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Estudos Jurídicos

40(2):57-59 julho-dezembro 2007


© 2008 by Unisinos

Por que e onde buscar um princípio fundador para os direitos humanos?


Why and where should one look for a basic principle for human rights?

Alfredo Culleton1

Resumo: Neste artigo, queremos contribuir com o esclarecimento de duas questões relevantes
na discussão sobre os direitos humanos, quais sejam: em primeiro lugar, se há alguma necessida-
de de uma fundamentação para eles, e, em segundo, se essa fundamentação pode ser uma
fundamentação racional e quais as condições de possibilidade para uma tal fundamentação,
destacando os limites das pretensões de fundamentação existentes.

Palavras-chave: direitos humanos, fundamentação racional, lei natural.

Abstract: This article intends to contribute to the clarification of two relevant questions in the
debate on human rights: first, whether they need any foundation and, second, whether this
foundation can be a rational basis and what are the conditions of possibility for such a
1
Professor do PPG em
foundation. In doing this, it highlights the limits of the existing proposals for such a foundation.
Filosofia e PPG em Direito da
UNISINOS. E-mail:
culleton@unisinos.br Key words: human rights, rational foundation, natural law.

É evidente que a discussão acerca dos diretos humanos Mas o fato da ONU pretender para os direitos huma-
está centrada na questão jurídico-política, mas pode ser esten- nos um caráter de universalidade obriga a uma justificação e
dida, com igual propriedade, a outros campos de reflexão e explicitação do que isso possa significar. Ao longo da histó-
atuação humanos, mas o epicentro da questão é, em última ria, temos conhecido infinidade de ideologias que, escudadas
instância, de natureza filosófica principalmente no que se re- numa pretensa evidente universalidade, cometeram sumas
fere à sua fundamentação teórico-racional. arbitrariedades.
As questões que resumidamente levantaremos neste tex- Mas os direitos fundamentais, enquanto universais, para
to são fundamentalmente duas: Em primeiro lugar, se há não serem uma pura estratégia política ou uma ideológica
alguma necessidade de fundamentação racional, e, em segun- imperialista a mais, porém um valor em si mesmos, isto é,
do lugar, se é possível uma tal fundamentação, isto é, quais as um valor absoluto, devem ter a possibilidade de uma funda-
condições de possibilidade para uma tal fundamentação des- mentação racional, de serem reconhecidos, tornados auto-
tacando os limites das pretensões de fundamentação existen- evidentes por meio da razão humana, e esta fundamentação
tes. Não arriscaremos, neste trabalho, formular uma propos- deve ter pretensões de verdade e universalidade. Faz-se neces-
ta alternativa de fundamentação racional, já que sequer sabe- sária uma fundamentação racional-argumentativa que torne
mos da sua necessidade e possibilidade. possível, a todos os seres humanos, não só o reconhecimen-
Apesar de que os chamados Direitos Fundamentais do to da validade, veracidade e universalidade dos direitos hu-
Homem, da maneira como os conhecemos, existam de ma- manos, mas a urgência, no sentido de urget (isto é, impulso,
neira positivada em constituições, pactos e declarações, pa- compromisso), de seu reconhecimento, usufruto, respeito e
rece não ser suficiente, para justificar o seu reconhecimento e cumprimento.
cumprimento, a pura vontade daqueles que os instituíram. Esta questão das condições de universalização dos direi-
Alguns direitos particulares se justificam pela própria auto- tos humanos nas suas diferentes formulações se junta com
ridade daqueles que os promulgam, mas direitos que se outras questões como estas:
pretendem universais, isto é, válidos para todo o gênero - são as teorias clássicas do direito, no início da moderni-
humano, exigem outro tipo de fundamentação, sem com dade, uma mera articulação de uma doutrina implícita, mes-
isto descartar a necessidade de serem positivadas. Mas não mo que desconhecida, em toda e qualquer sociedade, ou
podem estar fundadas na pura norma; se assim fosse, deve- - é a idéia de direitos humanos uma idéia peculiar da
ria ser justificada a autoridade normatizadora. É assim que cultura ocidental? ou, mesmo sendo uma idéia puramente
autores como Hobbes, Kelsen e os positivistas em geral ocidental, é capaz de ser extensiva a todos os homens, ou
resolvem o problema, mas nunca pretenderam caráter de - quando foi que a idéia de direitos naturais encontrou
universalidade. explícito reconhecimento e justificação? ou

