção é assim definido:

designa o fenômeno pelo qual um funcionário público é levado a


agir de modo diverso dos padrões normativos do sistema, favorecendo
interesses particulares em troco de recompensa. Corrupto é, portanto,
o comportamento ilegal de quem desempenha um papel na estrutura
estadual (sic). (...) A Corrupção é uma forma particular de exercer
influência: influência ilícita, ilegal e ilegítima. (...) Em ambientes estavel-
mente institucionalizados, os comportamentos corruptos tendem a ser,
ao mesmo tempo, menos frequentes e mais visíveis que em ambientes de
institucionalização parcial ou flutuante. A Corrupção não está ligada
apenas ao grau de institucionalização, à amplitude do setor público e
ao ritmo das mudanças sociais; está também relacionada com a cultura
das elites e das massas. Depende da percepção que tende a variar no
tempo e no espaço.1

De acordo com essa perspectiva de análise – que define o con-


ceito, mas não o restringe a uma única instância –, observa-se: o
termo corrupção, embora comumente associado a procedimentos
ilícitos resultantes do envolvimento de instituições e/ou funcio-
nários públicos, abrange também grupos e ações observáveis na
esfera da sociedade civil. Nesse sentido, tal concepção propicia
que o conceito receba um tratamento histórico, na medida em
que a especificidade da discussão e das questões envolvidas possa
acolher, ou não, interpretações à luz da ideia de corrupção.
Esta possibilidade analítica, na verdade, vem ao encontro
das mediações estabelecidas entre Arte e Sociedade e/ou entre
Arte e Política. Na maioria das vezes, como já observou Antonio
Candido, pela “internalização do externo”, a narrativa ficcional,
seja pela utilização da metáfora, seja pelo recurso da fábula,
enfoca aspectos e situações envolvendo a esfera pública. Por
esse motivo, essas narrativas se estruturam em torno de perso-
nagens e temas que, mesmo centrados em tramas singulares do
microcosmo representado, propõem instigantes reflexões mais
amplas, englobando variada gama de aspectos políticos, sociais
e econômicos.
Quando, por exemplo, o enfoque se volta para o teatro bra-
sileiro, um bom exemplo do que foi afirmado acima pode ser
encontrado na dramaturgia de Juca de Oliveira. Nela, o tema
da corrupção é abordado tanto no âmbito da esfera pública
quanto no nível privado, em peças como Caixa 2 e Às favas
com os escrúpulos.
Ambientada no mercado financeiro, a ação de Caixa 2 se desen-
rola no escritório de um banco e na casa de um funcionário
deste mesmo banco, sendo que no primeiro espaço são apre-
sentados ao espectador/leitor não apenas as relações comerciais
do banqueiro, mas efetivamente seus acordos políticos com um
senador da República por meio de conversas telefônicas. Nelas,
o banqueiro (no palco interpretado pelo próprio Juca de Oliveira)
cobra providências do político em relação a assuntos de seu
interesse e, ao mesmo tempo, recorda sua polpuda contribuição
para a campanha eleitoral do referido parlamentar.
Enquanto realiza essas negociações, o banqueiro tem o propósito
de realizar um grande golpe. Para isso, convence sua secretária a
participar da falcatrua, com a ajuda de um atrapalhado assessor.
Entretanto, por um erro no número da conta corrente, o dinheiro
é depositado na conta de uma modesta professora de classe
média, esposa do gerente que acabou de ser demitido e mãe do
namorado da secretária.

243
Tal qual uma comédia de erros, vários desencontros se sucedem
até que o presidente do banco, na companhia de seu assessor
e de sua secretária, decide ir à casa do ex-funcionário com a
intenção de reaver a polpuda quantia. Porém, em decorrência
de seu autoritarismo e de seu desrespeito em relação ao antigo
funcionário, a titular da conta corrente decide não devolver o
dinheiro. A partir desse momento, o tema da corrupção, em
princípio circunscrito ao ato ilícito do senador da República,
passa a compartilhar a cena com a falta de ética que perpassa
todos os envolvidos na disputa.
Este tema é recorrente na dramaturgia de Juca de Oliveira.
Em sua mais recente produção (temporada 2007/2008), Às
favas com os escrúpulos, protagonizada pelo próprio autor e
por Bibi Ferreira, esse tema volta com força. A peça narra, de um
ponto de vista cômico, a situação vivida por Lucila que, após a
aposentadoria, dedica-se integralmente à família, em especial ao
marido, Bernardo, com quem está casada há 53 anos. Bernardo,
senador da República, aos olhos da mulher é retratado como
um político combativo e incorruptível. Entretanto, no decorrer
da trama, Lucila é informada, de diferentes maneiras, sobre as
falcatruas do marido, incluindo aí o romance extraconjugal com
a secretária e as contas bancárias no exterior. De uma dona de
casa feliz, Lucila vê-se na condição de uma mulher traída prestes
a ser abandonada. Porém, novas peripécias ocorrem e Lucila
enganada cede lugar à viúva de um senador da República, com
o direito a todos os seus bens e ao seu prestígio. Enfim, às favas
com escrúpulos.
Esses dois exemplos enfatizam uma das principais caracte-
rísticas da atuação de Juca de Oliveira como dramaturgo: sob o
signo da comédia, aborda temas relativos à atuação do parlamento
brasileiro e os esquemas de corrupção que ele abriga. Nesse
sentido, é possível considerar que, mesmo no âmbito da escrita
ficcional, Oliveira realiza um exercício relativo à História do
Tempo Presente. Tal afirmação justifica-se por alguns aspectos.
O primeiro diz respeito ao conteúdo e à matéria-prima utilizada

244
para a confecção dos textos: o noticiário político do Brasil. O
segundo remete à forma cômica que utiliza para organizar a
narrativa teatral.
Em que pesem todas as discussões existentes acerca do gênero
comédia, e em especial a matriz estabelecida pela Poética de
Aristóteles, não se pode ignorar que a construção do riso
pressupõe um compartilhamento de repertório entre o palco
e a plateia. Em outros termos, a recepção estética e cultural do
que ocorre no palco só é possível à medida que o espectador
consiga apreender o que está sendo ridicularizado e o alcance
dessa construção estética e temática.
Sob esse prisma, por exemplo, em Caixa 2, antes do início
do espetáculo, uma voz em off informa aos espectadores: tudo
que ocorrer no palco é mera ficção. Qualquer semelhança com
pessoas vivas ou mortas e/ou situações do cotidiano é mera
coincidência. Naturalmente, tal anúncio, de imediato, provocou
ruidosas gargalhadas na plateia e, com isso, iniciava-se a cum-
plicidade com o palco.
Tal relação é essencial para o estabelecimento da comédia,
pois o riso pressupõe que seja de conhecimento de todos o que
está sendo ridicularizado. E isso é fundamental para que a recep-
ção se efetive. Nesse sentido, para que a vitalidade da comédia
mantenha-se através dos tempos, é preciso que a cada ence-
nação sua capacidade de interlocução se renove, especialmente
do ponto de vista da moral e dos costumes sociais e políticos.
Sob esse aspecto, na história do teatro brasileiro há um texto
dramático que possui uma trajetória extremamente instigante:
a peça O rei da vela (1933, Oswald de Andrade). À época de
sua escrita, ela foi marcada pelos embates travados pelo autor
em prol das ideias então defendidas pelo Partido Comunista
Brasileiro (PCB), além de retratar, com grande ironia, os grupos
sociais mais abastados, dos quais, aliás, o próprio dramaturgo
era oriundo. O texto, dividido em três atos, foi confeccionado a
partir das experiências estéticas, políticas e sociais de seu autor,
tendo como eixo a ascensão e o ocaso do personagem Abelardo I,

245
agiota e proprietário de uma indústria de velas. O rei da vela
expõe, de um lado, a decadência financeira da aristocracia cafe-
eira paulista, e, de outro, as práticas de Abelardo I, com vistas à
acumulação de capital e prestígio social.
Por essa razão, os acordos com investidores estrangeiros e a
política de “favores”, entre personagens de origens sociais distin-
tas, marcam o enredo desse documento teatral, propiciando, de
maneira inequívoca, a construção de instigantes representações
sobre as transformações ocorridas no Brasil, na década de 1930.
Em linhas gerais, o Primeiro Ato é ambientado no escritório
de usura de Abelardo I que é cenicamente apresentado pela
rubrica do autor:

Em São Paulo. Escritório de usura de Abelardo & Abelardo. Um


retrato da Gioconda. Caixas amontoadas. Um divã futurista. Uma
secretária Luís XV. Um castiçal de latão. Um telefone. Sinal de alarma.
Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores.
Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas horizontalmente
e deixando ver no interior as grades de uma janela. O prontuário:
MALANDROS – IMPONTUAIS – PRONTOS – PROTESTADOS.
Na outra divisão: PENHORAS – LIQUIDAÇõES – SUICíDIOS –
TANGAS.
Pela ampla janela entra o barulho da manhã na cidade e sai o das
máquinas de escrever da ante-sala.2

Tal concepção cênica traduz materialmente a capacidade de


acumulação desmedida que o capitalismo é capaz de realizar, ao
mesmo tempo em que é capaz de alocar em um único espaço
atividades lícitas e ilícitas, sendo que na maioria das vezes torna-se
impossível distinguir umas das outras. Para tanto, aquele que
executa as decisões de Abelardo I, Abelardo II, além de carregar
consigo a pasta com as informações dos devedores, apresenta-se
com a indumentária de um domador de feras.
Nesse ambiente desfilam toda sorte de inadimplentes, desde
antigos proprietários, funcionários, trabalhadores, donas de casa,

246
até intelectuais. Estes, após a realização do primeiro empréstimo,
afundam-se em meio aos juros escorchantes e à impossibilidade
de saldarem a dívida que, rapidamente, se avoluma. Todavia, de
tempos em tempos, alguém aventa a possibilidade de desafiar
uma situação fundada na ilegalidade, isto é, a agiotagem:

O CLIENTE: Mas eu fui pontual dois anos e meio. Paguei enquanto


pude! A minha dívida era de um conto de réis. Só de juros eu lhe trouxe
aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos. E até agora não me
utilizei da lei contra a usura...
ABELARDO I (interrompendo-o, brutal): Ah! Meu amigo. Utilize-se
dessa coisa imoral e iníqua. Se fala de lei de usura, estamos com as
negociações rotas... Saia daqui!
O CLIENTE: Ora seu Abelardo. O senhor me conhece. Eu sou incapaz!
ABELARDO I: Não me fale nessa monstruosidade porque eu o
mando executar hoje mesmo. Tomo-lhe até a roupa ouviu? A camisa
do corpo.
[...]
ABELARDO I: Mas, enfim, o que é que o senhor me propõe?
O CLIENTE: Uma pequena redução no capital.
ABELARDO I: No capital! O senhor está maluco! Reduzir o capital?
Nunca!
O CLIENTE: Mas eu já paguei mais do dobro do que levei daqui...
[...]
ABELARDO I: Suma-se daqui! (Levanta-se) Saia ou chamo a polícia.
é só dar o sinal de crime neste aparelho. A polícia ainda existe...
O CLIENTE: Para defender os capitalistas! E os seus crimes!
ABELARDO I: Para defender o meu dinheiro. Será executado hoje
mesmo. (Toca a campainha) Abelardo! Dê ordens para executá-lo!
Rua! Vamos. Fuzile-o. é o sistema da casa.3

Nos diálogos apresentados acima, o leitor pode observar,


pelo menos, dois níveis de corrupção. O primeiro refere-se à espe-
culação financeira que movimenta o mercado de forma ilícita,
com empréstimos e taxas de juros praticados fora das esferas

247
regulamentadas. Já o segundo aponta para o ato de corrupção
no âmbito da instituição pública denotado pela presença de um
aparelho telefônico que liga a sala de Abelardo I diretamente à
chefatura de polícia. Este anúncio apresenta, de forma mediada,
a seguinte relação: a instituição policial protegendo uma prática
ilegal e, por esse serviço, provavelmente auferindo ganhos tam-
bém não legalizados. Nessas circunstâncias, as relações corruptas
se explicitam.
Abelardo I é o símbolo do segmento social que, no decorrer
do processo de transformação econômica e social do início do
século 20, aproveitou as oportunidades para seu enriquecimento.

ABELARDO I: Já sei... Os degraus do crime... que desci corajo-


samente. Sob o silêncio comprado dos jornais e a cegueira da justiça
de minha classe! Os espectros do passado... Os homens que traí e
assassinei. As mulheres que deixei. Os suicidados... O contrabando e
a pilhagem... Todo o arsenal do teatro moralista de nossos avós. Nada
disso me impressiona nem impressiona mais o público... A chave mi-
lagrosa da fortuna, uma chave Yale... Jogo com ela!4

Uma trajetória na qual não hesitou em trapacear para atingir


seus objetivos. E, para que esses fossem devidamente solidifi-
cados, era necessário estabelecer alianças com os segmentos que
perderam dinheiro e poder, mas que mantiveram prestígio. Nesse
momento, entra em cena a personagem Heloísa de Lesbos, que
se corrompe, ou melhor, se vende, justamente para manter seu
poder aquisitivo, ou sua posição de classe:

HELOíSA: Enfim... aqui estou... negociada. Como uma mercadoria


valiosa... Não nego, o meu ser mal-educado nos pensionatos milionários
da Suíça, nos salões atapetados de São Paulo... vivendo entre ressacas
e preguiças, aventuras... não pôde suportar por mais de dois anos a
roda da miséria...5

248
Evidentemente, O rei da vela possui inúmeros desdobra-
mentos. Dentre eles, está a relação a três envolvendo Abelardo I,
Heloísa de Lesbos e o Americano, em uma alusão aos acordos e
intercâmbios econômicos entre Brasil e Estados Unidos. Ao lado
disso, deve ser salientada a deterioração financeira da família
de Heloísa, o que leva todos os seus membros a aceitarem se
corromper pelo dinheiro de Abelardo I.
Acerca dessa peça ainda é importante recordar que, mesmo
tendo sido escrita em 1933 e publicada em 1937, só ganhou os
palcos em 1967, na festejada montagem do Teatro Oficina de
São Paulo. Essa demora em alcançar os palcos deveu-se ao fato
de que, além de haver sido censurada pelo governo de Getúlio
Vargas, ela não entusiasmou, respectivamente, o grupo teatral
de Décio de Almeida Prado e a companhia de Procópio Ferreira,
já que ambos recusaram a proposta do dramaturgo para a reali-
zação do espetáculo. Todavia, ao ganhar a ribalta pelas mãos
daqueles jovens artistas dos anos de 1960, o texto foi relido e
redimensionado em consonância com as circunstâncias daquele
momento histórico. Dessa forma, o tema da corrupção, que em
Oswald de Andrade surge como algo inerente aos comporta-
mentos das classes sociais dominantes, é reinterpretado como uma
condição histórica que somente outras forças sociais, culturais e
políticas poderiam, de fato, enfrentar.
Nos exemplos até agora mencionados pode-se observar
narrativas marcadas pela ironia, sob o gênero cômico nas peças
de Juca de Oliveira e pelo tratamento corrosivo de Oswald de
Andrade a situações que especialmente o olhar histórico consa-
grou sob o ponto de vista dramático.
Contudo, quando o tema da corrupção é apreendido a partir
de uma construção dramática, verifica-se que seu tratamento,
embora possa recair sob acontecimentos cotidianos e específicos,
a dimensão do indivíduo, do ser social e propriamente humano
ganha dimensões trágicas pela condição moral massacrada e
corrompida pelos interesses imediatos.

249
Esse tipo de representação está presente na peça Corpo a
corpo, escrita por Oduvaldo Vianna Filho, no início na década
de 1970. Nela, o poder corruptor do dinheiro, movimentado pela
indústria cultural, vem para o centro da narrativa e é enfocado,
particularmente, sob o signo da publicidade. Nesse monólogo,
ambientado em um único espaço cênico (apartamento de Vi-
vacqua), Vianinha estabeleceu patamares de discussão, com a
finalidade de observar que, muitas vezes, as escolhas profissionais
envolvem uma dose excessiva de individualismo, em detrimento
de escolhas coletivas. Vivacqua, ao ver-se relegado a segundo
plano, sem oportunidades de exibir o seu talento e auferir um
rendimento maior no final do mês, mostra-se indignado com
comportamentos considerados antiéticos, tais como a postura de
Fialho em relação a Aureliano que, aos poucos, está sendo alijado
da agência e das decisões. Essa é a motivação a partir da qual o
protagonista inicia a ação dramática, impedindo a entrada, em
seu apartamento, de Suely, sua noiva e filha de Tolentino, dono
da agência de propaganda em que é funcionário.
Na sequência, o leitor/espectador acompanhará uma ma-
drugada de angústias, dúvidas e sofrimentos. Após romper o
vantajoso noivado, Vivacqua questiona o seu comportamento,
subserviente ao patrão Tolentino, a sua opção profissional e
destaca o caráter “enganoso” de sua profissão: vender sonhos e
expectativas de consumo em uma sociedade desigual.

VIVACQUA: ...propaganda é isso, uma corrida desesperada de


todo mundo prá vender cenários e humilhação... sou pago prá não
tomar conhecimento do povo, jogar luxo nos olhos dele... sou pago
prá provar prá ele que uma geladeira é um ser superior, que uma loja
é um templo onde se dá a multiplicação dos liquidificadores... quem
não tem batedeira de bolo não entra no Reino dos Céus... a gente fica
tão metido dentro daquela Agência, tão atrás de tricas e futricas que
a gente esquece que foram eles que fizeram a geladeira, pomba, com
o maçarico na mão... a gente começa a acreditar que somos nós que
carregamos o povo nas costas... somos nós que temos de trabalhar

250
feito cruzados prá convencer essa gente a acreditar no conforto, nos
liquidificadores... eles ficam de outro país, entende? Outro sangue,
metabolismo diferente, é outra raça...6

Ao revelar as artimanhas que compõem uma peça publicitária,


Vivacqua reconhece que, com o objetivo de ascender social e
profissionalmente, abandonou expectativas de um trabalho enga-
jado, em especial quando recorda a sua formação em sociologia
e a atividade como pesquisador na Fundação Getulio Vargas.
Estabeleceu uma escala de prioridades, na qual respeito, família,
amizade e solidariedade tornaram-se valores obsoletos. Em meio
a esse desespero, busca a companhia de outras mulheres, além de
tentar conversar pelo rádio amador. Nesse processo de solidão,
telefona para a mãe, em Aracaju. A consciência de quanto se
afastou dos afetos e das relações de solidariedade emerge quando
é informado que Ema está internada. Sofreu uma cirurgia e, dada
a gravidade do quadro, será submetida a uma nova intervenção
no dia seguinte. Perplexo com a notícia, pergunta ao tio por que
nada lhe foi dito e, ainda mais estupefato, descobre que a mãe
enviou-lhe uma carta, e ele não a leu por achar que não havia
nada de importante nela.
Diante de tanto desespero, Vivacqua, que, por telefone, já
havia solicitado a sua demissão a Fialho, faz uma reserva no
primeiro voo para Aracaju, a fim de ficar ao lado da mãe e se
estabelecer profissionalmente fora do Rio de Janeiro. Pouco
tempo depois, no meio da madrugada, o telefone toca de novo.
Dessa vez, ele aceita a ligação e, do outro lado da linha, está
Tolentino, diretamente dos Estados Unidos, para informar que
a Fullbright gostou do anúncio da cera Lemos. Com isso, ele
deverá embarcar imediatamente para os EUA, porque estão em
andamento as negociações entre Fullbright e Tolentino, para
obtenção de contas publicitárias no interior do Brasil. Vivacqua
fará parte do esquema, assumindo na agência de propaganda o
lugar de Aureliano.

251
VIVACQUA: Deus do céu, uma oportunidade assim, Vivacqua,
isso não acontece duas vezes... os americanos gostaram, Viva, é a agência
Fullbright que gostou do teu amigo, menino! Que quer trabalhar com
você, Viva!... Foi na mosca, Vivacqua, foi na mosca! Lá no coração
foi uma porrada, menino, uma paulada, paulada! A gente estourou
o cassino inteiro! Meu Deus do céu, consegui! (Começa a pular) Na
mosca, no queixo, peguei na mandíbula, gente! Peguei a vida de por-
rada, pelo rabo, está aqui no bolso, aqui... publicidade eu sei fazer,
sim, entende? Estouro a cabeça das pessoas de vontade de comprar,
ser melhor, se abrir no mundo... ganhei meus trinta segundos... me dá
meus trinta segundos que vou fazer poema com esse mundo sujo e
novo! Onde eu puser a câmera vai ter a nossa novidade mesmo que
seja anúncio de pepino! Ganhamos mais trinta segundos, gente! (Vai até
a janela) Vou abandonar vocês, acabo de ser nomeado pessoa por
eles, acabo de ser proclamado ser humano... vou embora, vou largar
vocês, não vou triste, não! Mas juro que levo essa nossa gana de apa-
recer no mundo... vocês não podem me xingar, é publicidade, é a única
coisa que eu sei fazer... é o que vocês todos queriam que acontecesse
com vocês... tirei a loteria, a loteria é minha... o bilhete é meu! Posso
fazer alguma coisa que não seja só suportar, suportar, supor... que não
reclama de mim não... aprendam primeiro a ser povo, a acreditar na
gente cegamente, a apostar na gente... vocês ainda acreditam no jogo
de cada um prá si... essa é a regra do jogo que vocês botam, que vocês
deixam que seja ensinada nas escolas, nos anúncios, agora ficam com
nojo quando descobrem que alguém ganhou esse jogo, hein? Eu sei,
eu sei, trinta não é nada, pomba, quem não sabe que trinta segundos
são trinta segundos... mas é a minha parte!7

À mãe caberá, nessas circunstâncias, um telegrama, desejan-


do sorte na cirurgia. A Fialho, que cumpra as ordens de Tolentino e
compre-lhe a passagem para a América do Norte. Suely volta
à condição de noiva. Como tal, deverá ajudá-lo a compor um
guarda-roupa adequado para a viagem e, ao mesmo tempo, en-
trará em contato com a amiga jornalista, pedindo que divulgue
uma nota elogiosa em sua coluna. A Aureliano, o eterno mestre,

252
deixa o seu agradecimento, mas a vida deve seguir o seu curso,
pois, no mercado, cada um tem de buscar, a qualquer custo, os
seus 30 segundos de fama. Vivacqua coisificou-se, assumiu-se
como mercadoria e aceitou as regras do jogo. Venceu, pois se
deixou corromper pelo poder do dinheiro.

NOTAS
1
BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO. Dicionário de Política, p. 291-292.
2
ANDRADE. O rei da vela, p. 11.
3
ANDRADE. O rei da vela, p. 14-16.
4
ANDRADE. O rei da vela, p. 46-47.
5
ANDRADE. O rei da vela, p. 45.
6
VIANNA FILHO. Corpo a corpo, p. 78.
7
VIANNA FILHO. Corpo a corpo, p. 197-198.

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Oswald de. O rei da vela. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco
(Org.). Dicionário de Política. 5. ed. Brasília: Ed. UnB, 1993.
GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariângela Alves de. Dicioná-
rio do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva/
SESC, 2006.
MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. 3. ed. São Paulo:
Global, 1997.
MAGALDI, Sábato. Teatro de ruptura: Oswald de Andrade. São Paulo:
Global, 2004.
PATRIOTA, Rosangela. A crítica de um teatro crítico. São Paulo: Pers-
pectiva, 2007.
VIANNA FILHO, Oduvaldo. Corpo a corpo. Cultura Vozes, Petrópolis,
Vozes, Ano 93, v. 93, n. 1, p. 173-200, 1999.

253
alCideS Freire raMoS

CinEma braSilEiro

A legislação brasileira define corrupção como atos ilícitos


praticados por funcionário público, mais especificamente quando
este, em razão do exercício de suas funções, pede diretamente ao
interessado ou, passivamente, aceita quantia em dinheiro para
descumprir dispositivos legais. Desses atos ilícitos beneficiam-se
não só o referido funcionário público, mas também o agente
social interessado no descumprimento das leis. A parte lesada é,
fundamentalmente, o erário público. E este último, como sabemos,
deveria ser defendido com impessoalidade e moralidade.
Os ilícitos atos de corrupção pressupõem, portanto, três
instâncias: (1) o funcionário público: aquele que se corrompe
ou que se deixa corromper; (2) o agente corruptor, isto é, os que
estão interessados no descumprimento das leis; (3) o interesse
público que é, nesse caso, a parte lesada. Resumidamente, isso
é o que se pode concluir quando se leva em conta o que prevê a
legislação brasileira em sentido estrito. Todavia, a palavra
corrupção, em sentido ampliado pelo uso no cotidiano, remete
a situações em que as relações sociais e/ou os valores ético-
-morais se desagregam, ou, conotativamente, se decompõem,
entrando em estado de putrefação.
Dada a importância dessa temática não é incomum que as
artes brasileiras tratem dela. Com efeito, tanto a literatura como
o teatro, a música e o cinema, em diferentes momentos históricos,
têm dedicado inúmeras obras à representação e, ao mesmo
tempo, à denúncia de práticas que levem à corrupção, quer em
sentido estrito, quer em sentido amplo.
No caso do cinema brasileiro, uma pesquisa mais aprofundada
sobre a presença desse tema revela a existência de um grande
número de filmes, que seguem diferentes orientações estéticas
e políticas. Num primeiro bloco, devemos agrupar todos
aqueles que tratam da corrupção em sentido estrito, isto
é, atos praticados no exercício da função pública no âmbito
dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. São filmes que
retratam atos ilícitos envolvendo senadores, deputados, juízes,
vereadores, governadores, prefeitos etc. Como já dissemos
anteriormente, muitas são as películas que se voltam para essa
abordagem, mas, aqui, citaremos apenas as mais significativas.
Nesse sentido, um excelente exemplo é O bandido da luz
vermelha (1968, Rogério Sganzerla). Expoente máximo da “esté-
tica do lixo”, esse filme representa o aludido tema tomando
como ponto de partida a trajetória de um conhecido assaltante
(cujo nome real é João Acácio Pereira da Costa), que aterrorizou
a população paulistana em fins dos anos de 1960. Sempre
portando uma lanterna, cuja luz é de cor vermelha, diversas
vezes driblou os esforços da polícia em capturá-lo. O que fun-
damentalmente nos interessa ressaltar é que, a pouco e pouco,
a narrativa retrata, de modo inovador e não-linear, os vínculos
existentes entre políticos (aqui representados por J. B. da Silva)
e uma organização criminosa (cujo nome é “Mão Negra”). O
criminoso da luz vermelha é apenas a face mais visível – aquela
que vai para as páginas dos jornais – de um esquema muito mais
profundo. A “Boca do Lixo”, de acordo com essa obra, seria uma
espécie de alegoria do Brasil.
Também representando a “estética do lixo”, outro filme digno
de nota é Cara a cara (1968, Júlio Bressane). Trata-se de uma
película cuja narrativa nem sempre é transparente ou de fácil
compreensão, mas que pode ser assim sintetizada. Primeiramente,
o espectador entra em contato com Hugo Castro, que é um líder
político corrupto, muito influente, mas incapaz de interagir

255
positivamente com o meio que o cerca. Luciana, sua filha, recebeu
uma educação superprotetora. Numa situação bastante diferente,
temos o funcionário público Raul que, apesar de jovem, não
vislumbra nenhuma perspectiva de futuro. Como que por acaso,
Raul tem contato pelos jornais com fotografias da jovem Luciana.
Apaixona-se imediatamente por ela. Entretanto, é um amor não
correspondido. Vale destacar que a putrefação das relações sociais
está simbolizada nesses dois personagens. O pai da moça, muito
preocupado com questões políticas, não presta atenção ao que
está acontecendo à sua volta e a situação se agrava. No auge do
seu desespero, Raul, que mora em condições miseráveis com sua
mãe doente, toma uma atitude extrema: mata seu chefe imediato.
Logo depois, procura Luciana. Leva-a consigo para a casa dele.
Ainda mais desesperado, toma outra atitude extremada: mata a
moça. Em seguida, assassina a própria mãe e se suicida. Ainda
que não haja uma relação direta de causalidade entre as atitudes
do líder político corrupto e os assassinatos cometidos por Raul,
a película deixa no espectador a sensação de que a sociedade
brasileira está fortemente marcada pela desagregação e pela
iniquidade.
Numa vertente estética mais ajustada ao gosto médio do
público (naturalismo hollywoodiano), merece menção a obra cine-
matográfica Doces poderes (1996, Lúcia Murat). A partir deste
filme, que se baseia em experiência autobiográfica da diretora,
o espectador tem a oportunidade de conhecer um pouco mais
a respeito dos bastidores das campanhas políticas em Brasília.
é um filme-denúncia da desagregação das instituições políticas
no Brasil, já que nos mostra como práticas ilícitas fazem parte
do cotidiano de jornalistas e intelectuais que produzem essas
campanhas, sem convicções ideológicas ou princípios ético-
-morais sólidos.
Casos de corrupção envolvendo políticos de Brasília e os
interesses de empresas multinacionais dão lastro à narrativa
de Memórias do medo (1981, Alberto Graça). Nessa película, o
espectador é apresentado a um grupo de jornalistas que recebe

256
informações sobre um caso de corrupção envolvendo um influente
senador. As práticas de corrupção ocorrem em virtude de uma
disputa desonesta na qual têm papel central empresas norte-
-americanas e japonesas. Em meio a esse quadro, o filme nos
mostra ainda as vãs tentativas de alguns jornalistas e políticos
bem intencionados em denunciar os envolvidos, mas, graças
a inúmeras manobras nos bastidores, elas são esvaziadas. O
resultado é amargo. Apresenta-se, dessa forma, ao espectador
um diagnóstico muito atual, ou seja, iniciativas individuais,
distanciadas de sólidos interesses da sociedade civil, têm alcance
muito limitado no combate à corrupção.
Por fim, devem ser citadas duas obras importantes, O terceiro
milênio (1981, Jorge Bodansky) e Águia na cabeça (1983, Paulo
Thiago). Em ambas a abordagem proposta permanece atual.
No caso da primeira, isso pode ser dito visto que se concentra
na denúncia da ocupação predatória da região amazônica. A
corrupção é uma constante, sobretudo, devido aos interesses de
fábricas poluidoras que se instalam por lá. No caso da segunda,
que também retrata a corrupção de políticos e juízes, os interesses
que corrompem são os dos contraventores ligados ao “jogo do
bicho”.
Por outro lado, num segundo bloco de filmes, cabe reunir os
que tratam de ações delituosas de funcionários públicos de
terceiro ou quarto escalão, particularmente policiais (civis ou
militares) ou delegados. Nesses casos estaríamos ainda circuns-
critos à definição estrita (legal) de corrupção.
Sem dúvida alguma, o melhor exemplo dessa vertente é Tropa
de elite (2007, José Padilha). é um filme polêmico, premiado em
2008 com o Urso de Ouro (melhor filme) no Festival de Berlim,
que retrata a trajetória do capitão Nascimento, comandante de
um esquadrão do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), do
Estado do Rio de Janeiro. A trama gira em torno de um conflito
interno desse personagem principal. Ele quer deixar o seu posto
de comandante, pois, com a saúde abalada devido ao estresse
constante, deseja dedicar mais tempo à sua família (sua mulher

257
está grávida e seu filho pode nascer a qualquer momento). O que
o impede de fazer isso, de imediato, é o fato de não conseguir
encontrar um substituto a sua altura. O enredo, portanto, gira em
torno dessa busca de um substituto. A pouco e pouco, Nasci-
mento percebe que pode resolver esse problema, ao conhecer
Neto e Matias. Eles são amigos desde a infância e têm algo em
comum: são idealistas e desprezam as práticas de corrupção que
prejudicam o trabalho da Polícia Militar. Ao final, Nascimento
consegue preparar aquele que o substituirá, mas, para isso, terá de
fazer com que eles se tornem um só. Independentemente das polê-
micas que o cercaram antes mesmo de seu lançamento, Tropa de
elite é um filme contundente na denúncia da corrupção policial.
A exemplo do anterior, Cidade de Deus (2002, Fernando
Meirelles e Kátia Lund) é outro filme que deve ser destacado.
Grande sucesso de público, narra a história de Buscapé e Dadinho.
Eles são dois meninos pobres que moram no Conjunto Habitacional
Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. O primeiro deles torna-se
fotógrafo, conseguindo resistir aos apelos do crime organizado
(tráfico de drogas). O outro, porém, se transforma num dos mais
temidos traficantes do Rio de Janeiro. Ao longo da narrativa o
espectador é apresentado não só às razões pelas quais o crime
organizado se alastra em meio à miséria, mas também aos des-
mandos de policiais corruptos.
Grande sucesso de público e marcante pela maneira como
retrata o universo dos meninos envolvidos na criminalidade é
Pixote, a lei do mais fraco (1980, Hector Babenco). Um contra-
ventor de 11 anos, Pixote, é colocado em reclusão na Febem, em
São Paulo. Nesta instituição, na qual em princípio ele deveria
ser preparado para voltar a viver em sociedade, presencia todos
os tipos de corrupção, atos brutais, curras e tráfico de drogas.
Diante desse quadro, aproveita-se de uma visita do juiz de menores
e foge. De volta às ruas, pratica pequenos roubos. Foge para o
Rio de Janeiro onde conhece a prostituta Sueli. Película muito
premiada, até hoje é uma referência na denúncia da corrupção
policial.

258
Este bloco não ficaria completo se não mencionássemos o
filme República dos assassinos (1979, Miguel Faria Júnior).
Em fins dos anos de 1960, um grupo armado autodenominado
“Esquadrão da Morte” inicia sua trajetória na cidade do Rio de
Janeiro. Seus crimes foram denunciados, logo depois, no início
da década de 1970. Apesar do rumoroso processo, envolvendo
policiais e membros da alta hierarquia da justiça, tudo acabou
sendo arquivado. À semelhança dos anteriormente citados, essa
película é uma referência obrigatória na denúncia da corrupção
policial.
Nos casos analisados anteriormente, as narrativas ficam
circunscritas à definição estrita (legal) de corrupção. No entanto,
é possível propor um terceiro bloco em que os filmes tratam do
tema corrupção num sentido mais amplo. Ou seja, são obras nas
quais os cidadãos comuns se veem representados. E, por meio
dessa representação, aparecem implicitamente como fazendo
parte dos processos sociais mais profundos que podem produzir
situações corruptoras. Em suma: a corrupção não é algo que está
presente apenas nas instituições do Estado, mas, pelo contrário,
dissemina-se pela sociedade civil em diversos níveis e setores.
Um excelente representante dessa abordagem é Central do
Brasil (1998, Walter Salles Júnior). Isso pode ser dito tendo
em vista que a personagem principal, Dora, não é uma funcio-
nária pública no exercício de sua função, mas uma professora
aposentada, que ganha a vida escrevendo cartas para analfabetos,
na Estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro. O que nos cabe
salientar é que ela engana seus clientes, ou seja, escreve as cartas,
recebe o dinheiro, mas não as coloca no correio. Aliás, como
uma espécie de coroamento desse processo de putrefação de
seus valores ético-morais, interessada em obter grandes somas de
dinheiro ilícito, ela chega a se envolver com tráfico de crianças.
Entretanto, essa personagem tem a possibilidade de se modificar.
E é o que ocorre ao longo da narrativa. O filme, de certa forma,
assume um ponto de vista esperançoso e otimista, pois ela se
mostra capaz de se envolver com os sentimentos do menino Josué,

259
a quem ajuda na busca da figura paterna. Dora é, portanto,
um personagem que se redime pela compaixão.
Outras duas obras fundamentais para a composição desse úl-
timo bloco são Cronicamente inviável (2000) e Quanto vale, ou é
por quilo (2005), ambas dirigidas por Sérgio Bianchi. O primeiro
é, de fato, um filme pessimista e chocante, pois o narrador não
é um delegado, um político ou um policial corrupto membro do
“Esquadrão da Morte”, mas sim um importante sociólogo, autor
de livros, que se envolve numa rede de tráfico de crianças e de ór-
gãos. O filme procura demonstrar as razões pelas quais o Brasil
é um país inviável, ou seja, é cada vez mais corrupto, mais podre,
mais violento. E isso ocorre exatamente porque nada consegue
escapar ao poder corrosivo do dinheiro fácil, oriundo de atos
criminosos. O mesmo retrato contundente pode ser encontrado
em Quanto vale, ou é por quilo. Utilizando-se de um recurso nar-
rativo denominado “montagem paralela”, essa película mostra,
alternadamente, dois momentos distintos da história brasileira,
propondo uma singular comparação. Primeiramente, cenas do
século 18. Vemos um homem, cuja profissão é capturar escravos
fugidos. Ele encontra uma jovem negra grávida, que acaba de
escapar de seu despótico senhor. Esse homem fica em dúvida
entre prender a fugitiva, condenando-a à morte ou à escravidão
o filho que ela traz no ventre, ou deixá-la escapar. Em seguida,
temos diante de nós a época atual. Nesse momento, uma jovem
grávida entra em conflito com o seu patrão que é corrupto e
estuprador. Portanto, nesses dois filmes de Sérgio Bianchi são
apresentados retratos contundentes e, com certeza, pessimistas
da sociedade brasileira.
Como vimos, a partir desse resumido balanço, o cinema bra-
sileiro, de maneiras diversificadas, tem procurado levar aos
espectadores diferentes retratos das práticas de corrupção, ora
referindo-se a elas em termos estritos (de acordo com a definição
legal), ora retratando-as de maneira mais ampla. Nesta última
acepção, vimos que há uma forte tendência em mostrar um quadro
bastante sombrio, já que, como nada consegue escapar ao poder

260
corrosivo do dinheiro fácil, oriundo de atos criminosos, a corrupção
é algo que atravessa todo o tecido social. Provavelmente, é por
esse motivo que o seu combate tem se mostrado, nos últimos
anos, tão difícil e infrutífero.

REFERÊNCIAS
CóDIGOS CIVIL E PENAL BRASILEIROS.
RAMOS, Fernão (Org.). História do cinema brasileiro. São Paulo: Art
Editora, 1987.
SILVA NETO, Antonio Leão da. Dicionário de filmes brasileiros. São Paulo:
Edição do Autor, 2002-2006.

261
HeloiSa Maria Murgel S ta r l i n g

Canção popular

O ano de 1916 já estava quase no fim quando o músico


Donga registrou a canção “Pelo telefone”, em seu nome, na
seção de registro de autores da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro. Com esse gesto, Donga garantiu direitos autorais sobre
uma composição, provavelmente de produção coletiva, cuja
proveniência vinha dos frequentadores de uma espécie de fes-
ta musical que acontecia, com regularidade, no interior de uma
comunidade muito peculiar de negros baianos nascidos livres e
instalada no bairro carioca da Saúde, no final do século 19. A
ideia funcionou melhor do que o próprio Donga poderia imagi-
nar: seu gesto transformou um divertimento musical até então
restrito a um grupo social no gênero musical que está na origem
da moderna canção popular urbana brasileira – com direito a
autoria, gravação, impressão de partitura, comercialização e
amplo acesso aos meios de divulgação da época.
Registrado por seu inventor como “samba carnavalesco”,
“Pelo telefone” foi gravado em disco da lendária casa édison,
pelo cantor Bahiano, em janeiro de 1917, e provocou enorme
polêmica: os habitués das noitadas musicais do bairro da Saúde
protestaram veementemente contra a presunção de autoria de
Donga e fizeram seu protesto circular pela cidade, inclusive sob
a forma de versos: “ó que caradura/de dizer nas rodas/que esse
arranjo é teu!/é do bom Hilário/e da velha Ciata/que o Sinhô
escreveu.” Mas havia ainda outro motivo capaz de gerar grande
polêmica: a letra da primeira estrofe da canção trazia duas versões
e nunca se soube ao certo qual delas – a gravada ou a anônima –
foi composta primeiro. Na versão gravada por Bahiano: “O chefe
da folia/pelo telefone/manda me avisar/que com alegria/não se
questione/para se brincar.” Já a versão anônima anunciava outra
história: “O Chefe da Polícia/pelo telefone/manda me avisar/que
na Carioca/tem uma roleta/para se jogar.”
Em comum às duas versões só o telefone – àquela altura um
artefato raro na cidade do Rio de Janeiro cujo acesso revelava
familiaridade com a tecnologia, prestígio social e muito dinheiro
no bolso. Símbolo de privilégio, na versão anônima da canção o
telefone era um aparelho que também soava como instrumento
de corrupção: de acesso muitíssimo limitado e uso restrito à elite
endinheirada da cidade, o aparelho tornava pública, pela voz do
próprio delegado, a complacência da polícia do Rio de Janeiro
com a proibição da prática do jogo na cidade – complacência que
o jornal A Noite desmascarou, já em 1913, ao instalar uma roleta,
em frente à sua redação, no movimentado Largo da Carioca e,
ato contínuo, convidar os passantes a fazerem suas apostas.
A versão anônima de “Pelo telefone” entendia a corrupção
associada à noção de erosão da coisa pública – engendrada, no
caso, por uma força policial pública, mas abusiva e capaz de dri-
blar a lei para servir a interesses particulares. Mais do que isso,
talvez, a canção admitisse uma antiga vulnerabilidade da vida
pública nacional: “o que é a lei, se o major quiser?”, tratava de
ironizar Manuel Antônio de Almeida, ao descrever os costumes
da sociedade carioca no tempo de D. João VI, em Memórias de
um sargento de milícias.
Com efeito, desde o início do século 19, quando ainda era
conhecida no país apenas como modinha e servia principalmente
para encantar a fantasia amorosa das moças, os versos satíricos,
característicos do processo de origem da canção popular moderna,
já se esforçavam na tentativa de fornecer temas, vocabulário
e referências para construção de certa noção de coisa comum
entre os brasileiros. Esforço que incluía apontar a corrupção
como problema numa corte perdulária e voraz onde o soberano

263
hesitava em pagar o preço da virtude no controle da adminis-
tração pública: “Quem furta pouco é ladrão/Quem furta muito
é barão/Quem mais furta e esconde/passa de barão a visconde.”
Os letristas populares da primeira metade do século 19 enten-
diam o que hoje chamamos por corrupção como um tipo espe-
cífico de roubo: a corte joanina era corrupta porque roubava
– e roubava em grande quantidade – do condomínio comum da
população. Já no início do século 20, na versão anônima de “Pelo
telefone”, a ênfase irá recair sobre a perda do senso do público,
vale dizer, sobre a maneira como cada indivíduo experimenta
seu elo com a sociedade que o abriga. Uma é sintoma da outra e
introduz o tema da corrupção na origem do vocabulário político
mobilizado pela canção. As décadas seguintes do século 20 irão
indicar que o compositor popular levou o assunto a sério – tanto
que tratou de debatê-lo.
Não por acaso. Quando os fundadores da modernidade da
nossa canção, gente como Donga, Pixinguinha, Caninha, China,
Heitor dos Prazeres, João da Baiana e, sobretudo, Sinhô, come-
çaram a fustigar uns aos outros unindo melodia e letra e, sob o
pretexto de enviar recados, trataram de convencer o ouvinte da
excelência de seu produto, passaram a buscar, para seus versos,
um conteúdo menos banal, mais elaborado – um conteúdo que
incluía polêmica, críticas da situação do país e, especialmente,
emissão de opinião. é precisamente nesse desenho dialogal que
reside um traço singular da linguagem estética da canção popular
brasileira: ainda que, no mais das vezes, o mote original da com-
posição seja de cunho eminentemente pessoal e o compositor
fale prioritariamente de si – abordando, por exemplo, seus
amores, infortúnios, aptidões, desenganos, características pessoais
–, uma canção costuma quase sempre expor opiniões e agregar
comentários ao ponto de vista inicial proposto pelo composi-
tor. Ao fazer isso, a canção favorece a controvérsia, discussão
e troca de opiniões, além de facultar a incorporação ao debate
de todos quantos se sintam atingidos por esse ponto de vista,
independentemente de suas convicções, atributos ou valores

264
originais. Essa capacidade de integração de públicos diversos,
de formação de consenso e de ampliação da esfera pública até o
limite do indivíduo ordinário é uma das principais características
da moderna canção popular brasileira. Veículo de trocas, ela
corta transversalmente a polis e fornece temas e vocabulário que
tornam possível o debate sobre a presença de um espaço que seja
comum a todos, produzindo referências compartilhadas em uma
sociedade marcada por interesses particulares e apetites privados.
Provavelmente foi graças a essa vocação para o debate público
que um gênero musical extremamente popular no país durante
as décadas de 1920, 1930, 1940 e 1950 – a marchinha – ajudou a
temperar o debate sobre a corrupção, escancarando a dificuldade
do brasileiro de viver a República. Com uma trajetória bastante
própria, a marchinha surgiu, ao final da Primeira Grande Guerra,
como resultado de uma mistura rítmica infernal que tem na sua
origem um pouco de ragtime e charleston, de modinha brasileira,
de marchas das revistas portuguesas, de dobrados das bandas que
se exibiam em retretas de coreto. Mas, sobretudo, a marchinha
surgiu associada ao carnaval, com compasso binário, andamento
muito rápido e linguagem musical concentradíssima. Suas letras
fazem farto uso da sátira, do trocadilho, do subentendido, do
nonsense e descrevem uma única situação que às vezes se expande
em comentário, mas é sempre recorrente, sempre volta ao refrão,
tal como acontece em “Maria Candelária”.
Composta por Armando Cavalcanti e Klécius Caldas e gravada,
em 1951, na voz de Blecaute, essa marchinha alcançou enorme
sucesso no carnaval de 1952 e fez desfilar pelas ruas da polis a
ideia de que a corrupção se desenvolve exatamente no ponto
de engate entre sua reprodução pelos costumes políticos e a
coisa pública: “Maria Candelária/é alta funcionária/Saltou de
paraquedas/Caiu na letra ó/Começa ao meio-dia/Coitada da
Maria/Trabalha, trabalha/Trabalha de fazer dó/À uma, vai ao
dentista/Às duas, vai ao café/Às três vai à modista/Às quatro
assina o ponto/E dá no pé!/Que grande vigarista que ela é!”.

265
Aguda, estrita, maliciosa, a marchinha metia-se em todas as
questões do seu tempo e invariavelmente emitia uma opinião
ou um comentário sobre os acontecimentos do cotidiano, do
comportamento e da vida política do país. Meio pretexto, meio
testemunho, a marcha assegura o registro da história, mas sempre
a partir das coisas miúdas do cotidiano: o nome “Maria Cande-
lária” faz alusão ao ponto de ônibus de maior movimento do Rio
de Janeiro, instalado, no centro da cidade, ao lado da igreja da
Candelária, e frequentado, sobretudo, por funcionários públicos
que saíam em grandes grupos das autarquias e repartições
federais por volta das quatro horas da tarde – naquele tempo,
hora de funcionário público voltar para casa; a letra Ó registrava
a categoria do funcionalismo federal que recebia à época salário
mais elevado; o paraquedas insinuava que um contingente signi-
ficativo desses funcionários obteve emprego na administração
pública menos por mérito e muito por influência política.
Para “Maria Candelária” a corrupção é a alma do seu negócio
– e no caldo político apresentado pela marchinha o regime está
viciado porque tolera o uso privado da coisa pública. Entretanto,
foi graças a um samba de Noel Rosa – “Quem dá mais” – que
o debate sobre a corrupção expandiu seu argumento para além
da definição de mau trato dos dinheiros públicos associando-a,
provavelmente pela primeira vez, à ideia de que um sujeito
corrupto falta de forma quase imperdoável à pátria.
Noel compôs o samba “Quem dá mais” para um sketche
intitulado Leilão do Brasil, parte do roteiro da revista teatral
Café com música que estreou com sucesso no teatro Recreio,
no Rio de Janeiro, em 1931. Dividido em três blocos e girando em
torno de um estribilho que desenvolve o tema sem jamais perder
o caminho de volta ao argumento central proposto pela canção,
cada bloco põe em leilão um elemento de afirmação de uma
determinada identidade nacional brasileira: a mulata, o violão,
o próprio samba. Ao mesmo tempo, porém, “Quem dá mais”
executa uma pirueta irônica: os atributos de nossa nacionalidade
se afirmam precisamente durante o tempo de execução do leilão

266
e a afirmação dessa particularidade sugere ser o Brasil um país
precário, meio insolvente, meio exótico, e que graças ao seu estilo
leviano de vida pública estava, já no início dos anos de 1930,
prestes a ser vendido.
“Quem dá mais” é com certeza um samba muito irônico e é
na sua ironia que desabrocha o riso – um riso que surpreende,
denuncia, quebra a norma e a convenção. Na origem grega da
palavra, ironia é eironein, simultaneamente um tropo retórico e
uma estratégia de discurso: opera no nível da linguagem ou da
forma – por exemplo, musical, verbal, textual – e tem o propósito
de desfechar uma ação capaz de interrogar um determinado tema
dizendo sobre ele menos do que aquilo que realmente pensa.
Dito de outro modo: a ironia se constrói no ato de uma pergunta
que finge ignorância sobre o assunto que foi perguntado. Nesse
fingimento, reside a força política do samba de Noel – sua ironia
remove a certeza de que as palavras significam apenas aquilo que
elas dizem: “Quanto é que vai ganhar o leiloeiro/Que é também
brasileiro/E em três lotes vendeu o Brasil inteiro?”
No argumento de Noel o leiloeiro é agente da corrupção prin-
cipalmente por comercializar os elementos de distinção e particu-
laridade que compõem um projeto de nacionalidade para o país
– a rigor, ele faz da construção da ideia de nação um negócio
público e, de quebra, trata de assegurar que uma parte dos lucros
auferidos com esse negócio termine no seu bolso. A novidade
que o samba introduz no debate sobre a corrupção vem de uma
dupla associação: por um lado, com a ideia de que o patriotismo
requer uma concepção de bem comum compartilhada e valorada
pelos cidadãos capaz de moldar sua lógica identitária afetiva;
por outro, com o argumento de que, perdido o sentido dessa
identidade coletiva que está na raiz de uma concepção forte de
nacionalidade, as portas de uma comunidade estão abertas para
um processo de corrupção que tende a corroer todo o conjunto de
suas relações sociais – inclusive aquelas que não são diretamente
mediadas pelo poder público.

267
Cerca de 50 anos depois, porém, outra canção, “Bancarrota
blues”, de Chico Buarque e Edu Lobo, retomou o samba de
Noel e tratou de escancarar pelo avesso seu argumento. Tal como
aconteceu com “Quem dá mais”, também “Bancarrota blues” foi
originalmente composta para fazer parte da trilha sonora de uma
peça de teatro – no caso, o musical O corsário do rei, de autoria
de Augusto Boal. O entrecho da peça faz o relato das aventuras
vividas pelo corsário francês René Duguay-Trouin, no correr
do século 18, mas o ferrão crítico da ironia presente na canção
desata o nó para uma autorreflexão muito atual sobre o país que
conhecemos: no vácuo de identidade coletiva em que o Brasil
contemporâneo se assenta, sugerem os versos de “Bancarrota
blues”, a lógica do interesse público foi banida ou abandonada
por todos os que consideram legítimo, aceitável ou compreensível
estar à margem da lei. Esse endosso, ainda que tácito, de quem
se considera incapaz de participar da vida pública, facultou
ao leiloeiro de antigos carnavais jogar sua sorte no mundo,
assumir-se escroque e passar a especular cinicamente com o
país. Com uma novidade, porém: no argumento de Noel, quem
ocupa o poder não é necessariamente corrupto, mas são todos
corruptíveis; no samba de Chico, a corrupção não poupa nin-
guém, e os últimos filhos que ainda restam ao Brasil desfilam
a prevalência de seu individualismo utilitário arrogante e esperto
e equilibram sua condição política precária negociando pátria e
nação por intermédio dos versos da canção.
Em “Quem dá mais” Noel fez ironia com um projeto de nacio-
nalidade capaz de funcionar bem nos idos de 1930 – projeto que
estava a reclamar uma simbiose entre o Estado e a nação sob o
imperativo da vontade nacional e se comprometia com a neces-
sidade de construção de uma identidade cultural brasileira a ser
cuidadosamente preservada como garantia de nossa especifici-
dade. Já “Bancarrota blues” flagra o Brasil insolvente da década
de 1980 e, profética, prefigura o desenraizamento público que
irá acometer o Estado e as políticas governamentais na década
seguinte: “Sou feliz/E devo a Deus/Meu éden tropical/Orgulho

268
dos meus pais/E dos filhos meus/Ninguém me tira nem por mal/
Mas posso vender/Deixe algum sinal.”
A ironia de Chico nem sempre é divertida – como forma de
humor suas arestas costumam acessar um tipo de material acerca
da aventura nacional brasileira que não é, na verdade, nada
engraçado. O jogo da canção combina a brutalidade original de
um passado escravocrata que se encontra na raiz da identidade
brasileira com o substrato musical do blues – e na longa tradição
musical de origem africana o blues é tanto um estado de espírito
quanto a expressão de um sentimento geralmente de tristeza e
depressão. Nesse Brasil em que tudo foi colocado à venda, tudo
pode ser negociado, tudo depende sobretudo do quanto nos
disponhamos a pagar, a prática da corrupção está muito distante
de se reduzir à apropriação particular da coisa pública ou ao
comportamento desviante de indivíduos. Ao contrário: ela corrói
os afetos, esgarça o sentimento de pertencimento a um território
e a uma cultura comum e ameaça fazer desmoronar as fronteiras
que separam o mundo público da vida privada: “O que eu tenho/
Eu devo a Deus/Meu chão, meu céu, meu mar/Os olhos do meu
bem/E os filhos meus/Se alguém pensa que vai levar/Eu posso
vender/Quanto vai pagar?”
Como se vê, ao menos no argumento do compositor popular
há sempre a suspeita prévia de que é difícil desgrudar a corrupção
desse enredo problemático em que se constrói a aventura nacional
brasileira. Mais do que isso: a corrupção tornou-se assunto
capaz de inspirar um cancioneiro que foi se deparando, a todo
o momento, com o nó duro do cotidiano de um país em que as
relações privadas dão o tom e dominam o cenário mesmo no
âmbito da esfera pública. Mas a corrupção não se tornou assunto
para canções por acaso. Ao longo do tempo, nosso compositor
construiu uma bem-sucedida e singular narrativa sobre a traje-
tória histórica e política da res publica entre os brasileiros.
Uma narrativa reveladora de certa vocação para produzir um saber
poético e musical posto à disposição de toda a sociedade e capaz
de preservar, sublinhar e transmitir valores, afetos, fantasias,

269
interesses e ideias que estão na base de formação de um mundo
público – décadas de cotidiano, largas porções da vida pública
nacional. Como já explicou certa vez Candeia, “mudo é quem
só se comunica com palavras”.

REFERÊNCIAS
ALENCAR, Edigar de. O carnaval carioca através da música. Rio de
Janeiro: Francisco Alves; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979.
BIGNOTTO, Newton. Republicanismo. Neste volume.
BIGNOTTO, Newton. Corrupção e Estado de Direito. In: AVRITZER, Leonardo;
ANASTASIA, Fátima (Org.). Reforma política no Brasil. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2006.
MÁXIMO, João; DIDIER, Carlos. Noel Rosa: uma biografia. Brasília:
Ed. UnB, 1990.
PETTIT, Philip. Republicanismo: una teoria sobre la libertad y el gobierno.
Barcelona: Paidós, 1997.
RIBEIRO, Renato Janine. A sociedade contra o social: o alto custo da vida
pública no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
SANCHES, Pedro Alexandre. Tropicalismo: decadência bonita do samba.
São Paulo, Boitempo, 2000.
SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de
Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor; Editora UFRJ, 2001.
SILVA, Fernando de Barros. Chico Buarque. São Paulo, Publifolha, 2004.
TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. São Paulo, Loyola, 2000.
TATIT, Luiz. Todos entoam: ensaios, conversas e canções. São Paulo,
Publifolha, 2007.
TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira.
São Paulo, Editora 34, 1998.

