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Copyright © Devair Antônio Fiorotti, 2019.

Panton pia’: Registro na Terra Indígena São Marcos © Devair Antônio


Fiorotti

Coordenação e concepção: Devair Antônio Fiorotti


Capa: Otávio Coelho, Devair Antônio Fiorotti
Diagramação: Otávio Coelho, Abrão Batista
Revisão: Paulino Batista, Sonyellen Fonseca Ferreira

Fiorotti, Devair Antônio.


Panton pia’: Registro na Terra Indígena São Marcos. Vol. I. Boa
Vista: UERR edições; Wei, 2019.

343p.

ISBN 978-85-61924-09-6

1. Narrativas indígenas 2. Circum-Roraima 3. Macuxi. 4. Taure-


pang 5. História de vida. I Título

CDU 398

Boa Vista
UERR Edições
Wei Editora
2019
SUMÁRIO
Créditos, 9
Apresentação, 13
ENTREVISTAS
Clemente Flores e Manoel Bento Flores, 25
Manoel Bento Flores, 71
Armando Magalhães, 115
Valdélio Perez Ribeiro, 157
Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre Magalhães, 183
Lucinézio Peres Ribeiro, 223
Sebastiana Peres dos Santos, 239
José Vitor da Silva, 253
Aprígio Ramos, 287
Áurea da Silva Galvão e Seu Genário, 299
Seu Oliveira, 309
Domício Pereira da Silva e Regina Santos da Silva, 319
A todos os entrevistados,
Principalmente a Clemente Flores e
Eduardo Magalhães
(in memoriam).
Agradecimentos
Agradeço primeiramente a todas as comunidades indíge-
nas do Alto São Marcos que permitiram a minha presença
em seu âmbito. Vocês são partes efetivas de minha vida, de
minha memória.
Aos alunos de Iniciação Científica, sem eles esse trabalho
não estaria pronto: Ana Maria Alves de Souza, Eliana Almeida,
Keyty Almeida de Oliveira, Leonor Cravo, Michele Rubistein,
Robson Félix de Souza, meus agradecimentos.
Agradeço ao apoio do Paulino Batista, Airton Vieira,
Lucimar Sales, Rosiclei Liberal, Carmen Vera Nunes Spotti,
Huarley Mateus do Vale Monteiro, Karlyson Roberto Veras
Rodrigues.
Agradeço à Universidade Estadual de Roraima pelo apoio
e confiança no trabalho a ser desenvolvido, bem como ao
CNPQ pelo seu financiamento.
À Carla Monteiro de Souza, por ter me apresentado a
metodologia da História Oral.
Ao Rivelino Pereira de Souza e Zacarias Fernando de Sou-
za Loiola, meus agradecimentos pelas traduções de Macuxi
e Taurepang, respectivamente.
A todos que direta e indiretamente contribuíram para
realização do projeto.
9

CRÉDITOS
Dentro da primeira fase do projeto Panton pia’: Narrativa
Oral Indígena, registro e análise, seguem-se as atividades
desenvolvidas por cada membro, quanto à coleta e proces-
samento dos dados coletados. As atividades dividiram-se nas
seguintes funções: entrevistador, assistente de entrevista,
transcritor, conferência de entrevista e copidesque. Algumas
atividades foram exercidas por mais de um componente do
grupo. A seguir estão os responsáveis, a atividade exercida
e as entrevistas trabalhadas. Algumas entrevistas tiveram
participação de mais de um informante.

AIRTON VIEIRA
Conferência de fidelidade: Armando Magalhães; Áurea
da Silva Galvão e seu Genario; José Vitor da Silva; Manoel
Bento Flores; Sebastiana Peres dos Santos; seu Avelino;
Valdélio Perez Ribeiro.
Copidesque: Sebastiana Peres dos Santos.
10

ANA MARIA ALVES DE SOUZA


Transcritora: Aprígio Ramos; Clemente Flores e Manoel
Flores; Domício Pereira da Silva e Regina Santos; José Vitor
da Silva; Manoel Bento Flores; Sebastiana Peres dos Santos.

CARMEN VERA NUNES SPOTTI


Assistente de entrevista: dona Rosa, Filha Antonina, Filha
Neli; dona Tereza e filha e intérprete dona Luisa; tuxaua João.
Transcritora: dona Rosa, Filha Antonina, Filha Neli; dona
Tereza e filha e intérprete dona Luisa; tuxaua João.

DEVAIR ANTÔNIO FIOROTTI


Entrevistador: Aprígio Ramos; Armando Magalhães; Áu-
rea da Silva Galvão e seu Genario; Clemente Flores e Manoel
Flores; Domício Pereira da Silva e Regina Santos; José Vitor
da Silva; Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre Magalhães;
Manoel Bento Flores; Regina Santos da Silva; Sebastiana
Peres dos Santos; seu Oliveira; Valdélio Perez Ribeiro.
Copidesque: Aprígio Ramos; Armando Magalhães; Áurea
da Silva Galvão e seu Genario; Clemente Flores e Manoel
Flores; Domício Pereira da Silva e Regina Santos; dona Rosa,
Filha Antonina, Filha Neli; dona Tereza, filha e intérprete dona
Luisa; José Vitor da Silva; Letícia Barbosa e Eduardo Alexan-
dre Magalhães; Manoel Bento Flores; Sebastiana Peres dos
Santos; seu Oliveira; tuxaua João; Valdélio Perez Ribeiro.
Conferência de Fidelidade: Armando Magalhães; Áurea da
Silva Galvão e seu Genario; Clemente Flores e Manoel Flores;
Domício Pereira da Silva e Regina Santos; Estevan Alves;
José Vitor da Silva; Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre
Magalhães; Manoel Bento Flores; Maria Luisa Magalhães;
Narciso Macuxi; Sebastiana Peres dos Santos; seu Oliveira;
Valdélio Perez Ribeiro.

HUARLEY M. DO VALE MONTEIRO


11

Copidesque: Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre Ma-


galhães.
Conferência de fidelidade: dona Rosa, Filha, Filha Neli;
dona Tereza e filha e intérprete dona Luisa; tuxaua João.

KEYTY ALMEIDA DE OLIVEIRA


Transcritora: Áurea da Silva Galvão e seu Genario; Estevan
Alves; Valdélio Perez Ribeiro.

LUCIMAR SALES
Assistente de entrevista: Clemente Flores e Manoel
Flores; Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre Magalhães;
Lucinete Peres Ribeiro; Manoel Bento Flores; Sebastiana
Peres dos Santos; Valdélio Perez Ribeiro.

MICHELE RUBISTEIN
Transcritora: Armando Magalhães; Letícia Barbosa e
Eduardo Alexandre Magalhães.

RIVELINO PEREIRA DE SOUZA.


Transcritor e tradutor de macuxi.

ROSICLEI LIBERAL
Entrevistadora: dona Rosa, Filha Antonina, Filha Neli;
dona Tereza e filha e intérprete dona Luisa; tuxaua João.

ZACARIAS FERNANDO DE SOUZA LOIOLA


Transcritor e tradutor do taurepang
12
13

Apresentação
Panton pia’ é um livro de histórias. “Panton” significa
história em macuxi e “pia’ ”, junto, perto: junto, perto
da história. Isso a princípio já seria muito, principalmente
quando diz respeito a histórias indígenas, a suas narrativas.
Mas tornou-se muito mais para mim, quase uma questão de
1 honra, pois é uma tentativa de contribuir no processo de
Minha orientadora de
Mestrado e Doutorado, valorização dos indígenas do Alto São Marcos, localizado
pela Universidade de Bra-
sília.
no município de Pacaraima, em Roraima, de três etnias: os
indígenas macuxi, taurepang e wapixana.
Cheguei em Boa Vista há doze anos e ainda ressonam até
hoje as palavras de Ana Vicentini de Azevedo: 1 “Já pensou
o que você pode estudar lá?” Estávamos conversando sobre
os estudos dos aspectos mitológicos indígenas, quando
ela pronunciou essas palavras. Contudo, quando iniciei as
entrevistas, veio o primeiro susto: onde estaria o que bus-
cava? Onde estariam as histórias mitológicas desses povos,
as grandes narrativas que buscava? Simplesmente, da forma
como imaginava, elas não surgiram e nem mais existiam na
boca da grande maioria dos entrevistados. Todavia algo
novo surgia nessas entrevistas: a história de vida desses in-
14

divíduos, tão parecidas a da grande maioria dos brasileiros:


explorados, escravizados algumas vezes, passando por um
processo de angústia diante do contato com a modernidade
e seu mercado cultural.
O presente material é parte do resultado do projeto de
pesquisa intitulado Panton pia’: Narrativa oral indígena,
registro e análise, que até o momento se focou nas terras
indígenas do Alto São Marcos e Raposa Serra do Sol, está
também localizada nos municípios de Normandia, Pacarai-
ma e Uiramutã, em Roraima. Esse projeto é financiado pelo
CNPQ desde 2007.
Até 2014, foram visitadas 23 comunidades e realizadas
39 entrevistas (27 homens e 12 mulheres), distribuídas as-
sim por etnia: 24 macuxis; 6 taurepangues; 6 wapixanas; 1
indeterminada. Entre esses, merece menção uma etnia cuja
tribo enquanto tal não mais existe: uma sapará-macuxi; e
outro que menciona wapixana e sua relação com o nome
karapiwa, sinônimo de wapixana ou mesmo da mistura de
wapixana com macuxi. Vinte dos entrevistados residem no
lavrado roraimense e 19 na região das serras, ao redor da
cidade de Pacaraima, sendo que as comunidades das serras
são em quase totalidade muito novas. Essas comunidades
foram criadas e têm-se desenvolvido muito na região por
causa da proximidade com o município de Pacaraima. Com
exceção das comunidades taurepangues da serra, principal-
mente Sorocaima I e Boca da Mata, e algumas macuxis, como
Aleluia e Sol Nascente, as outras comunidades apresentam
acentuada presença de indivíduos de etnias mistas, bem
como é muito comum encontrar indivíduos de pais cujas
etnias são diferentes, principalmente com casamentos entre
macuxi, taurepang e wapixana.
Até o momento, há quatro volumes prontos: três de
narrativas e um de cantos (eremukon) tradicionais. Este
volume é o primeiro a ser publicado. Neste material, alguns
relatos chamaram muita atenção. Por exemplo, a paixão de
um fazendeiro por uma jovem indígena. Ao ser desprezado,
ele simplesmente expulsou toda comunidade das terras
15

dos próprios indígenas, que fazendeiro considerava suas.


Noutro momento, encontramos histórias de pessoas que
eram dadas para serem criadas pelos fazendeiros. Esses
indígenas eram simplesmente escravizados, trabalhando de
graça nas fazendas, apanhando muitas vezes, sendo tratados
como animais. Ainda, a resistência dos indígenas é algo a ser
ressaltado. Quando da demarcação, muitos indígenas foram
literalmente guerreiros ao lutar por suas terras.
Longe de um imaginário nacional que associa o indígena
a uma visão romântica e idealizada, um índio com belos co-
cares, nu ou seminu, grandes e fortes, os entrevistados do
Alto São Marcos são indivíduos marcados por um processo
de desvalorização da própria cultura. Com a chegada dos
brancos, principalmente da igreja, sua língua foi chamada
de “gíria”, com toda carga pejorativa possível. Das comu-
nidades, com a chegada dos fazendeiros, eles foram para
2 fazenda ser empregados ou na cozinha ou como boiadeiros.
Devair Antônio Fiorotti.
“Narrativa oral em ques- Muitos também foram trabalhar no garimpo, principalmente
tão: cultura em contato
e imaterialidade na TI São
na Venezuela.
Marcos-RR”. In Allison
Leão (Org.). Amazônia: Li- Em relação à história de seu povo, panton, a igreja foi
teratura e cultura. Manaus: nefasta. Ela está presente na vida desses povos há pratica-
UEA, 2012.
mente dois séculos. A partir dos relatos, não houve nenhum
tipo de tentativa de conciliação entre o mundo cristão e a
3
Devair Antônio Fiorotti . realidade indígena. Como algumas entrevistas denunciam,
“Para pensar a realidade
indígena atual: diversida- simplesmente seria pecado recontar essas narrativas.2 Com
de cultural e identidade
indígena na TI São Marcos.
isso, em algumas comunidades, há pessoas que não sabem
In Carla Monteiro de Souza essas histórias, a não ser alguns resquícios. Por outro lado,
[et all]. Boa Vista:EDUFRR,
2013. quando há ainda anciões que sabem essas narrativas em al-
gumas comunidades, faltam pessoas para ouvi-las. A maioria,
pelo contato com o mundo não índio, não se identifica com
essas narrativas.3
Esse trabalho propõe-se a colaborar no entendimento do
que seria o indígena da Região do Alto São Marcos, a partir do
contato direto e contínuo com o mundo do outro, do nosso
mundo não índio. Ainda, buscar contribuir no processo de
valorização identitária desses povos, já que muitos já não se
identificam como indígenas, por causa do preconceito e da
16

falta de informação dos não indígenas e mesmo dos próprios


indígenas. Digo dos próprios indígenas, porque muitos não
entendem o processo de contato com o não índio e simples-
mente o vivem sem nenhuma reflexão. 4
O trabalho guiou-se prin-
cipalmente pelas orien-
tações de Verena Alberti:
Manual de História Oral.
Metodologia de trabalho Rio de Janeiro: FGV, 2004.

Agradecimento especial
As narrativas aqui apresentadas seguiram a metodologia à professora Carla Mon-
da História Oral, traduzida nos seguintes passos: Entrevista; teiro de Souza, da UFRR,
por ter me apresentado
Transcrição; Conferência de Fidelidade.4 à Metodologia da História
Oral e mesmo me orien-
Entrevista tando no percurso de seu
aprendizado.
Foi elaborado um roteiro para entrevista, contudo ele não
era rígido, podendo ser modificado no decorrer da entrevis-
ta. Essa flexibilidade objetivava não engessar a entrevista,
já que qualquer entrevista está sujeita ao desconhecido,
que é o outro, o entrevistado. Em praticamente todas as
entrevistas o caminho era guiado por certas “deixas” do
entrevistado, somente depois retomava-se o roteiro. Por
questões técnicas, o roteiro somente não foi adotado na
comunidade Boa Esperança.
O conteúdo do roteiro tratava desde a identificação do
entrevistado, passando pela realidade da comunidade onde
ele mora, até perguntas relacionadas às histórias de seu
povo, como pantonkon.
A maioria das entrevistas foram satisfatórias, em que o
entrevistado conseguia desenvolver o raciocínio, interagir e
até caçoar do entrevistador, como no caso da dona Letícia,
da comunidade Santa Rosa. Em outras, as respostas eram
monossilábicas. Contudo, optou-se em também incluir todas
as entrevistas transcritas aqui, pois é difícil definir o que é
efetivamente irrelevante dentro dos Estudos Culturais, locus
em que esse trabalho propõe a se inserir.
Com exceção da comunidade Nova Esperança, todas
as outras entrevistas foram realizadas por Devair Antônio
Fiorotti. Além disso, vale destacar que os assistentes de en-
trevistas, algumas vezes, também fizeram perguntas. Ainda,
17

por serem realizadas em comunidades indígenas, em espaços


abertos, algumas vezes pessoas chegavam e interferiam nas
respostas, opinavam, como na entrevista com Clemente Flo-
res. Quando isso ocorreu e não identificamos quem era e a
fala era relevante, optou-se em identificá-lo como “Alguém”.
A grande maioria das entrevistas foi individual. Contudo,
as realizadas na comunidade Nova Esperança foram coleti-
vas, bem como a realizada com Letícia Barbosa e Eduardo Ma-
galhães, comunidade Santa Rosa, e com os irmãos Clemente
Flores e Manoel Bento Flores, da comunidade Sorocaima I.
Nesse último caso, vale destacar que há uma entrevista solo
de Manoel Bento Flores.
Muitas perguntas eram elaboradas no ato da entrevista.
Ao lê-las depois de transcritas, constatei problemas de con-
cordância, falta de clareza. Muitas questões foram deixadas
como foram elaboradas, apesar de se apresentarem meio
truncadas. Isso ocorreu porque, se num primeiro momento
as entrevistas eram bem formais, com o seu desenvolver,
depois de meia hora, por exemplo, tanto entrevistador quan-
to entrevistado ficavam mais descontraídos. Houve casos
também em que não houve essa interação. Isso é percebido
claramente em algumas narrativas aqui presentes.
Transcrição
Um dos trabalhos mais árduos de um projeto como esse
é a transcrição das narrativas. Tal processo consiste em ouvir
o áudio e transcrever as falas, passando-as para a linguagem
escrita. Muitas vezes, um minuto de áudio levava mais de
meia hora para ser transcrito. Um dos principais problemas
enfrentados é que vários entrevistados já eram idosos ou
tinham o português como segunda língua. No primeiro caso,
a dicção já estava prejudicada pela idade; noutro, as palavras
em português não eram pronunciadas como geralmente
somos acostumados a ouvir. As transcrições foram realiza-
das quase na totalidade por alunos de Iniciação Científica
envolvidos com o projeto.
Além disso, por as entrevistas serem realizadas nas co-
munidades, as interferências foram várias: animais, pássaros,
18

carros, motosserras, pessoas que chegavam e interrompiam


as entrevistas. Aliados aos aspectos do parágrafo anterior,
o grau de dificuldade na transcrição se amplia.
Conferência de Fidelidade
Nessa parte do trabalho, todo material foi ouvido no-
vamente e a transcrição foi conferida, para ver se ela havia
sido feita de forma exata ou se possuía problemas, como
inexatidão. Caso fosse encontrado algum problema, a trans-
crição era refeita.
Copidesque
Nesse momento, a narrativa já escrita foi adequada a
uma linguagem mais próxima possível da linguagem formal
da língua portuguesa. As dúvidas maiores surgiram nesse
momento: até que ponto seria possível mexer na narrativa
sem desfigurar as características próprias de cada entrevis-
tado? Os passos seguintes buscam esclarecer melhor o que
foi realizado.
Primeiramente, o texto foi adequado quanto à escrita
padrão na grande maioria das vezes. Tal aspecto implica em
fazer concordância nominal e verbal, quando não há, por
exemplo: “as banana” para “as bananas”; “nós vai” para
“nós vamos”. Ainda adequou-se a escrita de algumas pala-
vras, como “misgalha” para “migalha”. Contudo a palavra
“caboco” e suas variações foram mantidas. Vale observar,
5
por exemplo, que o uso da palavra “caboco (a)” foi domi- Apesar de um uso cor-
rente da palavra “caboco”
nante, não aparecendo nenhuma vez a palavra “caboclo”. para se referir a indígenas:
Se não bastasse isso, o significado dessa palavra é distinto entre brancos e indígenas;
entre indígenas e indíge-
do dicionarizado, por exemplo, no Aurélio. Entre os infor- nas, índios mais informa-
dos têm marcado posição
mantes, “caboco” é na quase totalidade das vezes o próprio em não usá-la, exigindo
indígena, diz também de quem vive nas comunidades.5 que sejam chamados de
índios, reafirmando sua
Foram retiradas muitas repetições, como “de, de” para indianidade em oposição
à origem e significado tra-
“de”, contudo nem todas foram retiradas, pois algumas dicional da palavra “ca-
repetições eram enfáticas e traduziam parte do estilo do boclo”

entrevistado.
Para alguém da Letras, consciente das teorias linguísticas
19

modernas, como coordenador deste projeto, custou-me mui-


to essas adequações, sabendo da importância de valorizar a
diversidade linguística brasileira. Contudo, com as adequa-
ções, buscou-se que os entrevistados não sofressem em suas
comunidades preconceito linguístico, já que todo material
voltou para as comunidades de origem. Essa preocupação
justifica-se pois, querendo ou não, ao ler essas narrativas, o
leitor está diante da escrita. Ainda, a maioria dos entrevista-
dos são semianalfabetos, já sofrendo em demasiado pressão
social. Assim, buscou-se não expô-los a mais uma situação
de pressão social.
Contudo, na tentativa de preservar alguns aspectos da
oralidade e o estilo dos entrevistados, algumas atitudes
foram tomadas por mim, enquanto responsável direto por
todo copidesque:
1) O verbo “estar”, conjugado na terceira pessoa do
singular, foi adotado como “tá” no lugar de “está”,
assim como “tava” no lugar de “estava”. Ao ouvir as
narrativas, constatei que todos informantes usavam o
verbo nesta forma reduzida. Inclusive eu, a princípio
numa situação linguística privilegiada, também o usava
assim. Quando eu adequava o verbo para “está”, a
narrativa soava artificial. Em alguns casos, também,
optei em deixar a forma “tão” no lugar de “estão e,
mais raramente, “tô” no lugar de “estou”.
2) A preposição “para” foi adotada como “pra”, nada
mais distante da oralidade brasileira desses informan-
tes do que um “para”. Muitos deles usavam inclusive
uma forma mais reduzida: “pa”, que foi adequada
para “pra”.
3) Ainda, quando a preposição “pra” estava diante de um
artigo, foi aceita a contração, como presente na orali-
dade: pra + a = pra (ex.: para a gente = pra gente); pra
+ o = pro (ex.: para o homem = pro homem). O mesmo
foi feito com o plural: pra + as = pras e pra + os = pros.
Observem que, se não houvesse a contração, em “pra
a gente”, por exemplo, para “pra gente”, haveria um
20

distanciamento grande da oralidade.


4) A colocação pronominal foi deixada praticamente
em todos os casos como no original: “me fala” e não
“fala-me”, por exemplo. Em alguns casos, também foi
incluído o pronome ou mesmo retirado.
5) A pontuação buscou seguir aspectos sintáticos, a partir
da ideia geradora da frase. Essa foi uma das grandes
dificuldades deste trabalho pois, ao transcrever, não
se ouve a pontuação, diferentemente da palavra. Ela é
colocada a partir da sintaxe frasal, seguindo os concei-
tos de ordem direta da língua portuguesa, inversões,
deslocamentos sintáticos, ao mesmo tempo em que
se busca preservar a ideia geradora da frase.
6) Ainda foi preservado aquilo que, para alguns, seria
arcaísmo. Por exemplo, a palavra “entonces”, já pra-
ticamente em desuso, vive na boca de vários falantes
de Roraima. Não se sabe ao certo se pela presença da
fronteira ou pela própria história da Língua Portugue-
sa, que registra essa palavra como pertencente a ela.
7) Outro aspecto que foi preservado é uso da segunda
pessoa do singular com o verbo na terceira do singu-
lar. Frases como “se tu andou no lavrado, tu deve ter
visto.” Foram mantidas. Caso fosse adequada ficaria
assim: “se tu andaste no lavrado, tu deves ter visto.”
Essa mudança seria, no mínimo, uma agressão às ca-
racterísticas da oralidade desses falantes bem como
da quase totalidade dos brasileiros, que descartaram
essa conjugação de suas falas.
8) A palavra mais complicada de se trabalhar foi o nosso
tão conhecido “né”. O que fazer com ele? Simplesmen-
te retirá-lo, como sugere muitos manuais? Voltá-lo para
sua forma desenvolvida: “não é?” Outra questão: ele
sempre é seguido de uma interrogação? Essas dúvidas
permearam todo o trabalho de copidesque. Muitos
“nes” foram retirados, principalmente quando eram
excessivos e estavam no meio do período, sem uma
função clara. Também muitos foram preservados,
21

principalmente quando o entrevistado testava o canal


de interlocução com o entrevistador. Nesses casos, foi
colocado o sinal de interrogação. Noutros momentos,
foi deixado sem sinal de interrogação, quando o en-
trevistado o utilizava como uma característica de sua
fala. Vale ressaltar que o “né” não esteve presente
somente na fala dos entrevistados, mas também na
fala do entrevistador.
9) Muitas falas do entrevistador foram retiradas para
dar sequência à fala do entrevistado. Isso ocorreu
quando o entrevistado testava o canal com um “né?”,
por exemplo, e o entrevistador respondia “sei” ou
“aham”. Essas confirmações foram retiradas bem
como algumas falas que excediam ao papel de en-
trevistador e eram mais comentários pessoais sobre
aspectos cotidianos.
10) Optou-se em escrever a palavra “viche”, com “ch”,
pois não foi encontrado registro em dicionários de
sua escrita.
11) Em frases como “nós fundamos ela.”, em que “ela”
ocupa a função de objeto, em nenhum momento
foi feita a adequação para “nós a fundamos”, como
propõem gramáticas e manuais de língua portuguesa.
Tal opção buscou preservar o aspecto da oralidade
do informante, tendo em vista que, em nenhuma en-
trevista, apareceram estruturas como sugeridas pela
gramática normativa ou manuais, em relação a esse
uso pronominal.
12) Também foram conservados alguns usos não diciona-
rizados, como “rancar”, para “arrancar”.
13) As falas entre aspas não sofreram todas as alterações
acima, principalmente quando elas indicavam falas de
animais, de matutos, de personagens da cosmovisão
indígenas. Nessas falas é possível perceber a escrita
mais próxima da fala dos indígenas.
Ainda, os cantos e pajelanças, quando em língua nativa,
foram trazidos no original. Depois de transcritos, foi efetu-
ada uma tradução literal desses textos. Em geral, o próprio
22
Projeto: Panton pia’ 25

Projeto: Panton pia’


Entrevistados: Clemente Flores (CF) e Manoel Flores (MF)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Assistente de entrevista: Lucimar Sales
Local: Sorocaima I, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 1/10/2008
Transcritora: Ana Maria Alves de Souza
Conferência de Fidelidade: Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 2’16’’36’’’
26 Projeto: Panton pia’
Projeto: Panton pia’ 25

A entrevista começa num tom descontraído, pois havia sido feita a entrevista
do irmão de Clemente Flores, Manoel Flores. Seu Manoel falava que o filho do
Clemente era bom desenhista e havia desenhado a história de Macunaima. A partir
desse ponto, a entrevista começa com a narrativa a respeito de Macunaima.

CF: Porque eu, a história de Macunaima foi assim. Ele foi


uma pessoa, assim como nós. Então, o filho maior sai menos
do que o menor; o menor sai mais valente do que o maior.
Toda vez que nós temos filhos, o menor sai mais forte do
que... mais valente do que o irmão maior. Assim era então.
[...] Porque a história de Macunaima é muito comprida, é
muito longa. Vamos passar uma semana gravando, tem que
trazer mais gravador desse [risos].
DF: Ih! Esse bichinho aí é misterioso [falando do gravador
digital], ele só não tem tamanho. Esse aqui [Manoel Flores]
falou hoje duas horas e pouco, e ele nem “tchum.” O grava-
dorzinho continuou funcionando...
CF: Não gastou nem meia...
DF: Nem meia!

CF: Metade, né? Sim senhor. A história de Macunaima


que eu estou sabendo... (porque também meu pai... agora
1
Nesse caso, optou-se em meu pai poderia estar presente aqui conosco, mas ele tá
não passar o verbo para a velhinho, não pode conversar, ele nem ouve. Quando tu tá1
segunda pessoa do plural,
tendo em vista ser uma falando tem que repetir seis, sete vezes pra poder ele enten-
variante praticamente em
desuso na língua portugue-
der. Agora eu estou seguindo atrás dele, mas alguma coisa
sa do Brasil. estou escutando. A voz de vocês que vocês estão falando
2
Clemente Flores faz uma comigo, eu tô escutando).2 A história de Macunaima, meu
digressão, pra falar do pai.
companheiro, a história de Macunaima é muito triste. Ele
tinha dois filhinhos: um se chamava Macunaima e o outro
3
Todas as transcrições do
taurepang e suas traduções menor se chamava Xicö.3 Esse foi mais valente do que Ma-
para o português foram
cunaima. Ele inventava, ele pensava muito. Ele tinha como
realizadas por Zacarias Fer-
nando de Souza Loiola, da aqui diz... aspiração; ele tinha aspiração profunda, mais do
comunidade Bananal.
que irmão dele. Um dia o pai do Macunaima disse pro filho,
pra mulher dele, mas veja bem, tá o inimigo aí no meio, não
26 Projeto: Panton pia’
somente Macunaima. Aí disse: “Meu filho, mulher, eu vou
na frente.”, como nosso costume também. Nosso costume
[é] sair de madrugada, matar jacu, matar qualquer pássaro
que a gente vê. Aí disse: “Olha, bicho tem caminho por aí,
caminho que vai por aqui assim, tem pena de pássaro. Esse
aí é o caminho. Agora se vão cair num caminho...” Você sabe
que tem caminho que tem encruzilhada, né? Encruzilhada
pra cá e outra pra cá [aponta com as mãos pros lados]. No
meio do caminho é pena de pássaro. Agora no caminho, na
saída do caminho do inimigo é cabelo de catitu. O senhor
conhece catitu?
DF: Conheço.
CF: Aquela caça, porco do mato, esse aí no meio do ca-
minho. “Agora pena de pássaro é meu caminho, pode [ir]
indo por aí que eu vou na frente.” Saiu de madrugada, como
três horas da madrugada que o homem sai. Os dois filhos
com a mãe ficaram lá, dentro da casa. Tá!, amanheceram.
Mais ou menos cinco, seis, sete, aí comeram, “Agora, um-
bora meu filho, papai já tá longe. Pode ser que papai matou
algum pássaro pra nós comermos. Vamos lá!” Destar4 que 4
“Destar” de “deixa es-
tar”.
o inimigo tava escutando o que o pai falava pros filhos, logo
quando ouviu a conversa e voltou, logo o homem passou
já. Ajuntou esse cabelo de porco, ajuntou pena de pássaro,
trocou pra cá. Pena de pássaro no caminho dele, cabelo de
porco no caminho do homem. Aí se enredaram os meninos.
Tá ouvindo bem, né? Então, saíram: “Umbora.” O senhor
sabe zarabatana?
DF: Sei.
CF: Flechar pássaro. Zarabatana. Na minha língua se
chama curá.
DF: Curá.
CF: Então, eles foram. Machado na mão, ele e ele, os dois,
a mãe atrás, “Nós vamos na frente flechando os pássaros.” Aí
foram embora. Chegaram na encruzilhada: “Cadê o caminho
do papai que o papai informou que era de pena de pássaro?”
Olharam, tava no caminho do inimigo, pena de pássaro.
Projeto: Panton pia’ 27

Coitados! Olharam, “Isso daqui é cabelo de porco, não! não!


não é nosso caminho não! Umbora por aqui!” Aí pegaram o
caminho do inimigo. Andaram um bom pedaço. No caminho,
no lavrado, têm muitas qualidades de pássaros, que ninguém
pode chamar qual é o nome do pássaro. Aí estavam querendo
flechar ele pra comer, porque nós, nós gostamos de comer
pássaro pequeno, flechado com a zarabatana. Eu gostava.
Agora não, agora eu estou comendo peixe, agora peixe que
vem no gelo, qualificado, mal, comida mal. Aí foram embora,
e a mãe na frente. Quando logo na frente chegou na casa de
5
Nesses pontos, há contí- um cidadão lá, era dona Sapa, é Sapo5: “Que foi? Que foi se-
nua mudança de entonação
nhora? Pra onde a senhora vai?” “Não, eu tô indo pra cá, atrás
de voz, dependendo do tipo
de personagem. do meu marido que saiu.” “Ah não! Por onde ele saiu?” “Ele
O narrador usa de forma saiu lá pelo pena de pássaro.” “Não, esse aí é meu caminho.”
irregular em português as
Maldito Sapo! Mentiu! O marido tava caçando que era onça,
terminações de gênero.
Sua língua primeira é o inimigo do pai do Macunaima. A onça tava caçando no mato.
taurepang.
Aí ficou lá, ficaram lá. De repente, este pássaro que estavam
perseguindo pra flechar avisou, ele canta. ([pergunta pro en-
trevistador] Você não viu? Se tu andou no lavrado, tu deve ter
visto). Pássaro que avoa longe e abre a asa, ele canta. E logo
quando sobe de novo ele abre asa, ele canta de novo. Bonito
o passarinho! Aí esse pássaro conta história que aconteceu
com a mãe dele, a mãe desse Macunaima. Aí disse: [cantan-
do] “Meu filho, mãe de vocês tá envenenada...” Cantou. “Tu
viu? Tá cantando! Vamos espantar de novo!” Aí foram lá.
Quando abre o bico: [cantando] “Meu filho, mãe de vocês foi
envenenada...” “Que foi?” “Mamãe foi envenenada! Umbora
lá!” Aí subiram, deixaram este passarinho, deixaram o pobre
do passarinho. Logo que chegaram, não tinha ninguém, só a
mulher, mulher Sapo. Aí quando olhou: “Coitado, meu filho,
pra onde vocês vão?” “Nós tamo procurando mamãe, não
passou por aqui não?” “Não, não passou não...” Mas esse
esperto, Xicö, tava olhando, assim no geral, ele olhou pra mãe
dele, tava guardada no jamaxim lá pendurado. Aí deixaram
o machado pra cá, e o outro pra cá [faz movimentos pros
lados], zarabatana, cada um deixou suas coisas. Aí ficaram
tristes, sabe que a morte da mãe, do pai é triste, dá tristeza!
Aí eles diziam: “Agora, o que nós vamos fazer? O que é que
nós vamos fazer?” “Não sei...” Aí menor, mais esperto, disse:
28 Projeto: Panton pia’
“Eu vou entrar no ventre da mãe, eu vou entrar no ventre da
mamãe agora!” “Será?” “Sim, umbora entrar!” Deixaram o
machado, deixaram tudo que carregavam. Aí se tornaram,
se converteram [em] besouro. Entraram no ventre da mãe,
ficaram lá dentro. Cinco horas da tarde chega o inimigo, a
onça, não tinha achado nada, [de] caça. Disse: “Mamãe”,
não, mãe não, é o esposa, “Mulher, o que é que tu achou?”
“Não achei nada não!” O que é que a velha vai achar? “Aqui
ninguém achou nada.” Quando olhou assim viu essa mulher
lá dentro do jamaxim. Aí puxou e derrubou no chão. Tirou
bucho. Aí começaram a cozinhar, coitado. Aí acharam dois
ovos dentro, tiraram eles, tinha se convertido assim como
ovo, mas era duro. Aí disse: “Achei comida pra mim agora.”
Quando colocou na boca não podia mastigar, tava duro.
Borracha nunca se mastiga, né? Assim que tinha convertido
ele, aí procurou comer, não podia: “Vamos deixar então.”
Aí querendo cozinhar, não podia cozinhar porque este ovo,
tu sabe que quando o fogo arde, a água ferve, mas estes,
estes bichinhos, Macunaima tava lá dentro d’água, a dona
tava querendo cozinhar, mas não ferveu. O bichinho cantou
pedindo ajuda pra esfriar essa água, pra não ferver. Isso era
pedindo mar, mar nunca se seca. Esta história é muito impres-
sionante, meu irmão! Sabe por quê? Porque também isso aí
presta pra curar a gente também, é o remédio, é a oração dos
indígenas. Aí dizendo: “Não tá cozinhando não. Vamos deixar
num...”, aí colocaram na cesta. O senhor conhece essa cesta,
né? Cesta de colocar água, qualquer coisa. Aí colocaram lá.
Aí comeram lá na casa da mãe deles, passaram lá. Aí tava lá
dentro da cesta o que conseguia; o que a onça conseguia,
colocavam lá na cesta; eles comiam de lá mesmo da cesta.
Colocavam banana, comia. Qualquer coisa que essa dona
colocava na cesta não aparecia. Aí ficaram pensando: “Por
que é que desaparece as coisas que eu coloco aqui? Minha
[pecinha] eu coloco aí; o banana eu coloco aí; o batata assada
eu coloco aí. Não aparece por quê?” Aí a velha falou assim.
Enquanto este marido dela tá pro mato, porque a onça nunca
para de caçar, né! Todo dia tá caçando. O que é que ele vai 6
No original ele usa a va-
fazer? Ele não vai brocar roça. E tá sempre só dentro da casa riante “cruda”.
procurando pra comer coisa crua.6 Aí ela falou: “Olha, meu
Projeto: Panton pia’ 29

filho, será que vocês tão comendo o que eu tô colocando


aqui? Se convertam de novo pra, pra vocês me ajudarem a
derrubar roça pra mim, pra mim plantar banana, pra mim
plantar batata.” Falou tudo, e eles escutando dentro dessa
cesta aí [aponta com dedo]. Um dia apareceram, se tornaram
homem de novo. “Olha vovó, eu quero que vocês nos leve
pra roça...” “Eu não vou andando não, de jeito nenhum!” Aí
ela pegou, ela colocou na cesta, levou pra roça. Aí ela levou
dentro do mato. O que é que eles fazem? Pega o terçado,
“Tchan!” “Tchan!” “Tchan!” “Tchan!”, dez hectares de terra,
só até meio-dia. De meio-dia pra tarde, tudo terminado. Eles
tinham machado. Quando chegavam: “Quem foi que derru-
bou roça lá no caminho?” “Não sei não, fui eu mesma que
fez”, dizia a dona. “Tá bom, tá bom, tá bom, tem problema
não!” Passou uma, duas semanas, três semanas. Chega a
hora de queimar, tocar fogo. Aí convidaram essa dona. Aí
vai começar a vingar. Os Macunaima já vão, já vão começar
a vingar a morte da mãe. “Vovó, você nos leva de novo pra
roça pra nós tocar fogo?” “Nós vamos conseguir um pedaço
de pau aceso [...], pra tu acender fogo no meio?” “Tá bom!”
Coitado do Sapo que não sabia. Aí pegaram um pedaço de
fogo. Aí mandaram ela tocar fogo lá no meio: “Vamos tocar
assim na beira!” Aí ela ficou lá no meio. Os Macunaima rodea-
ram de fogo. Ela (sopra), não acende. Quando o pau de lenha
tá meio cru assim não, não, não acende, não pega fogo não!
Agora quando ele tá bem seco, qualquer coisa ele acende. Aí
quando ela olhou, quando viu, tudo tava infestado de fuma-
ça. Quando ela levantou a vista não tinha mais o Sapo pra ela.
Aí amaldiçoou, esse Sapo amaldiçoou esses rapazes: “Vocês
não vão ficar dentro d’água. Vocês não vão ficar na barriga
de jacaré não. Vocês não vão ficar na barriga de sucuriju.
Não vão ficar em nenhum lugar, em nenhum desses animais,
vocês não vão ficar. Vocês vão morrer!” Mas essa dona Sapa
nomeou barranco, nomeou barranco. Ainda mais tem aquele
(não sei como se chama a seiva, a seiva aqui na Venezuela,
porque eu falo mais espanhol do que português, porque já
30 Projeto: Panton pia’
aprendi falar espanhol, né!?) E da seiva que ele (chamamos,
aquele mato, aquele que solta algodão, samaúma, sim.) Não
chamou também não. Duas coisas que ela não chama. Agora
que ela chamasse: “Vocês não vão ficar debaixo de samaú-
ma? Vocês não vão ficar nem embaixo do barranco, já tinha
morrido.” Mas não chamou samaúma no barranco. O que
é que eles fazem? Se esconderam lá debaixo do barranco,
samaúma tava lá em cima. Aí quando olhou, chegou fogo,
aí pluft! Explodiu. Logo quando ela explodiu, dessa Sapa 7
Pedra, da família Calcedô-
nias, principalmente em sua
queimando apareceu esse Jaspe.7 (Você conhece ele, né? variação vermelha, muito
Assim Jaspe). Aí sapa queimada. Assim essa daí é a história comum na região da Gran
Sabana na Venezuela, aos
que Macunaima tá começando a fazer. Quando ela explodiu redores do Monte Roraima.
virou pedra, esse Jaspe. Aqui no Mapauri, na Venezuela, tem Inclusive há uma cachoeira
com esse nome na região,
muito lugar. Tu já andou por aí? muito visitada por turistas,
Cachoeira de Jaspe.
DF: Não, mas eu já conheço, já vi a pedra...
CF: Tu viu encarnada assim? Aí foram embora. Vingaram a
morte da mãe e foram embora. Pegaram o machado e foram
embora. Cinco horas da tarde chega o inimigo, Onça, marido
da finada Sapa. “Cadê? Cadê? Cadê?” Aí, tu sabe que onça
sente o rastro da gente. Aí seguiram o rastro dele. Destar que
eles estavam lá brincando. Quando ele vinha negaceando
assim [balança o corpo, como um felino], aí eles sentiram, aí
eles viraram, falando pra cá e vai pra lá e sentiram de novo
virando pra cá. Tu sabe o que é pulga Xicö, Xicö? Nós cha-
mamos Xicö, pulga. Daqui “tchan” ele pula pra lá, pula pra
cá, assim ele fazia [balança as mão em sinal de movimento].
Esse irmão dele menor era mais valente e ágil. O que é que
ele fazia? Xicö faz um buraquinho. Coloca uma vara bem
apontadinha, tava pulando por cima. Aí agora, quando ele
chegou lá perto dele, disse: “Agora peguei vocês!” “Não,
vamo umbora brincar com nós?” “Então umbora!” Então,
escuta bem porque ele vai vingar agora, vão vingar a morte
da mãe ainda. Aí porque comeram, comeram então. Tem que
vingar, aí : “Vamo brincar aqui com nós?” “Como?” Também
Onça é besta, né! “Como?” “Vamo pular assim, como nós tava
pulando!” Tava bem apontado, bem amoladinho e apontado.
Aí mandaram pular ele. Aí “Tchan!”, empurraram, “Tchan!”,
ficou enfiada a Onça. Até aí acaba a história da Onça que já
Projeto: Panton pia’ 31

vingaram. Aí continuaram viajando. Aí apareceu Cutia, acom-


panhando, acompanhante deles. Apareceu Cutia, quando se
completa três: Macunaima, Xicö, Cutia. Viajaram dentro da
mata, viajaram, viajaram, viajaram. Chegaram numa casa,
numa casa velha, uma mulher lá, porque [eles] não tinham
fogo, não tinham fósforo, não tinha nada. A mulher fazendo
beiju com o fogo embaixo do forno. “O que é que nós vamos
construir agora? O que é que nós vamos fazer?” Eles pega-
vam peixe, comiam cru, [assado] no sol, seco, eles comiam
sem fogo. O que é que eles têm? “Eu vou pegar fogo. Tu fica
aqui.” Irmão maior que tá cuidando do irmão dele, porque
ele parece que tava um pouco assim, ele tava muito atrevido
com irmão dele. Aí irmão dele foi, aí se converteu [em] grilo.
Tu sabe aquele bichinho, grilo?
DF: Conheço.
CF: Sim. Se converteu. Aí essa mulher que tava fazendo
beiju, ele mordeu na coxa dela. Aí a mulher olhou, era grilo.
Pegou porque ele faz um talinho de fogo aceso. Colocou na
bunda dele e saiu. Levou fogo. Aí o outro lá esperando, pre-
parado. Aí acenderam fogo, continuaram viajando. Chegaram
na beira do rio, tava o Senhor Garça pescando. Coitado, tava
pescando. Como ele pegava peixe? Não pegava peixe, não!
só de noite assim. (Não sei como eles pegavam também?
Isso aí não tá bem esclarecido também, porque o que eu
estou contando é o que eles me falaram, me contaram. Não
sei como eles pegavam peixe e comiam cru.) Agora, depois
que pegaram esse fogo não deixaram apagar. Aí chegaram
lá. Senhor Garça tá pescando, pegando aimara, aimara, trai-
rão. Nós chamamos aimara, na minha língua, aimara, trairão
grande. Aí foram lá. “Agora vamos.” Aí ela torou o anzol dele
pra não pescar. O irmão dele maior: “Vou tirar. Espera aqui!”
“Cuidado!” Quando ele saiu, foi lá. Garça jogando “Tan!”,
ele pegou, tirou, quando ele bateu no pescoço, disseram:
“Ei companheiro, me dê esse peixe, rapaz!, pra mim!” “Que
peixe? Eu peguei um bocado!” “Então me dá!” Ele deu um
pequeno assim, “Não, não, quero esse aqui mais maior.”
Ele colocou no ombro e foi embora. “Quase me mata, rapaz
bateu aqui no meu pescoço.” “Olha aí, eu sabia, eu vou tirar
32 Projeto: Panton pia’
o anzol dele.” Caiu dentro d’água. O que é que ele faz? Se
mexeu no anzol do Senhor Garça, enrolou no toco de pau lá
dentro d’água. Aí tocou assim como se fosse peixe no anzol.
“Pan”, torou o anzol dele. Agora sim, nós temos anzol. Aí
continuaram viajando, viajando por aí dentro do mato. Não
era no campo, não. Era dentro do mato. Aí acabou rancho,
não tinha mais rancho, não tinha rio, não tinha nada onde
pegar peixe. O senhor Cutia, o que é que ele faz? Tu sabe que
cutia anda por aí na roça, [pra] conseguir batata, conseguir
jerimum, conseguir melancia. Ele consegue, né. Então, esse
aí, esse aí era o pensamento do Cutia. Quando chegaram
no meio da mata, não tinha nada pra comer. “Vamo passar
mais dois, três ou quatro dia, vamo passar aqui pra vê se
nós conseguimo alimentação.” Aí Cutia, o que é que ele faz?
Ele andava por aqui, andava por aqui [aponta com as mãos
pros lados], até que chegou nessa fruta. (Ai, ai, ai, essa fru-
ta não sei como nome dessa fruta pupu,8 tem aquela fruta 8
Fruta parecida com toma-
te, comestível, um pé com
redondinha...)
espinho. Praticamente não
existe mais na região, ne-
DF: Qual é o tamanho? nhum informante soube o
nome em português.
F: Deste tamanho. Tamanho de manga.
MF: Aquela amarela igual à banana madura
CF: Sim, amarela...
MF: Amarela.
CF: Mas ela é...
MF: Redonda!
CF: Redonda.
ALGUÉM: Uma vez eu vi enlatado, né... docinho.
PL: É marmelo!
CF: Pode ser marmelo mesmo. O pé dele cresce, desde
pequenininho vai carregando...
ALGUÉM: É uma fruta bem amarela.
CF: Sim, nós chamamos, na minha língua se chama pupu.
ALGUÉM: Pupu.
Projeto: Panton pia’ 33

CF: Pupu na minha língua, taurepang. Aí ele achou essa


fruta. Ele comeu e não trouxe nada. “Shiiiiiiii”, o ar saiu. O
Cutia comeu. Também parece que tava com muito sono. Ele
tava dormindo. Aí abriram boca, tiraram carocinho dessa
pupu que eu estou falando. Tiraram, provaram. “Ai coisa
doce! Vamos descobrir ele!” Mas também era gente, era
mal, era ruim esse Xicö, que é mais ruim. Mais esperto, mais
inteligente ainda. Aí disse, o Macunaima disse pro irmão
dele: “Vamos descobrir devagar.” O que é que eles fazem?
Apareceu aquele Quatipuru. Tu conhece aquele quatipuru?
Aquele que sobe ligeiro no pau?
DF: Ah! O quati?
CF: Quati, quatipuru, pequenininho assim...
DF: An...sei.
CF: Entrou no meio, aí entrou no meio.
DF: Já são quatro.
CF: Já são quatro, já. Aí disse “Olha, tu vai seguir esse Cutia
até ele chegar no pé de pupu. Aí ele voltou. Aí: “Amanhã tu
vai descobrir.” Aí esse Quati foi mais por cima da vara, do
galho. Lá em cima tem outro galho [vai apontando com o
dedo, como se ali estivessem os galhos]. Ele foi, Cutia que-
rendo olhar, não tinha ninguém. Chegou até no pé de pupu.
Quando chegou, era pupu no chão, todo maduro. Pegou,
apanhou lá e voltou. O quati foi e voltou. Chegou lá, “Achei,
eu vi onde tá.” “Amanhã vamos derrubar.” “Olha aí, tão
querendo estragar, tão querendo estragar.” Aí a história de
Xicö, mais valente do que o irmão dele. Aí voltou e “Ai, não
tô conseguindo nada aqui.” Trouxe outra fruta que não era
de comer muito, né. Aí “Não, tu achou pupu, né?” “Não, olha
aqui, cê trouxe, olha aqui. Sim achei, umbora amanhã, umbo-
ra comer.” Aí convidaram. Aí convidaram, se mudaram de um
acampamento pra outro, lá no pé de pupu. Chegaram lá. Tava
no chão, tudo maduro, em vez de comer, em vez de encher
barriga, esse Xicö disse: “Eu vou derrubar!” “Não senhor,
tu vai estragar essa fruta.” Era longe a história, né! História
que nós estamos falando. Aí ele disse: “Não, eu quero comer
34 Projeto: Panton pia’
lá de cima.” “Não irmão, deixa, não derruba, se não tu vai
estragar fruta. Quem é que vai colher tudo?” “Não, nós vamo
comer só um, depois nós guarda.” Rapaz, ele pegou macha-
do e “pan”, derrubou! Estragou tudo. Agora passaram um
monte de dias comendo. E foi, quando passaram os tempos.
Passaram dois, três semanas. Aí acaba, apodrece também. Aí
começaram a viajar de novo. Andaram, andaram, comendo
fruto que não é bom. Aí chegaram num lugar, “Vamos passar
dois dias aqui pra ver se nós conseguimos comida enquanto
Cutia acha outra.” Já tão sabendo que ele consegue. Aí pa-
raram dois dias lá. Cutia vai pra lá, vem pra cá. Achou pé de
banana. (Rapaz, falando nisso lá no pé do Monte Roraima,
já ouvi dizer que tem a terra boa, fecunda, ela dá banana
assim [sinal de tamanho grande com as mãos], estavam me
falando. E pé de ubim que por aqui, nessa mata, é assim [faz
gesto de tamanho pequeno]. Lá não, lá é assim [de tamanho
maior]. Lá no pé do Monte Roraima, segundo me falaram.)
Tão vindo de lá pra cá, saindo de Monte Roraima, eles tão
saindo. Aí Cutia, porque já tava acostumado a conseguir. Um
dia, achou essa fruta de banana, pé de banana, e comendo
não trouxe nada...
DF: De novo...
CF: De novo, porque ele tá sabendo que outro compa-
nheiro é muito valente pra derribar. Em vez de comer o que
tá no chão, ele fez foi derrubar o pé dele. “Agora eu não vou
contá pra ninguém mais não. Chegou”, “Olha aqui, umbora
comer.” AÍ trouxe fruta que não era boa. Aí [sopro de peido].
“Ah! De novo, ele tá peidando banana...” “Será que ele achou
pé de... Será que ele achou banana? O que é que ele comeu?
Abre a boca dele!” Era migalha, resto de banana.” É banana!
Amanhã que eu vou descobrir”, o Quati falou. “Tá bom!”
Aí sim, tava já sabendo que ele é muito esperto também, o
akuri, nós chamamos akuri, a cutia.
DF: A cutia.
CF: Akuri. Na minha língua eu falo akuri. Ele tá sabendo
que eu estou falando do animalzinho. Ele foi atrás. Chegou no
pé de banana, lá por cima. E Cutia, coitado, querendo olhar,
Projeto: Panton pia’ 35

nada, não via nada. Chegou lá e ajuntou a fruta que não era
bom de comer e apanhou, apanhou. “Ah, não tem nada não,
rapaz, pra comer! Umbora comer essa fruta, fruta que não é
bom pra comer.” “Olha, tu achou banana, né?” “Não.” “Sim,
tu achou! Descobriu.” “Não, não achei não.” “Olha, ele trou-
xe...” “Sim, eu sei. Amanhã nós vamo comer lá.” Aí foram.
Aí foram embora. Chegaram lá no pé de banana. Banana
naja, baié, banana comprida. De tudo pé de banana. Tudo,
tudo, tudo, tudo, de tudo. As bananas que existem aqui no
mundo agora foram espalhadas a partir daquele momento.
Chegaram lá, banana no chão, tudo apodrecendo, caindo,
madurinha. “Umbora comer!” Aí olhou, Xicö tava olhando
por cima: “Lá tem, de novo, amadurecendo. Vou derrubar.”
“Não senhor!” “Sim, vou derribar!” Aí começaram. Pegou
o machado. “Pan.” Rapaz, esse menino foi muito ruim. Em
vez de embaixo, estando lá embaixo, ele derriba. Aí o que é
que ele faz? Aí tava derrubando já. Nesse momento, Cutia,
coitado do Cutia, era assim, pode ser que ele tinha couro
branco ou couro preto, assim, uma coisa assim, do Cutia,
né! Então, cada vez que dormiam por aí, nas matas, tiravam
mel, nós chamamo wuan.
DF: Wuan.
CF: Mel. Wuan é nome da gente também. Juan é João.
Mas na minha língua é wuan, não é Juan. Sim wuan. É abelha.
MF: Mel de abelha.
CF: Mel de abelha. Aí, ele amontoava cera, cera de mel.
9
Há certa incoerência no Como essa9 Cutia fez? Conseguiu um pau cheio de oco por
uso do feminino ou plural,
entre “esse Cutia” e “essa
dentro. Tu sabe que ele tampou todos os buracos que
Cutia”. Como não foi pos- apareceram com essa cera viva que ele ajuntou da abelha.
sível rever o informante,
pois ele faleceu, optamos Fechou, amontoou lenha, amontoou banana que tava recém-
em deixar como está, já que -caída, verde, tudo amontoou dentro do oco de pau. E ficou
Cutia, nesse caso, é uma
personificação mitológica. lá, enterrado. Ele se preparou, esse Cutia se preparou. Os
outros Macunaima, Xicö não, não se prepararam não, não
se preveniram. O que é que eles fazem? Aí começou cair pé
de banana. Tu sabe que tem muitas árvores, também grande
igual a ele. Engatou. O cipó aguentou na ponta. Aí obrigam
coitado do Quati: “Vai torar aquele cipó, senão não cai.” Ele,
36 Projeto: Panton pia’
tu sabe que ele roi também ligeiro.
D F: Ele é um roedor.
CF: “Tchan.” Torou. Caiu. Saiu muita água do pé de bana-
na. Tu sabe que banana tem muita água. Sim. Aí tinha muita
água. Tinha dois pés de palmeiras, um de najá, um de... Deixa
me lembrar: outra palmeira, tem de várias qualidades de
palmeiras. Aquele tal de pé de bacaba, mas não é bacaba
desse o’ nörö alhö ytesek mörö ko ke? Anek, mayi.[Como é
o nome dessa palmeira? É aquele?] Patauá, pé de patauá,
tinha pé de patauá e pé de inajá bem perto assim como tá
aqui [aponta com o dedo pra um lado], e outro também aí
[aponta com dedo pro outro lado]! Pé de najá, pé de patauá.
O que é que Macunaima faz? Vão subir lá. Volta a subir no pé
de najá. Ficaram lá. Encheu d’água. Cutia lá dentro d’água.
Tudo tampado nesse buraco. Ficou lá. Passa ano, passa mês.
Essa fruta que tava junto com ela lá desses Macunaima e
Xicö tava ainda verde, né! Passaram meses. Aí ficou de vez.
Estavam comendo dessa fruta. Patauá e inajá. “Irmão!”, tava
escuro. Escureceu. Não sei porque escureceu. (Esse também
não tem como entender, detalhadamente não posso dizer,
porque não sei por que tava escuro assim). Ficaram lá, tem-
po. Aí já tava madurando. “Irmão, joga da tua fruta pra mim
provar.” Xicö fazia o quê? Xicö era ruim, eu não estou dizendo
que ele era ruim. Aí pegava a fruta e descascava, passa no
bicho dele [pênis] e “tchan.” pra ele: “Tá gostoooso?” “Tá
bom, tá gostoso.” E ele achando graça do irmão dele mas não
descobriu o que ele tinha feito pro irmão dele. Não descobriu
o que é que tava fazendo pro irmão provar essa fruta. É por
isso que a partir desse momento essa fruta é assim, liguenta,
não é solta assim como bacaba, ela é liguenta assim, cheiro
de graxa, cheio de graxa assim. Aí, tempo depois, secou. Aí
provaram como este caroço que estavam comendo, “tibum.”
lá em baixo. “Já tá ficando irmão, umbora descer.” Depois,
parece de 150 dias, secou. Aí desceram. A Cutia abriu esse
oco de pau que tava dentro. Abriu, saiu. Essa aqui traseira
[passa a mão nas nádegas] ficou encarnadinha por fumaça,
por causa da fumaça. Essa é a história de Macunaima. Essa é
que é a história de Macunaima. Cutia não era assim não. Era
Projeto: Panton pia’ 37

branco... parece que era ou preto, não sei. Agora, quando...


com essa fumaça, ficou tudo amarelinho assim.10
10
Referência ao motivo pelo
qual a cutia (mamífero da
família Dasyproctidae, com
DF: Fumaçado...
sete especies no Brasil) pas-
sou a ter listras nas costas. CF: Fumaçado, amarelo a partir daquele momento. Aí
foram embora. Chegaram. Este toco aparece aqui no Monte
Roraima, até agora aparece. Nós chamamos, na nossa lín-
gua, wadakapiapö, wadakapiapö [...]. Esse pé de banana se
11
Árvore mítica, da qual, chamava wadaka.11 Tu sabe que é enorme, é grande esse pé
com sua queda, teriam-se de banana que chamavam wadaka, piapö é toco. Aqui, por
originado o Monte Rorai-
ma, bem como os principais aí, ficou essa história porque pra lá, mais pra trás, não estou
rios da região.
sabendo, não sei como continuar. Depois passaram por aqui,
por outras coisas por aqui; vieram por aqui, chegaram aqui,
por aqui. Olha aqui, aqui tem a história também, continuando
por aqui na beira da Pedra Pintada, aqui no Parimé, na beira
do Parimé, tem uma pedra. Ele escreveu. Isso aí tudo escrito
12
O filho de Clemente Flores com meu filho, tudo desenhado.12 Ele não tá vindo lá não. Ele
tornou-se artista plástico
indígena reconhecido em foi passar a noite aqui, lá caçando pra ver se ele vai voltar
Roraima, seu nome é Mário amanhã. É por isso, é por isso que a lenda disse que pra cá
Flores.
caiu mais fecundo o galho de banana, pra cá mais fecunda.
É por isso que aqui dá banana, dá de tudo, porque caiu pra
cá, porque o galho que é mais fecundo caiu pra esse lado do
13
Hoje um dos principais Brasil. Aí chegou na Pedra Pintada,13 chegou lá e pintou. Tá ali
sítios arqueológicos de
Roraima, principalmente a letra do Macunaima. Até eu mesmo vou lá e estou olhando
iconográfico, localizado na lá. Assim foi essa história de Macunaima, porque já estou me
Terra Indígena São Marcos.
esquecendo porque não estou; eu não estou repetindo pra
você, estudando na Bíblia, então vai acabando.