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Alfredo Culleton

- que contexto histórico e filosófico o tornaram possível? to racional significa uma auto-evidência da razão, algo que
São questões acerca das quais historiadores, filósofos e qualquer sujeito que seja capaz de reconhecer o princípio de
politólogos mostram profundas dificuldades e divergências, não contradição seja igualmente capaz de evidenciar.
mas que entendemos confluir na necessidade de uma funda- A fundamentação dos Direitos Humanos tem que ser,
mentação de tipo racional argumentativa. pois, uma fundamentação racional-discursiva e não de auto-
As Declarações normalmente parecem mais com o Credo ridade. Nessa perspectiva, é uma fundamentação orientada,
de Nicéia, profissões de fé, do que com um argumento racio- não ao esclarecimento das bases do reconhecimento histórico
nal. Jefferson, na Declaração da Independência dos Estados desses direitos, mas ao descobrimento dos princípios racio-
Unidos de América diz assim: nais que conduzem até a necessidade racional da sua procla-
mação e garantia. Mas este enfoque não desconhece a história
We hold these truths to be self-evident, that all men are nem a esquece.
created equal, that they are endowed by their Creator with
A afirmação e defesa crítica dos direitos humanos,
certain unalienable Rights, that among these are Life,
Liberty and the pursuit of Happiness – That to secure these dirá Benito de Castro Cid (1990, p. 219), deve se apoiar
rights, Governments are instituted among Men, deriving
their just powers from the consent of the governed – That sobre princípios que a correspondente discussão racional
whenever any Form of Government becomes destructive estabelecer como ponto de apoio e como referências
of these ends, it is the Right of the People to alter or últimas para a ordenação da vida social dos seres humanos.
abolish it and to institute new Government [...]2 (O Portal E não parece possível basear essa afirmação e defesa em
da História, 2000-2005). opções ou decisões não fundadas racionalmente. Desta
maneira, nem a acumulação de dados históricos ou
O mesmo acontece com a Declaração Universal de 1948, a sociológicos favoráveis, nem o fato da efetiva incorporação
a grandes Declarações, por muito solenes e importantes
qual precedem aos 30 artigos que a compõem, sete consideran- que sejam, podem levar a ser consideradas
dos, isto é, sete consultas ao sideral, aos astros, porque não se fundamentações suficientemente válidas.
consegue dizer de onde é que tira a idéia de que os homens
são iguais em dignidade e direitos, ou livres por natureza. No Dentro da teoria geral dos Direitos Humanos, a ques-
caso daqueles que acreditam em Deus não fica tão difícil reco- tão que exige por primeiro uma resposta radical é se é ou não
nhecer a igualdade de direitos e dignidade, pois seriam iguais razoável perguntar pelo fundamento racional dos Direitos
e dignos perante Deus por serem as suas criaturas, ou iguais Humanos. Parecem estar crescendo cada dia os adeptos à tese
entre os escolhidos no caso da tradição judaica, assim como do Norberto Bobbio (1966), que num artigo intitulado “A
para os cidadãos que, perante um Estado, são regidos pela ilusão do fundamento absoluto”, defende a não existência
mesma lei, ou os sócios de um clube perante um estatuto, de uma fundamentação racional de validade absoluta para os
mas, quando não temos nenhum desses elementos, temos Direitos Humanos. A sua conclusão de que “o problema da
que nos perguntar como é possível reconhecer igualdade e fundamentação dos direitos humanos tem alcançado sua
dignidade. Mesmo que a ciência nos evidenciasse uma igual- solução na Declaração Universal de Direitos Humanos apro-
dade através de uma estrutura genética básica comum, isso vada pela Assembléia geral das Nações Unidas em 10 de de-
não implicaria o reconhecimento de igualdade de direitos ou zembro de 1948” (Bobbio, 1966, p. 89) é assumida e repetida
dignidade. com bastante entusiasmo por diversos autores de renome na
As soluções clássicas a estas questões podem ser reunidas Espanha como evidenciado nos artigos compilados no livro
em duas grandes vertentes; por um lado, a chamada jusnatu- de Javier Muguerza (1989).
ralista, que supõe a explicitação ou positivação de algo pró- E ainda se reproduz a velha tese da ficção e do sem-senti-
prio e natural à condição humana que é evidenciado pela ra- do dos direitos naturais, tese formulada por Bentham (1988)
zão; por outro, a chamada positivista, que supõe a positiva- na sua Introducción aos princípios da moral e da legislação e procla-
ção de uma vontade geral com pretensões de universalidade. mada nos nossos dias por um dos maiores expoentes da
Para os primeiros, a universalidade se encontra na natureza e, ética comunitarista, como é MacIntyre no seu famoso After
nos segundos, a universalidade se encontra na pretensão. Virtue (1984), com as seguintes palavras “não existem tais
Natureza aqui deve ser entendido não no sentido ecológico, direitos (os direitos humanos) e crer neles é como crer em
mas no sentido filosófico, qual seja, o de razão de ser de algo, bruxas ou unicórnios” (p. 189). Desta maneira, a inegável
aquilo que faz que algo seja o que é. dificuldade e o pressuposto fracasso de muitas das tentativas
Mas o que é inegável é a busca de razões ou argumentos de fundamentação dos direitos humanos são utilizados para
através dos quais resulte racionalmente exigível que os direi- confirmar a impossibilidade de qualquer fundamentação e a
tos humanos sejam reconhecidos. A fundamentação não pode própria inexistência de tais direitos.
ser colocada nos dados (fáticos, históricos, sociológicos, psi- Por outro lado, frente a estes posicionamentos pessimis-
cológicos, etc.), mas em razões, a não ser que atribuamos tas ou céticos, existem não só inúmeros argumentos que
razões à história, como faz a tradição marxista. Um argumen- implicam uma disposição firme de encontrar e formular um