270
MarCela telleS elian liMa

Canção Caipira

A moderna canção caipira foi sistematizada, em 1929, pelo


escritor e compositor Cornélio Pires que adaptou ao formato
fonográfico ritmos rurais do interior dos estados de São Paulo,
Mato Grosso e Minas Gerais, como o cateretê e a catira. Durante as
décadas de 1940 e 1950, deu-se a consolidação desse cancioneiro
no cenário musical nacional, em grande parte, por sua difusão
nos programas de rádio. Na década seguinte, vários artistas
ligados a essa vertente da moderna canção popular brasileira
foram gradualmente proscritos dos meios de comunicação de
massa. Esse processo teve início, em 1958, com a Bossa Nova,
que firmou um padrão simples, sofisticado e moderno na cena
musical brasileira. Frente a esse padrão, a moda de viola figurava
obsoleta, atrasada.
Em 1965, foi a vez da Jovem Guarda ganhar espaço entre
jovens nascidos num campo urbanizado ou nas periferias das
grandes cidades para onde, décadas antes, seus pais haviam
migrado. Nesse período, artistas como Léo Canhoto e Rober-
tinho aproximaram a narrativa caipira à linguagem sonora do
rock, inserindo guitarras e baterias no arranjo de suas canções.
Eles foram responsáveis também por iniciar o diálogo entre a
chamada “canção cafona”, em voga durante os anos de 1970,
e a música caipira. Essas adaptações, processadas ao longo des-
sas duas décadas, culminaram no sucesso da guarânia “Fio de
cabelo”, em 1982, na interpretação de Chitãozinho e Xororó.
O sucesso dessa canção abriu caminho para uma série de nomes
como Leandro e Leonardo, Zezé de Camargo e Luciano, entre
outros. Ainda durante os anos de 1970, artistas como Renato
Teixeira e Rolando Boldrin pegaram o caminho de volta às
características sonoras e temáticas iniciais dessa linhagem da
canção popular, trilha seguida por uma geração de caipiras,
os violeiros Paulo Freire, Chico Lobo e Pereira da Viola.
Essa linhagem da moderna canção popular funcionará como
meio para fortalecer aquela que seria a voz mais fraca e menos
ouvida, ou seja, a voz do caipira que permanece no seu torrão.
Isso significa considerar a canção popular moderna brasileira – de-
vido a sua peculiar narrativa que conjuga letra e música – como
um modo capaz de integrar públicos diversos, no caso, cidade
e interior. Ao narrarem as experiências guardadas na memória
daqueles que habitam os grotões de estados como Minas Gerais,
São Paulo e Mato Grosso, onde sempre houve o predomínio da
palavra falada sobre a escrita, e expô-las ao conhecimento do
país, o compositor caipira, por meio de disco, rádio, televisão
ou shows irá cortar campo e cidade. Desse modo, a moderna
canção caipira, como a urbana, também irá integrar públicos
diversos e fornecer o vocabulário para o debate em torno da
realidade brasileira, produzindo referências comuns. No caso da
primeira, caberá à viola evocar essa memória sempre que, nesse
debate, ao homem do campo for necessário expor, em vista do
processo excludente de urbanização/modernização, a experiência
de desterro, na cidade, ou mesmo em sua própria terra.
Entre os vários temas políticos propostos no cancioneiro cai-
pira podemos perceber, num levantamento inicial de canções,
que a corrupção será tratada no interior da dicotomia campo/
cidade. O primeiro é apresentado como espaço no qual vigoram
princípios rígidos de valores, enquanto à segundo caberia a
degradação dos costumes políticos e sociais. Uma dicotomia
resultante da tensão entre moderno e arcaico constitutiva da
construção da República brasileira. Enquanto a cidade se abre
à diversidade necessária à constituição de um espaço público, a
vida no campo segue assentada sobre um referencial único de

272
valores a nortear as relações entre os indivíduos, a maioria delas
de caráter privado. Como consequência duas situações podem
ser observadas. Na cidade, a tolerância frente à diversidade
propicia uma maior liberdade pessoal, contudo irá favorecer a
apropriação privada do público na busca pela primazia de uns
sobre os outros. No campo, a valorização de princípios únicos
organizadores da vida em comunidade tendem a fortalecer os
elos entre os indivíduos, mas essa união acaba por se dar em
prejuízo da liberdade privada.
Acreditamos que a cidade prevalece como espaço por excelência
de corrupção no cancioneiro caipira por ser esse o campo
apto a abrigar um mundo público passível de ser corrompido.
A deformação desse mundo é indicada por esses compositores
ao narrarem o estranhamento com o qual o homem do campo
percebe a cidade. Pois, considerando, como Renato Janine, que
“vencer a corrupção não é simplesmente assegurar o bom trato
do dinheiro público: é garantir o respeito ao outro, a qualquer
outro”,1 a moderna canção caipira nos alerta para a fragilidade
desse espaço num país em que ao homem do interior é negada a
condição de ator político ativo e, portanto, inapto a impor seus
interesses. é essa face, negada ao caipira, que será reivindicada
pelo Capitão, em 1945, na canção “O caipira é vosso amigo”:

Escute o que eu vos digo


Que o caipira é vosso amigo
O caipira brasileiro
Deve ser considerado
No valor dum marinheiro
Dum doutor e dum soldado

Na impossibilidade de ser reconhecido como igual, o compo-


sitor narra o estranhamento resultante da condição de estrangeiro
na própria terra vivida pelos egressos do mundo rural. Mas não
é apenas o fato de a cidade se revelar como terra estrangeira que
irá caracterizá-la como espaço corruptível, mas a incapacidade
dos indivíduos que nela habitam de controlar as paixões privadas
convertendo um lugar de realização pública no luxo para uns

273
e na fome para outros. Foram os compositores Dino Franco e
Nhô Chico, em 1982, quem ressaltaram esse desvirtuamento:

Não ganho nem para comer


Já não sei o que fazer
Tô ficando quase louco
é só luxo e vaidade
Penso até que a cidade
Não é lugar de caboclo

Nesse sentido, pode-se argumentar que a cidade não seria tam-


bém lugar de nordestinos, negros, loucos, índios entre vários
outros que compõem a massa de excluídos da moderna Repú-
blica brasileira. Mas, ao trazer a fala daqueles que sobrevivem
frente à “modernidade peculiar do campo brasileiro – uma
modernização sem reforma agrária”, o compositor nos permite
perceber o processo de corrupção do espaço público brasileiro
por meio dos valores que restam de seu passado arcaico, malgrado
a instauração de uma república moderna. Arcaico por ter como
princípio de organização da vida comum a honra, num mundo
onde esse valor cede, cada vez mais, espaço para o dinheiro como
fator definidor das relações e do papel dos indivíduos no mundo
público. é para a honra e os princípios rígidos de conduta pessoal
compartilhados no passado vivido em seu sítio, no Triângulo
Mineiro, que o caboclo de Dino Franco e Nhô Chico irá se vol-
tar na busca por uma referência num mundo onde a pobreza
é fator de exclusão. A corrupção do espaço público dá lugar à
corrupção dos costumes já que será através do filtro definido
pelos códigos morais de seu lugar de origem que o caboclo irá
perceber esse processo. A indiferença aos valores e a tolerância em
relação à diversidade de comportamentos pessoais, vivenciadas
pelos membros da família do caboclo, na cidade, ou seja, a
liberdade pessoal, é percebida apenas como enfraquecimento dos
elos familiares.A família, última referência de pertencimento para
o caboclo, passa a ser ameaçada pela corrupção moral que se
apresenta no desvio comportamental de seus membros:

274
Até mesmo a minha “veia”
Já tá mudando de ideia
Tem que ver como passeia
Vai tomar banho de praia
Tá usando minissaia
E arrancando a sobrancelha

Na cidade, a dissolução do âmbito familiar, configurado em


torno da honra e obediência ao pai, desacompanhada de uma
inserção no espaço público maior, aumentará o apego do caboclo
aos costumes do seu lugar de origem, ainda que isso represente a
perda da liberdade individual. Ao fim da malograda tentativa de
passagem aos valores da República moderna e após vender o
sítio para ir para a cidade, nos conta o caboclo:

Seu moço, naquele dia


Eu vendi minha família
E a minha felicidade

Mas o efeito produzido pela corrupção no espaço público


da cidade não será tratado pelos compositores caipiras apenas
como desejo de retorno aos valores privados frente à impossibi-
lidade de realização pública. Considerando que a corrupção do
patrimônio comum é resultado dessa restrição da participação
aos homens interessados não apenas em garantir a posse dos
bens, mas em ampliá-las, Alvarenga e Ranchinho irão propor, em
1937, na “Canção do Tubarão”, uma forma peculiar de inserção
do homem do campo, na cidade:

Essa tolice de viver na honestidade


é lero-lero da ingenuidade
Faz pouco tempo
Que sou membro da quadrilha
E quase já sou dono da cidade
Café eu vendo caro
Escondo todo o trigo
Azeite é muito raro
Mas sei o seu abrigo

275
Frente à impossibilidade de uma cidade para todos, o caipira
– mobilizando o poder de barganha que lhe é atribuído por uma
economia predominantemente agrária – buscará tomá-la para
si. Os valores caros ao caboclo de Dino Franco e Nhô Chico, ao
serem descartados, propiciam o encontro desse caipira com seus
iguais, ainda que não seja na formação de um mundo comum,
mas sim de uma “quadrilha”. De forma irônica, Alvarenga e
Ranchinho denunciam a corrupção instaurada no espaço da
cidade. Mas, mais do que isso, alertam para o perigo de uma
inversão: o risco para a cidade e seu espaço público, quando
os homens do campo, valendo da brecha gerada pela corrup-
ção, se dispuserem a reproduzir na cidade os valores privados
que fazem valer no sertão. Frente à ausência de trigo, café, ou
azeite, a urgência da necessidade abre espaço para o domínio
de um sobre todos. Na canção “Dia de deputado”, Alvarenga
e Ranchinho alertam, mais uma vez, através do duplo sentido
atribuído, a letra “ó” – na época, título atribuído ao mais alto
grau do funcionalismo público:

Primeiro eu, depois os fio e a Rita


Vou arranjar pra eles tudo uma marmita
Deixa o povinho recramá como quizé
Minha famia vai comendo de cuié
Também daqui quando eu saí, pouco me importa
Minha famia vai ficar cheia da nota
Vô nomiá a minha sogra e a minha prima
Quero deixá as duas de “ó” pra cima.

NOTA

1
RIBEIRO. Da política da corrupção, p. 179.

276
REFERÊNCIAS
ALEM, João Marcos. Caipira e country: a nova ruralidade brasileira. Tese
– Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996.
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira
paulista e a transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Duas
Cidades, 1982.
CARVALHO, Maria Alice R. O samba, a opinião e outras bossas... na
construção republicana do Brasil. In: CAVALCANTE, Berenice; STAR-
LING, Heloisa M. M.; EISENBERG, José (Org.). Decantando a república:
inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. v. 1.
RIBEIRO, Renato Janine. Da política da corrupção. In: . A sociedade
contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
SANT’ANNA, Romildo. A moda é viola: ensaio do cantar caipira. São
Paulo: Unimar, 2000.
SOUSA, Walter de. Moda inviolada: uma história da música caipira. São
Paulo: QuironLivros, 2006.
SOUZA, Tárik de; ANDREATO, Elifas. Rostos e gostos da música popular
brasileira. Porto Alegre: L&PM, 1979.

CANÇõES CITADAS
ALVARENGA; RANCHINHO. Dia de deputado, 1937.
ALVARENGA; RANCHINHO. Canção do tubarão (paródia do tango
“Adiós muchachos”), 1937.
FRANCO, Dino; CHICO, Nhô. “Caboclo na cidade”, 1982.
FURTADO, Capitão. “O caipira é vosso amigo”, 1945.

277
Myrian Sepúlveda doS SantoS

Carnaval E polítiCa

Por carnaval compreendemos um conjunto de folias e brinca-


deiras que são realizadas nos três dias anteriores à quarta-feira de
cinzas. Estudiosos têm ressaltado, por um lado, que a linguagem
carnavalesca é formada por um conjunto de práticas capazes de
liberar emoções e transgredir hábitos constituídos, contribuindo,
dessa forma, para a renovação de estruturas herdadas. Por outro
lado, denuncia-se o uso e manipulação de manifestações
populares para que forças políticas e econômicas hegemônicas
se mantenham no poder.
Mikhail Bakhtin1 é uma forte fonte de inspiração para aqueles
que defendem o caráter emancipador de manifestações popu-
lares. Stallybrass e White2 recuperaram o tema recentemente
associando o carnaval a políticas transgressoras. As teorias
marxistas continuam influentes não só na denúncia do controle
político, como da alienação provocada pela indústria cultural.3
No Brasil, o carnaval foi inicialmente objeto de estudo de
jornalistas, memorialistas e pesquisadores diversos, que, a partir
de envolvimentos pessoais, procuraram registrar informações
sobre a festa e seus integrantes. História do Carnaval carioca,
escrito por Eneida de Moraes em 1957, foi pioneiro e ainda é
uma referência importante. Samba, de Alma Guillermoprieto,4 é
provavelmente a descrição do carnaval carioca mais conhecida
fora do Brasil.
A partir da década de 1970, investigações acadêmicas nos
campos da antropologia social e da história cultural deram
início a interpretações diversas sobre o significado das práticas
carnavalescas na construção do imaginário nacional e popular.
Investigam-se aspectos da estrutura social: relações raciais, explo-
rações de classe, subversão pela linguagem, resistência étnica,
bem como o entrelaçamento entre local e global na formação
de modelos diversos de identidade nacional.5
Em que pese a capacidade da linguagem carnavalesca de liberar
emoções e transgredir hábitos constituídos, vejamos com mais
detalhes como têm sido descritas, no Brasil, ao longo de sua
história, as relações entre práticas carnavalescas e poder político.
Durante o período colonial, o entrudo consistiu de práticas
herdadas dos costumes portugueses de molhar os transeuntes. Os
foliões jogavam laranjinhas e limõezinhos de cera cheios de água
perfumada, ou, ainda, grandes baldes e bacias de água em quem
passava. Polvilho, vermelhão e cal muitas vezes completavam
a festa. Embora o entrudo fosse comum a todos, havia aqueles
que utilizavam não só água, groselhas e tintas, mas caldos gordu-
rosos, lamas e águas sujas. Mais problemáticos eram os usos de
máscaras e capuzes para facilitar crimes e assassinatos. Apesar
dos registros policiais mostrarem proibições ao entrudo desde
1604, estas eram em grande parte ignoradas.
A partir de meados do século 19, o entrudo passou a ser criti-
cado por uma nova elite que tinha como modelo a vida cotidiana de
cidades como Veneza, Nice e Paris. O entrudo passou a ser associado
a práticas bárbaras, porcas e sujas. Novos hábitos e costumes re-
ordenaram o carnaval. Os “zé-pereiras” surgiram em meados do
século, mas logo desapareceram, pois também foram criticados
por falta de espírito e exibições grotescas. Grupos de portugueses
de várias gerações causavam um barulho ensurdecedor com a
batida de enormes bumbos e tambores. Os bailes de máscaras
realizados pelas famílias mais ricas e tradicionais em clubes e
teatros foram mais duradouros. No Rio de Janeiro, capital do
país, as “grandes sociedades” e os “ranchos” tomaram as ruas.
As primeiras reuniam em grandes carros alegóricos intelec-
tuais, poetas, romancistas e jornalistas, que jocosamente faziam

279
críticas à vida política e social do país. Mais tarde, associaram-se
aos desfiles mulheres com vestimentas sensuais. As “grandes
sociedades” foram atuantes politicamente e desempenharam um
papel de destaque nos movimentos abolicionistas e republicanos.
Os “ranchos”, por sua vez, eram constituídos por uma elite
negra de trabalhadores do cais do porto. Eles eram conhecidos
por sudaneses ou nagôs e se vinculavam à rede de solidariedade
formada nos terreiros de candomblé das tias baianas. Desfilavam
no chão, com fantasias luxuosas de reis e rainhas, lembrando as
procissões religiosas nordestinas. Ambas as agremiações, apesar
de organizarem manifestações de ruas, possuíam o controle sobre
seus membros e não eram abertas a todos os habitantes da cidade.
Durante o Império, apesar do aumento da repressão ao
entrudo, à capoeira e outras manifestações populares, a posição
das autoridades era dúbia. Tanto os monarquistas do Partido
Conservador como os republicanos do Partido Liberal usaram
os capoeiras para dissolverem os comícios e outras práticas
violentas. Em 1888, por exemplo, constituiu-se uma Guarda
Negra de ex-escravos, capoeiristas, e parte da marginalidade para
ser utilizada como tropa de choque contra os republicanos.6
Na República Velha, as leis se tornaram mais rígidas. Nos
anos de 1920, o carnaval da capital federal já se encontrava
totalmente diferenciado entre camadas sociais. As manifestações
das famílias mais tradicionais ocorriam nos bailes de máscaras;
nos desfiles de carros abertos, também chamado de “corso”; e
nos desfiles organizados pelas “grandes sociedades”. A população
mais pobre, em sua maioria negra, brincava nos “ranchos”; nos
“cordões”, agrupamento de populares mascarados; nos “blocos”,
grupos informais e temporários, que não tinham enredo, alegorias
ou fantasias luxuosas; e nas ruas da cidade.
As manifestações de rua de um modo geral foram perseguidas.
O Código Penal de 1890 trouxe uma série de leis voltadas para
a repressão daqueles acusados de vadiagem, alcoolismo, práticas
de capoeira e mendicância. Em 1895, o jogo do bicho, extrema-
mente popular, foi proibido por lei por ser considerado jogo de

280
azar. No Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, os capoeiristas,
identificados à desordem, passaram a ser presos e deportados
para locais distantes, sendo praticamente eliminados da vida
cotidiana destas cidades.7
Na capital da cidade, lado a lado ao moralismo, defendido
por autoridades e famílias tradicionais, crescia a vida boêmia e
noturna nas redondezas do cais do porto, onde se formavam os
músicos de orquestras, criadores de choros, maxixes e sambas.8
Malandros desafiavam a ordem vigente ao optarem pela vida
de biscates, mulheres e brigas; não aceitavam o trabalho assala-
riado de estiva, denunciado como sendo o confinamento dentro
da pobreza.9 Atraídos pela boemia encontravam-se também nos
bares do cais do porto poetas, intelectuais e representantes da
elite nacional.10
O surgimento do samba na Praça Onze, espaço público
dos trabalhadores informais e desocupados que ainda habita-
vam o centro da cidade, é objeto de estudo de diversos autores.
No carnaval, lá se encontravam os “ranchos” e os blocos que
vinham de bairros como Madureira e Oswaldo Cruz, que haviam
crescido a partir da expulsão da população de baixa renda do
centro da cidade.11
Segundo o historiador José Murilo de Carvalho,12 a relação
entre cidade e Estado ocorria, nesta época, pela oposição, como
no caso de anarquistas e movimentos operários; pela apatia, através
de festas religiosas e diversas associações de auxílio mútuo exis-
tentes na época e pela composição com elementos contraventores.
O jogo do bicho, por exemplo, como era proibido, era objeto
não só de tolerância, mas de conluio entre autoridades policiais
e contraventores, ligação esta que se tornou popularizada em
1917 na estrofe de “Pelo telefone”, primeiro samba gravado no
Brasil, de Donga e Mauro de Almeida: “O chefe de polícia/Pelo
telefone/Mandou me avisar/Que na Carioca/Tem uma roleta/
Para se jogar...”.
O surgimento de práticas carnavalescas que se espelhavam
na Europa acompanhado de manifestações populares, que as

281
copiavam, mantendo aspectos próprios de sua cultura, começou
no Rio de Janeiro e se expandiu para os demais estados. Apesar
da influência exercida pelos hábitos ditados pela capital, que, mais
tarde, controlou até mesmo a programação das rádios nacionais,
as práticas carnavalescas se diferenciaram. Em São Paulo, os
imigrantes e os negros construíram manifestações próprias.13 Em
Recife, o frevo – passo e música – tomou as ruas da cidade na
virada do século, sendo o passo dos antigos capoeiras associado
a músicos de orquestras. Recentemente, com o fortalecimento de
práticas multiculturais, tanto o frevo como o axé baiano, de meados
da década de 1970, deixam de ser referências de esferas locais e
tornam-se marcas culturais da nação.14
Paralelamente à mudança de hábitos, recrudesciam as restri-
ções legais e policiais aos festejos carnavalescos dos mais pobres.
Cordões e blocos eram perseguidos e o uso de máscaras à noite
tornou-se proibido.15 Os “ranchos” escaparam da repressão e
continuaram a se concentrar na Praça Onze, próxima ao mangue
e à zona do meretrício do Rio de Janeiro. Eles não só eram mais
organizados como tiveram entre seus dirigentes oficiais da polícia
e cronistas carnavalescos que lhes garantiram legitimidade.
Na década de 1930, a partir do apoio de Pedro Ernesto,
interventor de Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, as escolas de
samba, que anteriormente se confundiam com os blocos de rua,
se consolidaram no cenário cultural da cidade e do país. A Praça
Onze, centro das batucadas dos moradores dos morros e da peri-
feria, tornou-se reconhecida nacionalmente. é grande o número
de trabalhos que mostra como, de manifestações perseguidas e
realizadas em fundos de quintais, as escolas de samba adquiriram
o direito de integrarem-se ao carnaval oficial da cidade.16
O governo de Vargas se caracterizou pelo autoritarismo e
controle social, que se fez com apoio da população, assimilada
através da regulamentação de códigos trabalhistas e melhorias
nas áreas de educação e saúde. Embora a política desenvolvida
por Vargas e seus interventores com relação a trabalhadores
informais, malandros e desocupados seja pouco estudada, ela

282
também cumpriu um papel importante na estabilidade social
alcançada pelo governo. Em diversos momentos as agremiações
carnavalescas foram fortalecidas pelo Estado para se contrapo-
rem às antigas associações influenciadas por comunistas e grupos
contrários ao governo.17
A prática da capoeira foi legalizada em 1932. Os sambistas
tiveram seu espaço regulamentado e oficializado à custa de
compromissos diversos com o governo. Pedro Ernesto reduziu
os empréstimos externos, ao mesmo tempo em que regulamentou
o jogo dos cassinos, conseguindo, com isso, verbas para a pre-
feitura. Dois anos após a oficialização das escolas de samba, a
polícia do Estado Novo fechou os bordéis da Lapa e começou a
reprimir de forma violenta a prostituição e todos os que ficaram
de fora de seu controle imediato. Esta ordenação da desordem
cooptou alguns e desagradou a outros, que denunciavam que o
samba não tivera sorte na República Nova, pois o carnaval, o
samba, o choro, o rancho e o bloco, todos foram oficializados.18
Em setembro de 1933, os sambistas fundaram a União das
Escolas de Samba (UES), passando com isso a ter uma organi-
zação centralizada, com regulamentos próprios e representantes
que respondiam pelas escolas junto à prefeitura. Em carta ao
prefeito, a UES declarava sua intenção de procurar imprimir
o cunho da brasilidade na verdadeira música nacional.19 Em
janeiro de 1934, as escolas de samba participaram de uma festa
em homenagem a Pedro Ernesto no Campo de Santana. Neste
mesmo ano, o processo eleitoral foi aberto e Pedro Ernesto
elegeu-se prefeito com facilidade. Uma simbiose ocorria entre
as autoridades e a malandragem, trocando-se o uso da violência
dos desocupados por sua participação direta no apoio político.
O apoio direto do Estado às escolas de samba, através de subsí-
dios e prestígio, manteve-se até a década de 1950, considerada pelos
mais tradicionais como sendo sua época de ouro. Os desfiles assu-
miram uma posição destacada no carnaval carioca mantendo como
características principais os grandes sambas-enredo, fantasias e
alegorias de mão muito simples, e ausência de carros alegóricos.

283
Nos anos de 1960, o surgimento de novas camadas urbanas
com grande potencial consumidor e lemas nacionalistas apoiados
na ideia de modernização e progresso modificaram o perfil das
escolas de samba, que se tornaram cada vez mais caras, inviabi-
lizando o pacto populista. O Estado não teve mais condições de
financiar a festa. No Rio de Janeiro, em 1957, as escolas de samba
deixaram a Praça Onze e passaram à Avenida Rio Branco, onde
conseguiram, em 1962, arquibancadas. O desfile passou a ser
financiado pela venda de ingressos às arquibancadas. Em 1965
o desfile foi transferido para a Avenida Presidente Vargas. Simul-
taneamente ao crescimento das arquibancadas, intelectuais e
artistas assumiram, inicialmente no Salgueiro e posteriormente
nas demais escolas, os postos de produtores culturais dos desfiles,
construindo nova estética e horizontes para o carnaval carioca.20
Nos anos de 1970, apesar da criação da RIOTUR, empresa
de turismo do governo que investia no carnaval, os desfiles de
escola de samba passaram a contar com o investimento dos
banqueiros do jogo de bicho de forma sistemática. Embora os
“donos” do jogo apoiassem as escolas de samba, desde seus
primórdios, como é bem conhecido o caso de Natal da Portela,
foi no período da ditadura militar, em que a repressão política
se exercia de forma grotesca, que eles entraram no cenário do
samba como grandes patrocinadores. O jogo do bicho fora
proibido em 1946 e havia crescido muito como organização
ilegal. Na década de 1970, os banqueiros tornaram-se patronos
de clubes de futebol, escolas de samba e obras sociais, dando às
comunidades o apoio que seria esperado do Estado. Fizeram de
escolas pequenas como Mocidade Independente de Padre Miguel
e Beija-Flor de Nilópolis grandes campeãs e foram idolatrados.
Receberam de suas comunidades reconhecimento, que foi nego-
ciado em forma de voto com políticos, que lhes deram em troca
a permissão da ilegalidade e o direito de lavar abertamente o
dinheiro obtido no jogo. Não houve dessa vez uma legalização
da contravenção, como no período de Getúlio, mas uma política
clientelista, em que políticos usufruíam dos votos populares a

284
partir da intermediação da contravenção.21 Esta situação foi
modificada novamente na década seguinte.
Em 1984, o governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola,
investiu na construção de uma passarela e arquibancadas fixas,
o Sambódromo, e incentivou a criação da Liga Independente
das Escolas de Samba (LIESA), sociedade civil sem fins lucra-
tivos, constituída pelos representantes das 10 maiores escolas
do chamado grupo especial. A nova organização separou-se da
antiga Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro
(AESRJ), abrindo caminho à privatização dos lucros dos desfiles.
A RIOTUR vendeu à Liga o direito de administração e controle
dos desfiles, que envolve a venda dos ingressos, comercialização
e merchandising dos espaços da avenida, direitos sobre imagem,
e redução do Imposto Sobre Serviços (ISS). A nova organização
fundou sua própria gravadora, usufruindo o lucro das milhões
de cópias do disco que são vendidas com os sambas-enredo das
escolas. Este poderia ter sido um passo importante para que as
organizações carnavalescas conquistassem sua independência
tanto do poder do Estado como do controle dos banqueiros do
bicho. Não foi o que aconteceu.
Mais uma vez, a imposição do alto custo dos desfiles
pelos contraventores e a fragmentação e deterioração de laços
comunitários entre os integrantes das escolas de samba torna-
ram impossível para moradores de favelas e bairros populares
o controle da festa. A Liga ficou nas mãos dos banqueiros de
bicho, que ratificaram seu controle sobre as escolas de samba. Os
presidentes da LIESA foram, entre outros, Castor de Andrade, da
Mocidade Independente de Padre Miguel, com pontos de jogo
do bicho em Bangu, Padre Miguel e Campo Grande, conhecido
como o homem mais processado do Brasil; Aniz Abraão David,
ex-diretor da Beija-Flor de Nilópolis, com pontos em Nilópolis
e Nova Iguaçu, e Aílton Guimarães Jorge, o Capitão Guima-
rães, apontado como sendo um dos mais poderosos chefes da
contravenção.22

285
A criação da LIESA reforçou o poder dos banqueiros de
bicho, que não necessitam mais negociar sua entrada na legali-
dade com políticos ávidos por votos. Além disso, a participação
das comunidades populares diminuiu drasticamente, crescendo
em contrapartida a participação dos foliões carnavalescos de
maior poder aquisitivo que participam dos desfiles através da
compra de fantasias ou de ingresso nos camarotes. Em maio de
1993, pela primeira vez na história da cidade, 13 banqueiros
do bicho foram colocados na prisão por formação de quadrilha
e bando armado. Em 1996 eles receberam indulto e liberdade.
Atualmente, a disputa sobre o controle da festa não se dá mais
com o Estado. é notório o crescimento do controle do tráfico
de drogas não só sobre favelas e grandes regiões do Rio, mas
também sobre as escolas de samba.

NOTAS
1
BAKHTIN. Rabelais and his world.
2
STALLYBRASS; WHITE. The politics and poetics of transgression.
3
ADORNO; HORKHEIMER. The dialectic of enlightenment.
4
GUILLERMOPRIETO. Samba: the making of Brazilian carnival.
5
DA MATTA. O carnaval como rito de passagem; DA MATTA. Carnavais,
malandros e heróis; DA MATTA. universo do carnaval: imagens e reflexões;
RODRIGUES. Samba negro, espoliação branca; QUEIROZ. Carnaval brasileiro:
o vivido e o mito; SOIHET. A subversão pelo riso; VON SIMSON. Carna-
val em branco e negro: carnaval popular paulistano, 1914-1988; NURSE.
Globalization and Trinidad carnival: diaspora, hybridity and identity in global
culture; RAHIER. Representations of blackness and the performance of identity;
e ASSUNÇÃO. Resgatando o carnaval de rua: a fuzarca maranhense contra a
homogeneização nacional-global.
6
SOARES. A negregada instituição: os capoeiras na corte imperial (1850-1890).
7
SOARES. A negregada instituição: os capoeiras na corte imperial (1850-1890).
8
TINHORÃO. Pequena história da música popular: da modinha à canção de
protesto; VIANNA. O mistério do samba.
9
MATOS. Acertei no milhar: samba e malandragem no tempo de Getúlio.
10
PEREIRA. O carnaval das letras.
11
ALVARENGA. Música popular brasileira; EFEGÊ. Ameno Resedá, o rancho
que foi escola; TINHORÃO. Pequena história da música popular: da modinha

286
à canção de protesto; MOURA. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro;
VIANNA. O mistério do samba.
12
CARVALHO. Os bestializados.
13
VON SIMSON. Carnaval em branco e negro: carnaval popular paulistano,
1914-1988.
14
ARAúJO. Festas: máscaras do tempo. Entrudo, mascarada e frevo no carnaval
do Recife; TELES. Do frevo ao manguebeat; DINIZ. Almanaque do carnaval:
a história do carnaval, o que ouvir, o que ler, onde curtir.
15
PEREIRA. O carnaval das letras; AUGRAS. O Brasil do samba-enredo.
16
JóRIO; ARAúJO. Escolas de samba em desfile; GOLDWASSER. O palácio
do samba: estudo antropológico da Escola de Samba Estação Primeira de Man-
gueira; e CABRAL. As escolas de samba: o quê, que, como, quando e por quê;
CABRAL. No tempo de Almirante: uma história do rádio e da MPB.
17
GAWRYSZEWSKI. Administração Pedro Ernesto: Rio de Janeiro (DF) 1931-
1936; AUGRAS. O Brasil do samba-enredo.
18
GUIMARÃES. Na roda do samba, p. 111-112.
19
AUGRAS. O Brasil do samba-enredo, p. 92.
20
COSTA. Salgueiro, Academia do Samba.
21
CHINELLI; SILVA. O vazio da ordem: relações políticas e organizacionais entre
as escolas de samba e o jogo do bicho.
22
CHINELLI; SILVA. O vazio da ordem: relações políticas e organizacionais
entre as escolas de samba e o jogo do bicho; CASTRO. Carnaval carioca: dos
bastidores ao desfile; SANTOS. Mangueira e Império: A carnavalização do poder
pelo samba.

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289
Maria r i ta KeHl

rESSEntimEnto

A TOLERâNCIA COM A CORRUPÇÃO


CORROMPE A SOCIEDADE INTEIRA
Os políticos de esquerda parecem se sentir injustiçados
quando seus eleitores manifestam mais indignação diante das
notícias de corrupção em seus partidos do que diante da cor-
rupção entre os conservadores. Não há razão para espanto. As
grandes decepções são diretamente proporcionais às grandes
esperanças. A corrupção praticada por políticos conservadores,
cujos interesses individuais confundem-se com os interesses das
classes dominantes, não é novidade para o eleitor de esquerda:
nestes casos, a revelação de ocorrências de corrupção acende as
consciências, estimula a vontade de virar o jogo e acirra a fé na
ação política.
Mas quando se revela que um político, eleito a partir de
compromissos com interesses populares, agiu em interesse próprio,
desviou dinheiro público, favoreceu amigos e parentes, traiu sua
plataforma – a sociedade fica desnorteada. A corrupção, como
percebeu a psicanalista Marion Minerbo, fratura o campo simbólico:1

Quando o representante emblemático de uma instituição (...) sus-


tenta, simultaneamente, uma lógica privada e outra ligada a interesses
pessoais, as duas se corrompem. (...) Há uma fratura do símbolo. O
juiz deixa de simbolizar a Justiça. [Porém] o laço simbólico fraturado
tende a se refazer, ligando o mesmo significante a um novo significado.
Por exemplo, o significante “Justiça” pode agora ligar-se ao significado
“terminar em pizza”.
Ao caixa dois do dinheiro corresponde uma espécie de caixa
dois da linguagem, em que o sentido de alguns significantes que
representam vetores da ordem social passa a ser utilizado em um
sentido oposto, com a cumplicidade dos falantes.
Dessa forma, a indignação inicial pode rapidamente descambar
em autorização cínica para a falta de ética generalizada, em
todos os níveis: “ou restaura-se a moralidade...”. O psicanalista
Hélio Pellegrino foi sensível a esta patologia social brasileira
que incorpora a corrupção como um paliativo, um “mal menor”
provocado pelas fragilidades do sistema. Se os policiais, por
exemplo, aceitam propina dos criminosos porque ganham pouco,
“é porque o sistema conta com a corrupção para remediar o pro-
blema”. Dessa forma, inevitavelmente, escreve Hélio: “o sistema
se alia à delinquência.”2
Se os governantes, que ocupam o lugar simbólico do “pai”,
colocam-se acima da Lei, a violência tende a se disseminar por
toda a sociedade. Do ponto de vista da psicanálise freudiana, a
Lei simbólica exige que todos os membros de um grupo social
renunciem a uma parcela de gozo individual em nome do bem
comum. Os poderosos que se imaginam acima da Lei estão
contribuindo, ainda que inadvertidamente, para desmantelar a
própria ordem que os sustenta. A apropriação privada dos bens
públicos covalida a norma selvagem do “cada um por si”, e dessa
forma lança a sociedade toda diante do cenário ameaçador de
uma luta de todos contra todos.
No Brasil, em 2005, a chamada “crise do mensalão” mobilizou
contra o governo do PT sentimentos de desilusão e revolta mais
dramáticos do que contra outros partidos que, agora ou em outros
tempos, tenham se revelado corruptos. Afinal, o PT elegeu-se sob
a bandeira da transparência, do respeito ao bem público, que não
é outra senão a bandeira da democracia verdadeira, exercida em
nome do povo. é compreensível que, quando o governo eleito
em nome da esperança e da transformação se revela tão corrupto
quanto os outros, o cinismo suceda a decepção e a perplexidade
iniciais. Se a corrupção passa a ser tolerada como uma fatalidade,

291
em nome de certo “realismo” político que inclui políticas de alian-
ças generalizadas, trocas de favores, oportunismo, fisiologismos
de toda ordem – a ação política se desmoraliza.

CORRUPÇÃO, FATALISMO E RESSENTIMENTO


O filósofo Walter Benjamin chamou de fatalismo a este
sentimento de insignificância que nos toma quando nos vemos
diante de forças que ultrapassam a aposta na política como via
de transformação. Chamamos de fatalidades as grandes catástrofes
naturais diante das quais o engenho humano pouco ou nada
pode. Chamamos de fatalistas aqueles que se conformam diante
do que consideram um destino inelutável. Fatum, fado, destino
fatal. Contra a fatalidade, nada se pode fazer. Mas contra os outros
desafios e reveses da vida, contamos com o quê? Com a coragem
e a criatividade. E acima de tudo, com a ação política.
Na sétima das teses sobre o conceito de história (1940), Walter
Benjamin escreveu que a melancolia fatalista, no quadro da luta
de classes, é provocada pela “empatia com os vencedores”.3 é
quando os derrotados abandonam sua perspectiva histórica,
fascinados pelo “cortejo triunfal” daqueles que os derrotaram.
Mesmo nos casos em que a sociedade esteja satisfeita com
os bons resultados da política econômica ou de certas políticas
sociais, a lógica da economia não pode prevalecer sobre a ética na
política. Um governo que não consegue sustentar nenhum preceito
simbólico superior aos interesses econômicos – ou o que é pior,
aos interesses corporativos e privados – lança a sociedade em
um cenário de “topa tudo por dinheiro” que põe em risco a
própria ordem social. Um governo que fecha os olhos para a falta
de ética, de decoro e de transparência em nome da governabili-
dade produz, na sociedade, efeitos ingovernáveis – além de uma
descrença generalizada na própria democracia.“Melhor seria que
os militares tomassem logo conta dessa baderna”, comentam os
que acreditam que a ordem seja tributária do autoritarismo e
ignoram que a suspensão dos direitos democráticos, a começar

292
pela liberdade de imprensa, favorece ainda mais a corrupção
em todos os níveis do aparelho de Estado. Além disso, como a
corrupção pode ocorrer, em menor ou maior grau, em todos os
níveis da sociedade, o recurso ao favorecimento e ao privilégio
individuais esvazia a dimensão do conflito e da negociação de
interesses entre as classes que oxigena e movimenta a vida social.
Os atos de corrupção ocorrem nos interstícios das relações
objetivas de poder, na contramão do sentido explícito das políticas
públicas e das destinações orçamentárias. O corrupto é parente
do perverso: alguém que se autoriza a gozar à margem da Lei.
Ou então, o que é ainda mais fascinante: é aquele que se autoriza
a inverter o sentido da Lei simbólica para incrementar seu gozo.
Quando a corrupção derrota o sentido transformador da ação
política, a identificação afetiva com os vencedores produz um
sentimento generalizado de que a sociedade se divide, não entre
classes, ou entre interesses e concepções de mundo divergentes,
mas entre espertos e otários. Melhor, então, estar do lado dos
espertos do que do outro lado, dos otários que acreditam no
trabalho, na força das organizações populares, no voto e na
consciência política como instrumentos de mudança social.
Devemos admitir, portanto, que a corrupção seduz. O seduzido,
como se sabe, é aquele que se deixa passivamente desviar de seu
caminho, fascinado pelo poder de gozo que o perverso exibe
diante dele. Nada garante que o coro indignado da sociedade
ante as cifras gigantescas da corrupção, ante as imagens de pa-
lacetes construídos com dinheiro público e carrões barganhados
como troco miúdo entre negociatas muito mais onerosas não seja
apenas a reação superficial de uma nação seduzida, tentando
esconder seu fascínio pelo sedutor.
O seduzido, ainda que não o perceba, acaba por ser cúmplice
do artifício sedutor que o vitima. Se não entendermos nosso
fascínio pela corrupção, nossa esperança de um dia nos locuple-
tarmos como “eles”, estaremos fadados ao ressentimento. Pois o
ressentido é justamente aquele que, por ignorar seu comprome-
timento, passivo ou ativo, com as causas de seu prejuízo, prefere

293
se colocar como vítima inocente de um mundo mau. O fascínio
que o corrupto produz no cidadão comum faz dele um cúm-
plice passivo da corrupção, a proclamar que tudo está perdido
enquanto murmura entre dentes: “se é assim, cadê o meu?”.
A corrupção, no Brasil, é tributária do que Sérgio Buarque
de Hollanda chamou de dominação “cordial” – a prevalência,
desde a colonização, dos valores da vida familiar sobre as leis
da polis. A dominação cordial produz uma sociedade ressentida;
ela infantiliza os cidadãos e enfraquece o impulso que deveria
conduzir ao exercício da emancipação.

O ressentimento social, no Brasil, é a expressão da frustração genera-


lizada diante do fracasso dessa delegação infantil de poder. é fruto da
covardia (...) que nos leva a recuar da tensão inevitável que perpassa
as relações entre as classes, em troca do gozo propiciado pelo modo
sensual de exploração dos corpos e aliciamento das consciências.4

O cidadão que se imagina puro, mas admite, com amargo


realismo, a corrupção, mascara sua cumplicidade e age como a
vestal apaixonada que se queixa de ter sido a vítima passiva de
seu sedutor. Ele negociou, inadvertidamente, seus interesses de
classe – relativos ao emprego justo do dinheiro público – na espe-
rança de que o caixa dois da corrupção um dia viesse a beneficiá-lo.
O ressentimento é o ponto de encontro entre essas duas correntes
psíquicas: de um lado, a cumplicidade inconsciente com o agravo;
de outro, a frustração por não ter se beneficiado dela.
O avesso do ressentimento seria a retomada do sentido da
ação política.

NOTAS
1
MINERBO. A lógica da corrupção: um olhar psicanalítico, p. 145.
2
PELLEGRINO. Os barões das biroscas, p. 178.
3
BENJAMIN. Sobre o conceito de história, p. 225.
4
KEHL. Políticas do ressentimento, p. 243.

294
REFERÊNCIAS
MINERBO, Marion. A lógica da corrupção: um olhar psicanalítico. Revista
Novos Estudos CEBRAP, v. 79, p. 139-150, nov. 2007.
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demônio. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. p. 177-180.
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lhidas. v. 1: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996.
Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. (1940),
KEHL, Maria Rita. Políticas do ressentimento. In: ______. Ressenti-
mento. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.

295
Seção III
quEStõES atuaiS
da Corrupção
corrupção e SIStemAS polítIcoS
Fernando FilgueiraS

marCoS tEóriCoS
da Corrupção

Escrever sobre uma teoria política da corrupção pode re-


presentar um grande equívoco teórico. Não há, na tradição do
pensamento político ocidental, consenso a respeito do que vem
a ser a corrupção. Não se pode, portanto, falar em uma teoria
política da corrupção, mas de diferentes abordagens deste
problema de acordo com fins normativos especificados em
conceitos e categorias.
Pensar uma teoria política significa construir conceitos que
permitam interpretar determinada realidade empírica. Contudo,
uma teoria política não se encerra apenas em seus conceitos, até
porque eles expressam mais do que a realidade e o contexto que
os cerca, concebendo, nesse sentido, um horizonte normativo, um
dever-ser que aponta um caminho para o qual a política deve
seguir.
Por isso Reinhart Koselleck,1 ao montar sua história dos
conceitos políticos, procurava aproximar o espaço de experi-
ência dos horizontes de possibilidades que a teoria procurava
expressar. Ou seja, o momento em que o pensamento político
promove sua reflexão, em que o peso do contexto histórico e dos
problemas práticos que especificam a aplicação dos conceitos
políticos associa-se a um horizonte de futuro traçado como ideal
normativo a se realizar mediante a teoria.
Dessa forma, pensar uma teoria política da corrupção não
significa pensar apenas as possibilidades descritivas dos conceitos
políticos, mas, também, o horizonte normativo que cada teoria
procura expressar, dados os problemas práticos que elas procuram
resolver. Montar um quadro da teoria política da corrupção,
portanto, significa pensar o modo como esse conceito foi pensado
e recebido ao longo do pensamento político, de acordo com o espaço
de experiência, no qual estas teorias foram produzidas, bem
como o horizonte de expectativas para o qual elas caminhavam.
Uma história completa do conceito de corrupção, nesse
sentido, necessita voltar à própria experiência dos antigos com
o tema. Todavia, dado o espaço deste texto, concentraremos o
problema na produção de uma teoria política do século 20, que
tomou o tema da corrupção como guia.
No século 20, as pesquisas sobre o tema da corrupção estão
organizadas a partir de duas grandes agendas. Ambas estão
circunscritas em espaços de experiência distintos, de acordo com
problemas práticos que as organizam. As agendas de pesquisa
sobre o tema da corrupção expressam opções por políticas, no
quadro internacional, marcando grandes paradigmas de cons-
trução do conceito e da prática da corrupção.
A primeira agenda de pesquisa está relacionada à teoria da
modernização que nasceu no contexto posterior à Segunda Guerra
Mundial, nos Estados Unidos. A teoria da modernização parte
de uma perspectiva evolucionista da sociedade, tomando como
pressuposto uma grande dicotomia entre tradição e moderni-
dade, a qual marca dois tipos de estrutura social, concebendo a
sociedade como tipos de organização que estão atrelados a um
processo de evolução.
As teorias da modernização procuram identificar na organização
dos países industrializados as variáveis sociais cuja mudança foi
essencial ao desenvolvimento, com o intuito de “facilitar” esse
processo nos países que ainda não concretizaram esse processo.2
A teoria da modernização aborda os processos de mudança social,
de acordo com a construção de instituições, tendo em vista
grandes dicotomias como rural e urbano, não industrializado e
industrializado, subdesenvolvidas e desenvolvidas. De um modo

300
geral, a corrupção está relacionada, de acordo com essa teoria,
ao subdesenvolvimento.
Para a teoria da modernização, a corrupção está correlacio-
nada aos processos de mudança social, representando momentos
de desfuncionalidade das instituições políticas, conforme o peso
da tradição nos processos de mudança.3 A mudança social repre-
senta estágios em que ocorre um problema de institucionalização,
em que as organizações da política criam contextos favoráveis
a um “comportamento de autoridades públicas que se desviam
das normas aceitas a fim de servir a interesses particulares”.4
A corrupção representa momentos de mau funcionamento das
organizações do sistema político, que criam sistemas de incentivo
para que esse tipo de comportamento se torne comum na política.
Estes momentos de mau funcionamento do sistema institucional
da política estão associados ao fato de as organizações do sistema
serem pouco adaptáveis às mudanças, simples, sujeitas à captura
por parte da burocracia do Estado e pouco coesas. Quando isso
ocorre, segundo Huntington, ocorre a corrupção na política.
Os processos de mudança social, por outro lado, podem ser
analisados pela relação entre custos e benefícios. Joseph Nye5
analisou os custos e os benefícios da corrupção, tendo em vista
os processos de mudança social em curso a partir do pós-guerra.
De acordo com este autor, a corrupção pode ser benéfica ao
desenvolvimento político, se ela for um instrumento para a for-
mação de capital privado, superação das barreiras burocráticas,
integração das elites políticas e de capacidade governamental.
Ela representa benefício à medida que colocar o país na rota
do desenvolvimento econômico e político. A corrupção pode
representar um custo, por outro lado, se suas consequências inci-
direm em descontrole e decadência da legitimidade. No limite,
a corrupção pode azeitar o desenvolvimento, desde que mantida
sob certo controle.
A teoria da modernização também aborda o problema da
corrupção a partir do plano da cultura política. A premissa é
que o desenvolvimento político está relacionado a um primado

301
da cultura sobre o político e o econômico.6 As diferenças cultu-
rais, do ponto de vista de pesquisas comparativas, mostram que
a corrupção é variável conforme o plano dos valores. De uma
maneira geral, a abordagem da cultura política afirma que os
países de tradição protestante tendem a ser menos corrompidos
do que os países de tradição católica, uma vez que o compor-
tamento daqueles tende a ser mais conducente à obediência de
normas do que o comportamento destes.7
Pensando a corrupção a partir dos processos de mudança
social, a teoria da modernização associa o mau funcionamento
do sistema político à ideia de subdesenvolvimento. Por outras
palavras, toma a modernidade capitalista como modelo descritivo
e normativo, reduzindo a narrativa da corrupção a uma narrativa
das sociedades capitalistas. A forma de se combater a corrupção,
seguindo o argumento dessa teoria, é adotar a visão de mundo
e as instituições dos países desenvolvidos, segundo os critérios
da modernidade capitalista.
A teoria da modernização fundou uma agenda de pesquisa
sobre o tema da corrupção no século 20. De alguma maneira,
foi superada quando da queda do Muro de Berlim, em que as
Ciências Sociais deixaram de considerar o mundo a partir de
grandes dicotomias. Nos anos de 1980, a Ciência Política
pretendeu converter-se em um estatuto científico distinto da
sociologia, em que não importam os elementos da estrutura
social, mas a ação dos agentes políticos conforme um jogo de
preferências por políticas.
Essa nova abordagem do tema da corrupção, iniciada com
o trabalho de Susan Rose-Ackerman,8 tornou-se hegemônica
nas Ciências Sociais, adotando as premissas da escolha racional
e do novo institucionalismo. Essa nova abordagem se tornou
hegemônica a partir da década de 1990, com o reconhecimento
dado por instituições multilaterais, que adotaram esse tipo de
perspectiva para defender um tipo de reforma do Estado, espe-
cialmente o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.

302
Assentada na teoria da escolha racional, essa abordagem da
corrupção está relacionada a uma nova agenda política, isto é, a
um novo espaço de experiência em que importam os elementos
para se pensar a reforma da política e da economia, conforme
os fins normativos da democracia e do mercado. é por esse fato
que a Ciência Política da corrupção se confunde com aborda-
gens econômicas, em que pesam mais as preferências individuais
dos agentes, conforme sua racionalidade e sua capacidade de
acumular utilidade, e os contextos de decisão que influenciam
essas preferências.
Desta forma, segundo Rose-Ackerman,9 a corrupção ocorre na
interface dos setores público e privado, de acordo com sistemas
de incentivo que permitem aos agentes políticos maximizarem
utilidade mediante suborno e propina. A corrupção está corre-
lacionada ao comportamento rent-seeking, mediante o qual os
agentes políticos tendem a maximizar sua renda privada. Essa
maximização de bem-estar está inserida dentro de um contexto
de regras determinadas e de uma renda fixada de acordo com
as preferências individuais.10
Os agentes buscarão a maior renda possível, dentro ou fora
das regras de conduta. O resultado é a transferência de renda
dentro da sociedade através da existência de monopólios e de
privilégios. A existência de monopólios e de privilégios no setor
público constitui um mercado político competitivo, no qual os
agentes lutam pela renda obtida, transferindo-a de outros grupos
sociais para si.11
Esta abordagem da Ciência Política chama a atenção para a
necessidade de reformas institucionais, visando à consolidação do
mercado e da democracia. Essas reformas partem do horizonte de
que os interesses devem estar relacionados a regras fixas para a
interação entre o público e o privado. As reformas institucionais
devem caminhar no sentido de restringir os sistemas de incentivo
à corrupção, minimizando o papel das burocracias estatais no
desenvolvimento.12

303
As reformas partem da necessidade de diminuir o papel das
burocracias, porquanto minimizem os monopólios existentes,
restringindo a cobrança de subornos e a presença da propina.
Do ponto de vista das reformas institucionais para o combate
à corrupção, a mudança deve ser realizada entre os sistemas
de incentivo e a eficiência burocrática.13 Por outras palavras,
não cabe às reformas institucionais reforçar o poder da
burocracia, uma vez que estas reformas resultariam em maior
discricionariedade e em maior incentivo para o pagamento de
propina e de suborno, ou seja, em ampliação das práticas de
corrupção. No aspecto formal, que representa um consenso
entre analistas ligados a teorias neoinstitucionalistas, a prática de
corrupção não é coibida mediante reforço do poder burocrático,
mas pelo fomento do mercado.14
O ponto comum à teoria da modernização e às abordagens
neoinstitucionalistas da corrupção é a consideração dos sistemas
de incentivo, concebendo a corrupção a partir de uma antro-
pologia dos interesses, fazendo com que a teoria política esteja
alicerçada em uma teoria econômica.15 Ao considerar apenas os
sistemas de incentivo, a teoria política abandona uma perspectiva
moral do problema da corrupção.
Além disso, é fato que a teoria política da corrupção está
relacionada a fins normativos. A abordagem contemporânea, de
viés neoinstitucionalista, toma a democracia e o mercado como
horizontes fundamentais, em que a corrupção esteja relaciona-
da a delinquências políticas praticadas conforme os sistemas
de incentivo existentes. O limite dessas teorias é desconsiderar
a dimensão dos valores e os traços culturais que organizam a
própria ideia de corrupção.
Acreditamos que a concepção econômica da política demo-
crática cria uma miopia teórica a respeito da corrupção. é funda-
mental compreender que a linguagem da economia colonizou
o discurso político, fazendo com que a teoria e a prática da
política sejam exclusivamente as articulações dos interesses em
uma lógica de competição e cooperação de atores racionalmente

304
orientados pelos fins. O resultado é a naturalização do conceito
de corrupção pela lógica dos interesses e de seus equivalentes
funcionais delimitados pelo Direito, além do fato de se cobrar
da política a transparência nas relações entre Estado e sociedade.
A corrupção é um conceito fugidio na política, porque depende
de concepções normativas a respeito das próprias instituições
sociais, em que pesem, dessa forma, os valores que definem a
própria noção do que vem a ser o interesse público. Ao contrário
do que aponta a perspectiva hoje hegemônica sobre a corrupção,
a definição de seu conceito depende de um apelo a valores e
normas bem fundamentados no espaço da política. Afinal, não
se pode definir o que é a corrupção sem o recurso a valores e
normas pressupostos.

NOTAS
1
KOSELLECK. Futuro passado.
2
EISENSTADT. Modernização e mudança social.
3
HUNTINGTON. A ordem política nas sociedades em mudança.
4
HUNTINGTON. A ordem política nas sociedades em mudança, p. 72.
5
NYE. Corruption and political development: a cost-benefit analysis.
6
ALMOND; VERBA. The civic culture. Political attitudes and democracy in five
nations.
7
LIPSET; LENZ. Corrupção, cultura e mercados.
8
ROSE-ACKERMAN. Corruption and government. Causes, consequences, and
reform.
9
ROSE-ACKERMAN. Corruption and government. Causes, consequences, and
reform.
10
KRUEGER. The political economy of rent-seeking.
11
TULLOCK. The welfare costs of tariffs, monopolies and theft.
12
BARDHAN. The economists approach, to the problem of corruption.
13
ANECHIARICO; JACOBS. The persuit of absolute integrity. How corruption
control makes government ineffective.
14
ROSE-ACKERMAN. Corruption and government. Causes, consequences, and
reform.
15
Ver, a esse respeito, o ensaio “Interesses”.

305
REFERÊNCIAS
ALMOND, Gabriel; VERBA, Sidney. The civic culture. Political attitudes
and democracy in five nations. Princeton: Princeton University Press, 1963.
ANECHIARICO, Frank; JACOBS, James. The persuit of absolute integrity.
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University of Chicago Press, 1996.
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KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto/
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ROSE-ACKERMAN, Susan. Corruption and government. Causes, conse-
quences, and reform. New York: Cambridge University Press, 1999.
TULLOCK, Gordon. The welfare costs of tariffs, monopolies and theft.
Western Economic Journal, n. 5, 1967.