DF: Eu sei, se não repetir vai ficando pra trás


CF: É... Agora, a escrita, o desenho tá tudo completo, o
que não me lembrava bem, tá tudo escrito no...
DF: No desenho.
CF: No desenho, sim senhor. Essa foi a história de Macu-
naima. Essa foi a história de Macunaima. Ainda mais que...
Não, essa aí é outra história... Assim foi seu, como é o nome
do senhor? Que me...
38 Projeto: Panton pia’
DF: Devair.
CF: Devair...
DF: Mas é Antônio também. O senhor não tava errado
naquela hora não, porque é Devair Antônio, entendeu?
CF: Hum...
DF: Eu sou Devair Antônio.
CF: Hum... Devair Antônio.
DF: Não tava errado não, é Devair Antônio.
CF: Hum... Assim foi essa história, meu irmão, porque eu
gosto de falar assim, mas tu sabe que ninguém sabemos14 14
Observe que “ninguém.”
funciona como negativa.
falar bem o português, porque somos indígenas taurepang. Quando tenho que ade-
quar, sou obrigado a co-
DF: Claro que sabe falar! Eu entendi tudo, como é que locar um “não”, pois não
não sabe!... basta colocar um “nós”,
não é isso que está na es-
trutura da linguagem do
CF: Eh... informante. Opto em deixar
no original, pra conservar
MF: Agora a história de Macunaima... a beleza do estilo do seu
Clemente Flores.
DF: Algumas coisas eu já tinha ouvido. Eu fui, eu estive
na Venezuela há uns três meses. Aí eu tava lendo a história.
Tem até uma revista lá que se chama Kuawä. O nome da
revista conta um pouco da história da árvore da vida. O quê?
MF: Do Makunaimö.
DF: Eh, também...

CF: Sim, porque os brancos chamam assim: Macunaima.


Mas na nossa língua indígena, própria, disse Makunaimö.
DF: Makunaimö.
CF: Assim que nós falamos.
DF: Makunaimö.
CF: porque ninguém... Makunaimö... Agora o branco
diz: Macunaima. Agora inventaram um Macunaíma. Não é
Macunaíma. É Makunaimö.
DF: É porque Macunaíma é o título de um livro.
Projeto: Panton pia’ 39

CF: Isso aí, puseram pra ser o título do livro, mas podia ser
assim. Mas agora o nome próprio é Makunaimö.
DF: Ele fez de propósito. A pessoa que escreveu esse livro
foi em 1927. Não do século agora, mas faz noventa anos já.
Foi Mário de Andrade, ele já sabia essa história.
CF: Agora, outra coisa que eu estou... que tem outro tipo
de historiadores, ele conta diferente. Aí tu vai falar com ele,
tu vai anunciar, tu vai perguntar dele, ele vai contar em outra
forma. Assim, porque a história que sai mais correto é dos
taurepang. Agora, arecuna errou, arecuna errou, porque eu
vi na escritura de... não sei de quem foi... quem foi que escre-
veu? Foi Parimé, Parimé Brasil, que ele deu um livrinho pro
meu filho, mas não fala correto como você, ele fala errado.
DF: Eu sei, entendo... Deixa eu anotar aqui. O nome com-
pleto do senhor é...
CF: Clemente Flores.
DF: Clemente Flores. Seu Clemente, o senhor sabe a idade
do senhor?
CF: Sessen... agora assim idade, por cálculo, eu estou
com sessenta e oito. Porque naquela época, também, meu
pai, coitado, não sabia dizer que hora, em que mês, em que
ano, em que dia...
DF: Eu sei, eu entendo.
CF: É por isso que quando o filho do índio tá assim [faz
sinal com a mão, em relação ao tamanho], tá como dois anos,
não, dois anos não, até ano pode ser. Eu tinha sete anos, me
colocaram pouco... Sim, calculando assim, agora eu estou
com sessenta e oito anos.
DF: Ah! Entendi.
CF: Sessenta e oito... Naquela época ninguém sabia, nin-
guém se dava conta, se, por exemplo, tu, se alguém vier me
perguntar: “Que dia nasceu teu filho?” “Meu senhor, a lua
tava bem por aí quando nasceu meu filho.”
DF: Ah é!
CF: Mas qual era, qual era a lua? Janeiro? Fevereiro? Ou
40 Projeto: Panton pia’
Março? Abril? Ou Dezembro?
DF: Eu sei, porque são doze por ano.
CF: É isso aí. Assim foi naquela época, meu pai não sabia.
Depois de velho, depois de me gerar, meu pai aprendeu a
ler, depois de velho, assim como idade dele. Depois de velho
ele aprendeu...
DF: O senhor é casado?
CF: Eu sou casado.
DF: Casado. Quantos filhos?
CF: Tenho sete filhos.
DF: Ah! Sete filhos.
CF: Tenho sete. Quatro homens e três mulheres.
DF: Bem dividido, né?
CF: Hum? Agora, os netos, tenho vinte e seis netos; do
Florentino, do Pedro, do Glorentina, da Fidelina, e hum...
Mário, Aurimelia, vinte e seis netos. Netos e netas.

DF: Uma dúvida só: vocês têm um nome em taurepang e


outro em português? Ou é só em português?

CF: Não. Em português, porque é verdade, porque na-


quela época os nomes...

MF: Taurepang é a nossa linguagem mesmo.

DF: Eu sei. Mas o nome, por exemplo...

CF: O nome não. Nome escrito foi [dado] pelos brancos.


Agora naquela época que ninguém sabia o número e nin-
guém sabia as letras. Então, esse aqui eu posso decidir, meu
filho, digo, eu diria pra ele wakarampö, esse nome, wakaram-
pö, wakarampö é aquele furacão também. Ninguém sabia as
letras assim como ABC, por isso que eu poderia chamar ele,
eu chamo ele pra batismo dele Kaikarua, Wey Kurata [Sol], eu
poderia falar assim, só pra dizer o nome. Agora nome, agora
que nós estamos recebendo só em português...
DF: Ah sim.
Projeto: Panton pia’ 41

CF: Sim senhor. Assim, que indígena, ninguém temos


nome...
DF: Eh, não colocam nome indígena não.
CF: Não, não. É por isso, sempre, muita das vezes eu
penso que o “seu Clemente”, meu apelido podia ser tau-
repang, Clemente Taurepang, mas não é taurepang, Usted
es taurepang. Assim como nós poderíamos ter esse nome,
mas chegou apelido, Flores, Flores. Aí tão querendo cortar
Flores do Manoel.
DF: E ninguém sabe de onde veio Flores...
CF: É isso aí.
MF: Até eu não sei, eu mesmo não sei de onde vem...
DF: Só tem a curiosidade?
MF: Eh.
DF: E o senhor tem mais alguma história assim? Porque
tem o Macunaima, tem o...
CF: Tem! Agora...
DF: Makunaimö.
CF: Makunaimö é minha língua.
MF: É Makunaimö.
DF: Makunaimö. Falei certo ou não?
MF: Na nossa língua é Makunaimö. [...]
MF: Agora Macunaima...
CF: Isso aí já, isso aí na língua dos brancos.
MF: Makunaimö.
DF: Ah, sim, [...] sobre o Canaimé, qual é a visão do se-
15
Quando me encontrei
nhor?
com o filho de Clemente
Flores, Mário Flores, e per- CF: Ah! Canaimé ainda existe, Canaimé.15
guntei sobre a morte de
seu pai, me disse que ela DF: Ainda existe?
teria sido ocasionada por
Canaimé. CF: Ainda existe esse rapaz, tão perseguindo nossa vida,
42 Projeto: Panton pia’
rapaz. Canaimé é aquele que, na linguagem, em português
se chama bandido.
DF: Bandido.
CF: Malandro, é ladrão. Isso aí se chama Canaimé. Isso aí,
na linguagem, estamos falando na linguagem de português.
Agora na minha língua [é] Kanaimö.
DF: Kanaimö.
CF: Agora outros dizem Canaima. Na Venezuela dizem
Canaima. Brasil diz: Canaimé. Agora na minha língua Kanaimö.
DF: Kanaimö. [...]
CF: Isso.
MF: Têm pessoas que aprendem assim, tem gente que
não sabe. Então, pergunta de alguém aí.
CF: Como chama... Canaimé, e macuxi chama diferente,
já muda cada um.
DF: Cada etnia tem a sua variação.
LS: Variação linguística, né?
DF: Justamente.
MF: Agora, o senhor tá conversando com os próprios
taurepang.
DF: Estou vendo.
MF: Não é macuxi...
DF: Eu sei disso. É porque hoje muita gente chama...
LS: Legítimo, né?
MF: Muita das vezes eles, têm cobrado a gente, quando
a gente chega em Boa Vista, eles ficam olhando pra gente.
Aí “Vocês são brasileiros?” “Por quê?” “Porque são diferen-
tes.” Quando a gente vai pra Venezuela: “Vocês não são
venezuelanos?” “Por quê?” “Ah! Vocês são diferente.” Então,
ninguém é brasileiro. Daqui do centro, ninguém mora lá no
centro, em Bolívar, a gente mora aqui na fronteira. Então,
eles consideram a gente como peruano.
Projeto: Panton pia’ 43

DF: Quem considera? Você fala os...


MF: Eh... Aqui, o pessoal de Boa Vista. Eles dizem assim:
“Vocês são peruano?” “Não, somos indígena.” “Mas mo-
ram aonde?” “Na fronteira.” “Ah! Tá certo, tem razão!” É
assim...
DF: Interessante isso.
MF: Quando a minha irmã foi pra Bolívar, levou filho dela
que entrou no fogo, se queimou, então mandamos pra Bolí-
var. Quando ela chegou no hospital, a doutora, eles ficaram
admirados. Disseram assim: “Você é filho do venezuelano,
a sua mãe é brasileira.” Se ela dissesse assim: “Eh, minha
mãe é indígena brasileira, meu pai venezuelano.” Olha aí.
Descobriram lá em Bolívar, hospital de Bolívar. Então, eles
consideram a gente como peruano. Não é brasileiro, não é
venezuelano.
DF: O que é difícil, né? Também, né, porque...
MF: A gente anda, na verdade, a gente tem costume [de]
usar camisa, é cinturão, calçado. Uma vez nós chegamos lá
na Assembleia Legislativa, três irmãos. A gente tava andando
ali, aí veio uma mulher dizer assim: “Vocês são da onde?”
“Somo daqui, de Pacaraima.” Aí voltamos perguntar: “Por
quê?” “Não, porque eu nunca vi índio andar. Eu conheço
yanomami, eu conheço juapiri, eu conheço maiongong, tão
diferentes. Agora eu estou aqui olhando vocês, vocês não
são indígena?” “Nós somos, sim.” É assim, eles estranham
muito com a aparência... eu acho que são... não sei... eu acho
que eles veem a gente como Kanaimö [risos]
DF: Eh, e isso é complicado, porque já morar na fronteira
é complicado. É brasileiro, é venezuelano, né?
CF: Sim, porque estamos na fronteira, então pra morar na
fronteira tem que ter dois idiomas. Quem chega na Venezue-
la: “Oh cuñal, como tá tu?” Tu chega lá na Venezuela “¿Tu eres
índio? ¿Tu te parece colombiano?]” Tu parece colombiano. “Yo
no soy colombiano, pues colombiano es malandro.”
DF: Mas eu quero dizer o seguinte, em relação à identi-
44 Projeto: Panton pia’
dade, que acaba que você vai ter que falar assim: “Não, eu
sou indígena”, mas é um indígena que é brasileiro também,
mas que também, vocês também tem uma origem muito
próxima da Venezuela, porque, inclusive, a família veio de
lá, não é? O patriarca veio de lá, não foi isso? E vocês vieram
com 15 anos ou mais velho um pouquinho, não foi?
MF: Com doze anos, isso.
DF: Com doze então. Isso tudo na cabeça da pessoa tem
que... Bom, pelo menos eu penso assim, eu não sei, né?
MF: Eh, então, eu tenho um parente lá no Amajari. Ele é
até um professor, é taurepang, mas ele não é falante,16 ele 16
Muito forte na comunida-
de a relação entre saber a
estuda lá também no Insikiran. língua materna indígena e
ser índio.
DF: No Insikiran.
Alguém: Ele falou que ele representa taurepang, mas o
problema é que não é falante... mas ele representa os tau-
repangues lá dentro.
DF: Entendi.
MF: Então, acontece. Tem uns que são taurepang, da
etnia taurepang, só que já perderam a...
DF: A fluência, não é? A fluência na língua. E a língua aca-
ba sendo uma resistência. Uma resistência da comunidade.
Uma identidade da comunidade. Vocês se tornaram muito
mais fortes quanto à identidade, “Nós somos taurepang. Nós
temos a língua taurepang. Meus filhos sabem taurepang.”
Isso é muito importante. Eu acho que essa é uma questão da
identidade. Mas é, seu Clemente, alguma história assim que o
senhor saiba, de alguma parte da história do povo do senhor?
LS: Do Canaimé...
DF: Eh, do Kanaimö. E outras coisas. É pra gente registrar
mesmo. [...]

CF: Meu irmão, agora nossa história que nós temos, como
fundamos esse Sorocaima I. Eu estou falando a história, não
é do passado, não é do Macunaima, [que] não é verídica.
Porque eu, quando nasci aqui, passei a doença, epidemia que
Projeto: Panton pia’ 45

chama, morreu muita gente aqui. Nosso costume é assim,


costume indígena dos taurepang: se passa uma doença por
esse lado, então desse lado não passa. Então, meu pai me
levou fugindo pra Venezuela, por isso foi que aprendi falar
mais espanhol do que português. Agora, eu estou apren-
dendo falar português, depois de velho, assim como meu
pai aprendeu a ler depois de velho. É por isso. Isto aqui foi
fundado em 1915; 1915, sim senhor. 1915, segundo como vos
falo, porque meu pai que pode explicar tudo, mas ele tá sur-
do, não ouve, não fala, não tem a vontade de falar, porque tá
todo cansado, desmaiado, tá velhinho.17 Ele parece, ser capaz
17
Pouco tempo da morte
de Clemente, seu pai, o
de ter noventa, cento e dez anos, já tá velhinho, meu pai.
patriarca da comunidade,
também faleceu. DF: Cento e dez?
CF: Cento e dez. Pode ser que ele tenha cento e dez ano,
porque tá muito velho demais. Tá cambaleando...
DF: Eu vi ele forte esses dias ali, comendo, sentado, to-
mando uma Coca-Cola. Ele gosta, não é?
CF: Sim. Agora. [risos]
LS: Comendo pimenta com a colher, ele pegava com a co-
lher de comida, botava na boca. Aí pegava outra de pimenta
e botava em seguida.
DF: É assim mesmo? Eu tava vendo ele comer faz poucos
dias.
CF: Parece que pimenta é remédio pra ele, porque, se eu
como assim tanto pimenta, não fico alegre não, fico triste.
Se não tem pimenta, fico triste. Mas não é tanto também,
só pra condimentar comida, é bom assim, agora se tu coloca
demais, aí...
DF: Perde o gosto.
CF: Faz mal pra tu. Esta história foi, esta região de Soro-
caima I tava cheio de gente, mas quando passou essa doença
muita gente morreu. Hoje três, quatro pessoas pegavam
febre, amanhã estavam na tumba.
DF: Isso foi quando mais ou menos?
CF: Isso foi antes de 1915. [...] Então, meu pai me levou
46 Projeto: Panton pia’
fugindo pra Venezuela, né? Me criei lá. Aí nós tornamos a vir
pra cá, aí isso aqui ficou tudo abandonado. Morreu muita
gente, e os outros foram embora, fugiram pra outro país, pra
Venezuela, outros pra Guiana. Eu tenho família na Guiana por-
que, como se diz, jamais saí pra lá. Aí vim com treze anos pra
cá, ajudar meu pai. Isso aqui [aponta pro irmão mais novo]
tava pequenininho ainda. Estavam com sete ano, outro oito,
outro dez [faz referência a outros irmãos]. Eu vim aqui, nós
fizemos roça aqui.. aí aqui não havia nem estrada. Aqui era
caça: paca, veado, catitu, porco do mato, onça, jacu, nambu,
mutum. Aqui a gente vivia tranquilo. A gente vivia tranquilo.
A gente fazia plantações de macaxeira. Conhece macaxeira?

DF: Conheço.

CF: As nossas mulheres faziam beiju. Ninguém conhecia


muita farinha, ninguém conhecia, senão beiju. Na Venezuela
chama casabe.

DF: Eu sei. Eu conheço.

CF: Aí foi que nós pensamos. Depois que eles se fizeram


homem, aí começaram a fazer roça. É por isso que eu já
aprendi mais espanhol do que português.

DF: Ah, entendi.

CF: Agora já estou querendo esquecer do castelhano,


porque já estou no Brasil falando.

DF: Eu também estudei um pouco de castelhano [...],


na escola.

CF: Ah! Tem escola também que ensina espanhol, né?

DF: Tem. Tem espanhol, inglês, tem de tudo, né, tem


até se você quiser aprender grego você aprende. Italiano,
francês.

CF: É por isso que nós estamos por aqui. Agora já esta-
mos quase civilizados, mas não tenho carro, por isso que
eu ainda estou do mesmo jeito que tava. Agora, quando eu
andava assim no volante, eu era branco mesmo. Agora não,
eu estou andando a pé mesmo, chinelazinha no pé, eu vou
Projeto: Panton pia’ 47

18
Nesse momento, seu pegar minha18 camisa, eu vou pescar. Eu pego meu timbó,
Clemente havia dito “meu
camisa”, tal difiuldade em
vou botar timbó no rio pra pegar peixe. Tudo isso aí acontece.
língua portuguesa é comum Gente vivia feliz, meu irmão, a gente vivia feliz. Depois que
em falantes que não tem o
português como primeira
passou estrada por aqui, sem dar nenhum tostão pra nós.
língua. Esse tipo de flutua- Sem dar nenhum centavo pra nós, eles passaram por aqui
ção ocorreu várias vezes em
falantes em que a a primeira ganhando dinheiro. Olha aqui, gente que passou por aqui.
língua era indígena. CIR, organização CIR19 roubou muito dinheiro. O pagamento
19
Conselho Indigenista de desse negócio que fizeram.20 Parece que cento e poucos mil
Roraima.
reais que eles tiraram. Era pra cá, parece que vinte e cinco mil
20
Referência ao chama-
do Linhão de Guri, cabos reais, pra cá, pra comunidade né, esse dinheiro. Vinte e cinco
elétricos que cortam toda pra cá, vinte e cinco pra ali, vinte e cinco assim. Só eles do CIR
reserva São Marcos, le-
vando energia elétrica da comeram tudo. Agora outra lei que aparece pra nós, é muito
Venezuela para o Brasil. preocupante, sim senhor, embora que o policiamento, entra
vereador, entra governador, estou passando esta história
que tá acontecendo aqui entre nós. Chega Meio Ambiente: se
eu vou derribar uma roça, uma rocinha por aqui, tu tem que
pagar trezentos; se der uma linha, duas linhas, tem que pagar
quinhentos reais. Pra quê? Se eu estou derribando na minha
área?. Se eu vou botar timbó no igarapé, tu vai preso, e por
que pela estrada vem maldade? Esse aí que me preocupa. Às
vezes, a gente fica triste, às vezes a gente chora, meu irmão,
isso aí que nós estamos sentindo. O nosso pessoal, tuxaua
Geraldo, só que segundo tuxaua. Daqui da comunidade, tudo
taurepang. Nosso irmão, caçula do nosso pai, Astromarino,
ele é tuxaua. Uma vez nós derribamos duzentos metros
quadrados, ele derribou trezentos metros quadrados, ele
derribou duzentos metros quadrados. Outro derribou du-
zentos metros quadrados. No tempo da queima avoa tudo
essa montanha, porque, quando tá seco, ninguém vai apagar.
Quem vai apagar fogo dele? Ai, ai,ai. Aí veio helicóptero, veio
filmando: “Derrotaram as matas.” “Vamos cobrar eles.” Aí
chegou cobrando. Veio cobrar nove mil setecentos e cinquen-
21
Nesse ponto, ele pergunta ta.21 Primeira cobrança. Passou. Ainda mais fizeram. Cajado de
em taurepang qual o valor
da multa ao irmão Manoel
dezesseis mil e não sei quanto. 2ª cobrança. 3ª chegou quase
Flores. vinte e cinco mil reais. Da onde o índio vai tirar dinheiro? Tu
não pode derribar muita mata, porque vai estragar madeira.
Madeira não estraga, não. Quando a gente vai derribar roça,
nós estamos plantando macaxeira, maniva de fazer farinha.
48 Projeto: Panton pia’
Essa madeira que caiu no chão, estamos aproveitando pra
torrar farinha. Não estraga, não. Não estraga! Nós estamos
aproveitando. Gente não trabalha com máquina, senão com
a mão, manual. Então, nós temos que trazer lenha pra poder
torrar farinha. Essa madeira não estraga, não. Nós aproveita-
mos. Até agora, essa época que nós estamos falando com o
senhor, nós sempre perseguido, sem motivo algum. Ele não
matou. Ele também não matou, mas sem motivo tão perse-
guindo. É por isso aí, da minha parte, eu estou pensando de
me mudar pra Venezuela, porque estão me perseguindo,
assim como vento me levou fugindo da doença, eu tenho
que fugir pra Venezuela.
DF: Procurar o que é melhor, né?
CF: Sim, senhor. Abandonar Sorocaima. Ele [o indígena]
vai pra onde quiser. Se ele quer ir pra cá, ele vai pra cá. Isso
aqui fica abandonado. A polícia chegou aqui; bateu, bateram
em muita gente aqui, nove persona. De mal! Até agora esse
meu filho que [eu] tava falando, desenhador,22 foi batido, 22
O filho de Clemente se
muito [de] mais, e tá sentindo a dor onde bateram nele. E identifica também como
Mário Taurepang, além de
por que é que vem maldade pela estrada? É por isso que nós encontrar referências a
Mário Flores e Mário Flores
não queríamos, nós não queríamos estrada, mas vieram pela
Taurepang na Internet.
porta da gente.
DF: Bem no meio, né?
CF: Sim senhor...
DF: Bem no meio da comunidade. É mais, é o que eles
chamavam de progresso, não é?
CF: Hum... Progresso é só pra eles. Progresso pra eles.
Sim senhor, meu amigo, assim que a história ficou por aí...
Estamos falando outra coisa que, que nós fizemos...
DF: Não, mas isso também é importante, né. Inclusive
essas perguntas todas a gente fez pro Manoel. Mas é, tá tudo
dentro, né. É claro, como ele falou assim: “Não, o senhor
pode deixar que o meu irmão vai contar as histórias lá do...”
MF: Macunaima.
Projeto: Panton pia’ 49

CF: Contar Canaimé também.


DF: É porque a gente tá preocupado com as duas ques-
tões: de registrar tanto essa indignação da comunidade em
relação a muita coisa, mas também registrar a questão das
histórias da comunidade. Essas histórias igual do Makunaimö
e outras que tenham. Assim, as duas coisas. Se o senhor
souber de uma outra história que o senhor queira contar.
CF: Meu querido, a história que eu posso dizer, não pa-
rece, não é muito importante, mas eu vou contar só uma,
curtinha.
DF: Mas é que não importa, não precisa ser grande,
pode ser pequenininha, só que o senhor lembre, pra gente
registrar.
CF: Esse que tava falando, timbó. O senhor conhece
timbó? Que mergulha dentro d’água pra poder matar peixe.
DF: Eu nunca vi fazendo. Nossa, eu estou muito curioso,
me falaram já que é uma planta que você amarra...
CF: Sim.
DF: Machuca.
CF: Sim.
DF: E joga na água.
CF: Sim, é um cipó, ele é um cipó, mas amarga somente
pra pegar os peixes.
DF: E joga lá. E eles ficam bobeados, não é? Eu já sei da
história, só não sei como fazer.
CF: Esse daí, tu sabe como sair? Tu sabe como sair assim,
23
Vale ressaltar a maestria
de raiz, timbó. Meu pai contando essa história, que teve um
do senhor Clemente Flores rapaz, uma criancinha de mais ou menos três anos mais ou
como contador de história.
Ele faz modulações na voz menos. Ele era chorão, chorava demais, chorava. “Te cala,
de acordo com as perso- meu filho [imita som de choro]. Te cala, meu filho!”18 Até de
nagens, com o que elas di-
zem. Há nítida diferença de noite ele chorava. Aí mãe dele, o que é que ela faz? Aí ela saiu
quando ele fala de aspectos com esse filhinho chorão: “Não quero filho chorão, não! Ah,
da vida cotidiana da comu-
nidade para quando ele raposa, leva esse menino pra ti!” Aí deixou lá fora. Fechou
está narrando uma história
mítica de seu povo.
a porta, ficou a criança chorando. Destar que a raposa tava
50 Projeto: Panton pia’
andando, dona Raposa. Aí “Umbora, meu filho.” Pegou
essa criança e levou. Aí ficou de noite, “Destar, será que
ele dormiu? Quando voltaram, não tava mais não. Raposa
já tinha carregado. Isso aí é princípio de produzir essa raiz
que eu tô falando.”

DF: Mas como, que eu não entendi?

CF: Ele disse assim, porque menino era chorão.

DF: Isso eu entendo.


CF: Sim, menino chorão. Então, a mãe dele, a mãe dele
jogou lá fora pedindo que raposa levasse...
DF: Raposa levou.
CF: Sim, raposa. Destar, que tu sabe que raposa de noite
anda ao redor da casa, né? Andando pra pegar galinha. Então,
em vez de galinha, pegou a criança e levou embora.
DF: E aí...
CF: E passa, e passa, e passa tempo.
DF: Ah sim!
CF: E passa, e passa, e passa tempo. Aí ele ficou já homem.
Aí dava aquele ananás igual como, como abacaxi. Ananás é
silvestre, né?
DF: Eu vi um dia lá no Tepequém.

CF: Aí ela dava porque se acostumou como o Raposo,


dona Raposo. Aí um dia ela disse, mais ou menos essa hora.
Eu, na minha opinião, eu calculo assim, essa hora, ela foi no
pé do coisa, no ananás: “Fica aqui, meu filho, eu vou apanhar
ananás pra ti.” Destar que ela deixou ele no caminho da Anta
também. Também deixou no caminho da Anta. Coitada da
Raposa. Esta história não é verdade, mas eu fico sentido. Coi-
tada da Raposa, que [a dona Anta] tomou o filho da Raposa.
Essa Anta, dona Anta, tomou, roubou o filho da dona Raposa.
Ela não tava sabendo, coitada, tava procurando ananás por
aí. Aí, “Meu filho?”, não respondeu. Passou: “Umbora co-
migo, meu filho?” E Anta é grande, né. Colocou no pescoço,
Projeto: Panton pia’ 51

levou. Já tava também um homenzinho. Aí chegou lá: “Cadê


meu filho?” Não, não achou. Maldita. Aí viu rastro de Anta,
de dona Anta. “Maldita Anta! Por que tu levou meu filho?
Você vai me pagar...” Ela amaldiçoou, Anta não tava nem
escutando que [a dona Raposa] tava falando. Aí Anta, essa
senhorita, né, pode ser, eu calculo assim, na minha opinião
era senhorita. Não era anta velha, não. Aí chegou. Passaram
meses, passaram meses, passou ano. O que é que ela faz?
“Tu vai ser meu marido.”, a Anta [disse pro menino]: “Tu vai
ser meu marido.” Será? Se acostumou com ela. Ele [o rapaz]
ficou todo cheio de carrapato. Tu sabe que anta tem muito
carrapato, né? Ele ficou cheio de carrapato. Se acostumou
com ela também como se acostumou com dona Raposa. Aí,
aí um dia tava trepando, né, com Anta. Ela ficou grávida desse
rapaz. Já tava homem, aí: “Eu tô grávida, tô grávida. Não vai
contar pra ninguém que nós tamo aqui, nós tamo no capoeiro
do teu pai.” Esse que soltaram pra Raposa levar. Estavam
próximos da casa do pai dele. “Nós estamo no capoeiro do
teu pai. Nós vamo comer banana que tá por aí caído. Nós
vamo ficar aqui. Se tu quiser sair, saudar teu pai ou falar com
teu pai, a casa de teu pai tá por aí assim, mas não vai falar de
mim, não, viu?” Aí ele foi. “Ai, meu filho.” “Papai vocês me
puxaram da caixa, mas foi com amor que eu vim aqui falar
com vocês.” “Ah, tá bom! Não se preocupe não.” Aí deram
caxiri, caxiri também, né. Nós chamamos caxiri, caxiri bebida.
DF: Eu conheço.
CF: É bom, rapaz, essa bebida! Eh, caxiri é bom! Feita de
macaxeira com açúcar, quando tá bem assim azedinha. Isso
aí reanima sangue da gente. Fica forte. Mas não embriagar,
né, mas não embriagar. Aí ele ficou bebo assim, aí: “[papai],
eu já moro com uma Anta, aí, essa minha mulher aí. Essa que
é minha mulher agora, tenho um filho com ela. Anta [está]
aí nesse capoeiro.” Porque ela proibiu ele de falar dela, mas
esse rapaz também foi mal assim, mas tava bêbado. “Umbora
matar, umbora matar pra nós comer!” Aí esse rapaz disse:
“Olha, não vão matar na barriga. Matem na cabeça, senão
vão matar meu filho.” Aí foram lá. Levaram cachorro: “Au,
52 Projeto: Panton pia’
au, au” [imita som de latido]. Jogaram dentro d’água, aí
mataram. Aí quando tiraram, saiu uma criança, o filho desse
rapaz chorão. Quando foram lavar dentro d’água, aí foi que
começou a morrer peixe. Esse aí foi que, por aí que aconte-
ceu assunto de timbó. Quando foram lavar dentro d’água
porque tava sujo. Recém-nascido é sujo, né, cheio de sangue.
Lavaram dentro d’água. Morreu muito peixe. Não pegavam
peixe. Aí ficou grandezinho de sete, oito anos. Tinha um poço
fundo. Aí “Meu filho, vamo lá pescar!” Aí chamavam ele de
Timbó. “Umbora lá, meu filho Timbó, umbora.” Mergulhou.
Esse peixe que tava falando, aimara, trairão, poço fundo.
Ali tinha bicho também. Aí mandaram ele mergulhar por ali
assim, pra matar aimara. Aí quando não morriam, estavam
saindo por aqui, não podiam pegar. Mandou mergulhar
mais pra dentro, pai dele mandou mergulhar. “Tam!”, bi-
cho ferrou ele. Ele morreu. Ele morreu. Quando vieram pra
ajudar ele, pra ajudar esse menino morto: vieram passarão,
japó, ariramba, muitos, todo tipo de passarozinho. Aquele
mergulhão, pato, toda qualidade de pássaro chamaram pra
ajudar ele, pra tirar ele, pra matar esse bicho que ferrou ele.
Todo mundo lutou, não puderam tirar. Tava no fundo. Agora
aquele mergulhão, tem dois tipo de mergulhão, tu sabe né?
Aquele de bico muito apontado e outro, aquele mergulhão
de bico curto, igual pato, mas não é pato, não, mergulhão
mesmo. Na minha língua se chama kuiawi, kuiawi, kuiawi.
DF: Mergulhão.
CF: Esse mergulhão que é mais valente do que o outro.
Outro se chama pereikö.
DF: Pereikö? [...]
CF: O que é que tem pra perguntar aí, alguma coisa?
DF: Tem pergunta. Mas a história tava tão boa...
CF: Não, porque timbó não foi produzido da terra assim
como a gente planta. Foi uma pessoa, nasceu sendo timbó,
ele morreu sendo timbó.
DF: O senhor já ouviu falar no fura olho, já? Aquele ins-
trumento.
CF: Não senhor.
Projeto: Panton pia’ 53

DF: Não ouviu não. É que vi lá no museu. E a minha dúvida


é: pra que é que eles usavam aquilo, né? Tem duas pontas
assim, que dizem que era usado pra furar o olho da pessoa.
CF: Hum, não senhor.
DF: É assim: tem a ponta bem como esse negócio assim,
e aí fincava assim [em forma de garfo]. É que tem um cabo
todo enfeitado. Aí dizem que isso aqui...
MF: Pra furar os olhos.
DF: Pra castigar pessoas ruins.
CF: Ah, não senhor, não conheço.
DF: Maldoso esse negócio, né! Deixa eu ver aqui. Então,
vamos pra outra parte da entrevista, pode ser? Vocês per-
ceberam alguma parte de preconceito, por exemplo, vocês
percebem isso em relação ao indígena?
MF: Não. A gente tava relatando aquilo, sobre o Órgão
Federal que levou os indígenas, como, assim, é uma dema-
gogia, né. Apresentaram e depois não fizeram. Então, isso
aconteceu, né. Mas nesse ponto...
DF: E quero fazer uma pergunta pros dois, que é o se-
guinte: por exemplo, a Constituição mesmo ela vê o indígena
como alguém que vive no Brasil e pode viver em outro local,
não é. Mas o indivíduo, ele tem os direitos da pessoa, o direito
do senhor. Inclusive os Direitos Humanos falam que o direito
do indivíduo, eles são inalienáveis, ninguém pode mexer com
isso, até certo ponto.
MF: É verdade.
DF: Então, assim, talvez minha pergunta seja um pouco
difícil, essa palavra indivíduo eu não sei se é possível respon-
der, porque é uma coisa muito da nossa cultura. Então, mas
se vocês não quiserem também não tem problema. Mas o
que vocês entendem sobre a questão do indivíduo, de ser
humano, de ser gente. E o que é que vocês entendem por
isso? Se pudesse falar alguma coisa a respeito.
MF: Eh, sobre a Constituição, essa lei que foi, que levan-
54 Projeto: Panton pia’
taram lá em oitenta e oito, isso tá punindo as comunida-
des, porque vem a Constituição, art. 231 e 232, ampara os
indígenas, libera os indígenas pra que os indígenas vivam
tranquilos, nas suas terras, fazendo aquilo que eles preten-
dem fazer. Ao mesmo tempo, a própria Constituição proíbe
que o morador, o índio, não faça aquilo. Então, isso é um
preconceito. Coloca e tira. Então, o índio fica assim perdido
nesse ponto. Sempre eu estou lendo essa Constituição, a
lei ampara mais a floresta do que ser humano.24 Começa 24
Destaque do copidesque.
do artigo, tem artigo que vai longe. Art. 231e 232, só vai até
metade, a lei pra amparar floresta vai mais longe.

DF: Mas o senhor não acha, por exemplo, desculpe o


corte, mas é pra complementar, que talvez a Constituição
esteja vendo o índio como se fosse um pé de árvore?

MF: Eh.

DF: Eh, por isso que eu estou perguntando sobre indiví-


duo. O indígena, o senhor e eu não temos diferenças como
indivíduos?!

MF: Não!

DF: Nós não somos pé de árvore.

MF: Ninguém é pé de árvore.

DF: É por isso que eu estou falando pro senhor, quando


perguntei sobre indivíduo é justamente por isso, entendeu.

MF: É por isso... Então, a lei não respeita, nem respeita


e também não respeita. Um grande desrespeito. [...] Isso, é
isso que preocupa. É por isso que naquela hora eu tava ex-
plicando pro senhor: tem liderança que não entende a lei do
país. É por isso que vem representante do Órgão Federal, da
Funai, aplicando essa lei, derrubando direito do ser humano.
A gente fica perdido. Se tivesse alguém pra esclarecer, eu
acredito que todas as lideranças tinham como se defender.
DF: Então, é justamente isso. Aquela que o indígena não
tem terra, tem terra e não tem terra.
Projeto: Panton pia’ 55

MF: Tem terra e não tem terra.


DF: Não é isso?
MF: Eh.
DF: Né. É como se, eu estou pensando essas coisas agora,
como se o indígena, ele fizesse parte da natureza, como todo
mundo, mas como se fosse uma árvore, como alguém que
não pudesse interferir diretamente, pensar e agir sobre ela
com consciência.
MF: Eh. Eu tava conversando com alguém sobre a destrui-
ção do meio ambiente, sobre desrespeito das comunidades
indígenas, porque, assim como nós estamos falando, cha-
maram os indígenas preservadores da floresta, ao mesmo
tempo eles chamam os indígenas destruidores da floresta.
Pra onde que nós vamos caminhar. Pra esquerda ou pra
direita. E depois eles dizem que os indígenas, eles matam
algum animal só pra se alimentar, depois eles dizem que os
indígenas matam além de usar e deixam estragar. Então, com
isso, com essa mentalidade que vem da parte dos brancos,
da Constituição, os indígenas ficaram cercados por todo lado.
Ficaram ilhados, não sabendo pra onde vão andar, nem pra
direita e nem pra esquerda.
DF: É por isso que eu te perguntei sobre...
MF: Então, essa lei tá pressionando a gente. Tiraram di-
reito nosso, ninguém tem mais direito. O que é que eu posso
fazer? Eles não tratam. Não olham o indígena como gente.
DF: A palavra talvez seja indivíduo, com direitos e deveres,
obrigações, como qualquer outro.

MF: Como qualquer outro. Aqui fizemos uma reunião


no ano retrasado. Então, representante do órgão federal, a
Funai, ele falou pra nós, ele falou assim: “O índio, ele quer
ter seu carro, não pode.” Ele falou assim. Por que é que ele
não pode ter carro? O índio ele pode comprar bicicleta; pri-
meiro ele tem que comprar bicicleta. Aí vai pedalar, vai andar
por aí durante um ano, três anos, quatro anos, depois de
cinco anos, dez anos ele pode comprar um carro. Se o índio
56 Projeto: Panton pia’
comprar de um dia pro outro, então capaz de vir a punição
indígena, porque [há] desconfiança, “Quem sabe tão plan-
tando maconha, quem sabe tão contrabandeando algo que,
que é contra lei.” Então, deixa o índio andando de bicicleta.

DF: Mesmo se ele tiver condições de comprar?

MF: Diz a Funai.

DF: Mas tá amparado em quê?

MF: Em que sentido é?

DF: Amparado em que Legislação? Se você tem as condi-


ções financeiras, você compra.

MF: Tá proibido.

CF: Outra coisa, nesse meio, porque os brancos eles têm


paciência...

DF: Não, mas é quando o senhor tiver, e assim a gente


vai voltar aqui, se tiver alguma coisa, o senhor pode falar...
MF: Ah! Tá bom. Então, ano que vem, mês de março, a
gente vai botar timbó aqui no rio Sorocaima. Aí convidar o
senhor, pro senhor pegar peixe...
DF: Mas eu vou vir pra pescar com vocês. Não, pode dei-
xar, eu acho que por hoje, tá bom, né, seu Clemente? E eu...
CF: Não, depois eu vou pensar quando...
DF: Justamente.
MF: Mário Roberto Flores25 levou a gente pra lá, pro 25
Pai de Clemente e Manoel
Maurak, comunidade indígena Maurak. Quando eu tava com Flores.

doze anos, ele trouxe pra nós. É no ano sessenta e sete, no


final de sessenta e seis pra setenta, chegamos aqui. Abri uma
clareira pra gente trabalhar. Veio eu, Manoel Bento Flores e
Lídia, a minha irmã. E minha irmã, a minha irmã mais velha,
Hilária, e o marido dela. Quatro pessoas pisaram aqui, já pra
morar. Foi no mês de setembro de sessenta e sete. Aí viemos
pra morar mesmo. Depois de passar um tempo na Venezuela,
com doze anos, eu vim aqui. Aí, daí mesmo a gente começou
abrir uma roça, botar roça, plantar mandioca, quando não
Projeto: Panton pia’ 57

tinha ninguém aqui no Sorocaima. Só tinha nosso parente


indígena, aqui. Ele morava bem aqui na margem do rio Soro-
caima, por nome Otávio, ele morava lá. Só era ele. Aqui era
mata geral. Então, nós passamos a morar aqui. Desde aquele
tempo, desde de sessenta e sete nós estamos morando aqui.
DF: E aí não mudaram mais?
MF: Não. É, em noventa e quatro, no ano [de] noventa
e quatro, meu pai Mário Roberto Flores, e uns três pais de
família foram morar lá pro Amajari, aonde nasceu, lá no meio
dos parentes, no Amajari. Mas como, como de costume teve
confusão, eh, sovinaram mata, sovinaram caça, sovinaram a
pescaria, tudo. Então, criaram um tumulto. Esse pessoal veio
de outra comunidade: “Nós somos daqui.”, mas ele sabia.
Mário Roberto flores é descendente de lá, ele tem família,
sobrinhos, netos e netas, só que não quiseram aceitar ele.
Depois de cinco anos, ele foi daqui, em noventa e quatro. Foi
ele, finada minha mãe, o outro pai de família, mais outros, uns
cinco pais de família foram pra lá. Só passaram cinco anos. Aí
o pessoal, moradores botaram eles pra correr. Aí eu sei que
voltaram pra cá. Hoje, a gente vive aqui. Não assim muito
bem, mas a gente tá vivendo né, levando a vida. E lá nós
perdemos o nosso parente. Não sei o que é que aconteceu.
Ninguém sabe, nem diz de que é que ele morreu, emagre-
ceu. Era um homem gordo, se tornou dessa grossura assim,
emagreceu, emagreceu, que ele morreu seco. E a mulher dele
também morreu. Vieram de lá, já pegaram doença e vieram
morrer aqui. Eles foram enterrados aqui. Não deu pra gente,
não deu pra eles morar. Papai foi pra lá, Mário Roberto foi
pra lá, mas eu fiquei, ficou outro também. Uns cinco pais de
família foram pra lá, mas não deu certo. Aí voltaram. Tinha
igreja, construímos, ajudamos [a] construir igreja Adventista,
mas com esse problema todo aí, tivemos que abandonar. Aí
voltaram pra cá. Hoje nós estamos aqui.
DF: Eu lembrei de uma coisa. O senhor já concluiu ou não?
MF: Não, a gente, eu estou, eu estou só recapitulando o
que nós estamos vivendo aqui no Sorocaima. Assim a história
de Sorocaima. Da Venezuela viemos uns sete filhos, oito,
58 Projeto: Panton pia’
nove, dez, onze, doze pessoas vieram do Maurak, da comu-
nidade do Maurak. Hoje já têm mais de cento e cinquenta
pessoas. Vieram doze pessoas, já tem cento e sessenta e
quatro pessoas. Temos a igreja, temos agente de saúde,
temos motorista, temos um mecânico (não entende bem,
mas dá pra resolver os problemas). Então, acredito que nós
estamos quase completos: tem agente de saúde, tem pastor,
tem mecânico, tem motorista. Então, só esse grupo tá com-
pleto. Mas pra nós, pra mim, como pros demais, tá faltando
uma coisa: construção de uma escola pra que as crianças
aprendam mais, pegar a Constituição Brasileira e pra eles,
mais tarde, pra eles saber se defender, porque assim como
nós estamos falando: a lei tá pressionando a gente. Ninguém
foi atrás da lei, mas a lei tá passando até as comunidades.
DF: Vocês não conseguem viver sem ela também, porque
o indígena tá subordinado a ela.
MF: Sim. Tem a lei que ajuda, tem a lei que protege, tem
a lei que ampara, mas tem a lei que oprime, oprime. Então,
nós estamos vivendo assim. Ninguém deve pro governo,
ninguém deve pra ninguém. Ninguém deve pra prefeitura,
ninguém deve pra ninguém, ninguém, ninguém. Nós estamos
vivendo por nossa conta. As casas Bem Morar26, o prefeito 26
Projeto de construção de
casas populares do Gover-
tentou construir, mas o próprio Órgão Federal saiu contra no de Roraima.
esse Bem Morar. Ele veio fazer reunião aqui por causa des-
se Bem Morar. Aí ele fala assim: “tuxaua, é vocês que tão
pedindo casa ou eles tão obrigando vocês?” Aí respondi pra
ele: “Olha, doutor, essa casa popular, essa casa aqui foi pe-
dido das comunidades, fizemos documento, passamos pro
prefeito e agora prefeito já tá fazendo as casas populares
pra comunidade. Aí ele diz assim: “não é, não é bem assim,
tuxaua, não é bem assim, não, não pode. Isso tira vocês do
índio pro branco. Isso daqui é usado, isso daqui foi feito pro
branco, não é pro índio. O índio, ele tem costume de morar
debaixo de uma palha, de um barraquinho de palha, é muito
bonito. Mas assim, isso daqui é dos brancos.”
DF: Por que o senhor não perguntou pra ele assim: “É,
mas o homem veio da pedra, da caverna, não sei o quê. O
Projeto: Panton pia’ 59

senhor tá morando em uma caverna até hoje? Aí veio de


carro, chegou aqui bonitinho pra conversar conosco, não é?”
MF: Aí eu disse pra ele, ele falou: “Olha, se fosse por
mim...” ele falou assim, falou bonito, “Eu não vou embargar,
mas quem embarga é o Ministério Público. Eu passo o rela-
tório dizendo que a prefeitura tá obrigando a comunidade
de Sorocaima I pra aceitar casa, eu passo. Então, não é eu,
é Ministério Público.” Aí nós falamos pra ele: “Olha, não é
Ministério Público, você vai querer embargar”, eu falei pra
ele: “É você, porque Ministério Público não vem atrás da casa
Bem Morar, quem vem atrás da casa Bem Morar é você, o
senhor tá falando.” Aí outro representante, o presidente da
ALIDCIR27 que eu tava mostrando o...
27
Aliança de Integração
e Desenvolvimento das
Comunidades Indígenas de
DF: Eu sei...
Roraima, criada na região
de Pacaraima, já que muitos MF: Ele era presidente. Ele veio na hora da reunião. Aí
indígenas não se sentiam começaram a conversar, nós conversamos. Ele disse assim:
representados por associa-
ções como CIR. “Oh meu chefe, com todo respeito, o senhor tá falando que o
índio, ele não pode morar numa casa de telha... por quê?” Aí
ele respondeu assim: “Não, essa telha produz muita doença.”
Ele diz assim, “Ela produz muita doença com a quentura, a
28
Telha de amianto, que foi telha,28 ela cai o pó aí ataca os indígenas...” E o presidente
comprovada causar danos à da Associação Anísio Pedrosa Lima respondeu assim: “meu
saúde. Tem o uso proibido
ultimamente. chefe, com todo respeito lhe pergunto, eu fui lá pra maloca
dos índios Yanomami, lá não tem casa popular, lá não tem
nada. Já andei por lá, conversei com eles, mas, assim, se [o
problema] é casa popular, eles estão morrendo de doença,
por quê? Ferida, a doença. Aí ele respondeu assim: “Não,
não me preocupo com isso.”, ele falou isso: “Não, não me
preocupo. A vida dos indígenas sempre foi assim. Então, não
cabe a mim, não cabe à Funai. Eles brigam, eles se matam,
pegam ferida, pegam doença, morrem. A Funai encontrou
eles por aí, se eles morrer. Hoje é o jeito, é o jeito dos indí-
genas. Se afinal eles viviam assim, morrendo e a Funai vai se
esforçar pra querer ajudar? Não. A Funai tá aí somente pra
olhar se os garimpeiros vão chegar lá e matar eles, aí assim.
Mas, esse negócio de doença, ah, isso aí a Funai não se pre-
ocupa com isso, não se preocupa com isso.” O senhor viu,
60 Projeto: Panton pia’
coisa boa que é o Órgão Federal, que tá passando isso pra
gente. O presidente da associação conversando com ele,
ele respondeu dessa palavra, quando terminei de falar com
o presidente, olhou pra mim assim: “Tuxaua, o senhor vai
permitir eu passar pro Ministério Público pra parar essa casa
ou não?” Aí a comunidade gritou: “Não! Ministério Público
não tem nada a ver com isso. A casa é das comunidades.”
Aí outro respondeu: “Se o senhor persegue os índios, nós
vamos lhe processar!” “Não rapaz! Negócio de processo
deixa pra lá. Eu tô perguntando, apenas perguntando.” “Tá
bom, tá bom, deixa que o prefeito faça a casa pra vocês.”
A Funai se afastou. Então, assim a gente tava, eu fiz uma
pergunta. Como é, verdade os índios daqui, os índios tendo
estatuto dos índios [lá] diz: a lei ampara se o índio precisar
de se integrar na comunhão nacional é, não é proibido. A lei
ampara, mas [pra] Funai é proibido. Isso ele falou pra nós,
sempre falo com eles. Essa pressão é grande, essa pressão
é grande. É bom, eu quero complementar a minha palavra
dizendo assim: então, é bom que o senhor traga professor
pra dar um curso sobre direitos e obrigações. Os índios, as
lideranças não sabem o direito deles, até direito deles não
sabem. Ele tem direito, mas ele não sabe. Se tem lei pra dar
direito a eles, ele vai pra cadeia, ele apanha, tendo direito
deles, tendo razão. [...] Então, essa pressão é grande pra
cima da gente. Tudo isso eu esclareci pro senhor, que pren-
deram a nossa caçamba29 que nós íamos levando, leva, isso, 29
Não é permitido aos in-
dígenas comercializar, por
isso, isso tudo. Então, é melhor nós chegarmos mais perto, exemplo, cascalho extraído
pra ver de perto, também pra ver a lei, pra que alerte as das terras demarcadas.

lideranças indígenas como eles podem buscar a sua defesa.


Senão vão cortar nossos braços, mais tarde vão tirar nossa
língua. Pronto. Aí não fala mais. Ninguém fala mais. Então, a
minha preocupação é essa. Grande preocupação. Eletronorte
usou nossa área, eu não vejo resultado até agora, agora nós
vamos sair pra avaliar linha de transmissão, Linha de Guri.
O que é que ele tá trazendo pra comunidade? Que tipo de
benefício tá trazendo pra [a] área São Marcos? Nós vamos
avaliar nesse ano ou em janeiro. É bom que vocês estejam
presentes pra ouvir o que é que Eletronorte vai dizer, porque
Projeto: Panton pia’ 61

as comunidades dali não são afetadas por esse Linhão de


Guri, eu e ele, os demais que estamos aqui não receberam
nenhum centavo. Problema é grave. Então, a minha palavra
são essas, como fundamos Sorocaima, como andamos pra lá.
Agora tem outras histórias, quando o senhor voltar, vamos
falar sobre a igreja. Meu pai, ele é de cem anos, de cento e
cinco anos, ele foi um grande pregador aqui na área. Desde
1958 ele trabalhou muito. Se o senhor se interessar, gravar,
a gente vai falar, né, na próxima. Ele andou muito, andou
por aqui. Antigamente a gente chamava Puxa-faca porque
eles brigavam muito, puxar faca. Andou no Caraparu, andou
aqui no Contão, lá pro Amajari. Em 1958 ele foi pra lá, cons-
truiu a igreja. Depois veio aqui a Igreja Assembleia de Deus,
fecharam a porta da igreja Adventista. Escreveram na porta
da Igreja Adventista: essa é a Igreja Assembleia de Deus. Por
último, veio a Igreja Católica, tirou a placa da Igreja Assem-
bleia de Deus, passou pra Igreja Católica. Tudo isso meu pai
Mário Roberto Flores enfrentou. Então, na próxima, quando
tiver oportunidade o senhor vem aqui com a gente, estamos
aqui de braços abertos pra gente discutir.Tá certo. Tem outro
problema que nós discutimos com o pessoal da FUNASA,
eles disseram assim, porque aqui a gente não recebe vacina.
Aí olharam pra mim assim: “Mas tu, tuxaua, porque tu não
aceita vacina?” Aí eu entrei assim: “Olha rapaz, vocês bran-
cos, vocês usam muita vacina, aí o filho de vocês fica cego,
aí vacina esculhamba o sangue, sangue é puro. Toma vacina,
sobe pra cabeça o sangue, aí é por isso que o filho de vocês
com idade de dois anos usa óculos. Vê o nosso filho, ninguém
usa óculos. A gente usa óculos quando completa cinquenta
anos pra cima. Agora, filho de vocês não, o meninozinho de
oito anos com óculos na cara, dez anos, vinte anos. Então, é
por isso, a gente pesquisou, então ninguém aceita vacina.”
DF: Me diga uma coisa, inclusive a pergunta tá ali, mas
eu não fiz ainda. O senhor comente isso. Eu tava vendo
uma entrevista nesses dias, até fiquei meio chocado. [...]
os rapazes estavam narrando a história do eclipse. Quando
a lua encontra com o sol, né, aí é como se a comunidade
inteira ficasse suja, como se a comunidade inteira ficasse
62 Projeto: Panton pia’
menstruada. Aí a comunidade inteira tem que passar pelo
processo de purificação. Eles tomam inclusive uma bebida,
uma espécie de sopa, um caldo quente. A pessoa toma, ela é
tóxica, e na hora que ele toma joga tudo pra fora pra limpar.
Ele toma e vomita na mesma hora pra poder fazer a limpeza
do corpo [...].Tem todo um ritual, quando vai virar rapaz. O
que é que acontece? As comunidades tinham isso, né, eles
pegam os rapazes. Eles pegam um instrumento feito com
dente da piranha, aí ele vem no corpo dele assim [sinal de
ficar raspando]...
MF: Aí fica raspando, né.
DF: Raspa o corpo todo, aí vem depois com uma água
ou com uma... não é nem sal, é um cipó que vai ajudar no
processo e passa no corpo do menino todinho, e é uma for-
ma deles virarem homem. E assim tem pra menina também.
Por exemplo, hoje tem isso aqui? Teve algum dia? Não existe
mais? Já existiu esse tipo de iniciação?
CF: Isso aí, isso aí é verdade. Isso que tu tá perguntan-
do, isso aí é verdade. Na época passada, os antepassados
faziam isso. Sabe pra quê? Pra se curar, pra ser caçador, pra
ser pescador. Eles tomavam água misturada com puçanga
que chamam vocês puçanga, mas nós chamamos, na minha
língua, muran.
DF: Muran.
CF: Muran. Eles colocavam e tem muran oloroso que nem
canela. O senhor conhece canela?
DF: Claro, conheço.
CF: O senhor conhece canela. Eles colocam pra ser ca-
çador de veado, pra ser caçador de mutum, nambu, jacu,
veado campeiro, veado capoeiro. Ele mistura nessa água,
então rapaz novo tomava até encher barriga.
DF: É isso, é isso mesmo.
CF: É verdade, é pra limpar a sujeira que tem aqui na
barriga da gente, no estômago da gente. Aí vomitava, pedia
pra ser caçador de veado, pra ser caçador de anta, pra ser
Projeto: Panton pia’ 63

caçador de mutum, pra ser... Eles falam com essa puçanga


que eles colocavam dentro d’água pra tomar, pra purificar a
barriga, eles falavam. Duas, três vezes, ou seja, quando a lua
tá bem por aqui assim [aponta pro céu], eles curavam, né.
Esse que eu estou entendendo o que tu queria saber. É isso
aí. Pra esse, pra purificação do estômago, pra ser caçador.
DF: Forte, resistente, não é?
CF: Sim senhor. Aí, daqui até quando a lua ficar bem por
aqui assim, aí pra... Se for de manhã também. Se for de manhã
também, porque já tava lá no ralo, que nós chamamos, na
minha língua chamo sumari, feito de madeira, com a ponti-
nha, [com] ralo, que chama.
DF: Madeira com?
CF: Madeira com um pedaço de ferro com assim, pra
ralar mandioca. Isso aí. Eles fazem pequeno e fazem gran-
de, eles fazem mais grande assim. Então, ralavam, jogavam
dentro d’água, bebiam pra purificar, pra ser, como assim
disse, caçador. Se tu vai pro mato, em seguida tu consegue
caça. Se tu não faz assim, se tu não purifica barriga com essa
puçanga, não consegue nenhum, nenhuma caça. Estando
com essa [peste(?)] tu não consegue porque não tá curado.
Outra coisa, esse dente de piranha não é. Pra nós indígena,
ele tem filho novo, desde pequeno assim, aí tira pedaço de
gilete tiam, tiam, tiam [imita som de corte]. Aí coloca, ele vai
passar esse muran pra ser caçador de peixe, pra ser pescador.
LS: Ainda faz isso?
CF: Ainda não. Não! Agora não existe mais não. Assim
como nós estamos falando, assim porque nós estamos falan-
do a palavra de Deus. Nós estamos colocando a palavra de
Deus no meio, porque a palavra de Deus é certa. A palavra
de Deus diz: “Não raspe! Não cortem vossa carne!”, porque
é proibido derramar sangue. Porque Jesus derramou muito
30
Mais uma vez, optou-se sangue e não podemos imitar, porque ninguém somos30
em não mudar este tipo Jesus, nós somos humanos. Ah sim, sim senhor, agora outra
de expressão: “ninguém
somos”. coisa: se tu quer ser avistador de coisa longe, tu tem que
colocar pimenta na vista. E tem outra coisa, tem puçanga
64 Projeto: Panton pia’
que chama, não sei como nome dessa puçanga, nós cha-
mamos paricö, nós chamamos, é um raizinho, ele é ardoso
como pimenta.
MF: Queima muito.
CF: Então, tu rala nesse ralo, pega o sucuzinho, coloca
nos olhos, coloca nos olhos. Aí quando tu vai sair pra caçar
no campo, vê de longe, lá vai veado. Tu tá olhando porque
tua vista tá bem limpa com essa puçanga. Assim usavam
nossos pais. Agora se tu tá doente, com dor de cabeça, tem
que tirar folha de tiririca, aquele que corta tem folha aqui, é
tiririca. Tu sabe o que é tiririca?
DF: Tiririca?
CF: Sim, tem olho dele assim, duro afiada, amoladinha,
amarra três folhas duras, que acaba de sair assim.
DF: Aquele meio mais duro.
CF: Sim, como se diz, é... olho dele que sai, primeiro olho
dele que sai. Então, amarra três assim, são pequenininhos,
né, são pequenos, são vários tipos de tiririca.
DF: Eu sei, tem as pequenininhas...
CF: Sim, então amarra com a... Se tu tá com dor de cabeça,
então o velho abençoa essa tiririca amarrado pra ser curado
dessa dor que tu tá sentindo na cabeça. Então, coloca no
nariz “tcham”, aí sai muito sangue “tcham”, aí tu derrama
esse sangue. Então, pimenta também abençoada, ele coloca
no nariz, tu não aguenta não, aí amanhã tu não sente a dor.
Sabe por quê? Porque muito sangue na cabeça. Esse aí que
tá dando dor na tua cabeça. Isso é remédio. Não é remédio
pra ser caçador não, esse é remédio pra dor de cabeça.
DF: Pra dor de cabeça.
CF: Sim senhor. Outra coisa que tu tá perguntando, isso
nós vamos repetir outro. Essa água misturada com puçanga,
ou seja, com a folha cozida, isso aí pra dor de barriga, não
é pra ser caçador não. Isso aí pra cura, isso aí pra cura. Tá
sentindo dor às vezes e tá evacuando [a] cada momento.
Então, pra evitar essa, tu tem que tomar água até encher
Projeto: Panton pia’ 65

barriga, sem querer tu tem que tomar pra ser remédio. Aí tu


vai vomitar, jogar toda essa sujeira que tá na tua barriga, aí
tá, não sente mais dor, não solta muito vento, isso aí, esse
remédio. Pimenta colocado no nariz depois de derramar, tirar
sangue, isso aí remédio. Agora puçanga, muran e orocan, isso
é remédio pra ser curado, pra ser caçador. Sim senhor, assim
é. Agora não existe mais. Não é preciso cortar.
DF: Os meninos então não tem essa iniciação?
CF: Não. Agora não, agora não, agora acabou.