2
“Nós temos por auto-evidentes estas verdades, de que os homens são criados iguais, estando eles dotados pelo seu criador com certos direitos inalienáveis,
entre os quais estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Que, para assegurar estes direitos, os homens instituem governos, derivando o seu justo poder
do consentimento dos governados, e que, quando qualquer governo deixar de perseguir estes fins, o Direito das pessoas as autoriza a destituí-lo ou derrubá-lo”
(Tradução livre do autor).

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Por que e onde buscar um princípio fundador para os direitos humanos?

fundamento, assim como proclamações explícitas da necessi- quer fundamentação racional tem sempre uma validade abso-
dade de aceder a um fundamento suficientemente firme para luta particular e não uma validade absoluta universal.
onde possam fluir as inquietações teóricas ou para assegurar É próprio da fundamentação racional se construir dentro
uma aceitação prática generalizada e eficaz. de um determinado contexto de pensamento racional, em
Dentro desta linha, alguns autores têm defendido a con- conseqüência, tal fundamentação é válida (ou não o é) so-
veniência de dotar os direitos humanos de múltiplas e varia- mente dentro desse contexto e em relação aos axiomas da-
das fundamentações teóricas e práticas, proclamando, ao mes- quele sistema. Em conseqüência, não tem por que excluir
mo tempo, que qualquer fundamentação é válida desde que outras possíveis fundamentações de qualquer outro sistema
se encaixe num sistema teórico ou motive uma atitude prática de racionalidade. Por isso, há de se concluir que, num univer-
de realização efetiva dos direitos. so plural de racionalidade, dá-se sempre a possibilidade de
Outros assumem um critério muito mais restritivo e che- que existam várias fundamentações absolutas dos direitos
gam à conclusão de que só desde uma perspectiva jusnaturalista faz humanos.
sentido colocar o problema da fundamentação dos direitos humanos, A modo de conclusão, resumo que temos visto como a
como é o caso de Perez Luño (2004) e MacPherson (2003). fundamentação dos direitos humanos, enquanto pretende
Isto porque as outras perspectivas gerais de análise conside- ser crítica e racional, tem de ser conteúdo de uma argumenta-
ram o problema resolvido já de raiz, como no caso dos realis- ção orientada a descobrir e formular as razões ou motivações
tas, aqueles que o consideram evidente, ou como um proble- lógicas que têm a capacidade de fazer surgir, na maioria dos
ma sem solução, como é considerado pelos positivistas. homens, o convencimento da atual necessidade iniludível de
O que nos parece fundamental é que é inevitável chegar à reconhecer e garantir o usufruto dos direitos humanos.
conclusão de que a fundamentação racional dos direitos hu- Vimos também como o fundamento racional dos direi-
manos não só é possível, mas também conveniente e neces- tos humanos deve ser algum tipo ou princípio de razão so-
sária, dado que a base racional é a única que permite justificar bre o qual possa se desenvolver esse tipo de processo argu-