306
FÁt i M a a n a S ta S i a
luCiana S a n ta n a

SiStEma polítiCo 1

INTRODUÇÃO
O caso dos cartões corporativos2 é apenas o mais recente de
uma sucessão de escândalos que pipocam na política brasileira
desde a redemocratização. De Collor a Lula, a lista é extensa:
Anões do Orçamento, CPI do Banestado, Bingos, Colarinho
Branco, Propinoduto, Precatórios, Emenda da reeleição, Correios,
Mensalão, Mensalinho, Sanguessugas, Ambulâncias, entre outros.
Segundo Norberto Bobbio,3 escândalo é a corrupção que vem
a público. Portanto, se há corrupção, que haja escândalos! Dar
publicidade à corrupção é sinal de robustez e não de fragilidade
do sistema político.
A corrupção pode (e deve) ser estudada em suas conexões com
o processo decisório. Alessandro Sartori4 afirma que toda decisão
política5 produz riscos externos que afetam aqueles obrigados a
consumir a decisão da qual não participaram: riscos de tirania,
incompetência e corrupção.
Portanto, a corrupção – uso do bem público, ou da coisa
pública, para a realização de interesses privados – é um dos
riscos externos envolvidos em decisões políticas que pode afetar
negativamente a operação e os resultados dos sistemas políticos.
Que fatores favorecem a corrupção? Pode-se afirmar que, nas
democracias, ali onde há déficits de representação e de accoun-
tability, há maiores chances de corrupção. Uma vez em marcha,
a corrupção pode contribuir para a diminuição dos graus de
representação, de accountability e de legitimidade da ordem
democrática. Este texto propõe-se a discutir alguns determinantes
da corrupção e seus efeitos sobre o sistema político.

ORDEM POLíTICA E CORRUPÇÃO


Sabe-se que a corrupção é um fenômeno complexo e de
múltiplas determinações. Muitos autores apontam a cultura po-
lítica como importante variável explicativa para sua ocorrência
e disseminação em determinadas sociedades: os costumes, de
Tocqueville, e a virtude (amor ao bem público), de Montesquieu,
são dois conceitos de grande centralidade para o exame das
conexões entre a ordem democrática e seus princípios.6 Para
Montesquieu, a decadência de uma ordem política resulta da
corrupção de seu princípio.
Mas quando e por que se corromperia o princípio de determi-
nada ordem política? Seguindo Bobbio,7 a democracia será aqui
definida como um conjunto de regras do jogo que organizam
o exercício do poder público em público: o poder público é
aquele que busca a realização do interesse público, em uma clara
contraposição à clássica noção de tirania, referida à apropriação do
espaço público por interesses privados. A consecução do interesse
público, por sua vez, só ocorrerá se e onde o poder for exercido
em público e passível de ser publicamente controlado. Assim,
para Bobbio, a democracia é o conjunto das regras de um jogo
responsivo ao interesse público e responsável perante ele. Vale
ressaltar, ademais, que uma das condições da responsividade é,
exatamente, a responsabilidade.
O exercício do poder público em público, portanto, estaria
ameaçado sempre que tais regras do jogo (as instituições políti-
cas) não organizassem as condições requeridas para o exercício
da responsividade e da responsabilidade política. Nas demo-
cracias representativas, a responsividade e a responsabilidade
estão fortemente associadas às capacidades dos diferentes atores
políticos em interação:

308
1) capacidades dos cidadãos de vocalizarem suas demandas
e de as inscreverem na agenda pública;
2) capacidades dos representantes eleitos de traduzirem tais
demandas em políticas públicas;
3) capacidades da burocracia pública8 de traduzir tais polí-
ticas em resultados concretos;
4) capacidades dos governados de reconstituir a cadeia causal
que liga demandas a políticas e essas aos resultados e
de atribuir responsabilidades aos governantes por seus
atos e por suas omissões.
Onde tais capacidades estiverem atrofiadas, as chances de
corrupção estarão aumentadas. Parafraseando Sartori,9 capaci-
dades democráticas e corrupção variam inversamente. Mantidas
constantes as demais condições, as capacidades democráticas
variam em função das instituições políticas existentes.
Como mencionado anteriormente, resultado e expressão
de déficits democráticos, a corrupção, uma vez instalada na or-
dem política, pode acionar o gatilho de um círculo vicioso que
alimenta tais déficits e redunda na corrupção da ordem política
e em sua decadência.
Para além dos muito debatidos efeitos econômicos da cor-
rupção,10 são devastadoras as suas consequências na dinâmica
política das sociedades democráticas: a corrupção acarreta a
corrosão da obediência política e alimenta a substituição do
civismo pelo cinismo.11 Ademais, a corrupção promove a erosão
das bases da confiança (trust – Locke) e dos fundamentos da par-
ticipação democrática12 e afasta a ordem política da consecução
do interesse público.13
A corrupção se instala sempre e quando interesses privados
se apropriam de bens públicos e o faz ali onde os governantes
podem agir em segredo, ou omitir-se. Sumariando o argumento
desenvolvido até aqui: Déficits democráticos → corrupção na
ordem política → maiores déficits democráticos → corrupção
da ordem política. Como quebrar esse círculo vicioso?

309
INSTITUIÇõES POLíTICAS
CONTRA A CORRUPÇÃO

Se for verdade, como afirma Montesquieu,14 que o princípio


da democracia é a virtude, entendida como o amor ao bem
público, sabe-se, desde Locke, que não se pode esperar que
todos os indivíduos sejam virtuosos o tempo todo. Ali onde a
virtude for escassa é preciso aumentar os custos da corrupção,
organizando instituições que facultem aos cidadãos o controle
público do exercício do poder e que impeçam os governantes de
apagar seus rastros.15 Ou seja, é preciso construir instituições
mais conducentes à produção da responsividade e da respon-
sabilidade políticas.
As instituições políticas podem contribuir para combater a
corrupção em duas frentes:
1) podem reforçar o princípio da virtude cívica, por meio da
promoção de incentivos à participação política e de ferra-
mentas que facultem a interação entre arenas participativas
e representativas, diminuindo a assimetria informacional
entre representantes e representados;
2) podem ser dissuasórias relativamente à prática da corrup-
ção, através da organização de mecanismos que aumentem
a publicidade dos atos e das omissões dos governantes
ou através da efetivação de instrumentos de punição que
tornem proibitivos os custos da corrupção e incertos os
seus benefícios.
Para produzir tais efeitos, as instituições políticas devem estar
organizadas de forma a possibilitarem o exercício continuado do
controle dos governantes pelos governados, transformando a demo-
cracia, para a maioria dos cidadãos, em um jogo iterativo, jogado
em múltiplas arenas e em contextos decisórios contínuos.16
Isso requer, ademais dos mecanismos de accountability
horizontais (checks and balances), a institucionalização de instru-
mentos que facultem o exercício do controle público (accounta-
bility vertical) dos governantes pelos governados nos interstícios

310
eleitorais,17 como, por exemplo, as Comissões de Participação
Popular, em casas legislativas, ou os Conselhos Temáticos de
Políticas Públicas, vinculados ao Poder Executivo.

NOTAS
1
Agradecemos os comentários e sugestões de Mônica Mata Machado de Castro,
Carlos Ranulfo Melo, Felipe Nunes dos Santos e Raquel Novais Reher.
2
Trata-se de cartões de crédito, criados para cobrir gastos da administração go-
vernamental, que foram indevidamente usados para cobrir despesas particulares.
3
BOBBIO. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo; BOBBIO.
Elogio da serenidade e outros escritos morais.
4
SARTORI. A teoria da democracia revisitada.
5
Para Sartori, decisão política é toda decisão coletivizada que, ademais, é soberana,
sancionável e inescapável (SARTORI. A teoria da democracia revisitada).
6
“Entre a natureza do governo e seu princípio, há esta diferença: sua natureza é
o que o faz ser como é, e seu princípio é o que o faz agir. A primeira constitui
sua estrutura particular e, a segunda, as paixões humanas que o movimentam.”
(MONTESQUIEU. O espírito das leis, p. 57)
7
BOBBIO. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo.
8
A possibilidade de autonomização das burocracias públicas, facultando-lhes agir
em nome de seus próprios interesses, é um dos fatores que propicia a prática
da corrupção. A superposição de responsabilidades em diferentes organismos
do governo, regras obscuras e falta de coordenação política e gerencial do Estado
levam a uma grande discricionariedade dos funcionários públicos.
9
Para Sartori, toda decisão política produz custos internos e riscos externos, que
variam inversamente quando considerada exclusivamente a variável número de
tomadores de decisão (SARTORI. A teoria da democracia revisitada).
10
Há muitas e interessantes análises sobre os custos da corrupção e seus efeitos
perversos sobre o desempenho econômico de vários países. O Banco Mundial
estima que a corrupção possa reduzir a taxa de crescimento de um país entre 0,5
e 1 pontos percentuais por ano. O investimento em países com alta percepção
de corrupção é aproximadamente 5% menor do que os países que apresentam
melhores índices. No Brasil, as irregularidades no setor público retiram da socie-
dade brasileira 0,5% do PIB. Ou seja, cerca de R$ 10 bilhões por ano (SILVA.
A economia política da corrupção). Assim, a corrupção afeta o desempenho
da economia, tanto do ponto de vista estático como dinâmico: desestimula o
investimento privado; afeta negativamente a competitividade do país, ao elevar o
custo do investimento produtivo e tornar o ambiente de negócios menos estável;
reduz a produtividade do investimento público; afeta negativamente a eficiência
da administração pública; diminui a efetividade do gasto social; gera uma perda
de arrecadação tributária ao incentivar, em muitos casos, a sonegação de impos-
tos e leva a uma má alocação de recursos públicos (MAURO. Corruption and
growth; MAURO. Os efeitos da corrupção sobre crescimento, investimentos e

311
gastos do governo: uma análise de países representativos; TANZI. Corruption
around the world: causes, consequences, scope and cures; ROSE-ACKERMAN.
Corruption and goverment. Causes, consequences and reform.
11
REIS; CASTRO. Democracia, civismo e cinismo.
12
REIS; CHEIBUB. Pobreza, desigualdade e consolidação democrática.
13
Vale citar, a título de exemplo, os custos das campanhas eleitorais no Brasil e
suas repercussões no exercício dos mandatos.
14
MONTESQUIEU. O espírito das leis.
15
ARNOLD. The logical of congressional action.
16
ANASTASIA. Teoria democrática e o novo institucionalismo.
17
ANASTASIA. Teoria democrática e o novo institucionalismo.

REFERÊNCIAS
ANASTASIA, Fátima. Teoria democrática e o novo institucionalismo.
Cadernos de Ciências Sociais, PUC-Minas, v. 8, n. 11, dez. 2002.
ANASTASIA, Fátima; MELO, Carlos Ranulfo Félix de; SANTOS, Fabiano.
Governabilidade e representação política na América do Sul. São Paulo: Edi-
tora UNESP; Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer Stiftung, 2004.
ARNOLD, R. Douglas. The logic of congressional action. New Haven:
Yale University Press, 1990.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do
jogo. São Paulo: Paz e Terra, 1986.
BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais. Tradução
de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
CADERNOS ADENAUER 10: Os custos da corrupção. São Paulo: Fun-
dação Konrad Adenauer, dez. 2000.
MAURO, Paolo. Corruption and growth. The Quarterly Journal of Economics,
p. 681-712, ago. 1995.
MAURO, Paolo. Os efeitos da corrupção sobre crescimento, investimentos
e gastos do governo: uma análise de países representativos. In: ELLIOTT,
Kimberly Ann (Org.). A corrupção e a economia global. Brasília: Ed. UnB,
2002.
MONTESQUIEU. O espírito das leis. Brasília: Ed. UnB, 1982.
PARKER, Norma et al. La corrupción en América Latina: estudio analítico
basado en una revisión bibliográfica y entrevistas. Proyecto de rendición
de Cuentas y anti-corrupción en las Américas, 2004.

312
PRZEWORSKI, Adam; STOKES, Susan C.; MANIN, Bernard (Ed.).
Democracy, accountability, and representation. New York: Cambridge
University Press, 1999.
REIS, Elisa P.; CHEIBUB, Zairo B. Pobreza, desigualdade e consolidação
democrática. Dados – Revista de Ciências Sociais, v. 36, n. 2, p. 233-259,
1993.
REIS, Fábio Wanderley; CASTRO, Mônica Mata Machado de. Democracia,
civismo e cinismo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 16, p. 25-46, 2001.
ROSE-ACKERMAN, Susan. Corruption and government. Causes, conse-
quences, and reform. New York: Cambridge University Press, 1999.
SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ática,
1994.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Cia. das
Letras, 2000.
SILVA, Marcos Fernandes Gonçalves da. A economia política da corrupção.
Transparência Brasil, São Paulo, 2001.
TANZI, Vito. Corruption around the world: causes, consequences, scope
and cures. IMF Staff Paper, 45, n. 4, p. 559-594, 1998.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.

313
CarloS ranulFo Melo

Corrupção ElEitoral

As democracias contemporâneas são arranjos representativos.


A representação foi a “solução encontrada” para um dilema. Uma
vez firmado o princípio da igualdade política entre os indivíduos,
regimes políticos baseados na tradição, na origem de classe ou
condição de status perderam a legitimidade. Por outro lado, o
tamanho das sociedades e a complexidade cada vez maior das
questões em discussão – demandando acesso a informações,
disponibilidade de tempo e condições de negociação – tornaram
proibitiva a ideia de que todos participassem das decisões a serem
coletivizadas.1 A escolha de um corpo de representantes em elei-
ções livres, justas e periódicas – e que incluam a todo o eleitorado
adulto – passou a ser algo que, sem esgotar a noção contem-
porânea de democracia, firmou-se como sua pedra angular. Ao
se dirigirem às urnas os cidadãos reafirmam sua condição de
igualdade perante um ato fundamental do Estado.2 Ao organizar
as eleições e transformar os votos em postos executivos e/ou legis-
lativos, o aparato institucional das democracias permite que,
em maior ou menor grau, os mais diversos interesses, opiniões
e valores sejam vocalizados no curso do processo decisório. Tal
processo, no entanto, pode apresentar problemas que ameacem
corromper o corpo político constituído, comprometendo sua
legitimidade e diminuindo sua capacidade de oferecer à coleti-
vidade os resultados esperados.
A corrupção eleitoral ou a reiterada incidência de fenôme-
nos capazes de desvirtuar o processo de constituição de um
corpo de representantes sempre significou um problema para
as democracias. A condição para que seu enfrentamento se
tornasse possível foi a constituição de uma Justiça Eleitoral
dotada de autonomia face aos poderes político e econômico, com
recursos suficientes para organizar e poderes necessários para
regulamentar os processos eleitorais. Mas mesmo as democracias
consolidadas não conseguiram impedir de forma cabal que
determinados interesses pudessem, utilizando os recursos que
tivessem à mão, obter vantagens diferenciadas em função de sua
participação nas eleições.
Mas que atitudes poderiam ser qualificadas como atos de cor-
rupção eleitoral? Ainda que o leque de respostas seja grande, é
possível distinguir três tipos de práticas mais comuns:3
1) o uso da máquina pública em favor de determinado(a)
candidato(a);
2) o financiamento de campanha visando a vantagens diferen-
ciadas no plano político e/ou administrativo;
3) a compra do voto.
Dentre os três, a utilização da máquina pública é a mais facil-
mente tipificada. Enquadram-se neste tipo de conduta tentativas
de beneficiar um candidato (ou partido) por meio da cessão de
bens móveis ou imóveis pertencentes à administração pública,
da distribuição gratuita de bens e serviços custeados pelo poder
público, da utilização de materiais ou serviços mantidos pelos
governos ou casas legislativas, da cessão de servidor público para
comitês de campanha, entre outras.
O vínculo entre financiamento de campanha e corrupção
eleitoral não é tão simples de especificar. Todas as democracias
admitem o uso de recursos privados nas campanhas. Por um lado,
a capacidade de captação de recursos encontra-se relacionada ao
grau de inserção social e competitividade eleitoral do candidato
ou partido. Por outro, sobram evidências de interferência abusiva
do poder econômico nas disputas eleitorais.

315
Samuels4 distingue entre doações visando a políticas públicas –
aquelas que procuram influir nos rumos do mandato relativamente
a determinado(s) tema(s) – e doações visando a serviços, nas
quais se espera como retribuição um pagamento direto, ou “um
serviço específico que só um funcionário público pode oferecer
em troca do seu investimento”. A distinção nem sempre é fácil
de ser realizada empiricamente, até porque as doações podem
visar a ambos os objetivos. Seja como for, doações que visam
à “compra de serviços” são mais facilmente tipificáveis como
casos de corrupção uma vez que violam claramente o princípio
da universalidade no trato do poder público com os cidadãos.
Nestes casos, o investimento feito tem como objetivo garantir
aos doadores regalias que de outra forma não seriam possíveis,
sejam elas a obtenção de subsídios, empréstimos ou incentivos,
a “vitória” em licitações públicas viciadas ou o recebimento de
verbas públicas por meio de entidades fantasmas. De acordo
com Speck,5 “doações que compram acesso ao poder ou outras
vantagens se aproximam da definição de corrupção na área
administrativa”.
Mas mesmo doações que visam à influência sobre políticas
públicas podem, a depender do contexto, ser problemáticas. A
ausência ou baixa efetividade dos limites às doações, a existência
de um reduzido universo de doadores e a ocorrência de repasses
ilegais (o caixa dois) são fatores que podem contribuir para a
violação do exercício da representação. A permissão para doação
de grandes quantias em um cenário de poucos doadores aumenta
a possibilidade de que o mandato passe a depender de tais fontes
e tenha sua autonomia comprometida.
O problema torna-se mais grave na incidência do caixa dois.
O financiamento ilícito torna literalmente impossível saber quais
são de fato os doadores e qual o peso relativo daqueles que são
conhecidos, a partir da contabilidade oficial, na composição
das receitas de uma campanha. Sem informação, o eleitor pode
ajudar a eleger um representante que estará, prioritariamente, a
serviço de interesses que ele ignora quais sejam.

316
O terceiro tipo de conduta passível de ser caracterizada como
corrupção eleitoral, a compra do voto, também pode gerar inter-
pretações distintas. Ainda que as democracias contemporâneas
tenham sido erigidas sob o signo da representação como relação
de confiança – a ponto de não serem previstos mandatos nos
quais o representante se veja obrigado a cumprir instruções
dadas pelo eleitor –, na vida real ocorreu aquilo que Bobbio6
designou como “a revanche dos interesses”: uma alta incidência
do “voto negociado”.
De acordo com Speck, três distinções seriam importantes para
que se possa distinguir a compra do voto de outras situações de
voto negociado: a) o número de eleitores envolvidos; b) o objeto
da troca, que pode envolver compensações materiais na forma
de bens ou dinheiro, ou não materiais, como influência política
ou favores administrativos; e c) o momento da troca, que pode
ser imediata ou remeter a compromissos futuros. Segundo o
autor, “quanto mais individualizada a negociação, quanto mais
material a compensação e imediata a troca, mais evidente será
a compra de votos”.7
No Brasil do Império e da República Velha, a corrupção
eleitoral era endêmica. O partido do governo sempre vencia as
eleições, a fraude era generalizada e o voto facilmente controlado
por patrões e coronéis, já que o eleitor votava “a descoberto”.8 A
situação melhorou em 1932 com a criação da Justiça Eleitoral,
de cabines indevassáveis e envelopes oficiais para a colocação
do voto. Após 1955 a Justiça passou a confeccionar a cédula
(única) de votação. Em 1996 foi introduzida a urna eletrônica.
Nos últimos anos, ademais, a legislação foi aperfeiçoada com
vistas a coibir a corrupção eleitoral no país.
A lei 9.504, de 1997, modificada em 1999 pela lei 9.840,
passou a prever a cassação de registro ou diploma para o caso
do candidato “doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com
o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer
natureza, inclusive emprego ou função pública” (art. 41). A
mesma pena pode ser aplicada nos casos em que o candidato

317
tenha se beneficiado do uso da máquina pública (art. 73, § 5°).
Em 2006, a lei 11.300 tornou a modificar a lei eleitoral de 1997
prevendo a cassação do diploma se comprovado o pagamento
de gastos de campanha com base em recursos não declarados
(art. 22, §3°). Na mesma ocasião foi proibida (art. 39, §6°) a
distribuição de qualquer tipo de brinde e determinada (art. 28,
§4°) a divulgação pelos partidos, durante a campanha, de dois
relatórios na internet discriminando os recursos recebidos. Após
as eleições, o TSE passou a disponibilizar eletronicamente a
prestação de contas de todos os candidatos e partidos.
Segundo dados fornecidos pelo site do Movimento de Combate
à Corrupção Eleitoral,9 entre 2000 e setembro de 2007 foram
cassados 623 políticos no Brasil, 508 dos quais prefeitos ou vices.
Completavam a lista dois governadores e três senadores, com
seus vices e suplentes, oito deputados federais, 13 deputados esta-
duais e 84 vereadores. Os dados revelam ainda um crescimento
linear do número de cassados. Ademais, existiam, em setembro
de 2007, 1.100 casos tramitando na Justiça Eleitoral, referentes
à eleição de 2006.
Persistem problemas, especialmente no que se refere ao
financiamento das campanhas. A possibilidade de doação de
grandes somas – os limites, com base no faturamento bruto do
ano anterior, são de 10% para pessoa física e 2% para pessoa
jurídica – associada a um universo restrito de doadores10 pode
colocar em risco a autonomia dos mandatos. A lei 11.300, de
2006, estabelece que cabe à Justiça estipular um máximo de
gastos por cargo em disputa, mas deixa aberta a possibilidade
de que isso continue sendo feito pelos partidos. Em que pese o
excessivo detalhamento exigido,11 as contas de campanha conti-
nuam refletindo apenas parcialmente a arrecadação. Ainda não se
têm notícias de perdas de mandato devido ao uso de caixa dois.
Finalmente, é preciso mencionar um problema de ordem
institucional. A adoção do sistema de lista aberta – acrescida
ao grande número de partidos e à possibilidade de que cada um
lance, para os cargos proporcionais, candidatos correspondentes

318
a 1,5 vezes o número de vagas – dificulta a fiscalização. Para
se ter uma ideia: em 2006, para os diversos cargos em disputa,
havia 18.112 candidatos; em 2004 concorreram a uma vaga para
vereador nada menos que 344.455 candidatos.12 Em um quadro
como este, faltam à Justiça Eleitoral recursos técnicos, materiais
e humanos para dar conta de suas atribuições.

NOTAS
1
SARTORI. A teoria da democracia revisitada.
2
PIZZORNO. Introducción al estudio de la participación política.
3
TAYLOR. Justiça Eleitoral; SPECK. A compra de votos – uma aproximação
empírica; SPECK. O financiamento de campanhas eleitorais; SAMUELS. Finan-
ciamento de campanha e eleições no Brasil.
4
SAMUELS. Financiamento de campanha e eleições no Brasil, p. 381.
5
SPECK. O financiamendo de campanhas eleitorais, p. 155.
6
BOBBIO. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo.
7
SPECK. A compra de votos – uma aproximação empírica, p. 156.
8
LEAL. Coronelismo, enxada e voto; PORTO. Dicionário do voto; NICOLAU.
História do voto no Brasil.
9
<www.lei9840.org.br>.
10
SAMUELS. Financiamento de campanha e eleições no Brasil.
11
NICOLAU. Variações sobre a reforma eleitoral.
12
<www.tse.org.br>.

REFERÊNCIAS
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jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
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Econômica, Rio de Janeiro, FGV/Instituto Brasileiro de Economia, 2005.
NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

319
PIZZORNO, Alessandro. Introducción al estudio de la participación po-
lítica. In: PIZZORNO, Kaplan; CASTELLS, Manuel (Org.). Participación
y cambio social en la problemática contemporánea. Buenos Aires: SIAP-
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AVRITZER, Leonardo; ANASTASIA, Fátima (Org.). Reforma política no
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TAYLOR, Matthew. Justiça Eleitoral. In: AVRITZER, Leonardo; ANAS-
TASIA, Fátima (Org.). Reforma política no Brasil. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2006.

320
andré MarenCo

finanCiamEnto
dE CampanHaS ElEitoraiS

A arrecadação de fundos financeiros para custear campanhas


eleitorais adquiriu um lugar central na competição eleitoral das
democracias contemporâneas, com consequências para o equi-
líbrio da competição e a geração de oportunidades responsáveis
pela alimentação de redes de compromissos entre partidos,
candidatos e financiadores privados, interessados no retorno de
seu investimento, sob a forma de acesso a recursos públicos ou
tratamento privilegiado em contratos ou regulamentação pública.
Dessa forma, a conexão incremento nos custos de campanhas
eleitorais => arrecadação financeira => tratamento privilegiado
aos investidores eleitorais nas decisões sobre fundos e políticas
públicas passou a constituir fonte potencial para geração de
corrupção nas instituições públicas. De um lado, partidos e
candidatos buscando fontes para sustentar caras campanhas
eleitorais, e de outro, empresários de setores dependentes de
decisões governamentais, como bancos e construção civil.1
O incremento nos custos de campanhas eleitorais está rela-
cionado a uma combinação de fatores, especialmente salientes
nas poliarquias modernas: por um lado, aumento na competição
eleitoral, a partir da mudança nos padrões organizacionais dos
partidos políticos, com o declínio dos velhos partidos de massas,
baseados em clivagens societárias, religiosas ou culturais, capazes
de fornecer eleitores fiéis e previsíveis em seu voto, e militantes
dispostos à cotização financeira. Paralelamente, o desenvolvi-
mento técnico de sondagens de opinião pública, recursos de
propaganda eleitoral e a tecnologia dos meios de comunicação
tornou-os indispensáveis a campanhas partidárias competitivas,
exponenciando os custos exigidos para alcançar os eleitores em
disputa. Isso ampliou o fosso entre um financiamento baseado em
contribuições individuais de militantes e simpatizantes, e o volume
e regularidade nos fluxos financeiros exigidos para sustentar
campanhas eleitorais competitivas. Conforme David Samuels,2
o custo de uma campanha presidencial estaria em torno a U$3
bilhões nos Estados Unidos e entre U$3,5 bilhões e U$4,5 bilhões
no Brasil, mesmo com a existência do horário eleitoral gratuito,
que deveria reduzir a despesa de propaganda dos candidatos. O
valor médio arrecadado por deputados federais eleitos no Brasil
em 2006 situou-se em R$ 503 mil, estabelecendo uma relação
de 4,8 reais por voto conquistado. Por outro lado, candidatos
não eleitos ou apenas suplentes arrecadaram na mesma ocasião
R$ 158,9 milhões, correspondendo a uma relação de 5,6 reais por
voto obtido. Se, de um lado, isso sugere não existir uma relação
linear entre gastos de campanha e sucesso eleitoral, por outro,
revela a escala de custos e a dependência em relação ao retorno
dos investidores. Em estados com magnitude eleitoral pequena
ou média como Roraima (11,1 reais/voto), Goiás (8,80) e Acre
(8,1), os custos da competição eleitoral foram relativamente
ainda mais elevados do que nos grandes colégios eleitorais de
São Paulo (4,8 reais/voto), Minas Gerais (5,1), Rio de Janeiro
(3,7) ou Rio Grande do Sul (3,1).3
O volume da arrecadação financeira para campanhas eleitorais
de partidos e candidatos e seu potencial para converter-se em
tratamento privilegiado no acesso a fundos públicos, contratos
e serviços após as eleições têm colocado na agenda a alternativa
de prover o suporte financeiro necessário aos partidos atra-
vés do financiamento público.4 Na verdade, o crescimento de
subvenções estatais oferecidas às organizações partidárias tem
constituído fenômeno generalizado nas poliarquias modernas,

322
parte do processo de constituição dos partidos-cartel,5 caracte-
rizados pela penetração entre estruturas partidárias e estatais,
diminuição da importância de filiação voluntária e bandeiras
ideológicas e aumento da dependência de subvenções públicas
para a manutenção das organizações partidárias.
Podem ser identificados três tipos principais de financiamento
público existentes nas instituições poliárquicas:6 (a) apoio indi-
reto, através de incentivos e isenções fiscais para quem contribui
financeiramente com partidos; (b) serviços e concessões estatais,
como espaços gratuitos em rádio e televisão, ou franquia de cor-
reios; (c) fundos financeiros diretos, seja durante as campanhas
eleitorais, ou todos os anos.
As variações existentes na relação entre suporte público ou
privado para campanhas eleitorais podem ser observadas através
das diferenças relativas a: (a) existência ou não de limites para
contribuições financeiras privadas a campanhas e partidos; e
(b) propaganda eleitoral paga ou acesso a espaços gratuitos nos
meios de comunicação. Países como México, índia, Israel, Japão,
Espanha, Taiwan, Polônia, Tailândia, Turquia e Estados Unidos
estabelecem diferentes graus de restrições à quantidade e fontes
para os recursos privados coletados pelos partidos. Enquanto
isso, Austrália, Canadá, Alemanha, Itália e Suécia praticamente
não promovem limites para contribuições privadas a campanhas
eleitorais.
No que diz respeito a um dos recursos mais importantes na
competição eleitoral, constituído pelo acesso aos meios de comu-
nicação, pode-se observar uma escala, que vai de países que
proíbem propaganda paga, permitindo exclusivamente o espaço
público gratuito aos partidos (Brasil, Bélgica, Espanha, França,
Holanda, índia), àqueles que oferecem acesso a espaços públicos,
ao mesmo tempo que permitem propaganda paga (Austrália,
Canadá, Japão, Suécia), até os casos de propaganda exclusiva-
mente paga nos meios de comunicação (Estados Unidos, México).
Se o financiamento privado de campanhas eleitorais tem de-
monstrado ser uma fonte potencial de corrupção nas instituições

323
políticas, a pergunta que se coloca é a de até que ponto sua subs-
tituição pelo financiamento exclusivamente público pode pro-
mover um antídoto efetivo contra o estabelecimento de redes de
compromissos entre partidos/candidatos/investidores privados.
A exposição de motivos do projeto de lei 2.679, que pretendia
promover uma reforma política no Brasil, sintetiza um dos prin-
cipais argumentos em favor do estabelecimento de um financia-
mento exclusivamente público: “o convívio entre financiamento
público e privado é problemático porque não inibe a ação do
poder econômico, razão pela qual optamos, neste projeto, pelo
financiamento público exclusivo.”7 Dessa forma, a exclusividade
de recursos públicos para as campanhas partidárias deveria
neutralizar a influência do poder econômico na competição elei-
toral, sob a forma de desigualdade de recursos ou na cobrança
por decisões futuras para o resgate do investimento feito em
candidatos.
Por outro lado, esta proposta provoca o ceticismo em relação
à probabilidade de que a proibição do financiamento privado
legal represente de fato a interrupção de arrecadação de recursos
financeiros junto a empresas e agentes econômicos.8 A objeção
consiste na lembrança de que se a proibição de contribuições
privadas pode eliminar a arrecadação de recursos legais, ela não
oferece garantias contra a transferência de dinheiro ilícito para as
campanhas eleitorais, questionando, assim, sua eficácia como
forma de suprimir a corrupção eleitoral. À medida que persiste
a dependência de agentes econômicos em relação a fundos e de-
cisões públicos, permaneceria seu interesse em investir dinheiro
em partidos e candidatos competitivos, com vistas a retorno fu-
turo. A experiência italiana de adoção do financiamento público,
a partir de 1970, terminou por ser abandonada em 1993, em
razão de sua ineficácia no controle sobre o tráfico de influência
e corrupção eleitoral.
Nesta direção, a alternativa poderia estar na fixação de limites
e controles para a arrecadação e uso de recursos privados em
campanhas eleitorais.A lei eleitoral em vigor no Brasil estabelece um

324
limite de 10% da renda para pessoas físicas e 2% do faturamento
das empresas como limites para contribuições eleitorais, reprodu-
zindo assimetrias existentes no mercado, não estabelecendo, ao
mesmo tempo, teto para gastos por partidos. Fixação de limites
lineares para contribuições individuais, a exemplo da Hatch
Act’s norte-americana, associada a restrições aos gastos eleitorais,
poderiam incentivar uma pulverização das fontes de receita
eleitoral. Transparência na informação sobre financiadores de
campanhas e posterior alocação de recursos públicos, incentivos
fiscais para contribuições legais e reforço nos procedimentos
judiciais, fiscais e policiais de controle sobre movimentações
financeiras podem maximizar os riscos para doações ilegais e,
sobretudo, a ocorrência de decisões sobre acesso privilegiado a
verbas ou contratos públicos relacionadas a estas contribuições.

NOTAS
1
SAMUELS. Financiamento de campanhas no Brasil e propostas de reforma.
2
SAMUELS. Financiamento de campanhas no Brasil e propostas de reforma.
3
TRANSPARÊNCIA BRASIL. Às claras: mapa do financiamento eleitoral no Brasil.
4
COMISSÃO ESPECIAL DE REFORMA POLíTICA. Projeto de Lei 2.679.
5
KATZ; MAIR. How parties organize: change and adaptation in party organi-
zations in Western democracies.
6
KATZ. Party organizations and finance.
7
COMISSÃO ESPECIAL DE REFORMA POLíTICA. Projeto de Lei 2.679.
8
SPECK. Sobre a reforma do financiamento eleitoral; SPECK. O financiamento
de campanhas eleitorais; ABRAMO. Proibição fantasiosa.

REFERÊNCIAS
ABRAMO, Cláudio Weber. Proibição fantasiosa. Folha de S.Paulo, 19 jun.
2007, p. A3.
COMISSÃO ESPECIAL DE REFORMA POLíTICA. Projeto de Lei 2.679.
Brasília: Câmara dos Deputados, 2003.

325
KATZ, Richard. Party organizations and finance. In: LE DUC, Lawrence;
NIEMI, Richard; NORRIS, Pippa. Comparing democracies: elections and
vote in global perspective. Thousand Oaks: Sage, 1996.
KATZ, Richard; MAIR, Peter. How parties organize: change and adaptation in
party organizations in Western democracies. Thousand Oaks: Sage, 1994.
SAMUELS, David. Financiamento de campanhas no Brasil e propostas de
reforma. In: SOARES, Gláucio; RENNó, Lúcio (Org.). Reforma política:
lições da história recente. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
SPECK, Bruno. Sobre a reforma do financiamento eleitoral. Folha de
S.Paulo, 24 mar. 2004, p. A3.
SPECK, Bruno. O financiamento de campanhas eleitorais. In: AVRITZER,
Leonardo; ANASTASIA, Fátima (Org.). Reforma política no Brasil. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2006.
TRANSPARÊNCIA BRASIL. Às claras: mapa do financiamento eleitoral
no Brasil. Disponível em: <http://www.asclaras.org.br/2006/index.php>.

326
InStItuIçõeS e temAS
FÁ b i o wa n d e r l e y reiS

Corrupção, Cultura
E idEologia

O problema da corrupção é apenas uma face especial do pro-


blema geral da política democrática. O desiderato envolvido é o
de regras que se mostrem efetivas em assegurar tanto a autonomia
dos cidadãos quanto a autonomia do Estado perante os interesses
privados e sua eficiência como instrumento do interesse público,
capaz de impor os necessários limites à conduta dos cidadãos.
A democracia reconhece a cada um o direito de buscar seus
interesses, entendidos como objetivos próprios de qualquer na-
tureza. Os limites são dados pelo reconhecimento de que essa
busca não pode fazer-se de maneira pérfida,1 pronta a recorrer
à violência ou à trapaça e a ignorar as normas que as proíbam.
Assim, ainda que a busca dos interesses, em conexão com a ideia
de autonomia, tenha, com efeito, de ser afirmada como valor (e
não vista como simples objeto de capitulação realística diante de
um suposto mal inevitável), ela deve combinar-se com a afirmação
do caráter indispensável de normas não só apropriadas, mas
efetivas.
Normas efetivas são aquelas que correspondem autenticamente
a uma cultura, vale dizer, que vêm a integrar a orientação geral
dos indivíduos de modo a operar espontânea e prontamente em
suas decisões sobre como agir em diferentes situações (não obstante
o elemento paradoxal de que um ideal democrático mais exigente
associa a noção de autonomia com a capacidade, por parte dos
indivíduos, de reflexividade e distanciamento perante a sociedade
e a cultura em que se veem imersos). Se a implantação real de
uma cultura democrática, dependendo desse enraizamento das
normas apropriadas, já é, naturalmente, difícil por si mesma, as
dificuldades se tornam maiores pelo fato de que não há jamais
um vazio cultural que favorecesse o enraizamento, e este terá
de fazer-se contra padrões sociopsicológicos ou culturais em
operação, que poderão, ademais, encontrar condições propícias
no plano do substrato estrutural.
No caso do Brasil, é bem clara a vigência de uma cultura que
vê com olhos lenientes a trapaça em favor do interesse próprio e
a inobservância das regras em qualquer plano, e que provavelmente
se articula com nossa herança de escravismo, elitismo e desigual-
dade. Quer se trate das grandes “maracutaias” que provocam a
indignação da classe média (curiosamente, já que ela sem dúvida
compartilha a cultura em questão), quer das formas mais brutais e
violentas de criminalidade, que se expandem, ou mesmo da ins-
tabilidade que tem marcado tão longamente nossas instituições
políticas, essa cultura desatenta às regras se mostra de maneiras
diversas. Ela se revela, por exemplo, naquilo que nos permitiu
observar, no período recente, líderes políticos destacados de
diferentes partidos (presidente da República, vice-presidente, ex-
-presidente, candidatos à presidência...) empenhados em distinguir,
ao falar de condutas inequivocamente criminosas diante da letra
e do espírito da lei, entre “o trigo e o joio”, na fórmula primeiro
adotada de público por Fernando Henrique Cardoso, distinção
na qual o “trigo” seria o crime “sem importância” do caixa dois.
Mas essa cultura surge também nos dados precisos de pesquisas
sistemáticas executadas em plano mundial, com numerosos países
de níveis distintos de desenvolvimento econômico e de religiões e
tradições culturais diversas, em que o Brasil surge reiteradamente
como o grande campeão da desconfiança nas relações interpessoais:
não vai além da faixa de míseros 3% a proporção dos brasileiros
que responde positivamente à pergunta sobre se se pode, em geral,

329
confiar nas pessoas (a proporção correspondente para os países
escandinavos, por exemplo, alcança 65% ou mais).2
Diante das dificuldades mencionadas, é ilusória a ideia de
que possamos inaugurar uma nova cultura, com o enraizamento
de normas autenticamente democráticas e cívicas, por meio da
“reforma moral” ou ideológica ou de uma espécie de “conversão”
coletiva. Essa ideia se acha subjacente à valorização difundida,
nos debates brasileiros, de certo ideal de “política ideológica”, de
acordo com o qual a boa política seria aquela em que os agentes
(em especial os partidos e seus integrantes) se enfrentassem em
torno de “valores” diversos. Embora nítidos em suas diferenças,
com mensagens igualmente nítidas dirigidas aos eleitores, tais
agentes, na perspectiva em questão, estariam todos nobremente
orientados por concepções do “bem público”, em contraste com
a presumida vilania do jogo e das barganhas que se dão em torno
dos interesses, concebidos como estreitos e particularistas (e
esquecendo-se que a ocorrência de solidariedade necessariamente
define, ela própria, focos de interesses, cuja relação com valores
“universalistas” é equívoca). é notável, em particular, como essa
idealização se opõe não só à cultura da “esperteza” avessa às
regras (que tem mesmo parte de sua explicação, talvez, na fatal
frustração das exigências “ideológicas” assim propostas para
a atividade política), mas também ao “realismo” que tende a
caracterizar o estudo da atividade econômica privada entre os
economistas profissionais. Nenhum economista que se preze faria
propostas destinadas a promover o desenvolvimento econômico,
por exemplo, com base na expectativa de que os agentes se
orientassem altruisticamente pela atenção ao interesse público:
o egoísmo e a busca do interesse próprio surgem aqui como
fatos da vida, a serem tratados como tais, e é como se políticos
e atores econômicos privados fossem feitos de massas diferentes
(ironicamente, com frequência, mesmo aos olhos dos economistas
brasileiros).
Por outra parte, a ênfase no “modelo” de política ideológica
se depara, no exame da questão da corrupção na atualidade do

330
país, com uma dificuldade especial. Seria problemático sustentar,
em perspectiva mais abrangente, a existência de peculiaridades
significativas quanto à corrupção no período pós-1985, em
confronto com o Brasil da ditadura ou com o de pré-1964. Há,
porém, um aspecto distintivo e revelador em que as denúncias
de maior impacto no período recente, aquelas relacionadas
com o “mensalão” e a compra de votos no Congresso, dizem
respeito à atuação de um partido, o PT, que inequivocamente
se singularizou no quadro dos partidos brasileiros por juntar a
viabilidade eleitoral com marcada orientação ideológica, além
do suposto apego a princípios éticos. Não obstante o fato de
que os mecanismos fraudulentos postos em prática, e até seus
operadores, tenham sido usados antes em campanha eleitoral
do PSDB de Minas Gerais, não há como negar que o uso deles
feito no primeiro mandato de Lula tem alcance e significado bem
maiores, e não admira que o PT se tenha visto envolvido, em
consequência, em crise de grandes proporções. Ora, não parece
que há como entender a singularidade do esquema armado em
torno do PT senão justamente pela marca ideológica e certa
arrogância sectária dela decorrente, resultando em que o partido,
na autoimagem de virtude e de objetivos sociais generosos e
na visão toscamente “maquiavélica” dos mentores do esquema,
se sentisse autorizado a lidar de modo instrumental e pragmá-
tico com os aliados “burgueses” e presumivelmente corruptos
de cujo apoio se via levado pelas circunstâncias a necessitar: “é
melhor comprá-los logo”.
Os matizes a respeito do papel da ideologia, porém, não deve-
riam levar a que se esquecesse que a corrupção pode ter significado
e efeitos muito distintos conforme as feições adquiridas pelo
enfrentamento social, donde a importância do “substrato” de
que se falou acima. Note-se que as denúncias recentes do “mar
de lama” do mensalão, envolvendo inquestionável componente
social e de “esquerda” contra “direita” dada a presença do PT
e da figura de Lula, resultam em dramáticos conflitos entre go-
verno e oposição. Por esse aspecto, a crise que vivemos há pouco

331
se mostra claramente afim à crise do Governo Getúlio Vargas no
já longínquo ano de 1954, em que a expressão “mar de lama”
primeiro apareceu em luta áspera entre esquerda e direita, com
longos desdobramentos negativos na vida político-institucional
do país. Comparem-se os dois casos com o ocorrido na crise que
levou ao impeachment de Collor. Embora envolvesse corrupção
intensa, a crise de Collor foi a crise do governo de um aventureiro
e outsider que conseguira chegar à presidência, mas não contava
com maior penetração e apoio eleitoral e político-partidário, não
remetendo, em consequência, a qualquer substrato de enfren-
tamento social. Collor conseguiu, assim, a proeza de ser quase
unanimemente repudiado – e o ineditismo de seu impeachment,
com a tranquilidade institucional em que tais razões permitiram
que fosse conduzido, pode mesmo ser avaliado como tendo
contribuído, num cenário mundial em que a Guerra Fria já se via
superada, para o fortalecimento das instituições políticas do país
cujos efeitos não deixam de se fazer presentes na crise de agora e
no fato de que tampouco ela chega a assumir o caráter de crise
institucional.
Como quer que seja, as várias faces da experiência brasileira
mais ou menos recente com a corrupção levam a considerar as
complicações nas relações entre o papel das normas e o jogo dos
interesses na política democrática sadia. Se a idealização contida
no modelo da “política ideológica” é sem dúvida equivocada,
não é melhor o cinismo da difundida cultura antinormas ou
o destempero do realismo que a corrupção protagonizada
pelo PT evidenciou – ainda que tenha sido bem-vindo, contra
algumas opiniões à esquerda, o aprendizado de realismo na
administração econômica do país manifestado no Governo Lula.
No plano conceitual, a atenção para os matizes envolvidos leva
a rejeitar também a aposta, encontrada internacionalmente entre
analistas de orientação econômica, que vê surgir as virtudes da
democracia autêntica num “equilíbrio” que prescindiria das
normas e supostamente resultaria da mera acomodação recíproca
e “automática” dos interesses uns aos outros. Como as discussões

332
têm mostrado, a aposta, se difere da idealização inicial da política
como tal que caracteriza os economistas brasileiros, idealiza, na
verdade, de maneira afim aos supostos da economia neoclássica,
a própria ideia de interesses, ignorando a perfídia que pode
marcar a sua busca: desta pode nascer, em vez do bom equilíbrio
democrático, o equilíbrio perverso da condição “pretoriana”, na
qual a perseguição desregrada do interesse próprio acarreta o
protagonismo, em última análise, da força física e da violência
militar, impedindo que se ergam instituições efetivas.
Nesse terreno escorregadio, a indagação crucial é, natu-
ralmente, a de como construir a cultura necessária, incluindo as
normas que disciplinem o legítimo jogo dos interesses (entendidos
estes como a busca autônoma dos objetivos próprios de cada um)
e mitiguem seus potenciais efeitos nefastos. E a resposta aponta
para a necessidade de destacar um fator de natureza intelectual ou
cognitiva: em vez da postura passiva recomendada nas avaliações
de alguns analistas quanto à questão geral das reformas políticas
no país, seria preciso que nos dispuséssemos a experimentar
com os dispositivos legais e mecanismos institucionais capazes
de condicionar as expectativas – alterando, em particular, as
expectativas relacionadas com a possibilidade de quebra impune
das regras e afetando, assim, antes de mais nada, o cálculo dos
agentes, em que a ação contrária às normas passaria a opor-se, em
grau relevante, aos interesses. Com base no preceito sociológico
de que expectativas que se reiteram e corroboram acabam por
transformar-se em prescrições, isso permitiria a expectativa de
que se viesse eventualmente a obter, no devido tempo, mudanças
adequadas no próprio componente normativo da cultura pertinente,
numa dialética benigna entre esforços deliberados de “engenharia”
política e a indispensável “decantação” sociológica em que nascem
as instituições verdadeiras.
Claro, não há como contar com o desfecho de fato benigno
dessa dialética sem mudanças significativas no substrato de
desigualdade.

333
NOTAS
1
Veja-se WILLIAMSON. The Economics of governance: framework and impli-
cations.
2
Veja-se, por exemplo, INGLEHART; BAKER. Modernization, cultural change,
and the persistence of traditional values, p. 36, figura 4.

REFERÊNCIAS
INGLEHART, Ronald; BAKER, Wayne. Modernization, cultural change,
and the persistence of traditional values. American Sociological Review,
v. 65, n. 1, p. 36, fev. 2000.
WILLIAMSON, Oliver E. The Economics of governance: framework and
implications. Journal of Institutional and Theoretical Economics, v. 140,
n. 1, mar. 1984.

334
ClÁudio b e at o

Corrupção poliCial

CONTEXTO
A corrupção é um fenômeno recorrente em todas as organi-
zações policiais. São práticas encontradas em muitas polícias,
que se estendem aos mais diversos níveis da organização e nem
sempre envolvem apenas ganhos financeiros. No caso brasileiro,
poucos analistas não ressaltariam a centralidade que a corrupção
policial tem para a compreensão do nosso cenário da violência
e criminalidade. Tráfico de armas, extorsão e associação com
o crime organizado são fenômenos bastante conhecidos que
eventualmente afloram com muita intensidade na mídia, aos
quais se deve agregar um sem número de situações ambíguas
que caracterizam o contato da polícia com o público.
Não por acaso, este cenário é bastante familiar aos habitantes
dos grandes centros urbanos brasileiros. Pesquisas de vitimização
indicam que cerca de 1,8% da população de Belo Horizonte,
3,9% de Curitiba e 10,2% dos moradores do Rio de Janeiro
declaram já terem sido vítimas, em algum momento de suas
vidas, de extorsão por parte de policiais militares.1
Trata-se de fenômeno complexo que exige análise cuidadosa,
pois se refere a cenários distintos, manifesta-se em diferentes
graus e obedece a determinantes diversos. Fazem parte dele policiais
recebendo gratuitamente lanches de comerciantes; propinas para
não aplicarem multas; segurança privada em ruas ou bairros
inteiros; envolvimento direto com atividades criminosas tais
como a proteção de traficantes ou bicheiros ou a participação
em quadrilhas organizadas para prática de diferentes tipos de
crimes e assim por diante. Certamente algumas destas ativida-
des são crimes pura e simplesmente, outras, corrupção passiva,
e existem ainda as que não são claramente práticas corruptas,
mas envolvem questões éticas.

O QUE é CORRUPÇÃO POLICIAL?


No código penal, a corrupção é definida pelo artigo 317 carac-
terizando-se por ser um ato cometido por funcionários públicos,
no caso policiais, que buscam auferir vantagens em função de
sua função através de peculatos, concussão, exação, corrupção
passiva, prevaricação e condescendência criminosa. Assim, o
termo corrupção pode envolver acepções diversas que englobam
comportamentos desviantes usuais por parte de policiais, tais
como envolvimento com o tráfico de drogas, associação com
assaltantes e traficantes, extorsão, abusos de autoridade, agressão
e maus-tratos, homicídios, justiçamento e execuções a serviço de
mandantes dentre outros.2 Na prática, entretanto, não é trivial a
definição do que é corrupção policial, pois envolve uma variada
gama de comportamentos e atividades. Alguns autores incluem as
pequenas trocas de favores até associação com redes criminosas,
passando pela proteção de atividades ilegais a recebimento de
propinas para não prosseguir com investigações, ou aplicação
de multas, além do roubo de vítimas ou delinquentes.3 Para
outros, o recebimento de propinas distingue-se de crimes graves
tais como o tráfico de drogas ou assalto e roubos praticados por
policiais. Qualquer que seja a definição deve-se distinguir o que
é crime pura e simplesmente daquelas atividades que envolvem
um abuso da autoridade e função policial.
A necessidade de um código de regras organizacionais
que definam claramente em que consiste este abuso, portanto,
é uma das dimensões centrais para compreendermos este fenô-
meno.4 Isto significa, por um lado, que estas regras existam e
sejam adequadamente comunicadas aos policiais e, por outro
lado, que existam mecanismos efetivos de punição. Um dos

336
exemplos recorrentes diz respeito a atividades que, embora
sejam formalmente ilegais para os policiais, tais como atividades
paralelas de segurança privada, são amplamente permitidas pelas
corporações. Neste caso, trata-se ou de regras que foram inade-
quadamente definidas, ou então de uma complacência tácita que
leva ao desrespeito das regras. Outro aspecto é a expectativa do
público no que concerne à corrupção. Esta pode envolver uma
quebra dessa expectativa da população em relação ao policial,
na qual o que se corrompe é justamente a confiança no que diz
respeito ao que se espera dele.

FONTES DA CORRUPÇÃO
Um dos paradoxos sobre as causas da corrupção é que ela
encontra-se intimamente ligada à própria natureza da atividade
policial. A discricionariedade é uma característica que significa
que os policiais tomam decisões ad hoc sobre situações que não
são claramente definidas no código penal. Dessa maneira, existe
uma margem de interpretação livre que está na origem de muitos
casos de corrupção. Policiais devem distinguir distintos cenários
para a aplicação de normas bem como dispor de um estoque de
conhecimentos para cenários específicos.5 O código penal não
possui definições claras e específicas para todas as situações com
as quais policiais têm que lidar no dia a dia, abrindo margem para
negociações que podem ser legítimas, mas que também resvalam
para casos que vão contra as leis. Na verdade, esta indefinição
em torno das normas não é uma propriedade apenas da atividade
policial, mas do serviço público em geral.6
Além disso, contribui para esta ambiguidade o fato de organi-
zações policiais possuírem um “baixo grau de visibilidade”,7
inviabilizando estratégias organizacionais de controle através de
supervisores. Um dos desafios aos executivos das organizações
policiais é o controle do que é feito por eles nas ruas.8 Agrega-se a este
componente a cultura organizacional que se manifesta no código
de solidariedade e silêncio que marca as organizações policiais.9

337
OPORTUNIDADE E CORRUPÇÃO
Um dos problemas relativos à corrupção tem sido a forma
como se tem abordado este tipo de problema no interior das
organizações policiais brasileiras através de corregedorias e
sindicâncias administrativas. De um lado, trata-se o problema
como se fosse relativo a apenas alguns “maus policiais” indicia-
dos individualmente. Não se desenvolve uma abordagem que
compreenda as condições organizacionais e contextuais que
favorecem a corrupção. Isto implicaria conceber a corrupção
não mais como um problema individual, mas institucional, rela-
cionado às condições nas quais as atividades são exercidas.10
Frequentemente ele envolve a omissão de pares, quando não a
aprovação implícita por parte dos colegas e superiores. Assim,
um aspecto é a centralidade que estruturas de controle interno
têm nas organizações policiais, bem como as diversas instâncias
de controle externo.
Por outro lado, o ambiente sociopolítico e o maior ou menor
grau de tolerância à corrupção é também um fator importante a
ser tomado em consideração. Não é plausível pensarmos em uma
polícia absolutamente íntegra em uma sociedade extremamente
tolerante com práticas de corrupção, em que ela estende-se ao
poder político e econômico. Uma das experiências bem-sucedidas
de controle da corrupção em Hong Kong nos anos de 1970
partiu justamente da premissa de que este projeto deveria se
inserir numa estratégia mais ampla voltada para outros níveis
da administração pública.11
A compreensão das condições que favorecem a corrupção
bem como dos determinantes organizacionais e institucionais
evidencia um fenômeno bastante complexo e de difícil inter-
venção. Seu enfrentamento, contudo, é crucial para o bem-estar e
qualidade de vida das nossas populações.

338
NOTAS
1
CRISP. Relatório de vitimização.
2
LEMGRUBER et al. Quem vigia os vigias? Um estudo sobre controle externo
da polícia no Brasil.
3
ROEBUCK; BARKER. A tipology of police corruption; CARTER. Drug related
corruption of police officers: a contemporary typology.
4
NIJ. The measurement of police integrity.
5
BITTNER. Aspects of police work.
6
REIS et al. Debate sobre corrupção.
7
MANNING. The social control of police work.
8
WILSON. Varieties of police behaviour.
9
SKOLNICK. Above the law: police and the excessive use of force.
10
NEWBURN. Understanding and preventing police corruption: lessons from
the literature.
11
KLITGAARD. Overcoming police corruption in Hong Kong. Case study.

REFERÊNCIAS
BITTNER, Egon. Aspects of police work. Boston: Northeastern University
Press, 1990.
CARTER, D. L. Drug related corruption of police officers: a contemporary
typology. Journal of Criminal Justice, v. 18, p. 85-98, 1990.
CRISP. Relatório de vitimização. Secretaria de Defesa Social do Estado de
Minas Gerais, 2007.
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University Press, 1968.