31
Maurak localiza-se na
MF: Antes da gente vir daqui do Maurak,31 meu pai falou
Venezuela, região do Par- pra mim assim: “Meu filho”, o mais velho, talvez irmão, o
que Canaima. Interessante
observar como se configura avô dele falou pra ele: “Olha, não usa muran pra ser caçador,
a territorialidade nessa não usa, mas usa água.”, ele falou pra ele, pro meu pai, aí
região entre os indígenas.
chamou nós: “Olha, meu filho, vocês têm que se curar, não
vão usar essa puçanga. O meu tio falou pra mim falar pra
vocês, pra vocês não ver essa puçanga, mas vamos conseguir
outro meio aí pra você se curar, pra vocês ser caçador, pra
quando você casar a mulher de você não passar fome, vocês
não se curaram, vocês não têm dinheiro, então pega flecha,
assim, pega arma, vão pra mata pegar uma caça, é assim.”
Ele dizia assim: “Vocês vão na beira do igarapé, vê aquela,
aquela moita, né, quando enchente, no tempo da enchente
não pega aqueles galhos muito balseiro, né, folha.”
32
Optou-se em deixar essa CF: Folha pequeno, comprido, grosso, grosso.32
concordância para observar
como a língua portuguesa MF: “Aí encosta na beira do igarapé.” Aí papai, ele falou
se distingue da língua deles.
Esses entrevistados, no ge- pro papai, papai passou pra gente: “Olha, meu filho, vão
ral, tiveram como primeira
curar. Cinco horas da manhã vocês têm que pegar copo,
língua o taurepang, depois
é que vieram o português e vocês têm que ir pro igarapé, tomar água, aonde tem aque-
o espanhol. Eles falam, pelo
menos, essas três línguas.
le galho, um monte de galho, é considerado como caça, aí
tem veado, aí tem catitu, aí tem todo bicho, todo pássaro.
Bebe água até vomitar. Encheu a barriga, tem que vomitar
em cima dessa folha, durante noventa dias, sessenta dias.
Depois disso vocês vão sair, matar veado.” Aí eu, meu irmão
que mora ali naquela casa, aí decidimos: “Rapaz, umbora
fazer?” Éramos curumim, né, “Umbora fazer!” Nós fomos na
beira do igarapé. Aí tomamos água. Rapaz, pra tomar água
de manhã cedo: “Quem que vai tomar?” [risos] Nós fizemos
66 Projeto: Panton pia’
isso só uma semana, aí eu não aguentei. Depois de vomitar...
CF: A garganta da gente fica toda irritada.
MF: É, meter banho cedo lá, é água fria, aí tá gelada
mesmo pra pessoa banhar, hunn! Aí aguentamos. Foi só uma
semana. Aí paramos. E depois eu conversei com outro velho,
não da igreja, aí ele falou pra mim: “Olha, rapaz, aqui tem
puçanga.” Ele me amostrou: “Pra quê?” “Pra veado mateiro,
veado campeiro.” “Como é que a gente faz?” “A gente bota
no olho da gente, passa num ralinho, aí passa no olho, só um
mês.” “E bom pra ser caçador?” “Eh, eu já experimentei, olha,
aqui tem couro de veado, tem chifre de veado campeiro. Eu
mato bem aqui mesmo.” “Rapaz, o senhor não tá inventan-
do não?” Aí eu disse: “Eu vou experimentar.” Eu fui mais
esperto, né. Aí eu fui usar esse remédio. Só que queima os
olhos da gente igual pimenta, só por uns cinco minutos, aí
fica ardendo. Usei durante sessenta dias, contados, sessenta
dias. Doutor, parece mentira, tu não sente mais o sono, tu
fica assim, animado, querendo caçar, tu fica, tu fica esperto
mesmo. Eu pegava espingarda, eu saía pra experimentar.
“Rapaz, agora eu vou experimentar.” Eu saía, encontrava
caça. Isso existiu, mas parei, tava bom pra conseguir alguma
coisa, pra quem tem família. Quem não usa esse muran, ele
não consegue não. Ele não consegue. Já morei aqui com um
velho, como é que chama um homem que não caça, que não
consegue nada? É como é que chama? É...33 33
A palavra é panema: im-
prestável, sem sorte na
LS: Azarado. caça e na pesca.

MF: Eh. Mas, doutor, eu andei, já pesquei aqui nesse


igarapé. Ele passou, ele passou dois anos, dois anos aqui
no Sorocaima, quando tinha muita caça. Ele passou, ele
morou aqui dois anos ou três anos. Ele tinha espingarda.
Sabe que nunca atirou com essa espingarda. Quando ele vai
pra pescaria, fui eu com ele, esta hora fomos pescar lá pra
baixo. Rapaz, aí eu vi o velho que não tem sorte. A gente
tava pescando, ele tava pescando aqui, eu tava pescando
assim. Aí nós jogando anzol seis horas, quando tinha peixe
aqui no Sorocaima: traira, aracu. Aí estavam beliscando aí.
Projeto: Panton pia’ 67

“Rapaz, não pegou.” Aí eu fui pegando. Peguei um, dois,


três, eu peguei até sete. O senhor sabe quanto ele pegou?
Só pegou cinco caranguejos.
DF: Caranguejo, é!
MF: Então, tem isso. Puçanga que o Clemente tá falando é
muran. É usado pra caça. Quando eu tava usando, eu matava
dois, três. Última, última caça que eu matei, só cutia eu matei
duas, aí parei. Então, tem pra beber água e vomitar sobre a
folha pra fazer a tradição.

DF: Tornar o menino forte, não é isso? Resistente.

MF: Pimenta pro menino se tornar resistente. Eh pi-


menta.

DF: E pra menina não tem alguma coisa?

MF: Também, se for preciso tem que usar pra menina,


porque tem menina indígena que não levanta. A mãe chama:
“Umbora, minha filha, vamos trabalhar! Vamos espremer
mato! Vamo...?” “Ah, deixa eu dormir.” Aí uma menina dessa
precisa de pimenta nos olhos dela, aí fica esperta.

DF: Também,né... [risos]. Vou contar essa pra minha filha.

CF: Senhor, ainda existe, ainda existe, mas ninguém


estamos usando.

MF: Ninguém usa mais.

CF: Sim, ainda existe.

DF: Claro que existe.


CF: Essa cura pras meninas que o senhor tá perguntando,
eu estou entendendo que queria saber, né, porque as meni-
nas, naquela época, faziam caxiri, faziam pajuaru. O senhor
sabe o que é pajuaru?
DF: Sei não.
CF: Pajuaru feito de beiju. Doce, sem açúcar. As mulheres
faziam beiju assim fresca. Molha, mas tem que saber embru-
lhar nas folhas de banana, que mais forte que tem é najá.
68 Projeto: Panton pia’
Najá, aquela redondinha.
DF: Banana, amarela?

CF: Não, não é isso aí não.


MF: Pajuaru não se vende assim.
CF: Um beiju grande assim, eles molham dentro d’água.
Eles colocam no jamaxim. Então, corta uma folha de banana
dessa najá, que eu estou te dizendo, que é mais forte. Essa
banana najá é doce, doce demais. Tem que ser outra folha e
coloca onde tu fizeste beiju com fogo embaixo de forno, tu
tira forno e tu sabe que a terra tá quente de fogo, de brasa.
Então, a mulher limpa e coloca essa folha, e coloca esse
beiju molhado e coloca o condimento, é... folha de, folha
de maniva, bem em pó, triturada, bem em pó. E depois um
pouco de milho bem moído, também: tcham, tcham, tcham;
depois um pouquinho de goma bem em pó, também: Tcham,
tcham, tcham; e coloca folha em cima sem açúcar. Embrulhou
e fechou e pisei com qualquer pedaço de pau aí. Passa um
ou quatro dias se for feito bem feito. Quando abre tá tudo
floreado. Aí prova, gosto igual como a gente come goiaba-
da, assim como a gente come... Aí quando coloca no balde,
balde de, como chama na Venezuela, camaça, balde de fruta
da [terra(?)]. A gente coloca, joga água, depois de dois dias
uma bebida saudosa, rapaz! Pra isso, se tua filha não sabe
fazer caxiri doce, tem remédio pra isso. Tem puçanguinha
que as velhas colocam no beiço da mulher, aqui embaixo do
beiço, “Tcham.” “Tcham.” “Tcham.” [corta] com gilete assim.
E queima essa puçanga bem queimadinho em pó preta.
Elas colocam assim, fica tudo pregado assim, enterrado no
[sulco], aonde gilete cortou. Naquela época, faziam caxiri
mastigado na boca. Tu pode tomar?
DF: Se eu posso?
CF: Sim, mastigado na boca?
DF: Depende, tomo.
CF: Sim porque, ninguém tem que ter mal gosto de...
Projeto: Panton pia’ 69

DF: É claro.
CF: Então, pra isso que as antigas velhas curavam suas
filhas assim, cortavam aqui assim: “Tcham.” “Tcham.”
DF: Os lábios embaixo né.
CF: Embaixo. Aí coloca esse pó, é puçanga. Aí quando ela
vai mastigar, pra misturar caxiri que tá fervendo. Ela coloca,
mistura e coloca no balde. Amanhã de manhã cedo doce sem
açúcar. Isso aí é outro remédio, companheiro.
DF: Eh... Que beleza!
MF: Pajuaru é bebida mais venenosa. Se ela tiver meio
azeda, se tu botar bem por aqui, tomar um, aí tu não conse-
gue sair por causa de maniva.
CF: Sim porque é forte, muito forte. Igual cachaça.
MF: Igual cachaça. O senhor não consegue tomar. Agora
caxiri não. Caxiri enche a barriga, aí tu vai andando. Mas
pajuaru, tomou numa vasilhazinha, tomando duas vasilhas
desse, rapaz tu fica...
CF: Tombando. Sim muitas coisas, assim vem na memória,
muitos pensamentos. Então, quando tu voltar de novo, por
aqui, a gente conversa mais. Traga dólares pra nos alegrar...
DF: Ih, tá falando com a pessoa errada.
CF: Traga dólar pra nós conversar mais...[risos]
MF: Primeiro eu assisti a chegada da Funai aqui na área,
eu assisti a chegada da Funai. Tinha a sede deles em Manaus,
mas aqui na área, no Estado de Roraima, nunca tinha. Mas
quando, assim, não é ofendendo vocês, mas o branco tava
querendo massacrar a gente. A gente passou pra polícia
territorial, naquela época, ligou pra Manaus, ele sabia onde
sede da Funai, aí vieram aqui. Primeira pessoa que recebeu a
presença da Funai fui eu. Em 70... 74, é, 74... 77, é, 77. Então,
eu vi gravador, é, rádio mesmo, aí botava quando a pessoa
34
A partir desse ponto tem
tá falando. 34
início uma entrevista ex-
clusiva com Manoel Flores.
Projeto: Panton pia’
Entrevistado: Manoel Bento Flores (MF)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Assistente de Entrevista: Lucimar Sales (LS)
Local: Comunidade Sorocaima I, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 1/10/2008
Transcritora: Ana Maria Alves de Souza
Conferência de Fidelidade: Airton Vieira, Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 2’11’’49’’’
Projeto: Panton pia’ 73

[...]
DF: Então, vamos lá. A gente queria primeiro, seu Manoel,
que o senhor falasse o nome e a idade do senhor. A etnia eu
já sei, que é taurepang, não?
MF: Taurepang.
DF: Qual o nome do senhor, então?
MF: Meu nome é Manoel Bento Flores. Nasci em 1955.
Agora, até agora eu tenho 53 anos.
DF: 53. Aqui na comunidade o senhor tem alguma função
específica? Porque as comunidades possuem alguma função,
por exemplo, o primeiro tuxaua, segundo tuxaua. O senhor
tem alguma função específica?
MF: Sim, eu sou representante da comunidade. Até o
presente momento, eu sou o representante. Na declaração,
aí constam umas dezessete comunidades. Até dezembro sou
representante. Depois vão me dar baixa. Outro vai assumir,
então é assim.
DF: O senhor é o representante das dezessete?
MF: Eh.
DF: Ah! Sim.
MF: Não. De outros aldeamentos indígenas.
DF: Uma coisa que eu achei muito interessante aqui na
comunidade do senhor é a questão que vocês têm um po-
sicionamento em relação à escola muito pessoal, não tem?
MF: Tem.
DF: Que vem do patriarca. O senhor poderia falar um
pouquinho como é que se dá o ensino aqui, como é que a
mãe ensina, se é a mãe quem ensina pros filhos ou é o pai?
E qual o motivo do patriarca não permitir a escola? Espero
que a gente não veja isso como algo negativo. É pra eu en-
tender um pouquinho. É uma coisa que eu fiquei muito feliz.
Quando eu chego aqui e observo que, aonde eu chego, é
claro que pode ter um lado negativo, mas onde chego, vocês
conversam na língua de vocês, preservando. Não é toda co-
74 Projeto: Panton pia’
munidade por aqui que conseguiu preservar isso. Eu cheguei
em vários locais, então isso aí também é algo positivo, não
tem só negativo...
MF: Isso é longo assunto sobre a nossa convivência aqui
na área. Eh, eu queria esclarecer assim, não sei como, se o
nosso patriarca Mário Roberto Flores, criou aquela, aquela,
uma ideia deu na cabeça dele, né? O pensamento vem da
cabeça. Então, ele teve uma ideia de proibir os filhos se
integrarem na sociedade branca. Ele falou assim: “Meu
filhos, vocês têm que viver assim do jeito que nós estamos
morando, de agricultura. Se um dia vocês vão chegar a ser
pai, vocês vão ter filho, então vocês têm que passar isso pra
filho de vocês, eles têm que trabalhar na agricultura.” Então,
ele falava assim, “Deixa que os brancos vivam assim como
eles estão, mas nós temos que manter a nossa cultura até o
fim da nossa vida. Enquanto eu estou vivo, jamais eu vou abrir
a mão pra construir uma escola.” Essa ordem que ele deixava
pra nós, um conselho. Eu, o filho do patriarca Mário Roberto
Flores, meu nome Manoel Bento Flores, então eu fui mais
atentado, eu falava pra meu pai: “Papai, por que assim? Seu
pensamento tá muito errado. Nós vamos viver até dez anos,
quinze anos pra lá, vai chegar a sociedade branca, então não
tem como, não vai ter como a gente se entender com ele, e
nós falamos taurepang e eles falam português. E aí como é
que vai ficar?” Aí ele falava pra mim assim: “Meu filho, eu sei
falar um pouco de português, então eu mesmo, eu vou levar
alguns produtos, eu mesmo compro, eu mesmo trago pra cá.
Agora vão trabalhando. Não pensa em estudar.” Então, com
essa proposta, os filhos mais velhos tomaram essa ideia do
pai. Então, eles, meus irmãos não aceitam a escola. Então, a
família que vocês estão vendo aqui, as crianças não sabem
falar português, ficam surdo ou mudo quando a senhora
fala: “Eu quero tomar água.” Então, algumas meninas ficam
perdidas, ficam pegando aquilo que a senhora não tá pe-
dindo, água, mas é assim. Assim nós estamos vivendo aqui.
Mas meu pensamento é diferente. A proposta do patriarca
Mário Roberto Flores é essa, não se integrar com a sociedade
branca. Então, pra gente estudar foi difícil, foi muito difícil,
pra mim foi difícil, porque ele comprou o livro como esse,
Projeto: Panton pia’ 75

ele me deu: “Meu filho, estuda.” Agora quem é que vai ensi-
nar? Eu andava com o livro na mão só pra dizer que eu tava
estudando, em casa mesmo. Mas eu me interessei muito pra
saber o que o mundo oferece, o que o mundo traz, então eu
me interessei muito. Eu andava com livro e lápis, e depois,
eu estou esclarecendo isso, o que é que aconteceu comigo.
Isso aconteceu comigo. Eu perguntava de alguém, porque
meu pai ele era missionário, ele pregava a palavra de Deus,
não parava em casa. Parava assim, mas por um pouco de
tempo. Ia pra aldeamento indígena, chegava, passava dois,
três meses e depois saía. A profissão dele foi essa. Então,
eu sinto isso, que nós crescemos assim. Eu pegava o livro,
olhava: “Agora quem é que vai me ensinar?” O irmão mais
velho saiu pra outra vila longe, o irmão mais velho; e outro
filho não sabia ler; outro filho não sabia ler; outra irmã, que é
a nossa irmã, não sabia ler; outra irmã não sabia ler: “Agora
quem é que vai ensinar?” Mas eu acho que com a ajuda de
Deus eu consegui descobrir o que tava escrito. Isso caiu na
minha cabeça, eu fui começar a ler. Aí eu perguntava dele,
do meu pai: “Papai é assim?” “É assim.” Mas ele não ensina-
va. Só mostrava: “Isso aqui fala.” Então, pra não chegar ler
assim, a escrever um pouco, assinar o nome foi muito difícil,
é difícil, é difícil!
DF: Vocês tiveram que aprender sozinhos...
MF: Sozinhos. Eu aprendi sozinho, porque eu passei por
aí. Aprendi sozinho. E depois meu irmão mais velho entrou
na escola. lá ele aprendeu um pouquinho. Quando ele tá
começando a aprender, o professor também se afastou. Aí
pronto. Aí nós ficamos. Aí então, até agora ninguém sabe se
comunicar com o doutor, com os homens da lei, ninguém
tem como a gente se comunicar.
DF: Comunicar comunica, o problema é que tem dificul-
dade em ter acesso...
MF: Eh. Se torna problemático pra nós. Agora, pra ou-
tro aldeamento, é mais fácil, porque tem professor, tem
professora.
76 Projeto: Panton pia’
DF: E eles mesmos conseguem se defender...
MF: É, eles sabem. Mas nós aqui, nós estamos dentro do
aprisco, ninguém pode nem abrir a mão. Então, a gente anda,
a gente se arrasta pra alcançar a estudar, e ler, e escrever,
porque hoje a gente vê a lei do país chegando até as comuni-
dades. A lei do país chega na comunidade através do IBAMA,
através da Funai que representa as comunidades indígenas. A
lei do país chega através da Polícia Federal, a lei do país vem
através da Polícia Militar, todas as autoridades. Eles trazem
a lei que ninguém conhece. Então, pra gente responder se
torna difícil. É por isso que me interesso muito a estudar. Por
isso. Se nós vivemos assim que nem nós vivemos aqui, sem
estrada, sem transporte, sem avião, assim fora da sociedade
branca, tudo bem, pra mim não me interessa estudar. Eu
mato caça, eu pesco, eu estou comendo, lavrando a terra,
trabalhando, mas assim como nós estamos aqui, no meio de
uma tempestade: prende indígena, intima indígena, prende
o índio pra ali. Então, a gente se encontra muito pobre.
Temos nosso Deus, o poderoso, o senhor sabe muito bem.
Temos Deus, um vivo, que nunca dormita, mas o próprio
Deus entrega alguém pra ajudar os filhos dEle. Aí pra nós se
tornou muito difícil.
DF: Imagino. A primeira língua que a comunidade aprende
é o taurepang, né?
MF: Eh.
DF: A primeira língua. A língua materna é o taurepang.
MF: Língua materna ninguém aprendeu. Nós nascemos...
DF: Sei.
MF: Primeira língua.
DF: Eh.
MF: A linguagem materna é essa, taurepang.
DF: Então, o português já é a segunda língua.
MF: Segunda língua. Pra nós é língua estranha, idioma
estranho.
Projeto: Panton pia’ 77

DF: E é estrangeiro mesmo, é isso mesmo a palavra. Es-


tranha quer dizer um pouco isso.
MF: Então, a nossa convivência é assim. Mas através da
igreja ainda nós estamos estudando, nós estamos estudan-
do, porque eu comparo assim, se eu compro um violão ou
um instrumento, sanfona, tem que ter a pessoa pra ensinar.
Sem professor ninguém toca igual os que estão cantando lá,
tocando, então tem que ter a pessoa pra ensinar.
DF: Vocês falam em taurepang. E vocês escrevem em
taurepang?
MF: Muito pouco.
DF: Muito pouco.
MF: Muito pouco. Então, a nossa convivência é assim.
DF: Então, as pessoas aprendem no dia a dia.
MF: Eh. Dia a dia.
DF: E o senhor é agricultor ainda?
MF: Até o presente momento a gente mexe com agri-
cultura.
[...]

DF: Bem, o nome do seu pai o senhor já disse. E da sua


mãe?

MF: Mário Roberto Flores. Não sei quem foi que deu esse
nome FLORES. Mas quem sabe os antepassados deram esse
nome pra ele, né? Nome da minha mãe é Paula, Paula Bento.
DF: Ela era taurepang também?
MF: Não. Ela é da tribo macuxi.
DF: Ah! Ela é macuxi.
MF: Passamos a morar aqui em Venezuela há uns 15 anos.
Minha mãe, com 15 anos, nunca aprendeu a falar taurepang,
nenhuma palavra. Macuxi é macuxi mesmo. Falava, porque
pra lá, Venezuela, só fala mais taurepang, aí ela respondia
em macuxi, aí os taurepangues não entendiam. Então, eu
78 Projeto: Panton pia’
sou filho do taurepang e a mãe macuxi.
LS: Mas ela conseguia entender o que os taurepangues
falavam?
MF: Ela entendia um pouco. Foi difícil, mas no decorrer
do tempo ela começou a chegar a descobrir o que é que eles
estavam querendo, aí ela foi entendendo. E ela entendia, só
que não respondia. Respondia macuxi.
DF: A religião do senhor é qual? O senhor falou que é
Adventista.
MF: Eu sou da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Meu pai
quando ele veio, ele era da Igreja Católica, mas depois ele
reconheceu que isso tava muito errado, não tava conforme
tá escrito na Bíblia. Os missionários pregavam diferente.
Então, ele tinha que abandonar a Igreja Católica e passar
pra Igreja Adventista.
DF: E o senhor tem mais alguma informação de quando
a Igreja Adventista veio pra cá? Ou mesmo assim, quando o
seu pai se tornou católico, ou sempre foi...
MF: Meu pai, ele recebeu a Igreja Adventista, religião
Adventista, com idade de dez anos, dez anos. Depois de dez
anos, quando eles estavam... Sempre eles faziam o culto no
dia de sábado. Tinha um americano ensinando eles; ameri-
cano que veio dos Estados Unidos, veio até aqui, quando
eles moravam, eram pequenos, aí veio um americano, casal
de americano. Aí tiveram a primeira religião que meu pai
recebeu, a religião Adventista. E foi passando uns tempos. E
depois a Igreja Católica soube que a religião tava penetrando
no meio dos indígenas, aí a Igreja Católica de Caracas ou de
Colombia, ou lá mesmo dos Estados Unidos, vieram, man-
daram prender o pastor americano, mandaram prender. A
prima minha que mora em Santa Elena, tem histórico muito
bom de quando a Igreja Católica se prontificou pra prender
o pastor americano da Igreja Adventista. Ela fez tudo, mas
ela ficou de passar pra mim, que eu preciso, como assim que
vocês estão procurando, e eu também procuro como nasceu
a Igreja Adventista.
Projeto: Panton pia’ 79

DF: É claro, porque é história, não é?


MF: É história. Mas um dia eu vou procurar. Foi assim,
meu pai recebeu a religião Adventista, com dois anos ou
cinco anos veio a Igreja Católica. Então, procuraram um
meio de prender, procuraram um meio de expulsar. Eles
mesmos falavam, dizendo que a Igreja Adventista não era
verdade, era inventado, agora onde eles estão trabalhando
a Igreja Católica é a mais verdadeira. Com isso formaram
um grupo grande, mandaram prender o pastor americano e
expulsaram. Aí a Igreja Católica tomou conta daquele grupo
que tava reunido.
DF: Tá certo. O senhor é casado?
MF: Eu sou casado.
DF: Tem filhos?
MF: Tenho oito filhos. Mas um já morreu. Só restou sete.
[...]
DF: Tem uma pergunta que eu gosto de fazer, porque
isso diz um pouco das pessoas. Qual a coisa mais triste que
o senhor já passou na vida do senhor e qual a mais feliz? Eu
sempre faço essa pergunta, porque faz a gente pensar um
pouquinho sobre o passado e também as coisas boas e ruins.
MF: Eh. Doutor, a minha vida, a minha vida até agora foi
triste, pra mim foi uma tristeza. Hoje a gente tá vendo que,
com esse movimento, com essa chegada da sociedade bran-
ca, pra mim se tornou mais, pra mim se tornou uma alegria,
porque nesse ponto: uma vez um cunhado meu, por nome
de Laurindo (ele mora bem aqui), ele se adoeceu quando
não tinha estrada, não tinha nada, se adoeceu aqui quando
a gente tava morando aqui. Como é que nós vamos fazer pra
levar pra Boa Vista pra ele se tratar? Nós tínhamos que tirar,
desatar rede, amarrar na vara, botar ele na rede. No inverno
nadamos esse rio Sorocaima, num atoleiro, fomos levando
no meio da chuva até na Boca da Mata, porque pra levar
um daqui do Sorocaima até a Boca da Mata é quilômetro. A
nossa vida foi assim, não tinha doutor, não tinha nada, nada.
80 Projeto: Panton pia’
E outro, naquele tempo a tecnologia não tinha chegado até
aqui, o próprio líder de lá, da Boca da Mata, fez um recado,
né, que falavam: “Passa recado!” Botaram num papel e eu
levei esse papelzinho da Boca da Mata, quando tinha muita
onça por aqui nessa Serra; eu e o Marinho que tá aí, que
atendeu vocês. Só nós dois subimos aqui, não tinha ninguém,
ninguém, ninguém. Só os macacos, os guaribas, onça, cobra.
Saímos da Boca da Mata, dormimos aqui, levando o papel pra
solicitar o avião de Boa Vista pra vir pegar o paciente. Olha,
coisa difícil, pra mim é. Subimos estas horas e chegamos lá
em Pacaraima. Não é Pacaraima, naquele tempo era Divisor.
DF: Na divisa.
MF: A divisa. Chegamos lá na casa do seu Antônio Barrei-
ro, era comerciante. Antônio Barreiro, era recém-chegado
lá. Outro comerciante que já morreu. Assisti a morte dele,
primeiro comerciante que morou. Chegamos lá, deixamos o
recado, o papel. Na mesma hora nós voltamos, viemos dormir
aqui, eu e o Marinho. No outro dia saímos pra Boca da Mata,
e o paciente gemendo lá. Tinham os pajés aonde nós usamos
muito, mas aqui nessa região não tinha pajé. Só tinha pajé na
comunidade Ireu, lá pra beira do rio Ireu. Então, se tornou
difícil. No terceiro dia, avião desceu, pegou paciente e levou
pra Boa Vista. Passou um mês se tratando. Isso foi em 60 e...
68, por aí, 67 ou 68. Segunda vez, o líder daí da Boca da Mata,
pai do tuxaua Hilário, que morava aí na Boca da Mata, se
adoeceu, e nesse tempo mesmo não tinha estrada, não tinha
nada. O que é que o pessoal faz? Pegaram dez pessoas (até o
irmão Paulo que vocês conversaram com ele), ele também foi
uma das pessoas que botou paciente aqui no ombro, da Boca
da Mata. Saíram pro Entroncamento, entrada do Surumu,
no sol quente. Ali foi um sofrimento muito grande. Então,
pra mim, estou feliz porque tem hospital ali no BV-8; tem
hospital geral em Boa Vista; tem estrada; tem ambulância.
Nós estamos sofrendo sim, mas diminuiu mais. Então, pra
mim, eu feliz. Bem, pra mim é assim uma alegria, sofrimento
já acabou. Até pra comprar algumas coisas, a gente fazia
farinha; torrava farinha aqui; a gente levava assim uns dez
quilos; eu levava uns dez quilos; outro levava vinte quilos, pra
Projeto: Panton pia’ 81

comprar fósforo, açúcar, alguma coisa aqui, lá aonde eu, falei


no Antônio Barreiro, comércio. A gente aí; e por esta hora
a gente tava de volta, com um pouquinho de rancho. Hoje
não, os compradores, peixeiros estão chegando até na porta
pra comprar banana, pra comprar farinha, trazem carne.
Então, pra nós se tornou mais fácil, pra mim é uma alegria.
Agora, é nesse meio, ao mesmo tempo eu sinto um misto
de tristeza, porque a lei pressiona a gente e não tem como
a gente se defender, a gente se defender. Então, é assim; é
assim. A nossa convivência foi assim. [...] Quando, mais uma
vez, quando logo a estrada passou aqui, não era asfalto, só
35
A cidade de Pacaraima piçarra, meu pai se adoeceu. Não tinha ambulância no BV-8;35
é conhecida também por não tinha hospital; hospital tinha em Boa Vista. Tinha os mo-
BV-8, pois ali se localiza o
marco divisório BV-8, da radores aqui, logo quando a estrada, o batalhão veio abrindo
divisa Brasil-Vezenuela. a estrada. Eles mesmos afirmam que trabalhavam na estrada
e tiravam um lote aqui, outro aqui. Então eles tinham alguns
carros. Então, apareceu um homem por nome de Siguinês.
Ele tinha o jipe. Não era pra levar paciente; era pra carregar
milho, pra carregar macaxeira. Mas nesse ponto, como a
gente tava aperreado, procuramos o Siguinês. Ele disse: “O
que é que tá acontecendo?” “Não, o meu pai tá doente.”
“Tá ruim?” “Tá!” Então, ele disse: “Diz pra ele se preparar,
que eu vou levar no meu jipe, aí ele não vai morrer.” Então,
veio, levamos ele até na beira da estrada, botou o paciente
no jipe e levou pra Boa Vista. Então, ele foi. Como o meu pai
tava gemendo de dor, de tanta dor, ele acelerava o jipe pra
chegar ou pra morrer. Então, aconteceu isso com a gente.
Mas ele chegou no Coronel Mota. Os médicos trabalharam;
trataram bem; melhorou: Mário Roberto Flores tá aqui. Se
não fosse isso, ele já tinha morrido. Com tudo isso, como
eu estou explicando pro senhor, me preocupa muito essas
coisas. Por quê? Eu me pergunto por quê? Hoje a gente vê
a família falando a sua linguagem taurepang, alguns estão
caminhando, estão se arrastando pra chegar, aprender a
linguagem português.

DF: Mas como eu falei pro senhor, eu não vejo de tudo


ruim. Eu acho que tem um lado que é muito bom, que é isso
82 Projeto: Panton pia’
que eu falo pro senhor, que a gente chega aqui e vocês estão
se comunicando na língua tradicional que é a de vocês. Esse
é o lado bom. Vocês preservam isso tudo, mas ao mesmo
tempo não têm como ter acesso ao que tá acontecendo ali, e
de repente não saber uma outra língua fica muito mais difícil.

MF: Fica mais difícil.

DF: Então, tem um lado bom e um lado que muitas vezes


atrapalha.

MF: Eu tenho pensado, eu tenho pensado assim: “Eu


quero estudar”, eu mesmo pensando, eu quero estudar pra
mim falar bem português, pra mim defender o meu povo e
também não esquecendo da nossa linguagem taurepang. Eu
tenho que falar bem o português com os brasileiros, com o
português, e falar em taurepang bem, igual, e falar em caste-
lhano. Por que é que eu penso isso, doutor? Eu sou da igreja
Adventista. Eu tenho que pregar em português. Quando eu
for pra Venezuela, eu tenho que pregar castelhano, espanhol.
A minha preocupação é essa. Quando eu estou pregando
aqui, eu tenho que pregar em taurepang. Quando chegar
um visitante assim como o senhor tá aqui, quando eu estou
pregando em taurepang o senhor não entende. Então, tem
que passar, traduzir em português.
DF: E sem contar que não existe a Bíblia em taurepang,
existe?
MF: Não, não.
DF: Não tem.
MF: Não tem. Só macuxi. É só macuxi. Então, essa pro-
posta que tenho, o motivo é esse: eu tenho que falar em
taurepang; eu tenho que falar o espanhol; eu tenho que falar
em português, porque estamos sendo visitados por diversas
etnias, então eu tenho que estudar. Não sei se a minha idade
permite, eu tenho 53 anos, se eu entrar na escola não sei
se eu chego lá. Até quando for com 65 anos quero pregar
em português, em castelhano, porque a ordem do Mestre,
Projeto: Panton pia’ 83

criador do céu e da Terra é evangelizar todo mundo. Então,


meu coração pede muito, eu tenho que estudar.
DF: O senhor nasceu onde, aqui mesmo ou na Venezuela?
MF: Eu nasci em Maurak, em Venezuela. Mãe brasileira.
Pai meio venezuelano-taurepang. Eu nasci em Venezuela.
Com doze anos me trouxeram pra cá. Com doze anos.
DF: Uma informação: o pai e a mãe do seu pai, eles eram
taurepangues?
MF: Não.
DF: Não.
MF: Não, deixa eu ver. Eu acho... O pai da minha mãe era
macuxi, agora do meu pai é taurepang.
[...]
DF: O senhor sabe a história da fundação da comunidade?
MF: História do?
DF: De como foi fundada a comunidade. Por exemplo,
era o pai do seu pai que tinha comunidade no começo, ou
depois ele fundou, o senhor sabe?
MF: Bom, a gente sabe. Quando não tinha fronteira, os
indígenas viviam assim: pra eles não existia fronteira. Até eu
cheguei a ver, aqui não tinha nada, era deserto. Depois que
passaram aqui a Venezuela, o Brasil, apareceu esse limite.
Então, nessa época eles andavam pro Brasil, aqui é Brasil,
né?; voltavam pra Venezuela. Começaram a morar por aqui.
Diz meu pai que morou lá no Amajari, a família dele é de lá.
Veio daqui, o senhor sabe né, e eu também fiquei preocupado
assim, querendo saber por que é que os indígenas foram pro
Brasil, por que é que os brasileiros foram pra Venezuela. Mas
a gente sabe muito bem que isso é normal: americano casa
com a brasileira, brasileiro vai pra um... não tem fronteira.
DF: A fronteira é algo criado pela gente. É claro, a fronteira
do Brasil nem sempre existiu. Ela foi conquistada e muitas
vezes com gente morrendo pra ter ela [...].
MF: Aí o casamento acompanha. Então, foi assim: mora-
vam aqui. Isso foi depois que receberam a Igreja Adventista
84 Projeto: Panton pia’
aqui; foi expulso. O pastor deles foi expulso; o pessoal de lá
pra cá se espalhou; outros foram morar pra cá, lá pro Amajari.
De lá pra cá eles vieram, passaram a morar aqui no Ireu, na
beira do rio Ireu. Vieram, pararam aqui na Santa Rosa, só os
taurepangues. Aí vieram aqui, tem até pé de buriti bem aqui
aonde eles moravam. Até o Bananal, quando nós chegamos
aqui, em 77, daqui do Maurak, existia Bananal. É deles, eles
moravam aqui com meu pai. Ele era mais novo, de 18 ou 20
anos. Como não tinha esse movimento, a venda de mercado-
ria, não tinha nada, nada, não sei como eles viviam naquela
época, eu não sei dizer. Aí foram, moraram aqui uns 10 anos.
Subiram pra cá, moraram aí uns 5 anos no pé daquela serra.
Foram subindo, tem um campinho bem aqui em cima dessa
serrota, moraram lá. Aí foram passando pra Venezuela. Aí
foram morando, depois novamente voltaram. Assim eles
viviam aqui. Até que casou com a minha mãe, aí começou a
juntar família; se agrupar; controlar.
DF: E ele sempre foi o líder?
MF: Eh. Sempre foi o líder.
DF: Eu tenho outra dúvida, não é nem uma dúvida, é uma
curiosidade que não sei nem se é verdade. Me falaram que
a palavra “tuxaua” é uma palavra nova, não é?
MF: Eh. Era cacique, né?
DF: Eu não sei se era cacique.
MF: É... É tuxaua mesmo.
DF: A comunidade de vocês sempre chamou tuxaua ou
não?
MF: Eh, tuxaua.
DF: Sempre chamou tuxaua.
MF: Sempre tuxaua. É o líder de uma comunidade.
DF: E o pai do senhor sempre foi o líder.
MF: Foi. Sempre foi. Desde a igreja, o pessoal reconheceu
a proposta dele, opinião. Eu acho que ele tinha boa opinião,
né, boa proposta, então ele foi escolhido pra liderar. De lá
Projeto: Panton pia’ 85

pra cá ele vem como líder, passou a liderar a família. Então,


ele foi morar pra lá. Agora depois de andar, depois de receber
a Igreja Adventista, moraram assim, circulando: ia pra cá e
voltava, é assim.

DF: É. Porque às vezes tá num local, né, aí a caça diminui...

MF: Diminui. É assim.

DF: Isso aí é comum mesmo. E em relação à alimentação,


como era e como é hoje? O senhor acha que mudou muito?
Qual o seu ponto de vista em relação a isso?

MF: Doutor, o nosso alimento é, até no ano 2000, 90, a


gente manteve o nosso alimento normal. A gente saía pra
caçar dois dias daqui, ou antes a gente caçava bem aqui
perto. Aqui atrás da serra a gente conseguia algo pra comer.
As caças foram se afastando, e a nossa comida, damorida
(o senhor já viu falar, damorida? Já comeram damorida?)...
DF: Já comi.
MF: O nosso alimento é esse, até 90, eu entendo assim,
até 90. Alimento puro. As mulheres, elas conhecem uma
36
Palavra espanhola, para mata36 que tem aqui na roça nova. Tem a mata que a gente
planta.
usa pra comer, tipo repolho. Tira folha, bota pra cozinhar,
escalda, depois prepara. Quando tiver um peixe ou carne
de veado assado, bota nesse, mistura com essa folha e a
nossa comida...

DF: Era basicamente essa.

MF: Eh.

DF: E é engraçado. Eu achava que a damorida37 só era


37
Espécie de sopa, em ge- com peixe. E aí me explicaram que não, com a caça que tiver.
ral temperada com muita
pimenta, podendo ser feita MF: Eh. Damorida é alimento normal da comida dos
com caça ou peixe. A base
da comida indígena tradi- índios.
cional é a damorida com
beiju seco. ALGUÉM: Carne de veado, de paca, vai tudo.

DF: Vai tudo. Até pássaro. Eu já comi com peixe, eu gostei


muito. Só que a que eu comi não tava tão forte. Que eu sei
que depende das comunidades, que eles colocam...
86 Projeto: Panton pia’
ALGUÉM: Cada aldeia tem seu modo de...

DF: E aí eles colocam mais ou menos [pimenta].

ALGUÉM: Tem uns que colocam pimenta e aí elas se tor-


nam muito quentes. Agora a gente aqui come um pouco de
pimenta, não, lá aquelas coisas, muito fortes.38 38
Era comum, durante a
entrevista, chegar outros
MF: Então, a nossa comida é essa, damorida. Até no ano indígenas. Alguns faziam
comentários.
90 a gente comia. Agora, doutor, mudou muito; pra cá mu-
dou muito. Ninguém come mais a caça. O pessoal só compra
carne de gado aí no BV-8, todo dia. E galeto!39 Ninguém sabia
39
Palavra pra frango, muito
o que é galeto, agora os índios daqui já sabem o que é galeto. utilizada na fronteira com a
Venezuela entre brasileiros.
DF: Tem caça ainda?

MF: Aqui mesmo, não. Mas indo um dia e meio, tem muita
caça. Também a gente mata caça escolhida. Ninguém come
porco, ninguém come tatu, ninguém come anta, ninguém
come nada. A gente mata veado mateiro, campeiro, mutum,
jacu, nambu, só. Então, se o senhor entrar aqui nessa mata,
você vê um bando de queixada. Ninguém mexe com eles.

DF: Ah! Queixada vocês não consomem?

MF: Não. Porque a lei de Deus não permite.

DF: Mas e hoje, vocês estão comendo de tudo? A comida


praticamente do mercado?

MF: Do mercado se tornou mais pra... a daqui da cidade.


Antigamente não, só damorida mesmo. Agora chegou, todo
dia o peixe lá de fora, não sei da onde, de Manaus. Chega
aqui peixe que foi morto há uns dez dias, vinte dias.

DF: [risos] Isso é complicado.

MF: É complicado. Então, nós estamos levando assim


um pouco daqui da comunidade mesmo e um pouco que
vem da cidade.
DF: Ah! Entendi. Mas também agora a coisa é mais difícil,
como o senhor mesmo falou, tem um certo conforto hoje,
com a comunidade mudando menos hoje em dia. Antiga-
mente andava mais, ia pra ali, ia pra lá. Como hoje ela muda
Projeto: Panton pia’ 87

menos, não tem pesca; aí fica mais difícil, não?


MF: Fica mais difícil.
DF: Andar um dia, dois dias pra encontrar uma caça.
MF: Agora mesmo a gente tá planejando de sair uns dois
dias daqui, pra 25 de dezembro, pra que os caçadores che-
guem com a caça, pra comemorar dia 25. É assim.
DF: Assim, a gente sabe que o senhor tem a religião agora,
mas quanto aos rituais antigos vocês ainda fazem ou não?
MF: Não. Isso não existe.
DF: Não existe mais.
MF: Não. Só igreja mesmo. Eu tenho 53 anos. Ainda eu
não vi o que os nossos pais faziam. O meu pai nunca pensou
em fazer isso. Então, eu não sei como era. Até agora eu não
conheço aquele que chamam, falam de parixara, tukui, mari-
-mari, aquela dança e outra cultura indígena, isso não existe.
DF: Ah! Entendi.
MF: Eh, aqui mesmo não.
DF: Na comunidade do senhor não.

MF: Eu não sei na Boca da Mata ou na Santa Rosa, nessas


outras comunidades. Mas aqui mesmo não. O que os jovens
estão praticando só o futebol, o jogo, gostaram né? Então, se
dedicaram pra isso. Mas a cultura indígena mesmo não existe.

DF: Conhece porque já ouviu falar. E o senhor pertence


a alguma representação indígena?

MF: Como?

DF: O senhor falou que o senhor representa todas as


comunidades. A gente sabe que aqui no alto, estando aqui
40
Organização dos Profes- em cima têm várias... ALIDICIR, a OPIRR,40 têm várias repre-
sores Indígenas de Roraima.
sentações. O senhor pertence a alguma?

MF: Eu sou da ALIDICIR, do Nivaldo. Eu era, eu sou fun-


dador da ALIDICIR. Nivaldo assumiu agora, dia 12 de março,
como presidente.
88 Projeto: Panton pia’
[...]

MF: Então, antes de, eu acho que antes de ele chegar


pra cá pra morar nessa região, a gente fundou essa aliança.
Eu tenho carteira aqui. Eu era vice-presidente, trabalhei 5
anos. Fundamos em 98. O próprio presidente pediu pra eu
me afastar: “Você é vice-presidente, tu se afasta, porque
eu vou chamar outro.” Aí colocou outro. Aí eu me afastei.
Mas eu pertenço, até agora, se Deus permitir, a gente dá
continuidade.

DF: E como o senhor vê o índio hoje? [...]

MF: O índio, aqui no estado de Roraima, eu vejo assim,


eu não quero ofender as etnias ou a aldeia, mas o nível dos
índios tá subindo pouco a pouco, muito devagar. Tá devagar
a situação dos indígenas aqui no estado de Roraima! Eu vejo
assim. A educação tá aí pra educar, mas eu não vejo advoga-
do índio, eu quero ver advogado indígena, ao menos dez...
DF: Pra poder representar.

MF: Pra representar, pra defender o seu povo. Eu não


vejo nenhum vereador índio. Eu não vejo nem três indígenas
prefeito. Eu não vejo nenhum deputado indígena. Eu acho
que é falta de interesse, porque os alunos que estudam não
querem, não querem, eu acho que não querem subir. Quando
termina o estudo dele, recebe o seu certificado, vai pra sala
de aula. Pronto. Esquece do seu povo, só tá mexendo com
os alunos. Eu vejo isso. Os indígenas estão estudando sim,
mas eu vejo que é muito pouco, subiu pouco, muito pouco.
Agora, se tivesse três indígenas na prefeitura como prefeito,
se tivesse ao menos dois ou três deputados estaduais indí-
genas, um deputado federal em Brasília, aí combinava do
deputado federal pra estadual, do estadual pra prefeitura.
Mas até agora ninguém vê isso. Então, os indígenas não
querem, não querem aproveitar seus estudos. Estudaram, aí
estão encostados. Eu estive conversando com um rapaz que
trabalhou, serviu à pátria, né, ele disse: “Viche! Rapaz, eu não
quero!” Ele diz assim: “Eu não quero ser funcionário.” Aí eu
disse pra ele: “Por quê?” “Porque, pra gente ser funcionário
Projeto: Panton pia’ 89

do governo, a gente fica preso igual pássaro. Quando a gente


prende um pássaro, a gente não coloca na gaiola? A gente
fica assim preso; todo dia tu tem que ir naquele gabinete ou
no escritório. Então, eu não quero, eu não quero não. Eu fui
soldado, aprendi muito negócio de armamento, eu já aprendi.
Mas pra ser funcionário público, não!”

DF: E os taurepangues têm até um..., é um coronel ou não?

MF: É o general.

DF: É um tenente, não?

MF: Eh. Tenente. Como é o nome dele? Até esqueço.

DF: Me esqueci também. Eu tenho até um recorte de


jornal, Tenente...41

MF: Então, eu estive conversando com o soldado da aero-


náutica, é um índio. Até quiseram levar ele pra Belém, pra ele
41
Referência ao taurepang
e Tenente Sebastião Paulino se formar lá, aprender mexer com avião, pra carregar os indí-
que lutou na Segunda Guer-
genas, mas que: “Rapaz, se eu for pra lá, quem sabe eu vou
ra Mundial.
morrer lá. Minha mãe, meu pai...” Pronto. Ele ficou aí. Nem
foi. Então, os indígenas, nesse ponto, eles estão perdendo,
perdendo oportunidade. Só tem muito, se o senhor quiser
falar com os professores, reúne os professores, dá muito
professor. Agora, falar em deputado indígena, nenhum. Falar
em prefeito indígena, nem cinco.
DF: Essa administração mais direta que é necessária.
MF: Eu acho que os indígenas se interessam só pra ser
professor, professora. Doutor, também eu não vejo o índio.
Eu não sei, quem sabe mais pra lá pra baixo, mas aqui no
estado de Roraima, eu vejo só professor e professora. Nesse
ponto os indígenas ainda estão nessa jornada de professores.
Ele vai pra escola, estuda e pronto: lá mesmo ele fica. Ele fez
segundo grau, já tá começando a lecionar.
DF: Tá certo. E a relação do índio com a terra? O senhor
acha que mudou muito ou não mudou? A gente vive hoje
uma questão de conflito. Não é nem discussão, agora é
conflito mesmo.
90 Projeto: Panton pia’
MF: Questão da terra tá trazendo problema sério. Eh,
doutor, isso é principal, questão da terra. Eu moro aqui na
terra demarcada, área São Marcos, aqui área São Marcos,
aqui não é Raposa Serra do Sol. Eu, eu era segundo tuxaua
na época. Quem era primeiro tuxaua, Messias, que mora ali
naquela casa, eu era segundo dele. A gente acompanhou a
reunião das lideranças da área São Marcos, a gente acompa-
nhou. Não tem um prédio no São Marcos lá em baixo, na beira
do Rio Uraricuera, lá perto de Boa Vista? A gente ia pra lá. 6
em 6 meses, as lideranças daqui da área São Marcos faziam
assembleia, faziam uma reunião. Eu ia pra lá. Isso não produ-
ziu, não teve o fruto, não teve resultado dessa reunião. Uma
vez o chefe de posto que trabalhava lá no São Marcos, ele
perguntou, já no encerramento, ele perguntou dos tuxauas,
ele disse: “Tuxaua, eu vou fazer uma pergunta pra você”,
ele tem acompanhado muita reunião, ele perguntou assim:
“O que é que vocês estão fazendo aqui? Essa reunião é pra
quê? Qual é a proposta de vocês?” Aí tuxaua geral respon-
deu assim: “Chefe, essa reunião é nosso encontro, 6 em 6
meses ou ano em ano, a gente faz essa assembleia só pra
gente discutir sobre nosso problema, porque no ano passado
aquela comunidade tinha dez cabeças de rês, outro tinha
quinze, outro tinha vinte... Então, pra saber a gente fazia uma
reunião. No ano passado ou no ano retrasado ele tinha dez,
quem sabe esse ano ele já tem quarenta. Então, pra avaliar.”
Aí o chefe do posto respondeu assim: “Não, isso não é bom.
Porque vocês são pai de família, os filhos de vocês estão lá
passando fome. É bom vocês pararem. Vamos trabalhar.” Aí
ele voltava a responder assim: “Eh, nós podemos trabalhar
sim. Mas como é que nós vamos trabalhar? Como é que nós
vamos criar? Tem fazendeiro ao nosso lado, tem pra cá, tem
pra ali, então não tem como a gente trabalhar.” Então, chefe
de posto respondeu assim: “Eu estou aqui pra ajudar vocês.
Se vocês fizerem, elaborar um documento pra presidente da
Funai pedindo projeto de gado, algum projeto, eu estou aqui
pra assinar. Mas encontro de vocês não vale a pena, porque
vocês vêm de longe, do Contão, Santa Rosa, e o filho de
vocês...” Então, é nesse ponto que as lideranças indígenas
Projeto: Panton pia’ 91

perderam a questão nessa assembleia. E depois foi falado


sobre a linha de transmissão: Eletronorte e o presidente do
Brasil, presidente da Venezuela já fizeram negociação. Então,
ouvindo esse acordo dos dois presidentes, as lideranças se
reuniram novamente: “O que é que nós vamos fazer?” Então,
até que as lideranças não quiseram aceitar a Eletronorte
usar a terra deles; consideravam a terra indígena não era
demarcada; demarcado, mas fazendeiro permanecia aí. Até
eu tava participando da reclamação dos tuxauas: “Por que é
que o presidente da Funai não se manifesta pra indenizar os
fazendeiros?” Presidente da Funai, ou Funai, administrador
de Boa Vista nunca conseguiu recurso pra indenizar ao menos
um fazendeiro, nenhum. Nunca. Depois quando se falou so-
bre essa linha de transmissão, aí os tuxauas se reuniram. Eles
tiveram uma ideia: “Agora se a Eletronorte já fez negociação,
os presidentes já fizeram negociação, então vamos entrar
de acordo. Se a Eletronorte usar a nossa área de Pacaraima
até o Rio Parimé, aonde pertence aos índios, nós vamos
querer indenização.” Até que chegaram um consenso de
negociar, e disseram pra Eletronorte: “Vamos negociar!” Aí
o presidente da Eletronorte ficou olhando assim pra ele. Não
falaram não, porque eles tinham muito dinheiro, né? Tinha
o representante, vocês devem conhecer aquele, o Zé Carva-
lho,42 Carvalho, consultor indígena. Carvalho, um homem de
42
José Porfírio Carvalho,
consultor indigenista da idade. Ele disse assim: “Doutor Carvalho, acho que ninguém
Eletronorte. Nem sempre vai permitir a linha de transmissão cortar nossa área, porque
foi possível indicar as refe-
rências nominais. Quando já nós estamos tentando expulsar os fazendeiros daqui da
possível, serão trazidas.
nossa área, receber os brancos novamente, pra completar,
Não!” Aí a Eletronorte respondeu: “Olha, então a gente vai
arrodear por aqui pela outra comunidade, por onde limite
da área indígena. Nós vamos cortar por aí.” Aí: “Tá. Então,
nossa área vai ficar. Aí vai ter paz, não queremos.” E depois
o consultor, o Carvalho diz: “Olha, se vocês, se vocês acei-
tarem, a indenização da terra de vocês vai ser cinco milhões
de reais ou quatro milhões, conforme a gente vai bater aqui
e pra ver o valor. Se vocês usarem esses recursos pra indeni-
zar fazendeiros, se vocês entenderem melhor assim, vocês
têm que aceitar. O dinheiro dá pra pagar esses cento e dois
92 Projeto: Panton pia’
fazendeiros que estão aqui. Aí com isso vocês vão indenizar.
Se entrar quatro milhões, cinco milhões dá pra indenizar.” Aí
pensaram: “Rapaz, será que isso daí vai dar certo?” “Vai.” Aí
ele trouxe o DVD pra mostrar: “Isso aí não vai prejudicar. Os
índios do Pará também, eles aceitaram pra fazer hidrelétrica.
Os índios estão vivendo bem. Isso aí não é prejudicial.” Então,
esse consultor amostrava como funciona, porque os índios
daqui de Roraima, daqui dessa fronteira, não conhecem o
que é a torre, a linha de transmissão. Ninguém conhecia. Aí
chegaram numa conclusão que aceitaram: “Tá. Então, deixa
que a Eletronorte trabalhe. Agora nós queremos receber.”
Os indígenas, meus parentes ficaram tudo animado, sem
saber o que ia de acontecer. Sem saber, só falaram sobre
indenização; sobre retirada dos brancos; sem saber o que
tinha na Constituição brasileira. Os tuxauas não sabem, até
eu não sei. Por isso que eu tava falando pro senhor que nós
temos que estudar, o índio tem que estudar. Sem saber o
que há de acontecer, vamos tirar os fazendeiros; vamos
tirar tudo. Aí eles ficaram olhando pra eles: “Tá bom, então
o trabalho que vai ser realizado, essa área, vai parar, vamos
cortar por aqui.” “Tudo bem!” Entraram em negociação.
Os índios macuxis tinham maioria, maioria dos macuxis. De
taurepang só tinha daqui do Sorocaima I, aonde eu estou,
aonde nós estamos. De taurepang tinha do Bananal; de
taurepang só tava Hilário, da Boca da Mata. Só nós três, três
comunidades. Então, as lideranças não souberam cobrar; as
lideranças não souberam dar a quantia de dinheiro: cinco
mil, dez mil. Disseram assim: “Então, se Eletronorte usar
essa área, a área indígena, nós queremos todos, com esse
dinheiro nós queremos tirar todos os fazendeiros”, falaram
assim (eu tenho um livro que passaram pra gente). Tudo
bem. Aí o consultor indigenista falou assim: “Tá, então vamos
conversar com os fazendeiros. Área de vocês, ela vai, área
de vocês, ela vai chegar a oito milhões de reais. O valor da
área de vocês vai dar sete, oito milhões de reais.” “Agora
vamos ver.” Então, ficou aí. Parou aí. Aí fizeram a lista dos
fazendeiros que estão morando aqui. Não atingiu cinco
milhões de reais, só deu dois mil e quinhentos. Aí ficou. Ele
disse assim, o Carvalho falou assim: “Se os fazendeiros, se
Projeto: Panton pia’ 93

o preço dos fazendeiros for cinco milhões, dez milhões, não


vamos gastar. Se o preço dos fazendeiros for dois milhões e
meio, também vai ficar por aí.” Amarraram assim. Aí os índios
perderam. Não deram o preço fixo.
DF: Ah! Entendi. O preço foi de acordo com...
MF: Eh. Ficou no ar. Então, eu tentei falar como líder de
uma comunidade, mas as lideranças macuxis eram maioria:
“Não. Vamos fazer assim.” Aí eu ficava só observando. Foi
assim negociação com a Eletronorte pra tirar os fazendeiros.
Foi assim. Não deram preço fixo. O Carvalho falou: “Se o
preço dos fazendeiros tiver passando de dez milhões a Eletro-
norte vai gastar. Se os fazendeiros, o preço dos fazendeiros
for até dois milhões, três milhões, também, vai ficar por aí,
o que é que vocês estão pedindo. Vocês não estão pedindo
pra tirar os fazendeiros?” “Nós estamos pedindo.” “Então
vamos em frente.” Então, eu acho que deu até três milhões
e meio. Não tinha preço fixo...
DF: O nome é Linhão de Guri, não?
MF: Linhão de Guri.
MF: Então, aconteceu isso. Então, os indígenas pensaram,
estavam pensando que essa área ia ser entregue pra eles.
Até eu tava no meio. Pra mim ia ser, pra mim essa terra do
Manoel Bento Flores. Não. Depois mais tarde, o próprio
consultor indigenista, o Carvalho, falou assim: “Agora os
índios vão trabalhar. Agora os índios vão produzir. Eles eram
massacrados pelos fazendeiros. Agora os índios vão criar
gado. Agora os índios vão brocar roça, derribar. Agora eu
quero ver os índios trabalhar.” Foi feito. Ele mesmo falava. E
depois ele mesmo disse pra mim, pra meu pai, ele disse assim:
“Vocês estão pensando que vocês estão na terra de vocês?”
DF: Eh. Legislação não é assim. Eu conheço.
MF: Aí teve mudança. “Essa terra é da União, não é de
vocês.” Aí veio outra história.
ALGUÉM: Se fosse aquele cacique Juruna que tinha tudo
gravado...
MF: Sim! Doutor, se eu tivesse gravador, a gente tinha
94 Projeto: Panton pia’
brigado com Carvalho. Mas ninguém tinha, quem tinha era só
ele. Aí teve grande confusão. Disseram no início que a terra
é dos índios e depois quando os fazendeiros saíram da área
São Marcos vieram dizer que a terra é da União.43 43
Referência ao fato de os
indígenas possuírem usu-
DF: Eu conheço a legislação. fruto da terra, e por isso
restrições no seu uso.
MF: Aí tiraram o poder das mãos dos índios. O índio não
tem poder pra administrar essa área. Quem administra é
órgão federal.
DF: E pago praticamente, de alguma forma, com a nego-
ciação feita pelos próprios índios.
MF: Então, doutor, então eu tava dizendo pro senhor que
a gente tem que estudar, porque não é só essa, vai ter outro
problema. Então, pra isso a gente tem que se preparar. Ago-
ra, se a gente ficar assim, assim como patriarca quer: “Não,
deixa, vamos ficar...” Não. Isso daí não existe. Recentemente
a gente conversou com Gonçalo, 44 administrador da Funai.
O coordenador regional da
44

Ele passou pra nós, tá tendo outra negociação, de Caracas pra Funai à época em Roraima,
Argentina, gasoduto. O mesmo trabalho que a Eletronorte Gonçalo Teixeira.

fez, outra firma também vai fazer, por baixo da torre, vai
pra Argentina; vai cortar terra indígena; vai cortar terra dos
fazendeiros; vai cortar o Estado de Roraima; vai entrar pra
Manaus; aí vai embora. Gasoduto vem da Venezuela, porque
Venezuela tem muito gás.
DF: Lá tem demais.
MF: Então, tá tendo este estudo, então pra isso as lideran-
ças indígenas. Porque no meu tempo, quando fizeram essa
negociação, os índios perderam muito, perderam, porque só
pensaram em tirar os fazendeiros e não olharam a quantia de
dinheiro. Então, o próprio consultor indigenista, o Carvalho,
disse: “Eu não sei, se os fazendeiros pedirem dez milhões,
Eletronorte vai indenizar. Se os fazendeiros pedirem quatro
milhões, também vai ficar aí. Pronto. Em segundo lugar dizem
que terra é da União, a Funai não pode dar título definitivo
pro índio, porque não é deles. E aí, companheiro? Eu não es-
tou satisfeito com isso não. É por isso que tem que examinar
a Lei, embora que eu não vou resolver, mas a gente tem que
Projeto: Panton pia’ 95

combater a mentira do Governo Federal.