plenamente a defesa dos valores jurídicos e políticos. Não mentativo rigoroso.
parece justificável a tese da impossibilidade lógica das funda- Ambas as afirmações colocam de manifesto a importância
mentações racionais, mas isto é só o primeiro passo para dos axiomas nesta tentativa de fundamentação. Nenhum tipo
encontrar ou construir uma fundamentação racional dos di- de argumentação pode se desenvolver se não se assumem cer-
reitos humanos. tos princípios ou pressupostos que têm o caráter de axiomas
A tese de Bobbio de que não pode se encontrar nem comumente aceitos ou aceitáveis e que como tais ficam fora da
existe um fundamento absoluto dos direitos humanos tem própria discussão e atuam como ponto de partida. Estes axio-
chegado a ser uma espécie de tópico sagrado da teoria geral mas não podem ser discursivos e, sim, intuitivos, no sentido
destes direitos; mas é curioso, já que é difícil pensar em discu- de não medidos, que são aceitos ou não e que devem ser colo-
tir esta questão sem a pretensão, implícita ou explícita, de cados como propostas. Mas esta é outra discussão.
descobrir um fundamento resolutório, no sentido de que tal
fundamento tenha uma total e definitiva capacidade de con- Referências
vencimento. Nesse sentido, pretende ser uma fundamenta-
ção absoluta. BENTHAM, J. 1988. Introducción aos princípios da moral e da legisla-
O que significa essa pretensão? A atribuição do caráter ção. São Paulo, Editira Abril Cultural, 319 p.
absoluto a uma fundamentação equivale unicamente à afir- BOBBIO, N. 1966. Le fondement des droits de l’omme. Firenze, La
Nuova Italia, 309 p.
mação de que a validade dessa fundamentação não fica subor-
CASTRO CID, B. 1990. La fundamentación racional de los
dinada a nenhum pressuposto alheio ao contexto racional derechos humanos. Persona y Derecho, 22:214-228.
dentro do qual ela mesma se formula. Em outras palavras, MACINTYRE, A. 1984. After Virtue: A Study in Moral Theory.
estamos dizendo que se funda em princípios aos quais se Notre Dame, University of Notre Dame Press, 236 p.
pode atribuir uma validade atual indiscutível, e que no discur- MACPHERSON, C.B. 2003. La democracia liberal y su época.
so fundamentador não pode se detectar inconsistências no Madrid, Alianza Editorial, 162 p.
momento em que é formulado. MUGUERZA, J. 1989. El fundamento de los Derechos Humanos.
Entendidos os termos neste sentido, podemos formular a Madrid, Ed. Debate, 346 p.
tese de que toda fundamentação racional própria (isto é, coerente com PÉREZ LUÑO, A. 2004. Los derechos fundamentales. Madrid,
Tecnos, 233 p.
seu peculiar caráter) tem uma validade racional absoluta. Mas, ao mes- PORTAL DA HISTÓRIA, O. 2000-2005. A Declaração da Inde-
mo tempo, devemos dizer que tal fundamentação está aberta à pendência dos Estados Unidos da América. Disponível em:
possibilidade de que sua validade não seja reconhecida por http://www.arqnet.pt/portal/teoria/declaracao_vorig.html,
todos os sujeitos nem chegue a ser ilimitada no tempo. Qual- acessado em 23/10/2007.

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