340
luiz eduardo SoareS

CrimE organizado

Corrupção é crime, capitulado no código penal brasileiro.1


No dicionário, a palavra também carrega forte valor negativo.2
Poder-se-ia dizer que se trata de uma quase-categoria cultural,
aplicável em diversos contextos semânticos. Mais do que des-
crever, o substantivo funciona como adjetivo, porque qualifica
estados e ações, associando-os à degeneração, ao desprezível,
ao dejeto, ao refugo e à morte. Seu sentido contagia por uma
espécie de disseminação metonímica, impregnando ambas as
pontas da relação que a palavra estabelece (enquanto verbo ou
substantivo): sujeito e objeto; ator e receptor; ativo e passivo.
Tudo e todos se corrompem, quando o ato em pauta corres-
ponde ao significado referido no código penal, que o dicionário
contempla e transcende. Não é à toa que tendem à generalização
as críticas dos que acusam membros de uma instituição pela
prática da “maldita” corrupção. Nesse quadro, não é aleatório
o emprego de metáforas patológicas: câncer, gangrena, apodreci-
mento etc. Tampouco é arbitrária a ressonância sexual de algumas
utilizações do termo, como, por exemplo, em “corrupção de
menores” – acepção em que a sexualidade é incorporada ao
âmbito semântico. A sexualidade é um campo simbolicamente
fértil para a produção de imagens poderosas, relativas à conta-
minação – moral, física e psicológica. é também esta a linguagem
popular na qual se ironiza o esbulho do interesse público. Veículo
gerador de vida, o intercurso sexual aparece também, no imaginário
social, como a troca de fluidos ou substâncias portadoras de valor
moral e energia destrutiva. Animar a matéria, insuflar-lhe vida,
infundindo o sêmen que será fertilizado, pode ser interpretado,
dependendo das circunstâncias, em clave negativa: soprar a
morte, lançando à matriz, fonte da multiplicação, a semente da
degradação, que conspurcará corpo e alma.
Deduz-se, portanto, desse breve inventário de séries culturais,
que corrupção ultrapassa e, mais que isso, se afasta do território
da Justiça criminal e do ilícito, e se derrama sobre o universo da vida
social, assinalando riscos e limites para comportamentos, relações
e disposições mentais, figuras e ambições, desejos e objetos.
Do ponto de vista do amadurecimento democrático de uma
sociedade e do fortalecimento de suas instituições, o perigo reside
tanto na prática da corrupção quanto em certos tipos de reação
que provoca. Evidentemente, a repulsa social à corrupção é um
antídoto importante e uma afirmação positiva da legalidade. Por
outro lado, a reação por parte da sociedade, mesmo se opondo à
corrupção, pode ser negativa em seus efeitos, quando se manifesta
em críticas e denúncias que adotam a lógica cultural atribuída a
seu objeto, ou seja, quando assume uma perspectiva metonímica
(geradora de contágio simbólico), induzindo às generalizações
– as quais podem se tornar fontes de ceticismo e apatia cívica.
A reação social também pode ser perigosa para a consolidação
democrática quando define o fenômeno da corrupção sob ótica
exclusivamente moral. O perigo provém do fato de que, nesse
caso, o contrário da corrupção não é o rigor no cumprimento
das determinações legais, não é o respeito aos procedimentos, às
regras, às instituições; não é, por assim dizer, o amor à legalidade,
o zelo pela forma. O avesso da corrupção é a pureza, significado
que aponta para o que é externo a toda forma, independente de
qualquer regra, maior do que os continentes que os artifícios
humanos, historicamente, lhe poderiam proporcionar.
Instala-se um paradoxo: a corrupção pode degradar indiví-
duos, relações e, em escala mais ampla, instituições, inclusive
aquelas que estabelecem os contornos normativos da vida coletiva,
isto é, as instituições jurídico-políticas; enquanto isso, as reações

342
da sociedade, em função dos sentidos que nossa cultura atribui
à protocategoria “corrupção”, quando a focalizam e a destacam
de seu contexto, tendem a alvejá-la, orientando-se para a valori-
zação de seu inverso semântico-moral, a “pureza”, cuja realização
ou aproximação (sempre simbólica) supõe, por definição, o
desprendimento – e, mais que isso: a negação da matéria e da
história, dos interesses e das paixões, do corpo e de suas marcas,
das instituições e, mais especificamente, da política. Em outras
palavras, as reações populares à percepção de que a corrupção
se alastra como uma praga no tecido social e no mundo político
conduzem ao mesmo resultado supostamente produzido pelo
mal que se deseja combater: a desconstituição (moral, valorativa,
quando não prática) da política democrática e de seu aparato
institucional. A profecia se autocumpre, por efeitos perversos
(não intencionais e não antecipados) da ordem moral.
Por isso, é imprescindível reconhecer a importância do con-
ceito legal “crime organizado”. Há muitas formas de defini-lo,3
mas todas elas contemplam alguns elementos comuns, como
requisitos indispensáveis na qualificação do caráter organizado
do empreendimento criminoso: planejamento racional com pre-
visão de acumulação de riqueza e/ou poder, divisão interna do
trabalho, hierarquia estruturante do processo decisório e conexão
com o poder público. Observe-se que o último item é, em certo
sentido, o mais relevante e aquele que determina, ao mesmo
tempo, a força do crime organizado e a dificuldade de detê-lo.
A Convenção de Palermo, ratificada, no Brasil, pelo Decreto
Legislativo 231/2003, fixou a seguinte formulação: organização
criminosa consiste em “grupo estruturado de três ou mais pessoas,
existente há algum tempo e atuando concertadamente com o fim
de cometer infrações graves, com a intenção de obter benefício
econômico ou moral”.4
Quando a problemática da corrupção, sendo grave, é requa-
lificada na linguagem que a penaliza, passando a ser tratada
como manifestação criminosa organizada ou como manifesta-
ção do “crime organizado”, um duplo movimento é encetado,

343
reproduzindo no espelho – ou seja, invertendo – aquele previamente
identificado como o paradoxo do juízo exclusivamente moral,
juízo que, despolitizando a questão, produzia efeito análogo
àquele promovido pela própria disseminação destrutiva da cor-
rupção. Se a corrupção – agora redefinida como “dinâmica do
crime organizado” – envolve e conspurca instituições, é por elas
nomeada (a linguagem penal tem origem legislativa e é juridica-
mente consagrada) e enfrentada (o Ministério Público, a Justiça
e as polícias têm o dever de preveni-la, contê-la e puni-la), segundo
procedimentos por elas estabelecidos, à luz do interesse público
(não é outra coisa, pelo menos em teoria, a legislação). Assim, a
debilidade das instituições ou sua patologia (a corruptibilidade) é
identificada no mesmo movimento em que se afirma o vigor dessas
mesmas instituições, sua legitimidade, seu compromisso repu-
blicano, sua potência autocorretiva, graças aos instrumentos
de controle externo e ao jogo dos contrapoderes democráticos.
Em outras palavras, quando, no Estado Democrático de Direito,
se alterna o canal de produção do sentido, quando se abandona o
domínio semântico das categorias morais de acusação e se passa
a operar no terreno político da codificação jurídica, o problema
original muda de perfil: a classificação que confere inteligibi-
lidade ao fenômeno passa a ser intrínseca ao campo atingido
pelo “mal” a debelar, sendo também internos a esse campo os
recursos mobilizados para circunscrever o “mal” e conduzir seus
praticantes a um tratamento público padronizado, transparente,
metodicamente aplicado, repetitivo e previsível, e, sobretudo,
controlável – no âmbito do devido processo legal. O vocabulário
muda, transformando percepções e reações, redirecionando
os desdobramentos culturais e políticos: tratar o problema
como crime e não como a expressão do mal permite lidar com
o desafio nos marcos institucionais ameaçados pela existência
do problema, revigorando-os, ao invés de cumprir, inadvertida
e involuntariamente, a maldição do juízo moral, ao procurar a
paradoxal salvação redentora na repulsa à política.

344
Assim, definir a corrupção como um crime representa um
avanço, relativamente à abordagem moral (ainda que uma
dimensão moral esteja inapelavelmente presente na própria
conceptualização do crime, supostamente apenas técnica e
“positiva” – e não o dizemos para lamentá-lo, pelo contrário).
é claro que, como se observou acima, corrupção é crime. Nesse
sentido, poder-se-ia prescindir do conceito “crime organizado”
para que se operasse a superação da linguagem moral. Entre-
tanto, como o nome do crime coincide com a protocategoria
popular, “corrupção”, o deslizamento entre os tipos de codifi-
cação (criminal e moral) acaba dificultando a fixação do foco
semântico na dimensão jurídico-política, ao contrário do que
acontece quando a referência é o “crime organizado”.
Definir corrupção pelo viés da chave interpretativa oferecida
pelo conceito “crime organizado” significa um avanço ainda
mais expressivo, na medida em que a questão perde sua aura
individual, simbolicamente mais suscetível a associações morais
unidimensionais e despolitizantes.Além disso, esse conceito acentua
a natureza eminentemente pública e universalista do Estado (o
que implica o compromisso essencialmente republicano de seus
servidores), refratária a apropriações privatizantes e reafirma a
centralidade de seu papel no enfrentamento do problema.
Portanto, ainda que nem toda corrupção envolva crime
organizado, ela é sempre um crime e, além disso, não há crime
organizado sem corrupção, isto é, sem a captura clandestina
de segmentos das instituições públicas por interesses privados
ilícitos. Apaguemos o último adjetivo, “ilícitos”. Ele é dispen-
sável. Afinal, é crime submeter o interesse público ao privado.
Ponto final. Não importa a qualidade do interesse privado ou as
intenções que o presidam. Contudo, se esse argumento procede,
aproximamo-nos perigosamente de uma outra constelação de
problemas, onipresente na história brasileira: o patrimonialismo.
Como conceituá-lo sem mencionar a apropriação privada do
Estado, de seus instrumentos e recursos? Esse entendimento
tornaria o patrimonialismo membro incômodo e surpreendente

345
da família genericamente descrita, em linguagem penal, como
“crime organizado”.
O que essa súbita associação precipitaria? Desde logo a neces-
sidade de que se demarquem diferenças e similitudes, ambas
reveladoras das iniquidades brasileiras e de nosso tradicional
elitismo autoritário. São as leis que definem os crimes. Eles deixam
de existir quando as leis que os identificam são suprimidas.
Passam a existir quando elas são promulgadas. Aproximar, por-
tanto, o antigo patrimonialismo brasileiro do crime organizado
consiste em anacronismo. Por outro lado, se nos dispusermos a
tomar liberdades históricas e a projetar no passado juízos formu-
lados no presente, à luz da legislação em vigor, concluiremos
que determinados grupos sociais apropriaram-se de segmentos
do Estado, submetendo-os à regência de interesses privados.
As formas de domínio de classe e as estruturas de opressão
conquistam bizarra dignidade histórica, quando triunfam. Até
porque são os vencedores que legislam. Atualmente, quando
a experiência democrática brasileira, com todos os percalços,
limites e contradições, alcança uma consistência e uma estabili-
dade que não conhecêramos em nossa história, situamo-nos,
enquanto sociedade, em uma posição promissora, na medida em
que a gravidade de problemas tão sérios e ameaçadores, como
a corrupção e o crime organizado, pode constituir a oportuni-
dade, graças ao quadro legal e institucional, para aprofundar o
controle democrático do Estado e afirmar o interesse público,
na perspectiva da equidade e da Justiça.
Em uma palavra: hoje, fazer justiça está em sintonia com a
consolidação da democracia e a superação dos vestígios de nosso
“atávico” patrimonialismo. De tal maneira que o velho e desgastado
jargão conservador, “lei e ordem”, mesmo ainda funcionando a
serviço da antiga retórica, começa a revestir-se de significados
surpreendentemente progressistas, quando associado à defesa
do cumprimento constitucional do dever republicano. Resistem
ao Estado Democrático de Direito e à sua ordem os que temem
sua efetiva realização, com suas inequívocas implicações sociais.

346
Democracia e respeito ao contrato social que ela representa,
expresso em determinada constelação normativa, isto é, em um
arranjo legal e institucional, são duas faces da mesma moeda e
dimensões de um mesmo processo.

NOTAS
1
Corrupção passiva (art. 317): “Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta
ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão
dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem.” Corrupção ativa
(art. 333): “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para
determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício.”
2
“Ato ou efeito de corromper; decomposição, putrefação. Fig. Devassidão, depra-
vação, perversão. Suborno, peita.” (Dicionário Aurélio Buarque de Holanda)
3
A esse respeito, consultem-se os excelentes artigos “Organizações criminosas e
Poder Judiciário”, de Flávio Oliveira Lucas, e “O trabalho da Inteligência no
controle do crime organizado”, de Guaracy Mingardi, ambos publicados na
revista Estudos Avançados, 61; Dossiê Crime Organizado (USP-IEA, set./dez.
2007).
4
Apud LUCAS. Organizações criminosas e Poder Judiciário.

347
Jean Hébette
raul d a S i l v a n av e g a n t e S

mEio ambiEntE

A corrupção, na sua essência, é a sedução ou a tentativa


de sedução procurando envolver terceiro(s) na busca dolosa e
solidária de uma vantagem mútua, contornando as respectivas
normas e obrigações morais próprias da esfera específica onde
se opera: o campo financeiro, político, policial, judiciário etc. é
infinita a variedade de vantagens suscetíveis de atrair sedutor
e seduzido. À primeira vista, pensa-se em vantagens materiais,
principalmente financeiras; mas há benefícios de outra ordem,
como o poder, o prestígio, a classificação numa competição
acadêmica, eleitoral ou esportiva, uma promoção funcional ou,
mais prosaicamente, serviços sexuais. Cada um desses planos
está ligado a um espaço social e político, pessoal ou institucional,
caracterizado pelos tipos específicos de vantagens em jogo, pelos
atores envolvidos e pelos estratagemas usados. Entre eles, o domí-
nio ambiental ou ecológico, durante muito tempo relativamente
imune à corrupção, por desconhecimento de seu objeto – “o meio
ambiente”. O marco histórico de sua publicidade internacional
e do desvelamento de sua especificidade entre outros territórios
mais clássicos pode ser datado da publicação do famoso Rela-
tório Meadows (1972) “sobre os limites ao crescimento”, da 1a
Conferência sobre o Meio Ambiente, em Estocolmo, no mesmo
ano, e da publicação, em 1987, de “Nosso futuro comum”, conhe-
cido como Relatório Brundtland.
O Relatório Meadows veio desmistificar o conceito enraizado
de “bem ilimitado”, atribuído à natureza após as descobertas
renascentistas e reforçado pela ideologia do progresso e do desen-
volvimento associada ao capitalismo triunfante do século 20.
Destacava os componentes principais deste modelo hoje hege-
mônico e globalizado de crescimento: “um contexto mundial de
interdependência e interação de cinco fatores críticos: explosão
demográfica, produção alimentar [deficiente], industrialização,
esgotamento dos recursos naturais e poluição” – todos eles
em evolução exponencial e interagindo exponencialmente em
forma de espiral. Estava revelada a questão moderna do “meio
ambiente” – uma expressão, em si, banal, mas, daqui em diante,
elevada à dignidade de conceito central dos discursos das mais
altas instâncias nacionais e internacionais – e estavam definidos
seus contornos trágicos. Dadas sua dimensão planetária e a
interação cósmica de todos seus componentes, impunha-se às
consciências como patrimônio de toda a humanidade passível
tanto de prudente preservação em nível intercontinental quanto
de apropriação privada exclusiva, individual ou coletiva, e, até, de
insensata dilapidação. Frente à produção industrial capitaneada
pela busca do lucro máximo e, contraditoriamente, incapaz de
se adequar às necessidades mais básicas de uma humanidade
cujas dimensões e condições de vida não podiam mais escapar
ao conhecimento comum, estava posta em xeque a fecundidade
ilimitada da Mãe Natureza na sua missão solitária de nutrir e
manter as gerações futuras. Estava ao mesmo tempo denunciado
o risco próximo da crise do sistema produtivo planetário com
advento da fome, já fáctico em algumas latitudes. A poluição
industrial e urbana, as queimadas de florestas, os lixos domésticos
e radioativos jogados à toa nos rios, lagos e oceanos, estavam
comprometendo a integridade e a reprodutibilidade da natureza
e, com ela, a integridade da espécie humana. Perdido o caráter
ilimitado, os recursos naturais tornavam-se, nos termos da ciência
econômica, um “bem raro” e, portanto, um “bem econômico”; em
outros termos, uma mercadoria, objeto de cobiça, de competição,

349
de negociação, de acumulação – uma nova categoria de capital!
– e, consequentemente, de corrupção. No quadro de uma ges-
tão capitalista, formou-se também, inevitavelmente, ao lado de
muitos outros, um mercado novo, específico dos bens ecológicos
e aberto às estratégias de corrupção. O mais complexo de todos
os mercados e, possivelmente, o mais difícil de se regular.
A raridade dos bens ecológicos, aliada, por um lado, ao cres-
cimento exponencial e perverso da sua incorporação ao sistema
produtivo mineral, fabril e agropecuário e, derivadamente, à
demanda efetiva de consumo e, por outro lado, associada à sua
destruição por mil formas de poluição, originou novos modelos
de produção e consumo industrial e de uso pessoal e coletivo da
natureza que, em movimento circular, provocaram medidas
públicas conservatórias em níveis nacionais e internacionais.
Além dos propriamente industriais, destaca-se, entre os novos
consumos da natureza, a busca frenética de refúgios contra
as tensões do trabalho e da vivência nas metrópoles: turismo,
residências de lazer no campo, na montanha e nas praias, es-
portes alternativos. Nem sempre são ecologicamente positivos,
considerando-se não só seu aproveitamento produtivo perverso,
como também a competição – e corrupção – na distribuição de
suas oportunidades de fruição em termos de entretimento, contem-
plação, repouso e autonomia de modo de vida. Este novo campo
ambiental, como os outros, se distingue por seu repertório parti-
cular de bens cobiçados, pelos atores ecologicamente corruptores,
corruptíveis e corruptos, e pelas diversificadas instituições privadas
e públicas, nacionais e internacionais implicadas na gestão e
controle daqueles bens limitados: novos ministérios, novas leis e
novas instituições jurídicas e judiciárias, novas disciplinas e cátedras
acadêmicas, novas normas e novas entidades fiscalizadoras com
múltiplos, novos e sofisticados instrumentos de controle. E todo
um novo campo fecundo, portanto, para burlar as leis e praticar
a corrupção, mediante uma constelação de profissionais e de
procedimentos nisso especializados.

350
Pode-se citar, a título de exemplo, alguns dos interesses em
jogo na parceria dolosa neste campo ambiental. No domínio da
produção, a obtenção de direitos de mineração, de implementação
de projetos energéticos, como os hidrelétricos e nucleares, de
exploração das florestas e de comercialização da madeira, de
instalação e funcionamento de indústrias poluidoras. No domínio
da biodiversidade, as florestas tropicais, reservatórios de uma
extraordinária diversidade em flora e fauna cobiçada pela indústria,
notadamente, madeireira, farmacêutica, cosmética e aromática,
em contínua expansão. Não estranha que sejam objetos de
pirataria cúmplice e de exploração clandestina, de negociações
suspeitas e de corrupção: sementes, óleos, aves, peixes, insetos,
veneno de cobras ou de escorpiões (de um valor comercial de
dezenas de milhares de dólares o grama). No domínio da fuga das
tensões da vida e da busca de bem-estar individual ou familiar,
a apropriação ilegal de praias, a construção de casas e mesmo
de favelas nas florestas públicas, as pescas e caças predatórias.
Quanto às formas e aos mecanismos de corrupção, eles vão
dos mais elementares, como uma piscadela, um expressivo trocar
de olhares, um sorriso ou mesmo um silêncio cúmplice numa
conversa em torno de uma mesa de bar, até os mais dramáticos,
como uma expulsão ou ameaça de morte. Os instrumentos da
execução do pacto doloso variam conforme os interesses em
jogo e as instituições onde se negociam; são, por exemplo, uma
simples assinatura numa autorização ou num acordo, a produção,
falsificação, extravio ou furto de documentos, a demora reiterada
no julgamento de ato criminoso e os sistemáticos e meramente
procrastinatórios recursos judiciais. Quanto aos atores, a parceria
pode ser de apenas um par ou de uma quadrilha que, assim, aumenta
sua eficiência, dividindo entre parceiros os riscos externos de
punição, compensados internamente por riscos de queima de
arquivos. Existe até corrupção anunciada e institucionalizada
como, no tempo das aberturas de fronteiras agropecuárias no
Paraná e na Amazônia Legal, a de cartórios de registro de imóveis
publicamente conhecidos como especializados em falsificação de

351
títulos de terra, chamados grilos. São até hoje comentados na
literatura, por exemplo, o Grilo do Pindaré, no Maranhão,1 e
vários Grilos na Terra do Meio, no Pará,2 cada um com milhões
de hectares de terras devolutas. “O Livro Branco da ocupação
ilegal das terras” – documento publicado em 2000 pelo Minis-
tério de Política Fundiária e de Desenvolvimento Agrário – se
refere a 187 proprietários de latifúndio suspeitos de estelionato
fundiário e ilustra alguns instrumentos de fraude, citando expli-
citamente o caso inacreditável e não resolvido pela justiça, de
um proprietário-fantasma pretendente, através de advogados
legalmente habilitados, a nada menos do que nove milhões de
hectares de terras.
A corrupção, nestes casos, começa pela fabricação ou adulte-
ração da cadeia de transmissões, registrada num cartório e seguido
de venda e compra em cartórios dispersos, certidões fictícias,
frequentemente com a participação de procuradores inocentes
ou criminosos. Na tramitação destes papéis é comum o extravio
ou a destruição de documentos, a clara retirada ou inserção de
folhas nos processos. Nestas megacorrupções, é mencionada uma
grande variedade de atores, desde um simples escrivão até dono
de cartório, de funcionários e até dirigentes de institutos ou de
Delegacias de Terra, agentes da polícia e outras autoridades
públicas, nem que fosse por um inocente bilhete ou uma carta de
recomendação discretamente dirigidos aos serviços competentes
ou, ainda, por diferentes formas de acobertamento político.
Questionada a ocupação ilegal da terra, recorre-se ao Judiciário,
onde a complexidade e as sutilezas próprias da processualística
perenizam os “sub judice” – casos pendentes de exame e decisões
judiciais, de movimentação demorada e errática em diferentes
níveis – mormente quando as próprias leis a aplicar pecam por
pervertidos vícios de elaboração. Como as outras, a instância
judiciária nem sempre foge de procedimentos pérfidos.
A mais comentada, hoje, das destruições de recursos naturais
se refere à indústria madeireira. Calcula-se numa média aproxi-
mada de 20 mil km2 a área anualmente desmatada na Amazônia

352
nos últimos anos, em forma de extração seletiva de madeiras
nobres ou de corte raso para implantação de pastagens latifun-
diárias. é conhecido, por sua vez, o fato de o uso indiscriminado
de agrotóxicos na gestão dessas pastagens ter esgotado e tornado
economicamente improdutíveis extensas áreas, antes aráveis.
Assim acontece, também, com as monoculturas, o plantio de
espécies superabsorvedoras de água do solo, como o eucalipto.
O número astronômico de autuações, de multas, de apreensões
policiais de produtos vegetais e animais, de prisões por crime
ambiental atesta o tamanho das transgressões às leis, que ultra-
passa, e de muito, os números registrados. Foram denunciados
vários casos de megafurtos de formulários de autorizações de
desmatamento e de transporte de madeira em escritórios do
IBAMA e de desvio de formulários do Instituto de Terras do Pará
- ITERPA. Madeireiros obtêm assim, além de suas necessidades,
um número extravagante de autorizações de derrubada ou de
transporte de madeira, em seguida negociadas com cúmplices.
A corrupção não tem limite, como no Pará, no caso da conde-
nação à pena máxima de prisão de pistoleiros assassinos contra-
tados por uma quadrilha por um valor de dezenas de milhares de
reais – os mandantes ficando em liberdade; noticia-se, inclusive, a
ameaça de morte de um bispo pelo preço de um milhão de reais,
sem que ninguém estranhe. O número inexpressivo de processa-
mentos e condenações de mandantes de centenas de mortes de
camponeses e de advogados, assessores leigos e religiosos a eles
ligados, não se explica sem a cumplicidade de autoridades.
Não são, obviamente, apenas as empresas, maiores – como
as internacionais – ou menores – como os garimpos ou as car-
voeiras –, que burlam as leis e vivem de suborno. Há, também,
a corrupção banalizada, larvada, quase que institucionalizada
graças ao que um Secretário Executivo da Controladoria Geral
da União chamou nossa “histórica cultura da impunidade”, e
graças a nossa cultura coletiva de cidadãos que, mediante acordo
tácito ou mesmo se jactando de suas façanhas, se corrompem,
jogando lixo na rua, em terrenos baldios, nas praias, construindo

353
mansões em áreas protegidas, alimentando-se de graça da energia
pública. Na verdade, a corrupção é um fenômeno social, por
sua natureza, tentacular. No campo ambiental, porém, dadas
a interdependência dos componentes dos ecossistemas, seus
efeitos predatórios se voltam indiscriminadamente contra todos
nós, inclusive corruptores e corruptos, ameaçando, até, a vida
da humanidade.

NOTAS
1
ASSELIN. Grilagem. Corrupção e violência em terras do Carajás.
2
PINTO. O jornalismo na linha de tiro (de grileiros, madeireiros, políticos, empre-
sários, intelectuais e poderosos em geral).

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Petrópolis: Vozes/CPT, 1982.
MEADOWS, Donella et al. Rapport sur les limites à la croissance. In:
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Paris: Fayard, 1972.
PINTO, Lúcio Flávio. O jornalismo na linha de tiro (de grileiros, madei-
reiros, políticos, empresários, intelectuais e poderosos em geral). Belém:
Edição Jornal Pessoal, 2006.

354
MarliSe M at o S

gênEro

Há convergência de vários autores, no Brasil e no mundo, em


afirmar que a corrupção é um grave problema para as democracias
(na medida em que se generalizam práticas de corrupção, fraude,
desrespeito ao interesse público, é criada uma atmosfera de descré-
dito/desconfiança, na qual cidadãos tendem a se distanciar da
política e das instituições democráticas),1 assim como para um
projeto consistente de desenvolvimento sustentável (a corrupção
minaria a capacidade dos Estados de prover serviços essenciais à
população, retardando uma interrupção nos ciclos de pobreza).2
Ou seja, entende-se ser urgente conceituar a corrupção como um
desafio tanto para os setores públicos quanto privados e não
pensá-la, exclusivamente, na chave das atividades criminosas
privadas. Há igualmente estranha sintonia em dar destaque ao fato
de que, às vezes ancorado em “evidências empíricas”, as mulheres
teriam, mais do que os homens, um conjunto de comportamentos
sociais e eticamente orientados, assim como demonstrariam
maior preocupação para com o bem comum, podendo-se derivar
daqui que elas seriam, então, “menos” corruptas.
Há, no cenário internacional, muitas pesquisas3 que destacam
a existência de diferenças no envolvimento de mulheres e homens
em atividades de corrupção. O que não nos parece claro, em
função das imensas assimetrias e desigualdades que perpassam
os sexos ainda hoje (especialmente aquelas relativas ao acesso e
permanência profundamente desiguais das mulheres aos espaços
de tomada de decisão e aos postos hierarquicamente mais altos
nas diversas instâncias do mercado de trabalho), é se tais “evi-
dências” podem ser atribuídas a diferenças de “oportunidade”4
ou a “diferenças de gênero”, efetivamente.
Quero destacar aqui que há bastante convergência também,
desta vez nos estudos de gênero e feministas, em afirmar que
não seria possível identificar “essências” fundamentais no que
tange à construção de diferenças nas identidades de gênero.5
Considero que as “identidades” de mulheres e de homens são
muito mais pontos provisórios de chegada de trajetórias social
e politicamente construídas a partir de percepções, sentimentos,
experiências e vivências específicas de gênero do que um depósito de
atitudes moralmente orientadas e consolidadas que se fundariam
nas diferenças de sexo.
Uma das mais sérias e importantes consequências deste con-
junto de afirmações a respeito da maior “eticidade” das mulheres
na condução da coisa pública ou de sua menor propensão às
atividades corruptas seria, evidentemente, que as democracias
modernas deveriam incrementar a participação feminina na força
de trabalho, mas, em especial, nos espaços institucionalizados
da política, pois isso levaria a uma redução mais acelerada da
corrupção. é necessário ir mais devagar com esse argumento.
Ainda que não tenhamos, nos mesmos moldes, pesquisas como
estas no Brasil, dados preliminares de estudos em andamento6
indicam que, proporcionalmente, as mulheres parlamentares se
encontram tão envolvidas quanto os homens nos últimos episódios
de corrupção política no Brasil (os casos aqui mapeados foram:
a Máfia das Ambulâncias, que contempla o escândalo das sangues-
sugas, e o escândalo do mensalão).
Curioso compreender que a inclusão/exclusão das mulheres
do mundo público (e em especial da política) oscilou historica-
mente entre os dois polos de um binarismo que teria sido estéril se
não estivesse operando de forma profundamente discriminatória:
de um lado a saúde do público dependeria da exclusão/saída das
mulheres (já que suas disposições morais particularistas e emo-
cionais seriam subversivas aos moldes de uma justiça imparcial),

356
de outro ela dependeria da sua inclusão/entrada (a sua inerente
“ética do cuidado” possibilitaria maior atenção ao público como
um interesse coletivo e não individual). Em qualquer um dos
lados o efeito foi/é o mesmo: penalizar e/ou responsabilizar as
mulheres e desculpar/aliviar os homens. Estranho e contradi-
tório perceber que as mulheres, ainda no século 21, possam ser
representadas com tanto poder, uma representação falsa, já que,
como sabemos, as mulheres são parcela irrisória dos espaços de
poder aqui e em todo o mundo.
Outra série de estudos7 destaca que, em países onde os direitos
das mulheres estão mais restringidos, haveria maior prevalência
de corrupção. Kaufmann então se indaga:

Será que devemos entender a ausência da efetividade dos direitos


femininos como uma variável proxy da ausência das demais liberdades
civis em uma dada sociedade? Ou devemos entender que a participação
feminina tem um efeito de inibição da tolerância social à corrupção?8

Sem pretender responder às indagações, o que tais estudos nota-


damente evidenciam é que um alcance maior de liberdades polí-
ticas e de direitos de cidadania estaria associado ao concomitante
aumento no controle possível da corrupção. Esta outra discussão,
bem mais interessante, descola dos gêneros a (i)responsabilidade
sobre comportamentos que sejam mais (ou menos) éticos e reco-
loca a questão em outros patamares. é mais razoável supor que
o combate efetivo e sustentado às práticas de corrupção possa
se realizar num ambiente (privado e público) em que direitos e
liberdades sejam exercidos em maior plenitude do que em ambientes
de restrição aos mesmos.
Uma possível explicação para as “evidências” dos surveys
internacionais de que onde há mais mulheres haveria menores
índices de corrupção pode estar no fato de que tais variáveis (o
nível de corrupção, o número de mulheres nas esferas de decisão e a
liberdade política de um determinado país) estão inter-relacionadas,

357
afetando umas às outras simultaneamente, sendo as evidências
reflexos deste reforço mútuo.
Antes de se decidir se o gênero deve ser levado em considera-
ção para a compreensão dos fenômenos da corrupção, deve-se
saber como ele já foi levado em conta. Numa sociedade que se
organiza por princípios de dominação, inferiorização e subor-
dinação sistêmica de mulheres não há mais necessidade de que
existam outras discriminações concretas adicionais: simples, com
as instituições sociais e políticas refletindo os interesses mascu-
linos e o problema se estruturando no eixo da dominação dos
homens sobre as mulheres, a solução não poderá ser apenas a
ausência de discriminação, mas a urgência da presença de poder.
A igualdade requer não apenas igual oportunidade de buscar
papéis definidos por homens, mas também igual poder de criar
papéis definidos por mulheres ou de criar papéis em que homens
e mulheres tenham igual interesse em preenchê-los. Seria razoável
que, finalmente, alcançássemos a compreensão ampliada de que
é responsabilidade, tanto dos homens quanto das mulheres, a
construção de atitudes positivas e eticamente orientadas para
estruturar uma sociedade decente e democrática onde direitos,
oportunidades e liberdades sejam igualmente distribuídos: seja no
eixo que tange à ocupação pelas mulheres dos espaços públicos
e das instâncias de decisão política, seja no eixo de urgência dos
homens virem a se ocupar dos espaços privados e das instâncias
de socialização, cuidado e educação primária das futuras gera-
ções. Estas sim é que deveriam ser tarefas e desafios levados a
cabo e compartilhados por cada um de nós, independentemente
de nossa posição de sexo/gênero.

NOTAS
1
MOISéS. Cidadania, confiança e instituições democráticas.
2
ARAúJO; SANCHEZ. A corrupção e os controles internos do Estado.
3
LAMBSDORFF. The Transparency International corruption perceptions index;
DOLLAR; FISMAN; GATTI. Are women really the “fairer” sex? Corruption
and women in government; SWAMY et al. Gender and corruption; CROSON;

358
GNEEZY. Gender differences in preferences; RIVAS. An experiment on cor-
ruption and gender. Conforme cita Lambsdorff (1999): “O impacto do gênero
na corrupção, outro aspecto que é tratado aqui como uma dimensão cultural,
também foi recentemente investigado por Swamy et al. (2001) e Dollar et al.
(1999). Os autores definiram os percentuais de participação das mulheres na
força de trabalho e nos parlamentos. Os dois indicadores tiveram um impacto
negativo no nível de corrupção numa análise comparativa cruzada para 66 países.
Essa influência é de grande magnitude, altamente significativa e robusta em uma
variedade de modelagens de regressão e tendo sido controladas muitas variáveis.
Tais achados estão alinhados com algumas das microevidências reportadas por
Swamy et al. e sugerem que as políticas desenhadas para incrementar o papel
das mulheres na sociedade pode ajudar a diminuir os níveis de corrupção”
(LAMBSDORFF. The transparency international corruption perceptions index,
p. 11, tradução da autora)
4
Aqui se argumentaria que as mulheres, não estando naquelas áreas onde os índices
ou a incidência de corrupção não é tão alta, não seriam tão impactadas, portanto,
por elas. Na medida em que as mulheres passassem a estar mais continuamente
expostas nestas áreas a corrupção feminina se tornaria clara.
5
Em que pese haver um extenso debate no campo a respeito de uma “divisão
do trabalho moral” (FRIEDMAN. Beyond caring: the De-moralization of
gender, p. 94) segundo as linhas de gênero, ou seja, disposições particularistas,
emocionais e intuitivas para as mulheres e as exigências de sua vida doméstica
e privada, e pensamento imparcial, desapaixonado e racional.
6
ARANHA. Mulheres e corrupção.
7
KAUFMANN. Challenges in the next stage of anti-corruption.
8
KAUFMANN. Challenges in the next stage of anti-corruption, p. 144.

REFERÊNCIAS
ADES, A.; DI TELLA, R. The causes and consequences of corruption: a
review of recent empirical contributions. Liberalization and the New
Corruption, Brighton, Institute of Development Studies Bulletin, XXVII,
p. 6-12, 1996. Ed. B. Harris-White e G. White.
ARANHA, A. L. Mulheres e corrupção. Monografia (Ciências Sociais)–,
Departamento de Ciência Política, Belo Horizonte, UFMG, 2008. Em
andamento.
ARAúJO, M.; SANCHEZ, O. A. A corrupção e os controles internos do
Estado. Revista Lua Nova, São Paulo, n. 65, p. 137-173, 2005.
AZFAR, Omar; LEE, Young; SWAMY, Anand. The causes and consequences
of corruption. Annals of the American Academy of Political and Social
Science, 573, p. 42-56, 2001.
CROSON, Rachel; GNEEZY, Uri. Gender differences in preferences, 2004.
Mimeografado.

359
DOLLAR, D.; FISMAN, R.; GATTI, R. Are women really the “fairer”
sex? Corruption and women in government. Policy Research Report on
Gender and Development, Working Paper Series, Washington, The World
Bank, n. 4, out. 1999.
ELLIOTT, K. A. Corruption as an international policy problem: overview
and recommendations. In: ELLIOTT, K. A. (Ed.). Corruption and the
global economy. Washington: Institute for International Economics, 1997.
p. 175-233.
FRIEDMAN, M. Beyond caring: the De-moralization of gender. Canadian
Journal of Philosophy, v. 13, p. 87-110, 1987. Volume suplementar.
GNEEZY, Uri; NIEDERLE, Muriel; RUSTICHINI, Aldo. Performance in
competitive environments: gender differences. Quarterly Journal of Eco-
nomics, v. 118, n. 3, p. 1049-1074, 2003.
KARAM, Azza. (Ed.). Women in parliament: beyond numbers. Stockholm:
International IDEA, 1998.
KAUFMANN, Daniel. Challenges in the next stage of anti-corruption.
New Perspectives on Combating Corruption, set. 1998.
LAMBSDORFF, J. Graf (1999), The Transparency International Corrup-
tion Perceptions Index. 1. edition 1995 “Transparency International
(TI) Report 1996, 51-53”. 2. edition 1996, “Transparency International
(TI) Report 1997”,61-66. 3. Edition 1997, “Transparency International
(TI) Newsletter, September 1997”.4. Edition, September 1998. 5. edition,
October 1999. Documentação a respeito da metodologia e dos dados sobre
o índice pode ser obtida através: http://www.uni-goettingen.de/~uwvw.
MOISéS, J. A. Cidadania, confiança e instituições democráticas. Revista
Lua Nova, São Paulo, n. 65, p. 71-94, maio/ago. 2005.
RIVAS, Maria Fernanda. An experiment on corruption and gender. Docu-
mento n. 08/06, Uruguay: Universidad de la República, Departamento de
Economía, Facultad de Ciencias Sociales, set. 2006. p. 0-30.
SWAMY, A. et al. Gender and corruption. Journal of Development
Economics, v. 64, n. 1, p. 25-55, 2001.
VOLLMER, Nina. Corruption and female official representation in
developing states – do women counteract political corruption? Lund
University: Department of Political Science, STV003, Spring 2005.

360
regiS MoraeS

rEforma agrária

Sabe-se que uma parte significativa das terras “invadidas” pelos


movimentos de trabalhadores rurais sem-terra, no chamado Vale
do Paranapanema, em São Paulo, são, de fato, glebas outrora
“invadidas” por aqueles que se dizem seus proprietários:
terras públicas, ocupadas por nobres e respeitáveis senhores.
Com algum engenho e muito empenho de lubrificantes, isto é,
de propinas, hábeis advogados, juízes e notários conseguiram
“legalizar” várias dessas glebas, que agora defendem contra os
“agressores da lei e do direito”.
Nada de excepcional. Ao final dos anos de 1960, em plena
ditadura militar, a Câmara Federal constituiu uma CPI destinada
a apurar a venda de terras a estrangeiros. O relatório da CPI foi
publicado com o título de “A venda de terras”, em A Amazônia
em foco.1 Ele não foi redigido por um esquerdista, nem mesmo
por um moderado parlamentar da oposição consentida, mas por
Haroldo Veloso, um ex-militar e deputado federal pela Arena, o
partido do governo.2
Dentro de um congresso mutilado e tutelado, e sob a direção
do partido do governo, mesmo assim a CPI levantou dados,
depoimentos e provas documentais suficientes para pôr em dúvida
grande parte das “propriedades” de terras na Amazônia. O
cardápio de barbaridades era farto – grilagem, documentação
forjada, compras e vendas simuladas, coação, mortes. Para surpresa
de alguns, elas não eram operadas por latifundiários broncos e
jagunços primitivos. Eram obra e arte de empresas modernas do
sudeste – indústrias, bancos, corporações – com suas equipes de
segurança, bem treinadas e armadas, com seus advogados bem
vestidos e bem nutridos. Aliás, até a sede da Associação de Empre-
sários da Amazônia ficava em... São Paulo. E era presidida
por um empresário paulista. Tudo isso, claro, com retaguarda
em parte não desprezível do poder público, do Executivo, do
Legislativo e do “Judiciário independente”, aquilo que se diz ser
o baluarte das democracias e do Estado de Direito.
Esta é a primeira forma de ocorrência da corrupção, no
terreno agro. Diz respeito aos desvios relativos à propriedade:
desvios daquilo que efetivamente é, quando comparado com
aquilo que se diz ser legítimo. Trata-se da distância entre a letra
da lei e a sublei dos fatos.
Mas existe também o desvio no uso. A terra que se diz usada
para isto e de fato serve àquilo. A terra que é do índio, mas cujo
subterrâneo, com minérios e pedras, é explorado por um branco,
que lubrifica as lideranças indígenas, logo embevecidas com
automóveis, bugigangas e um certo estilo de vida. A terra que é
do índio, mas tem sua superfície esfolada por uma companhia
madeireira, que também sabe remunerar as lideranças para que
aceitem a destruição de suas matas, rios, terrenos de caça. A terra
que deveria ser utilizada com cuidados especiais, para evitar a
erosão, o empobrecimento, a salinização, a morte, enfim, mas
é empregada como fonte de rápidos e volumosos lucros, por
proprietários ausentes, temporários, descompromissados com
aqueles que ali ficarão, como zumbis de um mundo morto.
A terra que recebe crédito para que nela se plante, e que perma-
nece nua, à espera de valor, enquanto o crédito, riqueza líquida,
transforma-se no investimento gasoso do fundo bancário, dos
papéis remunerados pela especulação. Para que isto ocorra, desne-
cessário dizer, também alguns agentes sociais e funcionários
públicos deverão receber o prêmio da cooperação fraudulenta.
Bancos, fiscais, promotores, juízes – a lista seria longa. No final
da ditadura, um destes escândalos ficou conhecido pela crueza
dos fatos e pelos extremos caricatos – o famoso “escândalo da

362
mandioca”. Este nobre e heroico tubérculo, salvador de tantos
nordestinos, rendeu fortunas e deixou assassinatos ainda hoje
não resolvidos nem punidos. Como em muitos outros casos, Brasil
afora e tempos afora, os envolvidos adquiriam empréstimos
para o plantio e, na hora de quitar as dívidas, alegavam perda
da safra e... davam um calote, infalivelmente transferido para
os cofres públicos.
Há décadas, uma novela parecida se repete, sem muita criativi-
dade: praticamente todo ano, cerca de 500 grandes proprietários,
à frente de outros 2.500 de médio porte, encenam uma pressão
sobre o governo federal, para “rolar” suas dívidas, isto é, sorver
o tesouro público. Para ajudar na manobra, contam com cerca de
200 deputados, a chamada “bancada ruralista”, que condiciona
seus votos, no parlamento, à aceitação desta chantagem. O valor
do golpe? No ano de 2007 estava perto dos 30 ou 40 bilhões de
reais. Destes, cerca de 80% se referiam aos 500 mais ricos. Essas
500 famílias “rolam”, portanto, umas três vezes o total destinado
ao programa Bolsa-Família, que socorre 11 milhões de famílias
carentes. Curiosamente, muitos desses “empreendedores dinâ-
micos” e seus deputados, sua mídia, condenam o Bolsa-Família
como política que “clienteliza” os pobres, atrelando-os ao
governo, e, além disso, enfraquece, neles, a ética do trabalho,
a necessidade do esforço para a sobrevivência. Como se vê, até
o vocabulário se corrompe.
Assim, corrupção é algo que se identifica com facilidade,
desde que tenhamos olhos de ver, ouvidos de ouvir. Mas os olhos
e ouvidos alimentados por satélites e ondas de rádio e TV não
são olhos de ver nem ouvidos de ouvir.

NOTAS
1
COMISSÃO NACIONAL DE DEFESA E PELO DESENVOLVIMENTO DA
AMAZôNIA – CNDDA. A Amazônia em foco.
2
Partes extensas desse relatório são reproduzidas e comentadas por Octavio Ianni
em Ditadura e agricultura – o desenvolvimento do capitalismo na Amazônia
(1964-1978).

363
REFERÊNCIAS
COMISSÃO NACIONAL DE DEFESA E PELO DESENVOLVIMENTO
DA AMAZôNIA – CNDDA. A Amazônia em foco. Rio de Janeiro, 1968.
IANNI, Octavio. Ditadura e agricultura – o desenvolvimento do capi-
talismo na Amazônia (1964-1978). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1986.

364
CriStina zurbriggen

EmprESárioS
E rEdES rEntiStaS

A busca de rendas é uma expressão que tem sido usada na


literatura latino-americana para expressar a busca de privilégios
por parte dos empresários. Os empresários exercem influência
política sobre o governo, obtendo modificações de medidas
econômicas favoráveis a seus interesses, em contraposição ao
bem-estar do cidadão, sendo considerada, nesse sentido, uma
manifestação da corrupção.1
As contribuições mais importantes a este conceito vêm da
economia e, principalmente, da perspectiva da teoria da escolha
racional, sendo o enfoque da busca de rendas (rent-seeking) o
que aparece como o mais importante. As contribuições pionei-
ras estão nos trabalhos de Tullock, Bhagwati, Krueger, Rose-
-Ackerman,2 entre outros. A busca por rendas se define como
a competência de empresas ou grupos de interesse organizados
para obter privilégios, rendimentos financeiros e favores polí-
ticos individuais, em contraposição ao bem-estar social. Desta
perspectiva, ela se explica como resultado do cálculo de custos
e benefícios da ação e da maximização de utilidade dos indi-
víduos. Os empresários atuam de maneira racional, e incorrem
em condutas de caça à renda quando julgam que os prováveis
benefícios por cometer um ato ilícito superam os custos.
Em geral, se assinala que a verdadeira origem do comporta-
mento de busca às rendas é a disponibilidade delas, a qual surge
principalmente das regulações políticas criadas pelo Estado,
como controles de taxas, subsídios para a produção, créditos
artificialmente baratos, de que estes grupos podem capturar e
extrair rendas. As rendas são induzidas pelo governo, a autori-
dade pública tem capacidade discricionária para aprovar ou não
expedientes de autorização e os empresários podem ser incen-
tivados a subornar os funcionários públicos. Sua existência,
ademais de erodir os valores sociais em perdas de bem-estar para
o conjunto da sociedade, impede o pleno emprego das forças de
mercado e o desenvolvimento econômico. A partir deste diag-
nóstico, a solução para combater este flagelo social se encontra
em fixar uma nova estrutura de incentivos ou um mero ajuste
institucional.
Na análise da caça à renda, também é importante destacar o
enfoque do principal agente. Estas relações são estudadas utili-
zando as premissas da teoria econômica.3 A busca de rendas que
se expressa em atos corruptos pode ser interpretada como um
desvio das ações dos agentes dos interesses do principal. Parte-se
da ideia de que o governo é agente dos interesses dos cidadãos,
eleito para representar seus interesses através da formulação e
execução de políticas públicas. Quando o desenho institucional
não gera um conjunto de regras ou incentivos que alinhem os
interesses do principal com os do agente, estes últimos (os servi-
dores públicos), atuando racionalmente em seu próprio benefício,
não necessariamente realizarão esforço comprometido com o
principal, não atuando no sentido de maximizar o benefício dos
cidadãos, senão o seu próprio. A solução para o problema está
na realização de meros ajustes institucionais, de uma perspectiva
do institucionalismo rational choice.
O enfoque racionalista resulta útil para compreender os
aspectos microeconômicos da caça às rendas, ou seja, entender
como reagem os agentes individuais a um sistema particular de
incentivos. Esta perspectiva de análise não é capaz de informar
sobre a origem dos sistemas ineficientes de incentivos, nem, muito
menos, sobre as razões que explicam que a caça às rendas se

366
mantenha, se expanda ou se adapte ao longo do tempo, inclusive
com muita força em regimes democráticos. Para compreender o
fenômeno da caça às rendas, dever-se-ia ir além do nível micro e
analisar as instituições formais e informais que regulam o âmbito
político, ou seja, a arena na qual o Estado, os atores sociais e
econômicos interagem para adotar decisões políticas.4
O institucionalismo é centrado nos atores5 da sustentação para
analisar os meandros político-institucionais que foram criados
na América Latina e interpretar o fenômeno de caça à renda de
uma perspectiva institucional, como uma instituição política
dominante. As relações de renda não podem se reduzir a uma
mera troca de recursos, ou seja, benefícios específicos por apoio
político ou eleitoral. A caça à renda é uma instituição particula-
rista, que forma parte dos regimes políticos latino-americanos os
quais se reproduzem em forma de redes de caça à renda.
A noção de rede de caça às rendas permite descrever uma
variedade de atores públicos e privados, que têm uma diversidade
de interesses e recursos que interagem sobre diversos níveis sub-
sistêmicos no processo de decisão e implementação de políticas
públicas. Assim gera-se uma constelação de atores e um modo
de interação que reflete as formas como uns se conduzem em
relação aos outros, em grande medida condicionados pelo con-
texto político e institucional em que se desenvolvem.
As regras do jogo que predominam na arena política são par-
ticularistas, dado que a distribuição de recursos públicos não se
realiza sobre a base de critérios explícitos, gerais e conhecidos por
todos os atores, senão que a decisão se toma segundo a análise de
cada caso em particular. Assim mesmo, a distribuição não está
pautada somente por regras informais do jogo, mas também por
arranjos formalmente estabelecidos, que outorgam benefícios
específicos a empresários ou a setores empresariais em decretos
e resoluções. A maioria das pesquisas sobre a temática dos parti-
cularismos tem dado especial ênfase no caráter do clientelismo
e todas as suas manifestações como uma instituição informal.
Portanto, a caça à renda também se institucionaliza formalmente

367
e com força legal em certos aspectos básicos que legitimam seu
funcionamento, ainda quando muitas dessas normas entram em
contradição com normas jurídicas de status superior.
Por consequência, a relação entre políticos, burocratas e em-
presários não se estrutura como uma simples troca de recursos,
trocas de favores, privilégios por apoio político ou eleitoral. O
processo é mais complexo e estes atores atuam e interagem dentro
de marcos institucionais. Dada a magnitude e importância dos
recursos a administrar, faz-se necessário contar com uma estru-
tura ampla e organizada. Não se pode pensar que as relações
entre os diferentes atores são espontâneas, pouco estruturadas
e com um limitado número de atores.
As redes de caça à renda estruturam-se, enraizando-se e mudando
de forma na sociedade, consolidando-se como instituições que
pautam o comportamento, as relações sociais, os resultados polí-
ticos e permeando todo sistema político. Elas debilitam o funcio-
namento das organizações públicas e os partidos políticos como
organizações representativas do interesse geral, mediadoras entre
o Estado e a sociedade. Negam a cidadania como característica
e resultado da democracia e do Estado de Direito. Esta relação
fomenta uma forma patrimonial de exercer o poder; ou seja, os
espaços e os recursos públicos são usados para satisfazer os fins
particulares de determinados grupos. Os atores, com interesses
diferenciados, concordam com um elemento essencial: precisam
da rede; participar lhes dá benefícios. Esta coincidência básica
serve, ao mesmo tempo, para que a caça à renda se reproduza a
partir de sua condição de hábito e estruture as formas de relação;
desse modo, as práticas políticas particularistas se convertem em
legítimas para o conjunto da sociedade.
O mais relevante é entender que a caça à renda é produto
da precária legitimidade do Estado de Direito, que propicia o
desenho e aplicação de políticas públicas em favor dos interesses
de empresas, grupos econômicos ou associações empresariais.
Consequentemente, se deve admitir que é improvável que as prá-
ticas de caça à renda e suas derivações, a corrupção, se reduzam

368
substancialmente com medidas simples, como, por exemplo, dar
poder à sociedade civil, melhorando o sistema de informação
através das tecnologias da informação, para que, dessa forma,
se possa eliminar os caçadores de renda.
A redução das práticas de caça à renda, interpretada como
uma mudança institucional, está intimamente ligada à reforma do
Estado. Esta não pode ser pensada sem uma reforma do sistema
político. Ela inclui: parlamentos profissionalizados e capazes
de supervisionar o governo, a burocracia e a implementação
de propostas nacionais; administrações públicas que prestem
contas; Judiciário independente; e instituições que equilibrem os
poderes para reduzir a discricionariedade nas decisões públicas,
aumentar a clareza e a transparência de normas que implicam
a ação do governo, resolver os problemas de financiamentos de
campanhas e dos partidos políticos e aumentar o controle da
sociedade sobre as decisões políticas.

NOTAS
1
Definida em termos gerais como o uso desonesto dos recursos públicos para
benefícios pessoais ou privados.
2
TULLOCK. The costs of special privilege; BHAGWATI. Foreign trade regimes
and economic development: anatomy and consequences of exchange control
regimes; KRUEGER. The political economy of the rent-seeking society.
3
BECKER; STIGLER. Law, enforcement, malfeasance, and compensation for
employes.
4
As instituições são regras do jogo, formais e informais, que pautam a inte-
ração entre os atores estratégicos envolvidos no processo de decisão pública
e regulam a forma de processar demandas, resolver conflitos e distribuir
recursos públicos no sistema político (rol regulativo). Assim mesmo, dão um
marco de estabilidade, garantindo a repetição constante de determinados
comportamentos dos agentes que exercem o poder e todas as atividades
vinculadas a este último (rol normativo). Ademais, este conjunto de regras
constitui um elemento simbólico a partir do qual os atores interpretam o
mundo que os cerca (rol cognitivo) (ZURBRIGGEN. Estado, empresarios y
redes rentistas durante el proceso sustitutivo de importaciones en uruguay.
El path dependence de las reformas actuales).
5
é importante considerar aqueles enfoques teóricos que complementam a
racionalidade limitada dos atores com influência das regras sobre o com-
portamento individual. Os atores não atuam isoladamente a respeito de sua
cultura, nem seguem de forma automática as normas existentes em uma

369
sociedade. Deste modo, para superar o dilema entre intencionalidade
individual e os condicionantes estrutural-funcionalistas, o estudo se apoia
no enfoque de redes de políticas públicas, o institucionalismo centrado em
atores. A esse respeito, conferir SCHARPF. Games real actors play: actor-
-centred institutionalism in policy research.

REFERÊNCIAS
BHAGWATI, Jagdish. Foreign trade regimes and economic development:
anatomy and consequences of exchange control regimes. Ballinger: Cam-
bridge, 1978.
BECKER, G.; STIGLER, G. Law, enforcement, malfeasance, and compensa-
tion for employes. Journal of Legal Studies, p. 1-18, jan. 1974.
BUCHANAN, J.; TULLOCK, G.; TOLLISON, R. (Ed.) Toward a theory
of the rent-seeking society. Texas: A&M University Press, 1980.
BUCHANAN, J.; GORDON, T. The calculus of consent: the logical foun-
dations of constitutional democracy. Michigan: University of Michigan
Press, 1962.
BUCHANAN, J.; JANIET, M.; DANEL, F. Ensayos sobre economía política.
México: Alianza Editorial Mexicana, 1990.
KRUEGER, Anne O. The political economy of the rent-seeking society.
American Economic Review, v. 64, n. 3, p. 291-303, jun. 1974.
SCHARPF, Fritz W. Games real actors play: actor-centred institutionalism
in policy research. Boulder/Col.: Westview Press, 1997.
TULLOCK, Gordon. The costs of special privilege. In: ALT, James E.;
SHEPSLE, Kenneth A. (Ed.). Perspectives on positive political economy.
Cambridge: Cambridge University Press, 1967.
ZURBRIGGEN, Cristina. Estado, empresarios y redes rentistas durante
el proceso sustitutivo de importaciones en uruguay. El path dependence
de las reformas actuales. Tese (doutorado) – Universidade de Tubinga,
Alemanha, 2005.