DF: E isso é complicado, porque tá previsto na Constitui-
ção. Modificar a Constituição é possível, mas é difícil.
MF: É difícil. [risos] Doutor, e as lideranças indígenas
nunca pegaram na Constituição brasileira. Ninguém! É por
isso, sem saber. “Nós queremos tirar os fazendeiros, tudo.”
Tiraram, e depois vem ordem pra ninguém mexer com a
pedra; pra ninguém mexer a areia; pra ninguém mexer com
isso: terra da União. Não pertence aos índios.
DF: Não pode comercializar.
MF: Eh, não pode.
DF: Vamos ver se o senhor tem uma memória boa. E como
é que era feita a construção das casas na comunidade?
MF: Construção da...
DF: Ela é feita pelo próprio. Antigamente era uma coisa
mais comunitária, não era isso?
MF: Eh.
DF: Continua sendo assim? Como é que é?
MF: Entre as comunidades?
DF: Não, por exemplo, tem que construir uma casa ali
pra alguém que tá precisando ou alguma coisa assim, ou um
rapaz que tá casando novo...
MF: Eh.
DF: Ele mesmo que é responsável? A comunidade se
une? Como é que era antigamente, o senhor lembra? Se
hoje mudou...
MF: Não. Nessa parte não mudou nada. Continua no
mesmo. A nossa tradição nessa parte continua.
DF: E como era?
MF: Quem tem que fazer, o rapaz quando completa sua
idade de 18 anos, 20 anos, ele já vai começar a fazer a casinha
pra ele, ele mesmo.
96 Projeto: Panton pia’
DF: Ah! Ele mesmo.

MF: Eh. Ele mesmo faz. É assim.

DF: Aí quando casar...

MF: Quando casar já tem barraquinho, pra levar a mulher


pra debaixo do barraquinho. É essa.

DF: O casamento é dentro da tradição evangélica?

MF: Eh. Conforme a lei de Deus, tá escrito na Bíblia, tudo.


Então, por aí nós estamos levando. Quando o rapaz vai casar,
tem que apresentar na igreja. Só.

DF: O senhor tem informação de como era antes ou não?

MF: Não.

DF: Tá certo. E os animais domésticos que tem hoje são


os mesmos?

MF: Os mesmos.

DF: Tem uma outra parte agora que é a parte da história,


tá mais ligada à parte de... uns falam que é mito, mas por
exemplo, tem outras comunidades que aceitam isso como
história da comunidade. Por exemplo, existem essas histórias
do Canaimé aqui?
MF: Ah! História de Canaimé? [risos]
DF: Isso. Não tem, tem, já teve? O senhor conhece essa
história?
MF: Doutor, Canaimé, eu acho que existe em todos os
países. Em Boa Vista tem muito Canaimé; no Bananal tem
muito Canaimé; em todo canto tem Canaimé. Canaimé que
a gente fala, a pessoa que mata outro. Na linguagem dos
brancos é bandido. É Canaimé. Os índios, os taurepangues
chamam esses bandidos de Canaimé. O bandido, ele não
vai, quando o senhor vai com a sua carteira, ele toma e pega
faca; esfaqueia e deixa morto aí? O Canaimé, ele faz a mesma
coisa, um pouco diferente. O Canaimé mata por matar, não
é por causa dos cem reais, não por causa dos quinhentos
reais, não. Mata por matar.
Projeto: Panton pia’ 97

DF: Sem motivo.

MF: Sem motivo. Quando as crianças estão banhando


nos igarapés, ele se esconde no mato e fica aí. Quando a
criança se separa dos outros assim, pega pela perna, arrasta
no igarapé e enforca. Aí deixa aí ou quebra tudo. A criança
torna a andar. Passa um dia, sente a dor, com dois dias
morre. Canaimé que nós chamamos tem, até agora existe,
existe. Eu nunca vi Canaimé, mas eu sei da história, porque
recentemente mataram um bem aqui.

DF: Foi?

MF: Foi. Eu acho que o senhor indo lá, eles devem contar,
porque aconteceu agora no ano passado, em 2007, foi mês
de agosto, mês de março, por aí, do ano passado. Mataram
um, e foi Canaimé.

DF: E foi aonde?

MF: Aqui no, já ouviu falar no San Inácio?

DF: San Inácio?

MF: Sim, aqui em Venezuela?

DF: Não.

MF: Maupari, uma comunidade, Maupari. Lá que mata-


ram.

DF: Eles mataram um Canaimé?

MF: Mataram um Canaimé. Tava matando parente. O


Canaimé tava matando parente. Aí companheiro do parente
veio, encontrou agarrado com ele e meteu a faca na barriga
do Canaimé.
DF: O Canaimé a princípio é uma pessoa também ou é
um...
MF: É uma pessoa: como o senhor; como ele; como eu.
Esse Canaimé que mataram, eu já vi ele no Maurak, estudan-
te, é formado, é sabido. Eu acho que ele era um professor,
mas ele se tornou — quem sabe ele usou o remédio que eles
98 Projeto: Panton pia’
têm — então se tornou Canaimé.
DF: Remédio?
MF: Eh. Alguma planta que eles têm.
DF: Ah! Sim.
MF: Eu já andei pra cá, pra Guiana em 88, 80 e... 90 e...
andei por aí em 96, aí andei pra lá na Guiana, fui visitar os
parentes. Quando nós chegamos lá, fomos tirar lenha. Tinha
um barracão como esse daqui, mas era aberto. Aí nós está-
vamos pendurando a rede, aí chegou cidadão de lá: “Vocês
vão dormir aqui?” “É, nós vamos dormir aqui.” “Não, porque
é proibido vocês dormirem aqui na casa aberta. Vocês não
podem não.” Aí eu disse: “Por quê?” “Não rapaz, aqui tem
muito Canaimé. Se vocês forem dormir aqui fora, vão matar
vocês, porque vocês são recém-chegados e, se o Canaimé
matar vocês, aí acabou, vocês estão mortos. Vão pra ali.”
Era uma casa como essa daqui, bem fechada: “Aí não dá pro
Canaimé entrar.” Então, lá existe, eu vi. É feio.
DF: É!
MF: É feio.
DF: E ele se veste assim normal ou...?
MF: Ele usa é, ele se disfarça como tamanduá, como onça.
Então, ele dá um susto na pessoa e aí pega.
LS: Então, qualquer pessoa pode ver o Canaimé?
MF: Eh. Canaimé existe, Canaimé. Eles usam uma planta
deles mesmo, deles, então eles praticam muito esse Canai-
mé. [...]
DF: É como se de alguma forma eles fossem até possuí-
dos, alguma coisa assim. Porque eu vi a história. Eu conheci
há pouco tempo e fiquei muito curioso.
MF: Sobre a história de Canaimé?
DF: Eh.
MF: Existe, existe.
Projeto: Panton pia’ 99

DF: Eu dei um curso no INSIKIRAN, e a menina tava fa-


lando pra mim, contando, me explicando. Eu fiquei muito
curioso. Porque é algo estranho, não é?
MF: É estranho, estranho.
DF: Que age meio involuntário, assim, sem um motivo
aparente, do jeito que ela me contou, e que os indígenas
respeitam muito, tem um respeito. Não sei se é um respeito,
é quase um medo mesmo, pelo que ela falava.

45
Referência a um local na
MF: Eh. Canaimé existe. Eu fui pro km 8845 agora no ano
Venezuela, que localiza-se passado, no dia 7 de setembro, quando o Exército tava des-
no km 88, sentido Santa Ele-
na de Uairén Puerto Ordaz.
filando. Eu passei pra lá, lá eu vi muita coisa, história desse
Canaimé. É muito perigoso. Ele mata. Até eles amostravam
um Canaimé: um gordo, um homem forte. Isso daqui, aque-
le aí, você não pode nem zombar dele assim: “Não mata
ninguém!” Pode se aprontar que ele te mata. Acostumado
matar. Só que eles não matam: “Matou? Não, fulano matou.”
Quando ele toma uma cervejinha: “Ah! Eu matei.” Pronto.
DF: Ah! Ela me contou também que era engraçado pra
descobrir se a pessoa foi atacada ou não, porque pode atacar
e não matar, não é isso? E a pessoa passa uma semana; fica
triste; fica não sei o quê; fica amuada. Como é que faz pra
saber se a pessoa foi ou não atacada pelo Canaimé? Porque
às vezes ele nem sabe se foi atacado. Não é isso?
MF: Eh. A pessoa não conta não. Não conta.
DF: Ela não consegue contar, não é?
MF: Não consegue contar.
ALGUÉM: Aí, na última hora eles contam.
MF: Dizem os mais velhos, (como é que chama?), negócio
de pilão, é mão de pilão, que soca assim: “tá, tá, tá, tá.” Aí
lava, dá um pouco de água pra ele, aí passa a contar.
DF: Ah! Sim. Pega a água do pilão.
MF: O meu tio, irmão do meu pai ali, morreu de Canaimé.
DF: Sim?

MF: Eh. Morreu. Sempre eles falavam dos Canaimés. Os


100 Projeto: Panton pia’
outros falam: “Não, fulano, ele viu Canaimé...” Aí ele andava
só, aí ele ficava dizendo: “Rapaz, o pessoal tá mentindo,
porque eu nunca vi Canaimé. Eu sou velho, eu ando muito,
eu ando sozinho.” Até ele puxava faca, pedaço de faca assim:
“Se Canaimé se aproximar eu corto ele.” Mas chegou o dia,
tinha um barracão velho assim abandonado, na hora da chuva
(andavam em grupo, né, seis pessoas), nessa hora, no campo
mesmo, nessa hora choveu. Aí em vez de ele acompanhar
o grupo, não, ele saiu com medo da chuva. Correu. Aí ele se
escondeu num barracão velho, num goiabal fechado assim.
Ali tinha os Canaimés. Na hora que ele entrou no barracão,
pegaram ele aqui. Pronto, não sentiu mais. Aí ele, depois
que passou a chuva, ele veio embora; veio conversando;
conversando. Com dois dias ele se adoeceu, se adoeceu. Aí
levaram ele pra [Ciudad] Bolívar, e ele morreu lá. Antes dele
sair, ele contou. O irmão dele, o meu pai, perguntou: “O que
é que o senhor viu? O que é que aconteceu, o senhor não viu
o Canaimé?” “Não, na hora que eu ia entrando naquela casa
velha abandonada, eu vi os pombos voar muito, e não senti
mais.” Aí pronto. Morreu de Canaimé.
DF: A palavra Canaimé, ela é taurepang, não é?
MF: Eh. É taurepang. Não é Canaimé.
DF: É como que pronuncia?
MF: Na nossa linguagem, Kanaimö.
DF: Kanaimö?
MF: Kanaimö. Canaimé já passa pra português.
DF: Ah! Sim.
MF: Assim como Sorocaima não é Sorocaima. Na nossa
linguagem, [se] fala Saracanhã.
DF: Saracanhã. [...]
DF: E tem um significado Canaimé, assim a palavra mes-
mo, não né?
MF: Não.
Projeto: Panton pia’ 101

DF: Significa isso tudo.


MF: Kanaimö é perseguidor mesmo.
DF: Significa isso tudo.
MF: Kanaimö é o bicho.
DF: E Saracanhã, falei certo?
MF: Não. Saracanhã.
DF: Saracanhã.
ALGUÉM: Saracanhã tem outro significado.
DF: Pode falar ou não?
MF: É...
DF: Se não puder não tem problema.
MF: Nós podemos falar sim. Nós estamos aqui pra...
DF: Significa o quê?
MF: Significa assim, vou explicar bem pro senhor.[...]
MF: Saracanhã antigamente é conhecido lugar, esse lugar
é doentio. Não sei se o motivo da água, eu não sei. Então,
Saracanhã já pra pegar esse nome, o pessoal chegava aqui
nesse lugar de outra comunidade, assim, do Contão, de outra
comunidade; e chegavam; e chegavam; então entravam aqui
já pra descobrir isso. Entravam aqui, como a gente coloca,
a pessoa chegava “sarac”, aí ficava, e não voltava mais. Só
estavam engolindo: “sarac, sarac.” Chegava outra pessoa de
outra comunidade: “sarac”, morria, aqui morria. Não voltava
mais. Então, só tava recebendo. Então, na nossa linguagem,
colocar dentro é “sarac.” Quando tiver outra pessoa, “sarac”,
morria aqui. Depois de dois anos, três anos, chegava outra
pessoa, “sarac”, morria. Então, pegou esse nome Saracanhã.

DF: Ah! Entendi. Mas então, “sarac.” é chegar, né?

MF: Colocar.

DF: Colocar. E “canhá”?

MF: Já estão colocando “sarac.” Saracanhã.


102 Projeto: Panton pia’
ALGUÉM: Saracaimã: “colocar assim.”

DF: “Colocar sim.”

ALGUÉM: Colocar: “sarac”; “caima”: assim.

DF: “Colocar assim”, “Colocar desse modo.” Caimã.

MF: Saracaimã. Então, tem esse nome Saracanhã. Quando


alguém vem pra cá pra esse lugar ele diz: “Saracainatak tö
soro [vou para o Sorocaima]” “Aonde?” Vem pra cá.

DF: Ah! Legal.

MF: A história é essa.

DF: História bonita.

MF: Assim como história do Macunaima, né? Na nossa


linguagem o nome não é “Macunaima”, é “Makunaimö”, na
nossa linguagem é um pouco diferente. Makunaimö. Agora
pegou esse nome “Macunaima”, aí ficaram.

DF: Vai adaptando. Já que o senhor falou de Macunaima


ou Makunaimö, Makunaimö... é um pouco nasalizado, então
pode aproveitar e falar um pouco sobre o Macunaima. O que
o senhor sabe?

MF: Macunaima, história do Makunaimö eu não sei. Quem


sabe é segundo tuxaua. Ele pode ter gravado alguma história
do Makunaimö, é com ele.
DF: Ah! Sim.
ALGUÉM: Eu sou mais novo, eu não sei.
MF: Se o senhor estiver amanhã, se a gente estiver aqui
conversando eu posso, porque tuxaua pediu pra mim convi-
dar o mais velho, o Clemente. Agora não dá pra vocês gravar,
porque ele fala tão rápido, igual rádio novo.
DF: Mas, gravado não sai daqui. [...]
ALGUÉM: Me tire um dúvida, eu estive recentemente na
comunidade Caracau, região da Raposa Serra do Sol...
MF: Aonde?
Projeto: Panton pia’ 103

ALGUÉM: Caracau, comunidade do Surumu. Uma profes-


sora da Universidade Estadual tava organizando um passeio
com os estudantes da Universidade lá no Surumu. Quando
a gente chegou nessa comunidade pra visitar os locais de
difícil acesso, onde era realmente a cachoeira, o mais antigo
da comunidade falou o seguinte, que quando nós chegásse-
mos, nós nos reuníssemos, pra quando chegar no lugar ter
um certo cuidado, tipo: admirar uma serra, admirar alguma
pedra, admirar alguma coisa lá, poderia a gente voltar no
outro dia, no outro dia amanhecer doente. Pra evitar isso,
teríamos que passar pimenta na palma da mão e no solado
dos pés. Essa tradição vocês seguem aqui também? E por que
é que a pimenta é tão importante nessa hora? Você poderia
dizer pra mim?
MF: Pimenta é usado pra remédio, até pra colocar nos
olhos da gente quando a pessoa tá com preguiça, não quer
ir pra roça, aí o velho mais idoso vem e faz oração dele, aí
bota nos olhos, aí ele se alerta. É assim. Pimenta é usado pra
isso. Então, quando a pessoa passa pimenta aqui nos pés, nos
ombros, é pra matar força dos bichos que estão aqui e pros
indígenas existe alguns bichos aqui na serra, só nessa Serra.
Então, pra isso tem que passar pimenta, é, aquele urucum.
Eu vim com meu tio daqui do Maurak, eu era mais novo, ele
vinha pra cá visitar a nossa comunidade aqui. Vinha ele, a es-
posa e os filhos; aí ele conhecia esse lugar como Saracanhatá,
que recebe a pessoa e morre, então ficaram com medo. Aí,
antes da gente sair eles prepararam urucum numa vasilha
menor do que isso aqui, aí prepararam. Já pra gente entrar
nessa mata, aí a mulher dele chamou os filhos de doze anos,
de dez anos, de oito anos, aí pintou eles todinhos por aqui,
aqui no braço...
DF: Pintou o rosto...
MF: Eh. Aí entraram tudo pintado pra cá, pra não pegar
doença, pro bicho não enxergar. É assim.
ALGUÉM: Lá pro lado do São Marcos fizeram a mesma
pergunta. E um senhor falou o seguinte, que uma vez ele
amanheceu com preguiça, muita preguiça. O pai queria que
104 Projeto: Panton pia’
ele fosse trabalhar na roça, ajudar os outros. Tava com muita
preguiça, sentindo dor no corpo todinho. Aí ele disse: “Ah! Tu
tá sentindo dor no corpo, então vamos ali.” Aí levou ele na
beira do rio, chegou lá tirou um cipó e começou a bater no
corpo dele, em tudo que era parte onde tinha dor, chicoteou
ele de tudo que é parte, depois pegou a pimenta, amassou
na mão e botou no corpo. No outro dia ele tava com vontade
e coragem de trabalhar.
DF: [riso] Aí não tem reclamação, tem?
MF: Antigamente eles faziam isso mesmo, eles faziam.
DF: Isso é a tradição.
MF: Pimenta e tudo isso é tradição. Mas como saímos
pra religião, isso parou, parou mesmo. Aqui, a criança não
conhece essa cura que os antigos faziam.
DF: É por isso que às vezes é importante a gente ter um
registro disso. Não é nem pra mudar a cabeça das pessoas,
é porque isso pertence à história da comunidade de algu-
ma forma. Talvez hoje as pessoas não saibam mais, talvez
amanhã não, mas daqui há uns cem anos as pessoas podem
simplesmente ouvir: “Ah! Era assim! Olha como é que era
diferente!...” E conhecer. Se a gente não conhece, a gente
nem pode gostar direito. A gente tem que respeitar. A gente
só consegue respeitar e gostar daquilo que a gente conhece.

MF: Na verdade tá tendo mudança. Voltando pra educa-


ção, tá tendo mudança. Aqui a gente comia tudo junto. De
manhã, lá pras 7 horas, o homem que mora nessa casa, mora
pra ali, dá um grito: “Umbora titio, sobrinho, umbora comer
damorida!” Aí ele vem com a damorida dele, bota a damorida;
daquela casa vem, bota damorida: a família se ajunta. É meia
hora, uma hora pra comer damorida contando história: quem
vai sair pro trabalho; quem vai sair caçar; é assim. Hoje, como
eu tava passando pro senhor que os indígenas não chegaram
a nível pra trabalhar em prol da população indígena, mas
nessa parte eles estão se desligando da tradição. Cada qual
come na sua casa. Esse rapaz que mora naquela casa, comida
Projeto: Panton pia’ 105

que ele consegue é pra ele. O que mora aqui também prepara
sua comida, ele come. Estão aprendendo, aprenderam mais
o que é dos brancos, né?
DF: Nós somos assim.
MF: Eh. A casa bem juntinho, mas não chama outro. A
comida que ele tem é pra aquela casa. Também ele não
conhece outro, conhecendo ele não diz, porque eu já passei
por aí em Boa Vista: “O senhor conhece o fulano?” “Não.”
[...] Nem dá bom dia, passa assim perto, mas não fala. En-
tão, nessa parte os índios já estão participando. O que ele
comprou, o que ele gastou é pra ele, deixa o vizinho passar
fome. Antigamente, quando a gente começou a morar, não
era assim. Antigamente a gente chamava, agora não. Agora
é na base do dinheiro. Aí outra pessoa diz: “Não, rapaz, às
vezes eu falo pra minha esposa ‘vamos convidar o parente
...’ .” “Não, tem pouca comida, não vai dar. Também nós
gastamos dinheiro...” É assim. É nessa parte a gente entra
nessa divisão.
DF: Que é já a cultura do outro.
MF: Eh. A cultura dos brancos.
DF: Eh. Nós somos assim. A não ser em ocasião de festa,
que a gente se reúne...
MF: Eh. No dia da festa é aberto pra todo mundo, pode vir
preto, amarelo, é tudo, mas assim no meio da semana é difícil.
DF: Não, praticamente não existe.
[...]
MF: Doutor, eu queria terminar o assunto da área de-
marcada, a terra da União, porque sem saber os tuxauas
brigaram. Agora estavam querendo solicitar o título definitivo
da Funai, aí ele disse: “Não. Título definitivo pro índio não se
dá. Por quê?”, ele falou pra nós, “Por quê? Vou já explicar:
se o índio receber o título definitivo, ele vai se tornar o dono
daquela área.” Ele falava, eu sempre converso com ele: “Ele
vai se tornar o dono daquela área, ele vai querer negociar
com os brancos. O dinheiro daquela área vai servir muito pra
106 Projeto: Panton pia’
ele. Como? Pra ele comprar o carro, ele vai andar de carro;
ele vai sair da sua cultura, da sua tradição; ele vai acompa-
nhar os branco, andar de carro. Então, deixa os índios sem
título de terra.”
DF: E aí vai passando de um pra outro, mas...
MF: ... só que acontece, não sei se acontece pra lá pro
Pará, Maranhão, não sei, mas aqui na fronteira acontece isso.
Meu pai, ele procurou dar o nome da fazenda: é Fazenda
Flores. Aqui é só família Flores, então, aí ele passou: “Eu que-
ria que o senhor fizesse uma placa: Fazenda Flores, porque
somos família Flores e nós queremos a placa.” Aí chefe de
posto disse: “Não. Não pode ser assim. Esse daqui não é de
vocês, é da União. Vocês não podem ser o dono.” E no ano
retrasado — eu acho que aconteceu isso em 2003 — uma
vez o nosso carro que foi doado pelo governo, uma Toyota
Bandeirante, atropelou um carro venezuelano lá dentro,
lá em Venezuela. Aí o dono do carro passa pro advogado,
advogado chama o carro: “Não, deixa o carro brasileiro
aqui. Nós vamos entregar o carro só quando ele pagar meu
carro.” Pronto. O nosso carro foi preso, o carro do governo.
Aí nós ficamos aqui aperreados; nós tirávamos dez cachos de
banana; outros davam um saco de farinha, ali apuramos pra
pagar advogado pra ele liberar o carro. Não deu pra cobrir
aquela dívida. Aí o que é que nós pensamos? Nós temos a
fazenda indenizada, Fazenda Asa Branca, que foi indenizada
pela Eletronorte juntamente com a Funai e as lideranças. Tá
dentro do cercado, dentro do cercado, lá tem pedra, pedra
bruta mesmo. Aí tinha um homem comprando aí dez carradas
de pedra, já que a comunidade não tinha. Tinha, mas não
deu pra cobrir aquele tanto de dinheiro. Então, estudamos:
“Agora vamos pegar pedra, oito carradas, até aonde der.”
Aí consultamos uma caçamba, levamos, ajuntamos um mon-
te de pedra, aí levamos. Eles estavam olhando pra gente.
Aí levamos mais carradas. Aí alguém correu lá: “Rapaz, a
comunidade Sorocaima I tá vendendo pedra.” Eu fui com o
Nelson da Funai, aquele moreno, ele tava aí no Programa São
Marcos. Aí quando a gente vinha subindo com a carrada de
Projeto: Panton pia’ 107

pedra, aí pegaram carro; vieram atrás da gente. Aí cercaram


a caçamba; aí desceram lá: “Pra, pra, pra. Vamos parar!”
Aí nós descemos: “O que foi?” “Caçamba tá presa!” “Por
quê?” “Porque vocês estão vendendo pedra.” Aí tentamos
esclarecer: “Não, negativo! Não pode.” “Caçamba tá presa
e a pedra tá presa. Vamos levar pra Polícia Federal.” Aí o ca-
çambeiro disse: “Não. A pedra tá presa, tá certo, mas minha
caçamba não vou liberar não.” Aí encostou caçamba velha,
aí derramou. Ele também se esquentou, né, o caçambeiro.
Tá lá o monte de pedra. Aí teve essa confusão. Quando a
gente fala de terra, agora depois de acontecer, depois que
aconteceu, que eu quero dizer, depois que aconteceu, voltei
a reconhecer que não foi entregue à comunidade indígena.
[...] Então, aconteceu isso. Estão lá as pedras, estão lá. Aí
eles dizem assim: “Se vocês levarem de novo, vou mandar
prender vocês. Vou mandar prender vocês porque isso daí
não pode, não pode não.” A dívida ficou: “Como é que eu vou
pagar minha dívida? Advogado tá esperando dinheiro e nosso
carro tá preso.” “Não, vende a farinha!” “Nós já vendemos
farinha.” “Tem banana.” “Vendemos banana. Mas é pouca.
É muito dinheiro pra advogado, advogado come dinheiro.”
“Não, vão dar o jeito de vocês aí.” Aí pronto. Voltaram. Só
vieram prender a caçamba. Então, os índios voltaram a ser
escravos do órgão federal novamente. Eu entendo assim.
Porque não dá título definitivo, não dá...
DF: E na hora de usar é limitado.
MF: Eh. Então, eu comparo assim, se a gente recebeu o
carro da agência, enquanto ele não passar o documento do
carro, é da agência. Não é minha. Ele toma o carro na hora
que ele quiser, porque documento não tá no meu nome, não
tá na minha mão. Então, o Governo Federal tá levando os
indígenas dessa maneira. Aqui tá acontecendo isso.
DF: Entendo.
MF: Olha aqui, com esse segundo tuxaua, botamos roça
comunitária, vinte e sete linhas pra comunidade daqui do
Sorocaima I, em 2003, no ano de 2003. Plantamos roça. Vin-
te e sete linhas, derribamos tudo. No dia 22 de março tocamos
108 Projeto: Panton pia’
fogo. Queimou. A gente vive é disso; a gente criou nossos
filhos assim. Aí Brigada, equipe de Brigada estavam andando,
teve essa queimada, mas pra ninguém perder a roça, nós
queimamos. Quando o fogo tava se apagando, umas quatro
horas da tarde, lá vem helicóptero do IBAMA, passando por
cima. Quando deu cinco e meia chegaram aqui. “Tuxaua,
essa roça que tá queimando lá?” “É roça da comunidade.”
“Tá bom.” Veja, pra você ter uma ideia, IBAMA chegou fa-
lando bonito pro tuxaua. Ele falou assim: “Essa roça, o que
é que vai ser plantado aí?” “Vai ser plantado mandioca, café,
muda de laranja; se tiver a gente planta, né?” “Não, nós es-
tamos chegando aqui...”, ele trouxe na sua companhia,
trouxe o tuxaua, capitão da Brigada, tiveram aqui. “Tá, então
vamos fazer. Vamos registrar a roça de vocês.” “Tá bom.”
“O que é que o senhor vai querer? Muda de laranja ou de
cupuaçu...?” “Não, é bom laranja porque lá é terra fria.” “Tá
bom.” IBAMA recebeu dinheiro, Funai recebeu dinheiro,
Governo recebeu dinheiro. “Agora vamos investir nas comu-
nidades.” Até tuxaua, que é capitão da Brigada não sabia o
que é que IBAMA tava fazendo conosco. “É tuxaua, agora
vocês vão ser beneficiados.” Ele fez documento. Eu assinei.
“Tá bom. Agora o senhor leva pra chefe de posto aí na Boca
da Mata, mas não vai demorar não. Pode levar.” Aí eu peguei,
com cinco dias eu levei pro chefe de posto. Aí apresentei pra
ele: “Quem foi que deu esse papel?” “Foi IBAMA.” “Tuxaua,
como é que ele falou?” “Ele falou assim ‘Tem muda de laran-
ja, tem muda de cupuaçu, tem de graviola. Vocês vão plantar
mandioca, então tem que separar uma área pra plantar,
porque IBAMA recebeu, Funai recebeu dinheiro. Agora vocês
vão ser beneficiados’ essa palavra que ele passou pra mim.”
Aí ele foi abrindo, foi lendo: “Tuxaua, você já ouviu falar na
multa?” “Não.” “Isso daqui chama-se multa. Te multaram
em 9.750,00. Isso chama-se multa, te multaram. Multaram
a comunidade. Agora tu leva pro advogado Wagner, aquele
velhinho da Funai. Tu leva, mas tu leva amanhã.” Eu levei pra
lá. Advogado recebeu assim: “E pra que é que multaram os
índios, rapaz? Vocês botaram roça na área dos fazendeiros?”
“Não. Na comunidade.” “E por que é que multaram vocês,
Projeto: Panton pia’ 109

rapaz? Esse bando de malandros! Eu vou lá!” Advogado saiu.


Mas era mentira. Advogado, outro mentiroso. Essa multa
subiu pra 16.228,00. Todo tempo eu ia pra advocacia: “Olha,
o que é que tá acontecendo aí?” “Não, não se preocupe não.
Não se preocupe. Eu sou advogado da Funai, eu vou matar
essa cobra!” Aí ele diz assim pra mim: “Tuxaua, você já matou
cobra? Alguma vez você já matou cobra?” “Já.” “Pois é.
Quando a gente mata cobra na cabeça, o rabo fica batendo
aqui, então o teu processo, a tua multa já tá morrendo, já tá
batendo no rabo.” Mas advogado mentiu demais. Intimação:
pra Boa Vista. Intimação: pra Boa Vista. Intimação: pra Boa
Vista. “Rapaz, será que a Funai tá resolvendo esse proble-
ma?” Eu fui, aí o Martins, que foi administrador da Funai, ele
era administrador da Funai na época: “Doutor Martins, o que
é que tá acontecendo, rapaz? Eu estou recebendo intima-
ção.” “Não, isso aí tá acabando.” Foi passando. 2003. 2007
chegou três carros da Polícia Federal aqui pra mim pagar essa
dívida, se não toma freezer, geladeira, motor de luz, se tives-
se carro, moto, é pra levar. Vieram uma polícia federal, três
oficiais da justiça, três policiais militares. Arrodearam minha
casa. Aí oficial da justiça entrou, ele disse: “Eu estou cum-
prindo papel de oficial. O que é que o senhor tem aqui na sua
46
Juiz federal polêmico casa? O Hélder Girão Barreto46 assinou pro senhor pagar.”
quando atuou em Roraima. “Eu não tenho nada, eu não tenho!” “Mas tá assinado e o
senhor tem que pagar.” “Tá bom. Se ele me levar pra cadeia,
eu vou lá, eu vou lá pra cadeia. Agora, Hélder Girão Barreto
tem que sustentar meus filhos, minha família.” Aí ficou por
ali. Não viu nada. Aí ele disse: “Tuxaua, quando Hélder Girão
Barreto mandar te chamar, aí tu vai lá conversar com ele.”
Aí eles foram embora. Depois de gastar muito dinheiro: pra
ir, vinte reais; do ponto tem que gastar dez reais no táxi; pra
merendar, dez reais; pra vir de lá, vinte reais. Gastei muito
por causa da roça. Olha, área demarcada deu confusão. En-
trega terra pro índio; manda prender o índio; manda proces-
sar o índio, estando na sua terra. Hoje tá mais complicado.
Os indígenas daqui, a fiscalização, sem ter curso, assim, de
pegarem o carro: “Vamos fiscalizar!” Então, isso não pode
110 Projeto: Panton pia’
acontecer. Se eles continuarem com isso, eu vou passar no
Ministério Público, porque pra punir os índios sem motivo
nenhum, isso daí não existe. [...] Sem motivo. Tá assim. Então,
a terra demarcada, depois de fazer tudo, voltei a reconhecer.
Porque na época eu era segundo tuxaua; depois o cargo de
tuxaua passou pra mim e eu passei 8 anos; como vice-presi-
dente passei 5 anos; como suplente de vereador já estou
terminando o mandato agora, só suplente, mas suplente não
ganha nada né, só quando vereador mandar. É assim. Apren-
di muito. 15 anos, 16 anos liderando a igreja, cento e quaren-
ta pessoas pra administrar é difícil, é complicado. Então,
aprendi muito. Programa São Marcos mandou me prender,
porque Programa São Marcos recebe um milhão e duzentos
por ano: cento e vinte, cento e trinta mil por mês. Nunca
trouxeram o projeto, mas mandaram prender a comunidade
do Sorocaima I. Disseram na reunião, único que participou
com eles disse: “Olha, Programa São Marcos agora vai te
prender.” “É, deixa eles prender, nunca trouxeram dinheiro
pra mim, recebe tanto dinheiro e não passa pra comunidade,
não fala de projeto nenhum.” Me levaram preso, passei oito
dias na cadeia. É assim. A terra indígena não é terra indígena,
muitos se enganam. “É terra indígena.” Eu digo: “Coitado!”,
pessoal que mora na área indígena Raposa Serra do Sol
querem terras pra eles. A lei não é assim. É da União. Querem
expulsar todo mundo. Não, isso é engano. Quem sabe a lei...
[...] Se alguém, Supremo Tribunal Federal, me chamar pra
mim declarar ou denunciar, eu estou aqui pronto pra con-
versar com qualquer autoridade. Porque a gente assistiu
início da briga que tá acontecendo, aonde tuxaua Marinho
tava relatando. No final de 74, 76 pra 77 começou esse con-
flito. No meu tempo acompanhei esse início da briga, início
do conflito. Fui eu; foi Laurindo; foi Astromarino; outro tu-
xaua; meu pai; fomos lá. Tava o padre Lúcio; tava padre
Sérgio; tava padre Vicente; tava padre Jorge (o índio padre
Jorge!), eram uns cinco padres. Naquele tempo reuniram,
Projeto: Panton pia’ 111

conseguiram reunir 60 lideranças, com os acompanhantes


deram duzentas pessoas. Naquela época, no final de 76 pra
77, se eu não me engano, dia 5 de janeiro, nós tivemos lá. Aí
começaram onde tuxaua Marinho tava esclarecendo, disse-
ram pros tuxauas, começaram assim, eu vi a abertura: “Bem,
senhores tuxauas, como é que vocês estão vivendo com os
brancos?”, abriram assim: “Como é que vocês estão vivendo
com os brancos?” Aí os tuxauas nunca praticaram; nunca
estudaram sobre isso; eles estavam vivendo bem com os
fazendeiros. Eu não sei. Mas disseram assim: “O que é que
os brancos estão dando pra vocês?” Aí alguém levantou
assim: “Não, nós estamos vivendo bem com os fazendeiros.”
“Bem como?” “Não, quando a gente precisa de alguma
coisa: sal, açúcar, alguma coisa, a gente trabalha com o fa-
zendeiro um mês. A gente recebe; a gente pede pra ele
trazer da cidade; ele traz e entrega pra gente.” “Quando
vocês querem comer carne, como é que vocês fazem?” “A
gente trabalha um mês com os fazendeiros, eles pagam com
uma rês.” Aí o padre disse: “Não, isso não é bom. Isso não é
bom. Os fazendeiros estão morando na área de vocês, então
eles têm que dar pelo menos cinco cabeças de rês pra tuxaua,
pra ele comer, pra sustentar a família dele. Se eles não fazem
isso, nós vamos já tirar.” Os padres falaram. Início do confli-
to foi assim. Assisti. “Então vocês têm que matar gado dos
fazendeiros. Vocês tem que matar, estão na terra de vocês.
Aonde tiver chiqueiro dos bezerros dos fazendeiros, toca
fogo. Queima. Expulsa os fazendeiros. Se não, pega alicate,
vai cortar o cercado dos brancos, se cortar não tem proble-
ma. Nós estamos aqui pra dar apoio pra vocês.” Assim que
começou a briga. [...]
DF: Me fala uma coisa: como é que é feita a troca dos
tuxauas na comunidade? Tem período, é marcado por ano,
como é?
MF: Conforme o trabalho do tuxaua. Se o tuxaua tá tra-
balhando bem, ele pode trabalhar 5 anos, 8 anos, 10 anos,
112 Projeto: Panton pia’
15 anos.
DF: Ah! Sim. Não tem período marcado?
MF: Não. Não.
DF: Mas na hora que ele começar a não fazer as coisas
do jeito que a comunidade quer, se a comunidade quiser a
comunidade se reúne...
MF: Eh, meu pai era tuxaua. Passou vinte e dois anos
como tuxaua. Ele tem a declaração dele que a Funai deu
pra ele, a declaração. Aí ele foi tuxaua vinte e dois anos.
E ele passou cargo pro filho, Messias, que mora naquela
casa, passou cargo pra ele. Aí o Messias, com a declaração
mesmo, com o nome mesmo, ele passou dois anos. Só dois
anos. Eu era vice dele. Aí ele fez de coisa errada, de errado,
perante a comunidade, a comunidade se reuniu: “Rapaz,
vamos tirar o tuxaua e colocar o Manoel. É que o Messias
não cumpriu com ordem da comunidade, não cumpriu com o
dever de tuxaua.” Aí tiraram. Ele não quis entregar o cargo:
“Não, papai me chamou pra mim assumir, agora eu estou
aqui. Acho que não vou entregar não.” Meu pai mesmo
levantou: “Meu filho, o que tu fez perante a comunidade, a
comunidade não vai aguentar não. Melhor você se afastar
mesmo.” Aí pronto. Aí eles me colocaram como tuxaua. Aí
eu trabalhei; completei como [segundo] tuxaua 2 anos, como
primeiro tuxaua 8 anos. Completei 10 anos. Até dez pessoas
levantaram assim: “Por que é que o senhor vai entregar o
cargo? Qual é o problema? O senhor não tá gostando de
trabalhar ou o senhor tá cansado?” “Não. Eu vou entregar,
porque quem sabe tem outra pessoa que quer aprender,
quer conhecer, quer conversar, quer aconselhar; então eu
vou dar a vaga pra outro.” Depois de 10 anos. Assim mesmo
quando eu fui líder de igreja: quando eu completei 10 anos
como líder de uma igreja, aí a igreja se reuniu: “É bom a gente
tirar o Manoel porque tem isso, tem isso...” Aí a maioria disse:
“Não, se tiver motivo, a gente tira, mas não tendo motivo,
tirar pra quê? Qual é o motivo?” Assim eu passei 16 anos.
Assim mesmo eu entrei na liderança, eu converso com as
Projeto: Panton pia’ 113

comunidades. Como líder nós não podemos usar a palavra


ofensiva, destrutiva, crítica. Tem que respeitar pai de família.
Como a gente cuida da nossa família, a casa de outra pessoa
tem que ter cuidado, né? Então, eu levei assim. Aí me lancei
na candidatura.47 Na primeira eu tive quinze votos. O pessoal
Candidato a vereador do
47
não reconheceu a minha pessoa. Depois, na segunda, eu tirei
município de Pacaraima, RR.
oitenta e três votos. Faltou só quinze votos pra eu ser eleito.
Assim a gente levou, então, a troca de tuxaua é conforme
o trabalho do tuxaua. Ele tá trabalhando bem, então deixa
que trabalhe. Se ele tá fazendo errado, então tem que tirar,
colocar outra pessoa.
DF: Ah! Entendi. O senhor não quer se candidatar agora?
MF: Não. Eu ia me candidatar, mas eu procurei alguém
pra procurar partido, mas foi em cima da hora. Não deu.
DF: Tá certo. O senhor gosta um pouco da política, não?
MF: Isso aí como eu falei, eu tenho que participar, por-
que o meu problema é assim — o meu pensamento né? O
município de Pacaraima tá na Terra Indígena, tá na Terra
Indígena. Tá aí, todo mundo tá vendo, a terra é demarcada
pros indígenas. Mas, nós mesmos defendemos pra não sair,
porque tem colégio; tem hospital; tem a segurança. Então,
a gente assegura. Ao mesmo tempo, a gente pensa de ser
algum representante lá na câmara, na prefeitura. Eu penso
assim, muitos estão falando agora, né, falando do prefeito
Paulo César: “veio de longe, de outro estado, ele não pode
ser prefeito.” Na verdade ele veio de longe administrar
os filhos daqui, porque os filhos daqui não se interessam.
Então, o pessoal de Boa Vista vem, eles se candidatam, eles
não conhecem a realidade, eles não conhecem o sofrimen-
to das comunidades, eles querem assumir só pra ganhar o
dinheiro, e as comunidades deixam no sofrimento. Então,
meu pensamento, eu conheço sofrimento da comunidade
do Guariba, do Bananal, de todas as comunidades. Então,
tenho que me lançar candidato pra gente conversar com o
Governador pra conseguir transporte, pra conseguir isso;
[pra] não deixar o pessoal vir de longe administrar os que
nasceram, os que estão crescendo aqui, o que é que eles
estão fazendo? Então, a gente tem que questionar sobre
114 Projeto: Panton pia’
isso pra ter um administrador.
DF: Entendi.
Projeto: Panton pia’
Entrevistado: Armando Magalhães
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Assistene de Entrevista: Lucimar Sales
Local: Comunidade Nova Morada, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 2/10/2008
Transcritora: Michele Rubinstein
Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 1’34’’16’’’
Projeto: Panton pia’ 117

DF: Primeiro, seu Armando, eu queria que o senhor falasse


o nome do senhor completo.
AM: Eh, eu sou o tuxaua da comunidade da Nova Mora-
da, na qual meu nome é Armando Magalhães, filho de José
Magalhães e Cacilda da Silva, que é minha mãe. Eu morei na
comunidade do Taxi. É uma comunidade antiga, aí na qual
hoje eu estou aqui, na região do São Marcos, no alto São
Marcos, perto da cidade. Eu estou com oito anos aqui na
cidade; quer dizer, já estou com dois anos que já formamos
essa comunidade nova e aí eu estou muito alegre, porque a
gente tá aí. É uma área produtiva, é uma área que não tem
assim, vamos dizer assim: “Ah não, estamos passando fome
ou estamos passando necessidade, há falta de alimento.”
Não. Graças a Deus hoje nós estamos com o pé no chão,
trabalhando sempre. Aí o que que eu sempre tenho dito
assim: “Nós estamos dentro de uma riqueza: madeira; nós
temos tudo aqui.” Com a terra na mão com certeza ninguém
nunca vai passar necessidade, né? Com o professor aí, sei
que estamos falando pro senhor, porque essa comunidade é
nova. Aí temos plantado, mais ou menos, quase quatrocentos
pés de cupuaçu; mais ou menos duzentos e sessenta pés de
banana, porque isso aí é o início dum começo[...], de qualquer
implantação de uma comunidade que tá se plantando, que tá
se formando. Daí pra frente com certeza nós vamos ter muito
mais fartura, que aí temos madeira. Têm várias coisas que nós
estamos plantando pra nós ter um dia, ver nossos filhos de
barriguinha cheia. Tem que às vezes a doença pega a crian-
ça, que às vezes tá com uma fome, passando necessidade e
isso ninguém quer. Eu, como tuxaua, eu não permito essas
coisas assim. Nem também falamos da Funai agora. Funai
é uma pessoa, é um órgão que podia estar ajudando cada
um de nós pra nós termos mais fortalecimento, mas na qual
ninguém tá tendo. Aí quando eles... tem Funai, agora não,
que a Funai já tá liberando um pouco, dizendo assim: “Olha,
tuxaua, é só a Funai que interdita a convivência, o trabalho
de vocês, mas agora tá liberado, vocês podem fazer o que
vocês quiserem de bem pra comunidade de vocês, podem
usufruir do que tem aí na terra, vamos crescer e quem sabe
118 Projeto: Panton pia’
eu posso trazer algum projeto, um tratorzinho pra vocês
trabalharem, ampliar mais os trabalhos de vocês.” Isso aí é
o que a Funai sempre tem dado esse alerta. Aí com isso, nós
estamos muito alegres com isso, porque eles estão abrindo
nossas portas, assim.
DF: Ajudando...
AM: Eh, ajudando com a palestra. Aí essa palestra o cara
não tem que jogar no mato, tem é que crescer com esse
sonho, pra um dia, esse sonho também ser vitorioso. Será
mais, mais ampliado com as coisas que a gente tá pensando.
DF: O senhor tem quantos anos?
AM: Tenho 56, vou fazer no dia 13 de janeiro.
DF: 13 de janeiro.
AM: 56 anos, vou fazer, vou fazer.
DF: Qual a etnia do senhor?
AM: É macuxi.[...]
DF: Tá certo. O senhor é tuxaua. E aqui na ALIDICIR, o
senhor tá exercendo qual função agora?
AM: Na ALIDICIR, na qual essa ALIDCIR é nossa. É nos-
sa casa; é a casa dos tuxauas; a casa do povo que somos
associados à ALIDICIR. Somos vinte e três comunidades
que são associadas aqui à ALIDICIR, na qual os tuxauas são
responsáveis por essa casa, na qual hoje nós estamos aqui.
Nós colocamos um presidente pra nos segurar, pra levar
nossa história em frente; pedir alguns projetos; levar alguns
documentos de projeto pra, pro presidente da República
ou pra algumas pessoas que trabalham por nós também.
Então, nós temos nosso presidente aqui da Associação.
Somos vinte e três pessoas que estamos aqui; tuxauas que
são líderes aqui dessa associação e na qual somos muitos. Só
os tuxauas mesmo que são aliados aqui à ALIDICIR. É nossa
casa, casa de todos.
DF: Tá certo. O senhor chegou a estudar?
AM: Professor, só estudei segunda série. Aí só fiz terminar
Projeto: Panton pia’ 119

só a segunda série. Eu não sei ler bem, mas aqui, acolá eu


gaguejo, mas não sei ler bem não. Mas a gente desenreda
alguma coisinha.
DF: Isso não é importante, é só mesmo pra gente saber.
Não tem importância nenhuma. E o senhor chegou a apren-
der o macuxi?
AM: Com certeza. [...]
DF: Na comunidade vocês falam em macuxi?
AM: Falamos.
DF: Têm outras pessoas também?
AM: Falamos. Nós falamos macuxi.
DF: Ah, que bom. A primeira língua do senhor foi a macuxi?
AM: Foi.
DF: Ou foi a língua portuguesa?
AM: Não senhor. Foi macuxi. Primeiro a gente falava
macuxi.

DF: O senhor escreve macuxi ou só fala em macuxi?

AM: Nós só falamos macuxi. Nós tínhamos professor,


quer dizer, nosso tuxaua antigo, o seu Terêncio da Silva, ele
foi um professor e até hoje tá sendo professor de língua
macuxi. Ele mora lá no Ubaru, numa comunidadezinha que
foi fundada também por nós e aí tá lá, na qual ele é o pro-
fessor, até hoje. Não sei se ele já saiu do cargo dele, mas ele
tá sendo professor de macuxi, da tradição. Então, isso aí eu
nunca esqueci professor, da minha tradição. [...]

DF: Como o senhor falou, o senhor é agricultor ainda, não?


AM: Sou agricultor.[...]
DF: Me diga uma coisa, hoje vocês produzem o que na
comunidade?
AM: Lá nos produzimos. No momento, tem plantado:
tem banana, macaxeira, mandioca braba, taioba. [...] É assim
[faz gesto com as mão de muita quantidade] de fruta: temos
120 Projeto: Panton pia’
cupuaçu; temos caju; temos manga; tem açaí; tem até buriti-
zeiros plantados. Então, quer dizer que... acerola, acerolinha,
maracujá daqueles grandões, de quilo. Aqueles maracujás de
quilo, nós temos também lá dentro. Então, professor, nós
temos vários tipos de plantações que nós estamos plantando
aí nessa comunidade. É só o senhor vendo de perto que aí o
senhor vai acreditar o que nós estamos falando, né?
DF: O senhor já falou o nome dos seus pais. Eles eram
macuxis?
AM: Todos dois eram macuxis.[...]
DF: Eles são vivos?
AM: Já morreram. Já passaram dessa vida pra outra. Na
qual um morreu aqui e outro morreu lá na maloca Cumanã.
[...]
DF: Cumanã fica onde?
AM: Fica aqui nessa direção da comunidade do seu Terên-
cio, primeiro tuxaua nosso, que nós tivemos nessa região.
DF: E a religião, vocês têm alguma religião hoje?
AM: Bom, a nossa religião é católica. [...] É católica sim
senhor. É católica a nossa religião.
DF: O senhor é casado?
AM: Sou casado, sim senhor; casado em civil; casado em
padre também.
DF: Sei. E a etnia da sua esposa?
AM: É macuxi também. [...]
DF: E os curumins são quantos?
AM: Nós somos seis crianças né, meus filhos.[...] Eram
mais de seis, mas morreram três crianças. Eh, morreu um,
dia desses, com vinte e três anos, que era da escola Casimiro,
da professora Fátima, né?
DF: Sim.
AM: Era aluno dela, mas morreu dia desses. Tá com um
Projeto: Panton pia’ 121

ano e pouco, faleceu o bichinho. Então, aí, nós estamos por


aqui, professor.
DF: Eu sei.
AM: Eh, com certeza nós procuramos mais a melhoria.
Como o senhor tá levando essa nossa história, isso vai ficar
arquivado pra sempre, com certeza.
DF: E vai voltar pro senhor.
AM: E vai voltar pra gente, pode colocar num vídeo, num
cedezinho. Nós temos televisão, nós podemos assistir o que
eu estou falando. Aí meus filhos vão assistir que nós estamos,
a história nossa, né? Então, isso daí vai ser divulgado, com
certeza, pra muitos tempos; assim como a história do senhor
como professor; a história do senhor não tá só aqui; isso tá
na televisão, tá na internet; tá em todo canto a história do
senhor. Então, essa história ela nunca vai morrer. Morre o
senhor, ficam seus filhos, ficam os netos, fica a sua família, né?
DF: Justamente.
AM: Então, essa história, quando se passa pra televisão
ela vai pra muitos tempos. Isso aqui que é história, né? O
senhor não vê a história do governador Ottomar? [...] Hoje,
como o cabra ia dizendo, nós não estamos querendo mais
viver como a gente era. Hoje nós estamos querendo viver
também direito, como os brancos têm. Nós queremos ter
a televisão, nós queremos ter um carro na nossa porta, nós
queremos ter uma comida de qualidade. Então, pra isso quem
é que vai trazer? Quem vai trazer essa comida de qualidade
são os pais, são os tuxauas que têm que incentivar: “Vamos
trabalhar pessoal, pra gente ter, pra ninguém mais passar
fome.” Chega de a gente estar sendo humilhado pelas autori-
dades como órgãos, Funai, né? Vamos parar com isso. Vamos
botar o pé na parede pra eles aprender também a respeitar
nossas leis; que uma autoridade dentro da comunidade, um
tuxaua, ele é chefe sim, é da comunidade. Então, ele tem que
passar por aí; tem que aprender a respeitar, porque ninguém
quer mais viver como a gente tava vivendo. De jeito nenhum
professor.[...]
122 Projeto: Panton pia’
DF: Agora vou fazer uma pergunta pessoal. Qual a coisa
mais triste que o senhor passou na vida e qual a mais feliz?
AM: A mais triste que eu já passei na minha vida é assim,
sabe: viver sem ter oportunidade de a gente usar o que nós
temos, principalmente. Porque, às vezes, quando a gente tá
começando usar, quando a gente tá começando a melhorar,
vêm as pessoas por trás impedir que ninguém faça isso. Isso
é uma vida triste. É uma vida que ninguém pode nem fazer,
vamos dizer, quando a gente tá começando a melhorar;
quando uma comunidade tá levantando a cabeça; tá tendo
uma visão melhor; tendo um passe melhor; aí lá vem o IBA-
MA, lá vem a Funai, vai vir outras pessoas. Então, quer dizer
que como é que, é uma vida triste, é uma vida triste sim. A
gente vê que é uma vida triste. Porque é uma vida que nós
temos direito. Ainda eles dizem que nós temos direito, mas
esse direito eles não respeitam. Nós respeitamos, mas eles
não respeitam, porque esse direito não tá dizendo usar
as madeiras, ouro, diamante, terras, areia, pedras: “É de
vocês tuxauas.” Ainda a Funai tem coragem de dizer isso.
Aí, na hora que a gente tá usando, que a gente tá usando
pro bem da comunidade, aí já vem o IBAMA atrás: “Não, o
senhor não pode tirar essa areia, porque é proibido tirar.”
Mas que coisa! Então, é uma vida triste que a gente vê. É uma
vida triste que ninguém pode ampliar nada, ninguém pode
ter nada nas nossas casas. Vamos viver sempre de migalha,
sempre sofrendo, a barriguinha dos nossos filhos roncando,
né? E dá doenças, com fome. É triste, é uma vida triste. Eu
acho, pra mim, uma coisa muito triste essa vida assim. Agora
uma coisa que todo mundo (como se diz?), se a nossa lei
amparasse, nosso direito é trabalhar. Nós temos, nós vamos
ter, com certeza, nosso alimento com sobra; nós vamos ter
esse tal de autossustentação que nunca existiu. Essa região
daí do CIR sempre fala em autossustentação, mas nunca 48
Paulo César Quartieiro foi
prefeito da cidade de Paca-
conseguiram ter. Agora eu vou dizer bem aqui assim, quem raima, além de fazendeiro
tem autossustentação é o Paulo César Quartieiro.48 Ele tem. produzindo arroz na região
da Raposa Serra do Sol, de
O senhor sabe por quê? Ele tem pra comer, tem pra vender onde foi desintrusido. É o
principal defensor das fa-
quase pro Brasil inteiro. Tem pra vender. Então, ele tá usando
zendas em terras indígenas
autossustentação. Ele tem pra comer e tem pra distribuir pra em Roraima.
Projeto: Panton pia’ 123

qualquer país do mundo, ele tem. Porque ele tá produzindo.


Tem arroz aí bastante. É todo dia caminhão tá dissolvendo
arroz aí, tá disparando arroz. Então, a gente vê que essa au-
tossustentação (que sempre eles vêm trazendo de Brasília,
lá dos órgãos lá de fora, que acontece pela região da Serra,
da Raposa Serra do Sol, aí pro Jaci, esse pessoal que mora
aí dentro) eles sempre falaram nas reuniões: “Olha, tuxaua,
vocês têm que ter autossustentação, porque senão nós
vamos morrer de fome.”, mas nunca apareciam eles como
chefe. O que que eles fazem né? Vão pro exterior, eles só
trazem dinheiro pra eles, pra eles. E toda vez que eles viajam
trocam de mulher. Trocam por uma loura mais bonita e tal,
com um carrão importado, carrão de cento e sessenta mil,
são aqueles carros com cabina dupla. Só andam trocando de
veículo. E os outros, e os outros coitados, dizem assim: “Você
não pode nem trabalhar com branco, cuidado, não vamos
trabalhar com branco.” A roupa dos pobres, tudo rasgado
meu Deus! Mas que coisa, o cara com relojão, com uma
mulher bonita na frente e com um carrão do lado, com uma
casa melhor e quer que a gente vá viver nessas condições.
Não têm condições pra nós.
DF: Entendo.
AM: Não tem condições. A gente sofre muito, porque
o nosso chefe come dinheiro sozinho e não dá um real pra
ninguém, como nós estamos vendo. Nós estamos vendo
isso. Então, quer dizer que agora a gente não pode ficar
mais assim.
DF: Eu sei. E qual a coisa mais feliz que aconteceu com o
senhor que o senhor lembra?
AM: Bom...
DF: Quer dizer alguma, que sempre a gente tem.
AM: Sempre a gente tem. Quer dizer, feliz como eu acabei
de dizer, professor, é quando a gente tá de bucho cheio,
nós temos a vida feliz. Quando se tá com fome, rapaz, fica
agoniado, fica triste: “Rapaz, como é que é?” Não sei; o cara
fica quase doido, né? Mas, se tá de barriga cheia, as crianças
124 Projeto: Panton pia’
estão alegres, a esposa tá satisfeita. A gente como esposo tá
satisfeito, vê toda família com o buchinho cheio, que coisa,
né! É uma coisa boa, quer dizer que é uma vida de alegria,
que eu acho. Dali vem alegria; dali o cara vai pra um lugar
com o buchinho cheio, satisfeito; vai sorrindo das coisas. Mas,
quando tá com fome, coitado, só anda enrolado. Só anda
enrolado, porque não tem jeito de ter alegria. Ele fica triste
cada vez mais: “Puxa vida onde que... será que alguém vai me
dar alguma coisa pra comer hoje? Puxa vida, colega, eu estou
sem dinheiro!” Mas é ruim, já passei nessa. Quando a gente
tá sem dinheiro, rapaz, já tenho me virado aqui na cidade
um pouquinho. Ainda bem que eu tenho uns créditos por aí
nos comércios: “Me dá, patrão, eu estou devendo, mas eu
quero mais aí, rapaz, fim do mês eu lhe pago.” “Nada, pode
pegar aí, não se preocupe não, pega aí.” Compro alguma
coisa, pego como eu falei. Então, naquele dia nós estamos
alegres, com barriguinha cheia...
DF: Tá certo.
AM: Pra que mais que isso? Com saúde, né?, saúde é me-
lhor alegria das pessoas. Com fome a gente não tem alegria.
DF: E o senhor nasceu onde?
AM: Nasci na maloca do Taxi. Lá pra dentro.[...] Fica na Ra-
posa Serra do Sol.[...] Sim senhor. Foi lá que a gente nasceu.
DF: O senhor poderia falar um pouquinho da comunidade
onde o senhor nasceu? Depois o senhor pode falar daquela
que o senhor viveu e aquela que o senhor tá agora. Se o se-
nhor puder falar como era lá onde o senhor nasceu, alguma
lembrança de lá.
AM: Bom, era assim. Antigamente a gente morava na
maloca do Taxi. A gente lembra do primeiro tuxaua, seu Luís.
Chamavam, chamavam não sei se era o apelido dele, não sei
se era apelido dele que a gente era criança, quando começou
a entender. Aí chamavam Luís Cabeçudo, chamavam pra
ele, um tuxaua antigo, dessa comunidade Taxi. Aí depois
entrou seu Joaquim Máfora, o tuxaua daqui que morreu
tempo desse também. Morreu com mais de vinte anos de
Projeto: Panton pia’ 125

tuxaua, vinte e cinco anos, parece, de tuxaua. Foi um tuxaua


que durou mais tempo, com liderança, na maloca do Taxi, na
qual depois de lá ele fundou essa maloca Cumaná aqui pra
nós, que era pra gente estar subindo junto com ele. Nunca,
ninguém nunca deixamos ele.49 Que era um tuxaua bom,
que gritava todo dia de madrugada pro povo. Então, todo
mundo já sabia, quando ele gritava, era algum serviço que
49
Apesar de não adequada à a gente ia fazer, era algum recado que ele ia comentar pra
concordância formal, optou-
-se em preservar a ideia e o comunidade e assim por diante. Então, nós moramos lá e
estilo do entrevistado. depois nós partimos já pra essa comunidade que hoje tá ainda
sendo fundada por esse tuxaua Joaquim, o Cumaná. Depois
do Cumaná, nós passamos mais ou menos oito anos mais
ou menos. Eh, mais ou menos isso, oito anos. Aí depois nós
deslocamos de lá, formamos outra comunidade, na qual nós
tínhamos a nossa comunidade. Nesse tempo eu já comecei a
trabalhar como segundo tuxaua. Então, nela morava o meu
compadre Garnete, que hoje, hoje ele tá por aqui também,
junto com a gente. Nunca deixou a gente, sempre teve um
parceiro bom. Ele morava sozinho aí, encostamos lá com ele,
formamos essa comunidade. Aí o Ubaru, uma comunidade
nova também, já tá com quantos dias, mas já tá com um
pouco de dias que já tá fundada essa comunidade. E de lá
nós, minha filha terminou a 5ª série dela, nessa comunidade
do Ubaru. Aí ela procurou que a gente viesse pra cá, pra
cidade, na qual já tava fundada essa ALIDICIR. Já tava com
mais ou menos seis meses que ela já tava, que essa associação
já tava funcionando. Não tinha caseiro, né? Eu digo: “Não,
já que minha filha tá procurando de ir pra cidade terminar o
estudo dela, o segundo grau dela, nós vamos encostar pra
ALIDICIR.” Aí me deixaram aqui como caseiro. Me apoiaram.
Fiquei aqui um ano e três meses aqui como caseiro, aí na qual
eu invadi esse terreninho aí. Não sabia de quem era. Isso foi
uma confusão grande. Mas aí falando que nós temos direito
também. Aí nós ficamos aí, na qual tem uns terreninhos aí.
Aí, depois foi indo, foi indo, foi. Comecei a trabalhar como
empregado na prefeitura; comecei a trabalhar, tempo do
50
Primeiro prefeito da cida-
de de Pacaraima, Hipérion Hipérion.50 Passei dois anos como funcionário; passei um
de Oliveira Silva. ano como monitor de ônibus e passei mais um ano traba-
126 Projeto: Panton pia’
lhando fora assim na, como empregado aí da prefeitura.
Depois entrou esse outro, seu Chico Roberto, fiquei como
funcionário. Depois já entrou outro, na qual seu Paulo tava
na administração, passei pra ele de novo. E aí como te disse,
de noite não tem nada a ver. De noite você faz seus bicos
por aí, né? É um bico que a gente pode dizer. É um bico que
a gente faz. Mas, mas estamos lá dentro, a gente como
representante. A gente lutou e aí fomos na Funai pra ver se
nós tínhamos, ele queria um documento, com o papel de
tuxaua. Foi difícil, eles não queriam dar, a Funai não queria
dar: “Não, é porque a gente tá dando muito esse papel pro
pessoal, pros tuxauas.” Às vezes tem tuxaua que só diz que
é tuxaua, mas não tem documento. “Então precisa delega-
do!” Na qual eu tirei, ele assinou e hoje eu estou, eu tenho
meus documentos de tuxaua. Meu segundo tuxaua também
tem o documentozinho de tuxaua também, como segundo.
Então, aí professor, nós estamos aí nessa comunidade. Nós
fundamos ela, aí registramos como Nova Morada.
DF: Quando ela foi fundada?
AM: Foi fundada já faz o quê? Dois anos.
DF: Dois anos.
AM: Eh, dois anos tem que tá fundada essa comunidade.
Então, aí professor, tudo é novo, tudo é novo. Tudo, as plan-
tas, tá novo. Nada é antigo, mas tá crescendo, tá crescendo.
Daqui mais três anos cupuaçu com certeza vai chegar fruta,
né? Cupuaçu é três anos. É um projeto de três anos, né? Agora
macaxeira, banana, cana, essas outras frutas que a gente vê
que ela é de ano, isso aí com um ano já tem fruta. [...]
DF: E como o senhor escolheu o lugar? O senhor escolheu
ou já tinha assim?
AM: Não senhor, nós pesquisamos duas semanas. Foi uma
pesquisa de duas semanas com meu genro; andamos por lá.
Primeiro dia, não achamos; segundo dia; terceiro dia; aí nós
paramos. Deixamos dois dias. Quando foi sábado, fomos de
novo, não conseguimos. Aí deixamos pra segunda-feira, na
outra semana. Quando foi na terça-feira, nós conseguimos
Projeto: Panton pia’ 127

encontrar esse igarapezinho por causa da cachoeira. Nós


paramos em cima de um [...], aí escutamos aquela zoada de
água caindo: “Rapaz, aqui tem uma água boa.” Era mês de
março, verão. Aí fomos pra lá devagarzinho, fomos fazendo
uma picadinha. Chegamos lá, disse: “Ah tio, é aqui.” Eu digo:
“Rapaz, é aqui mesmo. Ninguém vai escolher não, nós vamos
empurrar à força.” Tinha uma área, mais ou menos uma linha
e meia, aí nós brocamos. Deixa pra nós virmos no outro dia.
Vamos sair. Já era quatro horas da tarde. Aí de quatro horas
nós tiramos aqui pra cidade, pra casa. Viemos pra cá, aí nós
chegamos por aqui, aí falei pra mulher: “Olha, mulher, nós
encontramos já um lugar bom pra gente morar. É ali e é ali
mesmo.” “Ah, tá, tá bom. Eu vou com vocês.” “Tá bom, se
quiser ir, vamos.” Aí fomos lá e abrimos já uma estradinha,
aí conseguimos abrir essa clareira lá dentro e encontrei um
rapaz que tinha uma motosserrazinha por aí. Aí digo assim:
“Rapaz, me dê uma mãozinha pra ir mais rápido porque tá
chegando o inverno.” Isso foi no mês de março. Aí passou
só uns quinze dias, o mato secando, arrochei! Não queimou
quase nada não, só fez só brocar. Aí foi verão e começamos
a plantar né? Então, tá aí, professor, minha história é essa.
Eu acho que já disse o que pude dizer, né? Então, a história
é isso daí que nós fundamos essa comunidade, é nova. É
bonita. Ver o lugarzinho lá é bonito, não é acidentado, não
tem aquela buraqueira, dá pra fazer umas vicinalzinhas até
lá dentro, tranquilo. Dá pra gente trabalhar um bocado de
tempo lá dentro.
DF: O senhor pra ir pra lá e voltar, o senhor vai como?
AM: Volto de pés professor.
DF: Dá o que?
AM: Dá uma hora e vinte. É pertinho.
DF: Então, deve ser uns cinco quilômetros.
AM: É mais ou menos isso, cinco ou seis quilômetros, mais
ou menos. Eu calculei seis quilômetros.
DF: Como que era a alimentação antiga e como que é
128 Projeto: Panton pia’
agora, a parte da comida de vocês?
AM: Bom, a nossa, lá na minha comunidade, nós fazemos
damorida. A gente coloca um peixe, coloca uma pimentinha
dentro. A minha esposa é muito fabricadora de fazer a cer-
vejinha, que é o caxiri, né? Ela faz o caxiri cozido. Ela coa.
Aí depois no outro dia a gente tá tomando, tá doce que é
uma maravilha. Aí você toma, enche a barriga. E ela tá por
ali plantando uma coisa, eu estou do outro lado coivarando.
Aí todas crianças que vão lá em casa, eles estão lá alegres
tomando caxirizinho, vão lá molhar o beijuzinho, comem.
Eles são acostumados. Aí quando a gente vem pra cidade já
muda. Aí nós compramos verdura pra temperar um peixe,
pra temperar um galeto, uma carne. A gente vai lá na rua,
compra, porque os dois lados são bons, nada não é ruim pra
nós. Porque na comunidade é damorida, e aqui na cidade a
gente já é, comida já é diferente. A gente pode até comprar
uma marmitex pras crianças comerem e eles acham bom.
Quer dizer que eles não estranham...
DF: A alimentação.
AM: A alimentação. Eles acham bons os dois lados. Tan-
to como o deles como o da cidade. Da cidade já muda por
causa do tempero. Lá dentro o tempero é a pimenta, mas
só que eles não comem assim a pimenta bem não. Aí tem o
pimentão que eles colocam dentro da pimenta, dentro da
panelinha deles. Aí corta uma carnezinha dentro, aquilo tipo
uma pimenta. Eles acham bom, mas só que pimentão não
arde. Molha o pirãozinho e tal, aí vai lá no bujão de caxiri,
mistura com açúcar. E a banana tá pendurada; eles vão lá,
descascam e comem a hora que eles querem. Suou, já vão pro
igarapé. Bem estão aí gritando: “Ei, ei, ei.” [risos] A avó deles:
“Cuidado, cuidado, cuidado com a água!” Que lá eu acho
que sucuriju não tem, cobra. E lá eles estão vendo tudinho.
É praia, né? É um lugar de pé [...]. Então, estão lá olhando
tudinho. Se tiver algum bicho, já gritam logo. Aí eles estão lá,
graças a Deus!, nunca adoeceu ninguém. Dessa forma que a
gente tá debatendo, né?
DF: Que bom.
Projeto: Panton pia’ 129

AM: É um lugar muito bom. Frio. Essa hora tá gelado. Já


o indígena, eles são acostumados. Como não tem coberta,
professor, eles acendem fogo. Quando é de madrugada
estão lá se esquentando lá. O fogo aqui aceso, e eles estão
lá no calor do fogo, né? Tá lá o frio, tá fazendo frio, mas eles
são acostumados. Quando vem pra cá, pro interior, pra ci-
dade, eles têm a camazinha deles, que a cama [...] esquenta,
embaixo não é como uma rede, que esfria quando o vento
bate. Aí a casa com sofá já não tem como entrar a frieza por
baixo. Já lá na rede, corre lá pra beira do fogo. Aí acende o
fogo e eles estão lá se esquentando. Aí, daqui um pouco eles
vão, esquentam a coberta e vão pra rede, se embrulham.
Amanhece dormindo. Então, isso é, é o costume. É o costume
da tradição indígena. Isso aí nunca eles vão esquecer. Isso
aí já é história deles, é das crianças. Nós como tuxauas, nós
apoiamos muito esse lado. Nunca ninguém vai esquecer. Isso
aí é, nós vamos preservar até onde Deus permitir que a gente
viva assim, né? Aí os senhores têm a parte do senhor como,
como professores, não vão fazer isso. Quando vocês forem
dormir lá dentro, vocês vão estranhar, porque as crianças
estão tudo na beira do fogo. “Oh meu Deus! Isso vai...” “Vai,
vai pegar...”, como é que chama? “Uma doença.”
DF: Uma friagem.
AM: Pegar uma quentura com frio. Dá uma doença aí que
pode matar. Mas são acostumados já àquilo. [...]
DF: E os indígenas antigos, eles tinham muitos rituais. É
claro, a Igreja Católica tem o ritual dela...
AM: Isso.
DF: Esses rituais ainda existem na comunidade do senhor
ou não existem mais? O senhor preserva? [...]
AM: Eu pelo menos como mais idoso, que a gente sempre
canta um parixarazinho. Às vezes, quando eu quero cantar,
minhas crianças zombam de mim: “Ah, vovô tá cantando sem
ninguém nem saber o que é isso!” “Ah, meus filhos, isso aqui
é de vocês mesmo.”
130 Projeto: Panton pia’
DF: Justamente.
AM: Isso aqui veio do meu pai, veio dos meus avôs. Eles
deixaram pra nós hoje. Nós temos esse, esse, esse cântico
de parixara, de (como se diz?), de tempo de Natal, tem o
areruia, tem o parixara. E também nós preservamos muitas
orações que hoje também fazem parte da saúde, das crianças
que estão com diarreia ou que estão assustados, a gente
vai. A gente, como mais velho, a gente reza em cima duma
criança e aí fica bom, né? Então, essa preservação professor,
a gente tem sempre em dia, em forma mesmo assim de, de
estar com ela, né?, E que mais?

DF: Em relação a esses rituais mesmo, essas coisas da


tradição mais antiga.

AM: Isso.

DF: Se um dia o senhor quiser que a gente vá lá pra ver o


senhor cantar é só falar que a gente vai.

AM: Tá bom. Pode ir lá que a gente vai imitar por lá.

DF: Isso.

AM: E que mais em outros tempos?

DF: Se o senhor lembrar, depois o senhor pode falar


alguma coisa. Outra coisa: como o senhor vê o índio hoje?

AM: Professor, falar a verdade é preciso. Hoje o índio, só


o nome dele que é índio. Mas ele tá ficando sabido hoje. Ah,
já tem índio já na faculdade também, [...] estudando. Estu-
dando aí, já tá estudando Turismo; já tá estudando, é uma
vida melhor. Não é como estamos dizendo, já tem gente na
faculdade aqui, aqui mesmo na [...] Então, hoje, eu acho que...
é como dissemos assim, a tradição, nunca ninguém vai deixar.
Mas hoje também o povo indígena, eles estão desenvolvendo
muito na tecnologia da civilização. Nós já temos um filho que
é, acabou de dizer, já temos professora já, da universidade,
da UERR, desse pessoal aí, já ensinando os brancos já, né?Que
coisa bonita né? É uma coisa bonita a gente preservar isso.
Mas o dia que ela for lá dentro, ela como diretora, ela vai lá
Projeto: Panton pia’ 131

na comunidade, ela vai comer damorida. Com certeza. Ela


vai lá comer damorida, tomar o caxiri, o aluá de milho. Ela
nunca vai deixar. Então, hoje o povo já tá com a visão mais
longe. Já estão pensando de viver bem. Hoje eles não querem
mais viver como os antepassados passaram. Querem viver
numa sociedade melhor. Bem estar, como acabamos de
dizer. Tá chegando muita coisa, professor. Então, quer dizer
que ela fortalece muito. Hoje nós estamos conversando, os
senhores que são educadores de todo movimento, mas aí a
gente tá conversando hoje, isso aí nunca vai se acabar. Isso
aqui vai continuar mais pra frente, continuar. Com o pouco,
a comunidade vai, vai olhando que nós temos direito de viver
assim também. Nós temos direito de viver. Acabou. Ninguém
quer mais viver sofrendo. Ninguém quer mais viver sofren-
do. Queremos hoje ter uma estrada na nossa casa. Hoje nós
queremos ter uma ambulância, uma saúde de qualidade na
nossa comunidade. Que lá, quem mora distante, é preciso
ter uma saúde de qualidade, que a saúde, a doença, ela não
espera que dia vai pegar a gente, mas tendo uma pessoa que
já é formado, que já é técnico de laboratório, de alguma coisa,
eles têm, vão levar uma história boa pra comunidade. [...] Aí
pega, olha, hoje a coisa tá tão mudada que as crianças hoje
não estão estudando a história dos pais delas não, de jeito
nenhum. Sabe o que elas estão estudando? Estão dizendo
assim, professores, estão dizendo: “Olha, quem foi que
descobriu o Brasil?” Aí a criança... [risos] Já estão lá em cima
procurando um meio de fortalecer mais. Aí diz assim: “Quem
foi que descobriu o Brasil?” A professora dizendo pra nós,
na escola aqui. Já estudei também um pouquinho aí; nessa
escola daí, na escolinha. A Professora vira dizendo: “Quem
foi que descobriu o Brasil, seu Armando, o senhor sabe?” Eu
digo: “Professora, eu acho que isso aí nunca foi descoberto
não, de jeito nenhum. Pedro Álvares Cabral, que chegou, ele
não descobriu, professora, ele invadiu, já tinha morador. Já
tinha o povo nativo dessa terra. Quando ele chegou, estão
dizendo que ele descobriu. Como que ele descobriu? Não
descobriu. Morava indígena lá dentro. Já moravam os indí-
genas lá dentro. Agora, podia na história dizer assim: ‘Pedro
132 Projeto: Panton pia’
Álvares Cabral invadiu o Brasil!’, aí eu acredito, professora,
porque ele invadiu mesmo. Já existia índio dentro.”
DF: E ela falava o quê?
AM: Já existiam moradores. Aí ela dizia: “É verdade seu
Armando. O senhor tá certo. É verdade.” [risos] Mas, esta-
mos dizendo, nós, no livro, professores, estamos já contando
a história que foi ele quem descobriu. Na verdade nem é. Na
verdade já moravam moradores, não é? Ela sorriu com isso,
a professora.
DF: Sei. E nesse mesmo caminho, como é que o senhor
vê a questão indígena hoje? Essa luta toda?
AM: Bom, a luta nossa, como liderança, é de, é de en-
contrar uma solução de viver melhor; viver melhor; todo
mundo ter o seu direito. Assim como branco tem, nós temos
também direito de viver como a gente pensa. Aí, como é
que se diz, a gente pensa nesse lado do direito. Às vezes,
muitas vezes, nossas autoridades não estão dando direito
pras pessoas. Eles estão querendo nos oprimir; viver; que a
gente viva assim na escravidão. Hoje ninguém quer mais viver
assim não. Eu não quero mais viver. A Funai primeiramente
tá um pouquinho acordando, porque nós estamos dando em
cima deles: “Não queremos que seja assim, delegado. Não
queremos. E outra, que o senhor diz que é nosso assessor,
mas é nosso assessor de jeito nenhum. Quem é assessor do
senhor somos nós tuxauas, nós pagamos mensalidade pro
senhor. O senhor pega o nome de todas as crianças da nossa
comunidade. Pra onde que o senhor leva? O senhor leva só
em Brasília? Não. O senhor daqui engaveta e leva lá pro ex-
terior, lá pra Roma, lá não sei pra onde, pra outro canto. Aí,
com isso, o senhor arrecada dinheiro.” “Eu quero três bilhões
ou seis bilhões ou dez bilhões de reais ou de dólares.” Aquilo
vem pra nós, quer dizer: “Isso aqui é pra ajudar comunidade
pobre, vocês sabem, nós vamos levar.” Por isso ele diz a
nossa história. “Mas, na verdade, nunca chegou nenhum
real pra comunidade, nenhum real, delegado. Então, quer
dizer que o senhor mente muito. O senhor mente muito esse
lado. Não pode ser assim não. O senhor tem que aprender.
Projeto: Panton pia’ 133

Quando o senhor vai outra vez levar nossa história pra outros
cantos e trazer dinheiro, contribui pra nós, dá ao menos cem
mil reais; não pode, ao menos cinquenta mil ou vinte mil
reais. Tudo serve pra comunidade!” Aí nós dissemos: “Não,
agora o delegado tá preservando a comunidade. Ele foi pro
exterior; trouxe dinheiro; agora ele tá contribuindo. Agora
mesmo dizendo essa história bonita pro senhor: “O senhor
como delegado não, o senhor pega, todo dia tá trocando de
carro, carro dos melhores carros né, e nós ficamos na pior.”
Dizendo: “Não pode tuxaua derrubar madeira.” Que isso?
Nós vamos acabar com isso, vamos acabar com isso sincera-
mente, nós estamos enjoados. “Vai chegar o dia delegado,
de nós eliminar vocês. Acabar com isso. Lá dentro ninguém
vai mais aceitar vocês lá dentro, de jeito nenhum. Se aceitar
vai pro cacete lá dentro, vai pra borduna, não tem jeito né?”
Aí como é que a gente vai aceitar as pessoas que só vem
nos enganando. Só levando nossa história e não trazendo
nada pra ninguém. Não traz projeto, não planta projeto. E aí
coitados, a gente de machado, terçado, nós estamos cansa-
dos de cortar. Hoje nós queremos uma motosserra pra tirar
madeira bem na linha. Bater a linha, tirar umas madeiras fazer
suas casas bem arrumadas. É isso que nós estamos queren-
do. “Acabou, a gente tá cortando de machado, o braço da
gente tá cansado delegado. Mostra um projeto pra nós, pra
nós ficarmos animados com o senhor. Que o senhor não é
nosso patrão de jeito nenhum. Patrão somos nós, tuxauas e
lá dentro quem manda é a comunidade, é o tuxaua. Não é o
senhor que vai mandar lá dentro, botar opiniões lá dentro.
Opinião tem que sair de dentro da nossa comunidade pro
senhor. Se no caso, se o senhor aceitar, tudo bem, senão fica
lá dentro mesmo. Opinião fica com as lideranças lá dentro. É
isso nosso objetivo.” Nossa história é essa. É a melhor coisa.
DF: E o Governo Federal?
AM: Governo Federal, ele tá aí né? Ele diz que apoia um
lado, apoia um lado, apoia outro lado. Mas na verdade nós
temos que saber onde que nós estamos mesmo. Porque
senão nunca, ninguém vai conseguir nosso objetivo, de às
vezes até de viver bem. O Governo Federal, ele tá abrindo
134 Projeto: Panton pia’
uns projetos, tá abrindo as portas pra uns projetos, pras
comunidades, pra associação. Às vezes, muita das vezes,
nosso presidente, nós mesmos lideranças, muita das vezes
não tá se manifestando a procurar. Aí onde caem os outros
mais espertos, pegam o projeto. Aqui na associação era pra
vir nove mil reais. E as outras comunidades comeram. E aí
nós temos outros projetos, de um caminhão e uma toyo-
ta cabina dupla pra vir pra cá, pra associação e até agora
nunca ninguém conseguiu. Mas já fomos lá, formamos sete
tuxauas e fomos lá na secretaria lá do índio, procurar do seu
Adriano.51 Ele disse, se negou pra nós: “Eh, rapaz, cê sabe 51
Secretário Estadual da
Secretaria do Índio de Ro-
que Uiramutã mora muito distante de vocês, precisa ter
raima, Adriano Nascimento,
um caminhão e tal.” Então, quer dizer que o negócio tá por à época.

aí. “Olha, administrador, seu Adriano, nós vamos procurar


esse negócio. Esse negócio tá é com papo furado. O senhor
vai aprender é cuidar das coisas, senão nós vamos colocar é
outro administrador, porque assim não vai correr nada em
frente. O senhor só comendo nosso dinheiro, comendo nosso
dinheiro. Nós temos a sede lá em cima, podendo comunicar
pra gente vir resolver esse problema, aí o senhor nunca fez
isso. A gente vem dia quinze, depois da eleição a gente vem
aqui. A gente vem de dez tuxauas, vem aqui nessa mesa. Nós
vamos bater na sua porta. O senhor vai ficar muito chateado
com a gente, mas nós vamos procurar os nossos direitos.”
Aí ele disse: “Eh, tuxauas, tá bom. Depois daí pra lá a gente
vai ajeitar, porque parece que foi alugado por dois meses o
caminhão.” Quer dizer que ele já disse, já ia dizendo de novo,
voltando a palavra dizendo que o caminhão. “Eu acho que
tá por aí.” É caminhão dele, tá por aí. Tá chegando. Então,
tudo isso a gente tá vendo professor, a gente tá citando essa
história, porque é preciso a gente conversar mesmo, né?
DF: Tá certo. Agora me diga uma coisa: hoje, que animais
têm hoje na comunidade, porque os indígenas sempre gosta-
ram de ter animal ao redor deles, né? Hoje como é que tá lá?
AM: Como assim, professor?
DF: Eu falo: cria galinha, cria...
Projeto: Panton pia’ 135

AM: Ah sim, tá certo. Vamos criar, professor, com certeza.


Isso aí ninguém vai deixar de ter uma criaçãozinha. Na verda-
de, o que estamos falando é de melhoria. A melhoria não é
só pra gente ficar dentro de um lugar, às vezes ter bastante
sítio e não ter criação ao lado. Hoje estamos pensando de ter
criação de galinha; estamos pensando de ter um viveiro de
peixe, porque eu vou ficar velho, não vou poder pegar meu
canicinho pra pescar lá no Parimé. Então, lá no Uraricoera,
é longe. Pode jacaré-açu vai lá, pegar uma pessoa né? [...]
Então, estando lá pertinho, uma lagoazinha, próximo, aí já
posso ir lá. De manhãzinha, já estou com um peixinho; as
crianças estão fritando. Quanto mais próximo, é melhor. Aí a
gente se sente que tá seguro, porque ninguém pode facilitar
hoje, nós estamos pensando de ir viver numa, de melhor, de
melhor vida. Então, a gente tem que procurar criando, crian-
do galinha. Criando, já os outros criam confusão. Ninguém
quer confusão.

DF: Justamente.

AM: Estamos querendo criar criatório de peixe, de gali-


nha, de alguma coisa. [...]

DF: Agora vamos mudar um pouco. O senhor já falou da


comunidade...
AM: Sim.
DF: Em relação à história do povo, por exemplo, as histó-
rias, os mitos, a tradição. Por exemplo, a história do timbó,
o senhor sabe?
AM: Bom, a história do timbó, eu sei; nós somos vetera-
nos nisso, na qual nós morávamos no Cumaná, no Ubaru, aí
porque é uma história assim: você pega duas, três raizinhas
de timbó, aí tem o igarapezinho, corrente. Aí você vai lá, olha
um bocado de piabinha, aqueles peixinhos ali por dentro.
Duas raízes de timbó, você bate elas bem batido e solta elas.
Aquela golda dela desce. Na hora que bate nos bichinhos,
já vão ficando doidos, vão subindo e vão morrendo. Aí vai,
vai, ela vai descendo. Aonde ela vai tendo aquela fortidão do
timbó, ela vai matando: tam, tam, tam, tam, tam, tam. Mata
136 Projeto: Panton pia’
até cem metros, duzentos metros, ela vai descendo, né? Aí
chegou naquele limite, você já pegou, às vezes, um saco,
dois sacos de peixinho. Às vezes nem é isso também que já
escasseia com o timbó, que ela mata tudo. Desde filhozinho
assim que tá enterrado por ali na lama, aquele bichinho, passa
lá por dentro os bichinhos cheiram e já vão subindo, subindo.
Então, essa história do timbó, ela mata rápido. Mata rápido.
E joga num igarapé rico aí, que tenha peixe, meu Deus, isso aí
vai peixe pra todo lado, pulando aí. Surubim, pirarara, tudo
que vai batendo e vai subindo. São dois.
DF: O senhor pode contar a história de como surgiu o
timbó?
AM: A história do timbó.
DF: Como ela surgiu?
AM: Eu não sei, rapaz, como que ela surgiu. Mas diz que
foi duma pessoa, uma pessoa, que é a história dela. Diz que a
história do timbó ela veio de uma pessoa que tinha, ela tava
tão suja, aí a mãe dele não acreditava nele. “Vou já banhar
meu filho!” Aí ela pegou, era a história, é a história. É uma
história, é uma lenda.
DF: É assim mesmo que a gente quer ouvir.
AM: Aí quando ele, ela lavou o nenenzinho assim na água,
aí peixe começou a boiar, sabe, a pular só com o cheiro do
menino. Aí, “Óxente, que diacho é isso?” Aí foi piando e os
peixes foram morrendo. Lá pra baixo foi enfraquecendo,
porque o sujo da criança, que ele tava sujozinho, foi enfraque-
cendo, a água foi tomando de conta, né? Aí ampliou, cresceu
grande. Aí os peixes ficaram vivos pelo meio, circulando.
Essa é a história do timbó. Tem timbó que até, é que ela é
como uma pessoa que foi lenda mesmo, mas que tá sendo
verdade porque se você tá nesse timbó, se você verteu água
dentro dela, aí ela zanga. Zanga, pode estar branco, branco
de timbó, mas não morre mais nada. Ela zanga, porque ela
não gosta de estar vendo esse negócio assim.
DF: Quem?
Projeto: Panton pia’ 137

AM: Fazer xixi dentro da água assim, depois que você


bate ela, que vai descendo, na hora que o xixi desce, acabou.
DF: Ah, Eh? [risos]
AM: Já zangou. Isso já é história, é uma pessoa esse timbó.
Aí na hora que bate eu digo: “Não rapaz, então tu não quer
comer peixe?” Aí ela esfria timbó tudinho. Pode estar branco
que seja, não morre mais não. Acaba.
DF: Entendi.
AM: Ficam por dentro assim. Vão saindo da água, limpan-
do, varando por baixo.
LS: Aí não morre mais.
AM: Aí não morre mais. Zanga, ela zanga. Por isso, quando
vão essas pessoas bater timbó, eles não levam criança assim,
como essa daí assim [aponta pra uma criança pequena].
Só vão os velhos, que já sabem. “Cuidado! Vocês vão bater
timbó, cuidado pro timbó não zangar. Não vão fumar, nem
fazer nada assim. Nós não vamos mostrar cobra, caranguejo,
assim, com os dedos. Deixa ele assim, vai ficar só olhando.”
Só vão os velhos que vão bater timbó. Essa história do tim-
bó. Criança assim não tem esse negócio não. Pega aí, corta
o negócio assim com faca, aí o bichinho zanga, ele zanga,
pronto, aí não dá mais, não tem, não vai mais comer o peixe.
Aí pronto. Esfria, não morre nada não. Morre alguns que
beberam logo na hora.
DF: E, por exemplo, do Macunaima, sabe alguma coisa? O
que o povo do senhor já contou? Já ouviu contar?
AM: Bom, sobre Macunaima, eu não tenho muito bem
a história, mas o senhor vai encontrar a história dele é na
comunidade do Ubaru, lá com o seu Terêncio.52 Eu acho que
52
Terêncio Luiz Silva foi en- o seu Terêncio tem a estoriazinha dele, do Macunaima.
trevistado na segunda fase
do Projeto Panton pia’. Suas DF: O seu Terêncio?
narrativas sairão no terceiro
volume, além de um volume AM: O seu Terêncio Luíz. Ele tem essa história do Macu-
especial com 79 cantos, a
ser lançado pelo Museu do naima. Ele vai contar essa história, que ele tem essa história
Índio do RJ, cantados por porque eu nunca escutei, quer dizer, já escutei assim, mas
ele e sua esposa Zenita Lima.
138 Projeto: Panton pia’
não tenho lembrança. Mas seu Terêncio tem essa lembrança
de Macunaima.
DF: Como se fala Macunaima em macuxi?
AM: Makunaimî. […]
DF: Me fale, então, do Canaimé. [...]
AM: Kanaimî, ele diz que é um índio que sai daí de dentro
das matas, dos lugares, fora, só pra fazer o mal das pessoas.
Eles não pegam assim pessoas novas, só pegam gente velha,
idosos que... Aqui na cidade, têm duas histórias que o Canai-
mé é aquele que mata o índio. Já o Canaimé da cidade é o
bandido. Agride, caceta peão. “Não, o cara morreu. Bandido
que matou!” Pessoas drogadas que andam por aí, doido. Vê
a gente, bota na gente, caceta, mata e deixa por aí na rua
né? Esse é o Canaimé do branco; é o bandido. Já do índio é o
Canaimé que fica por aí escondido, aí, por aí; olhando aquelas
velhinhas por ali trabalhando; aí vai com jeito pra agarrar ela e
aí machuca ela. Machuca pelo coração, pela barriga, pula em
cima, mata. Faz o que ele quiser. Aí lá que a velhinha, coitada,
já não aguenta mais nem levar a mandioca, já vai dando febre.
Quando chega lá, a bichinha morre. Aí quando vão ver, tem
até vara enfiada aqui na tripa da pobrezinha, folha, esses
negócios. Tudo eles maltratam a gente. Inclusive a história
desse finado meu filho que morreu, esse que morreu aqui,
desse alunozinho, de vinte e três anos. Ele, foi o Canaimé
que matou. Lá na minha comunidade, pegaram ele lá. Dizem,
ele viu que era um homem barbado (isso quando tava bem,
né?): “Pai, um homem barbado me segurou, aí tampou minha
boca.” Aí vinha uns colegas dele e: “Ei, ei.” Gritando pra ele,
ele tava com boca tampada. Aí o cara se afastou, ele tava pra
se engasgar. E ele tinha forçazinha no braço, tinha vinte e
dois anos ele. Teve força lá, aí escapuliu e gritou: “Ei!” Quan-
do os caras chegaram lá, dizem que ele já tinha se escondido
no mato. Aí, daí pra cá, ele já adoeceu, adoeceu, adoeceu;
febre, febre, febre: “O que é isso, meu filho?” Compramos
medicamento. O professor, não, o diretor, não, o coisa da
saúde, agente da saúde tratou dele. Melhorou, né? Com isso,
nós viemos pra cá. Aqui ele disse que tinha, já tinha visto ele
Projeto: Panton pia’ 139

mesmo aqui. Ele veio aqui e: “Ah, tu tá aqui, né? Nós vamos te
matar.” Quando ele ficava aí com as crianças meio-dia, aí ele
ficava aí, e diz que esse homem veio. Esse mesmo, barbudo,
veio aí. “Ah, tu tá aqui, né? Mas tu não vai escapar não, cara.
Tu não vai escapar não...” “Ei, pô, eu vou dizer pro papai o
que tu disse.” Ele contou, mas, eu andei atrás desse cara
um bocado de dias por aqui, doido pra conversar. Eu digo:
“Vou pegar esse cara hoje.” Mas nunca encontrei com ele.
Quando encontrava era correndo. Ia embora pra Boa Vista.
Aí eu andei muito tempo caçando ele. Mas isso é história do
Canaimé, né? Matou pessoas, enforcou, bagunçou, matou.
Então, é a história...
DF: E ele faz isso por nada?
AM: Por nada. Por inveja, às vezes. Que às vezes você é
trabalhador; às vezes você é tuxaua bom, acolhedor. Aí ele
vai e: “Não, esse tuxaua aqui nós vamos matar logo ele, pra
ele não levar segredo muito pra frente. Esse daqui já dá pra
eliminar ele.” Então, vai, às vezes tá por aí, às vezes forma
um grupo de cinco peões, Canaimé deles. Aí chega lá, ataca
a gente sem a gente ver, derruba, mata, ou então machuca
o cara lá, só chega gritando na casa. Nem doutor dá jeito,
porque já tá todo arrebentado. Colocam vara no bumbum da
pessoa, lá pra dentro tudo. Cortam a língua, tudo bagunçado.
É assim a história do Canaimé.
DF: O senhor já ouviu falar como a pessoa faz pra virar
um Canaimé? Por que ela vira?
AM: Não, professor, é o seguinte: esse Canaimé é uma
qualquer pessoa que vem de fora, lá de outros cantos. Aí, eles
ficam com inveja. Às vezes, outra pessoa manda: “Rapaz, tu
garante matar?” “Garanto!” “Então vai lá, faz o Canaimé pro
cara lá.” Ele vai, ele corta uns couros de mambira, de taman-
duá, se tiver; fura um buraco, faz aquela máscara, ele faz a
máscara pra poder ver e a pessoa se assustar. Eles colocam
aquelas vestes, aquelas roupas de tamanduá. Tira o couro e
se veste, e o cara vê aquele negócio feio, viche Maria, já cai
desmaiado. É onde eles pegam e matam a pessoa. É qualquer
pessoa que venha de fora. Parentes mesmo, parentes que
140 Projeto: Panton pia’
moram assim distante, eles fazem isso com povos indígenas.
Qualquer um né? Então, isso aí que é chamado Canaimé. É o
Canaimé do índio. E do branco é bandido.
DF: Bandido.
AM: Eh.
DF: O senhor sabe de alguma outra história parecida com
essa, da comunidade, que o senhor ouviu alguma vez alguém
contando? O senhor sabe de alguma?
AM: Professor, sei não, professor.
DF: Sabe não?
AM: Sei não. Se eu sei, mas tem que lembrar.
DF: Aquela história da mulher que foi pega pelo macaco.
Já ouviu falar ou não?
AM: Não, senhor.
DF: Não?
AM: Não, senhor.
DF: Que ela morou com o macaco, não?
AM: A história que eu sei é de um homem, justamente
esse Canaimé. Ele tinha matado uma pessoa, aí ele dormiu
numa maloca longe, em cima da serra. Aí, em cima, anda-
va uns caçadores, caçadores de veado. “Bora caçar por
aí? Bora pegar...” Aí, pegaram suas flechas por aí. Aí lá de
baixo encontraram o cara dormindo lá, assim escornado,
só soninho. A noite toda tinha andado por aí, nas comuni-
dades matando gente. Aí tava dormindo lá, pelado ainda.
Aí o cara diz: “Rapaz, o que nós vamos fazer? Nós vamos
amarrar o grão do cara aí com a corda. Aí tiraram a corda, o
arco novo, aquela corda que é de, de curauara, aquela que
é dura que só. Amarraram o coisa do cara lá pra trás. Ele
tava com a perna encolhida, bem encolhidinha e amarraram
aqui no mocotó dele. Bacana. Deram um nó, acocharam ele
devagar aí amarraram aqui no mocotó dele. Aí “Agora nós
vamos correr, nós vamos gritando.” Aí lá vem: “Ia! Ia! Ia!”
gritando, aquele pessoal, né? E aí o cara acordou assim, que
Projeto: Panton pia’ 141

ele foi correr assim...


DF: Que espichou a perna.[risos]
AM: Que ele foi espichar a perna assim, ah, o bicho en-
dureceu. Aí quando endureceu, aí os cabras já vinham perto.
Gritou, aí deu soco mesmo nas pernas! Curauara é corda
grossa. E se escapou. Sacou e saiu gritando, correndo aí:
“Pega, pega o cara.” Inda pega. Entrou no igapó aí e sumiu,
sangueira atrás. Se capou o homem, com curauara amarrada,
com a perna assim encolhida, que esticou, sacou tudo. [...]
Como que diz assim: “Pode ficar o coisa lá, mas eu corro.”
[risos]. Isso é história do homem, do Canaimé que encontra-
ram. Isso é história não, isso é verdade que aconteceu. Meu
pai e esses nossos tios antigos, eles contam essa história. “É
verdade meu filho, isso aí não é mentira não.” Isso é verdade.
Tá como lenda, uma historinha. Pois é, professor.
DF: Quando morre alguém na comunidade é igual a anti-
gamente ou é como o branco? Como se faz?
AM: Bom, quando a gente, quando morre na comunida-
de, a gente fica de luto mais ou menos um ano, pra poder
esquecer da pessoa. A gente fica, a família fica sempre,
entra na casa, sente falta. Olha pra um canto aí vê, não vê
ninguém. Então, aquela (como diz?), aquela tristeza pra sair
da comunidade ou da família, o que seja, custa a sair. Assim
mesmo (como se diz?) é uma comunidade. A tristeza de uma
comunidade, ela custa a sair. Passa um ano, dois anos, pra
esquecer.
DF: É enterrado na cidade mesmo ou não?
AM: Não senhor. Nós pedimos pra enterrar na nossa
comunidade. Porque lá dentro, todo mundo tá vendo: a
população, as crianças, a família. Pra ver pela última vez,
o cara abre o caixão, vê, quando vem de Boa Vista. Aí vê,
choram muito. Aí depois eles vão ver mais outra vez, aí faz
oração: pedir a Deus que leve o corpo dessa pessoa. É, então
é assim, professor, a história da tristeza quando morre uma
pessoa da comunidade.
DF: E a parte da educação da comunidade? [...] Tem que ir
142 Projeto: Panton pia’
pra cidade, tem educação lá na comunidade? Como é que é?
AM: Eh, na minha, ela tá recém, ela ainda não tem escolas.
Não tem escola não, não foram preparadas ainda. Eu estive
conversando antes de ontem com a professora Fátima.53 53
Fátima Gouveia, profes-
sora do ex-território, muito
Eu falei pra ela que queria fazer uma escola ali perto: “Não, respeitada na cidade de
tuxaua, pode fazer. Faz que nós vamos mandar professor Pacaraima.

pra lá. Pode fazer. Faz um posto de saúde que fica perto,
pra não estar correndo.” Fica perto. Tem o telefonezinho,
de lá liga pro hospital, mas de qualquer forma fica longe.
Tem que ter uma casa de saúde e uma escolinha perto, que
essas crianças quando vão começando a fazer a 5ª série ou
qualquer grau maior, nós já temos as nossas casas ali, que
é pra acomodar eles. Daí eles vão pra escola, daí eles vem
pra cá, dorme aí. Nós estamos na mata com outras crianças
menores que estão crescendo. [...]
DF: Hoje, qual é a principal dificuldade encontrada pela
comunidade?
AM: A principal, como é que se diz?
DF: Dificuldade. A coisa mais difícil.
AM: Bom, a dificuldade que nós estamos tendo é porque
ninguém tem uma estradinha lá dentro. Só umas vicinais, mas
uma estrada no momento não, é no trilho. Essa é a nossa
dificuldade, mas de resto não tem dificuldade nenhuma. Só
a estrada mesmo que nós estamos precisando e nós vamos
trabalhar com isso.
DF: E o senhor percebe algum tipo de preconceito em
relação aos indígenas ou não? Já tá tudo igual ou as pessoas
ainda têm algum tipo de receio?
AM: Bom, os preconceitos que a gente vê, que hoje tá na,
estamos quase, quase não, estamos iguais. O povo brasileiro,
ele não, acho que nós como indígenas eu não, não estou
sentindo que nós estamos tendo preconceito ainda nesse
momento. Até porque nós estamos, quer dizer, nós usamos
só uma parte de brasilidade. Todos nós somos brasileiros, não
tem preconceito de, vamos dizer assim, de (de como se diz?
Projeto: Panton pia’ 143

[...]), de dizer que o senhor não tem direito, né? Vamos dizer
assim. Todos nós temos direito. Assim como o senhor tem
direito, o indígena também tem sua parte de direito também.
Só, vamos dizer assim, nós usamos a igualdade igual. Cada
um de nós, indígenas, temos direito como os outros têm
também, o próprio branco. Preconceito não tem assim de
dizer que a gente é...
DF: Diferente.
AM: Diferente. Desclassificar ninguém: “Ah, porque fu-
lano é preto, fulano é branco.” Não. Preconceito então, pra
mim, eu acho dentro de mim que somos, todo mundo somos
iguais. [...] O que pode existir, porque um pensa dum jeito,
como o branco, e nós também pensamos diferente deles
também. Mas quase o mesmo caminho que o outro vem pen-
sando, a gente vem pensando junto, porque até, porque nós
estamos tendo, e vendo, nós estamos dentro da sociedade,
civilização. Hoje não tem mais quase índio que anda naqueles
tempos como andava tempos passados. Hoje nós estamos
cada vez mais se desenvolvendo, vendo a parceria dos outros
brancos. E pra mim, ninguém tem preconceito de...
DF: Outra coisa, como é que o senhor vê a questão: se,
por um lado, o índio é dono da terra; por outro ele não é.
Porque a terra pertence, na realidade, à União.
AM: À União.
DF: O índio só é um beneficiário.
AM: Sim.
DF: Como é que o senhor vê isso, esse negócio de, de
repente a gente luta por uma coisa, pra estar na terra, mas
ao mesmo tempo você não pode usufruir a terra direito,
porque ela é da União?
AM: Isso.
DF: Como é que o senhor vê essa questão?
AM: Bom, essa questão a gente tá vendo, que... Eu estive
conversando, eu lancei uma pergunta pro delegado da Polícia
144 Projeto: Panton pia’
Federal, eu disse assim: “Delegado, o senhor, uma pergunta
pro senhor, que dizem que a terra é da União. Mas essa União
é do povo brasileiro ou do povo estrangeiro? Porque, do
que eu estou entendendo um pouquinho que tá dizendo, a
terra é da União. Então, a terra é do povo brasileiro. É isso
delegado?” Eu falei pra ele. “É rapaz, é da União, de todos,
né?”, e não quis me explicar direito, mas disse que a terra é
da União. Tornei perguntar dele de novo o que era União,
que ninguém tava sabendo o que é essa União. A União que
nós sabemos dentro da comunidade é que estamos unidos,
todo mundo trabalhando de união, só em um objetivo só. É
o que eu entendo de união. Aí ele diz União é, não sei como,
não sei nem como dizer, professor, pro senhor que até agora
eu estou confuso.
DF: Não tá entendendo né?
AM: Não estou entendendo que é essa União. Eu acho
que...
DF: União é do governo, é do Brasil?
AM: Do Brasil sim, do Governo Federal.
DF: Eh, mas é assim, uma terra que pertence a todos os
brasileiros.
AM: Todos brasileiros. Tá certo. Eh.
DF: A palavra significa isso, entendeu?
AM: Tá certo. Agora eu entendi como é que é.
DF: Não pertence só ao Devair, pertence a todos.
AM: Todo mundo, né?
DF: Isso. E é gerenciado pelo governo. É o governo que
gerencia. Como se fosse um parque, né?
AM: Isso.
DF: O que é muito complicado pro indígena.
AM: Não, pra mim, quer dizer, não é complicado. Isso
que eles estão fazendo, não acho que é complicado, porque
tem que ser assim, né? A gente tem que trabalhar conforme
Projeto: Panton pia’ 145

eles estão pensando.

DF: A legislação.

AM: A legislação. Aí pra mim não acho que é difícil. Quanto


mais a gente tem uns assessores que administram. Agora,
o que eu posso dizer, professor, é que ninguém pode dar
essa nossa terra de mão beijada pro povo de fora, de jeito
nenhum. [...] Aí que nós temos que botar o pé na parede. Qual
essa União que eles estão pensando? Qual essa União? Será
que é só pro povo estrangeiro, pros americanos né? Ameri-
canos estão aí ao nosso lado. Eles estão nos ameaçando. Eles
estão aí de prontidão mesmo só pra acabar o Brasil, mas a
gente tá vendo que, eu não acredito que no meio de tanto
povo, autoridades, a gente vai dar uma coisa de mão beijada
pra esse povo. Aí fica ruim. Aí, quer dizer que não existem
autoridades então, dentro do Brasil. Se onde existir autorida-
de, cadê que a Venezuela tá aceitando essas propostas desse
povo de fora? Não estão. Aí é venezuelano, só eles mesmos ali
dentro. Tá aí presidente Hugo Chaves, que ele é historiador,
disse. A gente vê comentário dele na rádio, em todo canto
a gente vê a história dele. Ali quem manda é venezuelano,
o povo venezuelano ali. Então, quer dizer que assim podia
ser também o nosso Brasil, mas aí a gente vê que, dentro do
nosso Brasil, tem muitas pessoas da ONG que moram por aí.
Os padres que trazem suas notícias más pra comunidade. A
gente vê que a gente tá aceitando ainda, né, estamos acei-
tando as propostas deles, eu não sei. O Brasil também tem
condições de se manter sem depender de outros países. [...]
Eh, só com o trabalho do Brasil. A riqueza tem muito. Tem
muita madeira, tem muita mineração que tá parada dentro
das áreas. Então, aí o Brasil também tem como se mexer. Ele
próprio não precisa estar precisando do povo de fora não, de
jeito nenhum. A gente vê esses lados, professor?
DF: E quando eles defendem essa questão da terra, ge-
ralmente eles fazem o seguinte, porque o indígena não tem
um local fixo...
AM: Eh, exatamente.
146 Projeto: Panton pia’
DF: Ele pode estar no Brasil hoje, amanhã ele pode esco-
lher ir pra Venezuela, né?
AM: Ham ham.
DF: Ele não tem uma nacionalidade muito fixa nesse sen-
tido. Como é que o senhor vê isso? O senhor se considera
um brasileiro mesmo ou o senhor se considera um indígena
(porque indígena não é brasileiro, porque ele pode estar lá)?
O senhor já ouviu sobre isso, não ouviu?
AM: Já, sim senhor. Já ouvi falar isso.
DF: E o que o senhor pensa a respeito disso?
AM: Bom, a respeito disso a gente, quer dizer, não são
todos que têm esses pensamentos de dizer: “Não, eu vou...”
É como se diz assim, não tem aquele (como é que se diz?)
Doutor sem fronteira. Não tem um médico sem fronteira que
diz né, que hoje ele tá aqui na guerra do Brasil, amanhã ele tá
na guerra da Venezuela, da Guiana. É (como é que chama?),
sei que é um médico sem fronteira, parece que diz que ele
não tem fronteira.
LS: Da Cruz Vermelha.[...]
AM: Isso. Ele não tem lugar certo. Tá por aqui, tá ali, tá em
todo canto, né? Então, eu acho que deve ser assim também.
O índio, ele não tem lugar certo, porque, às vezes, quando ele
tá com uma moradia, às vezes, há vinte anos, há trinta anos,
ele sente que ele tá, às vezes, só. Falta uma estrada, falta um
negócio assim e ele vai procurar uma melhoria onde tem mais
acesso de alguma coisa. Principalmente de saúde, acesso de
estrada pra escoar alguma produçãozinha dele, que hoje
estamos pensando em agricultura, de viver melhor. Então,
essa melhoria sai que o povo tá se espalhando, procurando
uma melhoria melhor aí pra cidade. Pertinho da cidade, na
qual a gente tá por aqui também. E aqui a gente tem de fazer
o máximo possível de a gente estar numa melhoria melhor.
DF: Entendi.
AM: Sim senhor. É assim a situação.
Projeto: Panton pia’ 147

DF: Só mais uma questão: vocês continuam caçando e


pescando normal?
AM: Eh, essa é nossa tradição. Tradição de caçar, pescar.
Isso aí nunca ninguém deixa também, porque isso aí onde a
gente vai procurar um mantimento; caçar um jabutizinho por
aí, a gente consegue, traz pra casa. Pega um peixe, pega um
catituzinho, uma anta, um veado, um negócio assim e a gente
vai, mas eu, eu penso assim: já eu quero estar vendo, como
diz, uma, a natureza mais próxima. Parece que quando eu
era mais novo, eu não pensava assim não. Eu já matei muita
caça. Mas agora já estou pensando de preservar. Olhar e di-
zer assim, que eu quero ver algum bicho mais perto. Porque
com a continuação, eu tenho dito pro meu genro lá dentro:
“Olha, essa área aqui de preservação de mata, ninguém vai
tirar uma madeira aqui dentro.” Sabe por quê? A gente vai
ficando velho, a gente vai precisar de tirar madeira aqui,
tem que viajar um quilômetro, dois quilômetros. Então,
pra isso nós temos madeira bem perto da casa e é bom
pra gente fazer isso. Que aí: os outros dizem assim: “Não,
índio não sabe preservar. Índio vai derrubar”, mas a gente
também sabe, como estamos dizendo, não são todos que
têm essa ideia. Tem outros também, tem ideia boa. Eu não
penso isso de acabar a minha natureza que eu tenho dentro,
minha preservação ali dentro, que eu quero ver um tucano,
macaco pulando pra cima, pra baixo, ali onde nós estamos.
Aí eu vou até fazer esses dias uma varrida, um barracozinho
de palhinha mesmo, aí colocar uns pés de banana, um jirau
assim, meio, mais ou menos uns cinquenta metros assim, ao
redor, que é pra eu colocar mais tarde um pesquisador ou
turista. “Vai lá olhar!” Eles se sentam naquele barraco, ele vai
lá ver passarinho comendo, aqueles pássaros que ele nunca
viu. Aí já viu, ele vai e acha bonito ali dentro. Eu quero fazer
assim, tipo assim um centro assim de pesquisa, de criação
de pássaro. Assim, pra ficar assim.
DF: Que eles venham...
AM: E é bonito.
DF: Claro que é bonito.
148 Projeto: Panton pia’
AM: É bonito, todo mundo elogia, ver a natureza tudo
próximo da gente. Às vezes tem gente que desmata. Às
vezes queima. Faz aquele... os bichinhos vão se acabando.
É como próprio a gente mesmo. A gente vai se acabando,
nossos avôs vão morrendo, às vezes por causa de não ter um
acesso de estrada; não ter um hospital; não ter uma saúde
melhor. Vão acabando nossos velhinhos. Então, mesmo
assim é a natureza, a criação de pássaro, de outros bichos.
A gente quer ver um pássaro bem assim perto, sem ter que
andar longe, às vezes nem longe ninguém vai ter mais, que
eles vão pegando doença e vão morrendo. E vai acabando a
natureza. Então, a preservação nunca ninguém vai conseguir
ter ela perto, porque nós mesmos vamos acabando. Então,
eu acho que dentro de mim, eu tenho ainda esse sonho de
preservar ainda uma área, que é pra mim ver os pássaros
perto. É tão bonito ver um sabiá, um achizinho, um pássa-
ro cantar perto. As curiquinhas, comendo por cima né? É
bonito isso. Isso aí, a gente tem esse sonho de preservar
também. Aí a gente tá conversando com nossa, com nosso
povo, com dois homens que estão aí, meus genros, então
estamos conversando com eles: “Cuidado pra não ofender
o bichinho, ele sofre, adoece. Os bichinhos morrem, assim
como a gente também.” Eles querem ter vida. Querem ter
mais um tempo de vida, porque quem tira a vida é só Deus
mesmo, de cada um bichinho. Às vezes nós mesmos acaba-
mos com a natureza, com os bichinhos da mata. E lá perto
da nossa mata ainda tem muito pássaro assim perto. A gente
vê aqueles iapuruzinho cantando, aqueles pássaros tudo
próximo. Aí, até meus netos ficam brincando: “Ah! macaco,
vem comer banana!” mostra a banana assim pra ele, mas
ele não desce, é bicho selvagem, é brabo, ele não vem aqui.
Agora, se fosse no mato, ele descia, pegava a banana da mão
e levava. Mas são brabos. Mas eles passam bem assim, a
gente tá vendo eles passando assim, malinando. Eles gostam
de brincadeira também, o macaco, mas só que o bichinho é
brabo. Eles não são acostumados. Então, é isso professor.
A gente tem ainda esse sonho de preservação ainda dentro
da nossa comunidade.
Projeto: Panton pia’ 149

DF: Quando o senhor vai caçar, em algumas comunidades


eles pintam o rosto pra se proteger. Tem alguma coisa assim?
AM: Não, senhor.
DF: Tem não.
AM: Isso aí acho que não. Eu pelo menos já cacei muito,
mas nunca pintei rosto não. Mas já usei a, o remédio que é
pra atrair eles, o remédio pra atrair.
DF: Tem remédio pra atrair?
AM: Tem sim senhor. Tem remédio pra atrair catitu; tem
remédio pra atrair o pássaro, o jacu. Esse remédio ele vem
bem assim perto de você, ele chega pulando parece que é o
remédio que atrai ele, né?
DF: Ah, entendi.
AM: Eh, você tem que matar ele, atirar nele sem errar. Se
errou, se ela foi embora, nunca mais se vê. Na hora que você
chama ele, em vez de vir ele faz é voar muito longe. Some,
desaparece. É um tipo de um remédio que a gente usa pra,
chama-se puçanga.
DF: Ah, puçanga!
AM: Eh, puçanga de passarinho, da anta, da cutia, do ve-
ado; é puçanga da paca, do catitu, do nambu, do jacu. Tudo
eles têm puçanga.
DF: O senhor faz isso até hoje?
AM: Eh, não, nós temos só assim uma. Não sei se o senhor
conhece aquela mangarataiazinha que arde. O senhor já viu
aquela ervazinha que passa assim?
DF: Acho que não.
AM: Nós temos aí no quintal. Sempre a gente anda por aí.
A gente coloca nos olhos pra ninguém ficar cego. Ela limpa
algumas coisas que têm na vista da gente, só que dói. A gente
coloca na vista. É bom pra gripe também, pra manter no nariz
assim, ela tira um pouco da, do micróbio do nariz que dá na
gripe, que fica. Então, aí tem esse remédio, a medicina, que
150 Projeto: Panton pia’
a gente usa pra visão, pros olhos. Já era pra eu estar cego, a
idade que a gente já tá, 56 anos que a gente vai fazer dia 13 de
janeiro. Mas até agora eu não senti aquela escuridão, ainda
não chegou na minha vista ainda. [...] É porque a gente usa,
né, de vez em quando tá usando esse remédio, a medicina.
Vem gente de longe comprar medicina aí, desse de jogar no
olho. Já veio gente da Venezuela atrás e já vendi um pouco
pra eles. “Rapaz, isso aqui é bom! Se você não usar vai ficar
cego ligeiro.”
LS: Mas arde?
AM: Arde sim senhora. Ela arde.
LS: Igual à pimenta?
AM: Igual pimenta, mas é mais ou menos...
LS: É menos que pimenta?
AM: É mais do que pimenta, mas ela queima assim na
hora. Depois ela vai esfriando. Aí você abre os olhos, chega,
você vê aquela clareira assim na vista da gente. Parece que
o que cerca é algum remelinho que fica aqui na (como é que
é?), eu chamo de remela que fica aqui na vista e ela fica em-
baraçando. A gente vê muita coisa na frente né? Mas depois
que coloca dentro, ela afasta tudinho pro lado. Aí você tira
com paninho e pronto, já sai curado. Fazer que nem o outro,
já sai vendo coisa boa!
DF: Em algumas comunidades, ainda eles fazem iniciação
dos meninos e das meninas. Por exemplo, quando tá virando
rapazinho, tem uns que pegam o dente da piranha e unham
o corpo todo. Aí passa depois um negócio pra ele ir ficando
forte e se tornar rapaz assim.
AM: Bom professor, esse lado aí eu nunca usei e também
nunca vi isso assim na vida.
DF: Nunca viu.
AM: Mas tem um medicamento que é de tradição mesmo,
pra gente ficar corredor, ligeiro, forçudo ou esperto no tra-
balho. É um remédio quase como esse. É um remediozinho
que a gente passa na perna, corta com alguma giletezinha, e
Projeto: Panton pia’ 151

passa na perna, e o cara não fica preguiçoso. Ele não senta. Se


senta, daqui a pouco ele levanta, vai puxar por ali, vai tomar
um banho; senta de novo, daqui um tempo ele vai pra ali.
Fica tipo uma cutia, uma cutiazinha, ela não come comida
certa. Pá, pá, pá, mexe aqui, ela pula pra um canto. [...]. Por
isso, professor, esses velhos mais, mais antigos, eles têm
esses medicamentos na perna, você vê que ele não para. Só
para quando morre. Só quando morre, aí pronto, aí parou,
parou mesmo. Aí eu conheço uma, a mãe do seu Terêncio,
é uma velhinha, ela usava isso daí. Ela fica, você tá parado
e ela fica pisando tam, tam, tam. Doido pra você andar um
pouco que é pra poder acompanhar. Fica ali pisando. Tam,
tam, tam, tam, tam. Aí, eu malino dela: “Tia, a senhora não
vai parar não?” [risos] Fica ali pisando, machucando. Então,
esse pessoal dos antigos, eles usavam muito isso, porque
quem usa isso aí é esperto. Tá ali lavando prato, tá por ali
lavando panela e se for homem tá por ali quebrando uma
lenha. Pula ali vai tomar um banho; vai capinar uma coisa;
vai plantar uma coisa; plantar banana. Fica ali, puxa, não tem
nada. Pega o caniço e vai pra longe, longe, pescaria é longe,
mas vai lá. Com uma hora, meia hora ele tá de volta de novo.
Tam, tam, tam. “Compadre, faz um negócio aí!” É assim, só
se for pra dormir. Às vezes nem pra dormir não dorme. Aí ele
pensa assim: “Vou dar uma pescada de noite!” Aí ele pega a
lanterna e vai por aí. Chega lá pela madrugada e é assim. É
um medicamento que ele faz, é a pessoa caminhar mesmo:
andar, andar, andar e não para não. Rapaz, não pode não.
Ele fica, o cara fica esperto.
DF: Entendi.
AM: Fazer que nem a história da cutia. O cara caçando diz
que viu a cutia roendo uma fruta, um carocinho não sei de quê
lá. Longe, diz que ele escutava fazendo tchiii, fazendo aquela
zoada. “Que diacho é isso?” e foi chegando perto. Destar
que a cutia comia aquele carocinho duro que esquentava o
dente. Aí bem logo assim do lado tinha uma pocinha d’água
na laje. Aí encostava a cara e enfiava o rostinho dela dentro
d’água e o dente esfriava, tchiiii. Que esquentava, era isso
152 Projeto: Panton pia’
aí que chiava, e o caçador: “Ih, rapaz, era o dente do bicho
que esquentava.” [risos] Ele comia, comia, comia; chegava
a estalar mesmo. Quando esquentava, ele tacava a cabeça
dentro d’água e subia aquele vapor. Quando coloca o ferro
quente assim dentro d’água.
DF: Sei.
AM: Assim mesmo que era cutia. Ele diz: “Rapaz, era
cutia.” Aí era assim, a zoada do caçador. [risos]
DF: Essas histórias de cutia, de coisa assim que a gente
queria ouvir. Se o senhor tivesse alguma.[...] E do macaco,
não tem nenhuma não?
AM: Do Macaco, Macaco ele fez um, encontrou. A Onça
era doida pra comer o Macaco, até que encontrou o Macaco
lá de jeito. Aí disse: “Ah, compadre, hoje eu lhe como.” Aí
o Macaco: “Não compadre. Não me faça isso não. Não me
come não!” “Não, hoje eu lhe como.” “Por que compadre?”
“Não, porque eu estou com fome e vou lhe comer.” “Ah, não
compadre. Hoje vai ter um temporal tão grande e só tem esse
pau aqui, compadre, e eu tô cortando um cipó aqui pra mim
me amarrar, porque esse pau aqui vai ficar e vai aguentar
todo peso do vento.” “Ah não compadre. Tu tem que me
amarrar, porque, senão, tu já sabe se amarrar e eu não sei.”
“Então tá bom, tu me ajuda a cortar cipó.” Aí o cabra subiu
em cima; arrebentava cipó; cortava com o dente; jogou pra
baixo e amarrou ele desde o pé. Aí o Macaco: “Fica em pé,
compadre, com os braços pra cima.” Aí o cara no pau assim
e amarrou no meio até chegar nas mãos aqui. Deixe estar
que ficou em pé, aprumadinho. Aí ele disse: “Ah compadre,
tu sabe o que que é?” A Onça: “Não compadre.” “Eu vou
cortar uma vara e vou te dar uma pisa agora.” [risos] Se
mexer, ele não podia se mexer, em pé, todo amarrado: “Mas,
compadre, não faça isso!” “Pois é, vai apanhar compadre.
Tu tá doido pra me comer, agora vou te dar uma pisa.” Aí
cortou uma vara e empurrou o sarrafo na onça: pei, pei,
pei. Cansado, largou ele, deixou ele amarrado, aí os outros
passaram lá: “Que que é, compadre?” “Rapaz, o danado do
Projeto: Panton pia’ 153

Macaco passou por aqui e disse que vinha um temporal.”