370
Celi regina JardiM pinto

ongs

Organização Não Governamental foi a forma encontrada


pela ONU para designar, ainda nos primeiros anos de sua
existência, seus interlocutores que não representavam Estados
nacionais. Já na Carta de São Francisco que cria as Nações Unidas
encontra-se no seu artigo 71 a denominação, mas foi na era das
conferências mundiais da ONU que as ONGs ganharam espaço
de interlocutoras privilegiadas, a primeira delas foi a Conferência
da Mulher no México, em 1975, o ciclo mais forte, entretanto,
ocorreu na década de 1990 a partir da Eco 92 no Rio de Janeiro.
A ela se seguiram: Direitos Humanos em Viena (1993); População
no Cairo (1994); Desenvolvimento Social em Copenhagen
(1995), IV Conferência Mundial da Mulher em Beijin (1995),
onde quatro mil ONGs levaram para a China 37 mil mulheres
para um evento paralelo. Na própria conferência de Beijin um
grande número destas organizações tornaram-se consultoras
plenamente integradas no chamado sistema ONU. Atualmente
existe um grupo de trabalho de ONGs junto ao Conselho de
Segurança da ONU que promove encontros com seus membros
para discutir assuntos de interesse internacional, entre as ONGs
que desfrutam este status estão as internacionalmente conheci-
das Oxfam, Care International e Médicos sem Fronteira.
Apesar de sua grande variedade, as ONGs são organizações
com características próprias que se diferenciam de outras orga-
nizações da sociedade civil, como associações de caridade ou
fundações: é um fenômeno que surgiu com grande força nas
últimas décadas do século 20. São formadas por voluntários,
sem fins lucrativos, com o objetivo de representar a sociedade
para resolver problemas, incentivar posturas éticas e cidadãs,
desenvolver projetos.
Há uma enorme dificuldade de dimensionar o número de
ONGs de qualquer natureza, dados para o ano 2000 apontam a
existência de 25 mil ONGs internacionais no mundo. Estas têm
tido um grande espaço de influência e poder no hemisfério sul,
em alguns países africanos representam raros polos de proteção
a populações pobres e a um grande número de refugiados.
Na América Latina têm sido presença nas questões de direitos
humanos, meio ambiente e saúde, entre outras intervenções.
No Brasil, mesmo havendo a presença de ONGs internacionais,
principalmente na área do meio ambiente e com menos força na
área dos direitos humanos, o fenômeno mais importante a ser
enfocado é o das ONGs nacionais, pequenas ou grandes, que
formam uma densa rede atingindo todo o território e abrangendo
praticamente todos os temas da vida nacional.
Tanto as ONGs internacionais ligadas ao sistema ONU
como as ONGs nacionais são uma realidade com fortes cores e
participação ativa na vida dos países e nas questões globais. O
entendimento deste fenômeno, todavia, sofre de um bias muito
forte, derivado de uma perspectiva ideológica marcada pelo neo-
liberalismo dominante no final do século 20: a crise do Estado
de bem-estar social capitalista somada à crise do socialismo
estatizado do leste europeu e da centralidade das organizações
da sociedade civil na sua derrocada, somados à ideologia do
mercado, com a forma justa e “natural” de dar conta dos fenô-
menos da economia, levou a uma supervalorização das organiza-
ções da sociedade civil e, consequentemente, das ONGs, uma de
suas mais importantes representantes. O não estatal passou
a ser sinônimo de eficiência, desburocratização, lisura, trans-
parência, enquanto o estatal foi sinalizado como atraso. Proble-
matizar o espaço das ONGs no atual cenário político brasileiro
de escândalos contínuos de corrupção, a partir da perspectiva

372
acima, nada soma para o entendimento das organizações não
governamentais e da própria situação de corrupção que ocupa
o noticiário nacional. Pelo contrário, colabora para aumentar
uma sensação de descalabro, uma vez que, ao se identificar na,
idealizadamente, mais virtuosa das instituições modernas – as
ONGs – episódios mais ou menos frequentes de corrupção, só
resta pensar que tudo está fora de controle, pois se até no interior
de ONGs se verifica corrupção, o que pensar das outras insti-
tuições, já marcadas pela falta de confiança.
A problemática das ONGs muda de foco se, de forma diversa,
forem pensadas como um fenômeno típico da atual fase do capi-
talismo, na qual impera o princípio da privatização não só na
área econômica, como na dos serviços públicos prestados pelo
Estado ao cidadão portador de direito. é neste cenário de Esta-
do minimalista, de perda de direitos historicamente adquiridos,
desobrigação do Estado com seus compromissos e do império do
mercado para muito além das relações eminentemente econômicas
que é possível entender as organizações não governamentais e
sua zona de sombra não tão virtuosa.
No Brasil identificam-se três tipos muito bem definidos de
ONGs: as que nasceram durante o regime militar, buscando uma
brecha para a luta pela democracia, as que se derivaram dos
movimentos sociais e as que se constituíram como prestadoras
de serviços, o que se poderia chamar grosso modo de terceiro
setor. Ao longo dos anos juntaram-se a elas grandes ONGs
internacionais. Este conjunto de organizações, de características
muito diversas, provoca efeitos, também, muito diferenciados,
tanto no espaço que ocupam como vozes da sociedade
civil, quanto no que concerne aos problemas que acarretam
relacionados com as formas de seu financiamento. As ONGs
organizam-se a partir de um tema ou de uma luta, como meninos
de rua, movimento feminista, movimento negro, transparência
pública, violência, educação. Algumas surgem quase como um
grupo de amigos que informalmente começam a ajudar crianças
ou moradores de rua, outras são decorrência dos movimentos

373
sociais, como o feminista e o negro, outras ainda surgem
como apoio a movimentos da sociedade civil, ao orçamento
participativo, aos catadores de papel e ao MST. Somam-se a estas
organizações focadas em soluções de problemas específicos as
que se formam a partir de campanhas como a prevenção ao HIV/
AIDS, ou para lutar contra a violência. Em 2007 dados apontam a
existência de 300 mil ONGs em todo o país, grande parte delas de
pequeno porte. Averiguar se todas estas autodenominadas ONGs
são realmente voltadas para causas da sociedade civil é tarefa
impossível. Sob este guarda-chuva podem abrigar-se grupos com
objetivos bem menos nobres. Para se ter uma ideia mais precisa da
diversidade, a ABONG (Associação Brasileira de ONGs), que tem
entre os seus objetivos “promover o intercâmbio entre entidades
que buscam a ampliação da cidadania, a constituição e expansão
de direitos, a justiça social e a consolidação de uma democracia
participativa; consolidar a identidade das ONGs brasileiras e
afirmar sua autonomia” e esteve ligada de forma orgânica à
organização das diversas edições do Fórum Social Mundial, tem
apenas 270 associadas. A ABONG tem uma presença muito forte
no espaço público brasileiro, tem uma especial preocupação com
a transparência e publica em sua página na internet relatórios
de auditorias externas, nas suas contas.
Nenhum tipo de ONG tem em sua essência o primado da ética
ou, ao contrário, da malversação de recursos. Não são virtuo-
sas ou corruptas per se. No Brasil as ONGs, na sua relação com
a sociedade civil e com o Estado, são atores que dividem com o
resto da sociedade uma espécie de permissividade em relação ao
trato dos recursos públicos e da própria legalidade, que perpassa
todo o tecido social. Uma questão crucial da corrupção no Brasil
é a existência de hierarquias múltiplas em lugar do princípio de
igualdade, o que coloca cada indivíduo sempre como subalterno
e ao mesmo tempo superior a alguém e, portanto, não obrigado
a submeter-se a um tratamento igualitário em relação às leis e
aos regramentos jurídicos. Tal cultura pode também permear as
ONGs, quando estas se tornam parceiras do Estado e começam,

374
até por conta de suas próprias expertises, a usufruir privilégios.
Ou de forma diversa, por se entenderem portadoras de altos ideais,
arvoram-se o direito, inclusive, de negociar até mesmo com a
contravenção. Isto ocorre não porque as ONGs sejam caixas-
-pretas, sem controle, ou porque são formadas por indivíduos
desonestos, mas porque não rompem a estrutura da qual fazem
parte e que muitas vezes sustentam.
Há três formas básicas de financiamento de ONGs: arre-
cadação própria (doações, venda de produtos), financiamento
por fundações nacionais e internacionais e recursos estatais.
Estes recursos têm uma variação imensa em valores conforme
o tamanho e a importância das ONGs. A arrecadação própria é
periférica e dificilmente sustenta uma ONG, mesmo de pequeno
porte. A base de todos os financiamentos está em projetos
apresentados a fundações internacionais e nacionais e ao Estado.
Os projetos que em princípio devem ser focados em ações na
sociedade civil também são indispensáveis para manter as próprias
estruturas das organizações, tais como aluguéis de salas, paga-
mentos de funcionários. Algumas vezes as ONGs necessitam
mudar o foco de sua ação para poder concorrer a financiamentos
em áreas definidas pelas grandes financiadoras internacionais.
Outro dado significativo sobre estas organizações é o que
diz respeito aos recursos públicos federais recebidos acima de
R$ 200 mil por ano entre 1999 e 2006 por 250 ONGs (foco de
interesse da CPI do Senado). Publicação da ABONG comenta:
“abaixo deste valor, há cerca de sete mil ONGs contempladas.
Em um universo de 300 mil fundações e associações civis sem
finalidade lucrativa existentes no Brasil, este último número
corresponde a apenas 2,3%.”1
Entre estas 250 ONGs que receberam 200 mil ou mais por
ano, estão as organizações para as quais o Estado transfere tare-
fas que deveriam ser de sua exclusiva competência. Se neste
cenário há malversação de recursos, isto faz parte da dinâmica
de operação do Estado e da sociedade. No momento em que o
Estado abre mão de políticas públicas universalistas, em favor

375
de ações públicas não comprometidas com a universalidade
do atendimento e entende que isto é sinônimo de eficiência, há
uma avenida aberta para atos de corrupção, absolutamente in-
controláveis e somente dependentes da boa vontade de homens
e mulheres envolvidos nestas ações, para serem evitados.

NOTAS
1
Disponível em: <www.abong.org.br>. Acesso em: 4 fev. 2007.

REFERÊNCIAS
CARVALHO, Nanci Valadares de. Autogestão – o nascimento das ONGs.
São Paulo: Brasiliense, 1983.
DAGNINO, E.; TABAGIBA, L. Democracia, sociedade e participação.
Chapecó: Argos, 2007.
HULMES, D.; EDWARDS, M. ONGs, states and donors. New York: St
Matnis’s Press, 1997.
LANDIN, Leilah. Ações em sociedade, militância, caridade, assistência etc.
Rio de Janeiro: Nau Editora,1998.
ONGs, IDENTIDADE e desafios atuais. Cadernos Abong, n. 27, maio 2000.
PINTO, C. R. J. As ONGs e a política no Brasil: presença de novos atores.
Dados, v. 49, n. 3, 2006.

SITES
www.abong.org.br
www.rets.org.br
www.gife.org.br

376
antônio CéSar boCHeneCK

Contrabando E frontEiraS

O problema do mundo é que normalmente decidimos


nossa ambição antes de nossa ética, quando o certo seria
o contrário.
Stephen Kanitz

Pretendo traçar um panorama das relações sociais sob o foco


das influências do contrabando e do descaminho na fronteira
brasileira,1 especialmente, na região da tríplice fronteira, que
congrega as cidades trigêmeas2 de Foz do Iguaçu (Brasil), Puerto
Iguazú (Argentina) e Ciudad Del Este (Paraguai).
Os cidadãos que habitam as localidades próximas da fronteira
beneficiam-se de um variado e diversificado ambiente multi-
cultural, ao iniciar pelas questões linguísticas e dos costumes.
Também são locais associados a grande facilidade de mobilidade
transfronteiriça da população. Por outro lado, as barreiras diplo-
máticas e de soberania impedem sobremaneira a efetividade de
uma política conjunta de planejamento e organização destas
áreas, que repercutem diretamente sobre a qualidade de vida
das populações.
Foz do Iguaçu é a cidade brasileira que tem o maior número
de habitantes entre aquelas que se localizam ao lado da linha
divisória da fronteira. Atualmente são mais de 300 mil pessoas.
Do outro lado da fronteira, a cidade paraguaia chamada Ciudad
del Este possui aproximadamente 200 mil habitantes e conta
com cerca de 150 mil em sua periferia. é a segunda maior cidade
do Paraguai e está entre os maiores centros comerciais do mundo
devido aos preços atrativos praticados pela zona de livre comércio
paraguaia, notabilizada pela reduzida ou inexistente tributação,
pequena remuneração salarial, baixo índice de desenvolvimento
humano, elevado índice de corrupção. Ainda, do lado argentino,
Puerto Iguazú possui uma população de aproximadamente
40 mil pessoas, mas a intensa fiscalização realizada nas aduanas
inviabiliza a prática do contrabando advindo pelo território
argentino.
Outro ingrediente importante neste cenário está relacionado à
presença de muitos imigrantes, principalmente chineses e liba-
neses, que encontraram um local perfeito para estabelecer uma
parceria que perdura há vários anos, em face das particula-
ridades e facilidades da região de fronteira. Os chineses são
fortes produtores de bens de consumo, enquanto os libaneses
são conhecidos pela excelência na comercialização. De outro
lado, um mercado consumidor brasileiro ávido e sedento por
produtos de baixo custo, para fazer frente à alta tributação e
aos níveis salariais baixos de parte considerável da população.
A tríplice fronteira é um dos principais meios de acesso e comu-
nicação do Mercosul. Também é a maior porta de entrada de
mercadorias de ingresso proibido no Brasil (contrabando) e de
ingresso permitido, mas sem a devida regularização e o pagamen-
to dos tributos (descaminho). A Receita Federal brasileira estima
que ingressam por Foz do Iguaçu aproximadamente US$100
milhões de dólares por mês em mercadorias contrabandeadas e
descaminhadas.A maior parte do volume de mercadorias é cigarros,
produtos de informática, cosméticos e eletrônicos.
No meio de uma quantidade infindável de mercadorias e da
grande movimentação de pessoas e veículos, é criado um cenário
perfeito para a prática de outras condutas ilícitas. O ímpeto do
lucro fácil é o início do caminho para aventuras ilícitas maiores
e junto com o contrabando de mercadorias desenvolve-se um
comércio clandestino e ilegal de armas, de substâncias entor-
pecentes, de agrotóxicos e de animais silvestres. Também se

378
verifica com intensidade a contrafação e a pirataria, além do
tráfico de mulheres e sequestros com a finalidade de capitalização
das associações e financiamento de outras atividades ilícitas.
Assim, ingressam no território brasileiro grandes quantidades
de substâncias entorpecentes, de armas e de munições para o
abastecimento do mercado interno ou com destino no exterior
(drogas remetidas aos Estados Unidos e à Europa). Muitas vezes
as drogas são “pagas” ou trocadas com produtos de outros crimes,
por exemplo, os veículos roubados nas cidades brasileiras que
são enviados para o Paraguai. Aliadas às práticas criminosas são
realizadas inúmeras transações financeiras mediante as quais os
bens ou dinheiro resultantes de atividades delitivas, e para ocultar
a procedência, se integram no sistema econômico ou financeiro,
prática chamada no Brasil de lavagem de dinheiro. As associações
criminosas utilizam a mobilidade típica da fronteira para come-
terem crimes relacionados à evasão de divisas e sonegação fiscal.
Portanto, o contrabando e o descaminho de mercadorias
não estão sozinhos. Podemos dizer, sem medo de errar, que são
os chamados “crimes menores” e praticados em grande escala
que ajudam a acobertar ou dificultar a investigação e punição
de delitos mais graves e de maior repercussão social negativa.
Certamente, as atividades lesivas não atingem somente as cidades
limítrofes, e os delitos não se restringem somente à cidade de Foz
do Iguaçu. Da mesma forma que as mercadorias são distribuídas
para todo o Brasil, outros produtos de crime “pegam carona” na
rota do contrabando e são espalhados para todas as cidades brasi-
leiras. Os cidadãos de Foz do Iguaçu são os mais penalizados, à
medida que estão mais próximos dos focos de criminalidade e
expostos a tentações e ofertas mais visíveis e perceptíveis. Talvez
esta seja a explicação dos altos índices das taxas de homicídios
registrados nos últimos anos, também provenientes dos chamados
“acerto de contas” das transações e negócios relacionados
aos produtos de crime, típicos da região de fronteira. De acordo
com os dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado do
Paraná, Foz do Iguaçu é a cidade paranaense que tem o maior

379
índice de homicídios por habitante, com 75 assassinatos por
100 mil habitantes. O número é mais que o dobro da média
nacional, que é de 31 homicídios por 100 mil. No Paraná, são
20 homicídios por 100 mil.
A história recente sobre o contrabando na fronteira mostra
que até o início do ano 2005 chegavam a Foz do Iguaçu cerca de
3.500 ônibus fretados por mês, com a finalidade de transporte
de mercadorias provenientes de Ciudad Del Este. Esse número
foi reduzido a partir de uma atividade em conjunto da Receita
Federal, da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, que
elaboraram um estudo e mapearam o funcionamento da rota
do contrabando e do descaminho. Foram então identificadas
as principais cadeias logísticas responsáveis pelas organizações
criminosas e a sua forma de atuação. O perfil das redes, em ge-
ral, é composto por: batedores3 – responsáveis pelos contatos,
vigilância entre as rodovias e os pontos de fiscalização e pela
formação dos comboios (nome dado à aglomeração de ônibus
com a finalidade de dificultar e inviabilizar a fiscalização); facili-
tadores – os quais juntamente com os batedores são responsáveis
pela contratação de equipes e contatos que eliminam os riscos do
transporte; exército de cidadãos agenciados pelas organizações
criminosas – pessoas utilizadas para traspassar mercadorias e
assumir a responsabilidade tributária e criminal em nome de
seus “patrões”; transportadores – empresas cadastradas para o
turismo eventual e em menor escala e autorizadas a realizar o
transporte regular de passageiros, bem como ônibus clandesti-
nos utilizados para transportar os produtos do crime; hotéis e
guarda-volumes – utilizados para armazenar temporariamente as
mercadorias; carros, vans, táxis e motos – veículos utilizados para
traspassar as mercadorias pela fiscalização (em regra, na área de
fronteira ou eventualmente, em condições adversas, durante as
operações, para levá-las até o destino). A ação judicial proposta
determinou a busca e apreensão de mais de 360 ônibus que
atuavam exclusivamente no transporte de mercadorias e não no
transporte de passageiros. Os resultados atingiram seus objetivos

380
e ocorreu a diminuição considerável do número de ônibus para
o transporte de mercadorias contrabandeadas e descaminhadas.
Em contrapartida à ofensiva dos órgãos estatais, as
organizações criminosas passaram a utilizar outras formas de
transportes, como caminhões, carros, aviões. O lago da barragem
de Itaipu passou a ser mais utilizado para o transporte das
mercadorias, por meio de barcos, com o deslocamento terrestre
por estradas vicinais e rodovias secundárias. Uma outra opção
utilizada pelos muambeiros ou sacoleiros (nomes utilizados pelos
compristas brasileiros de produtos adquiridos no Paraguai) é a
rota de Guaíra (PR), cidade às margens do rio Paraná, na divisa
com Mato Grosso do Sul, que também faz divisa com o Paraguai
e onde ainda não existe muita fiscalização.
O combate à criminalidade pode ser considerado uma luta
constante em descobrir novas formas de atuação dos criminosos.
Quando um esquema ou um modo de operação é descoberto
ou desmantelado, os criminosos engendram outro meio para a
prática dos ilícitos. O lucro auferido pelas organizações crimi-
nosas e pelos agentes é o grande combustível que alimenta as
condutas desviadas. Também não adianta somente combater
a atividade ilícita, mas é imprescindível a adoção de políticas
públicas eficientes de médio e longo prazo para acabar com ou
inviabilizar a criminalidade.
As dimensões do contrabando na fronteira são enormes. A Polícia
Federal da cidade de Foz do Iguaçu apresentou um balanço
de apreensões, inquéritos e prisões. Praticamente quase todo o
tempo de trabalho foi consumido na apuração dos crimes de
contrabando, descaminho, tráfico de substância entorpecente e de
armas e munição (estes últimos também são espécies de contra-
bando, mas são especificados e tipificados em separado em face
da maior gravidade das condutas). Em 2006 foram instaurados
543 inquéritos policiais e realizadas 681 prisões em flagrante. Em
2007 foram instaurados 360 inquéritos policiais e realizadas 484
prisões em flagrante.4 O valor de mercadorias apreendidas pela
Receita Federal de Foz do Iguaçu totalizou US$62.326.582 no

381
ano de 2005, US$77.035.474 no ano de 2006 e US$77.658.188
no ano de 2007.5 Ressalte-se que os dados acima referem-se
somente à área de atuação dos órgãos federais, que compreende
o município de Foz do Iguaçu e vizinhos, e não estão computadas
as apreensões, prisões e inquéritos de outras unidades.
Estima-se que aproximadamente 30 mil habitantes da cidade
de Foz do Iguaçu e entorno, sem contar os cidadãos paraguaios,
trabalham, ou melhor, sobrevivem do comércio de mercadorias e
afins na região da tríplice fronteira. Também é importante lembrar
que nas décadas de 1960 até 1970, Foz do Iguaçu passou a receber
inúmeros operários que trabalharam na construção da maior
obra da engenharia do século 20, a usina hidrelétrica de Itaipu.
A cidade recebeu aproximadamente 40 mil pessoas de diversas
localidades, que vieram trabalhar na construção da barragem.
Após o término das obras, muitos permaneceram e construíram
suas vidas. No entanto, o poder público não conseguiu atender
esta vasta camada de pessoas com oportunidades de educação
e trabalho. Por outro lado, o lucro fácil do comércio de produtos
adquiridos no Paraguai alimentou a esperança de fixação de
muitos antigos barrageiros e seus descendentes. O contexto
social do Brasil, do Paraguai e, em especial, da região da tríplice
fronteira, facilitou as atividades das organizações criminosas
que exploram a “mão de obra” das pessoas, utilizando-as para
o transporte dos produtos e mercadorias, por meio de condutas
que são consideradas ilegais pela legislação brasileira. Num con-
texto de desigualdade e exclusão, a ausência de opções pelo
emprego formal com remuneração honrada e a tentação pelo
lucro fácil por meio das atividades ilegais são peças do mesmo
jogo que disputam os olhares e vontades de uma grande massa
de pessoas.
No campo social, a atividade ilegal ganha contornos de apa-
rente licitude e de profissionalização dos agentes do contra-
bando e do descaminho. Quem, desavisadamente, já observou
a movimentação de pessoas e mercadorias na Ponte da Amizade
e nas suas imediações, apenas percebe que se trata de um grande

382
mercado com deficiências estruturais. Contudo, a aparente nor-
malidade é ocultada por diversos fatores. Costumeiramente,
as pessoas são contratadas pelo proprietário das mercadorias
para o seu transporte (são conhecidas como “laranjas”). As que
levam substâncias entorpecentes são chamadas de “mulas”. A
utilização de terceira pessoa para o transporte de produtos
caracteriza a infração penal e visa isentar os verdadeiros proprie-
tários ou os agentes comandantes da operação e encoberta ou
dificulta a localização daqueles que obtêm lucro e se beneficiam
da empreitada criminosa. Assim, é comum a responsabilização
criminal de pessoas, em regra, de menor poder aquisitivo ou
menor instrução escolar. Também é digno de nota o vínculo de
confiança entre “laranjas” e “mulas” com os agenciadores que
permanece mesmo após a atividade dos órgãos repressores, princi-
palmente devido ao medo de represálias contra si, familiares e
amigos. A responsabilização criminal de “laranjas” e “mulas” não
resolve ou minimiza o problema da criminalidade da região de
fronteira, pelo contrário, aumenta o problema social. As pessoas
são utilizadas como mero objeto pelas organizações criminosas e
são trocadas ou substituídas na medida da atuação das autori-
dades constituídas e do Poder Judiciário, notabilizando-se num
verdadeiro mercado de “mão de obra” onde a oferta é maior do
que a procura.
A solução não é fácil de ser encontrada. é necessário e
imprescindível que sejam responsabilizados os mentores e os
gerenciadores das redes criminosas, ou seja, aqueles que mais
lucram. Uma forma de desaparelhar as organizações criminosas
consiste na efetiva colaboração de um ou mais coautores da
conduta ilícita, pois eles conhecem os meandros e os detalhes
que subsidiam a colheita da prova para futura condenação.
Para tanto, os juízes e promotores têm utilizado cada vez mais o
instituto da delação premiada,6 prevista no processo penal bra-
sileiro. Por outro lado, apesar de existir um sistema de proteção
às testemunhas, ainda há deficiências que precisam ser sanadas

383
e aspectos a serem melhorados, para oferecer segurança àqueles
que decidam colaborar para a elucidação de crimes.
Os efeitos mais nefastos da ausência de recolhimento dos
tributos na importação de mercadorias e da remessa ilegal de
valores para o exterior7 são os danos significativos aos interesses
nacionais e comerciais, quais sejam: a perda de receitas e tributos
empresariais; desvio de fontes de receitas governamentais; custos
maiores para a implantação de programas governamentais e
para a exequibilidade das políticas públicas; e os impactos
negativos no desenvolvimento econômico, nos investimentos e
nos níveis de renda e de emprego.
O combate ao contrabando e ao descaminho, assim como
aos demais delitos de fronteira, apresenta diversas dificuldades,
principalmente de ordem estrutural, como a ausência de meios
materiais para que os policiais fiquem em igualdade de condições
com as organizações criminosas, pois geralmente os meios utiliza-
dos pelas autoridades são inferiores aos instrumentos utilizados
pela criminalidade. Os serviços existentes são insuficientes para
a vasta demanda, principalmente os relacionados aos serviços
de inteligência. O sistema carcerário é precário e superlotado.
Outro aspecto importante relaciona-se à prática de crimes
pelos próprios agentes responsáveis pela prevenção e repressão.
Muitos deles colaboram para o sucesso da empreitada criminosa,
ao invés de cumprir com o seu dever institucional. As condutas
ilícitas são as mais diversas e importam em crimes de cor-
rupção ativa e passiva, concussão, prevaricação, facilitação de
contrabando, contrabando, descaminho, violação de sigilo fun-
cional, concurso para o tráfico de drogas, falsidade ideológica,
favorecimento real, formação de quadrilha, condescendência
criminosa.
A corrupção ocorre no mundo todo em graus distintos e
está diretamente ligada às falhas de mecanismos de controle
institucional e gerencial do Estado. A corrupção não se elimina,
mas pode ser reduzida, por meio de um processo continuado e
permanente de melhorias institucional, legal e cultural, que visem

384
combater suas causas e efeitos. Na região de fronteira e na con-
fluência da rota do contrabando, os meios mais frequentes de
corrupção das autoridades públicas são realizados pelo paga-
mento de propinas, subornos, o recebimento de dinheiro ou
mercadorias ou a apreensão sem o devido registro. é necessário
depurar as mazelas que tanto assombram a respeitabilidade
das instituições e a confiança dos cidadãos, pois a corrupção
atrapalha sobremaneira a elucidação dos ilícitos. A denúncia
e a apuração dos fatos para a devida responsabilização são
difíceis, pois os lados envolvidos praticam atividade criminosa e
são raros os fatos que são denunciados. O combate substituído
pela conivência alimenta a cadeia de infrações iniciada com o
contrabando.
Os meios tradicionais de combate revelam-se insuficientes
ou ineficientes e são limitados pelas fronteiras. As autoridades
devem recorrer aos instrumentos de cooperação e colabo-
ração em suas formas tradicionais, ao passo que os meios
utilizados pelos infratores estão em constante expansão e
modernização, devido à facilidade de acesso à comunicação
e aos meios de tecnologia e transporte, orginários do pro-
cesso de globalização. As organizações criminosas ampliam
geograficamente as suas ligações, ultrapassando fronteiras e
desconsiderando os Estados nacionais. Portanto, se há crimi-
nalidade sem fronteira, também não pode haver espaço para
que a atuação na repressão dos ilícitos mais graves seja limitada
geograficamente, ou seja, urge uma Justiça sem fronteira.
O debate a respeito das experiências e a superação dos
obstáculos burocráticos, principalmente em relação à troca de
informações e ao cumprimento de atos jurisdicionais, são rele-
vantes no combate às atividades que causam os mais desastrosos
efeitos às camadas sociais menos favorecidas, pela evasão de
divisas e pela problemática social. A cooperação judiciária, em
sentido amplo, pode se revelar como um início da minimização
da criminalidade da região de fronteira. No ano de 1996, os três
países criaram o “Comando tripartite da tríplice fronteira”, uma

385
agência múltipla de polícia cooperativa trinacional. Em 1998,
o programa trinacional foi complementado com um acordo de
segurança entre os três países para intensificarem sua luta contra
os delitos de fronteira. Até agora esse esforço cooperativo não
conseguiu controlar as atividades delitivas. Ao menos no Brasil,
o cenário que a região da tríplice fronteira apresenta não é
muito animador. Um controle das atividades criminais na zona
fronteiriça é possível. é imprescindível que a real intenção do
acordo, qual seja, coordenar as atividades operacionais e de
inteligência de polícia para combater todas as formas de crime
organizado na região seja efetivamente implantada. Sozinhos, os
três países não conseguirão conter a criminalidade fronteiriça,
mas o esforço conjunto e contrabalanceado só tende a dar certo.
Em matéria de coordenação da ação das autoridades competentes,
os países do Mercosul devem adotar medidas conjuntas para
eliminar as brechas de nossas legislações e empreender esforços
para institucionalizar dita cooperação e assistência mútua com
vistas principalmente à prevenção, investigação e repressão das
infrações praticadas nas regiões de fronteira.
Enfim, não seria uma medida radical, como o fechamento
das fronteiras, que encerraria ou controlaria a criminalidade
na região da tríplice fronteira, mas sim realização de políticas
públicas eficientes nas zonas limítrofes para a melhoria da
qualidade de vida das populações fronteiriças, respeitadas as
diferenças de vida social, econômica e cultural. O aumento
do nível educacional8 e a oportunidade de uma vida decente e
adequada para todos é um objetivo primordial na luta contra o
contrabando e todas as formas de criminalidade.

NOTAS
1
O Brasil é um dos poucos países das Américas a estabelecer por lei um
território fronteiriço. A lei 6.634/79 determina que a faixa de fronteira
compreende os municípios, total ou parcialmente, cortados por uma linha
poligonal de 150 quilômetros a partir da divisória. Assim, 27% do território
brasileiro encontra-se na faixa de fronteira. A área de fronteira do Brasil com-
preende mais de 15 mil quilômetros de divisas, com nove países e a Guiana

386
Francesa, e abrange 588 municípios em 11 estados da federação, onde vivem
aproximadamente 10 milhões de pessoas. A região de fronteira é uma das
áreas estratégicas menos conhecidas e exploradas do país, apesar de ter sido
a primeira a ser oficialmente reconhecida como tal. Em regra, possui menos
população, vigilância e controle.
2
Na região de fronteira no Centro-Sul do Brasil também encontramos as
cidades-gêmeas de Rivera – Santana do Livramento, Uruguaiana –; Paso de
Los Libres; Dionísio Cerqueira e Barracão; Bernardo de Yrigoyem; Ponta Porã
e Pedro Juan Caballero. Nestas cidades também há focos de contrabando e
descaminho, porém em menor intensidade.
3
Para fazer a segurança do transporte das mercadorias contrabandeadas, um
dos batedores segue na frente com um carro sem mercadoria e munido de
HT (radiotransmissor), que repassa as coordenadas para outro batedor que
acompanha o muambeiro no veículo carregado de contrabando. Quando há
bloqueio na pista ou grande volume de policiais, o batedor orienta o carro
que vem logo atrás a parar ou a fazer desvio ou retorno.
4
Dados obtidos junto à Delegacia da Polícia Federal de Foz do Iguaçu.
5
Dados obtidos junto ao Serviço de Controle Aduaneiro - SEANA da Delegacia
da Receita Federal de Foz do Iguaçu.
6
O réu que efetiva e voluntariamente coopera com a investigação e o processo
criminal, desde que esse auxílio resulte na identificação dos demais coau-
tores ou partícipes da ação criminosa e/ou na recuperação total ou parcial
do produto do crime, poderá ser beneficiado com a redução da pena ou a
não aplicação da penalidade, de acordo com a intensidade da colaboração,
mediante avaliação realizada pelo juiz.
7
A utilização da delação premiada em conjunto com a cooperação judiciária
internacional está produzindo resultados positivos na experiência brasileira
com o desmantelamento de grandes esquemas de lavagem de dinheiro, ope-
rados pelos chamados “doleiros”, responsáveis pela remessa dos valores
para os paraísos fiscais, por meio de inúmeras movimentações financeiras,
com o auxílio de bancos e casas de câmbio localizados na tríplice fronteira.
8
O governo federal anunciou no final de 2007 a instalação da Universidade
Federal do Mercosul em Foz do Iguaçu.

387
alberto olvera

a Corrupção no méxiCo
E o SiStEma ElEitoral

INTRODUÇÃO
Neste breve ensaio analisaremos as principais formas da
corrupção eleitoral no México. Trata-se de um texto aproxima-
tivo, de caráter qualitativo, no qual interessa explicar a natureza
dos processos e mecanismos através dos quais se produz a cor-
rupção neste campo de ação. Há muito poucos estudos sobre
a corrupção no México, apesar de sabermos de suas formas.
Lamentavelmente, o próprio objeto de estudo é complexo, difícil
de avaliar e, mais ainda, de medir, além do fato de que sua
significação política varia de país para país, dependendo das
modalidades de sua cultura política.
Este texto está dividido em duas partes. Na primeira, abor-
daremos os antecedentes históricos da corrupção no México, e
faremos algumas observações teóricas que nos permitem entender
a natureza do fenômeno. Na segunda, apresentaremos os aspectos
centrais da corrupção eleitoral contemporânea, tratando de
mostrar a inter-relação entre leis e instituições eleitorais e a
cultura política dominante.

ANTECEDENTES HISTóRICOS DA CORRUPÇÃO


A corrupção é um fenômeno constitutivo da vida política no
México e é uma característica funcional do Estado mexicano.
Como foi assinalado por Cláudio Lomnitz,1 a corrupção pode
ser entendida como o exercício privado autorizado de funções
públicas, explicável a partir da debilidade da instituição estatal.
Durante o período colonial, a coroa espanhola privatizou funções
estatais, dada a impossibilidade prática do Estado para controlar
o território e a população de suas novas possessões. O uso de
agentes privados para o exercício de funções públicas foi uma
prática que continuou vigente depois da época colonial. Como
é sabido, os Estados latino-americanos foram fracos durante o
século 19 e ainda durante boa parte do século 20, porque, ao
longo dessa etapa, a governabilidade se fundou, em boa medida, em
pactos específicos dos governos centrais com caciques regionais
(atores políticos hegemônicos em certas áreas de cada país),
pactos que implicavam a concessão de espaços ou posições no
poder federal ou central, nos estados ou departamentos, aos
representantes dos caciques regionais. Dessa forma, o Estado
federal lograva contar com algum tipo de representação formal
e presença local, que implicava aceitar a tutela, o mandonismo
ou o controle de parte dos agentes regionais ou locais. Em contra-
partida, o Estado central lograva o reconhecimento e apoio dos
caciques regionais.
Esta classe de pactos implicava a privatização do Eestado, e,
portanto, a constituição de uma das características fundacionais
do Estado latino-americano: o neopatrimonialismo. Patrimo-
nialismo porque o Estado era visto, com efeito, como uma
propriedade privada dos atores políticos. Novo no sentido de
que essa prática não se fundava já no princípio de legitimidade
divina do soberano, mas na suposta aplicação das constituições
modernas. Apesar de estar estabelecida na lei a separação entre
o público e o privado, na prática política resultava impossível
distinguir uma coisa da outra.
No México, a experiência do neopatrimonialismo é observável
ao longo dos séculos 19 e 20, expressando-se em duas formas
principais. A primeira é a já mencionada concessão de funções
públicas a agentes privados, sobretudo na escala regional.A segunda
emerge mais tardiamente, na época do Estado desenvolvimentista, e

389
se expressa como um conjunto de acordos privados entre atores
do Estado e do mercado que, através de concessões diversas,
podem levar a cabo negócios privados rentáveis, dos quais se
beneficiavam também os atores estatais.
No caso particular do México, estas formas de corrupção têm
sido, como apontamos anteriormente, constitutivas do Estado e
do mercado. Constitutivas porque é através destes mecanismos
que o próprio Estado foi formado: uma cadeia interminável de
pactos específicos entre atores estatais cambiantes e poderes
hegemônicos locais, de um lado, e, por outro, as concessões do
Estado que servem para formar uma burguesia nacional sob as
condições do neopatrimonialismo autoritário. Como foi argu-
mentado em Olvera,2 a burguesia mexicana foi formada no século
20 através dos contratos das empresas públicas e do próprio
governo federal e, mais recentemente, em plena etapa neolibe-
ral, através das privatizações de numerosas empresas públicas.
Esta corrupção estrutural tem criado algumas características do
mercado, na forma de regulação estatal sobre a economia e as
formas de controle social sobre o setor público em seu conjunto,
que são débeis e fragmentárias, e tem conduzido a que tanto as
empresas privadas quanto as públicas recorram de maneira
sistemática não só à grande corrupção que ocorre entre os atores
centrais do Estado e os grandes empresários, mas também à
pequena corrupção, que ocorre entre as agências estatais e as
empresas pequenas e cidadãos individuais, no cotidiano.
Não é possível analisar a corrupção em campos de ação
específicos sem antes entendermos a natureza estrutural da cor-
rupção como um mecanismo de intermediação entre o Estado
e a sociedade. Como foi assinalado por Fernando Escalante,3 a
corrupção serve como uma mediação para salvar uma brecha
entre a ordem jurídica e a ordem prática, vigente socialmente.
Assim, pois, a corrupção opera tanto no sistema político como
no sistema mercantil como mediação pragmática entre a ordem
jurídica e a vida cotidiana. Esta mediação resulta necessária,
porque os países latino-americanos não têm dotado suas ordens

390
jurídicas da eficácia necessária para a efetividade da lei, já que
são cópias às vezes ilógicas, ou às vezes inaplicáveis, das regu-
lações constitucionais do mundo ocidental desenvolvido, já que
o Estado carece de força institucional, de capacidade técnica e
de pessoal adequado para implementar as leis e regulações que
ele emite. é desse modo que a corrupção cumpre o papel de inter-
mediar o real e o imaginário, constitui uma prática cotidiana
que permite a operação mesma do Estado e o funcionamento
dos negócios sob uma ordem que não é completamente legal. A
corrupção é um mecanismo ilegal que permite o funcionamento
do mercado e do Estado, em condições de debilidade institucional
e da inexistência de um Estado de Direito.

O PROCESSO ELEITORAL E A CORRUPÇÃO


No México, o regime autoritário nunca anulou a celebração
de eleições como uma prática constitutiva do Estado. Com efeito,
como se analisa em Olvera,4 o Estado mexicano, tanto no século
19 como no século 20, assumiu distintas modalidades autoritárias,
nas quais as eleições careciam de um significado democrático
real e que, no entanto, levassem a cabo pontualmente como uma
espécie de rito necessário para os fins de legitimação. Ao longo
do regime do PRI (1929-2000), as eleições eram um método
de legitimação em face do exterior e um mecanismo de troca
das elites políticas. Com efeito, o PRI, o partido histórico do
autoritarismo mexicano ao longo do século 20, apesar de ser um
partido hegemônico e virtualmente único durante longas épocas
da história do século passado (e até esta data em amplas regiões
do país), sempre organizou grandes campanhas eleitorais e eleições
formais. As eleições eram corrompidas estruturalmente em dois
sentidos: primeiro, o financiamento do sistema eleitoral e do
partido oficial provinham do Estado, mesmo que de maneira
ilegal, ou seja, não estava sujeito a nenhum tipo de escrutínio,
nem estava regulamentado em nenhuma norma; no segundo
sentido, o processo eleitoral não cumpria as regras que a lei

391
estabelecia. Ela era violada abertamente. As eleições eram uma
ficção real: eram fictícias porque na verdade não serviam para
eleger os governantes, mas eram reais posto que eram levadas a
cabo, implicavam um gasto, um aparato, campanhas eleitorais,
financiamento ilegal e um controle estatal sobre o processo polí-
tico, que de fato anulava os direitos políticos dos mexicanos.
A transição democrática mexicana, como se sabe, tem sido
uma prolongadíssima luta centrada nas regras eleitorais e na
construção de instituições que permitam garantir os direitos
políticos.5 Esta luta tem tratado de quitar o controle político do
processo eleitoral ao Estado mexicano por meio da construção
de instituições autônomas e confiáveis, que garantam o exercício
efetivo dos direitos políticos. Para chegar ao fim, a reforma
eleitoral de 1996, que foi o resultado de muitos anos de lutas
democráticas do campo civil e dos partidos de oposição, estabe-
leceu o princípio do financiamento público dos partidos políticos
e ordenou a criação de um organismo eleitoral política e admi-
nistrativamente autônomo, chamado Instituto Federal Eleitoral
(IFE).6 O financiamento público instituído por esta lei era amplo
e generoso, de tal forma que os partidos políticos não deveriam
requerer financiamento privado, ao qual pairava a suspeita de
pactos inconfessáveis ou de acordos ilegais que comprometiam
os candidatos com os interesses de quem lhes financiava. Tratava-
-se de isolar o processo eleitoral tanto dos interesses econômicos
quanto dos interesses políticos dos funcionários em turno.
A experiência das eleições federais celebradas desde a aprovação
desta lei, ou seja, as eleições para o Congresso de 1997, as
eleições presidenciais de 2000, as eleições para o Congresso de 2003
e as eleições presidenciais de 2006 têm demonstrado que a nova
lei eleitoral não logrou evitar a intervenção de atores privados e
estatais nos processos eleitorais.7 A crescente presença da mídia
nos processos eleitorais, ou seja, o peso em termos de custo e
de concentração da publicidade política na televisão e no rádio
tem elevado enormemente o custo das campanhas. Os partidos,
especialmente nas eleições presidenciais, fazem gigantescas

392
inversões em meios que superam os limites de gasto fixados pela
lei. O Instituto Federal Eleitoral carece ainda de instrumentos
técnicos e legais para estabelecer métodos de controle financeiro
que possam evitar ou, em seu caso, penalizar adequadamente a
violação das leis vigentes. Certamente a situação não é tão grave
como o era antes da aplicação da nova lei de 1996 e da criação
do IFE, mas o controle é ainda muito parcial. Por exemplo, o
IFE logrou demonstrar que o PRI e o PAN tiveram financia-
mentos ilegais nas campanhas presidenciais de 2000, mas esta
constatação só teve como efeito prático a imposição de grandes
multas na forma de redução do subsídio público a estes parti-
dos. é verdade que as multas afetaram as finanças do PRI e do
PAN por vários anos, mas cada partido manteve seus triunfos
e, consequentemente, recebeu a mensagem de que o importante
era ganhar as eleições a qualquer custo, dado que os castigos só
eram financeiros, e o dinheiro poderia ser conseguido no mer-
cado a custos politicamente menores. Dessa forma, nenhum dos
responsáveis diretos dos financiamentos ilegais das campanhas
de 2000 terminou no cárcere.
Na eleição de 2000, a que logrou a alternância dos partidos
no poder e em que Vicente Fox chegou à presidência como
candidato de um partido de oposição ao PRI pela primeira vez
em 70 anos, um grupo chamado Amigos de Fox montou um
esquema de financiamento paralelo ao legal, que permitiu reunir
e levantar fundos muito superiores aos fixados pela lei. Por outra
parte, as investigações do IFE demonstraram que o Sindicato
dos Trabalhadores Petroleiros da República Mexicana recebeu
ilegalmente grandes quantidades de dinheiro da petroleira estatal,
recursos que foram desviados para a campanha eleitoral do PRI
no ano de 2000. Assim, os dois candidatos presidenciais princi-
pais montaram esquemas de financiamento ilegal e não sofreram
consequências jurídicas ou políticas palpáveis. Sete anos depois,
nenhum dos responsáveis por estas formas ilegais de financia-
mento eleitoral foi detido. A Fiscalização Especializada em Delitos
Eleitorais, instituição que deveria perseguir esta classe de delitos

393
e evitar assim esta forma tradicional de corrupção política, não
tem tido resultados relevantes ao longo dos 10 anos em que a
nova legislação eleitoral vem sendo aplicada.8
Na campanha presidencial de 2006, uma vez mais houve
uma intervenção ilegal de atores privados, que financiaram
spots contra o candidato de esquerda, Andrés Manuel López
Obrador, o que está expressamente proibido por esta lei. Além
disso, o presidente da República, Vicente Fox, interveio tam-
bém de maneira abusiva na campanha eleitoral e usou o tempo
oficial do Estado na televisão e seu próprio caráter de primeiro
mandatário para fazer uma campanha em favor do candidato do
PAN e atacar de maneira aberta o candidato da esquerda. Todos
estes delitos foram reconhecidos pelo Tribunal Federal Eleitoral
ao resolver as demandas do PRD contra os resultados eleitorais
e isso não determinou o exercício de nenhuma ação penal, o que
de novo demonstra que um comportamento ilegal careceu de
consequências judiciais.9 Por outra parte, nas eleições de 2006
todos os partidos tiveram que alcançar acordos privados com
os meios de comunicação de massa, especialmente as cadeias de
televisão privadas e várias das cadeias de rádio, para comprar
spots na maior quantidade possível. Para levar em prática esta
“guerra de spots”, os partidos tiveram que gastar muito dinheiro,
o qual foi obtido de forma privada e ilegal. A soma destes fatos,
somados a resultados eleitorais muito apertados (o ganhador
teve uma vantagem de apenas 0,4%), determinou que para uma
proporção da população mexicana as eleições presidenciais de
2006 foram ilegítimas, permitindo ao candidato derrotado da
esquerda,Andrés Manuel López Obrador, alegar que havia sofrido
uma fraude eleitoral.10
O escândalo político criado da mídia sobre os partidos tem
chegado a uma nova reforma eleitoral em 2007, pela qual foram
fortalecidas as funções de fiscalização do IFE, que obriga os
partidos a contratar a publicidade política através do próprio
IFE e não de maneira privada, e estabelece que a mídia deverá
entregar tempos gratuitos para a publicidade política, cuja

394
distribuição será determinada igualmente pelo mesmo instituto
eleitoral. A mídia resistiu furiosamente à nova legislação, que
reverteu a posição hegemônica alcançada por ela no processo
eleitoral de 2006. Ao mesmo tempo, foi iniciado um relevo ante-
cipado dos conselheiros eleitorais do IFE, empregado por seu
questionado presidente, Luis Carlos Ugalde. Está por se verificar
se a nova legislação é suficiente para controlar a corrupção nos
processos eleitorais, ao menos na forma de gasto incontrolado.
Outra forma de corrupção eleitoral é a tradicional compra
ou a coação do voto dos cidadãos. O PRI recorreu amplamente
a estes métodos ao longo de sua história e os converteu em
prática massiva entre 1988 e 2000, já que o poder anterior das
corporações sindicais e campesinas para levar votantes às urnas
desapareceu pouco a pouco. Ademais, a maior competitividade
eleitoral obrigou o velho partido autoritário a tratar de conseguir
os votos a qualquer preço. O custo do clientelismo individualizado
é muito alto, e os fundos para pagá-lo saem do Estado. Este
princípio fundamental foi rapidamente entendido pelo Partido de
Acción Nacional (PAN) e pelo Partido da Revolución Demo-
crática (PRD), os quais, desde as posições ganhas nos anos
passados, têm posto em prática seus próprios mecanismos de
clientelismo local. A negociação de pequenas obras públicas, de
apoio a projetos produtivos, de subsídios específicos tem sido
o espaço da micropolítica clientelística. Ademais, nos processos
eleitorais transportam-se os votantes, lhes dão de comer, ou, no
extremo, paga-se-lhes o voto. Deve ser reconhecido que estes
métodos têm sido cada vez menos eficazes, dado que os cidadãos
têm aprendido a tomar os presentes de todos e a votar pelo candi-
dato de sua preferência, ou deixam de votar, se assim o desejam.
No México, ainda que o voto seja obrigatório, não há sanção
por não se exercê-lo, de tal maneira que o abstencionismo tem
sido sempre muito alto.
Nos estados, a fragilidade institucional frente à corrupção é
ainda maior. As instituições eleitorais são mais dependentes
dos governadores, sem importar de que partido sejam e se a

395
legislação eleitoral local é mais atrasada com relação à lei federal.
Em poucos casos, no que a legislação local é mais avançada que
a federal, como em Veracruz, a experiência das eleições locais de
2007 tem demonstrado que na ausência de instituições sólidas e
politicamente autônomas, a melhor lei não serve para controlar
os excessos do partido no poder.
Um foco de atenção constante para os atores da sociedade
civil tem sido o campo da política social. Durante o governo de
Carlos Salinas (1988-1994), desenhou-se uma política social que
introduziu o conceito de subsídios focalizados, ou seja, pagamen-
to efetivo dirigido a populações específicas, consideradas as mais
carentes. Esta forma de política social, somada a outras formas
mais tradicionais, permitiu a Salinas reconstruir o clientelismo do
PRI sobre bases não corporativas. Devido a isso, desde o governo
de Ernesto Zedillo (1994-2000), os partidos de oposição exigiram
o fim do clientelismo nas políticas sociais. O Banco Mundial
e outras agências multilaterais de desenvolvimento impuseram
como parte do rol neoliberal as políticas sociais focalizadas, de
maneira que havia uma grande pressão tanto nacional como
internacional para tornar transparente e manejar adequadamente
esta forma de atenção à pobreza.11 Assim, o Programa PROGRESA,
renomeado no Governo Fox para OPORTUNIDADES, cresceu
em tamanho (atualmente beneficia cinco milhões de famílias) e
também em sofisticação técnica. Ao mesmo tempo, tem sido
incrementada a vigilância de seu exercício por parte de atores
da sociedade civil e de alguns órgãos internacionais como o
PNUD. Ambos os estudos demonstram que ainda persiste a
vulnerabilidade política e eleitoral das políticas sociais e que o
clientelismo tem uma base, ainda importante, neste campo das
políticas públicas.
A enorme dispersão das políticas sociais (há mais de 75 pro-
gramas federais importantes e talvez muito mais nos estados e
nos municípios) torna muito difícil a vigilância efetiva da socie-
dade civil neste campo de ação. Tal fato abre as portas para
a impunidade, sobretudo dos políticos profissionais locais,

396
que não encontram órgãos de fiscalização efetivos, nem atores
civis capazes de pôr em marcha mecanismos de controle
social importantes. Esta dispersão territorial e programática
da política social facilita o clientelismo e constitui o caldo de
cultura para o velho clientelismo do PRI, hoje generalizado
a todos os partidos políticos.

CONSIDERAÇõES FINAIS
A corrupção segue viva na democracia mexicana contempo-
rânea, apesar dos avanços políticos, culturais e institucionais dos
anos recentes. Em matéria eleitoral, vêm fechando os caminhos
clássicos do corporativismo e do clientelismo, mas novas moda-
lidades atualizadas destas práticas emergem. Com efeito, todos
os partidos políticos se somam para a prática do clientelismo,
organizado agora sobre bases locais e descentralizadas, sem que
os atores da sociedade civil possam vigiar este amplo campo de
corrupção da política, nem as instituições da justiça eleitoral
tenham capacidade real para sancioná-la.
Os partidos políticos nacionais sofreram em 2006 uma depen-
dência em relação aos meios de comunicação. A urgência de
contar com mais e mais fundos para pagar mais e mais publi-
cidade na mídia conduziu a novas formas de conluio entre
interesses privados e partidos políticos. Estes acordos privados
abrem as portas para todas as formas de corrupção. Por isso, foi
importante que a lei eleitoral de 1996 tenha sido modificada em
2007, se bem que ainda é incerto se estas mudanças impedirão a
dependência financeira dos partidos, com respeito aos interesses
privados.
é preciso ainda percorrer um longo caminho em matéria de
controle da corrupção no campo eleitoral. Só quando o Estado
de Direito logre construir-se em toda a arquitetura do Estado mexi-
cano poderemos pensar que se tenha exterminado este flagelo
da vida pública.

397
NOTAS
1
LOMNITZ. Vicios públicos, virtudes privadas: la corrupción en México.
2
OLVERA. Las tendencias generales de desarrollo de la sociedad civil en México.
3
ESCALANTE GONZALBO. La corrupción política: apuntes para un modelo
teórico.
4
OLVERA. Las tendencias generales de desarrollo de la sociedad civil en México.
5
CANSINO. La transición mexicana (1997-2000).
6
EISENSTADT. Cortejando a la democracia en México: estrategias partidarias
e instituciones electorales en México.
7
WOLDENBERG. Después de la transición: gobernabilidad, espacio público y
derechos.
8
EISENSTADT. Cortejando a la democracia en México: estrategias partidarias
e instituciones electorales en México.
9
ACKERMAN. El recuento ciudadano.
10
OLVERA. Resistencia política y sociedad civil: el PRD, López Obrador y los
límites programáticos y políticos de la izquierda mexicana.
11
GENDREAU; VALENCIA. Hacia la transformación de la política social en
México.

REFERÊNCIAS
ACKERMAN, John; SANDOVAL, Irma. El recuento ciudadano. Proceso,
n. 1551, 23 jul. 2006.
CANSINO, César. La transición mexicana (1997-2000). México: Ediciones
Cepcom, 2000.
EINSENSTADT, Todd A. Cortejando a la democracia en México: estrate-
gias partidarias e instituciones electorales en México. México: El Colegio
de México, 2004.
ESCALANTE GONZALBO, Fernando. La corrupción política: apuntes
para un modelo teórico. Foro Internacional 30, p. 328-345, 1989.
GENDREAU, Mónica; VALENCIA, Enrique (Coord.). Hacia la transforma-
ción de la política social en México. México: ITESO-UNICEF-SEDESOL,
2003.
LOMNITZ, Claudio (Coord.). Vicios públicos, virtudes privadas: la
corrupción en México. México: CIESAS-Miguel Angel Porrúa, 2000.
OLVERA,Alberto J. Las tendencias generales de desarrollo de la sociedad civil
en México. In: OLVERA, Alberto J. (Coord.) Sociedad civil, esfera pública

398
y democratización en América Latina: México. México: FCE-Universidad
Veracruzana, 2003.
OLVERA, Alberto J. Resistencia política y sociedad civil: el PRD, López
Obrador y los límites programáticos y políticos de la izquierda mexicana.
In: VEGA CÁNOVAS, Gustavo (Coord.). México: los retos ante el futuro.
México: El Colegio de México/Fundación Konrad Adenauer, 2007.
WOLDENBERG, José. Después de la transición: gobernabilidad, espacio
público y derechos. México: Ediciones Cal y Arena, 2006.