“É nada, ele queria é te surrar mesmo!” “Mas um dia eu
como ele, eu como ele.” [risos] Tá lá tomando conta de um
igarapezinho, de um olho d’água, só tinha aquela água. Aí,
o que que o macaco pensou: “Rapaz, sabe de uma coisa: eu
vou me melar, na coisa, (como é que é?) na abelha, no mel
de abelha bem meladinho!” Aí se melou; rebolou por cima do
mel e pelos braços, pelas pernas. Aí chegou naquelas folhas
secas; começou a se enrolar: tá, tá, tá, tá! por aqui [passa a
mão pelo corpo]; tipo, só folha mesmo o bicho. Aí Onça tá
lá tomando conta da água: “Quem é?” Aí já vinha: “É fulano
de tal.” “Bebe água; toma banho e vai embora.” “Quem é?”
“É fulano!” Ele só lá espiando, compadre Macaco vem beber
água. Aí lá vem aquele senhor lá todo cheio de folha, que era
ele né: Tá, tá, tá, tá! “E aí, compadre!” “Oh, quem é você?”
“Compadre, Folharal.” “Bebe água compadre, Folharal, toma
um banho.” Aí [risos], era só o que ele queria. Bebeu água à
vontade mesmo. Aí tomou um banho. Aqui tem umas árvores
tudo pertinho. Tomou um banho. Aí ele nem olhou pra ele,
dizendo que ele era Folharal. Tomou banho; as folhas ficaram
tudo em cima d’água; aí se enxugou um pouquinho. Ele tava
de costas quando ele olhou: “É o compadre Macaco!” “Sou
eu mesmo compadre, já bebi água e tchau!” E aí, oh! “Esse
compadre de todo jeito me engana, né?” [risos] Essa é a
história dele, do compadre Macaco.
DF: Tem alguma história que o seu pai contava pro se-
nhor, dessas assim? Sua mãe? Tem mais alguma que o senhor
lembra?
AM: É não, é a história do, mas essa aí é real. A Capivara,
ele tinha um caçador. Sempre nas reuniões, têm os anima-
dores da reunião, que é pra acordar as pessoas que estão
dormindo. “Tuxaua, quem vai ser os animadores da reunião?”
Eu digo: “Vai ser um desses quatro, vão ser animadores.”
“Tá bom!” Aí um senhor disse: “Olha, eu vou, eu vou contar
só uma historinha, isso é real. O meu avô, o meu sogro. An-
tigamente tinha muita piranha nessa região daí do Surumu,
no Igarapé do Pacu. Aí, bom, aqui tinha muita piranha, aí o
que que ele fez: ia atravessando com a água na barriga do
154 Projeto: Panton pia’
cavalo por aqui né, e o cavalo se agoniou, atravessando o
igarapé: pou, pou, pou, pou. Destar que eram as piranhas que
estavam se pendurando aqui no bucho do cavalo.” O bucho
do cavalo, o couro dele é duro né? Aí, quando saía sangue
é que a piranha encostava mesmo. Aí, de repente brecou o
cavalo com a espora. O cavalo saiu fora e aí foram caindo
as piranhas atrás: pou, pou, pou, pou.” Ele já tinha dado o
fora. Aí ele olhou as piranhas tudo descendo da barriga do
cavalo. Aí correu pra lá e matou umas seis piranhas. Isso não
é mentira meu filho. Eu estou aqui de vivo. Isso é o velhinho
já contando. “Eu estou aqui. Isso não é mentira que o meu
genro tá contando pra vocês sorrir não. Isso aqui é verdade.
Tinha muita piranha, meu filho. Olha, isso aqui aconteceu
mesmo. Tá aqui. Eu tô de história, né? Eu matei seis piranhas
que tavam mordendo o bucho do meu cavalo, caíram do
bucho do meu cavalo.” Que tava agarrado aqui, no bucho
do cavalo. Essa é a história aí, mas é, é porque esses velhos
eles têm muita história
DF: Justamente. Por isso que eu estou falando.
AM: Eu vou só aqui encerrar um pouquinho com a his-
tória dum, dum tuxaua lá do Perdiz, não, ali da maloca do
Limão. Ele foi, nesse tempo, a denúncia, que os indígenas
denunciavam dos brancos, era lá no São Marcos. Lá pra
baixo. Eles saíam do Contão e iam lá pro São Marcos. Aí ele
foi, arrumou o anzolzinho dele pra ir pescar por aí, mas ele
esqueceu; deixou em cima da mesa. Aí foi embora. Quando
chegou no meio da viagem, meio-dia de viagem, ele chegou
na beira duma lagoa. Lá tinha é, é, tinha uma (como é?), tinha
um tucunaré chocando. É assim, peixe chocando. Aí quando
o cara chegou lá, o cavalo vai com uma sede, encostou a
boca pra beber água e tava bebendo. E o cavalo ele tem,
ele corta o capim com o dente e a vaca com a língua. Vai
cortando, que a língua dela é a foice. Vai puxando com a
boca. Aí ele ficou olhando aí, o cavalo tem aquela coisa em
cima dele amolado, e o tucunaré não tem dente: é só aquela
serrinha também, beirando, amolada. Aí quando o cavalo foi
beber água, tucunaré chocando, pam, pegou aqui no beiço
do cavalo, que jogou lá no seco o tucunaré, vapu!, longe. Aí
Projeto: Panton pia’ 155

pulou do cavalo, aí correu e matou. Aí o cavalo tornou a bai-


xar a cabeça. Que eram dois, quando tá chocando são dois.
Tucunarezinho chocando. Aí tucunaré tá agarrando, o bicho
jogou de novo lá do outro lado. “Oh, que bênção de Deus, é
muito bom acontecer isso.” Aí foi procurar os ovos dele e não
achou. “Olha aí como Deus é tão bom comigo.” Ele quebrou
uns garranchos de pau, assou e tal. Isso aí ficou como uma
história real mesmo, que aconteceu. Que ele conta, né? O
velhinho já morreu, mas os sobrinhos, os tios desse rapaz
que contam a história. Eles contam lá no Limão, na maloca do
Limão. Isso é real, aconteceu mesmo, a história do tucunaré.
Projeto: Panton pia’
Entrevistado: Valdélio Perez Ribeiro (VR)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Assistente de Entrevista: Lucimar Sales
Local: Comunidade Santa Rosa, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 8/10/2008
Transcritora: Keyty Almeida de Oliveira
Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti.
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 56’’06’’’
Projeto: Panton pia’ 159

DF: Qual é o nome do senhor?


VR: Valdélio Perez Ribeiro.
DF: Qual a idade?
VR: 32 anos.
DF: A etnia do senhor é qual?
VR: Macuxi.
DF: O senhor tem uma função definida na comunidade,
o senhor é tuxaua?
DF: Tuxaua da comunidade de Santa Rosa.
DF: O senhor tem mais alguma função? Essa já é muita,
não?
VR: Eh, por enquanto eu sou só de uma Associação [...]
DF: O senhor chegou a estudar?
VR: Eu passei vários tempos parado. Quando concluí a
quarta série, passei quase quinze anos parado.
DF: O senhor estudou na comunidade mesmo, tinha
escola lá?
VR: Tem. Aí então, por falta de professor, não conclui o
terceiro ano. Ainda estou com três matérias de dívida pra
concluir[...]
DF: A primeira língua que o senhor aprendeu foi o macuxi
ou a língua portuguesa?
VR: Eh, apesar de que meus pais, eles não são falantes.
DF: Não são falantes nativos não.
VR: Então, eu nasci só com o português.
DF: O senhor sabe macuxi?
VR: Algumas coisas que eu sei falar. Não entendo, mas
falo algumas coisas, sim.
DF: Tá certo. Agora eu vou fazer algumas perguntas em re-
lação ao senhor mesmo. Por exemplo: O senhor é agricultor,
trabalha com agricultura ou não trabalha, na comunidade?
160 Projeto: Panton pia’
VR: Eh, a gente, as comunidades indígenas trabalham
mais com a agricultura, todas as comunidades indígenas.
Então, lá pra nós, apesar de que a gente é de comunidade
pequena, mas só que hoje estamos com um projeto de
pecuária. Então, a gente não tem muito se envolvido com a
agricultura, mas tem a agricultura familiar, de cada um, de
cada casa, de cada família. Então, a gente também tá tocando
um projetinho bem pequeno que é da parte da associação 54
Associacao Dos Povos In-
digenas da Terra de São Mar-
APITSM.49 Que nós conseguimos pela APITSM, fazer um cos. Sua sede é o Malocão
projetinho de agricultura lá, então, cinco hectares pra gente Macunaimî, localizado na
BR-174, sentido Pacaraima.
estar iniciando um projeto de agricultura, né? E quem sabe
daqui, a gente já tá dando continuidade ao projeto.
DF: Sim. Então, a base hoje lá é a pecuária?
VR: É a pecuária. E também a agricultura...
DF: Mas é mais de família, não?
VR: Isso!
DF: Individual, não é?
VR: Individual.
VR: O forte mesmo é a pecuária. [...]
DF: Qual o nome dos pais do senhor?
VR: É Liberalino e Neuza.
DF: Os dois eram macuxis?
VR: Os dois são macuxis. Só que não são falantes.
DF: Eu estou perguntando isso porque têm muitos que o
pai é macuxi, outros é taurepang, pra saber mais ou menos.
VR: Eh.
DF: Hoje na comunidade tem alguma religião predomi-
nante?
VR: É a católica. E têm alguns que são evangélicos tam-
bém, da parte, eu não sei a religião, é Batista; Batista mais ou
menos, Batista missionário, mas são poucas pessoas, quatro
pessoas mais ou menos?
Projeto: Panton pia’ 161

DF: Mas a maioria, então, é católica?


VR: É católica.
DF: O senhor também é católico?
VR: Também.
DF: O senhor é casado?
VR: Não, sou junto, não sou casado no papel. [...]
DF: Casado. Inclusive essa é uma questão interessante:
esses conflitos que os indígenas vivem: ao mesmo tempo
em que têm as comunidades que têm suas regras antigas,
por exemplo, antigamente ninguém casava no papel, não é?
VR: Não.
DF: O casamento é um ritual dentro da comunidade,
mas hoje em dia tem que ter esse ritual e ainda tem que ter
o outro.
VR: Pois é. Isso aí que muitas pessoas perguntam, assim:
“Mas você é casado?”; “Não. Eu sou não sei o quê, junto
não sei o quê...”; essa coisa que também tá entrando nas
comunidades indígenas, que tem que ter o casamento no
papel, não é?
DF: Isso já tá forte, também?
VR: Já. Não lá dentro, mas assim, eu acho que pelos pro-
fessores que têm assim, por exemplo: é que ele é funcionário,
o marido não é ou a mulher é, eles querem casar pra garantir
o sustento de seus filhos, é mais ou menos assim.
DF: E o que o senhor pensa a respeito dessa questão,
assim, dessa legislação dos não índios que acaba entrando
tão forte na comunidade? Você acha que o índio tem que se-
guir essa lei, não tem, o que é que o senhor pensa a respeito
disso? Ou o senhor nunca pensou a respeito? [...]
VR: Pois é, eu acho que hoje a gente tá num país demo-
crático, um país hoje que vive o capitalismo realmente, já é
um país capitalista. Então, hoje a gente não tem pra onde
fugir, não é? A gente tem mais que abraçar essa causa, mas
162 Projeto: Panton pia’
respeitando, tanto faz, a parte do não índio e respeitando a
nossa parte, dos nossos rituais, nossas histórias, todas essas
coisas assim.
DF: A tradição...
VR: A tradição. Mais ou menos assim, né? Mas eu acho que
a nossa parte, vamos dizer assim, dos brancos se envolver
dentro da comunidade, acho que hoje todo mundo precisa
disso. Por exemplo, hoje ninguém pode viver só naquilo.
Mas só que, hoje, o país hoje é um país globalizado, onde os
alunos precisam estudar, se formar, ser médico, pra voltar
pras comunidades, ser advogado pra ajudar as comunidades.
Essas coisas assim. Então, pra isso, como é que pode dizer, es-
sas coisas dos brancos, acho que tem tudo a ver com a gente,
hoje em dia. Por exemplo [apontando pra um computador],
um computador desse aqui, então, a gente tem que estar
por dentro das coisas, tem que estar acessando a internet
pra ver como é que tá o país lá fora, aqui dentro mesmo.
DF: Não tem como fugir.
VR: Não tem como fugir, tem que estar nisso, tem que
aproveitar disso, se aprofundar, dizer assim, né?
DF: A sua esposa também é macuxi ou não?
VR: Macuxi mesmo.
DF: Quantos filhos o senhor tem?
VR: Três.
DF: E qual foi a coisa mais triste que o senhor viu até hoje
e qual a mais feliz?
VR: Mais triste: durante agora esses tempos, foi a perda
de uma aluna da comunidade. Ela se suicidou, ninguém sabe
por quê? E ela, assim, é parenta nossa, então é uma coisa
triste, né?
DF: Não se consegue explicar direito.
VR: Ninguém sabe por quê, então, ninguém sabe. Nin-
guém sabe por que ela se matou, então...
Projeto: Panton pia’ 163

DF: Ela não disse nada a ninguém? Não deixou uma carta?
VR: Deixou uma carta pra mãe dela, dizendo que se a
mãe dela não chegasse aquele dia, ela ia se, ela ia, como é
que pode dizer, assim, se arrepender, né? Se a mãe dela não
chegasse aquele dia, ela ia se arrepender. Então, foi, meteu
a corda no pescoço e pulou da casa. Se suicidou e morreu.
[...] Pois é, e o próprio irmão dela que morava junto com ela,
chegou na casa de noite, porque ela dormia assim no sofá
e numa rede. Aí ele chegou na rede dele e dormiu a noite
todinha, pensando que a irmã tava bem. A irmã dele tava lá
no quarto pendurada, ele não via ela mexer, só quando ela
dormia. Aí, de manhã, ele foi ver ela no sofá, ela não tava. Aí
entrou no quarto e ela tava pendurada desde as oito da noite.
DF: Aí é triste mesmo.
VR: Eh.
DF: E feliz?
VR: Eh, feliz, hoje, porque tenho uma família, têm meus
pais que moram perto da gente. Acho que a maior felicidade
é ter a família unida. Acho que é uma das felicidades [...] e
saúde principalmente.
DF: O senhor nasceu onde, aqui no Alto mesmo?
VR: Aqui no Alto mesmo. No Alto São Marcos.
DF: Certo. E agora vou fazer algumas perguntas mais
sobre a comunidade. Qual a história da fundação da comu-
nidade, o senhor sabe?
VR: Eh, como eu tava contando naquela hora, dentro da
comunidade hoje, são as histórias que a gente já sabe, que
a comunidade veio desse processo de 1900 pra cá, foi um
livro que, que o meu professor também lá da comunidade
tem achado por internet e achou, foi de um alemão, parece,
Theodor Koch-Grünberg, Koch-Grünberg. 55
55

etnólogo alemão, visitou


Roraima entre 1911-13, fi-
cando também na região
DF: Ah, sei.
do Surumu.
VR: Não sei se você já teve acesso a esse livro…
DF: Eu já vi um vídeo dele.
164 Projeto: Panton pia’
VR: É, né? Já ouvi falar que na Serra do Mel, você sabe
onde é no Surumu ali.
DF: Sim.
VR: Lá é uma comunidade muito grande, aí tivemos
que passar, que eles passam não sei quantos dias de festa
na comunidade, aí dizia que chegava gente e alugava, por
exemplo, lá, o Mairari, que é hoje a Serra do Mairari, que
é uma comunidade, que chamam de Mairari. Então, vinha
também do Amajari e a gente falava também do Orocaima,
que é Santa Rosa hoje, porque na verdade o nome de lá é
Orocaima.
DF: Orocaima?
VR: Orocaima. Então, ele falava assim, que chegava muita
gente, como é que se fala? Oracaima. Então, por isso que
talvez seja Sorocaima, né?
DF: Sei.
VR: Até porque era escrito, em quê? Em espanhol. [...] Eh,
então foi, então, esse é o processo que vem vindo, a gente
diz que, segundo as histórias, lá era uma comunidade muito
grande mesmo, a gente sabe onde tem um, várias é… assim,
onde já morou gente, a gente sabe. Tem aquelas, como nós
indígenas sempre [usávamos], hoje quase ninguém usa mais
aquelas pedrinhas de botar as panelas assim. A gente encon-
tra por aí, monte de pedra, panela, panela velha, assim, então
é sinal que ali foi um território indígena desde antigamente.
DF: Sim.
VR: Então, de lá pra cá diz que o pessoal, morava muita
gente lá mesmo, e segundo o pessoal me conta que eu sou
o, vamos dizer assim, descendente dessa família de lá, ainda.
Porque diz que o primeiro tuxaua, quando o antigo meu avó,
que hoje tá vivo, ele tá bem velhinho hoje, não dá nem mais
pra conversar com ele, porque tá assim bem velhinho mes-
mo. E fé em Deus, que o homem que morava com ele, um
tal de João Sales. Então, esse João Sales era pai do Lobato,
esse Lobato foi um tuxaua também, esse João Sales foi o
Projeto: Panton pia’ 165

primeiro tuxaua, depois esse Lobato, que era o filho dele.


E, segundo o pessoal, esse Lobato, que é o avó do meu pai,
assim, é assim que conheço a história. Então, de lá pra cá, a
comunidade, ela tem se chocado muito atrás desse tipo de
doença, morreu muito, era catapora, sarampo, essas coisas
assim que, essas coisas que, segundo o pessoal, que são os
brancos que trazem, não é? [...]
DF: E quando eles vieram, as pessoas que tinham aqui
não tinham resistência.
VR: Então, essa doença chegou e pegou e foi extermi-
nando um bocado, então o pessoal que não morreu, saiu,
foram-se embora. [...] Pois é, então, de lá pra cá, diz que o
pessoal foi-se embora, né? Aí passaram uns tempos fora da
comunidade lá do Orocaima. E nisso chegou o pessoal bran-
co, os maranhenses, o pessoal daí de fora. Então, chegaram
lá, passaram um bocado de tempo por lá, tal. Aí esse, esse
velhinho que eu disse pro senhor, que tá pra Boa Vista, esse
velhinho que foi tuxaua vinte anos? Então, ele chegou lá e
viu, viu que os brancos estavam tomando conta mesmo da
comunidade. Então, ele chegou lá e conversou com eles
e tal, aí, que não podia ficar só os brancos e tal. Aí sei que
empossaram ele como tuxaua de lá. Não tinha ninguém na
época, não tinha mais tuxaua lá, já tinha morrido o Lobato,
tinha morrido o João Sales, já tinha morrido já. Empossaram
ele como tuxaua lá, então, de lá pra cá os brancos foram-se
embora, casaram, acho que cansaram de ficar por lá também
e foram-se embora. Então, de lá começou de novo a comuni-
dade, daí ele brigou muito pelas fazendas hoje, pelas, vamos
dizer assim, é por causa dos invasores lá, dos fazendeiros. É
porque lá na comunidade (daqui a pouquinho eu vou mostrar
56
A entrevista foi realizada pro senhor qual era nossa área de comunidade),56 porque
na sede da Universidade
Estadual de Roraima, em a comunidade era só naquele campo ali mesmo, ninguém
Pacaraima. entrava no mato porque era do branco.
DF: Entendi.
VR: E quem entrasse naquela mata ali, a gente era ame-
açado de morte pelos brancos. Sim, ele falava [que] era
dele, então a gente não tinha toda essa liberdade pra estar
166 Projeto: Panton pia’
caçando e pescando não. Então, ele teve essa briga com ele
e foi muito perseguido lá, foi esse processo todo. E conse-
guiu também a demarcação junto com o pessoal daqui da
reserva São Marcos, hoje. Então, ele lutou também. E tem
que conseguiu também um projeto de gado que hoje nós
temos lá também. Então, ele passou, segundo assim, passou
vinte anos, quem sabe foi até mais, ninguém sabe, né, porque
muitos deles eram analfabetos, não sabiam nem contar. Aí
ele calculou que eram vinte anos, assim.
DF: Tá certo, o meio de transporte ali é aquele que a
gente viu mesmo?
VR: Eh.
DF: Quando precisa vem de bicicleta.
VR: Eh, vem de bicicleta, uns dois tratorzinhos lá, cavalo,
é assim mesmo.

DF: Sei, e é bem longe, dá quinze quilômetros quase,


não é?

VR: Dezoito!

DF: Dezoito quilômetros da comunidade até lá na estrada.


Bem, o senhor acabou de falar, mas eu esqueci: qual foi o
primeiro líder tuxaua?

VR: Foi o João Sales. [...] Então, segundo o meu avô, que
era Sari, o nome dele macuxi.

DF: Sari.

VR: Então. Aí como os brancos estavam por lá, botaram


o nome dele de João Sales.

DF: E por que o nome de Santa Rosa, o senhor sabe?

VR: Santa Rosa é porque o seguinte, então, é como era


Orocaima, a comunidade. Aí, segundo, chegou um padre por
lá, um padre não sei se era italiano, parece que foi o padre Zé
Maria, não lembro muito assim. Ele chegou com um tuxaua
Vitalino de lá e disse: “Tuxaua, vamos tratar aqui o nome da
comunidade, esse nome é muito feio.” Aí botou outro nome:
Projeto: Panton pia’ 167

“Vamos botar aqui o nome de Santa Rosa de Lima, em ho-


menagem a uma santa aí.” “Tá bom, então vamos colocar!”
Aí trocaram de Orocaima pra Santa Rosa, né?
DF: E a comunidade nunca quis mudar de volta não?
VR: Até agora não, mas os antigos ainda chamam de Oro-
caima. O meu avô não chama de Santa Rosa, só de Orocaima.
DF: Então, até hoje Santa Rosa é também conhecida como
Orocaima pelos antigos?
VR: Isso. Também, também.
DF: Entendi.
VR: Então, aquela serra que vocês viram lá, é o nome de
Orocaima.
DF: Que significa o quê, o senhor sabe?
VR: Eh, segundo o que o pessoal também fala, que diz que
é porque o Orocaima é que dá origem assim aos papagaios,
que o nome do papagaio, em macuxi, é woro’ke.
DF: Woro’ke?
VR: Então, e as festas, não sei se era um lugar, se era a
casa de papagaio, se era comida de papagaio, era assim uma
mata onde os papagaios gostavam de ficar o dia todo. Era
mais ou menos assim, então.[...]
DF: A alimentação da comunidade mudou muito, você
lembra como era antigamente, você acha que tá a mesma
coisa?
VR: Eh, na parte da carne sempre mudou, não é? Depois
que a gente tem, tá criando os nossos animais como gado,
porco, galinha, essas coisas assim, não sei no passado, que
eu não me lembro, mas acho que mudou, com certeza. Eh,
porque segundo as histórias dos antigos, dos mais velhos,
uma parte da alimentação da carne era só através da caça
mesmo, ali era uma região que tinha um monte de jabuti
também. Segundo o pessoal, tinha tanto jabuti que eles
faziam parede de casa só de casco de jabuti, só.
168 Projeto: Panton pia’
DF: Tem história assim?
VR: Tem essa história lá.
DF: Mas não acharam mais os cascos?
VR: Não, não, porque ali o povo chega, né, queima tudo.
Então, os peixes, também, ali é uma região muito de pei-
xe, porque o rio era muito longe, chamava os fazendeiros
mesmo, tinha um igarapezinho. Só o peixe mais as caças de
antigamente. Hoje ainda tem, graças a Deus, preservou hoje
e ainda tem muitas caças. E tem também a damorida, que
hoje quase que não é consumida hoje, muito, lá.
DF: Não é muito mais, não?
VR: Mas os Pajuarus, de vez em quando o pessoal faz,
mas não é assim diretamente como o pessoal fazia.
DF: Pajuaru é o quê?
VR: Feito de mandioca, de beiju. [...]
DF: E aí, hoje a base da alimentação é mais a do gado
mesmo, não?
VR: Eh. Leite.
DF: E em relação aos rituais antigos, vocês preservam
alguma coisa?
VR: Hoje a gente tá botando pra ver se a gente reforça,
como se pode dizer…
DF: Retoma.
VR: Eh, retoma. Que, pelo menos, a língua, hoje, a gente
tem um professor que tá dentro da escola ensinando as
criancinhas pra ver se dá uma continuidade a isso, mas só
que é meio difícil. A pessoa quando nasce falando uma coisa,
pra aprender outra coisa só se tiver interesse mesmo. Mas é
muito difícil na parte do ritual, assim, como as danças, hoje
a gente sempre vem praticando.
DF: Sim, estão retomando.
VR: Isso, isso. [...] Mas só que, pra escrever, eles escre-
vem, os alunos. Escrevem. Se colocar um texto pra eles, eles
Projeto: Panton pia’ 169

sabem fazer, agora, pra falar que é o negócio! Pode ver que
aqui no Sorocaima I, hoje...
DF: Sei.
VR: Segundo o pessoal comenta, os alunos só vão pra
escola depois de sete anos, só depois que já sabem falar o
idioma deles.
DF: Ali nem escola tem. Ele não deixou colocar escola até
hoje, o patriarca.
VR: Pois é, então, é a escola do Sorocaima I. Então, só vão
pra escola depois de sete anos, quando já sabem falar o...
DF: Taurepang.
VR: O taurepang deles lá. Então, é interessante, né?[...]
DF: Eles falam taurepang mesmo. Me diga uma coisa,
como é que o senhor vê hoje a questão do indígena, o senhor
como tuxaua?
VR: A questão, mas como assim?
DF: Do índio hoje, por exemplo, a relação dele com o não
índio, como é que o senhor vê isso aí?
VR: É como eu disse, eu não vou repetir mais, mas hoje a
sociedade indígena, apesar de que não são bem, vamos dizer
assim, são considerados quase como mentores, como gente.
Mas hoje, o índio, ele é como qualquer um ser humano, né?
Hoje o pensamento de nós indígenas é estar ocupando os
espaços também, onde hoje os não índios estão ocupando
hoje, né, pode ser no município, na parte de vereador, na
parte de prefeito, nas escolas já estão com certeza, se não
falha a memória, mas acho que são quase mil professores
indígenas, hoje.
DF: Sim, na parte do Insikiran, não é isso?
VR: Não, nas comunidades indígenas mesmo.
DF: Ah, nas comunidades.
VR: Isso. Na parte do Insikiran, parece que são seiscentos,
170 Projeto: Panton pia’
parece que é mais ou menos assim. [...] Pois é, então é isso,
que eu vejo assim, que a parte de nós indígenas hoje tem
que avançar, acho que a palavra hoje é avançar.
DF: Sim, o senhor falou uma coisa que é interessante: os
indígenas pensam que o branco pensa que o índio não era…
VR: Não, escuta aqui, não todos os não índios. Imagina
assim, que hoje os brancos, o indígena não é considerado
quase como gente hoje, que o índio, por exemplo, pra eles,
assim, é uma coisa quase descartável, um animal, vamos dizer
assim, mas, na realidade o indígena hoje é um ser humano
igual a qualquer um hoje.
DF: Sei.
VR: Pensa, tem inteligência como qualquer um, né?
DF: É por isso que eu tava falando daquela questão do
direito e dever.
VR: Pois, é.
DF: Eu acho importante ter essa consciência do, até que
ponto é, isso é uma coisa que eu acho muito estranha. Na
hora em que você nasce índio, você nasce índio, mas também
nasce brasileiro.
VR: Pois, é.
DF: Não é isso? Mas na hora de seguir a legislação parece
que é uma legislação própria só pro índio e a outra legislação
não serve. Vocês tem direito à terra, não tem? Tem. Mas a
terra não é de vocês, é da União. Isso cria uma confusão
danada, não cria não?
VR: Cria sim.[...] Igual quando eu tava participando de um
concurso lá no Sebrae, aí a professora colocava o seguinte:
“Não, porque vocês não são mais indígenas, porque vocês
já usam relógio, não sei o quê mais...” Aí eu perguntei pra
ela: “Professora, a gente não é mais indígena porque a
gente já tá na cidade com todas essas coisas. E se a senhora
nascesse aqui na cidade e passasse dez anos lá na aldeia,
a senhora ia ser maranhense ou ia ser indígena?” “Não, eu
Projeto: Panton pia’ 171

sou maranhense!” Então, do mesmo jeito somos nós, né?


Nós nascemos e temos sangue de indígena então em canto
nenhum a gente vai dizer que nós não somos indígenas, né?
A nossa cor, o nosso jeito. [...] Então, têm pessoas que falam
as coisas assim sem perceber…

DF: É, sem perceber mesmo. Por isso que eu estou falan-


do, isso causa uma certa confusão, né? E da mesma forma que
causa confusão nas pessoas que não são indígenas, porque,
por exemplo, eu ouço vários casos na cidade de gente que
nega parentesco com indígena. Há até um motorista da
UERR, só depois de muito tempo que ele foi falar pra mim
que a mãe dele era indígena, que era macuxi, que ela nasceu
aqui perto da Raposa. Mas ele não fala, ele não fala que ele
é indígena. Ele não aceita isso muito bem, então se ele não
aceita é porque tem preconceito por trás, tem pressão social.

VR: É igual a parte dos políticos, né? Os políticos quan-


do chegam na época de campanha eles falam assim, eles
querem ganhar os votos dos parentes, dos indígenas, aí
chegam com aquelas conversinhas: “Não rapaz, acho que
você é meu parente, minha mãe é não sei o quê, minha avó
é indígena, minha mãe foi pegada a laço não sei aonde.”
É os brancos querendo ser índio e os índios querendo ser
branco, agora. [...]
DF: Justamente. E nesse sentido, você já passou algum
preconceito por ser indígena? Por exemplo, a gente sabe que
tem gente que tem, como você falou no começo, que acha
que índio não é gente, que acha que tem gente que ainda
pensa assim, não tem?
VR: Eh.
DF: Como você falou antes, você já passou assim por
alguma situação antes, que você não gostou, de constran-
gimento, de...
VR: É assim, a gente sempre sofre isso, né? Porque a
questão da terra hoje, da terra que a gente tem hoje, que é
extensa, a gente sabe que é extensa, mas nós temos muitos
172 Projeto: Panton pia’
índios dentro dessa terra. Por quê? Então, muita das vezes,
os não índios, hoje, os políticos, e outras pessoas, que dizem
assim: “Pra que o índio tem tanta terra se não tem condições
de produzir?” Então, dali a gente já sabe que tá de preconcei-
to com a gente, dizendo que a gente não tem condição, por
exemplo, de compartilhar com o estado, com o município.
Então, daí, já começa o preconceito: eles pensam que a gente
não tem condições de competir com eles também. [...]
DF: E como é a distribuição das casas na comunidade,
assim, por exemplo, lá tem a terra, não?
VR: Isso.
DF: A pessoa chega, ela vai lá, constrói a casa onde ela
quer, ela tem que ter o consenso da comunidade, como é
que funciona?
VR: Eh, a parte que eu acho que é em todas as comuni-
dades indígenas, pelo menos nas comunidades pequenas,
elas são boas assim, né, principalmente lá na nossa. Ele vai
construir, ele quer, por exemplo, só não vai construir no ter-
reno do camarada, né, mas sendo afastado ele vai construir,
porque tem que criar, né?
DF: Então, tem uma divisão?
VR: Tem uma divisão. Cada pai de família tem sua casa.
DF: Sim. E uma divisão na terra também?
VR: Isso não, só na casa mesmo.
DF: Só na casa?
VR: Só na casa. Ali, da casa tem o cercado dele ali. Aquele
cercado é o terreno dele, mas então outro vizinho do lado,
querendo, pode fazer também. Então, não vai dizer que,
por exemplo, se tiver minha casa bem aqui, assim, em um
extenso terreno aqui, eu vou dominar. Não tem isso, não.
DF: Não tem. É da comunidade, não?
VR: É da comunidade.
DF: Então, qualquer modificação que tem que haver ali é
a comunidade que tem que decidir?
Projeto: Panton pia’ 173

VR: Isso.
DF: Entendi. Então, em relação àquelas histórias antigas,
o senhor ouviu contar muito, não ouviu? Por exemplo, a
história de Macunaima, todo mundo fala né, mas o senhor
ouviu, sabe essa história, sabe contar?
VR: Não, não. Essa história de Macunaima eu não sei, eu
não sei muitas coisas, não.
DF: Sei.
VR: Também, eu não vou dizer que eu sei, né?
DF: Mas na comunidade tem algumas pessoas que sabem?
VR: Ah, eu acho que com certeza tem, porque quem
podia contar a história de Macunaima era meu avô. Só que
aí não vai dizer, porque ele tá bem velhinho e se a gente for
conversar com ele não vai, e é bom ouvir, mas só que ele tá,
ele não tá raciocinando direito mais não. [...]
DF: Mas se algum dia ele quiser falar, o senhor pode,
inclusive, ir junto, ficar fazendo as perguntas, pra registrar
mesmo. [...]
DF: E a história do timbó, vocês ainda fazem pesca com
o timbó?
VR: Não, não.
DF: Não fazem?
VR: Sempre o pessoal fazia lá uma pesca com o timbó, mas
só que era um timbó bem fraquinho mesmo, porque quem
utiliza o timbó é o pessoal aqui da Boca da Mata mesmo,
mas lá mesmo, não.
DF: Nunca ouviu falar a história dele, não?
VR: Não, não.[...]
DF: Sim. E essa questão do fogo-fátuo, já ouviu?
VR: Eu já ouvi falar em fogo-fátuo, mas da história eu
nunca ouvi, não.
174 Projeto: Panton pia’
DF: Não sabe.
VR: Não, não.
DF: E do Canaimé?
VR: Iche. Tem vários casos do Canaimé, aí.
DF: O que o senhor sabe dele, o que entende, o que
pensa a respeito?
VR: Não, segundo o que o pessoal comenta, que o Ca-
naimé é a pessoa assim, que faz mal às outras pessoas, é
só pra fazer o mal mesmo, né? Caso de inveja, essas coisas,
assim. Então, vai fazer o mal à pessoa. Graças a Deus que
quase não tem muito isso, tem assim, se o Canaimé assoviou,
assoviou por lá, mas se diz que não é o Canaimé, mas diz que
é assim: o Canaimé é uma pessoa normal, só que tem um, ele
usa um não sei, um tipo de não sei de quê lá, uma matéria
que ele usa, que os parentes dizem que é uma puçanga que
ele tem. Então, por exemplo, porque é, vamos dizer assim,
existe essa puçanga pra várias coisas, pra caça, pra pesca,
pra todas coisas, né? E pra matar gente também serve, então
é isso que acontece com ele, ele usa essas batatas, não sei
se é batata o que ele usa lá, sei que é uma puçanga que ele
usa pra fazer mal aos outros. E eu ouvi dizer que, acho que
na Boca da Mata, um velhinho que mora na Boca da Mata,
não sei se é vivo ainda, ele morava não sei onde, acho que no
Arai. Aí, lá os parentes deram uma batata pra ele, uma batata
de matar veado, né, diz que aí ele páá, rapaz, vou matar um
veado hoje, ele passou não sei se foi a mão, na perna dele,
e foi caçar. Aí diz que a mulher dele tava na roça e passou a
batata e esqueceu de tudo. Daí a um pedaço, chegou lá na
roça com a mulher dele e tava matando a mulher dele, aí a
mulher dele gritando: “Não, não faz não, não faz não.” Não
tava conhecendo ela, né? “Não faz, não faz, não faz.” Não
sei o quê, e ele querendo matar ela. Até que ele correu. Aí
quando ele chegou de tarde lá, a mulher dele perguntou:
“Rapaz, tu queria me matar lá na roça?” “Eu? Eu não, rapaz,
eu fui caçar!” “Não, foi tu mesmo que queria, tava me en-
gasgando lá.” “Não, eu não fui pra lá não, eu fui caçar.” Aí,
Projeto: Panton pia’ 175

segundo, é um tipo de material que eles usam pra acontecer


isso aí, esse negócio do Canaimé, aí.
DF: Sim. E houve casos na comunidade, lá em Santa Rosa?
VR: Rapaz, teve um caso, eu não sei se foi disso mesmo,
porque segundo o Canaimé, eles, o Canaimé, o camarada diz
que não fala, que dá febre, dá diarreia, várias outras coisas,
e que morre rápido. E aconteceu um caso quase idêntico a
esse aí. É de um velhinho que tinha lá. Então, ele foi tirar um,
ele gostava de trançar peneira, né? Aí, foi tirar as varinhas
pra fazer as peneiras dele. Quando ele voltou, foi com febre,
quando foi de noite ele morreu.
DF: Aí, nesse caso, falaram que poderia ter sido o Canai-
mé?
VR: Assim, é mais ou menos assim, né. Não sei se foi
mesmo, porque foi uma morte rápida, né?
DF: Sabe da história da mulher que foi pega pelo macaco,
já ouviu falar?
VR: Não, não.
DF: Não? Que ela morou com ele?
VR: Não.
DF: Tá certo, essa é uma história que a gente ouviu tam-
bém.
VR: Eu sei uma história da Guariba.
DF: Guariba?
VR: É quase idêntico a essa daí.
DF: Como é?
VR: Diz que é um, é uma mulher que, a mulher era casada
com um, que era casada com um homem, não, a mulher que
era casada com o Guariba. Aí não sei se era o, era o macaco,
parece, não, era outro camarada, então esse camarada era
doido pra roubar a mulher do Guariba. Aí diz que “Vamos
fazer, então...” Aí, diz que eles foram pra casa do Guariba lá,
aí lá faltou água pra coar o caxiri lá, aí o Guariba mandou a
176 Projeto: Panton pia’
mulher dele buscar água no igarapé. Aí diz que o cara foi por
lá, pegou a mulher do Guariba e levou. Aí o Guariba ficou lá
esperando, esperou, esperou. Aí começou a gritar: “Mulher,
mulher, mulhéééérrr...” O senhor já ouviu o Guariba gritar?
DF: Sim.
VR: Não grita assim?
DF: É parecido com isso.
VR: Roubaram a mulher dele, ele foi e gritou com a mulher
dele: “mulher, mulher, mulhééérrr”!
DF: É daí que vem a história. Tem mais alguma que o
senhor lembra?
VR: Rapaz, no momento assim, a gente não dá pra se
lembrar muito essas histórias não. Quem sabe eu lembro
amanhã. Tem a do Canaimé. E só como eu disse, ele tá uns
tempos que a situação dele hoje tá.
DF: Sei. E a educação na comunidade, como é que é feita
hoje? A escola, a educação?
VR: É, hoje a gente vem enfrentando um problema na
educação. Vários anos aí, já, né? Desde a fundação dela, a
gente vem, não da fundação, mas depois que a gente pas-
sou pra, que a gente começou a construir o ensino médio,
de 5ª a 8ª, a gente sentiu muitas dificuldades. Em questão
de professor, aí tem a questão da parte da estrutura física,
essas coisas assim. Então, é muito difícil.
DF: E qual é a principal dificuldade da comunidade hoje,
é a educação mesmo ou não?
VR: É a educação, saúde.
DF: A saúde também?
VR: Eh, a saúde também tá bem precária, hoje.
DF: O que mais incomoda na saúde?
VR: É o que hoje as outras comunidades sofrem. Várias,
um pouquinho de doença, né, mas dá pra resolver, mas é
medicamento pra garantir a saúde do pessoal aí, que não
Projeto: Panton pia’ 177

tem em grande quantidade hoje. [...] E médico também, que


não oferecem também. [...]
DF: A comunidade recebe algum benefício do governo,
alguma coisa? O senhor, a comunidade?
VR: Não, não.
DF: Porque, às vezes têm, não?
VR: Huhum.
DF: Não recebe não né?
VR: Não.
DF: Ela se autossustenta mesmo?
VR: Isso, isso.
DF: E o que o senhor pensa sobre isso, sobre essa ajuda
do governo ao indígena, como benefícios e essas coisas.
Qual a sua opinião?
VR: Como assim? Diretamente?
DF: É assim, como os benefícios, inclusive o governo aju-
da muitas vezes até, o não índio recebe muitos benefícios
às vezes do governo, né? Ajuda financeira mesmo, quando
sabe que tá com dificuldades...
VR: Huhum. É, hoje a gente não recebe, né, mas, é assim...
DF: O Bolsa Família, o Bolsa, essas coisas todas.
VR: É, tem esses programas também, mas são poucas
pessoas que recebem hoje, esse benefício dessas famílias
aí, acho que são contados, são bem umas quatro, parece, e
tem também o do outro, o Vale Alimentação, são bem uns
três que recebem. [...]
DF: Sei. E como o senhor vê a presença da religião dentro
da comunidade?
VR: Religião? Da católica ou da...
DF: Não, a religião, pode ser católica ou outra, como o
senhor vê essa presença? O senhor concorda totalmente ou
178 Projeto: Panton pia’
não concorda? O senhor vive ela, e qual o seu pensamento
a respeito disso?
VR: Eh, a gente sabe também essa história da religião,
hoje, da religião católica que foi uma das coisas que contri-
buiu também, hoje, pro desaparecimento da língua. Então,
mas hoje a gente sabe também e ninguém vai dizer assim
que a religião católica, ela é uma das melhores, nem também
a… qualquer outras religiões, mas hoje a gente tá, a gente
é da religião católica e a gente não é só dizer que é católico
e sair e falar o nome de Deus hoje. Então, o importante hoje
é crer em Deus e saber que ele é vivo hoje, então isso que
é importante pra nós. Pode ser qualquer uma religião hoje,
mas o importante é que tá pregando a verdade, né?
DF: Sim. O senhor ouviu o seu avô falar alguma vez,
alguém falar, como era antigamente antes da presença da
religião?
VR: Deixa eu ver aqui...
DF: Ouviu eles falarem alguma vez?
VR: Rapaz, deixa eu ver aqui. Não, não me lembro, eu não
sei nem se fazia esse tipo de oração também. Que muitas ve-
zes esse pessoal de antigamente, eles tinham outros deuses,
vamos dizer assim, né? Era um pajé. Por exemplo, o pajé que
era o forte da comunidade, era o, bem dizer, que dominava
mesmo o povo ali, que era o chefão mesmo ali. Então, isso
aí que antigamente, acho que existia isso. De lá pra cá que
começou a entrar essa religião católica, como já disse, que
como entrou na comunidade lá, que trocaram até o nome
da comunidade. Então, uma coisa os padres que entraram e
que foram também exterminando, essas coisas que já tinham
contribuído com isso também pra acabar com isso. Se, por
exemplo, ninguém tivesse entrado lá, até hoje era registrado
como Orocaima o nome da comunidade.
DF: Sei. Assim mesmo aconteceu com aquele cara antigo,
né?
VR: Isso, o nome dele né?
Projeto: Panton pia’ 179

DF: É, também dos outros deuses...


VR: Isso.
DF: Dos rituais, né?
VR: Isso, isso mesmo.
DF: Têm a presença do pajé ainda hoje na comunidade
ou não?
VR: Tem não. Existiu, tá com uns quinze anos, ou vinte
anos, que acho que já morreu.
DF: [...] Têm uma preocupação na comunidade hoje do
repasse das tradições, de contar as histórias do povo, estão
tentando recuperar isso?
VR: Pois é.
DF: A comunidade pode achar também que isso não é
importante. É um direito da comunidade, não?
VR: Eh. Não, hoje a gente tá tentando fazer um projetinho
lá pra gente e ver se a gente consegue revitalizar isso, essas
coisas também assim, até de, até mesmo de começar a es-
crever. Até mesmo o professor, ele, ele também foi formado
agora no Insikiran, também. Não sei se você conhece ele, é
o professor Francisco. [...]
DF: Acho que não.
VR: Não, né? Então, ele fez o trabalho dele, porque todo
o aluno hoje lá tem que mostrar um trabalho pra ele, mais
ou menos assim né, quando termina, no final, né?
DF: É o trabalho de conclusão.
VR: Isso, isso. Então, o projeto dele era contar a história
da comunidade Santa Rosa ali. Contar a história. E criou várias
histórias ali, desde o início, que eu contei também aqui. Eu
mais ele, a gente começou a conversar e ele descobriu que
tinha assim esse guia dessa história da comunidade. Mas,
hoje é interessante essa história mesmo da comunidade, a
gente começar a escrever pra registrar.
180 Projeto: Panton pia’
DF: E construir, e de repente organizar melhor pra que
os alunos tenham consciência disso.
VR: Então.
DF: Que às vezes ela só existe, mas tá na cabeça de um, na
cabeça de outro e de outro, mas nunca tem uma ideia geral
de como ela é. Assim, aceita normal ou não aceita quando
índio quer casar com não índio essas coisas, tem alguma
restrição, não têm? Ou não acontece isso?
VR: Não, não, hoje acho que tá, isso é normal já. [...] Isso,
isso, qualquer branco pode casar com a índia, mas só que
pra morar tem essas coisinhas, né, dentro da comunidade
hoje, porque a gente já passou por várias experiências de
lá, de índio morar em comunidade e muitas vezes não dá
certo. Então, a gente quase que já não aceita tanto os índios
morando lá dentro da comunidade.
DF: Os não índios, né?
VR: Os não índios. Então, tem que saber, de repente,
quem é ele? Como é o passado dele? Porque, muitas vezes,
a gente tá trazendo uma coisa, é uma cobra pra estar co-
mendo a gente, né?
DF: É verdade.
VR: Então, a gente não quer mais isso pra gente. Então,
a gente tem que conversar com ele bastante pra ver como
é que fica, mas na verdade hoje o branco, a índia que quiser
casar com os outros parceiros tá sendo normal, já.
DF: E por exemplo, em algumas comunidades antigas, os
meninos, pra se tornarem rapazes, tem algum ritual, alguma
coisa pra eles virarem rapazes. E também as moças. Isso
existe na comunidade, não existe?
VR: Existe não.
DF: Eu vejo uns especiais que eles pegam um dente de
piranha, aí colocam numa madeira e vem, pra eles ficarem
fortes. Então, eles vêm e arranham o corpo todinho e passam
um negócio pra arder, os rapazinhos. Essas coisas assim não
existem?
Projeto: Panton pia’ 181

VR: Não existe mais não. [...]


DF: E pra caçar, pra ser bom caçador, por exemplo, passa
alguma coisa ou não tem isso também?
VR: Tem também, não. [...]
DF: Que era muito comum, né?
VR: Eh, lá na comunidade, não existe mais isso, não. Quem
sabe no passado existisse, quem sabe, mas hoje os caras não
querem mais nem caçar lá.
DF: Só caçam quando tem algumas festas, algumas coisas
assim, aí caçam?
VR: O pessoal caça, assim, quase diretamente, mas só que
é individual. Quando vai caçar não é aquele grupo, porque
antigamente era assim. A festa de Natal que era mais, vamos
dizer assim, festejada, né? Então, o pessoal se juntava, e ía
caçar, os homens. As mulheres ficavam fazendo pajuaru.
Aí, tal dia diz que eles iam chegar, aí, diz que saía pra caçar,
dava uma semana, duas semanas, aí as mulheres ficavam
esperando, fazendo o caxiri e ficavam ali esperando. Quan-
do dava fé, tocava o fogo em cima da serra lá, aí diz que já
sabiam que eles já vinham já. Aí elas saíam com seus baldes
com caxiri pra encontrar eles lá. Levavam caxiri pra encontrar
eles no meio da viagem. Davam o caxiri pros homens e elas
pegavam as carnes, as mulheres, e vinham embora, mas não
sei se acontecia isso aqui na comunidade. Isso é uma história
que eu já sei.
DF: É que não acontece mais...
VR: Isso. Obrigado
DF: Obrigado.
Projeto: Panton pia’
Entrevistados: Letícia Barbosa (LB) e Eduardo Alexandre Magalhães (EM)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF) e Lucimar Sales
Assistente de Entrevista: Lucimar Sales (LS)
Local: Santa Rosa, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 10/10/2008
Transcritora: Michele Rubinstein
Conferência de Fidelidade: Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti e Huarley Mateus
Duração: 3’11’’54’’’’
Projeto: Panton pia’ 185

DF: Primeiro, qual é o nome da senhora?


LB: Letícia.
DF: Letícia de quê? Só Letícia?
LB: Letícia Barbosa.
DF: É, e do senhor?
EM: Eduardo Alexandre Magalhães.
DF: Qual é a idade da senhora?
LB: Setenta e três anos.
DF: Eita! E tá forte assim. E o senhor?
EM: Sessenta e oito, vou fazer agora dia treze de outubro.
DF: Ham ham.Vocês dois são da mesma etnia? Os dois
são macuxis?
LB: Somos.
EM: Somos. [...]
EM: Ela é macuxi, só. Eu sou macuxi porque eu sou daqui
de Roraima. Diz que quem é de Roraima é macuxi, mas eu
acho que macuxi mesmo é aquele que fala a língua. Como
eu não falo, mas eu entendo um pouquinho, aí.
DF: Então, eu vou fazer assim, eu faço pra ela depois eu
faço pro senhor. O nome do pai da senhora e da mãe da
senhora?
LB: Cristão Barbosa.
DF: Cristão Barbosa, e da mãe da senhora?
LB: Vitorina dos Santos
DF: Eles eram macuxis os dois?
LB: Todos dois eram macuxis.
DF: Eh, e o senhor?
EM: Meu pai é Camilo Magalhães.
DF: Camilo Magalhães. E a mãe?
186 Projeto: Panton pia’
EM: Rosa Alexandre, macuxi também.
DF: [...] Quando vocês nasceram, vocês falavam, os pais
[...] falavam ainda macuxi?
LB: Falavam. No meu tempo todo mundo falava macuxi.
Ninguém falava português, só macuxi.
DF: A primeira língua da senhora foi macuxi ou foi por-
tuguês?
LB: Macuxi. Eu vim aprender a falar português, a língua
dos brancos, como falam, quando eu tinha assim, eu tinha
uns 10 anos. Eu não sabia falar português. Eu não entendia.
Algumas coisas, naquelas velhinhas que falavam, pra mim
elas conversavam bem, mas não era não. Depois que eu
entendi, eu aprendi, que fui relembrar o que que elas diziam,
falavam errado. É. Aprendi falar português com dez anos.
Eu falava macuxi, com onze anos pra frente que eu aprendi.
DF: E o senhor foi a mesma coisa. Falavam [macuxi] ou
falavam português?
EM: É a mamãe, ela falava, que aí ela é que falava macuxi
com ela, mas só que a mamãe não falava com nós.
DF: Ah, entendi.
EM: Por isso que a gente não aprendeu, né? E papai tam-
bém não falava, por isso que a gente não aprendeu. Eu vim,
eu vim aprender algumas coisas quando ela [dona Letícia]
já conheceu a mamãe. Porque ela se dava muito com minha
mamãe, a gente é, por isso que eu não aprendi. Mas eu gosto,
eu adoro macuxi.
DF: Mas o senhor entende alguma coisa, né?
EM: Bem pouquinho.
DF: Tá certo. Vocês são casados há quanto tempo?
LB: Nós, bem de, cinquenta e, cinquenta e oito, nós
convivemos juntos.[...] Nós não somos casados, somos
companheiros.[...]
LS: A senhora escreve e lê em macuxi ou a senhora só fala?
Projeto: Panton pia’ 187

LB: Eu, algumas coisas escrevo em português, eu falo


macuxi. A senhora pode escrever macuxi, eu leio e não sei
escrever macuxi.
EM: Ela, ela lê o macuxi, mas ela não escreve, ela tá di-
zendo assim.
LB: Eu acho que porque nunca... É. Eu leio mas não posso
mais escrever devido a vista. [...] Eu canto parixara, eu canto
hino da igreja em macuxi.
DF: Qual é a religião de vocês?
LB: Católica.[...]
DF: [...] A senhora sempre foi católica ou modificou? Que
hoje tem, nas comunidades, têm várias religiões, né?
LB: Tem. Pra mim não modificou não. Eu sou católica
desde quando eu fui batizada. Meus pais me ensinaram a ir
à igreja e, até hoje, eu nunca deixei de ir à igreja. Eu adoro.
[...] E é assim. Agora, do tempo, nessa geração de hoje, entra
professor, macuxi mas não aprende. Ensina parixara, mas
não aprende; ensina canto da igreja, não aprende. Eu não
sei por quê. Eu me alembro que quando chegou, chegaram
os brancos, como nós falamos, indígena só fala branco né,
dizia assim: “Comadre, não vai mais ensinar seu filho e sua
filha a falar macuxi, que isso é feio.”
DF: Eles falavam isso.
LB: Falavam. Falavam mesmo. E eu me alembro de duas
mulheres que chegavam e diziam pra minha mãe: “Não
ensina macuxi, que macuxi é feio.” Só que minha mãe não
sabia nem falar bem o português, aí começaram adonde
largar o seu idioma. Os brancos foram chegando, a gente foi
se entrosando com os brancos, ensinando. Foi tempo que
chegou o ensino, que é a escola. Aí as crianças começaram
a ir pra escola, aí pronto, só foi assim. Começaram a pedir as
filhas pra ler, meninas de onze anos, doze anos. “Comadre,
deixa eu levar seu, sua filha. Eu vou fazer ela ficar bonita lá
em Boa Vista.” Levava. Quando as meninas vinham de lá,
vinham com o cabelinho toda enrolado...[ risos] Já, já virou
188 Projeto: Panton pia’
branco, né? Porque não muda, só fizeram modificar o cabe-
linho em algum bonito de Boa Vista. Tudo isso acontecia na,
na geração que se vinha chegando, na minha geração. Eu
nunca esqueci que idioma eu falo.
DF: E o que a senhora pensa dessa influência toda?
LB: Eu?
DF: Eh.
LB: Eu penso que eu nunca hei de largar o idioma. Quem
chega assim, como o senhor chegou, pedindo a história dos
antigos, eu conto a história quando eu sei. Algumas histórias
eu passo pras pessoas que me procuram pra contar história
DF: [...]Vocês sempre moraram aqui, não? Vocês estavam
falando que moravam primeiro lá na Curicaca, né?
LB: Olha. Eu fui nascido lá na maloca do Barro. De lá eu...
LS: É Surumu, né?
LB: Isso. Vila Surumu. Surumu foi o branco que chamou.
[...] Mas pra nós é maloca do Barro. Maloca do Marári cha-
mam de, é, Marári já é o branco que chama Marári, pra nós,
na nossa língua é Máirari. [...] Marári, o que quer dizer, é
Serra do Lagarto. Máirari, agora o branco chegou e chamou
Marári. [...] Aí de lá, foi tempo em que a gente nos juntou,
nós fomos conviver juntos. Nós viemos pra Curicaca. Em
sessenta, nós chegamos aí. Passamos um bocado de anos
aí, quando no dia que meu padrasto, pai da Acevilda, a gente
morou. Aí de lá pra cá a gente veio morar pra cá, tempo em
que meu afilhado, meu sobrinho Valci, era tuxaua. Eu criava
minha filha, a mãe foi embora pra Boa Vista, aquelas coisas
que tem na vida das pessoas, né? Aí não tinha, meu marido
disse: “Vamos vender tudo que temos e vamos pra Boa Vis-
ta.” “Vamos sentar e vamos conversar. Eu não vou pra Boa
Vista. Que que a gente vai fazer em Boa Vista sem ter nada?
Tem criança pra estudar. Como é que nós vamos manter
essas criança?”[...] Se fosse só nós dois, a gente dormia em
qualquer canto, mas nós temos nossas crianças. Então, va-
mos embora pra Santa Rosa. E viemos pra cá. Passamos um
Projeto: Panton pia’ 189

ano ali no centro. De lá que nós fizemos esse barraquinho


aqui, ele fez. Estamos aqui. Mas que daqui não sei. [risos].
Daqui é aqui mesmo.
DF: Mais aqui é lindo, né? [...]
LB: Aí minhas filhas saíram pra estudar, ver se conseguem,
conseguem emprego que até hoje nunca conseguiram. O
senhor sabe como é situação de pessoas que não têm con-
dições, né?
DF: Eu sei. É muito difícil.
LB: É muito difícil. Aí tá, vai embora uma; vem outra. Essa
daqui tá comendo, porque preciso mesmo pra fazer as coisas
pra mim. Ela que faz meu alimento, tudo. Apenas estamos
passando. Estudaram aqui, daqui foram pra Pacaraima. Nós
estamos aqui; nós somos dois velhinhos, que somos mora-
dores daqui. Faz mais de dez anos que nós estamos aqui.
DF: E a influência assim do, a influência do branco, como
é que a senhora vê?
LB: Bom, a gente tem entrosamento com os brancos,
tanto faz com parente ou com os brancos. Como o senhor
chegou, eu acho que, eu não sei, eu acho que o senhor in-
centiva a nós a receber aqui, como o senhor, a senhora. A
gente, a gente se dá bem com as pessoas que chegam, com
os brancos. Tem branco que chega com a gente, a gente
recebe, se tem alguma coisa a gente oferece. Se a gente não
tem, nessas coisas de dizer do branco, né?
DF: Eu sei.
LB: Agora, tem branco que não gosta de índio, mas eu
tenho visto muitos brancos que não gostam de índio, índio,
índia. Tem aquele sobrosso de não falar com a gente; tem
sobrosso de beber a água, a comida da gente, a água da
gente: “Esses caboco59 são imundo.” É isso, existe isso.
59
As variantes “caboco”, DF: A senhora já passou algum tipo de preconceito?
“caboca”, “cabocos”, “ca-
bocas” foram preservadas. LB: Já, já, sim senhor.
Nas entrevistas, em nenhum
momento, apareceu a estru- DF: O senhor também ou não?
tura com “cl”.
190 Projeto: Panton pia’
EM: Também.
DF: Tem que se identificar não, eu sou índio. Já passaram,
já? A senhora lembra?
LB: Me lembro. Eh, então, é o que nós estamos falando.
Índia, tu é índia.
EM: Posso falar.
DF: Pode.
LS: Claro.
EM: É. Não me lembro bem o ano que, que passou né.
Tinha um fazendeiro ali, que morava ali na beira da estrada.
Lá chama-se Diamante Verde. Ele não deixava nós caçar.
LB: É o Bantim
EM: O Bantim... Bantim. É, ele sovinava assim os pes-
queiros. Dizia que caboco não era pra pescar na área dele, e
discutia com, com o pessoal, com umas pessoas daqui. É por
isso que ela tá dizendo que não são todos os brancos que,
que se dão com os índios. Porque tem branco que maltrata
o índio mesmo. Eh. Aqui tinha um branco, ele morreu, o
Santos Figueira. Santos Figueira era muito perverso com o
índio. Os índios e todos aqueles que trabalhavam com ele
botavam no cavalo, se caísse, o que ele fazia, ele metia-lhe a
peia. Maltratava muito o índio. É por isso que ela tá dizendo,
que nós já passamos coisas difíceis com o branco.
DF: Eh. E como o senhor vê, por exemplo, o índio: [...]
o senhor se sente, por exemplo, brasileiro, indígena, como
que o senhor se sente assim?
EM: Eh, eu me sinto assim, que é, a gente é índio né, a
gente não pode também chegar muito pro lado do branco,
né, porque ele não vai receber nós. Branco assim como eles
né? Eles ficam sempre tirando quase a gente fora, não é? É
isso que a gente sente.
DF: Eu penso assim às vezes né, porque o indígena ele,
hoje em dia, ele não vive isolado do mundo. Ele sabe de tudo
que acontece lá fora, tem contato, pega aqui e vai ali em
Projeto: Panton pia’ 191

Pacaraima, tem contato, liga o rádio ali, sabe de tudo que


tá acontecendo, né?
LB: Sabe.
EM: Sabe. Mas isso aí já faz poucos tempos que a gente
vem entendendo o que o senhor tá dizendo. Tem o rádio, a
televisão, muitas coisas a gente já vai, mas de primeiro tinha
gente aí, índio que não sabia.
DF: Mas eu quero chegar assim. Hoje tá assim não tá?
EM: Tá.
DF: Mas ao mesmo tempo o indígena ele tem a custódia
da União, não é isso? Do governo.
LB: Tem.
EM: Tem.
DF: E o governo, às vezes, pensa que o indígena tá isolado
do mundo, que não sabe de nada, que tem nada, que não
tem o direito dele, que ele pode fazer as coisas que ele quer
na terra que é dele.
LB: Isso.
DF: A gente fica assim a terra é dele ou é da União?
LB: Da União
EM: Da União
DF: Né? Então, como vocês percebem essa complicação,
ou vocês acham que é normal isso?
LB: Olha, a gente pensa assim: como é da União, a gente
sabe assim, pelos brancos, entendido pelos brancos. A gente
que, às vezes, procura saber como é, como não é. É como o
senhor tá dizendo, hoje a gente tem entrosamento com os
brancos. Fulana como é isso assim, a nossa vida, essa terra
é nossa? Como é? Ou não? Bom, a terra é da União. A terra
vocês não pagam direito. A terra vocês, como é que diz,
protege, vocês são dono da terra até quando a gente qui-
ser. A gente mora o tempo que a gente quiser, até quando
a gente se apagar. É isso que a gente entende. Mas a gente
192 Projeto: Panton pia’
tá sabendo que essa terra não é mesmo da gente.
DF: Porque é complicado, não é?
LB: É.
DF: Porque historicamente a terra sempre foi do indígena
não é isso?
LB: É. Mas que é da União, a gente mora o tempo que a
gente tem que morar. O tempo que quiser. E aí a gente, a
gente vive assim né. Nós temos nossa roça, nós temos nosso
plantio aqui.
DF: Vocês plantam o quê?
LB: Olha aí: limão, coco, abacate, mangueira.
DF: Vocês ainda fazem a farinha aí, que eu vi ali.
LB: A gente faz.
DF: Planta...
EM: A mandioca, a maniva,[...], banana.[...].
DF: E outra coisa assim, mudando um pouquinho, aquelas
histórias mais mitológicas, assim, a senhora sabe de alguma?
O que vocês sabem sobre o Canaimé, por exemplo?
LB: O Canaimé, o Canaimé é parente da gente mesmo.
Que existe há muitos anos, tá o Canaimé. Quando eu era
criança, ouvia falar no Canaimé. Branco chama Canaimé,
índio chama Kanaimî.
DF: Kanaimî.
LB: Kanaimî. Aí na Boca da Mata moravam os antigos. E
tinha o parente que comprava, trazia o ralo pra trocar. Lá no
Barro eu me lembro; trazia o ralo pra trocar com o que, com
rede de fio de algodão; trazia o ralo pra trocar com chumbo,
espoleta é... como é, Eduardo?
EM: Pólvora.
LB: Porva... pólvora sei lá. Aí o homem levava, marre-
teiro levava, era chamado marreteiro. Levava pra lá, vinha
pra cá. Aí tem aquela, aquela coisa, ter inveja dos outro. O
Projeto: Panton pia’ 193

Canaimé traz isso aí. O Canaimé, rapaz, já traz o mal da in-


veja. Aí começou perseguir os outros. Mataram o homem,
aí começou, surgiu o Canaimé na Boca da Mata. De lá eles
desciam. Tuxauas eram perseguidos por Canaimé, porque
eles eram chefes do povo. Aí eles procuravam matar tuxaua,
que tuxaua...; matavam assim; matavam qualquer um. Era
assim, por exemplo, por aqui falam Santa Rosa é lugar bom,
é lugar bonito. O pessoal lá sabe tratar a gente, já tem, vai
lá na outra comunidade, que ele já sabe né. Aí eu já fico com
aquele, aquela inveja. Eu vou lá perseguir aquela pessoa. Aí
eu vou lá, viro Canaimé: boto couro de onça; boto couro de
tamanduá; boto máscara pra ninguém me conhecer. Aí eu
vou fazer medo, seu Eduardo que tá lá na roça trabalhando
sozinho eu dou um grito: Eei! Ei! Ei! Ei! Aí ele toma aquele
susto e ele vem, faz sinal pra ele, aí ele vai embora onde tá
o Canaimé. Eles usam puçanga pra gente não contar o que
eles fizeram com a gente.
DF: O que é puçanga?
LB: Eu não sei o modo não. Puçanga eu não sei nem
explicar. [Risos]
EM: Eu acho que é assim alguma.
LB: Alguma... um tajá que eles usam, né.
EM: Um tajá.
LB: Que eles têm, eles usam tajá.
EM: Eu não sei não. Eu ouvi dizer uma coisa, pra mim é
assim como esse pessoal que usa hoje droga. Sei lá, nunca
nem vi, nem conheço droga. Tem gente que toma droga,
fuma não sei o que, pra ir matar os outros. Eu acho que é
assim o Canaimé, não sei não.
DF: E eles fazem o que com as pessoas, o Canaimé?
LB: Matava.
EM: Bate.
LB: Bate.
EM: Acocha a garganta e faz a pessoa passar mal, enforca.
194 Projeto: Panton pia’
Aí a pessoa adoece e morre. Fica todo batido por dentro. Aí
a história do Canaimé. “Ah, Canaimé matou fulano!” É assim,
né. Eles pegam dois, três.
DF: E como é que sabe que a pessoa foi atingida, porque
quando a pessoa é atacada pelo Canaimé, eles não, eles não
falam, me falaram, não é? Assim, ele não fala?
LB: Ele não fala.
EM: Ele não conta.
LB: Justamente. O tajá que eles usam pra pessoa não
contar. Passa na boca pra pessoa não contar. Agora quando
ele chega, por exemplo, quando ele chega, ele chega hoje
meio-dia. Ele tá triste, tá com febre, dor de cabeça. Passa a
noite toda com febre. Aí a pessoa desconfia. Sabe que foi o
Canaimé que agarrou ele. “O Canaimé te agarrou?” “Não.”
Lava o pilão, lava o pilão; tira água do pilão; côa; dá pra pes-
soa beber. Diz que descobre, aí ele conta tudinho.

DF: Aí ele conta...?

LB: Conta. Se ele viu gente, agarraram ele lá, bateram


nele. Aí é donde se tiver batido, ele morre mesmo. Morre,
não tem jeito não. É assim.

DF: Teve caso aqui na comunidade, já?

LB: Já. Eu me alembro, o irmão desse que o senhor gra-


vou lá, adoeceu. Ele não ouvia, ele era surdo. Ele trançou a
peneirinha, foi tirando os cabinhos, uns pauzinhos que ficam
tecendo na peneira, que ele foi sozinho não escutava. Eu digo
que foi Canaimé, porque ele... Olha fulano tá passando mal.
Seu Leopoldo tá passando mal. Aí nos fomo lá, lá na casa do,
da sobrinha dele. Chegamos lá, (se dava muito com a gente),
aí ele, quando ele viu o Eduardo, ele falou bem baixinho:
“Eduardo.” “Quatro pessoas.”
EM: Ele já tava passando mal, já.
LB: Ele já não tava mais falando. Ele apontou, apontou
os dedos: “Eduardo.” Quer dizer, foi Canaimé que matou o
pobre. Ele morreu, aí trouxemos ele pra cá, pro posto. Avião
Projeto: Panton pia’ 195

veio pegar ele. Só foi morrer em Boa Vista.


DF: Não teve jeito.
LB: Não teve jeito não. Se é assim, não tem jeito não.
DF: [...] História mesmo de bicho, que os antigos conta-
vam, a senhora lembra de alguma?
LB: Lembro.
DF: É isso que a gente, que é coisa que a senhora gostaria
que ficasse assim guardado pra sempre. História de bicho
mesmo, de Macunaima se a senhora souber se a senhora
quiser falar ou de qualquer coisa assim de um animal, que
os antigos contavam.

LB: Antigos contavam, os antigos contavam a história de,


bom Canaimé já passou, né?

DF: Já. Já passou Canaimé.

LB: Já passou Canaimé. Agora tem a história do que


chamam Curupira.

DF: Do Curupira é?

LB: Eh. Ele assobia na serra, na mata. Ele tem os cachor-


rinhos dele. O Curupira tem cachorro. Né, Eduardo?

EM: Hum hum.

LB: Ele assobia, cachorrinho corre do lado, corre em


qualquer caça ele na mata. Ele chama, mas nós nunca vimos.

DF: Nunca viram?

LB: Não.

DF: Ouviu falar de como que ele era?


LB: Ele era modo uma pessoa, mas não sei como é que ele
é, né. Antigamente, a gente não podia andar perto daquela
serra. O senhor viu aquela serra lá?
DF: Eu vi.
LB: Não tem aquela pedrona assim...
196 Projeto: Panton pia’
DF: Redonda?
EM: Eh, aquela redonda.
LB: É redonda. Ali, não podia passar, que meu pai que
contava né, que conta, que não podia passar uma menina
menstruada, não podia passar uma pessoa de luto que encan-
tava antigamente. Tinha que benzer urucum..., que a gente
bota na comida..., que nós chamamos de chipî.
DF: Chipî.
LB: Chipî, o velho benzia, passava por aqui no rosto todo,
nos pés, pra poder passar lá. Isso quando tava de luto e quan-
do a menina ou a mulher tá menstruada. Se não fizer isso...
DF: Acontecia o quê?
LB: Passa lá e o bicho ficava assobiando lá de cima: Fiu,
fiuuuu. Mas diz que é bem longe assim e aí a pessoa não
podia olhar pra lá. Se olha pra lá, já adoecia. [...] Com a con-
tinuação, como os brancos começaram a entrar em tudo, aí
o bicho, eu acho que se afugenta também. [...]Eh. Aí passa
é, é lugar de história.
DF: E do timbó, a senhora sabe a história?
LB: A do timbó é, timbó tem um pé dele bem grande, cor-
ta, pra matar o peixe. Antigamente só matavam peixe assim,
com timbó, aqueles pedaços assim. Bater, bater dentro da
água e... Como é que podavam, assim né, aquela golda de
timbó. Os peixes morriam tudo, assim que viviam os índios.
DF: A senhora nunca ouviu falar da história de como
nasceu o Timbó não?
LB: Não senhor, não sei não. Eu acho que o timbó veio
da mata, não é, Eduardo?
EM: Tem duas qualidades de timbó, tem timbó que
cipó, cipó mesmo, mas só que ele é muito forte. Quando
tá batendo ele, faz aquela roxidão. Aí pega, aquilo tudo
batido, faz aqueles feixinhos e leva pra água. Também se
tiver mulher gestante não pode ir no meio do pessoal que
vai botar o timbó.
Projeto: Panton pia’ 197

DF: Ah, é?

LB: E a pessoa de luto também.

EM: Pessoa de luto também. O senhor sabe que os peixes


desaparecem?

DF: Ah, é?

EM: Desaparece. Na... na... na... na... como é que chama


quando os peixe estão subindo? Como é? Piracema, piracema
? [...] Se na piracema a gente vai pegar peixe, se tiver alguma,
ou algum homem mesmo que a mulher estiver buchuda,
desaparece. [Risos]. O senhor acredita nisso? É verdade isso.
Se estiver uma pessoa de luto, a gente vai espanta caça na
mata, veado. Esses veados capoeira, porque são duas, três
veados. Como é? São três qualidades: tem veado capoeira;
o campeiro; e tem o veadinho da mata, pequeno assim. Aí a
gente vai, distância assim, aquele veado vem, o capoeira, eu
não sei que mistério ele tem, mas ele adivinha. Eu acho que
ele adivinha. Se ele chegar onde tá aquele senhor que tem
a mulher dele que tá buchuda, ele volta em cima da hora.
[Risos] Volta mesmo. Eh, história do pessoal, aqui do caçador.

DF: E pra ser bom caçador tem que fazer o quê?

EM: Pra caçador, a pessoa tem que... esse meu sogro


que ela tá falando que é o padrasto dela, quando a gente sai
pra pescaria e pra caçar, não têm aqueles lacraião grande,
chama lacraião não sei como é que chama, é escorpião, né?

LB: Escorpião.

EM: Isso.Tinha que ferrar. Pegar ele assim, e tinha que


ferrar o braço do pessoal que ia sair pra caçada. Caçar, eles
vão caçar. Matar veado e mata mesmo. Tudo eles faziam
os antigos. Hoje não fazem mais não. Se a gente levar uma
ferrada de uma lacraia hoje, vai morrer. [Risos] Então, isso a
gente já fez também. Corta o braço. Aí tem uma, tem uma,
tem uma...
DF: Cortar com o quê?
198 Projeto: Panton pia’
EM: Com uma garrafinha, um vidrinho pequeno, gilete.
Eles fazem uma misturada com a massa. Não sei que massa é.
Põe assim, aí passa no braço do pessoal que vão pra caçada.
Tudo isso existia. Hoje, como a gente tá falando, já tá mais...
o pessoal não tá mais ligando. Tá ligando mais é pra televisão
mesmo, jornal. Ninguém quer mais saber de flechar, fazer...
De primeiro, curumim desse tamanho vai querer saber de
ficar fazendo flecha pra, fazendo caniço pra ir pescar... Hoje
é difícil, é difícil fazer isso.
DF: Já nem faz mais, né?
EM: Nem faz mais.
DF: [...] E pimenta? Vocês usavam pra quê? Passavam no
corpo, no olho, alguma coisa assim pra alguma coisa?
EM: A pimenta, quando colocava a pimenta no olho, é
pra bicho não olhar a gente.
DF: Ah, pro bicho não olhar.
EM: É, né?
LB: É.
EM: É ela vai contar, porque ela sabe mais do que eu.
[Risos]
DF: Então, vai lá.
LB: Bom, da pimenta, por exemplo, a gente vai pra mata,
né. “Bora pra mata, lá pra roça, lá no Orocaima. Umbora.
Já comeram pimenta? Já. Coloca, come damorida, bem
ardosa.” Depois passa um pouquinho de pimenta no olho
que pro bicho não vê a gente, não pegar a sombra da gente
ou não pegar no rastro da gente. A gente vai embora não
acontece nada.
DF: Ah é?
LB: A história dos índios, né? Aí a gente não acontece
nada, tu vai na roça trabalha. Quando é hora de almoço, a
gente não pode passar a hora de comer que tem bicho que
dá, oferece comida pra gente, adoece, dá dor de cabeça, são
aquelas coisas. Já hoje, como seu Eduardo tava falando, que
Projeto: Panton pia’ 199

não, ninguém faz mais isso. Acabou.


DF: E se a pessoa fosse preguiçosa?
LB: A pessoa fosse...
DF: Não quisesse fazer. Tinha que fazer o que com essa
pessoa?
LB: A pessoa fosse pregui... É o menino ou a menina, tem
que botar pimenta.
DF: Botar aonde? [Risos em geral]
EM: Pode dizer.
LB: Eu posso dizer?
EM: Pode.
LB: Mistura, rala a pimenta. Tem pimenta canaimé própria
pra isso. Mistura com um pouquinho de massa, aquela pimen-
ta fica bem vermelhinha. “Curumim, você tá com preguiça,
passa pra cá! Abre a bunda aí e mete a pimenta.” Curumim
vai pra dentro d’água.
EM: Fica esperto e começa a correr.
LB: Fica esperto. Num instante procura água. Sai pulando.
Pois é. [Risos] Tanto faz, um menino como uma menina. É
era assim.
DF: Que acontecia. Hoje em dia não faz mais, né?
EM: Não faz não.
LB: Não faz não.
DF: É claro que a pessoa depois de uma dessa nunca mais
ia ter preguiça. [Risos]
LB: Pois é. É assim, né.
DF: Na outra comunidade eles contaram que eles passa-
vam no olho, quando a pessoa tá com preguiça.
LB: Eh. Do tempo que eu conheci foi assim. Botavam pi-
menta braba.[...] Tira a calça aí e abra a bundona aí e passa
pimenta. Queima toda. [Risos]
200 Projeto: Panton pia’
EM: Também serve pra outra coisa né. Quando a pessoa tá
passando mal, o curumim. Aí a mãe via, assim como o médico,
o médico não examina a gente? Eu digo porque em Manaus
o médico me examinou. Ele viu o meu corpo todo. Então, a
gente fazia o mesmo. Cuidava do filhinho né. Então, o bicho
tá comendo a criança pela bunda. Faz aquela massinha, e era
isso que os índios faziam.[...]

DF: Eu sei. A de Macunaima, a senhora sabe a história?

LB: Macunaima?

DF: Eh.

LB: Olha eu não sei bem de Macunaima não. Mas só ouvi


a história de Macunaima. Macunaima, meu pai fala que Ma-
cunaima, chama-se Macui. Uma hora ele fala que Macunaima
que chama aquele tiquiri que anda nas paredes.

DF: Ah é?

LB: Eh. Tu sabe qual é o Macunaima, seu Eduardo?

EM: Não.

DF: História do Xikî, também não?

LB: Não. Mas tem gente que sabe.

DF: Mas não tem problema isso.

LB: Tem gente que sabe. Já ouvi contar, mas não aprendi.

DF: E alguma história de bicho, por exemplo, a senhora


sabe assim de bicho que vira gente ou de bicho que fala, já
ouviu alguma história antiga?

LB: Sei não.[...]

DF: Da mulher que casou com o guariba? Nunca ouviu?

LB: Não, mas eu sei do relâmpago.

DF: Do relâmpago é? Como é que é?

LB: O relâmpago tinha uma filha muito bonita. É uma


história que eu sei.
Projeto: Panton pia’ 201

DF: Ah é? Então, é história assim que a gente quer ouvir


mesmo.
LB: Eh, do relâmpago. Por exemplo, seu Eduardo tem uma
filha bonita que ele é brabo né, ele é brabo. Faz de conta que
ele é o relâmpago, ele tem uma filha bonita. Chega, chega
outro animal. Ela era filha do relâmpago. Aí chega o Macaco:
“Fulana você quer casar com ele? Quer casar comigo?” “Não
sei. Você aguenta o desaforo do meu pai?” “Eu aguento.”
“Então a gente casa.” Aí ele ficava junto daquela menina. Lá
vinha o Trovão. Quando troveja assim.
DF: Eu sei.
LB: Peeei, pei... Que pega o relâmpago. Lá vem meu pai,
ela dizia. “Isso não é nada não.” Quando ele chegava assim
no terreiro que dava aqueles tiros, trovoada doida, o Macaco
por aqui. [Risos] Vem embora. Aí, chegou a Onça. “Menina
quer casar comigo?” “Caso sim, você aguenta o desaforo
do meu pai?” “Aguento.” “Ele é brabo, né, também eu sou
braba.” Aí lá vem o Trovão, dando, ia dando aqueles tiros.
Aí quando chegava pertinho a Onça ia embora. Aí chega o
quê? Poraquê. “Quer casar comigo, menina?” “Não sei. Caso.
Você aguenta o desaforo do meu pai? Meu pai é brabo.” Aí
ele disse assim: “É nada. Teu pai não é brabo não.” Aí diz
que lá vem o Trovão: Peeei, peei... Dando tiro. Aí, ela diz: “Lá
vem meu pai, lá vem meu pai. Chegou bem perto aí o, como
é que chama ele agora?”
EM: Poraquê.
LB: Poraquê levantou e se agarrou com o pai dela. Se
agarrou com o Trovão, botou o Trovão no chão, porque ele
dá choque. Aí o Poraquê ganhou a filha do Trovão.
DF: Foi é? [Risos]
LB: Eh, assim é a história.[...]
DF: É o peixe elétrico, né?
LB: Ele que casou com a filha do Trovão. É a história.
DF: O que significa Orocaima, a senhora sabe?
202 Projeto: Panton pia’
LB: Orocaima é donde existe muito papagaio.[...]

DF: O nome aqui...

LB: É Orocaima.

DF: É Orocaima, né? Depois que passou a ser Santa Rosa,


não é isso?

EM: Depois.[...]

DF: Aqui então tem história que era muita, que tinha
muito papagaio aqui?

LB: Tinha. [...]

DF: Ah é? A senhora lembra quando ainda tinha a presença


do pajé na comunidade?

LB: Lembro.

DF: E como é que era?

LB: O pajé ele era o médico, pajé era médico dos antigos.
É, aquela conversa que a gente puxou de Canaimé. A pessoa
que adoecia. Às vezes criança se assustava, passando mal ali.
Vai chamar o pajé lá da Curicaca ou da Santa Rosa. Aí o pajé
vinha, batia folha, cantava. Tem Maruwai que traz a sombra
da gente. Não sei se vocês, os senhores conhecem.

DF: Não, o que que é?

LB: Maruwai é...

EM: É uma resina de pau.

LB: É uma resina que ele é bem cheiroso.

EM: Bem cheirosinho. Pode fumar.

LB: Pra defumar as crianças. Às vezes derrete aqueles


pinguinhos dentro d’água pra criança beber.

DF: E faz o quê? Faz...

LB: Faz trazer a saúde das crianças. Essa é do pajé, né?


Tem a cantiga do pajé, do Maruwai.

DF: Como que é, a senhora sabe?


Projeto: Panton pia’ 203

LB: Eh, sei. Espera aí que eu vou contar. O pajé ele bate
folha, bate folha, bate folha. Ele fica cantando, a gente
fica acompanhando, que aí ele vai: “Criança tá assustado,
vam’bora buscar o espírito dessa criança ou daquela mulher
ou daquele senhor.” Aí começa a cantar.
Amîrî wîtî tane, amîrî wîtî tane, ashikî manon
Ayete’ tá’ ashikî manon
60
Todas as transcrições e
Manon yawon pa wamî pia ashikî manon. 60
traduções em macuxi fo- Suwooo! Suwooo!
ram realizadas por Rivelino
Pereira de Souza. [Enquanto você vai, enquanto você vai, venha filha
Na sua rede, venha filha
Filha, venha no meio de sua gente, filha]

LB: A gente chama o espírito. Vem cá; vem com teu pes-
soal, com teus irmãos; vem comer sua comida junto com
a sua família. É assim que a gente cantava, né. Hoje já não
existe mais.

DF: É tão bonita a música, não é?

EM: É bonita sim. É bonita e triste [Risos]

LS: É bonita.

DF: Mas é. É bonita e triste. E essa quer dizer o quê?

EM: Ela tá chamando...

LB: Tá chamando o espírito daquela pessoa.

DF: Traduz pra gente. Traduz tenta cantar em português


agora. A senhora sabe?

LB:
Yekaton anepî tane Maruwa, Maruwa manon yekaton
ene’kî
Maruwa, Maruwa, Maruwa wîkîrî wîtî manon yekaton
61
Dona Letícia não repetiu a
ene’kî
música, mas aparentemente
a completou Maruwa, Maruwa, suwooo! Suwooo! Asîkî Manon.61

LB: Maruwai, traz o espírito dessa criança. Ou da pessoa


que tá doente né?
EM: Vem com a tua mãezinha.
LB: Vem com a tua mãezinha enquanto nós estamos
204 Projeto: Panton pia’
chamando. Maruwai tá chamando teu espírito. Vem pra sua
rede, vem comer com sua família deixa a comida dos bichos
pra lá. Aí quando é noutro dia, a criança amanhece...
EM: Melhorzinha.
LB: Melhor.
LS: Elas que curavam... [...] Era assim mesmo que faziam,
elas assim.
EM: Canta de novo pra eles ouvi mais uma vez.
DF: Isso. [Risos] [repete a canção anterior]
EM: É assim como ela tá chamando assim: “Oh, vem cá,
vem comer com nós, deixa a comida dos bichos.”
DF: E outra? A senhora sabe mais alguma assim dessa, do
pajé,[...] alguma coisa mais? Algum canto mais?
LB: Eh, já esqueci, me esqueci.
DF: Esqueceu é?
LB: Esqueci.[...] Eh, eu me esqueci muita coisa que...
EM: É como a gente tá dizendo. A gente já tá usando
coisa dos brancos.
LB: Já estou esquecendo até parixara que a dona Fátima
diz que admirava em Boa Vista.
LS: Antigamente era o pajé que era o médico. Hoje, quan-
do as pessoas adoecem aqui...
DF: Antigamente era o pajé e hoje?
LB: Era o pajé.
DF: E hoje?
LB: Conheci Luís, pajé lá do banco. Pajé Geraldo Barbosa
que é meu tio e mataram ele em Boa Vista, envenenado. Ali
era pajé!
EM: Ele era pajé. Médico mesmo.
LB: É quase. Tem pajé quase médico. Ele era um dos que
existia ali, lá no São Jorge.
Projeto: Panton pia’ 205

DF: Qual era o nome dele?


LB: Geraldo Barbosa.

DF: Ele morreu como?

LB: Ele morreu assim olha, ele curava muita gente. Tinha
um branco, por nome Djalma, Djalma não sei de que lá, ele
morava no Surumu. Ele tinha ferida na perna. “Será que esse
pajé sabe mesmo?” “Geraldo vem ver aqui o que que ele
tem na perna.” Ele foi lá. “Ah seu Djalma, tá com pereba na
perna assim.” “Tu, tu reza pra mim?” “Rezo.” Ele rezou nas
feridas do seu Djalma. “Será que esse pajé, é verdade que
ele conhece mesmo? Esse pajé tá é mentindo. Peraí.” “Seu
Djalma, o senhor não vai comer galinha, não come ovos,
não come porco, carne de porco. Daqui uns dias mais, mais
tardar um mês, o senhor vai ficar sem comer dessas coisas.
Não come carne de gado, essas coisas, peixe, que porco faz
mal.” Geraldo foi embora pra casa dele dia. Passam uns dias...
aí vinha ele. “Eu quero ver se Geraldo adivinha mesmo.” E ele
comeu carne de porco, comeu galinha ele. A ferida tornou
a espocar de novo. Mandou chamar finado Geraldo aí ele:
“Seu Djalma, o senhor comeu porco, seu Djalma.” “Eu não
comi.” “O senhor comeu.” Aí eles começaram a teimar. E ele
tinha comido mesmo. Aí é donde ele acreditou. O branco, né?
Acreditou nele. Foi assim. Pra ele morrer, ele morreu em Boa
Vista, foi em cinquenta, cinquenta e seis. [...] Em cinquenta
e seis ele morreu. Então, ele tinha um conhecido, que tinha
uma comadre por nome Andrelina. O marido dela morreu e
ela se juntou com, com homem novo. Ele bebia muito, e ela
também bebia. Briga de casal né?[...] Ele vai coloca veneno
no, na bebida, na bebida. Ele sabia que ela gostava de beber.
Era pra matar ela. Aí o pajé chegou, [mas não adivinhou]. Ele
gostava muito de beber também, ele bebia muito. “Geraldo
tu não quer tomar café ou quer tomar café, café branco?”
“Eu aceito café branco.” Ela foi, ela deu um trago pra ele,
demorou o homem caiu. Quando ele sentiu, ele disse: “Olha
comadre, você me matou.” Quando ele tragou a cachaça,
ele disse: “A comadre me matou.” Aí ele morreu né, morreu
206 Projeto: Panton pia’
envenenado.[...]
DF: E qual é a história do parixara?
LB: A história do parixara, parixara já é dança. [...] A dança,
dança antiga. Tem tucui, tem areruia, tem parixara. Dança
parixara. São danças.
DF: Mas vocês dançam quando? Dançavam. Hoje em dia
dançam mais...
LB: Dançavam, né. Dançavam em tempo de Natal, dan-
çavam mais no tempo de Natal. Por exemplo, aqui é uma
comunidade indígena. Hoje não tá mais acontecendo como
o seu Eduardo fala, não tá mais acontecendo, por exemplo,
vai ter festejo de Natal lá na Curicaca. Aí o tuxaua de lá manda
convite pra cá, aí todo mundo se prepara pra ir pra festa.
Vai o senhor; vai ele; vai ela; mas tudo é homem, cinco, seis
homens. Lá estão seis homens preparados pra chegar, pra
chegada do, do como é que chama?
EM: Receber o pessoal de outra comunidade, né.
LB: Eh.
DF: Os visitantes.
EM: Isso.
LB: Tem um nome pra eles, como guerreiro tem [um
nome], esqueci o nome. Aí vão pra lá. Chega lá tem tabatinga.
Eles começam a se pintar de tabatinga, né? Barro branco.
Se pinta. Aí corre. Lá vem o pessoal. E as mulheres ficam
aqui preparadas. Não deixa o homem entrar, se entrar pra
dentro de casa, se o homem entra e escapulir da mão de
outro homem, ele vai lá dentro beber caxiri lá dentro. Pra
não deixar ele entrar lá dentro, aí lá vem o homem, aí lá vem,
pega o homem, pega homem. Como é que chama quase
como queda de corpo. Como é que chama, eu já esqueci o
nome. Aí deita aqui no ombro do outro, aí o outro agarra.
Aí o outro agarra, e o que tá esperando tem que agarrar o
que vem chegando; aí suspende; aí pronto. Mas tem vez que
quando escapole daqui, ele procura entrar dentro de casa.
Aí para todo mundo, aí já vem o pessoal, já vem cantando de
Projeto: Panton pia’ 207

lá o parixara. Aí as pessoas levam pra ir encontrar os outros,


com cuia de caxiri, beiju; e andam cantando também. Aí se
encontram, entram dentro de casa e fazem a roda e vão
dançar parixara.
DF: E como que é a música do parixara?
LB: Parixara? Parixara tem, é cantado né.
DF: E como é que é? A senhora poderia cantar pra gente?
LB: Canto. [...] Vou cantar assim né, meu pai me ensinou
assim. Eu aprendi a cantar há pouco tempo e eu me esqueci
que o vovô me ensinou. Eu cantava, que eu aprendi, que eu
fui ensaiar os meninos em Boa Vista e cantava.
Shosi tá î’ku pîu ya tane (bis)
Arerui ya, ikukî u’pasî arerui ya i’kukî upa’sî
Shosi tá î’ku pîu ya tane (bis)
Arerui ya, ikukî piipi arerui ya i’kukî piipi

[Enquanto eu canto na igreja, (bis)


Aleluia, cante minha irmã, Aleluia.
[Enquanto eu canto na igreja, (bis)
Aleluia, cante meu irmão, Aleluia.]

LB: É assim[...]
DF: Aí fica cantando e dançando?
LB: É todo mundo fica dançando pra lá e pra cá.
LS: Já tem outra. Tem outra música?
LB: Tem.
LS: A senhora lembrou agora?
LB: Estou lembrando devagar.
DF: É. A gente não tem pressa não.
LB:
Shiso, Shiso ya purîu ya sîrîrî pe penane (3 vezes)
Shiso, Shiso morî antî kî sîrîrî pe penane
Shiso, Shiso u’pî katî kî sîrîrî pe penane (bis)
Oi, oi, oi…
(Tawon senî’ kraiwa, eserenka’to)

[Cristo, Cristo eu te lebarei hoje e amanhã (3 vezes)


Cristo, Cristo me abençoe hoje e amanhã
208 Projeto: Panton pia’
Cristo, Cristo me ajude hoje e amanhã. (bis)
Oi, oi, oi...

(É assim que eu canto, branco)62] 62


Essa frase não pertence à
música e foi dita em tom de
[Risos] ironia com o entrevistador.

DF: E quer dizer o quê? Eu não sei macuxi.


EM: Não.
LB: “Você é branco. É assim que eu canto pros brancos.”
DF: Como?
LB: “É assim que eu canto, branco.” Eu estou dizendo
pros senhores.
EM: Ela tá dizendo pro senhor.
DF: Eh. Tá vendo? Se eu não perguntasse? [Risos]
LB: Pois é.
EM: E aquela do vovô? Eu acho bonita.
LB: Eu esqueci homem. Eu estou esquecendo.
EM: Eu acho bonita aquela música dele.
LB: Tem outra aí.
Iwareka piipî uri tumai (bis)
Arau’tá piipî urî usan purari,
Iwareka piipî usan purari
Iwareka piipî urî tumai (bis)

[O couro do macaco é minha damorida (bis)


O couro do guariba é o meu tambor
O couro do macaco é o meu tambor
O couro do macaco é minha damorida (bis)]

[...]

EM: Explica pra ele o que quer dizer.

DF: Que quer dizer?

LB: É, é...

LS: Em português.

LB: Em português: “Macaco é comida dele. Tá cantando


Projeto: Panton pia’ 209

que “Macaco é comida dele. Como é? “Couro de macaco é


tamborzinho que o índio faz.” né? “Couro de macaco é meu
tambor.” Já “Couro de macaco é minha damorida”, que diz.

DF: Ham ham.

Música.

LB: Iwareka piipî uri tumai, Iwareka piipî uri tumai é da-
morida. Usan purari é tambor. Uri tumai é damorida. “Coro
de guariba é meu tambor”, né? “Coro de guariba é minha
damorida.” São só essas duas palavra, são quatro aliás, né.

[...]

LB: A música do vovô eu esqueci mesmo.

EM: É. Ela canta a música do vovô e agora no momento


ela não lembra.

LB: Num lembro. Agora eu lembrei que canta muito em,


em Natal né? É... Natal chama-se krishi moshi.
Krishi moshi pokon inîpî man (bis)
Are, are, ru ya; are, are, rui ya (bis)

[Os que são de Natal estão chegando (bis)


Ale, aleluia; ale, aleluia (bis)]

LB: É assim que é o canto.


DF: Ham ham.

LB: De Natal.

DF: Areruya é Aleluia, né?

LB: Areruya é Aleluia né.

DF: É Aleluia né? Não, tá certo assim. É a nossa aleluia,


não é? E fala de que essa música?

LB: Fala de Natal. Krishi moshi é Natal. [...] Areruya é


aleluia, é da música

LS: E aqui na comunidade ainda faz muito isso no Natal,


pelo menos assim uma vez ao ano?

LB: Porque não fazem mais. Aquilo que eu tava contando


210 Projeto: Panton pia’
agora, a gente tempo do tuxaua Valci, que fez esses ensaios
de parixara. Aí foi tempo que eu perdi a vista, né? Que eu não
posso mais dançar mesmo. Já estou toda aleijada, sei lá. Bom,
aí de hoje por diante eu não vou mais ensaiar. Quem dirige
parixara agora é professor Ário. Ele que tá ensaiando, não
sei se ele ensaia. Quem deve saber é o tuxaua, quem manda
aí é o tuxaua, né? [Risos]

LB: É, é o nosso capitão daqui. Ele deve falar alguma coisa


sobre parixara aí pra comunidade. Mas foi bonito o tempo
em que eu trabalhei. Eu tenho foto aí. Quando eu... tenho
foto do Neudo Campos, quando ele era governador. Foi do
tempo do Neudo. A gente trabalhou...

DF: E a senhora lembra mais alguma música? Qualquer


uma que a senhora lembra relacionada a alguma história?
Por exemplo, o caxiri. Tem um história pro caxiri ou não tem?
Uma história assim de como ele surgiu?
LB: Caxiri é, ele é feito assim da mandioca. Caxiri, a gente
arranca; pega; tira a goma; deixa pra espremer no outro
dia. Aí no outro dia, espreme, faz o beiju. Tem o tempero do
caxiri. Moi aquela folhinha de maniva, moi bem moidinho.
Mistura com a massa; torra bem a massa pra misturar o pó da
maniva. Aí, pega a folha de bananeira; coloca no chão assim;
bota carvão ou a cinza quente por de baixo. Aí abre a folha
em cima. Pega o tempero, aí bota por cima da folha. Molha
o beiju, bem molhadinho, aí vai colocando, vai conversando.

DF: Conversando o quê?

LB: Conversando com beiju, com o caxiri. “Amadurece


bem. Se você não amadurecer eu vou te jogar pra cachorro
comer, pra galinha comer. Você não vai se zangar. Olha o
pessoal vem aí pra tomar caxiri, pra chegar em casa: Oh, caxiri
gostoso.” [Risos] É, a gente conversa assim. Eram os antigos
que conversavam. Aí coloca de novo o pó, vai colocando.
Cada camada, vai colocando o pó. Aí terminou, tem que
colocar folha de novo de maniva em cima, que é pra abafar.
Passa o quê? Deita hoje; passa amanhã; depois de amanhã
Projeto: Panton pia’ 211

que vai levantar. Enquanto o caxiri não levantar, não tirar


do chão assim, quer dizer, das folhas, aí aquela pessoa que
deitou o caxiri não pode tomar banho.

DF: Ah é?

LB: Eh. Tem que passar um dia. Hoje deitou pajuaru, o


nome é pajuaru, né...do caxiri. Não pode mais tomar banho,
passa o dia e a manhã sem tomar banho. No dia que tira o
pajuaru, aí que vai tomar banho. É a história do caxiri.

DF: E se a mulher fazer o caxiri e não dá certo assim? Tem


alguma, alguma coisa que faz pra ela começar a acertar?

LB: Tem, porque se não tiver bem assado o beiju, não


amadurece, fica azedo.
DF: É porque assim, contou uma senhora lá que, por
exemplo, a mulher pega uma [navalha]; a senhora mais velha
pega a mulher, corta aqui [parte interna dos lábios] assim
nela, passa alguma coisa, aí depois que fizer essa...

LB: Não, corta aqui.

DF: É aí.

LB: Eh.

DF: É isso que eu quero saber.

LB: Eh, antigamente cortavam o braço assim, a mãozinha,


botava aquele sangue. Aí passava mel de abelha, pro caxiri
amadurecer bem madurinho. Às vezes, uma pimenta bem
leve com o mel. Pra quando deitar caxiri, caxiri amadurece.

DF: Então, é isso que fazia?

LB: É, isso que fazia. Aí depois que deitar o pajuaru, tem


algodão pra fiar, tem aquela coisa, né? Porque quando o
caxiri amadurece, cria aqueles pêlos brancos. Quando esta
bem madurinho, ele cria aqueles pêlos bem branquinhos,
algodão assim. Pode contar que o caxiri tá maduro. Bem
docinho. Parece assim que a gente colocou açúcar. É só isso
a história do pajuaru.
212 Projeto: Panton pia’
DF: E a, os meninos, vamos ouvir do senhor. Por exemplo,
na época do senhor ou a senhora mesmo, quando o menino
tava começando a virar rapaz, tinha algum ritual ou alguma
coisa que faziam?

EM: Dos meninos?

DF: Eh.

LS: Pra ele ficar guerreiro, corajoso.

DF: Tinha algum ritual, alguma coisa que faziam com os


meninos, que os antigos faziam ou não?

LB: Fazia.

EM: Fazia sim.

DF: Vocês lembram? A senhora lembra?

EM: Eu não lembro quase não, mas existia isso.

DF: Um ritual?
EM: Eh.
DF: Depois daquilo, era quase como que ele fosse aceito
na comunidade como homem, como guerreiro, não é isso?
EM: É.
DF: A senhora lembra o que faziam com eles, alguma
coisa?
LB: Bom, o rapaz, quando ele tá ficando rapaz, os velhos
curavam, com a pimenta, cortavam tudo, botavam pra caçar.
“Eu vou botar seu Eduardo pra ir pescar.” Primeira vez que
ele vai pescar, né. Já fizeram trabalho com ele.
DF: E como que era o trabalho?
LB: Pimenta ou tajá, tem o tajá que eles fazem. Lava o
braço, ferra com a lacraia, como ele tava falando. Tanto fazia
mulher como homem também fazia, dava uma ferradinha
de lacraia. Às vezes ferrava com aquele tucandeiro que cha-
mam. Já hoje não existe, existia muito. Aí vai o rapaz. Vai seu
Eduardo, vai, vai caçar, leva a espingarda, leva seu caniço e
vai pescar. Aí ele vai pescar, ou traz veado ou peixe mesmo,
Projeto: Panton pia’ 213

ele chega com a caça dele. Ele não vai ter direito de comer
a caça que ele matou.
DF: Não?
LB: Não. Senão ele fica panema. Não mata mais caça.
DF: O que é panema?
LB: Panema é, como é que, não mata mais. Nem peixe se
ele pegar ele não come.
DF: A primeira vez.
LB: A primeira vez. Se ele pegar não tem o direito de
comer a caça dele. Assim, assim mesmo menina. Menina,
quando ela se forma primeira vez, ela não tem direito assim
de conversar com rapaz; não olha pra gente; tem que armar
rede dela bem alto, que pra quando chegar homem ou rapaz
não ver. É proibido ela olhar pras pessoas. Aí ela, por exem-
plo, ela menstruou hoje: “Ela tá menstruada.” “Então você
vai ser guardada.” Aí guarda. Isso era antigamente.
DF: Guardava como?
LB: Guardada é deixar lá dentro pra ninguém mexer com
ela, não conversar com ela. Arma redinha dela, bota bem em
cima, dessa altura assim, ela fica deitada.
DF: Quanto tempo a pessoa ficava?
LB: Uns três dias, quando ela termina menstruação. Passa
três dias, aí o avô ou pai trança olho de buriti assim pra ela
sentar em cima. Quando é de madrugada, cinco horas, ela já
tá melhor, né, senta ela naquele trançado, como um tapete.
Ela senta ali, ela vai fiar algodão, aí ela, já é cinco e meia, ela
trança de novo olho de buriti bem comprido. “Embora, você
vai tomar banho agora.” Chega lá na beira do rio, ela vai levar
três tacadas de olho de buriti.
DF: Olho de buriti é o que? É uma...
LB: É trança.
EM: Cipó.
LB: Como é, modo dum cipó. Palha de buriti, eu chamo
214 Projeto: Panton pia’
de olho.[...] Trança, aí o pai dá três tacadas na menina, aí ela
cai na água, toma banho e vai embora pra casa. Aí quando
ela vai ralar mandioca, é benzido, o pai benze pra poder ralar
mandioca. Aí manda ela cantar.
DF: Cantar o quê?
LB: Cantar, quando ela vai cantar, ralar a mandioca ela
tem que cantar.
DF: A senhora não lembra a música não?
EM: A música da mandioca, ela sabe.
LB: Sei, sei.
DF: Então, é isso, a senhora poderia cantar pra gente?
LB: Canto sim. Aí ela vai ralar a mandioca. Aí a mandioca
tá benzida. Não acontece não. Se a gente pegar trabalho
assim, às vezes: “Ai, meu braço tá doendo!” “Ai aqui tá me
doendo!” “Minha mão tá doendo!” Pra não acontecer isso,
tem oração pra isso, que benze. Aí ela vai. Taí a mandioca.
Tá benzido vai ralar essa mandioca. Tá bom. Aí ela pega ralo
e vai ralar. Ela começa a cantar assim.
Ariike’ kai’ma sane (bis)
A’piya uyawi’shi rumpa’ pî
Ariike’ kai’ma sane (bis)
A’pi ya uyawi’shi rumpa’ pî
Mîrîrî warantî e’seren ka’ pîtîpî

[Pensando que eu era trabalhadora (bis)


Teu irmão me namorou
Pensando que eu era trabalhadora (bis)
Teu irmão me namorou.]

LB: Ela começa, ralando mandioca, né [faz um som, imi-


tando o ralar mandioca]. Aí ela continua.
Ariike’ kai’ma sane (bis)
A’piya uyawi’shi rumpa’ pî
Ariike’ kai’ma sane (bis)
A’pi ya uyawi’shi rumpa’ pî
Mîrîrî warantî e’seren ka’ pîtîpî

DF: E quer dizer o quê?


LB: Meu primo pensa que eu sou, eu sou esperta, sou
Projeto: Panton pia’ 215

trabalhadeira. Ele tá se namorando de mim.


DF: Ah é?[Risos].[...] Viu que história bonita, né.[...]
LB: Pois é assim.
EM: Pois é doutor, é assim que..., mas que nós já pegamos
já quase...
LB: Já quase no final.
EM: No final dos velhotes, mas a gente viu ainda. Enten-
deu mais ou menos como é que a gente ia pra pescaria e
chegava. Ainda alcancei andando com meu sogro. A gente ia,
a gente saia pra pescaria, a mulherada fazia, ficava fazendo
pajuaru. Quando a gente vinha chegando com o jamaxim
de peixe, as mulheres iam encontrar a gente no caminho.
De lá, quando, onde a gente parava, elas entregavam caxiri
pra gente. Aqueles baldes de caxiri. A gente ia beber, aí elas
tomando de conta do peixe. Aí elas já iam comer ou o que
elas quisessem. A gente só ia só beber mesmo.
DF: Só fazer farra?
EM: Fazer farra, farrear. É assim que a gente, eu gostava
muito e gosto ainda de pescar. Eu gosto de peixe, da pescaria.
Não aguento mais andar. É muito longe.
DF: E rio aqui é longe?
EM: É longe, é longe pra andar.
DF: Lembra de alguma, mais alguma história especial
dessa aí? A da maniva a senhora já falou [...] Tem mais alguma
coisa que a senhora lembre? De alguma, alguma comida, por
exemplo, do que a senhora fez é o beiju né? [...]
LS: E peixe? Tem, às vezes, tem peixe que tem história, né?
LB: Não sei de peixe também não.
DF: Assombração ou alguma coisa assim?
EM: A história do peixe, dizem que o, a pessoa né, a me-
nina ela duvidou muito, então o surubim, o surubim dizem
que é a batata da perna da menina.
216 Projeto: Panton pia’
DF: Mas por quê?
EM: Porque o surubim ele é igualzinho à perna duma
pessoa. Ele é barrigudo e pra cá é fino. Aí eu não sei como é
que... ela é comprida. Eu não sei, sabe. Aí já ouvi falar que é
uma história do peixe que virou...
DF: Que veio da batata da coxa da menina.
EM: Da menina.
DF: Porque ela duvidava, eh?
EM: Duvidava. Realmente o surubim parece mesmo perna
de gente, o surubim [Risos]
DF: Tá certo. E como que a senhora se sente hoje, por
exemplo, dessas coisas que a senhora contou, praticamente
não faz mais nada?
LB: Não.

DF: Como é que a senhora se sente assim com...

LB: Eu me sinto assim é... Às vezes eu me alembro, né,


eu canto, aí eu não canto mais. Eu me sinto assim um pouco
triste, por não poder mais fazer nada, né. Me lembro meus
trabalhos tudo parado.

DF: Que trabalho?

LB: Eu, eu fazia pote.

DF: Ah pote!

LB: Panela de barro. Tudo foi. Acabou.

DF: A senhora nunca mais...

LB: Tá vendo aquele potezinho do lado de cá? Isso aí é


minha obra.

DF: Ah, lindo ele. A senhora não faz mais então os potes,
né?

LB: Não. Não faço, porque meu marido não quer mais que
eu trabalhe assim, por causa das mãos, que eu estou cheia de
reumatismo. Aí ele me ajudava, tirava barro né, batia barro
Projeto: Panton pia’ 217

aí pra mim. Teve o começo de trabalho dos alunos aqui. Foi


bonito, mas acabou em nada.[...]

DF: Então, qual outro trabalho que a senhora fazia?

LB: Trabalho, fazia trabalho de branco. Eu costurava


muito.

DF: Costurava muito. Gostava de costurar?

LB: Gostava de costurar. Eu fui até instrutora daqui, das


mulheres daqui. Cada qual ganhou seu diploma de costureira,
[...] mas não continuaram, acabou em nada. [...] Isso aí foi
tempo da Sueli, dona primeira dama, do Neudo Campos. A
gente trabalhou. Aí acabou. Aí passamos pra artesanato de
barro. Acabou também.
DF: Acabou também?
LB: Acabou.
DF: O artesanato a senhora fazia desde antigamente,
desde sempre?
LB: Desde quando a minha avó me ensinou. Eu não fazia
bem feitinho como ela, mas fazia.
DF: Qual o nome dessa avó da senhora?
LB: Cecília, lá do Barro.[...] Já morreu tudo. É, minha mãe...
DF: Quais histórias ela contava pra senhora?
LB: Ela contava história pra mim que, quando ela ia mor-
rer, ia deixar essa lembrança pra mim.
DF: Que é o quê?
LB: Que é panela de barro, [...] trabalho né, de barro.[...]
Ia morrer e ia deixar pra mim. É assim. Trabalhar de roça, ela
era uma mulher, mas trabalhava muito. “Quando vocês se
criarem, vocês casam com homem trabalhador pra vocês não
sofrerem, aprender a fazer farinha, aprender a fazer beiju,
aprender a fazer o caxiri.” Tudo isso ela ensinava, dizia pra
gente. Agora, quando ela ficou velha mesmo, que começou
a chegar branco, ela dizia: “Olha”, uma coisa assim até hoje,
isso aí eu me lembro bem. Uma coisa assim, parece que man-
218 Projeto: Panton pia’
daram uma carta pra ela, eu não sei, ela dizia: “Olha vocês
vão ficar nesse mundo...” “Vocês vão ficar, aqui nessa terra,
vocês vão sofrer. Vocês vão brigar com branco, branco vai
surrar vocês, branco vai tomar terra de vocês.” Tudo isso ela
dizia. Dizia, parece assim uma coisa que ela recebia assim
uma mensagem.
DF: Ham ham. Ela falava sempre isso.
LB: Ela falava, minha avó. “Vocês vão sofrer. Eu não vou
mais ver não, mas vocês vão ver o sofrimento que vocês vão
passar, uma crise que vocês vão passar que os branco...”,
desculpa eu falar isso que as brancas tão aqui que são vocês.
Mas não são todos os brancos que... a gente tá sabendo que
não são todos os brancos que têm raiva da gente.
EM: É verdade.
LB: A gente também gosta dos brancos, mas nem todo
branco gosta da gente. “Vocês vão sofrer nas mãos de
branco.”, ela dizia isso. “Vai vim branco, vai vim soldado, vai
vim delegado.” Quando ela morreu, já tinha delegado aí no
Barro. Ela dizia isso. “Vocês vão embora daqui e vão deixar
a terra de vocês pros branco.” Dito e feito. Tão brigando
aí por causa do Barro, que não é lugar de índio. Tudo isso
acontece.[...] Ainda estou existindo pra contar história que
a minha avó dizia.
DF: Então. É justamente isso que a gente quer ouvir, pra
gente registrar isso. Pensar o que sua avó falava, como que
ela pensava, como que ela via as coisas.
LB: “Rezam. Vão pra igreja, satanás não perseguir vocês.”
DF: Ela falava isso?
LB: Ela falava: “Makui ya aye’tá namai, makui mîkîrî.”
Demônio que tá andando atrás de vocês.
DF: Ham ham.
LB: “Makui” é demônio, o diabo que ela chama? “Rezam.
Vão pra igreja.”
LS: Na língua macuxi?
Projeto: Panton pia’ 219

LB: Na língua macuxi, “makui” é demônio.


LS: Ela também era católica?
LB: Era, demais. [...]
LB: Pra mim dá saudade do meu povo que foi embora.
DF: Claro que dá.
LB: Estou por aqui não sei nem como Deus me deu essa
sorte de ainda contar essa história pra vocês.
DF: Qual foi a coisa mais feliz que a senhora viu até
hoje?[...]
LB: Bom a coisa que mais...
DF: Que a senhora lembra como uma coisa boa, que acon-
tece com a gente? Tem alguma coisa que a senhora lembra?
LB: Eu. Coisa boa que, que, que aconteceu, que, que do
passado que eu vivia com meus pais, minha avó. Quando a
gente saía pra pescaria, como ele conta, né, que levava caxiri.
DF: Como que era essa pescaria?
LB: Pescaria assim é, quando nós éramos meninos... “Va-
mos de canoa, os caçador vão por aqui, os pescador pegavam
peixe.” A gente chegava numa paragem, com a minha mãe,
com a minha avó, fazia aquele jirau assim pra panhar peixe.
Fazia moquém de capivara, de veado, de peixe.
DF: Moqueava como?
LB: Moqueava assim, assar peixe na brasa. [...] É, com a
quentura da brasa assim, assava o peixe pra comer. Quando
a gente ia embora, botava dentro do jamaxim. Conhece?
DF: Não.
LB: Jamaxim?
DF: O que é o jamaxim?
LB: Jamaxim já é que branco chama. A gente chamava
de panacu.
LS: É o quê? É uma cestinha?
220 Projeto: Panton pia’
LB: É.
LB: Meus jamaxim estão todos jogados por aí. É uma
trança de arumã. Faz assim...
DF: Ah, eu sei. Que joga nas costas?
LB: Isso.
DF: Ah, eu sei o que é.
LB: Botava ali e a gente ia embora. Pras suas casas, cada
qual. Não tinha, como o Eduardo tava contando, não tinha
branco pra proibir a pesca dos índios, era liberto. Tinha muita
caça, pato, capivara, jacaré tudo enrolava. Como é aquele
passarinhozinho?

DF: É mutum?

LB: Mutum. Mas a gente era mais feliz antigamente, tudo


tá acabado, né. Eu me sinto assim triste por não ter parceiro
pra conversar comigo, pra contar história.

DF: Pra juntar assim o grupo, né?

LB: Pra juntar o grupo.