399
controle dA corrupção
enrique peruzzotti

AccountAbility

Nas últimas décadas, a noção de prestação de contas tem


sido colocada como um aspecto central do bom governo. O
conceito expressa um dos valores centrais da democracia: que
o governo deve submeter-se a uma multiplicidade de controles
a fim de assegurar o manejo responsável dos assuntos públicos.
Diversos atores na América Latina têm reclamado por maior
transparência e melhores controles sobre a atividade gover-
namental, desde a sociedade civil à imprensa, da oposição aos
organismos internacionais. No amplo leque de demandas por
maior prestação de contas, a corrupção governamental aparece
como um dos temas mais recorrentes. Existe um interessante
debate acerca das diversas formas que pode adotar o controle
da corrupção, assim como um consenso generalizado de que o
fortalecimento dos mecanismos anticorrupção efetivos é uma
das tarefas pendentes da etapa de melhoramento da qualidade
institucional das novas democracias.
O que se entende por prestação de contas? O conceito de
prestação de contas está intimamente relacionado com a ideia
de governo representativo: refere-se a uma forma especial de
vínculo que o poder político estabelece com a cidadania, na
chamada democracia representativa. Em contraste com governos
autoritários ou de formas não representativas de governo, o
governo representativo combina um marco institucional de auto-
rização do poder orientado para assegurar a responsabilidade e
receptividade (responsiveness) dos agentes autorizados. À medida
que a democracia representativa implica a existência de uma
distância entre representantes políticos e cidadãos – dado que
o povo não exerce diretamente o poder, senão através de polí-
ticos e burocratas profissionais –, supõe-se o estabelecimento de
mecanismos institucionais que assegurem que esta separação não
resulte em governos irresponsáveis ou totalmente despreocupados
com as demandas dos cidadãos. As instituições especializadas
na prestação de contas cumprem, portanto, um papel central na
democracia representativa: assegurar que os governos respondam
aos interesses dos representados.
A noção de prestação de contas encerra uma dimensão legal e
política. A dimensão política do conceito se refere à capacidade
da cidadania para fazer com que as políticas governamentais
reflitam suas preferências. Um governo presta contas se os
cidadãos possuem mecanismos efetivos para fazer executar
suas demandas e sancionar aquelas administrações que não
ouvem seus reclames políticos. Usualmente, se assume que as
eleições representam a instituição por excelência para este tipo
de controle, ainda que em anos recentes se tenha argumentado
que é necessário expandir o espaço de participação cidadã além
da mobilização eleitoral, se realmente se quer realizar um efetivo
controle político do governo.
A dimensão legal do conceito, que é a que nos interessa parti-
cularmente quando tratamos do problema da corrupção, refere-se
àqueles mecanismos institucionais desenhados para assegurar
que as ações de funcionários públicos estejam relacionadas a
um marco legal e constitucional. A separação de poderes, o esta-
belecimento de um sistema de pesos e contrapesos no interior
do Estado, a criação de agências de controle especializadas, um
sistema de direitos e garantias fundamentais são alguns dos
mecanismos clássicos orientados a limitar a arbitrariedade do
poder do Estado. O marco legal-constitucional divide o Estado
em uma série de jurisdições legais rigorosamente circunscritas,
que regulam o comportamento dos funcionários públicos,
com o objetivo de evitar a utilização do poder público para

402
fins pessoais, assim como o grau de discricionariedade da ação
desses funcionários. Para que a dimensão legal da prestação
de contas se efetive, é necessário que existam agências estatais
com capacidade efetiva de fiscalização e sanção. Estas agências
podem ser órgãos funcionalmente especializados no exercício
da prestação de contas (controladorias, auditorias, tribunais
administrativos, organismos anticorrupção, defensorias etc.),
ou instituições cuja atividade principal não seja a prestação de
contas, posto que cumprem uma variedade de funções, mas que
intervêm na manutenção dos procedimentos constitucionais e
das leis (Congresso e Poder Judiciário).
O conceito de corrupção, por outro lado, se refere a uma série
de atividades ilegais por parte de funcionários públicos, que tem
como consequência uma tergiversação da lógica representativa.
Existem diversas definições do termo: desde concepções que a
definem de maneira muito geral para indicar qualquer violação
do devido processo por parte de um funcionário ou agência
pública, até análises que a enquadram como uma forma par-
ticular de intermediação de interesses que está sustentada por
uma rede de instituições públicas e privadas. Estes dois tipos
de perspectivas assinalam importantes diferenças no grau de
corrupção em uma determinada democracia; ou seja, até que
ponto a corrupção implica a existência de comportamentos indi-
viduais isolados ou convertidos em um problema sistêmico.
O controle da corrupção é sempre uma tarefa difícil, dadas as
dificuldades que normalmente existem para detectar este tipo de
atividade; os obstáculos são maiores quando as ações envolvem
não apenas um reduzido número de funcionários, senão uma
rede institucional de atores.
Que tipo de remédio prevê a democracia para controlar
a corrupção? Grande parte da literatura sobre controle da
corrupção tem centrado na qualidade do sistema de controles
intraestatais ou horizontais. As agências horizontais, argumenta
O’Donnell, são aquelas que têm como objetivo prevenir, corrigir
ou sancionar atos de ilegalidade por parte de outras agências do

403
Estado. O autor distingue um amplo número de agências que
integram o sistema estatal de controles e contrapesos. Ao ser
parte de uma rede de agências, o êxito de cada uma delas vai
depender, em grande parte, da capacidade de dita rede funcionar
de maneira coordenada e convergente. O desenho institucional
assume que os distintos tipos de agência de controle horizontal
funcionam complementarmente. Dessa forma, a análise empírica
de casos de corrupção mostra que dita presunção é acertada
e que muitas vezes a cadeia de prestação de contas horizontal
apresenta importantes obstáculos internos que conspiram contra
seu bom funcionamento.
A atenção nos debates sobre prestação de contas estava centrada
exclusivamente na operação de mecanismos horizontais. Em anos
recentes, tem-se ampliado a discussão para incluir mecanismos
verticais de controle. A que se refere o termo de prestação de
contas vertical? As formas de prestação de contas vertical supõem
a atividade de um ator externo ao Estado; ou seja, enfatizam
a importância de desenvolver o sistema de controle além dos
clássicos mecanismos intraestatais. Existem dois atores que
podem cumprir um papel relevante na luta contra a corrupção:
uma imprensa independente e a sociedade civil. A denúncia
de atos de corrupção por parte da mídia tem sido uma cons-
tante na vida pública das novas democracias latino-americanas.
Diversos analistas têm chamado atenção sobre o surgimento de
uma imprensa de denúncia na região, que tem cumprido um
papel muito ativo, jogando luz sobre diversos casos de corrupção
governamental. Alguns dos ditos escândalos de corrupção tiveram
um forte impacto político. Cabe mencionar, por exemplo, as
denúncias que levaram ao indiciamento do presidente Collor
de Melo, no Brasil; o processo 8.000 na Colômbia, contra o
presidente Samper; as acusações contra Salinas de Gotari, no
México; assim como os escândalos que sacudiram as gestões de
Menem e De la Rua, na Argentina.
Os escândalos midiáticos representam a ação de controle
social mais saliente em termos de luta contra a corrupção, pois

404
permitem dar conhecimento à opinião pública não somente dos
atos específicos de corrupção, mas também das diversas manobras
de encobrimento que se realizaram para impedir que ditos fatos
viessem à luz. Frente aos custos simbólicos que impõe a pressão
midiática, os atores e agências envolvidas no controle da lega-
lidade se veem obrigados a tomar conta do assunto: juízes ou
funcionários de organismos de fiscalização, que de outra maneira
seriam reticentes em intervir por temer represálias políticas, se
veem forçados a ativar procedimentos em função da pressão
que a imprensa e a opinião pública exercem. Os escândalos
apresentam algumas limitações como ferramenta informal de
luta contra a corrupção. Podemos assinalar, por exemplo, que
a grande maioria das exposições midiáticas de fatos delituosos
por parte de funcionários públicos não são o produto de investi-
gações autônomas, mas se baseiam em informações vindas de
setores governamentais a determinados jornais. Este fato assinala
certas limitações de um jornal, quando ele depende muito de
fontes oficiais para obter informação, o que limita a capacidade
da mídia de poder manejar as dinâmicas que um determinado
escândalo gera, dada a dependência da mídia denunciante de
novas informações para manter o escândalo. Em muitos casos,
a imprensa, mais que contribuir para fomentar formas mais
transparentes de fazer política, termina alimentando obscuras
operações políticas. A proliferação de escândalos midiáticos, por
outra parte, pode anestesiar a opinião pública, de maneira que
novas revelações sobre a corrupção deixem de ser escandalosas,
ou que simplesmente fomentem atitudes de descrença frente às
instituições representativas, o que pode ter consequências nega-
tivas para a democracia.
A sociedade civil também tem desenvolvido uma série de
iniciativas importantes contra a corrupção. Tem-se estabelecido
na região uma nova geração de organizações cidadãs, altamente
profissionalizadas, muitas das quais estão dirigidas para expor
fatos delituosos ou para desenvolver estratégias para combater
eficazmente a corrupção. Um dos principais obstáculos que

405
enfrentam ditas organizações, e que tem determinado sua agenda,
é a opacidade do Estado. Neste sentido, um importante número
de iniciativas estão orientadas para melhorar a transparência
governamental e o acesso do cidadão à informação. Este último
constitui o pré-requisito básico para qualquer cidadão agir con-
tra a corrupção, pois o acesso à informação confiável é o input
básico de qualquer atividade de controle. Várias organizações
têm estabelecido programas orientados para fiscalizar as agências
estatais específicas: estas iniciativas compreendem a fiscalização
de como se executam os pressupostos públicos, o monitoramento
de licitações públicas, a fiscalização da evolução patrimonial de
funcionários públicos, a supervisão de programas sociais etc. Por
último, têm-se criado novos espaços institucionais para a parti-
cipação cívica, como a participação em audiências públicas, que
estabelecem novas arenas para a fiscalização cidadã das políticas
públicas de determinadas agências do Estado, particularmente
no nível municipal.
Recentes pesquisas indicam que a tolerância social em relação
à corrupção na região está diminuindo: importantes setores da
cidadania estão demandando uma profunda modificação das
tradições e práticas políticas da região e se mostram decididos
a avançar na complexa, sinuosa e contínua tarefa de aperfeiço-
amento das instituições das jovens democracias representativas.
Resulta imperativo estabelecer alianças e formas de colaboração
entre a sociedade civil e o sistema político, com o objetivo de dar
resposta aos reclames cívicos por maior transparência. O êxito
de dita tarefa beneficiará a política e o cidadão igualmente: o
estabelecimento de sólidos mecanismos de prestação de contas é
crucial para gerar e solidificar a confiança social nas instituições
representativas.

406
FranCiSCo g a e ta n i

funCionaliSmo públiCo

A expressão funcionário público – genericamente utilizada para


designar a situação funcional dos que trabalham para o Estado –
abrange na verdade um significativo conjunto de categorias
de trabalhadores. Neste grupo encontram-se servidores públicos
concursados de carreiras, ocupantes de cargos de confiança que
não pertencem à administração pública, funcionários de organi-
zações estatais contratados através do regime de trabalho típico
do setor privado – via Consolidação das Leis do Trabalho – e
profissionais contratados sob os mais diversos formatos para a
prestação de serviços provisórios. As confusões derivadas desta
denominação relacionam-se com a própria história do Brasil
moderno e da constituição da administração pública brasileira,
tal qual a ela nos reportamos hoje.
O Serviço Público Brasileiro, entendido enquanto o conjunto
dos servidores regidos por um estatuto do funcionalismo
público federal, data dos anos de 1930. Durante a primeira onda
de reformas do Estado brasileiro, foram criados sucessivamente o
Conselho Federal do Serviço Público em 1936, o Departamento
de Administração do Serviço Público (DASP) em 1937 e a legislação
que veio a constituir-se no primeiro Estatuto do Funcionário
Público em 1939.
Desde então, nos filiamos à tradição europeia continental, na
qual a chamada função pública é regida por um estatuto próprio,
distinto das regras que se aplicam ao mercado de trabalho das
relações privadas. Nasce então a distinção entre os chamados
estatutários e os celetistas. Os primeiros obedecem à legislação
contida no Estatuto do Funcionário Público e nas legislações que
se sucederam. Os segundos são regidos pela mesma legislação que
se aplica ao setor privado, a Consolidação das Leis do Trabalho
e o conjunto de leis que a ela vem se somando.
A grande novidade da legislação de 1936 – o primeiro plano
geral de cargos e salários da administração federal – foi aco-
modar em um mesmo marco legal tanto os futuros servidores
que ingressariam por concursos quanto as inúmeras tabelas de
extranumerários (os contratados pelo Estado em regime provi-
sório a diversos títulos). Estes quadros “provisórios” marcaram
a história do serviço público brasileiro até os dias de hoje.
Novos estatutos e conjuntos de legislações equivalentes fo-
ram editados em 1952, 1970 e 1990, embora apenas o de 1952
tenha recebido este nome de Estatuto do Funcionalismo Público.
Mas após o início auspicioso do serviço público brasileiro sob
Vargas, apenas a partir de meados da década de 1990 voltou-se
a constituir a administração pública federal nos moldes das
burocracias profissionalizadas de países desenvolvidos.
As reformas dos anos de 1930 não lograram o principal
objetivo pretendido: criar um serviço público profissionalizado
e meritocrático. Exemplo disto é o fato de desde 1934 todas
as constituições que se sucederam incorporarem o mesmo
dispositivo de efetivação de todos os trabalhadores que estives-
sem prestando serviços ao Estado até cinco anos antes de sua
promulgação, sob qualquer regime de contratação. Não surpre-
endentemente, as Constituições de 1937, 1946, 1967 e 1988
promoveram efetivações maciças de pessoal, transformando-os
em servidores públicos estáveis e com acesso aos mesmos direi-
tos de aposentadoria daqueles que ingressaram por concurso
público.
Estas práticas recorrentes contribuíram para uma visão distor-
cida da opinião pública sobre as características do serviço
público. Os funcionários públicos, os chamados “barnabés”,
imortalizados no imaginário popular pela marchinha “Maria

408
Candelária”, sempre foram historicamente percebidos como
profissionais que ingressaram no Estado por meio de algum tipo
de favor ou subterfúgio e passaram a gozar de uma vida tranquila
de pouco trabalho e muitos privilégios.
Sempre houve exceções a esta regra mas, em geral, restritas a
áreas onde as práticas meritocráticas criaram raízes e acabaram
se consolidando. Institutos previdenciários como o dos industriários
(o antigo IAPI), o fisco, a diplomacia, o Banco do Brasil, o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e alguns outros setores
sempre foram vistos como instituições de excelência em função
de suas formas de recrutamento serem mais profissionalizadas.
Esta realidade começou a mudar com a transferência da capital
federal para Brasília na década de 1960 e com o advento do
regime militar instalado em 1964. As reformas introduzidas pelo
Decreto-Lei 200, um desdobramento da Constituição de 1967,
o último legado de Castello Branco, foram implementadas parcial-
mente, isto é, não trataram da implementação da parte que previa
a conclusão das reformas do serviço público civil começadas nos
anos de 1930. Na verdade, elas proporcionaram o surgimento
de um outro tipo de funcionário público, o chamado tecnocrata,
contratado pelo regime celetista.
Os sucessivos governos militares implementaram um projeto
de modernização do Estado que não implicava a regeneração da
administração direta, mas sua marginalização, movimento este
já ensaiado na presidência de Juscelino Kubitscheck que usou
intensivamente os chamados Grupos Executivos para viabilizar
o seu Plano de Metas. Os anos de 1970, quando a administra-
ção pública federal foi sendo paulatinamente transferida para
Brasília, foram marcados pela ocupação da administração direta
por quadros que não eram próprios, mas egressos de outras
organizações governamentais.
Durante duas décadas o Estado brasileiro cresceu através
da administração indireta, notadamente por intermédio de em-
presas estatais e fundações governamentais de direito privado,
ambas contratando pessoal através da CLT e adotando legislação

409
contábil típica do setor privado. Ao esvaziamento político da
administração pública correspondeu a ascensão da chamada
tecnoburocracia, quadros de origem técnica servis ao regime
militar, que passaram a ocupar a cúpula do aparato federal em
regime de consórcio com egressos das Forças Armadas.
O funcionalismo público dos anos de 1970 e 1980 era majo-
ritariamente formado por “celetistas” em contraposição aos
chamados “estatutários”, remanescentes de um outro tempo
histórico e praticamente restritos ao Legislativo, Judiciário, Forças
Armadas, Itamaraty, Receita Federal e um ou outro grupo fun-
cional. Esta dicotomia se fazia particularmente presente com o
aumento da inflação porque os primeiros se beneficiavam dos
aumentos salariais estabelecidos para o setor privado, enquanto
os últimos dependiam de atos do governo federal, sempre em
busca de formas de contenção dos mecanismos de indexação
salarial.
Por ocasião da redemocratização os funcionários públicos
celetistas constituíam a maioria dos funcionários civis do setor
público. O Governo Sarney teve também que absorver as deman-
das originárias de um represamento de 20 anos de regime auto-
ritário, o que levou à multiplicação de regimes de contratação
temporários, além de uma incorporação de um grande número
de funcionários celetistas atendendo a pressões políticas.
A Assembleia Nacional Constituinte de 1988 reeditou o
comportamento de Vargas nos anos de 1930 e do Governo
Castelol Branco no início do regime autoritário. Todos que
estavam prestando algum tipo de serviços ao governo federal,
sob as mais variadas modalidades de contratos, acabaram sendo
efetivados e transformados em servidores públicos federais. Esta
decisão acabou sendo implementada apenas no final do primeiro
ano do Governo Collor e no último ano do Congresso Consti-
tuinte eleito em 1986. Estima-se que entre 1985 e 1990 centenas
de milhares de empregados e contratados a título provisório e
precário tenham sido efetivados no serviço público.

410
Datam deste período também os primeiros ensaios de
formação dos novos núcleos meritocráticos da administração
pública federal, quando foram criadas as carreiras de especia-
listas de políticas públicas e gestão governamental, finanças e
controle e planejamento e orçamento. A primeira nasceu de uma
tentativa de se emular o sistema de carreiras francês, através de
um concurso nacional comparável apenas ao primeiro grande
concurso nacional do DASP em 1937. As outras duas foram
criadas por transposição, pela via administrativa, em função
da posição de força das autoridades econômicas das áreas de
planejamento e fazendária.
De uma hora para outra a administração pública federal
passou a contar com uma imensa maioria de estatutários e apenas
nas empresas estatais e nas Fundações Universitárias de Apoio
à Pesquisa foi mantido o regime celetista. Esta situação levou
ao truncamento das atividades governamentais, em especial nos
regimes Collor e Itamar Franco. A névoa inflacionária impedia, no
entanto, uma real avaliação da situação do peso do gasto com
o funcionalismo público de ativos, inativos e pensionistas.
Durante o final do Governo Sarney e o primeiro ano do
Governo Collor o Executivo desiste de implementar o plano de
carreira previsto para o funcionalismo, ocorre um downsizing da
administração federal e, paradoxalmente, é aprovada a legislação
que atualizou o Estatuto do Funcionalismo Público de 1952 – a
lei 8.112 – em dezembro de 1990, um dos últimos atos do
Congresso Constituinte da legislatura 1987-1990.
O início dos anos de 1990 marcou um período traumático
para o funcionalismo federal. O Governo Collor iniciou sob a
égide de um downsizing sem precedentes na história do país.
A estabilização macroeconômica proporcionou a recuperação
da verdade dos números e encerrou o período de mágicas inflacio-
nárias, em especial aquelas que envolviam atrasos de reajustes
salariais e contabilidade criativa nas contas previdenciárias. A
partir de então, em 1995, pela primeira vez, começaram a se
produzir estatísticas mais ou menos confiáveis sobre os números

411
dos servidores públicos, o valor da folha de salários, o custo dos
inativos e os números de cargos de confiança da administração
pública federal.
No primeiro mandato de Cardoso foram geradas pela pri-
meira vez estatísticas razoavelmente confiáveis sobre o contin-
gente de pessoal do serviço público, no contexto das reformas
empreendidas por Bresser Pereira à frente do Ministério da
Administração e Reforma do Estado, embora as transformações
gerenciais pretendidas na época tenham fracassado – em função
de resistências no âmbito do próprio governo.1 Foram retoma-
dos os concursos públicos para as carreiras estratégicas criadas
no final dos anos de 1980, mesmo no contexto de políticas de
ajuste estrutural.
O salto qualitativo do segundo mandato foi a consolidação
do recorte relativo a quais carreiras passaram a integrar o
núcleo permanente do Estado, combinado com o refinamento
dos cálculos com pessoal, que passaram a integrar o processo
de elaboração do orçamento da União em bases inéditas. A
regeneração da capacidade governamental na área econômica
era consistente com as políticas de corte fiscal adotadas então.
No decorrer do primeiro mandato de Lula iniciou-se um
esforço de recomposição da força de trabalho da adminis-
tração federal. As carreiras do chamado núcleo duro do Estado
– área econômica, ciclo de gestão e setores jurídicos – tiveram
sua posição reforçada e valorizada. Foram criadas também as
carreiras das agências reguladoras. Houve uma consolidação
da Controladoria Geral da União com um aumento dos seus
quantitativos de pessoal em 70% em cinco anos. Dados de 2007
mostram que a atuação do Ministério da Controladoria Geral
da União e Transparência resultou em aproximadamente 1.420
demissões de funcionários públicos em cinco anos, indicando a
queda de um tabu centenário.
O segundo mandato de Lula caracterizou-se até sua segunda
metade pela concessão de aumentos salariais ao funcionalismo
sem precedentes na história. Estes aumentos vieram relacionados

412
a cláusulas que vincularam a concessão dos aumentos ao de-
clínio da participação dos gastos com pessoal em termos de
participação do Produto Interno Bruto, suposto, no mínimo,
no patamar entre 4,5 e 5%. A política salarial adotada visou,
em tese, a garantia de ausência de greves até o final de 2010.
Ao mesmo tempo iniciou-se um esforço por povoamento
dos ministérios finalísticos começando com as carreiras de
infraestrutura, seguida pelas carreiras social e de técnicos-
-administrativos. Dois vetores convergiram para tal decisão.
Por um lado mudanças na condução da política de recursos
humanos resultaram na priorização do desenvolvimento de ca-
pacidades nos ministérios responsáveis pela implementação de
políticas públicas setoriais. Por outro, a pressão dos órgãos de
controle, notadamente o Tribunal de Contas da União e o Mi-
nistério Público, para a eliminação de terceirizações irregulares
na administração pública federal contribuiu para que o governo
buscasse soluções institucionais sustentáveis para o problema da
necessidade de quadros profissionais na administração direta.
No final de 2006 o Executivo Federal contava aproximada-
mente com um milhão e 940 mil funcionários públicos, metade
dos quais inativos e pensionistas. Deste total os militares respon-
diam por 750 mil e a administração direta, 620 mil. O número
de cargos de confiança ao final de 2007 situava-se em torno de
20 mil e 200 posições de Direção e Assessoramento Superior
(DAS), dos quais 70% em média eram egressos do próprio ser-
viço público.2
O funcionalismo público – pelo menos no âmbito do Poder
Executivo Federal – vive um momento em que se ensaiam mu-
danças que foram tentadas, mas que fracassaram no passado. O
desafio consiste em consolidar as mudanças em curso, dissemi-
ná-las para as instâncias estaduais e municipais e torná-las sus-
tentáveis. Maria Candelária ainda sobrevive na cultura política
do país, mas parece cada vez mais uma referência de um outro
tempo histórico que felizmente o país vai deixando para trás.

413
NOTAS
1
REZENDE. Administrative reform: permanent failure and the problem of ex-
ternal support – MARE and the reform of the state apparatus in Brazil, 2000;
GAETANI. Constitutional public management reforms in modern Brazil: 1930-
1998.
2
Os dados mencionados neste parágrafo foram extraídos de: MINISTéRIO
DO PLANEJAMENTO. Boletim Estatístico de Pessoal.

REFERÊNCIAS
DIAS, J. N. T. A reforma administrativa de 1967. Rio de Janeiro: FGV, 1968.
GAETANI, F. Constitutional public management reforms in modern Bra-
zil: 1930-1998. PhD thesis, London School of Economics and Political
Science, 2005.
GUERZONI FILHO, G. Burocracia, tecnocracia, pseudoburocracia e
Constituição de 1988: tentativas e perspectivas de formação de uma bu-
rocracia pública no Brasil. Revista de Informação Legislativa, ano 32, n.
138, out./dez. 1995.
MINISTéRIO DO PLANEJAMENTO. Boletim Estatístico de Pessoal,
Brasília, Secretaria de Recursos Humanos - Ministério do Planejamento,
141, 2008.
REZENDE, F. C. Administrative reform: permanent failure and the problem
of external support – MARE and the reform of the state apparatus in
Brazil, 2000. PhD thesis, Cornell University, 2000.
SANTOS, L. A. dos. Reforma administrativa no contexto da democracia.
Brasília: DIAP-ANFIP, 1997.
WAHRLICH, B. M. S. Reforma administrativa na Era Vargas. Rio de
Janeiro: FGV, 1983.

414
Joana Fontoura
aline SoareS

tranSparênCia intErnaCional

Os primeiros indícios de que a corrupção estava sendo


combatida em âmbito internacional aparecem em 1988, com a
Convenção contra o Tráfico de Narcóticos Ilícitos e Drogas
Perigosas, das Nações Unidas (ONU), em que o combate à
corrupção não era o maior esforço em si, mas estava relacionado
pelo dinheiro envolvido nas transações ilícitas. A década de 1990
marcou o surgimento de iniciativas por parte de organismos
multilaterais (FMI, OEA, Banco Mundial e OCDE) e de estudos
acadêmicos sobre a corrupção. As reformas democráticas, a inte-
gração entre os países e a liberalização econômica facilitaram a
percepção da importância de se reportar o tema da corrupção,
de seus custos e de seu combate.
Em 1990, representantes do Banco Mundial na África se
reuniram para discutir a realização de um estudo sobre gover-
nança e desenvolvimento econômico. Nesta época, o diretor
regional do Banco Mundial, Peter Eigen, conhecia o impacto
devastador da corrupção na região e passou a buscar formas
de combatê-la, pois a considerava um obstáculo ao desen-
volvimento sustentável. A ideia encontrou resistência entre
os representantes da instituição em sua sede, em Washington,
devido à recomendação de neutralidade política em relação às
decisões de empréstimos que o Banco Mundial deve ter. Diante
disso, Peter Eigen juntou-se a intelectuais, ativistas, empresários,
jornalistas, acadêmicos, líderes políticos e oficiais de diversas
regiões do mundo a fim de ganhar o apoio deles para formar a
organização não governamental Transparency International (TI).
Com o apoio financeiro da GTZ (Agência de Cooperação
Técnica Alemã), Eigen fundou em 1993 a TI, cujo objetivo é
combater a corrupção através da difusão de valores globais de
transparência, responsabilidade social, accountability e good
governance como uma organização não governamental, sem fins
lucrativos ou filiação partidária. Desde seu surgimento, uma das
preocupações da TI era a independência do financiamento, para
que o setor público não controlasse as atividades da organização.
Portanto, o suporte financeiro da TI vem de várias instituições
tanto governamentais como do setor privado, e de pessoas físicas,
que também fazem doações através do trabalho voluntário.1
Além disso, organizações internacionais como o Banco Mundial,
o FMI e o BID apoiam financeiramente a TI.
O lançamento formal da instituição foi em Berlim, em maio
do ano de 1993, e atraiu grande público, que reagiu enviando
milhares de cartas de reconhecimento pelo fato de uma insti-
tuição ter a iniciativa de colocar o tema do combate à corrupção
na agenda internacional. Neste primeiro momento, o enfoque
maior da TI era a corrupção presente nas transações econômicas
internacionais e nos projetos de cooperação econômica. Depois,
passou a enfatizar a reforma nos sistemas reguladores dos países,
retirando assim o caráter moralista do tema e atuando em duas
frentes: uma local, através de seus Capítulos Nacionais; e outra
global, ao levar o tema da corrupção para a pauta política dos
países.2
Nos últimos anos a organização abordou a prevenção da
corrupção a partir de diversos setores. Dentre as frentes de
atuação pode-se destacar o processo eleitoral (financiamento de
campanha, sustentabilidade dos partidos políticos) e o processo de
licitação e contratação pública. O desvio de recursos em situações
de crise e operações de ajuda humanitária e a transparência de
recursos financeiros das companhias energéticas foram os mais
recentes focos da ação de combate à corrupção da TI.

416
A importância de um ordenamento jurídico internacional
para abranger o controle da corrupção é uma bandeira da orga-
nização, pois as convenções anticorrupção oferecem um marco
de normas e standards que facilitam a cooperação internacional.
Assim, a TI promoveu ativamente a adoção da Convenção das
Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC), a Convenção da
OCDE contra o Suborno, e também convenções regionais como
a Convenção Interamericana de Combate à Corrupção (CICC).
O papel no monitoramento é importante não só para viabilizar o
cumprimento das normas, mas representa uma oportunidade dos
especialistas avaliarem os obstáculos e recomendarem melhorias
na luta anticorrupção. Agora se concentra em assegurar a
aplicação das normas entre os países signatários.
Uma das principais ferramentas na luta contra a corrupção
é o acesso à informação. Por isso, a TI divulga estatísticas
do nível de corrupção e de sua percepção em alguns países do
mundo, o que cria grande expectativa na mídia internacional.
Este trabalho de conscientização é feito através de campanhas
sobre os efeitos da corrupção e costuma agregar representantes
de diversos setores da sociedade.

PRODUTOS TI
Para garantir sua sustentabilidade, a TI divulga amplamente
suas pesquisas. Entre os produtos gerados, o de maior destaque
é o índice de Percepções da Corrupção (CPI, em inglês). Abaixo
mencionaremos alguns dos resultados gerados pela instituição ao
longo dos últimos 15 anos:
LIVRO DE REFERÊNCIA
Com a publicação do Livro de Referência (Source Book) em
1996, a TI estabeleceu parâmetros de integridade que servem
como referência para a atuação da ONG com base em modelos
de good governance e accountability. Traduzido para mais de
20 idiomas, o livro apresenta uma visão abrangente dos atores

417
envolvidos no controle da corrupção e constitui uma base de
dados para referências de distintas iniciativas internacionais.3
SISTEMA DE INTEGRIDADE NACIONAL
O conceito de sistema nacional de integridade é uma tentativa
de identificar os elementos dos sistemas políticos voltados para
garantir a integridade. Vinculado a conceitos como democracia
e governança, a noção de integridade explora a ideia de que
prevenção e controle são produtos da interação entre várias insti-
tuições: governo, sociedade civil, setor privado e organizações
internacionais.4 Para isso, há o Pacto de Integridade (Integrity
Pact), que tem apresentado resultados satisfatórios no campo
do combate à corrupção nos contratos públicos, pois os envol-
vidos (governos e empresários) assumem o compromisso de que
não pagarão ou receberão qualquer tipo de suborno para obter
contratos. O monitoramento fica a cargo das organizações civis,
incentivando a clareza das atividades realizadas pelos governos e
pelas empresas. Em 2000, foi criado o Prêmio de Integridade da
TI (TI Integrity Awards) que contempla o empenho de indivíduos
e organizações na luta anticorrupção.
íNDICE DE PERCEPÇõES DE CORRUPÇÃO - CPI
O CPI (Corruption Perceptions Index) elenca os países de
acordo com a percepção do nível de corrupção no setor público.
Este índice compila os dados levantados anualmente através de
entrevistas com empresários e analistas, criando a possibilidade
de comparar um grande número de países numa única escala de
percepção (variando de 0 até 10). Pela metodologia, quanto mais
próximo do 10, menos corrupto é o país. Embora esteja sujeito
a muitas críticas metodológicas, o CPI é bastante utilizado.
Esse medidor tem um grande impacto no debate internacional
sobre corrupção, pois se tornou um fato político e contribuiu
para aumentar a visibilidade do tema.

418
BARôMETRO GLOBAL DA CORRUPÇÃO
O Barômetro Global da Corrupção (Global Corruption Baro-
meter- GCB) é uma pesquisa de opinião pública, conduzida pelo
Gallup International, a fim de medir a vivência e a percepção
da corrupção que cidadãos comuns têm do setor público.
Para justificar a abrangência global da pesquisa, na edição do
GCB 2007 foram entrevistadas 63.199 pessoas em 60 países.
Os resultados demonstram que a percepção e a experiência das
pessoas com a corrupção é significativa e refletem uma noção
generalizada de que as instituições representantes do interesse
público se utilizam do poder em benefício próprio.
íNDICE DE PAíSES CORRUPTORES
Em 1999 foi criado o índice de Países Corruptores (Bribe
Payers Index - BPI) para identificar os países mais propensos a
pagar subornos em transações comerciais internacionais através
de entrevistas com empresários. Ao avaliar as empresas dos países
exportadores o objetivo é mensurar sua propensão a praticar
subornos transnacionais. Na edição de 2006, o BPI foi resultado
da avaliação de 30 países exportadores por 11 mil empresários
de 125 países.5
RELATóRIO GLOBAL SOBRE CORRUPÇÃO
Encomendado pela TI a especialistas para se ter uma perspec-
tiva independente, o Relatório Global sobre Corrupção (Global
Corruption Report - GCR) representa mais uma ferramenta de
conscientização e análise da corrupção no mundo. Criada em
2001, esta publicação anual se dirige a um público amplo e possui
uma temática específica a cada edição.
SISTEMA DE INVESTIGAÇÃO E
INFORMAÇÃO ON-LINE SOBRE CORRUPÇÃO
O Sistema de Investigação e Informação On-line sobre Cor-
rupção (Corruption Online Research and Information System
- CORIS) surgiu para fortalecer os esforços da TI na adminis-
tração do conhecimento, aproveitando as novas tecnologias de

419
informação e de comunicação. O CORIS é um portal da Internet
gratuito e de fácil acesso, com um banco de dados para busca sobre
corrupção e governança.
KIT DE FERRAMENTAS ANTICORRUPÇÃO
O kit de Ferramentas Anticorrupção (Corruption Fighters’
Tool Kit) apresenta experiências práticas relatadas pela socie-
dade civil na luta anticorrupção e ideias inovadoras que foram
desenvolvidas e implantadas pelos Capítulos Nacionais da TI e
outras organizações civis de vários países.
ESTRUTURA DA TI
A partir da Secretaria Internacional, em Berlim, a TI pro-
move campanhas de conscientização, gerencia iniciativas
setoriais e fomenta a adesão às convenções multilaterais, às
reformas políticas e às iniciativas institucionais dirigidas contra
a corrupção. A fim de alcançar resultados a nível local, a TI
difundiu suas ideias e práticas com parcerias nacionais, dando
origem aos Capítulos Nacionais. Como importantes atores da
rede transnacional anticorrupção, os Capítulos Nacionais são
responsáveis por fomentar a base de ação local e têm a função
de fazer lobbying junto aos governos, coletar dados, fornecer
informações à mídia, avaliar a transparência dos processos
governamentais, pressionar pelo cumprimento dos acordos
internacionais etc. Presentes em mais de 100 países, cada um
dos Capítulos Nacionais é financeiramente independente da TI
e organizado de forma autônoma.
Criada para fortalecer o trabalho dos Capítulos Nacionais
latino-americanos, a rede TILAC (Transparency International
para Latinoamérica y el Caribe) foi estabelecida em 1996 com
a meta de aprofundar o intercâmbio de experiências na região,
elaborar mecanismos de avaliação da corrupção e estabelecer
uma agenda regional comum.6
Os Capítulos Nacionais da Ásia Pacífico criaram a TIAP (TI in Asia
Pacific) em 2005 para incluir o tema da cooperação na agenda
destes países e estimular a troca de experiências e ferramentas

420
anticorrupção. Na Europa, desde 1994 a TI pressiona os gover-
nos a realizarem uma convenção regional sobre corrupção. Na
África e no Oriente Médio, os Capítulos Nacionais se mobilizam
através de seminários regionais e workshops para fortalecer o
intercâmbio de ideias e medidas para o combate da corrupção.
A Transparency International atingiu sua meta de inserir o
tema do combate à corrupção na agenda internacional. Através
de suas campanhas midiáticas, seus produtos e resultados de
pesquisas, a TI tornou-se uma referência. Junto a aliados como
seus Capítulos Nacionais, as agências multilaterais e os Estados
Nacionais, a TI formou uma rede transnacional anticorrupção
importante que tem difundido a ideia de que o combate à cor-
rupção depende da cooperação entre diversos atores em busca
de práticas éticas e transparentes.

NOTAS
1
GALTUNG. A global network to curb corruption: the experience of Transparency
International.
2
SPECK. Caminhos da transparência: análise dos componentes de um sistema
nacional de integridade.
3
SPECK. Caminhos da transparência: análise dos componentes de um sistema
nacional de integridade.
4
SOARES. Democratização, ativismo internacional e luta contra a corrupção.
Estudo de caso sobre a Transparência Brasil e a Transparency International.
5
FONTOURA. O combate à corrupção através de redes: a Transparency Inter-
national, seus Capítulos Nacionais e as Agências Multilaterais.
6
SOARES. Democratização, ativismo internacional e luta contra a corrupção.
Estudo de caso sobre a Transparência Brasil e a Transparency International;
FONTOURA. O combate à corrupção através de redes: a Transparency Inter-
national, seus Capítulos Nacionais e as Agências Multilaterais.

REFERÊNCIAS
FONTOURA, Joana. O combate à corrupção através de redes: a Transpa-
rency International, seus Capítulos Nacionais e as Agências Multilaterais.
Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – (PPGRI)- UFF- Uni-
versidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2006.

421
GALTUNG, Fredrick. A global network to curb corruption: the experience
of Transparency International. In: FLORINI, Ann (Ed.). The third force –
the rise of Transnational Civil Society. Washington: Carnegie Endowment
for International Peace, 2000.
SOARES, Aline Bruno. Democratização, ativismo internacional e luta
contra a corrupção. Estudo de caso sobre a Transparência Brasil e a
Transparency International. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) –
(PPGCP) – UFF- Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2004.
SPECK, Bruno W. Caminhos da transparência: análise dos componentes de
um sistema nacional de integridade. Campinas: Editora da Unicamp, 2002.
TRANSPARENCY INTERNATIONAL: <www.transparency.org>.

422
leonardo av r i t z e r

índiCES dE pErCEpção
da Corrupção

A corrupção como problema político, econômico, cultural e


administrativo se manifesta de forma diferenciada nos diversas
países.1 Em algumas democracias, estruturas de controle da
corrupção existem e inibem práticas de apropriação privada dos
recursos públicos. Em outros países de democratização recente
ou praticamente sem experiências de democracia, a corrupção se
expressa de forma muito mais intensa. Sendo ela um fenômeno
por natureza não público, isto é, ninguém envolvido em um caso
de corrupção manifesta abertamente a sua adesão a tal prática
política, surgiu um problema que tem ocupado a atenção das
instituições internacionais (Nações Unidas, Banco Mundial, entre
outras), que é como medir de forma comparada o fenômeno da
corrupção.
A maior parte das instituições internacionais se orientam pelos
chamados índices de percepção da corrupção. Normalmente, um
índice de percepção da corrupção é elaborado da seguinte forma:
pergunta-se às pessoas sua opinião sobre o nível de corrupção
em um determinado país. Essas pessoas são buscadas através
da sua inserção na economia. Assim, se tomarmos o índice de
percepção da corrupção mais conhecido, o da Transparência
Internacional,2 ele é elaborado através de questionários aplicados
em empresários e analistas de diversos países acerca da sua
opinião sobre o grau de corrupção naquele país. Em geral, a
Transparência Internacional procura dirigentes de empresas
transnacionais em um determinado país. é isso que faz o índice
da Transparência Internacional em medida indireta de percepção
da corrupção. Assim sendo, o índice de percepção da corrupção
mais difundido internacionalmente tem um viés muito claro:
ele é elaborado para orientar as ações de agentes econômicos
transnacionais na tomada de decisões.
Diversas críticas podem ser feitas aos índices de percepção
da corrupção. Essas críticas poderiam ser enumeradas em três
pontos: 1) no caso dos índices de corrupção internacionali-
zados eles são dependentes dos interesses e da visão política dos
dirigentes de grandes corporações internacionais em relação a
um país e ao seu governo. Assim, países como Bahrein, Emirados
Árabes ou o Qatar estão relativamente bem localizados no
índice da Transparência Internacional, provavelmente, porque os
dirigentes de empresas transnacionais localizadas naqueles países
não veem problemas nas práticas de corrupção ali existentes.
2) Também no caso dos índices de percepção da corrupção, eles
estão relacionados em termos de pluralismo existente e na mídia.
Logo, se a mídia está interessada em não deixar um escândalo
sair de pauta, ela pode alterar a sua percepção. Por outro lado,
se inexiste uma mídia pluralista e com liberdade de expressão
em um país, este fenômeno altera completamente a percepção da
corrupção. Tal como iremos discutir a seguir, países com fortes
restrições às atividades midiáticas e com níveis médios de cor-
rupção tendem a se localizar melhor nos índices de percepção da
corrupção do que países com níveis médios de corrupção e sem
liberdade para a atuação de imprensa. 3) O terceiro problema
importante envolvido nos índices de elaboração da corrupção é a
sua concentração nos comportamentos de funcionários públicos.
As perguntas de pesquisas sobre corrupção sempre se concentram
no campo dos comportamentos dos funcionários públicos e quase
nunca elaboram o papel do setor privado no estabelecimento
de comportamentos problemáticos. A consequência deste tipo

424
de abordagem é uma tendência a ignorar o fato de que, muitas
vezes, a iniciativa de corromper é do setor privado e não de
funcionários do setor público.
Ao analisarmos o índice de percepção da corrupção elaborado
pela Transparência Internacional no ano de 2007, podemos rea-
lizar um conjunto de questionamentos baseados nas observações
acima para os 24 países apresentados na Tabela 1. No entanto,
gostaríamos de salientar que alguns dos elementos mostrados
pelo índice, particularmente para as 10 primeiras posições da
tabela apresentada, parecem expressar de fato práticas exitosas
nos países do Norte da Europa. As 10 primeiras colocações do
índice da Transparência Internacional expressam baixos níveis
de corrupção nos países do Norte da Europa (onde estão loca-
lizados seis dos 10 primeiros colocados), países estes nos quais
há ampla liberdade e pluralismo midiático. Ao passarmos das 10
primeiras colocações para os lugares situados entre a décima e a
vigésima posição, mais uma vez podemos perceber fenômenos re-
levantes em relação à corrupção. Apenas dois países anglo-saxões
encontram-se localizados nas 10 primeiras colocações e a maior
parte destes países se situa entre a décima e a vigésima colocação,
como os Estados Unidos ocupando a vigésima colocação.

Tabela 1
índice da Transparência Internacional em 2007
(continua)
Colocação no Índice Países
1 Dinamarca
2 Finlândia
3 Nova Zelândia
4 Singapura
5 Suécia
6 Islândia
7 Holanda
8 Suíça

425
(conclusão)
Colocação no Índice Países
9 Canadá
10 Noruega
11 Austrália
12 Inglaterra
14 Hong Kong
17 Irlanda
20 Estados Unidos
22 Chile
32 Qatar
35 Taiwan
36 Emirados Árabes
43 Malásia
46 Bahrein
71 Brasil
75 México
104 Argentina

O ranking esboçado acima demonstra uma série de problemas


para uma análise comparativa da corrupção. O primeiro deles é
a não diferenciação entre países com instituições democráticas e
liberdade de imprensa e aqueles sem estas instituições.Assim, países
como a Jordânia, Qatar, Emirados Árabes, Malásia e Taiwan se
saem sistematicamente melhor no índice de percepção da corrupção
do que países como o Brasil, o México e a Argentina. O problema
presente nestes casos é o que podemos denominar de distorção da
percepção: se a imprensa em um determinado país não é livre e as
instituições democráticas têm um papel limitado na divulgação e
denúncia dos casos de corrupção, como é possível perceber neste
grupo de países, a acuidade com que o fenômeno é sentido tende
a ser muito prejudicada. Há um segundo problema envolvido na
elaboração do ranking que parece também ser bastante evidente,
que é o fato de nos países nos quais a corrupção é combatida, seja
por meio de operações policiais e administrativas, seja por meio
de investigações congressuais – casos do Brasil e da Argentina –,

426
a corrupção tornar-se-á mais conhecida. Este segundo elemento
nos permite comparar países como os da América Latina com
os anglo-saxões, em especial os Estados Unidos, em que houve um
importante processo de combate à corrupção a partir dos anos
de 1930. Falta uma medida histórica comparativa entre países
que já combateram a corrupção e os que a estão combatendo recen-
temente. Assim, os índices de percepção da corrupção tendem a
situar os países nos quais esta última é combatida em patamares
inferiores àqueles que nada fazem a respeito.
Assim, é possível perceber que o principal problema envolvido
nos índices de percepção da corrupção é a falta de variáveis polí-
ticas para analisar o fenômeno. O cálculo do índice expressa
uma visão economicista da administração pública, tanto no que
se refere às pessoas que respondem aos questionários, que são
dirigentes de empresas transnacionais, quanto no que concerne às
variáveis políticas do fenômeno da corrupção, que são ignoradas.
Neste sentido, para que haja uma comparabilidade mínima dos
índices de corrupção, são necessárias duas mudanças principais:
(1) a perda de posição daqueles países que não possuem instituições
democráticas ou liberdade de imprensa e (2) o aumento de posi-
ções de países que estão realizando operações administrativas e
judiciais de combate à corrupção. Esta seria uma forma possível
de tornar os índices de percepção da corrupção uma medida mais
próxima da realidade política dos países.

NOTAS
1
TREISMAN. The causes of corruption: a cross-national study.
2
Vide ensaio a respeito.

REFERÊNCIA
TREISMAN, D. The causes of corruption: a cross-national study. Journal
of Public Economics, v. 69, n. 2, p. 263-279, 2000.

427
aaron SCHneider

banCo mundial

A crítica internacional da corrupção se concentrou nas fontes


e sintomas da corrupção, expressando um amplo acordo a esse
respeito. Este acordo se expandiu gradualmente, abarcando,
em primeiro lugar, a luta contra a corrupção nos países em
desenvolvimento, e, em segundo, a luta contra a corrupção em
agências internacionais, como o Banco Mundial. Recentemente,
ele passou a incorporar a luta contra a corrupção dentro dos
processos e políticas do mercado internacional, que incentivam
e lucram com a corrupção. Apesar destes avanços, ainda é preciso
uma conceituação honesta da corrupção e do desenvolvimento,
porque ambos os temas estão demasiado ligados. Este texto
aborda os três pontos tendo como foco o papel do Banco Mundial
e levantando perguntas que estão em aberto. Estamos vindo
de uma longa tradição que busca compreender a malaise da
corrupção, mas ainda não abordamos de frente o modo como
determinados tipos de corrupção são ligados ao conflito político
e à acumulação primitiva dentro do capitalismo em expansão.

PEQUENA CORRUPÇÃO
E GRANDE CORRUPÇÃO
Antes de entrar no tema do Banco Mundial e da corrupção,
proponho uma distinção inicial entre a pequena corrupção e
a grande corrupção. A pequena corrupção é a corrupção
administrativa que flagela os Estados, em que os incentivos e o
confinamento de burocratas não disciplinam seu comportamento
para aderir às regras e aos procedimentos. Em geral, a pequena
corrupção está ligada aos privilégios, representando um
incômodo ao público, um custo às transações e atividades
produtivas, distorcendo a economia e custando caro ao governo.
Está relacionada à renda imediata que funcionários públicos
extraem, quando se colocam como intermediários para aqueles
que necessitam dos seus serviços.
Muitos estudiosos do tema concentram-se neste aspecto da
corrupção, expondo um amplo acordo de que este tipo de
corrupção representa o enfraquecimento do Estado e do mer-
cado, e que custa caro ao desenvolvimento.1 A razão para que a
pequena corrupção tenha este impacto é o fato de ela envolver os
subornos ilícitos, em que o poder do Estado é usado para extrair
renda das partes envolvidas em uma transação. Este suborno
pode ser desde o pagamento de uma licença para construção a
um olhar diferente para importação ou exportação de bens e
serviços. Pelo fato de esses subornos não serem públicos, obs-
curecem o valor do bem e do serviço que estão sendo trocados,
tirando receitas do setor público. Esta perda de receitas do
setor público é real, enquanto as transações são conduzidas no
setor informal, conduzindo a uma deterioração da qualidade
do serviço público, uma vez que o Estado se torna incapaz de
regular os negócios e os serviços. O resultado desse processo é
a distorção da atividade econômica, à medida que a corrupção
diminui o crescimento e enfraquece o setor público. Este é tão
mais enfraquecido quanto mais se torna orientado para aqueles
que pagam suborno e propina, resultando na provisão desigual e
injusta de serviços públicos. Em particular os pobres são os mais
afetados pela pequena corrupção, porque sua habilidade marginal
para pagar suborno e propina é muito baixa e eles são mais
dependentes dos serviços básicos do Estado.2
Além da pequena corrupção, devemos compreender a grande
corrupção. Esta ocorre nos pontos mais elevados da hierarquia
política e econômica. Ao contrário da pequena corrupção, que

429
flagela as linhas de frente da burocracia, a grande corrupção
flagela as legislaturas, as cortes supremas e os executivos, ou
seja, flagela, ao mesmo tempo, os três poderes. O que a define
é o uso do poder do Estado para produzir ganhos econômicos
e benefícios políticos.
A grande corrupção está relacionada ao roubo imediato
de dinheiro público, como quando um presidente foge por meio
do dispositivo automático de entrada internacional. A grande
corrupção também está relacionada ao uso do poder do Estado
para estabelecer um monopólio em um setor particular da eco-
nomia. Esta é a história dos barões do século 19, nos Estados
Unidos, que conspiraram com autoridades estatais para criar
monopólios no setor de aço e de petróleo. Em países em vias de
desenvolvimento, no mundo contemporâneo, a grande corrupção é
exercida onde o capitalismo é conduzido de maneira pessoal,
utilizando os privilégios usados pelo Estado para consolidar
a riqueza nas mãos de aliados políticos ou da família.
Para a grande economia, a grande corrupção tem os mesmos
impactos da pequena corrupção. Ela distorce a atividade econô-
mica, criando incapacidades e injustiça. No entanto, causa vulne-
rabilidade econômica sob as circunstâncias da globalização, em
que os atores do mercado de capital estão atentos às fragilidades
do capitalismo pessoal. Muitos observadores da crise asiática
de 1997 atribuem a culpa aos sintomas do capitalismo pessoal,
como praticado no setor financeiro. Os bancos, cujo poder de
mercado era resultado de conexões políticas, eram particular-
mente suscetíveis aos fluxos de dinheiro, e os acionistas retira-
ram seus fundos quando perderam a confiança nas instituições
financeiras mal reguladas e mal protegidas da região.3
O que é mais nocivo na grande corrupção é o fato de ela nem
sempre ser ilegal. Os monopólios naturais existem em muitos
setores, e é inevitável o acesso das autoridades estatais às decisões.
A base para as decisões deve ser regulada e vigiada, mas toda
decisão inclui um grau de arbitrariedade. Deve a oferta ganha-
dora ser a mais eficiente, a mais equitativa, a mais representativa

430
regionalmente? Todo critério gera distorções, e não há nenhuma
garantia de que as rendas geradas com o monopólio serão usadas
para benefício público.
Algumas pessoas tentaram usar o grau de reinvestimento na
economia local para distinguir entre capitalistas paraestatais
(crony), como o Suharto, cuja família controlava um vasto império
econômico na Indonésia, e os crony capitalists, que põem os seus
lucros em contas bancárias no exterior, tal como Alemán e sua
família na Nicarágua.4
Um tipo final de grande corrupção ocorre mais diretamente
no campo político, e se expressa no fenômeno do clientelismo.
Este envolve uma troca pessoal de favores para a sustentação
política. Tais favores podem incluir votos ou contribuições
políticas, que ligam patrões a clientes. Os patrões são as elites
políticas que oferecem os serviços de seu poder político, e os
clientes são os indivíduos ou os grupos que trocam sua lealdade
e recursos por acesso político.
Enquanto as outras formas de grande corrupção distorcem
a economia, as distorções do clientelismo afetam mais direta-
mente a democracia, por distorcer a representação e o sistema
de decisões políticas. Ao invés de a representação estar baseada
na similaridade dos interesses e das ideologias, o clientelismo cria
uma ligação de troca entre governantes e governados. Tais liga-
ções são notavelmente menos estáveis do que outras formas de
representação, uma vez que os deslocamentos da fidelidade
dependem apenas da oferta mais elevada. Além disso, o clien-
telismo representa um sistema de exclusão, porque o acesso ao
poder é restrito às redes de patronagem, excluindo especialmente
os mais pobres. O clientelismo distorce o sistema de tomada de
decisões, que, na democracia, deve ser a vontade da maioria.
Desta forma, a maioria, submetida ao clientelismo, é construída
com base em um sistema de troca de favores, tornando possível
levar a cabo a vontade de uma minoria que controla o sistema
de patronagem para comprar sustentação política.

431
Um sistema de decisão distorcido inevitavelmente erode
a confiança no governo, que é um requisito fundamental para
o funcionamento da democracia. Os cidadãos não encontram
motivação para participar politicamente, para o civismo e para
os projetos coletivos, já que as decisões são feitas com base
em um sistema de patronagem. Isso porque o real exercício do
poder depende da patronagem e da exclusão.5

O BANCO MUNDIAL E A CORRUPÇÃO


NOS PAíSES EM DESENVOLVIMENTO
Como, então, devemos analisar a relação entre o Banco Mun-
dial e o problema da corrupção? Em primeiro lugar, devemos
pensar essa relação nos países em desenvolvimento. Em 1996, o
então presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, disse:

precisamos tratar o câncer da corrupção... Deixe-me enfatizar


que o Banco não tolerará a corrupção nos programas que nós finan-
ciamos; e nós estamos tomando medidas para assegurar que nossas
próprias atividades continuem a encontrar os padrões mais elevados
de probidade.

O tipo de corrupção em que o Banco teve mais sucesso em


suas ações foi a pequena corrupção, não porque é a mais impor-
tante, mas por razões de economia política. O Banco Mundial
combateu a pequena corrupção que flagela os escalões mais altos
da burocracia em muitos países em desenvolvimento, quase sem
confrontar as elites desses países, que podem até sofrer forte
pressão externa, mas seus privilégios diretos permaneceram
praticamente incólumes.
Na pequena corrupção que aflige as burocracias dos países
em desenvolvimento, há sempre muito trabalho a ser feito, mas
o dinheiro alocado pelo Banco teve resultados positivos. De
acordo com o site do Banco Mundial,

432
o Banco é o principal doador global de recursos para reforçar a
gerência do setor público. No ano fiscal de 2007, o Banco forneceu
US$3,8 bilhões para programas de governança e reformas legais – sen-
do US$3,4 bilhões para programas de governança e US$425 milhões
para reformas legislativas. Isto compreende 15,5% dos empréstimos
realizados pelo Banco.6

O Banco reconhece que a pequena corrupção pode distorcer


a eficácia e a eficiência de seus projetos. Antes da aprovação
dos projetos, ele revê o risco de corrupção em empréstimos
potenciais, sob responsabilidade de uma unidade específica, o
Departamento de Integridade Institucional (INT), com revisão
a posteriori de condução dos projetos. Em uma revisão de cinco
projetos indianos que datam de 1997, há evidências de fraudes,
corrupção e má condução dos projetos. Estes incluíam o
projeto de controle da malária, orçado em US$114 milhões;
o projeto de desenvolvimento do sistema de saúde de Orissa,
orçado em US$82 milhões; o projeto nacional de controle da Aids,
orçado em US$194 milhões; o projeto de controle da tuberculose,
de US$125 milhões; e US$54 milhões para o projeto de alimen-
tação e combate às drogas. Dentre as empresas implicadas no
projeto de controle da malária, destacamos a Syngenta, empresa
do ramo de agribusiness, a Basf e a maior fabricante de produtos
químicos do mundo, a Bayer, da Alemanha. As empresas foram
excluídas de projetos futuros do Banco, juntando-se a uma lista
de 340 empresas excluídas.
Entre as etapas dos projetos do Banco para prevenir a corrupção
está a implementação de mecanismos de responsabilidade. Em
março de 2007, o Banco lançou a Estratégia de Governança e
Anticorrupção, que dá uma grande ênfase na participação da
sociedade civil em seus projetos. Isso é consistente com uma estra-
tégia mais larga do Banco Mundial de reforçar a monitoração
do governo por parte da sociedade civil e a responsabilidade
social corporativa.

433
Com relação à grande corrupção, por outro lado, houve pouco
avanço. Um bom exemplo é a Indonésia, que pediu aproximada-
mente US$25 bilhões durante os 32 anos do regime da Nova Or-
dem do general Suharto. Além do conhecimento de que Suharto
era um ditador brutal, responsável pelo massacre de mais de 500
mil pessoas no Timor Leste, o Banco sabia que a corrupção era
uma prática corriqueira entre aqueles que estavam mais perto
de Suharto e de sua família. De acordo com o Memorando do
Banco Mundial sobre a Corrupção na Indonésia, submetido
como evidência no Comitê de Desenvolvimento Internacional
do Parlamento Britânico,

no agregado, nós estimamos que de 20 a 30% dos fundos orçamen-


tários para o desenvolvimento da Indonésia são desviados mediante
pagamentos informais a funcionários do governo e políticos, e não há
nenhuma base para reivindicar uma margem menor, porque para os
projetos do Banco, nossos controles têm poucos efeitos práticos nos
métodos geralmente utilizados.7

A razão para que a grande corrupção em lugares como a


Indonésia seja de difícil combate está relacionada à economia
política do próprio Banco. Com carreiras e promoções ligadas
aos resultados do desenvolvimento e dos empréstimos executados,
a equipe de funcionários do Banco tem uma boa razão para
fazer “vista grossa” em relação à corrupção, como no caso da
Indonésia. A Indonésia era um dos países em desenvolvimento
com o crescimento mais rápido, subindo ao status de país com
médio rendimento, em duas décadas.
A tentação para ignorar a corrupção em países com rápido
crescimento foi destacada em uma revisão realizada pelo Depar-
tamento de Integridade Institucional (INT), do Banco Mundial,
em setembro de 2007, que foi conduzido por um consultor inde-
pendente, Paul Volcker.8 A revisão indicou que o Banco tem uma
“tendência a diminuir a confrontação no caso de empréstimos a
países”, que é reforçada por uma “cultura do Banco que favorece

434
a procura de oportunidades de empréstimo”, um pouco em
resposta às necessidades dos países. O relatório igualmente men-
ciona um enfraquecimento do Departamento de Integridade
Institucional em consequência “de um clima de desconfiança,
de má comunicação e de segredos”, que revelam a tensa relação
entre o INT e o pessoal de operação.9

A CORRUPÇÃO NO BANCO MUNDIAL


O relatório de Volcker foi empreendido para confrontar uma
malaise interna que emergiu em consequência da breve gestão de
Paul Wolfewitz, que foi forçado a renunciar como presidente do
Banco Mundial pelo Departamento de Estado Americano, em
função do escândalo do aumento de salário de sua amiga. O
novo presidente do Banco, Robert Zoellick, desejava uma revisão
transparente e honesta dos mecanismos internos do Banco, e
Volcker era uma escolha ideal, baseada em seu trabalho como
consultor independente do escândalo do petróleo por alimento,
nas Nações Unidas.
Os ânimos que cercaram a posse de Wolfewitz continuaram
quentes, porque Zoellick não removeu Susan Folsom, que
Wolfewitz tinha apontado como chefe do INT, apesar de
rejeitar os candidatos alternativos selecionados por um comitê
interno e pela queixa da associação de funcionários, que tinha
13 mil membros. O relatório de Volcker identificou conflitos
de interesses potenciais para Folsom, que entrou para o Banco
como conselheira do presidente, mas se viu forçada a sair de sua
posição em janeiro de 2008.
Em parte, a batalha contra a corrupção no Banco Mundial
se torna mais complicada em função das imperfeições políticas
de sua estrutura de autoridade. Há muito tempo o processo de
nomeação dos presidentes é obscuro, com um acordo não
oficial de que o Banco Mundial será conduzido por um cida-
dão americano, e o Fundo Monetário Internacional, por um
cidadão europeu. Este é um legado do equilíbrio de forças no

435
momento dos acordos de Bretton Woods, e está sob ataque dos
países em desenvolvimento, especialmente China e índia, assim
como países de elevado rendimento mas não europeus, como o
Japão.
O imbróglio atual, associado com o caso Wolfewitz, Zoellick
e Folsom, revela uma complicação adicional, enraizada em uma
estrutura de autoridade caduca, que gerencia o Banco. Uma
parcela da confrontação que levou à saída de Wolfewitz deveu-se
ao antagonismo com os europeus, que se ressentiram de sua
atuação prévia como o arquiteto da Guerra do Iraque.

O BANCO MUNDIAL E A CORRUPÇÃO


NOS MERCADOS INTERNACIONAIS
Por uma variedade de razões, há pouca atenção em relação
às práticas de corrupção por parte de atores e empresas do mer-
cado internacional. De alguma forma, isso começou a mudar, e
o Banco começou a procurar evidências e propor ações contra
aqueles atores privados que lucram com a prática de corrupção.
Com o financiamento do governo norueguês, o Banco Mundial
está formulando um estudo dos paraísos fiscais, cujos baixos
impostos e regulamentos financeiros secretos permitem que os
fluxos de dinheiro ilícito entrem e saiam. Tais paraísos fiscais não
se restringem às ilhas do Caribe ou a outros lugares afastados; a
OECD identificou a ilha de Jersey, ligada ao Reino Unido, como
um paraíso fiscal. As instituições financeiras em tais jurisdições
estão conseguindo lucros significativos, que a Rede de Justiça
Fiscal estima em US$860 bilhões. A mesma organização estima
que a quantidade total de recursos que os governos perdem nos
paraísos fiscais gira em torno de US$11,5 trilhões, com perdas
anuais ao redor de US$255 bilhões.10
Em uma outra iniciativa, que principiou em setembro de
2007, o Banco, em parceria com as Nações Unidas, formulou o
programa de Recuperação de Recursos Roubados (StAR). Esta
iniciativa procura recuperar e canalizar os recursos roubados

436
por líderes corruptos. Tal esforço é de longa duração, com
relatórios sobre líderes como Sani Abacha, da Nigéria, que teve
retiradas diárias dos cofres do governo diretamente transferidas
para contas em bancos suíços, que acumularam aproximadamen-
te US$4,5 bilhões do dinheiro do povo nigeriano.
Um outro esforço está relacionado à iniciativa de transparên-
cia das indústrias extrativas. Este não é um projeto do Banco,
apesar de ele o financiar. Opera-se com um esforço para nomear
os governos corrompidos, em que as companhias “publicam o
que pagam” nos subornos pelo acesso das indústrias extrativas,
tais como mineração, petróleo e madeira. Consistente com ou-
tros esforços de responsabilidade social incorporada, a iniciativa
depende da vontade das companhias para atuar de forma mais
transparente e mais responsável.
O Banco merece o crédito por encampar estas iniciativas,
que lutam contra a corrupção dentro do setor privado. Este tipo
de corrupção é mais difícil de ser identificada pelo Banco do
que a corrupção nos governos dos países em desenvolvimento
ou a corrupção no próprio Banco. Lentamente, ele concluiu que
os exploradores da corrupção, incluindo a corrupção no Norte,
representam parte do problema da corrupção no Sul.

ESTRATéGIA DE DESENVOLVIMENTO DO
BANCO MUNDIAL E A CORRUPÇÃO
Esta seção final aponta alguns aspectos incômodos do relacio-
namento entre a corrupção e o desenvolvimento. Em particular,
não somos suficientemente honestos sobre tal relação. Pode haver
ligações entre tipos particulares de corrupção e de estratégias de
desenvolvimento.
Nos termos da pequena corrupção, houve uma atenção
inadequada ao relacionamento entre as circunstâncias colocadas
em empréstimos e o impacto provável em incentivos para o
pessoal do serviço público. Um exemplo está nos cortes exigidos
nos gastos com pessoal, incluindo frequentemente contenções de

437
despesas. Tais limites foram colocados em leis de responsabilidade
fiscal e incentivados por um Banco ansioso para disciplinar a
despesa pública. Em muitos casos, tais medidas foram eficazes,
baixando a conta e salários do setor público a níveis inferiores.
Uma consequência não intencionada, entretanto, pode ser o fato
de esta iniciativa espremer os salários da parte mais baixa da
burocracia, que são aqueles que estão em contato com o público,
na oferta de serviços. Se os professores e a polícia têm baixos
salários, terão mais dificuldades para resistir à tentação de extrair
subornos na oferta de serviços, fazendo com que os problemas
de pequena corrupção aumentem, em consequência do modelo
de desenvolvimento patrocinado pelo Banco. O ponto é que as
iniciativas do Banco para conter o crescimento da administração
pública podem aumentar a pequena corrupção.
Nos termos da grande corrupção, existem algumas questões
em paralelo. Parte da missão do Banco Mundial, na expansão
do crescimento e da riqueza, é abrir mercados livres onde eles
não existem. Tais políticas representam uma parte importante
para fixar divisas internacionais para países em desenvol-
vimento, contribuindo para o crescimento do PIB. Contudo,
alguns esforços para expandir mercados ocorrem em setores em
que os atores são difíceis de regular e em condições difíceis para
criar regras de mercado.
Alguns serviços públicos existem em setores com estas carac-
terísticas, e sua privatização força os processos de mercado em
operações não previamente destinadas à venda. Em alguns casos,
os governos dos países em desenvolvimento não têm nenhuma
capacidade para impedir atores privados de privatizar a corrupção,
e sua incapacidade era a razão original para nacionalizar alguns
serviços. O ponto mais importante é que as estratégias de desen-
volvimento perseguidas pelo Banco, enraizadas na exortação
inofensiva para disciplinar o Estado e expandir os mercados,
pode ter consequências não intencionadas na pequena corrupção
e na grande corrupção.

438
Um ponto final precisa ser abordado no que diz respeito
ao relacionamento entre corrupção e desenvolvimento. Dois
aspectos não foram discutidos. Em nações em desenvolvimento,
onde a fidelidade ao Estado é fraca e os mecanismos redistributivos
são inexistentes, a corrupção pode ser um meio para ligar
grupos díspares ao governo. Como são nações pouco coesas,
segundo Samuel Huntington, “a corrupção fornece benefícios
imediatos, específicos e concretos aos grupos que eram alienados
da sociedade. A corrupção pode assim ser funcional à manutenção
de um sistema político da mesma maneira que a reforma o é.”11
Outros relacionam com o processo de acumulação primitiva
de capital, porque o poder do Estado é usado para acumular o
capital necessário para as fases iniciais de crescimento econômico.
Mushtaq Khan aponta que

apesar das diferenças significativas nos detalhes de intervenção


política nos países em desenvolvimento com crescimento rápido, uma
característica comum é que a intervenção do Estado cria renda. As
intervenções do Estado eram fundamentais para que as novas classes
no capitalismo adquirissem capital e tecnologia.12

As conexões entre desenvolvimento capitalista e corrupção


merecem maior atenção. Temos que reconhecer que o mecanismo
funciona para melhorar o conflito social e acelerar a acumulação
primitiva, que trazem as consequências não intencionadas de
corrupção, e que nasce das estratégias de expansão do mercado
associadas ao Banco Mundial. Se encontramos corrupção, talvez
estejamos fazendo as perguntas erradas. Talvez a pergunta
correta seja: que tipo de desenvolvimento realmente queremos,
quando a corrupção está intimamente relacionada aos tipos de
desenvolvimento que levamos a cabo até agora?

439
NOTAS
1
MAURO. Why worry about corruption? TANZI; DAVVODI. Roads to
nowhere: how corruption in public investment hurts growth; MAURO. The
effects of corruption on growth, investment and government expenditure: a
cross-country analysis.
2
ADES; DI TELLA. The causes and consequences of corruption, p. 6-10.
3
Como apontou Stiglitz, capitalismo pessoal cria vulnerabilidades, mas a resposta
ortodoxa do capital causou a crise.
4
DE TRAY. Corruption and development: a impolitic view.
5
DOIG; THEOBALD. Corruption and democratization, p. 6.
6
Disponível em: <http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/NEWS/0,,con
tentMDK:20040922~menuPK:34480~ paePK:34370~theSitePK:4607,00.html>.
Acesso em: 10 fev. 2008.
7
Disponível em: <http://www.parliament.the-stationery-office.co.uk/pa/
cm200001/cmselect/cmintdev/39/39ap06.htm>.
8
A título de divulgação, deve-se anotar que Volcker esteve associado no começo
dos anos de 1990 com uma companhia de investimento dirigida pelo presidente
James Wolfesohn, antes de ser nomeado presidente do Banco Mundial. Apesar
deste conflito potencial, criticado por algumas ONGs, a revisão de Volcker era
completamente crítica.
9
GUHA; CALLAN. Volcker says World Bank lax on graft.
10
Disponível em: <http://www.taxjustice.net/cms/upload/pdf/Price_of_Offshore.pdf>.
11
HUNTINGTON. Political order in changing societies.
12
MUSHTAQ. Corruption and governance in early capitalism.

REFERÊNCIAS
ADES,Alberto; DI TELLA, Rafael.The causes and consequences of corruption.
IDS Bulletin, 2, p. 6-10, 1997.
DE TRAY, Dennis. Corruption and development: a impolitic view. 1818
Society Fall Luncheon, 2006.
DOIG, Alan; THEOBALD, Robin (Ed.). Corruption and democratization.
London: Frank Cass, 2000.

440
GUHA, Krishna; CALLAN, Eoin. Volcker says World Bank lax on graft.
Financial Times, 13 set. 2007.
HUNTINGTON, Samuel P. Political order in changing societies. New
Haven: Yale University Press, 1968.
MAURO, Paolo. The effects of corruption on growth, investment and
government expenditure: a cross-country analysis. In: ELLIOT, Kimberly
Ann. Corruption and the global economy. Washington D.C.: Institute for
International Economics, 1995.
MAURO, Paolo.Why worry about corruption? Economic Issues, Washington
D.C., International Monetary Fund, v. 6, 1997.
MUSHTAQ, Khan. Corruption and governance in early capitalism. In:
PINCUS, Jonathan; WINTERS, Jeffrey Alan (Ed.). Reinventing the World
Bank. New York: Cornell University Press, 2002.
TANZI, Vito; DAVVODI, Hamid. Roads to nowhere: how corruption
in public investment hurts growth. Economic Issues, Washington D.C.,
International Monetary Fund, v. 12, 1998.

441
veníCio a. de liMa

mídia

A história da implantação da imprensa e da profissionalização


do jornalismo no Brasil, apesar de tardia,1 certamente absorve
o mesmo éthos que surge com a transformação do jornalismo
em profissão, no final do século 19, tanto na Inglaterra como
nos Estados Unidos. Esse éthos profissional inspirado nos ideais
iluministas, que considerava os jornalistas com a “responsabi-
lidade moral de erradicar o mal e mostrar as enfermidades
sociais”, acabou por se consolidar e com ele também o chamado
jornalismo investigativo, que tem como norma desvelar e atacar
a corrupção nos governos e os abusos do poder corporativo.
Essa forma de jornalismo ganha mais força e prestígio, sobre-
tudo, depois da mitificação do papel desempenhado por dois
jornalistas do The Washington Post no chamado escândalo de
Watergate que levou à renúncia o presidente Richard Nixon, na
década de 1970.2
A autoimagem dominante entre os jornalistas – no Brasil e
nos demais países de democracia liberal – é a de profissionais que
se consideram mandatários da missão de fiscalizar os governos
e denunciar publicamente seus desvios. A revelação de segredos
ocultos do poder é vista como uma forma de exercer sua missão
de guardiões do interesse público e guarda semelhança com o
ideal da res publica, em que todas as ações de governo, nas de-
mocracias, deveriam ser transparentes e públicas. A publicação
de denúncias de corrupção tornou-se uma prática de fiscalização
dos governos que reforça e realimenta a imagem que os jorna-
listas e empresários do setor têm de si mesmos e legitima suas
ações e interesses.
JORNALISMO INVESTIGATIVO
E ESCâNDALOS POLíTICOS MIDIÁTICOS (EPM)
é no contexto deste jornalismo investigativo que enfatiza
as denúncias de corrupção, combinado com o crescimento da
mídia de massa e a disseminação das tecnologias de informação e
comunicação, que surgem os chamados “escândalos midiáticos”.
Além disso, as transformações mais recentes na natureza do
processo político, cada vez mais dependente da mídia, é que
fazem surgir os escândalos políticos midiáticos (EPM).3
Um EPM envolve indivíduos ou ações que estão situados
dentro de um campo político e que têm impacto nas relações
dentro desse campo. O campo político é o campo da ação e
interação que está ligado à aquisição e ao exercício do poder
político através do uso, dentre outros, do poder simbólico. O
exercício do poder político depende do uso do poder simbólico
para cultivar e sustentar a crença na legitimidade.
O poder simbólico, por sua vez, refere-se à capacidade de
intervir no curso dos acontecimentos, de influenciar as ações e
crenças de outros e também de criar acontecimentos, através da
produção e transmissão de formas simbólicas. Para exercer esse
poder, é necessária a utilização de vários tipos de recursos na
busca por visibilidade, entre eles, a mídia, que constrói e trans-
mite capital simbólico por meio do jornalismo, da propaganda
política etc. A reputação, por exemplo, é um aspecto do capital
simbólico, atributo de um indivíduo ou de uma instituição.
O que está em jogo, portanto, num EPM é o capital simbólico
do político, sobretudo, sua reputação. Como a mídia se tornou
a arena decisiva onde as relações do campo político se realizam
e as reputações são criadas, sustentadas e, ocasionalmente,
destruídas, a apresentação e a repercussão de um EPM passa a
ser parte constitutiva do próprio EPM.
O jornalista, por exemplo, segundo Pierre Bourdieu,

443
é detentor de um poder sobre os instrumentos de comunicação de
massa que lhe dá um poder sobre toda a espécie de capital simbólico
– o poder de “fazer ou desfazer reputações”, de que o caso Watergate
deu uma medida (sic). 4

Por outro lado, o EPM é um fenômeno que tem a ver com a


própria ideia do que constitui um “evento público”. Antes do
desenvolvimento dos meios de comunicação modernos – jornais,
revistas, cinema, rádio, televisão e internet –, um “evento público”
implicava compartilhamento de um lugar (espaço) comum;
copresença; visão, audição, aparência visual, palavra falada;
diálogo.
Com o advento da instituição que hoje chamamos de mídia,
um evento para ser “público” não está limitado à partilha de
um lugar comum. O “público” pode estar distante no tempo
e no espaço. Dessa forma, a mídia não só suplementa a forma
tradicional de constituição do “público”, mas também a estende,
transforma e substitui. O “público” agora é midiatizado. Esta
é uma das diferenças entre um “escândalo localizado” e um
“escândalo midiático”.
EPM, portanto, é o evento que implica a revelação através da
mídia de atividades previamente ocultadas e moralmente deson-
rosas (corrupção, por exemplo), desencadeando uma sequência de
ocorrências posteriores. A sua apresentação e o seu comentário
através/na mídia não são características secundárias ou aciden-
tais. Ao contrário, elas são partes constitutivas deles. O controle
e a dinâmica do processo se deslocam dos atores inicialmente
envolvidos e se estendem para os jornalistas e para a mídia. Além
disso, prevalece na cobertura jornalística uma lógica parecida
com aquela que preside a cobertura das disputas eleitorais e que
já foi comparada às corridas de cavalo: o que importa é saber
qual jornalista (e/ou empresa de mídia) está à frente do outro,
qual consegue “esticar um pouco mais a corda” e avançar com
novas denúncias.

444
CRISES POLíTICAS, EPM
E CONTRADIÇõES DA MíDIA
Muitas das mais importantes crises políticas do mundo con-
temporâneo, desde a metade do século passado, têm como origem
um EPM. Isso é verdade no Japão, na Itália, na Inglaterra, nos
Estados Unidos, na Argentina e também no Brasil. Nosso exemplo
mais significativo, embora pouco estudado e lembrado como tal,
talvez seja o EPM que levou Getúlio Vargas ao suicídio em 1954.
E o mais conhecido, aquele que culminou com a renúncia do
presidente Fernando Collor de Melo, em 1992.
A crise política desencadeada pelo flagrante de corrupção
nos Correios divulgado pela mídia (Veja e Jornal Nacional), em
maio de 2005, certamente se enquadra dentro das características
constituidoras de um EPM. Ela não teria chegado ao conheci-
mento público nem provocado as consequências que teve não
fosse construída na e pela mídia.
Curiosamente, uma das mais persistentes contradições do
jornalismo político brasileiro é a ausência da reflexão crítica
sobre seu próprio papel e o da mídia como atores fundamentais
nas crises políticas e a resistência em assumir seu poder de fazer
ou desfazer reputações ou de conceder visibilidade.
Os principais analistas da grande mídia em suas colunas,
comentários e livros insistem, apesar de todas as evidências,
em se considerar como expressão da “opinião pública” – e não
como um de seus formadores. No entanto, com raríssimas e
esporádicas exceções, permanece a ausência da reflexão crítica.
Essa não é uma contradição nova. Por exemplo: um dos temas
mais polêmicos do processo Constituinte de 1987-1988 foi o das
comunicações. Tanto na subcomissão quanto na comissão que
trataram do assunto não se chegou sequer a um relatório final.
No entanto, como observou à época o jornalista e professor
Hélio Doyle, essa é uma “polêmica que não sai em jornal nem
na TV”.5

445
No auge da crise política em 2005, as notas oficiais do PT e
as declarações da professora Marilena Chaui de que “a crise é
(era) um produto da mídia”6 não provocaram um debate sobre
o papel da mídia na própria mídia. Ao contrário. Elas foram
desqualificadas e tratadas apenas como uma tentativa militante
de desviar a atenção dos atos de corrupção.
As seguidas manifestações de políticos “suspeitos” sobre os
pressupostos e o comportamento, muitas vezes ética e profissio-
nalmente questionáveis, de jornalistas e da mídia são desqualifi-
cadas. E quando, eventualmente, alguma análise produzida fora
da grande mídia aponta suas contradições e merece referência
de algum desses colunistas, é acusada, sem mais, de se basear em
delirantes teorias conspiratórias.

CORRUPÇÃO NA MíDIA
Outro aspecto interessante da relação da mídia com a corrupção
é a corrupção na própria mídia. O primeiro ranking mundial sobre
o tema foi divulgado em setembro de 2003, a partir de pesquisa
realizada pelos professores estadunidenses Dean Kruckeberg
(University of Northern Iowa) e Katerina Tsetsura (Purdue Uni-
versity). Foram avaliados oito quesitos direta e indiretamente
ligados a um ambiente de corrupção na mídia, uma vez que
seria impossível contabilizar diretamente os casos de venda de
matérias jornalísticas. O levantamento aponta os países onde a
venda de matérias em jornais e revistas tem maior possibilidade
de ocorrer. No topo da lista estão China, Arábia Saudita, Vietnã,
Bangladesh e Paquistão. O Brasil aparece no 47º lugar de um
total de 66 países avaliados.7

NOTAS
1
Cf. RIBEIRO. Imprensa e espaço público – A institucionalização do jornalismo
no Brasil 1808-1964.
2
O livro sobre o Watergate escrito pelos jornalistas Carl Bernstein e Bob
Woodward, em 1974, foi traduzido para o português – Todos os homens

446
do presidente – e o filme produzido em 1976, com enredo adaptado do
livro, dirigido por Alan J. Pakula e estrelado por Robert Redford e Dustin
Hoffman, transformou os dois repórteres em heróis.
3
Utilizo aqui, como referências básicas, ideias desenvolvidas por J. B. Thomp-
son em O escândalo político – Poder e visibilidade na era da mídia, e por
Pierre Bourdieu em O poder simbólico.
4
BOURDIEU. O poder simbólico.
5
DOYLE. Comunicação: a polêmica que não sai em jornal nem em TV.
6
MELO. “Mídia é pior que a Inquisição”, diz Marilena Chaui.
7
Bernardo Kucinski, no seu Jornalismo na era virtual – Ensaios sobre o co-
lapso da razão ética, faz um precioso estudo sobre jornalismo e corrupção
no Brasil.

REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. São Paulo: DIFEL/Bertrand Brasil,
1989.
BERNSTEIN, Carl; WOODWARD, Bob. Todos os homens do presidente.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
DOYLE, Hélio. Comunicação: a polêmica que não sai em jornal nem em
TV. Caderno CEAC/unB, ano 1, n. 2, p. 151-157.
KUCINSKI, Bernardo. Jornalismo na era virtual – Ensaios sobre o colap-
so da razão ética. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo/Editora
UNESP, 2005.
MELO, Ricardo. “Mídia é pior que a Inquisição”, diz Marilena Chaui.
Folha Online de 5 de novembro de 2005. Disponível em: <www1.folha.
uol.com.br/folha/brasil/wlt96u73716.shtml>.
RIBEIRO, Lavina M. Imprensa e espaço público – A institucionalização
do jornalismo no Brasil 1808-1964. E-Papers, 2004.
THOMPSON, J. B. O escândalo político – Poder e visibilidade na era da
mídia. Petrópolis: Vozes, 2002.

447
rubeM barboza FilHo

JudiCiário

Incômoda Fênix, a corrupção voltou a ser um tema central


da academia, das organizações internacionais como a ONU, a
OCDE, o Banco Mundial, o FMI, e das sociedades atormenta-
das pela sucessão e banalização de escândalos. De acordo com
a reflexão contemporânea, o fenômeno mundial da corrupção
ofende os direitos humanos, sacrifica a soberania popular, impede
a justiça social, condena a racionalidade econômica e corrói as
possibilidades de formas democráticas de vida.1
A preocupação com a corrupção renasceu nos países mais
avançados e nos organismos econômicos internacionais, expres-
sando o ponto de vista de agentes econômicos poderosos e
envolvidos no processo de “globalização” econômica. Nesse
momento, as hipóteses mais imediatas para a explicação do
fenômeno imputavam a tradições e culturas específicas uma
enorme incapacidade para participar adequadamente do jogo
do mercado e da economia, com resultados desastrosos para
a generalização e universalização da racionalidade econômica
embutida no processo de globalização. Estudos subsequentes, no
entanto, cuidaram de complexificar este panorama, associando o
aumento da corrupção ao modo específico de avanço dos movi-
mentos subsumidos na globalização, implicando a ruptura de
tradições e culturas nacionais ou regionais, o rearranjo interno
de forças políticas, a derrocada de instituições, o desemprego,
o aumento da injustiça e a criação de problemas ou campos
de ações não previstos pelos direitos nacionais ou pelo direito
internacional.2 Como resultado, o comportamento predatório
tornou-se alarmante e generalizado – caso das máfias russas –,
com repercussões em todas as dimensões da vida social.
O diagnóstico de que o próprio processo de globalização,
conduzido na perspectiva meramente econômica, criava um
ambiente propício à corrupção passou a orientar a produção de
propostas anticorrupção, organizadas em torno de alguns eixos:
a diminuição da capacidade de interferência direta do Estado e de
sua burocracia no mercado, diminuindo as chances de corrupção
pela privatização de empresas e serviços e pela desregulamenta-
ção de atividades econômicas; a diminuição das possibilidades
de manipulação dos poderes administrativos monopolizados
por burocratas e servidores, através de uma reorganização do
aparato institucional e burocrático por mecanismos de checks
and balances, de accountability, de controladoria interna, e por
códigos de ética de caráter mais universalista e outros de natureza
corporativa; a organização da sociedade civil e a manutenção
da liberdade de imprensa, consideradas aliadas decisivas
na diminuição ou no controle da corrupção. Este elenco de
orientações tem como objetivo a homogeneização mundial de
procedimentos que preservem a racionalidade econômica e
estimulem formas democráticas de governo, fechando o cerco
sobre as possibilidades de corrupção e reduzindo a resistência
de culturas supostamente avessas à democracia e à economia
de mercado.
Tanto no esforço reflexivo acadêmico quanto na imaginação
de propostas anticorrupção, o Judiciário joga um papel decisivo,
considerado instituição chave para deter o avanço da corrupção.
O documento já citado da Transparência Internacional, elaborado
por acadêmicos e formuladores de políticas, estabelece uma
série de recomendações para armar o Judiciário com os poderes
e atributos necessários a este combate. Estas sugestões podem ser
agrupadas em três subconjuntos, dirigidos para sustentar, respec-
tivamente, a autonomia, a integridade e a eficácia dos Judiciários
em todo o mundo. A autonomia seria assegurada através de uma

449
série de medidas que garantiriam a independência dos juízes
– e promotores – em relação às outras instituições, aos agentes
políticos e econômicos, ou seja, às pressões do mundo político
e do mercado, para a tomada de decisões. A integridade seria
o resultado de um compromisso real dos juízes com o Direito,
ou do contrário o Judiciário poderia tornar-se uma poderosa e
autônoma instituição corrompida e corruptora. A eficácia seria
garantida pela desburocratização dos processos, pela rapidez na
decisão, pela transparência do funcionamento geral do Judiciário,
pela abertura e porosidade às demandas da sociedade, resultan-
do na disseminação de uma cultura de respeito à lei. A suposição
esperançosa é a de que a rede de Judiciários organizada por
estes três princípios não apenas reduziria localmente os níveis
crescentes de corrupção, como viabilizaria a reconstituição de
um direito internacional mais atento a uma realidade global em
modificação permanente. é neste sentido que acadêmicos e orga-
nizações internacionais estimulam a disseminação de reformas
dos Judiciários nacionais.
Sabemos que a ideia de um Judiciário independente pertence
à experiência das sociedades pós-tradicionais do Ocidente, para
as quais o direito substitui o costume ou um princípio teológico
como base de organização da vida em comum.3 Ainda que, nesta
“tradição”, os fundamentos do Direito, a natureza da lei e o seu
escopo constituam motivos de permanente debate, a autonomia
do Judiciário parece gozar de um consenso especial em todas as
tendências da Filosofia e da Sociologia do Direito e na organização
jurídica dos países ocidentais. Contudo, é o próprio movimento
econômico da globalização que corrói, mesmo no Ocidente, o
velho modelo de tripartição de poderes que justificava a autonomia
do Judiciário. As políticas voltadas para o mercado enfraque-
ceram a capacidade das instituições políticas para a resolução
de problemas e dilemas sociais, gerando o recente processo de
“judicialização da política”, sobrecarregando o Judiciário com
a responsabilidade de resolver pela lei – produzindo a lei em

450
muitos casos – estas demandas e conflitos sociais.4 Por outro
lado, o longo processo de racionalização do Direito ocidental,
juntamente com o que Rawls chama de o “fato do pluralismo”
– acentuado na globalização –, fez reaparecer com dramaticidade
a indagação do por que obedecer à lei, questão presente em todas
as disputas do Direito ocidental.5
A reforma dos Judiciários na direção de autonomia, integri-
dade e eficácia pode ser um poderoso fator de universalização do
processo de “racionalização” que Weber via como característico
do Ocidente.6 Numa perspectiva otimista, estaríamos assistindo
ao fascinante e enriquecedor processo de refundação dos Judi-
ciários pelo concurso de outras premissas sobre o Direito e seu
papel na sociedade. O mais provável é, no entanto, um cenário
menos róseo, ainda mais pelo fato de que a autonomia ocidental
do Judiciário, no Ocidente, é congruente com um determinado
tipo de Direito reflexivo, racional e formal, o que torna tudo
mais complexo e difícil. Ainda que convenções internacionais
representem um estímulo à ocidentalização do Direito e do
Judiciário, é pouco provável que tradições antigas, orgulhosas
de sua integridade – e belicosas em alguns casos – entreguem
todo o seu patrimônio jurídico à experiência ocidental. As as-
sociações e adaptações podem incidir sobre a própria clareza
e integridade dos sistemas jurídicos, criando e reproduzindo
zonas de incertezas inquietantes. Esta incerteza, associada a
cosmovisões diferenciadas, apenas radicalizará para culturas não
ocidentais ou ocidentalizadas a pergunta que o Ocidente se faz:
por que obedecer à lei?
Por outro lado, a generalização de reformas do Judiciário,
com tudo o que isso implica, visa mundializar todo um estoque de
experiência de controle do capital e de sua voracidade. Ora, é
precisamente para escapar desta experiência que o capital busca
sua mobilidade radical, encontrando novos espaços para uma
acumulação indiferente às catástrofes que ele próprio produz.
Desse modo, é algo que nasce no Ocidente – a globalização

451
econômica – que sabota e resiste à reedição e universalização
de formas de controle trazidas pela experiência do Judiciário
ocidental. Ponto que puxa um outro. A introdução de Judiciários
independentes significa, praticamente, uma grande alteração das
relações internas de poder em países com ambições de global
players. Dado o caráter avassalador do movimento eminen-
temente econômico da globalização, a questão é por que estes
dirigentes nacionais abdicariam da capacidade que desfrutam
para mobilizar autoritariamente seus recursos econômicos numa
competição que parece decididamente estratégica, como no caso
da China. As grandes diferenças culturais, neste caso, são manipu-
ladas, tanto pelo capital internacional como por elites nacionais
e regionais interessadas em cálculos puramente estratégicos,
reduzindo o efeito de propostas de universalização de modos de
controle do capital e de suas consequências perversas, entre elas a
corrupção, o que leva a uma outra indagação. No século 19, parte
da intelligentzia europeia temia o poderio russo como portador
da barbárie contra os avanços da civilização ocidental. Sem o
mesmo pathos, a pergunta pode ser refeita: diante do poderio
econômico, e das perspectivas futuras da China, da índia e da
Ásia em geral, não é possível imaginar o processo de globalização
como algo mais complexo do que mera ocidentalização?
Desse modo, a ideia da reforma do Judiciário, como antídoto
à corrupção, enfrenta problemas provenientes de culturas
diferentes, do cálculo estratégico de países com ambições
variadas e da própria maneira de globalização da economia.
Neste cenário, o Brasil pode jogar um papel protagônico e
exemplar. Independente das reformas que nosso Judiciário
necessita, é dele hoje a responsabilidade de impedir – ou criar
obstáculos para – algo mais decisivo do que um ilícito penal: a
corrupção de um regime democrático. O julgamento do escân-
dalo do “mensalão” mostrará se o nosso Judiciário, e se o nosso
Direito, é capaz de realizar um duplo movimento anticorrupção:
desafiar a mediocridade corrupta e leniente da cena política e

452
mostrar que o país ainda tem reservas reflexivas e éticas para
sustentar e aprofundar o regime democrático. Este julgamento
decidirá, simultaneamente, a natureza do nosso Judiciário e
o nosso destino nacional nas próximas décadas. E nos fará
grandes ou pequenos no mundo.

NOTAS
1
Ver documento da Transparência Internacional com o título Global Corrup-
tion Report. Corruption in Judicial Systems.
2
Ver, por exemplo, Anticorruption in transition. A contribution to the Policy
Debate, produzido pelo Banco Mundial.
3
HABERMAS. Democracia e Direito. Entre facticidade e validade.
4
WERNECK VIANNA et al. A judicialização da política e das relações sociais
no Brasil.
5
RAWLS. O liberalismo político. A ideia do overlapping consensus é uma
tentativa de responder à pergunta do por que obedecer à lei ou a uma con-
cepção política baseada na justiça.
6
WEBER. Ensaios de sociologia.

REFERÊNCIAS
HABERMAS, Jürgen. Democracia e Direito. Entre facticidade e validade.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Editora Ática, 2000.
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974.
WERNECK VIANNA, Luiz et al. A judicialização da política e das relações
sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan/IUPERJ-UCAM, 1999.

453
Maria tereza SadeK

miniStério públiCo

Nos últimos tempos, inúmeros fatos relacionados à corrupção


tornaram-se públicos. Subornos, prevaricações, desmandos
administrativos, caixa dois, tráfico de influência, lavagem de
dinheiro, desvios de recursos públicos e outros escândalos
pautaram manchetes e matérias de jornais, noticiários televi-
sivos e de rádio. O tema passou a ocupar lugar de destaque na
imprensa, nos debates e também a figurar entre as principais
preocupações dos cidadãos. Parece pouco producente discutir
agora se houve um aumento da corrupção ou se, ao contrário,
verificou-se um maior número de denúncias. Qualquer que seja
a hipótese, uma instituição vem se destacando, marcando sua
presença em todas as investigações e denúncias: o Ministério
Público. Entre as peculiaridades brasileiras, essa instituição talvez
seja a mais singular.
De acordo com a Constituição de 1988, em seu artigo 127,
cabe ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Suas atribuições são amplas, abarcando desde sua função mais
tradicional, a ação penal pública, até a defesa dos mais variados
direitos sociais, tanto os difusos quanto os coletivos ou os indivi-
duais homogêneos, tais como a proteção do patrimônio público
e social, do meio ambiente etc. A atuação contra práticas de
corrupção inclui-se, pois, entre suas obrigações constitucionais.
A correta compreensão do rol de prerrogativas do Ministério
Público relacionadas à defesa de direitos deve atentar para o fato
de que a Constituição consagrou uma extensa lista de direitos.
Foram ampliados significativamente os direitos constitutivos
da cidadania, não apenas os direitos de natureza individual,
mas também os de natureza supraindividual. Cabe, assim,
ao Ministério Público salvaguardar os interesses e os direitos
constitucionalmente previstos, protegendo-os de abusos do po-
der, tanto por parte do Estado como por parte de particulares.
Ademais, desde a nova Constituição, o Ministério Público
tornou-se uma instituição independente, com garantias de
autonomia tanto administrativa como funcional. Seus princí-
pios de organização coincidem com os previstos para o Poder
Judiciário. O Ministério Público, tal como o Poder Judiciário,
possui dois ramos: o da União e o dos Estados.1
O Ministério Público dispõe de extraordinário poder de inves-
tigação e de instrumentos jurídicos bastante eficazes – a Ação
Civil Pública (lei 7.347, de 1985) e o inquérito civil – para a
“proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e
de outros interesses difusos e coletivos”.
Em poucas palavras, a Constituição e a legislação infracons-
titucional propiciaram que o Ministério Público ocupasse um
lugar de destaque no controle das demais instituições públicas
e na defesa da cidadania. é um órgão encarregado de proteger
direitos coletivos e de investigar infrações às leis. Sua confi-
guração é ímpar entre seus pares, quer na América Latina, quer em
comparação com os ministérios públicos de países com longa
experiência democrática. A instituição brasileira combina as
atribuições de promotoria pública − com capacidade de agir
na área penal, possuindo o monopólio da ação penal − com
as atribuições de investigar, denunciar e atuar em questões que
envolvam os direitos constitucionais.2
Acrescente-se à amplitude das atribuições constitucionais e
à força dos instrumentos jurídicos o fato de que a instituição e
seus integrantes possuem, em grande medida, o controle da agenda.
Isto é, ao contrário do Poder Judiciário que é uma instituição
passiva, que depende de provocação para atuar, o Ministério

455
Público tem a faculdade de selecionar os casos, possuindo maior
margem de escolha e discricionariedade.
Os integrantes do Ministério Público desfrutam de garantias
de independência funcional. Isso significa dizer que há espaço
para atuações que explorem as virtualidades contidas na
legislação (“vontade política”). Assim, ainda que a legislação
possibilite iniciativas voltadas para a defesa dos direitos da
cidadania, para o combate à corrupção, para o controle de
órgãos e agentes públicos etc., a efetividade destas possibilidades
depende estreitamente do empenho de seus integrantes. O
empenho, por sua vez, é condicionado, em boa medida, pelas
características individuais e também pelo grau de independência
real alcançado pela instituição em face dos poderes políticos,
tanto públicos quanto privados.3
Os efeitos dessas disposições legais na realidade econômica,
social e política do país foram aparecendo desde os primeiros
anos após a redemocratização. Integrantes do Ministério Público
passaram a estar por toda parte, investigando, denunciando,
propondo termos de ajustamento de conduta.
Ao mesmo tempo em que cresceu a presença pública da
instituição e de seus integrantes, cresceram as reações, tanto de
aplauso quanto de reprovação. Aplausos, sobretudo por parte
da oposição e de entidades da sociedade civil, e reações, princi-
palmente, por parte do governo, das maiorias parlamentares e
de setores da magistratura e da polícia.4
Independentemente da avaliação que se faça, é inegável que,
como resultado da atuação tanto do Ministério Público Federal
como do Ministério Público dos estados, políticos, autoridades,
funcionários públicos de diferentes escalões passaram a temer
o banco dos réus.
Gastos públicos; dispêndios de natureza financeira com
recursos públicos; desmandos administrativos; improbidade
administrativa por parte de qualquer órgão público, governa-
mental ou estatal; enfim, práticas que ofendam o princípio da
moralidade administrativa, o princípio da impessoalidade e o

456
princípio da legalidade estão na mira do Ministério Público. Em
consequência, não há, em tese, poderes, instituições e agentes
imunes ao controle.
Esse controle vem sendo aperfeiçoado, em boa medida, devido
à especialização, verificada em praticamente todos os Minis-
térios Públicos estaduais e também no Ministério Público Federal,
com a criação de promotorias ou grupos de apoio em áreas como
o meio ambiente, infância e juventude, crime organizado, crime
de colarinho branco etc. A cooperação entre instituições, com a
criação de “força tarefa”, também tem favorecido uma atuação
mais eficiente.
As consequências do desempenho do Ministério Público no
jogo político e na administração pública tornam-se cada vez
mais visíveis tanto para a classe política como para a sociedade.
é incontestável a presença de um ator poderoso, com capacidade
de interferir naquilo que se faz; no que se deixa de fazer; na
maneira como se faz; e com que recurso se faz. Nessa medida, o
administrador público, o servidor público, o legislador e também
setores privados têm sido constrangidos, obrigados a levar em
conta a probabilidade de que um integrante do Ministério Público
venha a exercer a vigilância.
Com efeito, nos últimos anos têm aumentado significativamente
iniciativas que procuram defender a probidade administrativa e a
moralidade pública e, em consequência, a série de práticas gene-
ricamente chamadas de corrupção. Esses desvios têm recebido
atenção prioritária por parte de procuradores e promotores,
tanto no MP Federal quanto nos MP estaduais. As atuações de
procuradores da República na apuração de atos de improbidade
e na defesa do patrimônio público têm alcançado repercussão po-
lítica e judicial. Bastaria lembrar os casos Sivam, Pasta Rosa,
Marka, FonteCidam, Sudam, sanguessugas, mensalão, Daslu,
para citar apenas os mais famosos. Da mesma forma, no âmbito
dos MP estaduais são inúmeras as investigações sobre improbidade
administrativa e os processos iniciados, especialmente contra
prefeitos, vereadores, secretarias e órgãos municipais.5

457
As questões levadas para o Judiciário obedecem a exigências:
em primeiro lugar é instaurado um procedimento administra-
tivo, com o objetivo de apurar as denúncias sobre as supostas
irregularidades; em seguida, caso seja necessário complementar
as provas e indícios constantes da denúncia, é instaurado um
inquérito civil; por fim, caso as suspeitas sejam confirmadas,
entra-se com uma ação no Poder Judiciário. Quando há conde-
nação, o objetivo principal é a reparação de eventuais prejuízos
aos cofres públicos e a responsabilização criminal do acusado
pela prática delituosa.
Mesmo que muitas das denúncias não sejam acatadas pelo
Poder Judiciário e muitas das ações protocoladas não terminem
em condenação,6 não se pode concluir que o resultado seja nulo
ou quase nulo. Há que se considerar vários aspectos decorrentes
da presença ativa do Ministério Público: desde o temor da inves-
tigação até estragos na imagem do agente sob suspeita.
Ressalte-se, ainda, que a atuação dos integrantes do Minis-
tério Público não se esgota no gabinete. Muitos promotores e
procuradores participam de atividades externas. Aí se incluem
uma série de projetos, tais como elaboração e divulgação de
cartilhas; participação em debates com a população; organiza-
ção de eventos de esclarecimento sobre temas relacionados aos
direitos constitucionais etc. Na extensa maioria dos programas
externos ao gabinete, o objetivo principal é divulgar a institui-
ção, destacando-se as principais áreas de atuação do Ministério
Público. Entre essas áreas, o combate à corrupção e ao desvio
de verbas públicas aparece como prioridade.
Além dos programas “pedagógicos” e de divulgação, há um
aspecto extremamente significativo para se apreciar o desempe-
nho da instituição e sua presença no espaço público: a busca de
soluções que prescindam do Poder Judiciário. Com efeito, tem-se
constatado que promotores e procuradores, com frequência cada
vez maior, têm recorrido a soluções a partir de acordos entre as
partes em litígio, procedimentos administrativos, requisição de

458
providências aos órgãos públicos e privados e demais instru-
mentos extrajudiciais.
Em resumo, quando é utilizada a via judicial − e nos casos
gritantes de corrupção este é o procedimento −, cabe aos integran-
tes do Ministério Público iniciar o processo, fazer investigações
ou abrir inquéritos, mas quem recebe e decide pela punição ou
pela absolvição é o Poder Judiciário. Contudo, havendo ou não
punição judicial, uma conclusão se impõe: já não se pode mais
afirmar que certos agentes públicos e grupos privilegiados estão
inteiramente blindados. O Ministério Público tem contribuído
para forçar rachaduras.

NOTAS
1
O Ministério Público da União ramifica-se em Ministério Público Federal,
Ministério Público Militar, Ministério Público do Trabalho e Ministério
Público do Distrito Federal e dos Territórios. A especificidade de cada um
está relacionada ao ramo do Poder Judiciário perante o qual atua – Justiça
Federal, Justiça Militar Federal, Justiça do Trabalho e Justiça do Distrito
Federal e dos Territórios – e é estabelecida em função da matéria ou das
partes em litígio. Contudo, perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ),
organismo encarregado de uniformizar a interpretação da lei infraconstitucio-
nal, e perante o Supremo Tribunal Federal (STF), órgão de cúpula do Poder
Judiciário, responsável por proferir a palavra final sobre a interpretação da
Constituição, só podem oficiar os integrantes do Ministério Público Federal.
De forma resumida pode-se afirmar que a distinção entre os diferentes ra-
mos do Ministério Público diz respeito à competência de atuação e não aos
instrumentos disponíveis, às garantias ou aos princípios de atuação de cada
um deles. Os Ministérios Públicos estaduais, por sua vez, têm uma estrutura
semelhante à dos tribunais de justiça estaduais.
2
Nos outros países da América Latina, parte das funções cíveis exercidas
pelo Ministério Público brasileiro é da responsabilidade de ouvidorias ou
defensor de Direitos Humanos. Em nenhum caso, contudo, com a mesma força
institucional.
3
O grau de independência real da instituição em relação aos poderes políticos
e privados resulta da confluência de um conjunto de variáveis difíceis de
mensurar. A existência ou não de vínculos formais com o Executivo e/ou
Legislativo não esgota o problema. Certamente, possíveis influências políticas
extrapolam essas ligações. Pesam a favor da autonomia o fato de estar nas
mãos da instituição o recrutamento de seus membros, a independência fun-
cional e as garantias constitucionais, como a vitaliciedade, a inamovibilidade
e a irredutibilidade de vencimentos. Por outro lado, sua capacidade efetiva
de cumprir suas atribuições é limitada por fatores como a dependência em
relação a outras instituições, particularmente o Judiciário e a polícia, uma

459
vez que essas organizações podem tanto facilitar como dificultar, ou mesmo
impedir, o andamento de uma investigação ou de uma ação; além, é claro,
da vulnerabilidade a pressões advindas de forças políticas.
4
Duas medidas ilustram as reações: a tentativa frustrada de aprovar a “lei
da mordaça”; e o processo ainda em exame pelo STF que questiona a cons-
titucionalidade da função investigativa do MP. Neste último caso, está em
questão a capacidade da instituição de iniciar investigações sobre alegações
de crimes, sem o envolvimento da polícia. Segundo os defensores da restrição,
promotores e procuradores frequentemente usam esses poderes de modo
abusivo e arbitrário. Argumenta-se que além de abandonarem os parâmetros
legais, fazem política partidária e defendem interesses corporativos.
5
O controle da administração pública tem se transformado em uma atividade
praticamente geral, não distinguindo as diferentes instituições estaduais.
Mesmo em estados menores e habitualmente com menor impacto na mídia
e na vida nacional este tipo de atuação tem sido notável.
6
Estudo feito pela Associação dos Magistrados Brasileiros em 2007 mostra que
de 1988 a 2007, de um total de 130 ações no STF contra agentes políticos
protegidos pelo foro privilegiado, nenhuma teve condenação; no STJ, de um
total de 333 processos houve punição em cinco.

REFERÊNCIAS
ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público e política social no Brasil.
São Paulo: Editora Sumaré, 2002.
GARCIA, Emerson. Ministério Público: organização, atribuições e regime
jurídico. Rio de Janeiro: Lumen Jeris, 2008.
MACEDO JR., Ronaldo Porto. A evolução institucional do Ministério
Público Brasileiro. In: SADEK, Maria Tereza (Org.). uma introdução ao
estudo da justiça. São Paulo: IDESP/Editora Sumaré, 1996. (Série Justiça)
MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime jurídico do Ministério Público. São
Paulo: Saraiva, 1993.
SADEK, Maria Tereza. Cidadania e Ministério Público. In: ______. (Org.).
Justiça e cidadania no Brasil. São Paulo: Editora Sumaré, 2000.

460
bruno SpeCK

tribunaiS dE ContaS

Os tribunais de contas (TCs) são instituições vitais do sis-


tema político brasileiro, contribuindo para a aplicação correta e
eficiente dos recursos públicos. A fiscalização dessa aplicação
tem um papel central no combate à corrupção. Diferentemente
de outras instituições de controle (polícia, Ministério Público,
comissões parlamentares de inquérito), que eventualmente também
entram nesta questão, os TCs são a instituição por excelência que
se dedica integral e exclusivamente à fiscalização dos recursos
públicos. Como as instituições de auditoria governamental em
outros países, os TCs fiscalizam a arrecadação, gestão e aplicação
dos recursos públicos, utilizando critérios de auditoria governa-
mental, os quais dizem respeito à legalidade e à lisura contábil
(obediência à lei orçamentária e observação dos padrões da
contabilidade governamental). Adicionalmente, questionam a
aplicação econômica, eficiente e efetiva (os três Es da auditoria)
dos recursos públicos.
Na organização das competências, os TCs no Brasil seguem
o modelo federativo de forma parcial. Existem, no total, 34 TCs
no país. O Tribunal de Contas da União (TCU) tem a atribuição
de fiscalizar os recursos arrecadados pela União, incluindo
sua aplicação na administração pública direta e indireta, e
os repasses de recursos a estados, municípios e entidades não
governamentais. Os 27 tribunais de contas estaduais (TCEs),
por sua vez, são incumbidos da fiscalização e da aplicação dos
recursos estaduais. A fiscalização dos recursos dos municípios
também está a cargo dos TCEs, sendo que os estados do Ceará,
da Bahia, do Pará e de Goiás criaram, no âmbito estadual,
tribunais de contas dos municípios (TCMs). Somente dois muni-
cípios brasileiros (Rio de Janeiro e São Paulo) têm TCs próprios,
escolhidos e financiados no âmbito municipal. Todos os outros
municípios estão sujeitos ao controle dos TCEs ou TCMs no
âmbito estadual.
Ao definir a fiscalização dos recursos públicos como atribuição
do Congresso Nacional, a Constituição Federal define também
o formato do TCU, suas atribuições, composição, prerrogativas
e garantias (artigos 70 a 74). O texto constitucional determina
explicitamente que esse formato se aplica também aos TCs nos
âmbitos estadual e municipal (artigo 75).
Os TCs são instituições semiautônomas, compostas por um
corpo técnico concursado e dirigido por um colegiado (nove
ministros, no caso do TCU, sete conselheiros nos TCEs/TCMs e
cinco conselheiros nos TCs municipais). Esse colegiado dirige os
trabalhos de cada TC de forma autônoma, incluindo a eleição
do seu presidente, a elaboração do orçamento, a programação
da fiscalização e a tomada de decisões conclusivas sobre as
fiscalizações.
Uma das críticas constantes aos TCs se refere à composição
do colegiado, dada a sua importância central para os resultados
da auditoria governamental. A Constituição Federal é pouco
exigente quanto à pré-qualificação dos ministros/conselheiros,
fazendo menção a critérios meramente formais (brasileiros, entre
35 e 65 anos de idade, 10 anos de experiência profissional) ou de
difícil verificação (idoneidade moral, reputação ilibada, notórios
conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos, financeiros
ou de administração pública). Somente dois dos integrantes
do colegiado devem ser escolhidos dentre integrantes do corpo
técnico concursado dos TCs (um entre os auditores e outro entre
os procuradores).
O Poder Legislativo escolhe dois terços dos ministros/
conselheiros que integram o colegiado de cada TC. A nomeação

462
do terço restante é feita pelo Poder Executivo, mas necessita de
confirmação pelo Poder Legislativo. Esse vínculo político dos
integrantes do colegiado, pelas características de sua seleção em
combinação com a falta de fortes critérios de pré-qualificação
para o cargo (exceto em relação aos dois integrantes escolhidos
entre os auditores e promotores concursados), é alvo de críticas
frequentes quanto à falta de independência dos TCs no exercício
de suas funções. As acusações têm duas direções: as decisões
dos TCs estariam politicamente enviesadas (favorecendo ou
prejudicando governos, dependendo da orientação política) e as
instituições seriam usadas para o clientelismo político (salários
exorbitantes e cargos em comissão excessivos).
A vitaliciedade do cargo dos integrantes do colegiado, a pró-
pria composição desse colegiado, com membros indicados por
parlamentares de várias legislaturas, e as garantias constitucionais
à inamovibilidade e a vencimentos de ministros/conselheiros
até certo ponto constituem um contrapeso importante para essa
politização dos TCs.
A fiscalização dos recursos públicos pelos TCs gira em torno
de dois resultados importantes: os TCs responsabilizam agentes
públicos por possíveis irregularidades cometidas, determinando
as formas de reparação e sanção; adicionalmente, produzem reco-
mendações e determinam medidas preventivas para aumentar a
eficácia da alocação dos recursos. Para chegar a esses resultados,
retrospectivos (responsabilização individual) e prospectivos
(recomendações), a fiscalização dos recursos públicos percorre
uma sequência de cinco etapas: a identificação de indícios de
irregularidades ou formas de desperdício; a investigação dessas
informações; a decisão sobre a responsabilidade por irregulari-
dades; a elaboração de recomendações para melhorar a qualidade
do gasto público; e a implementação das medidas de responsa-
bilização e de prevenção.
Na etapa da identificação das irregularidades, os TCs no
Brasil têm ampla autonomia, com competência para elaborar
seu próprio programa de fiscalização. No entanto, em poucos

463
TCs essa política se baseia na identificação sistemática dos riscos
de corrupção. Normalmente, os TCs seguem uma pesada rotina
de revisão de contas anuais de milhares de gestores de recursos
públicos, complementados pela investigação de denúncias ou
escândalos veiculados pela mídia. Recentemente, alguns TCs
investiram na abertura de um canal adicional para a cidadania
oxigenando a fiscalização com a instituição de ouvidorias.
Somente as casas legislativas têm autoridade para solicitar audi-
torias aos TCs, mas fazem uso muito restrito dessa atribuição.
Tal tendência mudou em relação ao TCU a partir da lei orça-
mentária, determinando que o Congresso Nacional solicite ao
tribunal a auditoria das obras públicas que empregam maior
volume financeiro.
Na segunda etapa, a de verificação e investigação, os TCs
adotam prioritariamente o critério da correta aplicação dos
recursos públicos. As questões de economicidade, eficiência e
efetividade ficam em segundo lugar. Por um lado, porque os
problemas encontrados na administração brasileira se enquadram
ainda em grande parte na categoria da irregularidade contábil ou
legal. Em segundo lugar, porque essa fiscalização está a cargo de
um corpo técnico nos TCs, cuja qualificação para realizar audi-
torias operacionais ou de impacto ainda é reduzida. No entanto,
o TCU e alguns TCs estaduais têm avançado nessa área. De uma
forma geral, o corpo técnico dos TCs, recrutado por concurso
público e aperfeiçoado com programas de capacitação, goza de
reconhecimento pelos especialistas. No entanto, os relatórios
da fiscalização, antes de resultar em decisões dos TCs, devem
passar por outro filtro.
Na terceira etapa, a de decisão sobre a responsabilidade de
agentes públicos por irregularidades, os colegiados têm papel
decisivo. Embora no Brasil os TCs não façam parte do Poder Judi-
ciário (com implicações importantes sobre a validade das suas
decisões), o julgamento das contas dos administradores segue o
formato de um tribunal administrativo. Instruído pelo relatório
da área técnica e relatado conclusivamente por um membro do

464
colegiado, a decisão sobre a aprovação ou reprovação das contas
dos administradores será tomada pelo colégio dos ministros/
conselheiros dos TCs.
900 1.800

número de administradores
800 1.600
em milhões de reais

700 1.400

responsabilizados
débitos/multas

600 1.200
500 1.000
400 800
300 600
200 400
100 200
0 0
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

multas e débitos administradores condenados

Gráfico 1 – Tendência crescente de aplicação de multas/débitos pelo TCU


Fonte: Compilação a partir de dados fornecidos nos relatórios de atividade do TCU.

O número de gestores de recursos responsabilizados admi-


nistrativamente, por meio da aplicação de multas/débitos
imputados pelo TCU, cresceu significativamente nos últi-
mos anos (ver Gráfico 1). Adicionalmente, os TCs também
aplicam outras penalidades administrativas, como a inabilitação
de administradores para cargos comissionados ou de confiança
por um período entre cinco e oito anos (em 2007, foram 130
administradores) e a declaração da inidoneidade de empresas
para contratos com a administração pública, por três a cinco
anos (foram 47 empresas em 2007).
Os TCs também contribuem decisivamente para a respon-
sabilização política dos administradores envolvidos em irregu-
laridades graves. Em anos eleitorais, encaminham uma lista
com seus nomes à Justiça Eleitoral, a qual deve indeferir tais
candidaturas. Em relação à aprovação das contas do Executivo
pelo Poder Legislativo, que poderá resultar na responsabilização
política do presidente da República, governador ou prefeito, os

465
TCs elaboram somente um parecer conclusivo. A decisão final
cabe, respectivamente, ao Congresso Nacional, à assembleia
legislativa ou à câmara de vereadores, que poderá acatar ou re-
jeitar o parecer por maioria simples. No entanto, as câmaras de
vereadores somente poderão contrariar o parecer dos TCs com
maioria qualificada de dois terços. De toda forma, sujeita à lógica
das maiorias políticas, essa modalidade de controle tende a ter
valor meramente simbólico. Finalmente, quanto à responsabili-
zação criminal, os TCs não têm essa competência, denunciando
indícios de condutas criminais ao Ministério Público.
A quarta etapa, que é a da fiscalização, refere-se a medidas
de prevenção contra futuros desperdícios e à recomendação de
reformas em áreas mais suscetíveis à corrupção e ao desperdício.
Não existe acompanhamento sistemático sobre a implemen-
tação das sugestões elaboradas pelas auditorias dos TCs nem
uma avaliação da qualidade dessas recomendações por parte
do Executivo.
O ponto em que a prevenção tem demonstrado grande efici-
ência é no bloqueio de recursos orçamentários para obras que
apresentaram graves irregularidades (ver Gráfico 2). Essa modali-
dade se aplica somente às auditorias de grandes obras solicitadas
pelo Congresso Nacional. Somente após um parecer do TCU,
confirmando a regularização, o Congresso poderá autorizar a
retomada da aplicação de recursos orçamentários.

500
número de programas

400
programas fiscalizados
300
200 programas com
graves irregularidades
100
0
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007

Gráfico 2 – Fiscalização de obras públicas e bloqueio de verbas orçamentárias


pelo TCU
Fonte: Compilação a partir de dados fornecidos nos relatórios de atividade do TCU.

466
Na quinta etapa, a de implementação das decisões, os TCs
compartilham a responsabilidade com outros órgãos. As multas
e débitos que não são recolhidos espontaneamente pelos gestores
condenados devem ser cobrados pela Advocacia Geral da União
(AGU) e pelo órgão correspondente nos estados e municípios. A
taxa de êxito na efetiva execução dessas multas está abaixo de
1%, com poucas exceções. Da mesma forma, a punição política
de administradores, pela vedação da candidatura nas eleições
seguintes, que deve ser implementada pela Justiça Eleitoral,
apresenta taxa de êxito igualmente ínfima. Em ambos os casos,
os responsáveis geralmente contestam as decisões dos TCs na
justiça comum, postergando o pagamento de débitos em muitos
anos e permitindo o registro das candidaturas impugnadas. Além
da crítica em razão da composição dos colegiados, a segunda
fragilidade dos TCs consiste na baixa taxa de implementação
das sanções aplicadas.

467
Fernando FilgueiraS

ComiSSõES parlamEntarES
dE inquérito

As comissões parlamentares de inquérito (CPIs) representam


um mecanismo institucional de controle do Legislativo sobre
os demais poderes da República e sobre a sociedade civil, com
o objetivo de averiguar fatos jurídicos relacionados aos crimes
da administração pública e cometidos pela sociedade civil, de
qualquer natureza. As CPIs dão equivalência do Poder Legislativo
ao Poder Judiciário, com o objetivo de fazer com que o legislador
exerça atividades com poder de polícia.
No Brasil, as CPIs são delimitadas constitucionalmente,
conforme o artigo 58 da Carta Magna, garantindo ao Congresso
Nacional o poder para realizar inquéritos a respeito de fatos
determinados, por prazo fixado. 1 O mesmo vale para as
assembleias legislativas e para as câmaras municipais, que têm
nas constituições estaduais e nas leis orgânicas municipais,
respectivamente, o poder de instaurar CPIs.
Historicamente, as CPIs foram criadas na Inglaterra, no
século 14, com o objetivo de ser um instrumento de controle
parlamentar sobre o governo. No Brasil, o instituto da CPI foi
criado na Constituição de 1934, que dava competência para a
Câmara dos Deputados exercer as atividades de inquérito poli-
cial, excluindo o Senado. A Constituição de 1937 foi omissa em
relação ao tema da CPI e a Constituição de 1946 foi a primeira
que deu competência às duas casas legislativas para criar CPIs,
o que foi mantido também na Constituição de 1988.
As CPIs estão relacionadas a uma competência não típica do
Legislativo, tendo como horizonte um procedimento policial
administrativo que antecede ações penais. Por conseguinte, as
CPIs estão na dimensão do Direito Penal, sendo uma das formas
de inquérito, além do Inquérito Policial (IP) e do Inquérito Policial-
-Militar (IPM). No caso das CPIs, o Legislativo exerce a atividade
investigativa, formula um relatório e apresenta denúncia ao
Ministério Público, que dá prosseguimento à instrução penal,
obedecidas as devidas regras processuais. Como a CPI faz com
que o Poder Legislativo tenha equivalência com o Poder Judi-
ciário, seu poder de diligência é equivalente ao da polícia, podendo
ele quebrar sigilos bancários, telefônicos e fiscais, requisitar
informações sigilosas, ouvir testemunhas, colher depoimentos
de investigados, efetuar prisões e ordenar buscas domiciliares.
Constitucionalmente, no Brasil, não há a determinação de
onde e quando o Poder Legislativo pode realizar inquéritos, mas,
de maneira geral, compreende-se que a participação do Legis-
lativo através de CPI restringe-se a temas de interesse nacional,
conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal. Como há
esse tipo de abertura, uma vez que, em tese, podemos compre-
ender quase tudo como temas de interesse nacional, não existe
uma determinação jurídica de quando e como uma CPI pode ser
montada e realizar-se o inquérito policial. As motivações para
a criação de uma CPI, tendo à frente temas de interesse nacional,
são políticas, apesar de ser um procedimento meramente admi-
nistrativo.
E é por essas motivações políticas que devemos entender
o instituto constitucional da CPI, que dá, de alguma forma,
visibilidade aos parlamentares e permite que as relações entre
oposição e governo se estendam para além do processo legis-
lativo. é impossível, portanto, não perceber que as motivações
políticas para a instauração de uma CPI têm relação com cada
caso em particular e com o modo de acordo com o qual o tema

469
é coberto por atores externos à própria comissão, como, por
exemplo, a mídia.
De alguma maneira, a maioria das CPIs realizadas no Brasil
têm como motivação o tema da corrupção. Institucionalmente,
a CPI é um elemento fundamental para o controle da corrupção,
porque não o restringe apenas aos Poderes Executivo e Judiciário.
A CPI dá ao Legislativo a oportunidade para controlar a corrup-
ção dos outros poderes e, também, a própria corrupção. Todavia,
como a motivação é política, normalmente as CPIs extrapolam
os procedimentos jurídicos, submetendo-se mais à lógica dos
escândalos políticos do que às questões dos fatos determinados.
Ao submeter os fatos concretos sob investigação à lógica do
escândalo, as CPIs acabam por ser mecanismos ineficazes de
controle da corrupção. Como a questão é a visibilidade que as
CPIs dão aos parlamentares, muitas vezes o foco de investiga-
ção é distorcido por conta de fatos secundários (como relações
sexuais, delinquências menores ou compromissos políticos) ou
interesses dos atores envolvidos nos casos.
John Thompson apontou que, nas democracias contempo-
râneas, há a presença da lógica do escândalo como processo
permanente na opinião pública, em que a corrupção é um tema
típico da cobertura da mídia, que se esforça por denunciar as
delinquências do homem público e de agentes privados, com
relação à administração pública.2 Isso porque a mídia aumentou,
de acordo com Thompson, a visibilidade da política, fazendo com
que o clamor por maior transparência seja típico das democracias
contemporâneas. Como a mídia dá visibilidade, é do interesse
dos parlamentares se tornarem mais visíveis aos olhos da opinião
pública, com o único objetivo instrumental de ter mais votos.
Como apontou Eisenberg, podemos, portanto, formular a
ideia de que existe, no Brasil, por meio das CPIs, um processo
de tribunalização da política, em que o Legislativo exerce uma
atividade jurídica, mas sem a competência técnica para isso.3
Ou seja, sem ser o narrador imparcial que, mediante procedi-
mentos fixos de enunciação da verdade, seja capaz de narrar as

470
delinquências do homem público. Mediante o instituto da CPI, os
legislativos assumem esse processo de tribunalização, fazendo de
um instrumento administrativo um meio para maior visibilidade
e moralização das instituições políticas.
O resultado é que nem sempre a CPI se revela um instrumen-
to eficaz de controle da corrupção. Como as motivações são
políticas e não administrativas, há um processo de banalização
do inquérito conduzido pelo Legislativo, sendo suas sessões
grandes momentos para discursos inflamados pela moralização
da política; momentos para abertura e transparência da vida
privada do homem público − como no caso da CPI destinada a
investigar o ex-presidente do Senado, senador Renan Calheiros −;
e momentos para realizar ataques à oposição ou ao governo.
Com a maior visibilidade da corrupção através das CPIs,
cria-se um contexto de busca por mais “ética na política”, não
importando o fato de que o modo como a opinião pública cons-
trói a ideia de público implica uma gradativa visão da sociedade
pelo Direito Penal. Cria-se, nesse sentido, a ilusão de que um
endurecimento das penas pelos crimes de corrupção passiva e
ativa resolverá o problema da corrupção na política.
A CPI, portanto, é um instrumento de controle da corrupção
que tem sua eficácia contestada por misturar procedimentos
administrativos e procedimentos políticos, não resultando, ne-
cessariamente, em maior responsabilidade do homem público em
relação à res publica. A eficiência do instrumento da CPI está
em ele ser, de fato, um instrumento administrativo, conduzido
pelo Parlamento, no sentido de maior controle da administração
pública. Caso contrário, dado o poder de cobertura da mídia,
permanecerá como um teatro de horrores, onde importa não
aquilo que seja de interesse público, mas os escândalos próprios
às melhores novelas televisivas.

471
NOTAS
1
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 58, parágrafo
3º, 1988.
2
THOMPSON. O escândalo político. Poder e visibilidade na era da mídia.
3
EISENBERG. Pragmatismo, direito reflexivo e judicialização da política.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. São Paulo:
Saraiva, 2008.
EISENBERG, José. Pragmatismo, direito reflexivo e judicialização da
política. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três pode-
res no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ; Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002.
THOMPSON, John. O escândalo político. Poder e visibilidade na era da
mídia. Petrópolis: Vozes, 2002.

472
MarCelo barroS goMeS
riCardo de Melo araúJo

ControlE ExtErno

A palavra “controle”, do francês contrôle, significa o ato ou


poder de controlar, verificar, averiguar. Na França do século 17,
rôle era um registro oficial em que se escreviam nomes, e contra-
-rôle, um outro registro que efetuava o confronto com o original
e servia para a verificação dos dados.
O controle abrange os vários processos nos quais a adminis-
tração determina seus objetivos, delineia os planos para alcançá-
-los, organiza e supervisiona as operações necessárias para a
implementação dos planos e desempenhos esperados. Controle
significa conhecer a realidade, compará-la com o que deveria
ser, tomar conhecimento rápido das divergências e suas origens
e tomar medidas para sua correção. é a fiscalização exercida
sobre as atividades de pessoas, órgãos, departamentos, ou sobre
produtos para que tais atividades, ou produtos, não se desviem
das normas preestabelecidas.
No âmbito do governo, a finalidade do controle é garantir
que a administração pública atue de acordo com os princípios
explícitos e implícitos na Constituição Federal – legalidade,
moralidade, finalidade pública, motivação, impessoalidade,
publicidade e eficiência –, bem como obedeça aos princípios da
supremacia do interesse público sobre o privado e da indispo-
nibilidade do interesse público.
O controle decorre da necessidade de transparência no exer-
cício do poder do Estado. Nesse sentido, a Constituição Federal
estabelece o princípio da prestação de contas dos agentes públicos
(art. 34, VII, d), instrumento que deve também possibilitar a
avaliação da gestão.
O controle da administração pública pode ser interno, se
exercido por órgão do próprio poder controlado, ou externo,
quando exercido por órgão vinculado a poder diverso do poder
controlado.
Decorrência do princípio da repartição dos poderes e da
necessidade de freios e contrapesos na administração pública,
controle externo é a faculdade de vigilância (acompanhamento
da atuação e detecção de desvios), orientação (aperfeiçoamento
da gestão e prevenção de falhas) e correção (modificação de
atuação ilegal e punição de responsáveis por ato irregular) que
uma entidade externa, em regra vinculada ao Poder Legislativo,
exerce sobre a conduta funcional e o desempenho de gestores
de recursos públicos.
Os principais modelos de instituições de controle externo
existentes no mundo são de controladoria-geral ou auditoria-
-geral e tribunais de contas. Essas entidades são denominadas
internacionalmente como Entidades de Fiscalização Superiores
(EFS). Análises comparadas sobre os diversos sistemas de controle
externo demonstram que as atividades exercidas por EFS se di-
ferenciam não pela forma como elas se estruturam, se tribunais
ou controladorias, mas sim pelo estágio de desenvolvimento de
boas práticas de gestão pública, transparência e cultura de pres-
tação de contas existentes nos países nos quais essas instituições
se inserem. Existem modelos de tribunais de contas em países
com excelência em gestão pública e baixos índices de percepção
de corrupção, a exemplo de Singapura, Holanda e Alemanha.
E outros, em extremo oposto, tribunais de contas em países de
baixíssima governança, como Tanzânia e Camarões. Da mesma
forma, os modelos de controladorias se inserem não só em países
cujas administrações públicas nacionais são extremamente
desenvolvidas, tais como Dinamarca, Finlândia e Reino Unido,
mas também em outros de notória má condução dos negócios

474
públicos e altos índices de percepção de corrupção nos gover-
nos internos, como Paraguai, Iugoslávia, Indonésia e Nigéria.
No Brasil, o controle externo, nos termos dos artigos 70 e
71 da Constituição Federal de 1988, é exercido pelo Congresso
Nacional, com auxílio do Tribunal de Contas da União - TCU.
Divide-se em dois ramos, com objetivos e sujeitos ativos distintos.
O primeiro ramo é o do controle político, exercido exclusiva-
mente pelo Congresso Nacional e por suas casas e comissões, que
tem por objetivo assegurar a consecução dos grandes interesses
da sociedade. Nesse sentido, a atividade mais relevante é o julga-
mento das contas anuais do presidente da República e dos chefes
dos Poderes Legislativo e Judiciário, após o parecer prévio do
TCU sobre a exatidão e a regularidade daqueles demonstrativos.
A segunda vertente é a do controle técnico, também deno-
minado controle externo em sentido estrito. Exercido pelas
comissões técnicas do Congresso Nacional e pelo TCU, seu obje-
tivo é efetuar a verificação financeira, contábil, orçamentária,
operacional e patrimonial dos atos praticados pelos gestores
públicos, sob os aspectos da legalidade (compatibilidade com
normas constitucionais, legais e regulamentares), do mérito
(que envolve legitimidade e compatibilidade com o interesse
público) e economicidade (relação custo/benefício adequada) e
dos resultados obtidos.
O Tribunal de Contas da União, cuja missão atual é assegurar
a efetiva e regular aplicação dos recursos públicos em benefício
da sociedade, foi criado pelo Decreto 966-A, de 7 de novembro
de 1890, e passou a figurar em todas as constituições brasileiras
desde 1891. A primeira regulamentação da atuação do Tribunal
foi feita pelo Decreto 1.166, de 17 de dezembro de 1892, e
começou sua instalação, no Rio de Janeiro, em 17 de janeiro de
1893, onde funcionou até sua transferência para Brasília em 10
de janeiro de 1961.
Diversas foram as alterações de competência, forma de atu-
ação e composição do TCU. Em 1896, a primeira Lei Orgânica
do Tribunal, a lei 392, de 8 de outubro de 1896, abandonou o

475
chamado modelo belga, de controle prévio e veto impeditivo
absoluto à execução de despesa impugnada pela corte, e instituiu
o denominado modelo italiano, que manteve o controle prévio,
mas criou o veto relativo, na forma do registro sob reserva.
Em 1967, foi extinto o instituto do registro prévio, que permitia
o exame de despesas antes de sua concretização, e autorizada a
realização de inspeções e auditorias nos órgãos e entidades da
administração pública federal. Em 1988, a atual Constituição
promoveu uma alteração relevante, ao conferir ao TCU a possibi-
lidade de avaliar, também sob os aspectos da legitimidade e da
economicidade, o desempenho operacional de órgãos, entidades
e programas públicos.
Compõe-se o Tribunal de nove ministros, dos quais seis
indicados pelo Congresso Nacional e três indicados pelo presi-
dente da República, que deve escolher dois deles entre auditores
(profissionais selecionados por concurso público para substituírem
ministros em seus afastamentos e vacâncias) e membros do
Ministério Público junto ao TCU, órgão que integra a estrutura
da própria corte, que tem por função atuar na defesa da lei e
do erário e cujos integrantes, selecionados mediante concurso
público para bacharéis em Direito, são equiparados aos membros
do Ministério Público Federal.
As diversas competências do Tribunal, estabelecidas na
Constituição Federal, em especial no artigo 71, em sua atual
Lei Orgânica, a lei 8.443, de 16 de julho de 1992, e em outros
diplomas legais, podem ser classificadas, conforme sua natureza,
em funções. De acordo com a doutrina, são elas: fiscalizadora,
judicante, consultiva, informativa, sancionadora, corretiva, norma-
tiva e de ouvidoria.
A função fiscalizadora, como diz o nome, é exercida mediante
realização de procedimentos de fiscalização, principalmente no
tocante a: legalidade das admissões de pessoal na administração
pública (exceto em cargos em comissão), legalidade das concessões
de aposentadoria, reforma e pensão custeadas pelo Tesouro, apli-
cação de recursos transferidos mediante convênios, cumprimento

476
da Lei de Responsabilidade Fiscal - LRF pela administração
pública federal, avaliação de programas de governo, auditorias
de desempenho operacional e desestatização, em especial no
tocante a regulação de serviços públicos objeto de delegação.
A função judicante consiste no julgamento das contas anuais
dos gestores públicos, das contas dos responsáveis por prejuízos
ao erário e das infrações à LRF no âmbito federal. A função con-
sultiva caracteriza-se, principalmente, pelo parecer prévio sobre
as contas do presidente da República e dos chefes dos Poderes
Legislativo e Judiciário e do Ministério Público, de modo a
subsidiar seu julgamento pelo Congresso Nacional, e pela res-
posta, sempre em tese, a consultas formuladas por autoridades
federais a respeito da aplicação da legislação concernente à área
de atuação do Tribunal.
A função informativa consiste no fornecimento de informações
a outros setores da administração pública federal. A função
sancionadora consiste na aplicação de penalidades. Destacam-se:
a condenação ao recolhimento de débito apurado, atualizado
monetariamente e acrescido de juros de mora, a aplicação de
multa de até 100% do valor atualizado do débito apurado, a
aplicação de multa por violação à norma de administração
pública ou por descumprimento de determinação do Tribunal,
a declaração de inidoneidade para licitar e contratar com a
administração pública por até cinco anos e a declaração de
inabilitação para ocupação de função comissionada ou cargo
em comissão por um período de cinco a oito anos.
A função corretiva compreende a formulação de determinação
para adoção de providências para cumprimento da lei e a possi-
bilidade de sustação de ato administrativo quando descum-
prida essa determinação. A função normativa é desempenhada
mediante expedição de decisões normativas onde o Tribunal
estabelece regras para regulamentar seu relacionamento com as
unidades a ele jurisdicionadas e a formalização de processos a
serem-lhe submetidos.

477
Finalmente, a função de ouvidoria é executada mediante
recebimento de denúncias de irregularidades na administração
pública federal, que podem ser formuladas por cidadão, partido
político, sindicato ou associação civil. As atividades do TCU,
cujas decisões fazem coisa julgada administrativa e somente podem
ser judicialmente contestadas por intermédio de mandado de
segurança interposto junto ao Supremo Tribunal Federal, são
exercidas com observância do ordenamento jurídico e dos sete
princípios fundamentais do controle: efetividade, seletividade,
tempestividade, caráter preventivo, agregação de valor, trans-
parência e publicidade.
Para desempenhar suas funções, os principais instrumentos
de trabalho de que dispõe o TCU são as tomadas e prestações
de contas, as tomadas de contas especiais e as fiscalizações. As
tomadas e prestações de contas são conjuntos de demonstrativos
e documentos com informações sobre a gestão anual dos órgãos e
entidades federais. As tomadas de contas especiais são processos
formalizados com a finalidade específica de quantificar débitos e
identificar responsáveis por prejuízos sofridos pelo erário federal.
As fiscalizações do TCU realizadas nos órgãos e entidades sob
sua jurisdição visam verificar a legalidade, a economicidade, a
legitimidade, a eficiência, a eficácia e a efetividade de atos, con-
tratos e fatos administrativos.
A principal função da EFS brasileira é auxiliar o Congresso
no exercício do controle externo. Contudo, existe alto grau de
independência do TCU perante qualquer outra instância, pois o
Tribunal possui competência para realizar trabalhos de fiscali-
zação por iniciativa própria. A partir da Constituição de 1988,
foi atribuída ao TCU a competência para realizar auditoria de
natureza operacional. Desde então, diversos esforços vêm sendo
empreendidos a fim de capacitar o órgão de controle externo
para o exercício desse mandato, razão pela qual o TCU vem se
destacando como centro de excelência na disseminação de boas
práticas de auditoria, avaliação e gestão na esfera pública.

478
Entidades de fiscalização superiores como o TCU têm se
caracterizado como órgãos fundamentais em vários países
para a consolidação de Estados democráticos, para o aumento
da transparência e da accountability e para a melhoria da
gestão pública. Tal destaque parece decorrer da imagem de
independência, competência técnica e profissionalismo que essas
instituições buscam adquirir ao incorporar critérios, métodos
e técnicas de auditoria operacional e avaliação de programas.
Existe um movimento de transformação singular para o
controle, pois, à medida que se busca maior autonomia geren-
cial e flexibilização do aparato governamental, os sistemas de
controle, como uma imagem refletida no espelho, tendem a se
tornar mais robustos e presentes nos processos de formulação e
implementação de políticas públicas, porque maior autonomia
dos entes governamentais requer, de outra parte, aumento da
transparência e da accountability da gestão pública.
As EFS são órgãos fundamentais para promover a análise e a
avaliação sistemáticas de políticas públicas, para que governos
possam conhecer os resultados e os impactos decorrentes de suas
intervenções e informá-los aos diversos interessados. As audi-
torias e avaliações desenvolvidas por EFS envolvem atualmente
todas as fases do ciclo de políticas públicas – formulação, dese-
nho, implementação e impacto de programas, políticas, órgãos
e atividades governamentais.
O Tribunal de Contas da União tem demonstrado possuir
legitimidade institucional, em decorrência das características
socioculturais da administração pública nacional, para atuar em
todos os critérios de auditorias de natureza operacional, incluindo
análise de efetividade, bem como para realizar avaliação de pro-
grama que analise o impacto da atuação estatal. O ferramental
metodológico aplicado pelo TCU para realizar seus trabalhos de
controle vem se expandindo de forma a agregar mecanismos de
avaliação de impacto da gestão pública, bem como de análise de
políticas públicas, tanto nas dimensões retrospectivas quanto nas
informações prospectivas relevantes decorrentes de sua análise

479
para formuladores de políticas públicas, especialmente o Congresso
Nacional, mas também o Executivo político. Além disso, o con-
trole externo exercido pelo TCU promove a transparência das
ações públicas com vistas a fomentar o controle social.
A Constituição atribui ao controle externo não somente uma
visão de meios e de conformidade de gestão, mas uma visão de
finalidade e operacional. O gestor público deve prestar contas
tanto da regular utilização de seus recursos quanto dos seus atos
finalísticos: se esses atendem ao interesse público, se se revestem
de legalidade, se estão de acordo com as políticas públicas e com
os marcos legais definidos pelas instâncias políticas.
Cabe destacar que o exercício do controle externo não afeta
a autonomia de atuação do gestor público. O controle exercido
pelo TCU envolve a formação de juízo sobre os resultados, a
economicidade, a eficiência e a efetividade da atuação dos entes
públicos. Mais que isso, identifica e recomenda práticas de gestão
que possam alavancar o desempenho dos agentes envolvidos na
condução das políticas públicas do país, analisa a governança
dos órgãos governamentais e, ainda, busca criar um histórico em
políticas públicas que sirva de base para tomadas de decisões,
sem, contudo, sobrepor-se e confundir-se com o papel do gestor
público.
O que o TCU trata é de fiscalizar como os gestores lidam
com os recursos públicos, se obedecem aos limites da lei e se
alcançam os resultados almejados pelas políticas públicas de
saúde e educação, se as agências reguladoras estão tratando as
condições das estradas, da segurança dos passageiros da aviação
brasileira, da tarifa de energia elétrica, da necessidade de univer-
salização de serviços públicos de infraestrutura, da necessidade
de investimentos.
O que a população espera é que o TCU, em nome do Congresso,
fiscalize esses serviços públicos. O atual regime de controle
externo vem contribuindo para o aumento da accountability
governamental e para melhoria na prestação de serviços públicos,
em benefício de toda a sociedade brasileira. Esta espera que o

480
controle exerça um papel proativo, para consolidar a demo-
cracia por intermédio da maior transparência; para solidificar
as instituições do Estado, por meio do aumento da eficiência;
e para melhorar as intervenções estatais, tornando a excelência
e a efetividade uma marca da administração pública brasileira.
Esse tem demonstrado ser o legítimo papel do controle externo
no novo milênio.

481
MÁrio Spinelli

ControlE intErno

Por controle interno se entende o conjunto de ações, métodos,


procedimentos e rotinas que uma organização exerce sobre seus
próprios atos, a fim de preservar a integridade de seu patrimônio
e de examinar a compatibilidade entre as operações desenvol-
vidas, os parâmetros preestabelecidos e os princípios pactuados.
Seu objetivo é reduzir a vulnerabilidade da organização aos riscos
existentes, buscando identificar e corrigir eventuais desvios em
relação a parâmetros e diretrizes previamente estabelecidas.
O controle interno deve pautar a sua atuação pela verificação
da eficiência, da eficácia, da efetividade e da economicidade
dos atos praticados, pela análise da exatidão dos registros, pelo
exame do cumprimento das normas, estatutos e regimentos e
pela avaliação do cumprimento das metas e dos objetivos da
organização.
Devido a sua natureza, as atividades de controle interno
envolvem todos os níveis hierárquicos e englobam as ações dos
mais variados setores, atuando em um processo amplo, contínuo
e permanente que permita uma constante avaliação dos atos
praticados pelos agentes responsáveis. Tais ações não são, portanto,
exclusivas da unidade responsável pelo controle interno, à qual
cabe, inclusive, examinar se esses mecanismos de checagem
desenvolvidos nas diversas áreas da organização são capazes de
proteger o seu patrimônio e garantir a compatibilidade entre os
atos praticados e as normas previamente pactuadas.
As atividades de controle interno devem ocorrer prioritaria-
mente de forma preventiva, buscando identificar pontos críticos
no fluxo das ações desempenhadas, de modo a evitar a ocorrência
de possíveis desvios na execução dos atos praticados. Essa linha
de ação, contudo, não exclui verificações concomitantes ou,
ainda, a posteriori, com o intuito de examinar a regularidade das
ações desenvolvidas e, se for o caso, apurar responsabilidades
nas situações em que forem identificadas incorreções.
Como um dos objetivos primordiais do controle interno é
salvaguardar os ativos das organizações, a execução das ações
desenvolvidas com esse objetivo deve levar em consideração a
relação entre os custos e os benefícios potenciais que essa ativi-
dade pode ser capaz de produzir, sob pena de o próprio controle
se tornar mais oneroso do que ato examinado. No âmbito da
administração pública, a atividade de controle interno apresenta
acepção similar, na medida em que visa garantir a integridade do
patrimônio público e verificar a conformidade entre os atos pra-
ticados pelos agentes públicos e os princípios legais estabelecidos.
Qualquer que seja a esfera de governo, os Poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário estão obrigados a desenvolver e manter
uma série de rotinas e procedimentos integrados, com o intuito de
controlar as suas próprias ações e assim proteger os seus ativos,
os chamados sistemas de controle interno. Esses sistemas têm o
objetivo de evitar possíveis danos ao erário, garantindo que a
atuação governamental seja compatível com o interesse público.
Em função disso, sua atuação busca efetivar o aprimoramento
da gestão dos administradores públicos, por meio da realização
de uma série de medidas que possibilitem, entre outras coisas, a
avaliação da realização das políticas governamentais e dos resul-
tados obtidos, a verificação da compatibilidade entre os atos
praticados e o ordenamento jurídico, a análise da execução das
receitas e das despesas públicas e o exame do cumprimento de
metas firmadas para o poder público. Ademais, também cabe aos
sistemas de controle interno buscar avaliar se os gestores públicos
adotam uma gestão fiscal responsável, respeitando as metas e

483
diretrizes estabelecidas nas leis orçamentárias e cumprindo os
limites fixados, incluindo aqueles relacionados com as operações
de crédito e com o montante de despesas efetuadas em áreas ou
setores específicos.
Esse complexo de ações de controle deve ser permanentemente
exercido em todos os níveis e por todos os órgãos e entidades,
podendo ser coordenado por unidades ou setores específicos
de controle interno, que têm a função de prestar assessoria à
administração superior da organização responsável pela ação
governamental. Por sua vez, essas unidades ou setores usualmente
são subordinados a um órgão central, a quem cabe coordenar as
ações de controle desenvolvidas, sistematizar os procedimentos
adotados e prestar orientações normativas no âmbito de sua
competência.
A estrutura administrativa responsável pela execução das
atividades de controle interno é, portanto, um dos instrumentos
que possibilitam o exercício de accountability horizontal, na
medida em que se configura como uma instância pertencente ao
ambiente estatal com capacidade de monitorar e controlar seus
próprios atos administrativos, bem como de responsabilizar os
agentes públicos que os praticaram, quando for o caso.
No desempenho de suas funções, as unidades responsáveis
pelo controle interno têm a obrigação de pautar a sua atuação
pelo princípio da legalidade, agindo de forma ética, indepen-
dente, soberana e imparcial, de modo a garantir que o interesse
púbico seja preservado. Ao tomarem ciência de desvios na apli-
cação dos recursos públicos, é seu dever comunicar aos gestores
da respectiva política, acompanhar as medidas adotadas para
solucionar o problema identificado, averiguando quem foram
os responsáveis por tais incorreções e dando conhecimento de
tais ocorrências aos demais órgãos competentes, visando à
aplicação das medidas administrativas cabíveis. Nesse sentido,
as unidades de controle interno devem empenhar-se para prestar
apoio ao respectivo órgão responsável pelo controle externo
no cumprimento de sua missão institucional, cabendo aos seus

484
responsáveis comunicar ao controle externo as irregularidades
porventura detectadas, sob pena de responsabilidade solidária
com aquele que deu causa ao desvio identificado.
Além disso, as ações de controle interno devem buscar efetivar
a transparência dos atos praticados pelo poder público, garan-
tindo que os cidadãos disponham de informações relativas à
aplicação dos recursos públicos. Da mesma forma, é papel
do controle interno assegurar que os instrumentos legalmente
instituídos com o fim de possibilitar a participação popular
no controle e no monitoramento das ações governamentais
estejam disponíveis e que sejam desenvolvidos canais de comuni-
cação e de interação com o cidadão, com o intuito de aprimorar
o seu papel e, em última instância, a própria gestão pública.

485
vâ n i a vieira

CorrEição

Assim se designa a atividade pela qual a administração pública


corrige a atuação de seus servidores, conformando-a aos parâ-
metros legais estabelecidos. O exercício dessa atividade decorre do
poder disciplinar que deve ser desempenhado pela administração
para impor modelos de comportamento a seus agentes públicos,
com o fim de manter a regularidade de seu funcionamento e
assegurar a prestação dos serviços públicos.
A atuação dos servidores públicos é orientada pela lei. é no
estatuto legal que estão definidos os direitos, deveres e proibições
do servidor público, bem como as sanções a que está sujeito caso
descumpra algum dos preceitos estabelecidos. As normas de
conduta impostas pelo estatuto se dirigem, no entanto, à função
desempenhada pelo servidor, pois, em regra, não interessa à
administração a vida pessoal de seus funcionários. Atos que
digam respeito exclusivamente à vida privada do servidor podem
ter repercussão cível ou até penal, ou ensejar uma censura ética
por parte da administração pública, mas não ensejar reprimenda
no âmbito administrativo se não infringir regra do estatuto dos
servidores públicos.
O dever de observância a esse estatuto impõe-se, inclusive,
durante os períodos de férias, licença ou outros afastamentos do
servidor, pois ele se mantém vinculado à administração pública.
Isso significa que, mesmo durante esses períodos, o servidor está
sujeito aos deveres e proibições previstos no diploma legal. Ele
não pode, por exemplo, quando licenciado do cargo, ainda que
sem remuneração, desempenhar atividades incompatíveis com
a sua função.
A infringência de normas de caráter disciplinar também não
se confunde com situações de conflitos ou desvios éticos. São
condutas que repercutem de forma diferente em esferas distintas.
Códigos de ética da administração pública definem, com base
nos princípios e valores que trazem explicitados, o padrão de
comportamento ao qual deve se submeter determinado grupo
de servidores. Esse padrão ético, além de orientar as escolhas e
decisões dos indivíduos, permite que as ações dos agentes sejam
avaliadas como boas ou más, certas ou erradas, justas ou injustas.
Todavia, a não observância de valores e princípios éticos não
enseja, como no caso do descumprimento de norma de caráter
disciplinar, a responsabilização do servidor, já que não possuem
natureza imperativa.
O descumprimento dos deveres e proibições impostos também
não está relacionado com o desempenho do agente público.
A ideia de desempenho está ligada ao trabalho realizado e aos
resultados alcançados em determinado período pelo servidor
público, e será ou não suficiente conforme as metas e padrões
estabelecidos. No caso de perda do cargo público por avaliação
de desempenho insatisfatória, a medida, ao contrário da demissão
aplicada em hipóteses de infração disciplinar, não tem natureza
sancionatória. A demissão constitui pena imposta a servidor que
comete irregularidade, ao passo que a exoneração por insu-
ficiência de desempenho é ensejada pela inaptidão do agente
para o exercício do cargo.
Quando o servidor público descumpre as normas que regem
a sua atuação, a administração deve instaurar processo admi-
nistrativo para apurar a infração cometida. Denomina-se
processo administrativo disciplinar o instrumento utilizado pela
administração para apurar e corrigir os atos de seus funcionários,
do qual poder resultar a aplicação de sanção administrativa.
Esse processo deve observar os princípios do contraditório e da
ampla defesa, sob pena de ser nulo. Isso significa que o servidor

487
deve ser notificado para se defender e acompanhar todo o pro-
cesso, inclusive por meio de advogado, juntando documentos,
contraditando provas, arrolando testemunhas.
O processo é conduzido por comissão composta, em regra,
de três servidores estáveis, que, ao final dos trabalhos, apresenta
à autoridade, que instaurou a comissão, relatório sobre os fatos
apurados. Em geral, é essa autoridade a responsável por julgar o
caso a partir das provas levantadas e conclusões apontadas pela
comissão. Ou seja, ocorre uma dissociação entre a figura do juiz
e a dos responsáveis pela condução do processo.
As penas aplicadas podem variar de uma simples advertência
ou suspensão até a demissão do serviço público ou cassação de
aposentadoria. Nem sempre, no entanto, a administração co-
nhece o autor da infração ou dispõe de maiores detalhes sobre
o fato. Nesses casos, é instaurada sindicância ou investigação
preliminar para apurar o ocorrido. Isso acontece porque a ad-
ministração geralmente toma conhecimento do fato por meio de
denúncias apresentadas por servidores ou cidadãos, processos de
auditoria e fiscalização e representações de outros órgãos ou
entidades, como Ministério Público, polícia e organizações
não governamentais.
A aplicação de sanções no âmbito administrativo, além de
reprimir condutas irregulares, atua como medida preventiva
e inibidora da prática de novos ilícitos. O processo adminis-
trativo apresenta, ainda, importante característica: a agilidade
de sua tramitação, em especial quando comparada ao processo
judicial. A administração tem condições de punir o servidor
público pela prática de irregularidade antes do julgamento do
fato pelo Poder Judiciário, tendo em vista o grande número de
recursos que podem ser apresentados nessa seara, o que permite
ao Executivo, muitas vezes, combater a impunidade de forma
mais célere e efetiva.
Esse combate esbarra, no entanto, em obstáculos: os sistemas
de apurações administrativas adotados no Brasil, como regra geral,
datam da década de 1950, o que demonstra a desatualização

488
dos tipos de irregularidades estabelecidos, que desconsideram,
por exemplo, ilícitos praticados por meio de sistemas informa-
tizados da administração. Também os mecanismos de apuração
e responsabilização disponíveis não acompanharam a evolução
da sociedade e do próprio aparato administrativo, tampouco o
desenvolvimento da tecnologia. Ademais, a falta de capacitação
e especialização dos profissionais que atuam em comissões de
sindicância ou processo administrativo disciplinar contribui
para a ocorrência de falhas na condução dos procedimentos, o
que acarreta, muitas vezes, a sua anulação pelo Judiciário, com
a reversão da sanção aplicada pela administração.
Outros problemas relacionados ao sistema correcional da admi-
nistração pública brasileira podem, ainda, ser apontados, como
a sua abrangência restrita aos servidores públicos de carreira e
servidores que ocupam cargos de confiança, e a consequen-
te exclusão de outros agentes, como empregados públicos,
consultores e terceirizados, da esfera de aplicação das normas
disciplinares.

489
ludoviCo Feoli

quarEntEna

Por quarentena se entende o conjunto de normas jurídicas que


limitem a participação de ex-servidores públicos, incluindo os
de alto escalão, na gestão de certos atos e em geral em situações
que possam levar ao aproveitamento indevido da condição de
ex-servidor público, em um prazo razoável. Sua necessidade se
origina daquilo que o servidor público adquire no exercício de
sua função, informação privilegiada, contatos ou influências que
possa utilizar através da gestão privada, em benefício próprio ou
de terceiros. O termo tem origem na prática de isolamento preven-
tivo a que se submetem pessoas e animais, durante um período
(normalmente de 40 dias), por razões sanitárias.
No caso da corrupção, esta prática busca a proteção contra
uma variante de conflito de interesses, em que a função pública
do funcionário pode se chocar com seus interesses privados.
Resulta especialmente aguda em âmbitos onde a ausência de
uma tradição burocrática de permanência e mérito gera um alto
grau de mobilidade no setor público, onde as nomeações são
feitas por critérios políticos e não técnicos, e onde as compras
do setor público estão pouco reguladas ou dependem do poder
decisório de altos funcionários. Daí a quarentena se aplicar
não apenas aos funcionários públicos, mas também aos polí-
ticos que exercem uma função do setor público, o que os torna
suscetíveis à corrupção. Igual aos outros tipos de corrupção, o
abuso da investidura pública lesiona a confiança do cidadão no
governo e, no extremo, nas instituições democráticas. Por isso
que se procura “isolar” os funcionários de potenciais formas
de “contágio”, ainda que no geral os períodos variem de acordo
com as circunstâncias particulares e o âmbito legislativo de cada
nação, mas em geral excedem em muito os 40 dias.
A Organização das Nações Unidas reconhece a necessidade de
quarentena no artigo décimo segundo de sua Convenção contra a
Corrupção, que versa sobre a corrupção no setor privado e busca

prevenir os conflitos de interesses impondo restrições apropriadas,


durante um período razoável, às atividades profissionais de ex-fun-
cionários públicos ou a contratação de funcionários públicos no setor
privado através da renúncia ou jubilação quando essas atividades ou
essa contratação estejam diretamente relacionadas com as funções
desempenhadas ou supervisionadas por esses funcionários públicos
durante sua permanência no cargo.1

A Organização dos Estados Americanos (OEA) faz eco da


necessidade de quarentena, ainda que não esteja expressa na
Convenção Interamericana contra a Corrupção, 2 senão no
mecanismo estabelecido para dar seguimento a sua implemen-
tação (MESISIC).3 Na primeira rodada de análise do Comitê
de Experts do MESISIC, concluída em 2006, foi determinado
o estado da legislação sobre corrupção no sistema interame-
ricano e foram formuladas recomendações sobre a adoção de
mecanismos idôneos para combatê-la. Uma das recomendações
mais frequentes em matéria de conflitos de interesses foi a de
considerar a incorporação nos sistemas jurídicos de uma

norma que limite a participação de ex-servidores públicos, incluindo


os de alto escalão, na gestão de certos atos e em geral em situações que
possam levar ao aproveitamento indevido da condição de ex-servidor
público, em um prazo razoável, e sem afetar de maneira absoluta seu
direito constitucional ao trabalho.

491
A quarentena busca, então, prevenir as múltiplas formas
de corrupção que podem surgir depois que os funcionários pú-
blicos deixem seus cargos. A Organização para a Cooperação
e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem tipificado cinco
manifestações que podem tomar este tipo de corrupção:4 a
busca de emprego futuro, o lobbying pós-emprego, o “câmbio
de bandos”, o uso de informação privilegiada e o retorno de
ex-personalidades à função pública. Geralmente afetam pessoas e
burocratas do mais alto escalão, membros dos poderes supremos
e administradores de empresas estatais. Por meio da quarentena,
se pretende reduzir os incentivos ao uso indevido de influência
no período de pós-emprego, impondo um período de espera. A
quarentena procura balancear este objetivo e a necessidade de
proteger os direitos e atrair os talentos de profissionais cada vez
mais móveis entre a função pública e a função privada.
A primeira categoria de corrupção depois do serviço público
evidencia que os abusos de ex-servidores podem ter origem
ainda estando estes na função pública. Eles utilizam suas posi-
ções e o poder de influência para melhorar suas possibilidades
de emprego, antecipando deixar a função pública. Eles podem
lograr a deixar a função pública dando tratamento preferencial a
organizações que poderiam empregá-lo, entre outras formas, me-
diante o relaxamento na aplicação de regulações, o pagamento
de subsídios ou o favorecimento com propinas. A imposição
de um período de quarentena reduz o atrativo potencial destas
oportunidades, ao estender o tempo de benefício potencial, aumen-
tando assim a certeza de que o funcionário possa vinculá-la com
seus atos presentes.
O lobbying depois de deixar o emprego público leva a um
conflito de interesses quando o funcionário o realiza ante seu
antigo empregador, em benefício próprio ou de terceiros, já que
seus antigos colegas podem se sentir indevidamente pressionados
ou obrigados a dar-lhe trato preferencial não acessível a outros.
Dito trato preferencial pode ir desde o acesso privilegiado à infor-
mação a consultas secretas e até ao favorecimento em decisões.

492
Resulta evidente como um período de quarentena nestes casos
pode ajudar a debilitar os nexos dos funcionários que poderiam
dar sustentação aos atos de corrupção.
A problemática do “câmbio de bandos” surge quando um ex-
-funcionário público representa um terceiro em uma negociação
com o governo, em um processo disciplinar ou contencioso, ou
em qualquer outro ato oficial, em que haja um papel de respon-
sabilidade durante seu desempenho prévio na função pública.
Por exemplo, um inspetor de uma superintendência financeira
que auditou os livros de uma entidade bancária e, por conta
disso, participou no processo disciplinar, incorreria em um sério
conflito de interesses se, ao deixar a superintendência, passasse
a representar o banco em um processo de apelação sobre esse
mesmo processo.A quarentena, ao dar tempo para que os processos
sigam seu curso, diminui as possibilidades de enfrentar esse tipo
de situações conflitivas.
A informação privilegiada é toda aquela de caráter confi-
dencial, a que os funcionários públicos têm acesso devido à sua
posição. Também inclui informação que não tem sido classificada
como confidencial, mas que não é colocada à disposição do público.
Exemplos de informação privilegiada incluem: informação clas-
sificada do governo sobre segurança nacional ou orientação de
políticas, dados de caráter privado ou pessoal, segredos comer-
ciais ou de marcas, e qualquer outra informação que por norma
ou disposição não se considera de domínio público. Quando
algum funcionário utiliza tal informação em benefício próprio
ou de terceiros havendo deixado seu posto público, comete um
abuso pela vantagem inapropriada que a informação lhe confere.
Se bem que não é dado impedir aos funcionários demitentes o
uso legítimo do conhecimento e das habilidades obtidas durante
seu emprego no setor público, a quarentena antecipa e ajuda a
evitar o conflito de interesses que surge destas circunstâncias ao
impor uma espera razoável entre a aquisição da informação e a
oportunidade para seu uso. Ainda que, nem sempre, a informação

493
privilegiada, no geral, tenda a perder relevância com o avançar
do tempo.
O retorno de ex-aposentados à função pública pode ser
problemático se ditos aposentados receberam algum benefício
econômico para abandonar sua posição, já que a razão para este
benefício – a pensão, a eliminação de postos não necessários ou
redundantes, a mobilidade do trabalho do setor público – se
invalida com a reintegração do aposentado à sua função. Se os
aposentados podem reintegrar-se a suas posições com relativa
facilidade, terão um incentivo para pensar circunstâncias que
propiciem liquidação e posterior reinserção, possivelmente com
novas vantagens salariais e de trabalho. A quarentena elimina
essa facilidade, diminuindo os incentivos que favorecem o abuso
e ao mesmo tempo salvaguardando as circunstâncias legítimas
que justificam plenamente a reinserção de ex-funcionários na
gestão pública.
Como já foi sugerido, a norma de quarentena na América
Latina é incipiente e varia significativamente entre os países.
Mais ainda, as disposições que regulam este tipo de corrupção,
quando existem, tendem a estar dispersas em um conjunto
mais amplo de leis, regulamentos e decretos que norteiam a ética
e o emprego na função pública. Graças em parte aos esforços
do MESISIC, boa parte dos países da região tem reconhecido a
importância de tipificar estes e outros delitos de corrupção, se
bem que nem todos têm logrado avançar o suficiente na imple-
mentação de medidas para sua identificação e penalização. Sem
pretender dar um tratamento exaustivo, alguns exemplos de regu-
lação existente em matéria de quarentena se detalham a seguir.
No Brasil há limitações a ex-funcionários em um conjunto de
normas de conduta aplicáveis à totalidade dos agentes públicos
– funcionários, servidores e empregados –, nos três poderes da
União, em nível federal e que estabelecem a proibição, por quatro
meses (o que corresponde ao termo quarentena), para o exercício
de atividades incompatíveis com o cargo anteriormente exercido,
depois de desvincular-se da administração pública (artigo 2 do

494
Decreto 4.187 de 08 de abril de 2002, que regulamenta os artigos
6 e 7 da Medida Provisória nº 2225-45 de 04 de setembro de
2001). Entretanto, as restrições não se aplicaram aos membros
dos governos estatais e nem aos ministros, porque as exceções e
os vazios da lei parecem ser amplamente explorados.5
Costa Rica modificou suas leis contra a corrupção no ano de
2004, em parte como resposta a uma série de espetaculares atos
de corrupção, alguns deles envolvendo altos ex-aposentados da
função pública. O artigo 53 da lei contra a corrupção e o enri-
quecimento ilícito estabeleceu o delito de “proibições posteriores
ao exercício do cargo” para sancionar aos ex-servidores públicos
que, tendo participado como funcionários públicos em algumas
fases do processo de desenho, elaboração de especificações
técnicas, de planos ou de processos de seleção, adjudicação,
inspeção ou fiscalização, em um processo de licitação pública,
aceitem dentro do ano seguinte a celebração de contrato, emprego
ou participação no capital social de pessoas físicas ou jurídicas
que contratam com a administração.6
O Chile tem implementado uma série de modificações em
seu regime de controle da corrupção, em atenção a uma série de
recomendações formuladas no encontro do MESISIC, incluindo,
em matéria de pós-emprego, a lei 18.575, artigo 56, no teor da
qual se declaram incompatíveis as atividades de ex-autoridades
ou ex-funcionários de uma instituição fiscalizadora que implique
uma relação de trabalho com entidades do setor privado, sujei-
tas a fiscalização desse organismo. Esta incompatibilidade será
mantida até seis meses depois de haver expirado em suas funções.
A Argentina impõe mediante a lei 25.188 de ética no Exercício
da Função Pública uma restrição de três anos à atuação de funcio-
nários que tenham participado no “planejamento, desenvolvimento
e concretização de privatizações ou concessões de empresas ou
serviços públicos” e nos entes ou comissões reguladoras dessas
empresas de serviços (art. 14).
Como pode ser visto, os períodos de quarentena variam signi-
ficativamente, de quatro meses a três anos. Nos regulamentos

495
emergentes na América Latina não diferem dos da OCDE, nos
quais o período de variação é ainda mais amplo: entre seis meses
e cinco anos.7 Contudo, em certas modalidades de conflitos de
interesses, como o uso de informação confidencial ou o “câmbio
de bandos”, a OCDE tem considerado que a quarentena não
deve ter limites.

NOTAS
1
Número dois, inciso e.
2
Subscrita em Caracas, Venezuela, em 29 de março de 1996, ratificada por 28
países do sistema interamericano, incluídos os países mais importantes por tama-
nho e população, como os Estados Unidos, Canadá, Brasil, México, Argentina,
Colômbia, Venezuela, Chile e outros. Veja <http://www.oas.org/juridico/spanish/
firmas/b-58.html>.
3
Ao mesmo tempo, o artigo III da Convenção, no inciso primeiro, caracteriza
as normas objeto de tratado como aquelas orientadas a “prevenir conflitos de
interesses”, categoria entre a que figura o termo.
4
PUBLIC INTEGRITY and Post-Public Employment: Issues, Remedies and
Benchmarks.
5
<http://www.bertelsmann-transformation-index.de/110.0.html?L=1>.
6
A constitucionalidade desta norma foi questionada diante da câmara constitu-
cional da Corte Suprema de Justiça em recurso ainda por resolver.
7
OECD GUIDELINES for managing conflict of interest in the public service:
Report on implementation.

REFERÊNCIA
PUBLIC INTEGRITY and Post-Public Employment: Issues, Remedies and
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496
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sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autor de Dom Pedro
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sidade de São Paulo (USP). Organizadora de Leituras críticas
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sidade Federal Fluminense (UFF). Autor de Rebeliões do Brasil
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sidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Autor de Legalidade
libertária, Lumen Juris, 2006.

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de utopias agrárias, Editora UFMG, 2008.

Marcelo Barros Gomes – Analista de controle externo do


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Myrian Sepúlveda dos Santos – Professora de sociologia da


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Autora de
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Olgária Chain Féres Matos – Professora de filosofia da Univer-


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Raul da Silva Navegantes – Professor de sociologia da Univer-


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sem medo – Hobbes escrevendo contra seu tempo, Editora
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Ricardo de Melo Araújo – Consultor geral do Tribunal de


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dade Federal de Minas Gerais (UFMG). Autor de Introdução à
história dos partidos políticos brasileiros, Editora UFMG, 2008.

Rosangela Patriota – Professora de história da Universidade


Federal de Uberlândia (UFU). Coorganizadora de A História
invade a cena, Hucitec, 2008.

Rubem Barboza Filho – Professor de ciência política da Univer-


sidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Autor de Tradição e
artifício: iberismo e barroco na formação americana, Editora
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Rubens Goyatá – Doutorando em ciência política pela Univer-


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Sérgio Cardoso – Professor de filosofia da Universidade de São


Paulo (USP). Organizou Retorno ao republicanismo, Editora
UFMG, 2004.

Vânia Vieira – Diretora de Prevenção da Corrupção da Contro-


ladoria Geral da União (CGU).

Venício A. de Lima – Pesquisador da Universidade de Brasília


(UnB) e professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing
(ESPM). Coorganizou Rádios comunitárias: coronelismo eletrô-
nico de novo tipo, Observatório da Imprensa, 2007.

Wanderley Guilherme dos Santos – Professor titular (apo-


sentado) de teoria política da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Autor de O cálculo do conflito: impasse e crise
na política brasileira, Editora UFMG, 2006.

503
Esta presente edição foi composta pela
Editora UFMG e impressa pela Imprensa
Universitária da UFMG, em sistema
offset, papel pólen soft 80g (miolo)
e cartão supremo 250g (capa), em
julho de 2012.

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