DF: Eu tava lendo esses dias uma coisa bem bonita. Aí


tava lá dizendo assim que se a gente não contar, não ficar
contando as histórias um pro outro, elas morrem.

LB: Esqueci de dar o meu nome indígena...

DF: Ah, como é o nome da senhora indígena?

LB: Tî wa’.

DF: Significa o quê?

LB: Trempi.

DF: Trempi é o quê?

LB: Trempi é três...é coisa assim de fazer fogo.

LS: É fogo no chão, é uma trempi.

LB: É três pedra. Uma aqui, outra aqui.

DF: Ah, sei o quê que é. [...] Tem nome indígena também
Projeto: Panton pia’ 221

ou não?

EM: Tenho não senhor.

LB: Que é fogão dos antigos, né. Aí a gente coloca o fogo


e faz damorida, faz essas coisas.[...]

LS: Assim, na época da avó da senhora, quando ela fazia,


dizia essas coisas que vocês iam sofrer de branco, que vocês
iam ser surrados, que iam brigar pela terra, já existia a pre-
sença da igreja lá na comunidade?

LB: Já.

LS: Já existia padre já?

LB: Já, já existia. O meu pai conta que, que ele, primeiro
padre que andou por aqui, padre alemão, ele fala assim nome
dele é Dom Preau, né Eduardo?

EM: É.

LB: Dom Preau. Isso aí eu não alcancei. Quando me en-


tendi, conheci padre Dom Alcino.[...] Isso. Padre Dom Alcino.
Foi ele que me batizou também. Aí de lá pra cá que começou
a mudar. Tempo dos índios já conheceu os brancos. Mas ele
falava macuxi.[...]

DF: A senhora lembra como era, se tinha algum culto


antes da religião? Que ele já chegou depois não foi? A reli-
gião católica nem sempre existiu aqui? Ela veio junto com os
brancos, não foi?

LB: Eu acho que sim.

DF: Então, ela veio junto.

LB: Porque quando eu me entendi já existia católico, né?

DF: Então.

LB: Aí, o que existia antes, eu não sei.

DF: Nunca ouviu contar de como que era, nada?


222 Projeto: Panton pia’
LB: Não, não. Agora, faziam culto em macuxi.

DF: Em macuxi.

LB: Mas aí, quando me entendi rezavam em macuxi.

LS: Mas já as orações do... que os brancos passavam?

LB: Já dos brancos. Traduzido pra, traduzido em macuxi.


Antes mesmo, quando meus avôs, nunca me contaram.[...]

DF: [...] Vamos lá. Essa é a canção que a senhora falou


que era do seu avô?
LB:
Akan nîkî tami paran inîpî man, kra shosi
Akan nîkî tami paran inîpî man, kra shosi
kra sho, kra sho, kra shosi, kra shosi

[tá vindo água do mar que não é boa


tá vindo doença aí,
cristo cristo meu cristo cristo meu]
DF: E o que que significa?
LB: Akan nîkî tami paran inîpî man. “Olha gente vem
doença. Vem doença aí”. kra shosi, que diz. Akan nîkî tami é
olha vem doença. É isso aí que ele canta kra shosi / kra sho,
kra sho, kra shosi, kra shosi.
Projeto: Panton pia’
Entrevistado: Lucinézio Peres Ribeiro
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Assistente de Entrevista: Lucimar Sales (LS)
Local: Comunidade Santa Rosa, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 10/10/2008
Transcritora: Keyty Almeida de Oliveira
Conferência de Fidelidade: Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 32’’33’’’
Projeto: Panton pia’ 225

DF: Qual é o nome do senhor?


LR: Lucinézio Peres Ribeiro.
DF: Lucinézio Peres Ribeiro. Você é irmão do tuxaua?
Qual é a sua idade?
LR: 40.
DF: Você nasceu aqui em Santa Rosa mesmo ou não?
LR: Não, eu não. Eu nasci lá no lugar que o papai morava,
que era atrás desta serra aqui, por nome Iguapirá.
DF: Iguapirá.
LR: Iguapirá, um igarapé que passa lá e tinha uma casa lá,
uma roça. A gente nasceu lá e a gente veio pra cá nascido já.
E eu não estou lembrado de com quantos anos eu vim pra cá,
mas acabei de me criar aqui. Até hoje eu moro e trabalho aqui.
DF: De lá pra cá, você veio e ficou esse tempo todo?
LR: Eh, a gente ficou aqui. Até hoje a gente mora aqui.
DF: A sua primeira língua foi português ou foi macuxi?
LR: É o português, porque a gente hoje, hoje a criança
daqui, do futuro, tudo vai nascendo, vai tudo nascendo com
a língua portuguesa, porque você sabe, é como a Sebastiana
falou? A gente, a mãe e o pai, eles ensinaram desde criança,
e os filhos já nascem sabendo a palavra com a língua que
estão falando atualmente.
DF: E você é casado?
LR: Sou casado.
DF: Tem filhos?
LR: Tenho, tenho 08 filhos.
DF: E a sua esposa é macuxi também?
LR: É macuxi.
DF: Vocês têm, assim, esse incentivo pra que eles apren-
dam a língua macuxi ou só é o português?
226 Projeto: Panton pia’
LR: Assim, a gente já, hoje os meninos aqui na escola,
os professores vêm batalhando com eles, com as crianças,
pra ver se conseguem aprender, mas, pelo que eu vejo, não
estão conseguindo, não.
DF: Não estão conseguindo?
LR: Até porque, eu mesmo estudei, depois que a gente
estudou língua macuxi com os professores que vieram de
fora. Aí a gente, eu pelo menos não consegui assim falar, al-
gumas coisas é que a gente entende. E assim é como estão as
crianças hoje aqui na escola, tem professor de língua materna
que estão dando aula direto pra eles, semanalmente, mas a
gente não vê assim, até porque, assim, o pai não fala com o
filho e isso é a dificuldade. Até o próprio professor que dá a
aula, o filho dele não fala, aí é diferente do que a gente vê
ali na comunidade do Sorocaima I, Bananal. Ali é pai falando
com os próprios filhos dentro de casa mesmo. Aí, se fosse
assim também, com certeza tinha alguém. Eu não vejo aqui
uma criança que vem falar com o pai, o pai falar com seu filho
direito. Às vezes fala assim, na brincadeira, mas diretamente.
Se falasse diretamente, com certeza ia aprender mais. Hoje
não, só fala português direto, aí a criança se dedica mais ao
português.
DF: Você estudou na sua comunidade mesmo ou não
estudou?
LR: Eu estudei aqui mesmo. Eu parei, eu estudei até a
4°série, aí a gente não saiu pra estudar fora, porque todos
meus irmãos, que hoje estão trabalhando, eles foram estu-
dar fora. Aí eu fiquei aqui até que passaram 14 anos ou foi
mais, parece, sem estudar. Aí a gente voltou, porque veio o
EJA pra cá. Aí a gente voltou a estudar, a gente fazia a 5ª a
8ª, aí a gente tá no 1°ano hoje, até terminar o 3°ano. Estou
batalhando pra terminar.
DF: E você sabe um pouquinho da história da comunidade:
como ela surgiu, quando ela surgiu?
LR: Eh, essa história, é porque, eu não estou bem lem-
brado no momento, mas a gente já fez uma pesquisa disso
Projeto: Panton pia’ 227

daí com os próprios idosos daqui mesmo. Aqui o próprio


tio Eduardo [aqui presente], seu Vitalino, o vovô que tá lá
em Pacaraima hoje com 90 e poucos anos. Então, foi, e nós
temos isso escrito. Só que eu não estou lembrado aqui no mo-
mento a data certa, mas a gente fez um levantamento. Aqui
mesmo na escola tem isso aí, essa história da criação dessa
comunidade. É assim o que eu estou lembrado no momento,
porque a busca que a gente fez, e que estou lembrado no
momento, é que já existia antes, morava um pessoal aqui,
e eram poucas pessoas que moravam aqui. Então, com um
certo tempo, aqui chamava, o nome daqui era Orocaima, e
aí certo tempo vieram os religiosos, os padres, e aí já foram
mudando, já mudaram esse nome de Santa Rosa. E mudaram
de Orocaima pra Santa Rosa. Então, de lá pra cá foi assim,
essa evolução. Aí foi chegando mais gente aqui, só que eu
não tenho a data assim, no momento, mas a gente tem isso
aí escrito cada um que a gente pegou dos idosos, dos mais
velhos, assim, do jeito que vocês estão fazendo aqui, nas suas
buscas, consultando, um e outro, a gente montou um livro,
esse livro que a gente tem escrito na escola.
DF: Ah, na escola?
LR: Tem na escola. Aí o diretor Francisco, ele tem esse
livro escrito, ele levou e a gente fez, trabalhou esse projeto,
tipo assim, projeto. A gente fez um levantamento, aí levou
pra Boa Vista pra encadernar. Aí a gente tem esse livro na
escola, só que eu não estou lembrado no momento.
DF: E as histórias dos antepassados: sabe, ouviu falar,
dos antigos?
LR: As histórias, têm várias, muitas histórias, histórias de
animais, das terras, assim, conforme você tava perguntando
pra Sebastiana, do Macunaima, assim. Depois que a gente
começou a estudar, a gente viajou lá, pra ali, pro Perdiz, pra
Pedra Pintada. Aí a gente foi, a gente já tinha ouvido falar
nessas histórias, aí lá a gente foi, aprofundando mais, como
se diz, foi pesquisando mais como foi a história de Macunai-
ma, que passou por certos lugares. Lá no Perdiz, eles contam
a história de Macunaima; lá na Pedra Pintada, têm outras
228 Projeto: Panton pia’
histórias, que passaram muito tempo lá. O vovô, o vovô
conta uma história assim, ele fala assim pra gente: “Você fala
tanto em Macunaima, Macunaima é um diabo!”, fala assim
o vovô. Mas ele sabe da história todinha de Macunaima, o
vovô. A gente fala que Macunaima é um, é um homem que
andou em certos lugares, aí, então é assim, pelo vovô, ele
fala a história dele mesmo, como ele sabe. Não é como a
gente sabe, como já botaram em livro, um livro que tem as
histórias do Macunaima é diferente, mas a do vovô mesmo,
se você chegar a conversar com ele, procurar essa história de
Macunaima. [...] E ele, ele é de 1912, ele sabe muitas, muitas
histórias boas pra se contar.
DF: [...] E dessas histórias, qual você sabe e que você
acha boa?
LR: Essas histórias, assim, que a gente acha boa, a gente
acha todas. Só que, pra se contar correto como foi, eu não
sei bem ela não. Mas é bom que a gente colha essas histórias,
como hoje elas já estão até num livro, né? As crianças, que
nem, nunca nem, só ouviram falar assim, os meninos daqui
conhecem Macunaima como ali, só o Centro Macunaima, o
Malocão [risos]. Falar de Macunaima, eles pensam logo no
Centro Macunaima, mas só que eles não sabem da realidade
que foi o Macunaima. A criança de hoje, daqui pra frente não
vai saber o que é o Macumaima, mas no passado eles têm
uma história escrita profunda mesmo do Macunaima.
DF: E o que falta pra eles saberem?
LR: Falta pra eles voltarem a conhecer mesmo é a busca
dessa história e andar com eles em certos lugares como eu
falei: lá na Pedra Pintada, em certos lugares assim, nas terras
onde morou o Macunaima, passou deixando algumas trilhas,
com aqueles desenhos nas pedras. E dizem que foi o Macu-
naima que passou as mãos lá, deixou desenhado, dizendo o
vovô que aquilo ali era Macunaima, o tempo que passou lá.
Só o vovô pode contar essa história bem aí.
DF: Eh, eu queria conhecer esse vovô.
LR: [risos] Eh, o vovô sabe, quando a gente tá visitando
Projeto: Panton pia’ 229

ele, a gente tem que andar vivo. O vovô, só que é assim, o


vovô não tá mais, assim, como há dois anos atrás quando
a gente começou com o trabalho desses estudos, ele não
tá mais assim dessa forma. Ele esteve um tempo desse, ele
teve doente, então ele teve uma decadência muito grande,
até de memória mesmo. Ele tá...
DF: E como você vê a questão indígena hoje, você já
pensou sobre isso ou não?
LR: No sentido indígena?
DF: Eh, você hoje, você é um indígena, o que você gostaria
de falar a respeito...
LR: Como eu me sinto indígena?
DF: Eh, por exemplo, eu sou descendente de italianos.
Meus avôs vieram pro Brasil numa época lá. Mas ninguém fica
falando: “Você é italiano, você é brasileiro, não sei o quê.”
Eu sei que eu sou brasileiro e pronto. Mas o indígena, hoje,
ele tá no Brasil, tava antes, ele é indígena, tem uma lei pra
ele, a legislação específica indígena; mas ao mesmo tempo
ele é brasileiro, não é?
LR: Eh.
DF: Isso não dá certo nó na cabeça ou não dá, é normal?
LR: Eu acho que o indígena, hoje, tem um privilégio de
ser dado ao indígena liberdade no seu próprio território, não
é? Assim, porque ele, o índio, ele não tem fronteira, então
é uma liberdade que hoje ele tem na, assim, de o indígena
ele ter essa liberdade de usufruir do que existe na sua terra
e andar no seu território pra onde você quiser, né? Eu moro
aqui, aqui é a área São Marcos. Eu, como indígena, posso sair
daqui e morar lá, lá na Serra do Sol. Eu posso ir lá pra Raposa
Serra do Sol, é um privilégio que o indígena tem. Aí como
hoje o branco, ele mora lá, vamos dizer assim, vamos falar
do brasileiro, o brasileiro, hoje, pra ir morar lá no outro país
tem que ter [autorização]. Lá tá saindo no jornal que estão
botando [pra fora] um monte de estrangeiro. Não tem essa
lei que impede o indígena?
230 Projeto: Panton pia’
DF: Isso com todo mundo?
LR: Como assim?
DF: Por exemplo, você pode isso só no Brasil ou você
poderia fazer isso na Venezuela?
LR: Não, eu acho que só no seu território, no Brasil, né?
Porque com certeza que [...] é assim, o indígena no Brasil, é
como eu estou falando, eu acho que ele é livre pra morar, en-
tendeu? Mas até assim, pra ir pra outro país. Ele vai depender
da própria língua dele, se ele fala bem a língua espanhola ou
a língua lá dos taurepangues. Os taurepangues aqui do Soro-
caima, do Bananal, eles trafegam direto pra lá. Então, é uma
das liberdades de hoje. O indígena, ele tem muito hoje dessa
liberdade que ele tem, dentro da área demarcada, não é?
DF: Entendi. E a religião, você tem uma religião?
LR: A gente é..., a religião só é uma, o Cristianismo é
mundial. Mas só que dentro da religião já surgiram várias
outras. E que hoje faz parte da Igreja Católica. Então, essa
religião é também um dos problemas que acontece dentro
dos indígenas hoje, a questão de separação. Vocês que já
andaram muito, já perceberam isso? Assim, onde tem uma
religião, duas, três religiões na comunidade a comunidade
cresce e se divide.
DF: Entendi.
LR: Por que assim, a Igreja Católica hoje, fazer que nem
o outro, como a gente diz, é o que mais peca, né? Com exce-
ção de religião, Igreja Católica ou evangélica, assim, porque
o católico, ele faz tudo: bebe, fuma, dança, esse negócio
todo, né? Aí outros que são da Igreja Batista, aí não traba-
lham dia de sábado, só trabalham de domingo pra frente,
às vezes. Tem umas que impedem até de usar roupas, unha
pintada, esse negócio todo. Então, a religião hoje, ela vem
desculpando até a convivência dos próprios indígenas nas
comunidades. Vem fazendo com que a comunidade até se
divida, uma parte do bem outra da parte do mal [risos].
DF: Entendi o que você quis dizer. Outra coisa: você pas-
Projeto: Panton pia’ 231

sou por alguma iniciação indígena, assim, quando você virou


rapaz, ou não existia isso mais?
LR: Como assim?
DF: Por exemplo, a questão da puçanga. Você é novo,
40 anos, mas na sua época ainda teve isso pra você poder
caçar, pra poder...
LR: Não, não, eu nunca passei por isso não, mas já ouvi
falar muitas histórias.
DF: O que você ouviu falar?
LR: Assim, pra um cara ser caçador tinha que fazer, fazer
assim como o próprio vovô mesmo, assim, os idosos, pra ser
caçador, largar de ser preguiçoso tem que passar, tomar um
banho de pimenta, passar pimenta nos olhos, metia pimenta
na bunda [risos], é assim que os idosos falam.
DF: Já conheço essas histórias, já ouvi falar...
LR: Essa aí é mais ou menos o que eu ouvi falar da questão
de puçanga. Agora, já ouvir falar de ter planta aqui, que é
usada. Um dia desses, nós távamos falando de um camarada
aí, que o pai dele usava puçanga pra atrair mutum, pra atrair
traíra, pra atrair não sei o que mais, uns peixes assim. Um dia
desses a gente tava conversando assim, um cara lá que tinha
em frente de casa, né, aí a gente disse que ia contar umas his-
tórias do pai dele também, o [...], que é professor de macuxi.
Ele sabe das histórias que o pai dele usava e, assim, nunca,
nunca passou por mim. O papai falava pra gente fazer isso.
Acho que nem ele, o papai, nunca usou porque ele se criou
assim até com os fazendeiros, o papai se criou assim com
os fazendeiros. Depois que se juntou com a mamãe, passou
uns tempos, é que ele veio pra trabalhar na comunidade. Eu
acho que na época do vovô, com certeza, era dessa forma,
aí tem a história dele. Tio Eduardo morou muito tempo com
o vovô, ele sabe dessas histórias que o vovô passou que aí
já é de curar, colocar pimentas nos olhos.
DF: Você mora aqui na comunidade? Qual é a maior difi-
culdade que você tem aqui hoje?
232 Projeto: Panton pia’
LR: A maior dificuldade, dificuldade, que a gente vê aqui
na comunidade é uma desunião, assim, não a desunião, de
pessoas que vivem intrigadas com as outras. É, assim, uma
desunião que a comunidade não consegue mais trabalhar
em conjunto, sabe? E a gente, de uns tempos pra cá. Desde
a época do papai, quando ele trabalhava, ele era mais novo,
ele trabalhava de roça comunitária, mas desde lá já vinha
acontecendo isso. Porque ele me falou, assim, quando come-
çamos tinha uma grande quantidade de gente trabalhando
na comunidade, aí, com o final do trabalho ficava bem pou-
quinho. Assim, porque o pessoal via que tava trabalhando e
não tava tendo lucro do trabalho. Eu me lembro de uma roça
que eles botaram faz muito tempo,(eu não trabalho direto
na roça), botaram uma roça muito grande lá pra dentro,
muita gente botou, uma roçona. Aí derrubaram, da coivara
pra trás começou a dar pra trás. Então, é uma desunião de
trabalho, e não conseguem fazer um trabalho direto do
começo com a quantidade de pessoas pra terminar com a
mesma quantidade. Aí as pessoas vão desistindo, tem outra
coisa pra atrapalhar e vão desistindo. Então, é uma desunião
de trabalho na comunidade. Aí a comunidade vai, vai, vai, vai
enfraquecendo, assim. Até o próprio tuxaua mesmo conver-
sa com a comunidade, assim, porque tem o tuxaua, tem o
segundo tuxaua e tem o capataz. O capataz ele sabe que é
pra puxar o coelhinho aqui na comunidade. Até o próprio
capataz não puxa o coelhinho, assim, é uma dificuldade por-
que o capataz, hoje em dia ele estuda. O capataz era o meu
irmão, aí a gente tinha um projeto, digamos que eu vou falar
do ano passado. A gente trabalhou num projeto aqui que a
gente entrava da lavoura de mandioca que tava plantada.
Então, assim, eram envolvidas três comunidades e nem as
próprias três comunidades não se envolviam no trabalho. E
vinham dois, vinham três, vinham três, mas quem acabou se
matando foi a própria comunidade. O meu irmão, que é o
vaqueiro hoje que trabalha ali, é que era o capataz, se matou
trabalhando. Aí o pessoal já achava que ele tava ficando era
doido. O pessoal ficava olhando pra ele trabalhar e...
DF: Não ia junto...
Projeto: Panton pia’ 233

LR: ...não ia junto. Aí mudou de capataz e agora esse


capataz não tá mostrando trabalho. Então, é assim, uma difi-
culdade de união dentro do próprio serviço da comunidade.
Não é desunião assim de briga, não, é de trabalho.
DF: De conseguir fazer as coisas junto,
LR: De conseguir fazer as coisas junto. E a gente esteve
fazendo a farinha depois desse projeto, a mandioca já tá
tudo no jeito de fazer farinha e a gente conseguiu trabalhar
na farinhada; e juntou, parece que eram umas cinco ou seis
famílias, aí trabalhou. Aí os outros não estavam, era assim, pra
comunidade toda em união fazer um farinhada só e trabalhar
do começo ao fim, mas só que não aconteceu, foi uma parte
que fez, uma parte de dentro e uma parte de fora. Então,
assim, não tem essa união dentro da comunidade, então, é
uma dificuldade que a comunidade passa
DF: E uma coisa boa daqui da Santa Rosa que você gosta
muito. Uma felicidade...
LR: Uma felicidade? Rapaz, felicidade aqui, a felicidade
hoje aqui é a comunidade, hoje tem em mãos, [...] no caso,
se não fosse, não fosse assim essa semente que os idosos, os
velhinhos deixaram pra gente. No caso o Vitalino, que vocês
já passaram lá com ele; o vovô; o meu pai; aqui o Eduardo;
foram eles que adquiriram pra comunidade a felicidade da
comunidade, que tem essa semente em mãos, hoje. Que é
uma semente de pecuária que a comunidade tem hoje em
mãos. Se não fosse essa semente que os idosos deixaram pra
gente, então a comunidade com certeza tava lá em baixo. E
tava passando mais dificuldade ainda, então a felicidade da
comunidade hoje é esse projeto que os idosos deixaram pra
gente, ter plantado, ter semeado e colhido. Já a comunidade
hoje tá só usufruindo. Então, isso daqui pra frente é só tocar
o barco pra frente. É uma coisa que os idosos deixaram pra
gente, pros mais novos, né? Só administrar, porque eu vejo
que a felicidade da comunidade é isso, que tem um projeto
bom de memória.
DF: O que você pensa da entrada da tecnologia, da infor-
234 Projeto: Panton pia’
mação na comunidade? Se é importante, não é, como é que
você pensa isso?
LR: A tecnologia hoje é boa demais, no caso, vou já tocar
no assunto, do projeto, que a comunidade tem em mãos,
assim da tecnologia. O meu irmão Valcir, que foi o primeiro
tuxaua de três anos atrás, hoje ele trabalha num projeto, ele
é o, como é, o listador do depósito da região. Então, hoje ele
tá querendo, acima da tecnologia, ele quer trazer o benefício
pra comunidade, assim, ele quer trazer semente de rebanho
de fora pra usufruir dentro da comunidade, no caso, como é
que se chama, a inseminação. Então, é uma das tecnologias
que vão trazer daqui a alguns tempos, ele vai trazer pra
dentro da nossa comunidade, então a tecnologia é boa hoje
pra todo mundo, não é?
DF: O que é que você pensa sobre a vinda de computador
pras crianças, esse negócio todo?
LR: Ah, sim, então, acima desse computador é o que a
gente vê hoje é que a tecnologia ela vai derrubar um pouco,
assim, um pouco da tradição indígena. Aqui na comunidade,
uns tempos atrás os alunos faziam dançar muito a parixara,
de vez em quando apresentavam fora, hoje não, hoje já pa-
raram de dançar parixara. A tradição já tá ficando pra trás,
estão esquecendo. Então, já assim da tecnologia, os alunos
vão começar a fazer curso agora, a gente vai fazer curso
de informática. Antão vão com certeza abrir outras ideias,
vão ter outras ideias na frente e vão esquecer da tradição
indígena, hoje.
DF: Mas pode-se fazer alguma coisa, não pode?
LR: Pode sim, mas tem que ter uma pessoa daqui, de
dentro de casa. Se não tiver uma pessoa de dentro de casa
pra vir puxando isso aí ela vai esquecer, né? Assim, a tecno-
logia hoje é boa pra todo mundo, porque a gente vai, como
eu estou falando, vai abrir a mente, vai abrir a memória, vai
abrir benefício pra cima do estudo. Daqui pra frente, prin-
cipalmente o computador, aí você vai, o aluno vai estudar,
daqui um tempo ele vai arrumar um emprego em cima disso
Projeto: Panton pia’ 235

aí, pra se beneficiar. Então, acima disso, eu acho que a cultura


vai sendo esquecida.
DF: A cultura local...
LR: ...local. Se não tiver uma pessoa, assim, que persista
pra estar puxando essas informações, ela vai ser esquecida
[...]. Uma pessoa empenhada, mas só que de um tempo pra
cá ele tem esquecido um pouco porque tem muito trabalho,
é reunião pra um lado é reunião pro outro. A vovó era a única
pessoa que puxava esse trabalho, mas ela já tá idosa, tá bem
velhinha, não aguenta mais estar ensinando os alunos. Então,
eles vão partir pra informática, hoje. Dia 27 vai começar o
curso, então as crianças, os alunos vão entrar na nova era, né,
pra comunidade. Então, mas é bom pra cultura indígena hoje,
DF: Mas é bom arrumar um jeito de ter as duas coisas...
LR: Manter os dois, né, porque uma evolui direto, né, e a
outra não. Uma se mantém. Se não tiver aquela pessoa pra
estar mantendo aquela tradição, ela vai sumir e a tecnologia,
ela vai todo dia, ela vai evoluindo, né? É assim que eu vejo
essa questão da tecnologia pra hoje. É bom pra todo mundo,
porque o Brasil hoje, o Brasil não, o mundo, né, todo dia muda
a tecnologia e tem gente que diz que quem não acompanha
a tecnologia é cego e tem que estar sempre informado.
DF:[...] você tem uma opinião formada sobre a questão
Raposa, hoje? O que você acha disso, o que você pensa?
Consegue entender o que tá acontecendo direito?
LR: Assim, da Raposa Serra do Sol?
DF: Eh, em relação a ela.
LR: O que eu vejo assim, tem os direitos de como eu tava
falando, um direito de todos, de cada um brigar pelo que pre-
cisa, de adquirir essa conquista. Com certeza eles vão fazer
com que elas sejam ocupadas de forma como devem ser, né?
DF: O senhor tá falando dos indígenas...
LR: Dos indígenas. Através dos não índios, assim, porque
antigamente, eles, brancos, falavam que eles iam em paz
236 Projeto: Panton pia’
com os brancos, com os índios, mas isso é menos verdade,
porque hoje tem indígena que tem prova disso, né, como o
próprio papai mesmo trabalhou, não sei quantos anos com
os brancos e nunca deram um couro pra ele morrer em cima.
Então, hoje não, alguém já abriu a visão do indígena, e isso
não é correto, estamos sendo escravizados, estão usando a
força dos índios pra crescer, não é?
DF: Outro dia saiu uma entrevista no jornal, assim, por
escrito - Você conhece aquele tenente que lotou na II Guerra
Mundial, aquele taurepang, o tenente Paulino? Ele tava meio
indignado e falou o seguinte[...] “Por que que os índios po-
dem chegar em Boa Vista e entrar no meio de todo mundo e
por que, de repente, os brancos não podem nem, às vezes,
visitar uma comunidade?” Ele colocou isso lá. O que você
pensa a respeito disso?
LR: Assim, porque, eu penso que é dessa forma, é até
difícil de responder assim, porque o índio, ele anda no meio
de todo mundo lá porque certamente a gente não conhece
muito como andar, ainda mais se tiver mais ameaçado que
tudo aí. E o branco não, quando ele chega lá, ele vai lá pro
meio do indígena, o pessoal já fica de antena ligada: “Quem é
essa pessoa diferente aqui no meio dos índios? Ele tá caçando
alguma coisa.” Quando ele tá lá é porque tá querendo outra
coisa, tá interessado em alguma coisa.
DF: É porque a gente não pode chegar na comunidade e
entrar dentro dela, não é?
LR: Eh.
DF: Quer dizer, a gente não pode, mas o índio pode
entrar em qualquer local. E era ele mesmo, que é indígena,
perguntando isso, ele não reponde também não, ele só faz
a pergunta.
LR: Eh, um pouco difícil pra responder, mas o que eu
penso mais ou menos é isso.
DF: Então, tá certo.
LR: É imaginação, mas a pergunta é difícil mesmo.
DF: É difícil, não é?
Projeto: Panton pia’ 237

LR: Isso. Hoje nem todos os indígenas estão entrando


em certos lugares, porque tem muita gente com raiva do
indígena por causa da Raposa, não é? Às vezes, ele não é nem
da Raposa, mas quando se vê um índio já pensam que é da
Raposa, porque hoje em dia só falam na Raposa, só falam
em Raposa. Às vezes o cara não é nem de lá.
DF: Hoje em dia parece que só existe Raposa.
LR: É mesmo, todo indígena é da Raposa, hoje.
DF: Então, tá certo. Obrigado.
Projeto: Panton pia’ 239

Projeto: Panton pia’


Entrevistada: Sebastiana Peres dos Santos (SP)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Assistente de Entrevista: Lucimar Sales (LS)
Local: Santa Rosa, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 11/10/2008
Transcritora: Ana Maria Alves de Souza
Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti
Duração: 23’’10’’’
240 Projeto: Panton pia’
Projeto: Panton pia’ 241

DF: Qual é seu nome?


SP: Meu nome é Sebastiana Peres dos Santos.
DF: Tem quantos anos, Sebastiana?
SP: 44.
DF: Você é de qual etnia?
SP: Macuxi.
DF: A primeira língua que você falou era o quê? Era o
macuxi ou foi a língua portuguesa?
SP: Eu sou macuxi, mas não sei falar, só sei mal é portu-
guês mesmo.
DF: Qual o nome do seu pai?
SP: Meu pai já é falecido, o nome dele era Moisés dos
Santos.
DF: E de sua mãe?
SP: Julieta Soares.
DF: Os dois eram macuxi também?
SP: Não, meu pai era wapixana e minha mãe macuxi.
DF: Você nasceu aqui em Santa Rosa mesmo ou...
SP: Não, eu morava na Santa Inês, mas Santa Inês é região
do Amajari.[...]
DF: Você veio pra cá faz muito tempo?
SP: De lá pra cá eu estou com 21... 21 anos aqui.
DF: Aqui?
SP: Sim.
DF: Certo. Você é casada?
SP: Eu tive marido 17 anos, e estou separada há 8 anos.
DF: Ah... Tem filhos?
SP: Tenho. Eu tive sete filhos, perdi dois, agora estou
com 5.
242 Projeto: Panton pia’
DF: Tá com 5 filhos. Uma coisa que você já falou, que é a
parte da língua, você não aprendeu. Os seus pais falavam?
SP: Meu pai falava e minha mãe fala também.
DF: Ela fala ainda?
SP: Fala.
DF: Ela fala macuxi, porque ele é que era wapixana...
SP: Eh, ele era wapixana. Minha mãe é macuxi.
DF: Como você vê essa relação com a língua, hoje? O fato
de você ser macuxi e de repente não saber a língua, isso
atrapalha, ajuda?
SP: Não, assim, se eu soubesse falar a língua macuxi, pra
mim seria um prazer, porque minha mãe nunca me ensinou,
desde quando... porque eu tenho assim pra mim que a pessoa
aprende a falar quando tá crescendo, aprende a falar, né.
Já vai falando até quando, depois de velho... Assim, que eu
já vim estudar foi aqui, e não consegui mais. Não consegui
mais falar.
DF: Fluentemente.
SP: Isso.
DF: Você só entende algumas palavras?
SP: Algumas coisas ainda, mas não são todas não.
DF: Aquela questão das histórias da comunidade, os
mitos... a gente fala mito, mas pra muitas comunidades é a
própria história, não é?
SP: É.
DF: E a sua mãe falava pra você, não falava essas histó-
rias, assim, de Macunaima... nem sei se nessa comunidade
tinha isso.
SP: Não.
DF: Essas narrativas, assim.
SP: É que ela falava, assim demais, de lá da Santa Inês,
onde eu morava.
Projeto: Panton pia’ 243

DF: Ahã. E o que ela falava, você lembra?


SP: Lembro. Ela falava assim, que de primeiro, aqui, não
tinha muitas doenças como estão tendo agora, e a gente não
tinha (eles lá, né, que eu ainda não tinha nascido), não tinha
hospital, quando a pessoa adoecia era o pajé que tratava. As
pessoas procuravam mais o rezador, porque o Pajé é um, e o
rezador é outro e principalmente sobre os dentes também,
porque as pessoas não usavam esse creme dental de hoje e
tratavam os dentes com pimenta malagueta.
DF: Com a pimenta!?
SP: Sim. E carvão. E fazia aquelas goldas de mirixi pra
passar nos dentes.
DF: Golda de mirixi, o que é?
SP: Assim, tirar a entrecasca de mirixi e fazer aquela água,
coava e fazia.
DF: E, por exemplo, a gente vai a muitas comunidades,
até mesmo pra conhecer, e tem muitas histórias de animais,
de bichos que falam.Chegaram a contar essas histórias pra
você ou não?
SP: Eh, chegava sim.
DF: Você lembra de alguma?
SP: Eu me lembro duma história que ela contava pra mim.
DF: Qual?
SP: Ela contava que isso é... hoje eu conheço esse rapaz,
só que ele ... lá minha mãe falava que no tempo duma festa
tinha um monte de raposa, e essa raposa se transformou
em uma pessoa e carregou um menino. A mãe dele tava
dançando, com o pai, assim, aí quando foram procurar o
menino na rede ele não tava. Aí fez dois dias, juntaram todo
mundo e foram procurar. Ele tava numa loca. E ele tava só
carrapicho, mas hoje eu conheço ele, esse menino, ele já é
velho, mas conheço ele.
DF: Então, a história é verdadeira mesmo?
244 Projeto: Panton pia’
SP: É verdadeira mesmo. Eh, eu conheço esse menino.
Raposa, foi a raposa que carregou ele, ele tava numa loca.
É, hoje eu conheço esse rapaz. Já tá é homem. Ele só tava
carrapicho, ele tava assim numa loca.
DF: Ahã. E, por exemplo, se ouve muito falar em história
daqui de cima: da mulher que se casou com Guariba. Já
chegou a ouvir?
SP: Não.
DF: Histórias desse tipo você não...
SP: Não.
DF: Você acha importante o resgate dessas histórias? O
que você pensa a respeito disso?
SP: Eu acho, assim, importante, porque aqui, depois que
eu passei pelo Santa Rosa, cheguei, nós procuramos, assim,
eu ajudei também a pesquisar esse pessoal mais velho que
nós tivemos uma história... pra gente levar pra um estudo,
porque eu estudava de primeiro, agora não estudo. Aí eu
achei muita coisa interessante. Interessante, porque hoje
a gente faz a festa até na [palavra incompreensível]. De
primeiro não, era batendo lata, era no fogo, era essa de
Natal que passava, era muito importante. Eu acho demais,
e hoje é completamente diferente, e principalmente sobre
as doenças. Eu trabalho 11 anos na área da saúde. Eu viajo
muito pra fazer a remoção, fazer pra lá, porque, de primeiro,
quando essas histórias que eu leio assim, que eu dou conta,
de primeiro não tinha. E mesmo ficou bom, agora você tem
transporte, porque, de primeiro, eles levavam a pessoa na
rede pro hospital, porque só tinha hospital no Surumu. A
gente levava na rede, ia de carro de boi.
DF: E demorava, levava um tempo.
SP: Demorava mais. Hoje não, assim, já que chegou mais
doença, só que ficou melhor por causa dos transportes,
porque já tem o avião, tem o carro. Embaixo tem uma pista
bem ali assim, mas só quando... assim, graças a Deus que
não tem essa doença muito...
Projeto: Panton pia’ 245

DF: Muito grave.


SP: Grave. Só uma vez que foi uma pessoa que faleceu,
porque... sempre eu tava subindo, então é assim mesmo, a
gente leva pra Pacaraima.
DF: Me diz uma coisa: você é da área da saúde. Já ouviu
falar em Canaimé, não ouviu?
SP: Que?
DF: Canaimé?
SP: Já.
DF: O que você sabe sobre isso? O que você pensa?
SP: Eu acho que Canaimé, sempre eu falo... Canaimé, pra
mim, é uma pessoa que ele se pinta de tinta do mato e se
cobre com couro de alguma coisa. Porque a gente me fala
assim, que o Canaimé, ele é um parente indígena, que ele
faz, ele tem a puçanga dele, que faz pra gente não ver ele.
É mesmo que em Boa Vista. Em Boa Vista são os malandros,
que os brancos chamam. Aqui já é o Canaimé.
DF: Tá certo. Você já atendeu algum caso aqui? Por que
dizem que ele faz mal às pessoas sem as pessoas merece-
rem, não é?
SP: Eh. Não, eu já vi lá na Santa Inês onde eu morava. Tinha
um senhor, ele foi daqui. Tinham feito um serviço, tinha caxiri
(você sabe o que é caxiri, de mandioca?)...
DF: Sei.
SP: Estiveram, aí ele foi pra lá, aí toda hora ele saía,
toda hora ele saía, toda hora ele saía, e a gente tentando
acompanhar e ele não deixava ninguém acompanhar ele. Aí
quando foi no outro dia, ele já amanheceu já doente. Ele já
tava com folha dentro dele, pelo ânus dele, por aqui assim.
Ele morreu no outro dia, ele tava só fazendo, evacuando só
sangue, aí ele faleceu. Ele chegou e aí o pajé bateu folha e
disse que foi o Canaimé que tinha malinado dele. Eu vi, aí eu
vi mesmo, que depois que ele faleceu, aí eu fui lá na cova.
Mas eu era ainda cunhantã?
246 Projeto: Panton pia’
DF: Cunhantã? [risos]
SP: Ainda era.
DF: Outra coisa: tem uma pergunta que eu faço, que eu
mesmo não tenho resposta pra ela, eu tenho mais é dúvida.
Por exemplo: como você se sente? Você é de origem indíge-
na. Ao mesmo tempo você é brasileira, não é?
SP: É.
DF: Ao mesmo tempo tem uma legislação que diz que
os indígenas são donos das terras deles. Não é ser dono, é
que a terra é da União. Mas ao mesmo tempo essas terras
sempre foram dos indígenas. Eles podem interferir nas terras
só até certo ponto, não é? Eles não podem chegar e querer
arrancar pedra, levar pedra, porque tem que ter autorização.
Como você vê isso tudo?
SP: Eu fico assim, é como eu entendi, eu vejo que as terras
são dos indígenas, mas pra mim não era proibido tirar nada.
Assim, se fosse eu, a poderosa, eu deixava tirar, porque todo
mundo precisa. É assim.
DF: E como você se vê como indígena e brasileira? Você
passa por preconceito, não passa, já passou alguma vez?
SP: Demais, preconceito como indígena já passei demais.
Assim, têm os outros que têm preconceito com o índio, as-
sim, como eu indígena já passei...
DF: Que tipo de preconceito?
SP: Não, assim, porque quando eu viajo, sempre eles fa-
lam, assim... que eu não sou caboca, né, que eu sou indígena.
Eles falavam que tinham preconceito com caboco, porque
caboco sovinava terra, não sei o que, não sei o que... aí eu
no carro senti que eles estavam com preconceito comigo.
Tinha vez que eu não respondia, porque ia muita gente e...
Aí eu não respondia... Quer dizer, que eu não era caboca, aí
eles diziam pra mim: “A senhora é índia!” “Índia? Você não
é índia, porque índia não tem o cabelo enrolado... você é
caboca!” Eu disse que não, que eu não era caboca, que eu
era índia, índia. Ele disse que não, porque índia não andava
Projeto: Panton pia’ 247

de roupa, andava nua, não tinha brinco, não tinha nada. Eu


disse que não, que eu uso tudo isso na minha roupa, mas o
meu sangue é de índio.
DF: E o que é ser índio?
SP: Ser índio pra mim é índia macuxi, como eu sou, mas
só que hoje eu não ando mais nua, né, porque eu já sou índia
aculturada, mas eu sou índia... eu me orgulho, a minha mãe
é índia macuxi, meu pai é wapixana. [...]
DF: E histórias sobre lendas, de Macunaima, só ouviu
contar, não ouviu? Ou só conhece por outros?
SP: Não, só ouvi mesmo contar histórias de Macunaima...
DF: Na sua época, já passou por alguma iniciação? Por
exemplo: os meninos, em algumas comunidades, quando
eles vão se tornando rapazes, eles fazem cortes nos braços
pra...
SP: Não, não, passei não...
DF: Isso já tinha acabado.
SP: Já, já tinha acabado, mas só que existia sim.
DF: A sua mãe contava alguma coisa que acontecia?
SP: Contava.
DF: Você lembra?
SP: Ela falava que quando a pessoa ficava... ela tinha a
menstruação pela primeira vez, ela se pintava toda e ficava
no quarto até quando ela ficava boa. Ficava lá.
DF: E depois?
SP: E depois saía. A primeira vez que ela ficava menstru-
ada era assim.
DF: Mas isso, praticamente não existe mais, não é?
SP: Não existe mais não.
DF: Mais alguma coisa, Sebastiana?...
SP: Porque hoje eu tenho minha sobrinha que... eu tenho
248 Projeto: Panton pia’
uma filha que já tem um filho, essa que mora comigo, aí eu
vejo minha sobrinha todo mês assim, só verificando, eu não
sei quando elas estão menstruadas, assim, elas se escon-
dem, sei lá, todo tempo. Porque de primeiro não era assim
não, porque a minha mãe fala assim, quando eu fiquei pela
primeira vez menstruada, ela não deixava eu comer nada
doce não, e nem assim, por exemplo, fritura. Ela mandava
matar o veado e mandava o meu pai... eu não comia, assim,
o churrasco, assim porque eu ia, ficava panema, o homem
e a espingarda, era assim, não comia. Mas ainda cheguei
nisso assim...
DF: Não comer?
SP: Não, meus pais não deixavam eu comer, assim, quan-
do eu tava menstruada, comer o churrasco que mandavam
pra nós.
DF: Eh, eu já ouvi contando que é muito forte essa relação
com a menstruação.
SP: Não podia andar de cavalo, nem tomar banho no rio.
DF: E por quê? Falaram por quê?
SP: Do cavalo?
DF: É.
SP: Do cavalo, porque o cavalo morria.
DF: O cavalo morria?
SP: Eh, ficava magro, aí morria.
DF: É como se a mulher contaminasse as coisas...
SP: Isso. Era assim. E a mulher, não sei agora, a mulher
quando tava grávida também não ia lá onde os bichos co-
miam. Quando matavam uma coisa, se a mulher grávida fosse
lá, ele não via mais [risos] eu não sei nem se isso é verdade,
mas não deixavam, não.
DF: Só mais uma coisa. E sobre a puçanga?
SP: Ah! puçanga pra poder...
Projeto: Panton pia’ 249

DF: Isso!
SP: Nunca passaram em mim não, mas eu já ouvi falar que
tem muita puçanga pra pessoa ser... ser caçador.
DF: E o que é puçanga? O que significa a palavra puçanga?
SP: Puçanga é assim uma plantinha, uma planta. Aí faziam
chá de umas plantas, mas tem a planta pra caçador, pra ter
até mulher. Tinha um até que me falou que o pai dele fez
assim puçanga, né, pois até tucandeira ferrar ele debaixo da
língua pra ele ser bom de mulher...
DF: Pra quê?
SP: [risos] Ser assim, bom de mulher?
DF: [risos] Ah, bom de mulher! E qual é essa puçanga?
SP: … é tucandeira, tucandeira, ferra debaixo da língua.
DF: O que é tucandeira?
SP: É uma formiga.
DF: Ah...
SP: Mas dói...
DF: Debaixo da língua?
SP: Debaixo da língua, dizem que pra ficar bom de mu-
lher [risos]. Mas agora eu não sei qual é, [se dirigindo a uma
pessoa ao lado]: Ele deve saber qual é, mas tem dois tipos.
Será que é igual? Sei que tem gente que faz garrafada pra
gripe, não sei o que... pega, cozinha, faz aquele mel. Puçan-
ga é plantada, é nome de uma planta, não, estou falando
que tem tantas plantas, mas tem uma puçanga pra aquilo.
Como assim? Eu quero uma puçanga pra ser bom de homem:
tem. Pra eu ser bom de caça: tem também. Pra eu ser bom
de pesca, assim, tudo tem... puçanga, mas só que tem um
nome. Não faz a puçanga, assim, de rapazes. De primeiro,
eles cortavam [aponta pros braços], aí faziam a puçanga pra
eles terem força, assim quando for brigar, pra ser...
DF: …ser guerreiro.
250 Projeto: Panton pia’
SP: Eh.
DF: E você tem alguma opinião formada sobre essa ques-
tão da Raposa? O que você pensa a respeito disso?
SP: Não, não...
DF: É tão complicado que a gente não sabe o que é certo
ou o que é errado, né?
SP: Tem tanta coisa de errada...
DF: Eh, não sabe não. Você tem religião?
SP: Tenho. É católica, católica.
DF: Desde sempre?
SP: Desde sempre. Mas chega um monte de gente pra
mim, pra eu ser evangélica, né? Mas até agora eu não quis
trocar não, eu sou católica mesmo. Eu sou meio macuxi e
wapixana... já sou macuxana!
DF: acuxana!?
LS: Mas você escolhe se quer ser macuxana, macuxi, ou
não? Como é isso?
SP: Não, pra mim é porque o meu pai e minha mãe, é
tipo...
DF: É por isso que ela falou macuxana.
LS: Que é uma mistura.
DF: É [risos].
SP: Porque é meu pai e minha mãe... aí eu não posso ficar
só de um lado.
DF: Justamente.
SP: Fico dos dois.
DF: Então, tá certo, é mais ou menos isso mesmo. Tem
alguma outra história que você queira contar?
SP: Não. Não tem, não.
DF: Qual é a coisa mais triste que já aconteceu na sua vida?
Projeto: Panton pia’ 251

SP: Ah! Coisa mais triste tem demais, acho que sou a
pessoa mais sofrida do mundo, eu.
DF: Então, conta o que foi mais triste?
SP: Eu perdi dois filhos meus e meu outro, três anos se-
guidos. O primeiro foi um filho meu que eu perdi de 20 anos,
mataram ele, né? Aí o segundo, a minha casa queimou com
tudo e eu fiquei só com a roupa do meu corpo mesmo, né?
Eu não sabia nem como assim, quando meu filho morreu,
não, porque ficou tudo na minha casa, eu tinha como...
mas quando a minha casa queimou eu não tinha nem como
recomeçar. Era minha casa lá! Aí quando queimou, queimou
mesmo tudo, não sabia nem como começar minha vida de
novo. Eu não sabia mais, assim, deu vontade de desistir...
DF: Mas, pelo visto a senhora tá aqui hoje e bem forte,
não é?
SP: Iche, demais.
DF: E qual foi a coisa mais feliz?
SP: A coisa mais feliz foi que eu ainda estou aqui depois
de todas as coisas que eu passei. Muita gente me chamava,
conversando demais pra eu largar tudo pra lá e me conformar
com meu filho que tava aqui e com o pessoal da comunidade
com quem eu trabalho. E eu acho que eu estou mais feliz,
porque eles gostam muito de mim, do meu trabalho. Acho
que eu nunca, eu penso que nunca fiz mal pra ninguém. Feliz
de estar com minha mãe, conhecer minha mãe, né? Apesar de
ter perdido minha casa consegui tudo que eu tinha perdido.
E hoje já estou na minha casa.
DF: Guerreira!
SP: Guerreira.
DF: Puçanga que fizeram pra você foi boa. Então, tá certo.
Eu queria agradecer, obrigado.
SP: De nada, qualquer coisa...
252 Projeto: Panton pia’
Projeto: Panton pia’ 253

Projeto: Panton pia’


Entrevistado: José Vitor da Silva (JV)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Local: Comunidade Guariba, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 20/03/2009
Transcritora: Ana Maria Alves de Souza
Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 1’13’’16’’’
254 Projeto: Panton pia’
Projeto: Panton pia’ 255

DF: Qual o nome completo do senhor?


JV: Meu nome é José da Silva.
DF: Ah! José da Silva.
JV: Eh, José Vítor da Silva.
DF: Ah, José Vítor, só que conhecem o senhor por seu
Vitor. Bem, e qual a idade do senhor?
JV: Eu tenho 60 anos.
DF: Qual a etnia?
JV: Eu sou de 1940, 48.
DF: O senhor é macuxi?
JV: Eu sou macuxi.
DF: Tá certo. A primeira língua que o senhor aprendeu foi
o português ou foi o...?
JV: Não, a primeira língua, quando eu nasci, quando eu
aprendi a falar, foi o macuxi mesmo. O português eu aprendi
a falar depois de sete anos, eu aprendi a falar. Foi, branco me
levou da casa do meu pai. Eu tava com sete anos, aí aonde
foi que eu aprendi a falar português, só que nunca estudei.
DF: Ah! Sim. O senhor nunca foi à escola?
JV: Nunca fui. Naquele tempo não existia escola. Escola
teve quando eu tava com, parece, eu tava com 14 anos,
quando chegou o primeiro colégio, chegou no Maturuca, o
primeiro colégio chegou.
DF: E o senhor nasceu em qual comunidade?
JV: Eu nasci na comunidade da Pedra Branca, lá na fron-
teira da Guiana com o Brasil, ali pra serra.
DF: O senhor falou que foi viver com os brancos com 7
anos?
JV: 7 anos.
DF: Como foi essa história?
JV: Não, ele me levou pra criar com ele lá, pra trabalhar,
256 Projeto: Panton pia’
trabalho de garimpo. Aí esse que acabou de me criar ele
trabalhava muito de roça, roça de plantio de arroz, milho, ma-
caxeira, aí trabalhava de horta, a gente criava porco, criava
galinha, criava tudo nesse tempo. Então, onde eu trabalhei,
começamos a trabalhar. Ele dizia assim: “Olha, meu filho,
eu vou te ensinar a trabalhar, porque um dia você vai ficar
homem, vai ficar homem porque você vai formar família.”
Daqui pra lá você já tem, você já sabe trabalhar, você já sabe
se virar pra si mesmo. Eu não vou lhe ensinar a roubar e nem
mentir, eu vou te ensinar a trabalhar. E também eu não vou te
botar no colégio porque não tem colégio. Se tivesse colégio
eu te botava pra estudar também, aí daqui já saía formado.”
E como não existia colégio, então eu passei, eu fiquei desde
sete anos até arrumar mulher, essa mulher velha aí. Essa é
a primeira mulher que eu arranjei, arrumei mulher com 16
anos, essa mulher aí.
DF: Aí estão juntos até hoje?
JV: Até hoje vivo com ela. O pessoal gostou muito, que
eu morei também no Surumu. Quando eu casei com ela
que vim de lá, ela morava lá no Surumu. Tem muito conhe-
cido dela que quando eu fiz 40 anos de casado, aí fizemos
aniversário do casamento, aí os conhecidos dela foram.
“Ah! José, esse é a primeira mulher que você arranjou?”
“É a primeira mulher.” “Vocês nunca se largaram?” “Não.”
“Nunca procurou?” “Nunca procurei não.” “Rapaz, que bom
rapaz, é bonita essa história. Mas nem ela também... vocês
não brigam não?” “Não. A gente briga assim...” “Mas você
nunca bateu nela?” “Não. De jeito nenhum. Pra que bater
em mulher, mulher também é gente.” Eu não maltrato ela
não. E até hoje nós estamos aí. Então, quando me casei,
casei em 66, me ajuntei com ela, foi em 66, aí até hoje nós
estamos aí. Eu casei no padre, foi no dia 7 de... não, no dia 4
de fevereiro de 1967, casei no padre com ela. Nunca casei no
civil, mas casei no padre. Até hoje nós vivemos. Produzimos
doze filhos, mas morreram oito, aí nós só temos quatro, um
menino e três mulheres.
DF: Um menino e três mulheres.
Projeto: Panton pia’ 257

JV: Eh. Morreram oito.


DF: Mas quando era novinho ainda?
JV: .Eh. Quando nascia, morria; quando nascia, morria.
Com dois dias, três dias morria um pra ser criado. Até que
esses aí se seguraram, estão aí comigo, estão tudo aí comigo.
Até hoje nós estamos aí vivendo junto com ela.
DF: Qual o nome do pai e da mãe do senhor?
JV: O nome da minha mãe, finado meu pai, o nome dele
era Noberto, Noberto Souza Silva. Minha mãe, Maria Martina
da Silva. A minha mãe ainda é viva, o meu pai morreu em
2004, meu pai morreu.
DF: Tá certo. E qual a religião do senhor?
JV: Minha religião é católica.
DF: O senhor é católico.
JV: Eh,.católico. Eu nasci, como diz a história, eu nasci
no católico e vou morrer no católico mesmo. Eu não troco
de religião. Porque muitos dizem que só é um Deus, então
ninguém pode ficar trocando de religião.
DF: Sei. E qual a coisa mais feliz que o senhor viu até hoje?
JV: A coisa mais feliz que eu vi até agora na minha vida, a
gente vive assim no meio dos outros, vive em paz, com tan-
ta amizade, considera os outros como amigo, como irmão,
como irmã. A gente chega em qualquer casa, a gente tá tudo
em paz, junto, né?...
DF: Bem recebido...
JV: Bem recebido. Eu gosto de todos os companheiros.
Como eu tinha falado muito pros brancos, às vezes em casa
chega branco, chega preto, chega índio, chega tudo. Aí eu
converso, aí conto uma história, “Olha, antigamente...”; aí
o pessoal: “Conta a história assim, do que aconteceu anos
atrás...”, conto tudo. Aí, mas uns dizem que eu estou falando
besteira, mas eu conto tudo. Aí minha mulher fica piscando
pra um assim: “Não, por que tu conversa muito assim?” “Não,
porque eu tô contando história...” Eu não estou esculham-
258 Projeto: Panton pia’
bando ninguém, aí eu conto, aí vou embora. Conversar, eu
gosto de conversar muito. Se eu pudesse conversar uma
noite todinha eu conversava. Aí eu fico assim mentindo, né?
DF: [Risos] E o senhor sabe a história da fundação da
comunidade?
JV: Quando eu cheguei aqui em 67, já tava fundado já, aí.
DF: Já tinha.
JV: Já tinha. Eu cheguei aqui foi em 67. 68 eu cheguei aqui.
DF: Então, o senhor já morou em vários lugares?
JV: Eu morava aí no Surumu. Passei, passei 30 anos. Já
estou com 12 anos aqui, mais de 12 anos. Eu passei aqui,
professor, quando eu cheguei nessa região do lavrado aí.
Quando acabei de casar, eu fui pra Venezuela, em 67. Passei
9 meses por Santa Elena. Aí, tempo que mataram um [dia-
manteiro] no garimpo, lá pro Paú, estavam retirando todos
os brasileiros pra fora, pra cá. Aí eu vim junto. Nós viemos
duzentos garimpeiros da Venezuela, nós viemos por aqui. O
varadeiro era bem por aqui assim.63 Aqui era mata virgem, 63
Aponta para a mata ao
seu redor.
não tinha nem sinal de gente morando aqui não.
DF: O senhor trabalhava no garimpo?
JV: Trabalhava no garimpo, eu me criei no garimpo. Como
eu estou dizendo, eu me criei no garimpo. Tava no garimpo,
pra lá, quando fomos expulsos. Nós varamos aqui, de pés,
aqui, andando na pernada, que era caminho de boi, por aqui
assim, ele varava por aí. Faz tempo, não era BV-8, era Divisor.
DF: Divisor?
JV: Eh, Divisor o nome do lugar. Morava o Alcides Lima, aí.
DF: Garimpa até hoje?
JV: Não. Até hoje garimpo fechou tudo. Não pode mais
nem pensar em garimpo mais não.
DF: Dizem que quem garimpou não consegue parar de
garimpar...
JV: Não consegue parar não. Só que eu parei, eu parei. Por
esse tempo nos povoaram aqui. Nesse tempo o transporte
do Surumu lá era a FAB. Não existia nem carona porque não
existia nem carro.
DF: Qual era o transporte?
JV: Avião, aqueles aviões da FAB.
DF: Ah! Da FAB, Força Aérea Brasileira.
JV: Eh. Força Aérea Brasileira. Daqui pegava gente, todo
tempo pousava aqui. Aí nós fomos pra pegar, os outros [ga-
rimpeiros] que iam pra Boa Vista, foram pra pegar avião. Aí,
daí, fui embora pra casa, fiquei não, morava já aí.
DF: Chegou a garimpar no Tepequém?
JV: Não, nunca cheguei a conhecer não, até hoje não che-
guei a conhecer. Mas no Maú eu trabalhei muito. Eu peguei
muito dinheiro e não tenho nada na vida até hoje. Eu digo,
todo mundo sabe já que eu peguei muito dinheiro. Eu era,
sempre sabia o que era dinheiro; assim, mesmo os meus
pais de criação, que eram diamantários, roubaram muito
dinheiro, não davam nem metade do dinheiro, compravam
as fazendas, tudo. Aí eles também morreram sem nada
também, acabaram tudo. Aí, até hoje arranjei mulher e estou
com ela aí. É minha vaca que eu comprei com o dinheiro de
diamante né? [risos]
DF: E as histórias dos antigos, o senhor tem alguma his-
tória pra contar?
JV: Histórias antigas?
DF: Eh.
JV: Só dança da história deles, que dançam, né? Anti-
gamente o finado vovô e vovó faziam muito festejo. Hoje,
parentes estão, diz que estão por aí fazendo briga por essa
Serra do Sol, que já estão fazendo aleluia. Isso aí não era
dança de guerra não, isso era dança de festa deles. Faziam
festa por tempos, não o modo de briga não, não era de
guerra. Era festejo deles no tempo que faziam festejo de
Natal, assim como hoje. Assim como existe hoje, tem festejo
de março, tem carnaval, tem dia das mães, tem a fogueira,
260 Projeto: Panton pia’
tem São Pedro, tem Santo Antônio. Naquele tempo eles
faziam ao mesmo tempo, e eles tinham um mês de festa. Aí
convidava o chefe deles, assim: “Rapaz, tal lugar nós vamos
fazer festejo grande, vamos convidar tantas comunidades...”
Naquele tempo não se falava comunidade também. “Então
faz o pajuaru, faz o pajuaru aí”; aí tinha pajuaru, tinha tari-
paiuá, bebida deles, ficava forte. Aí marcavam um, aí faziam
um bilhetinho deles, fazia um cordão assim de olho do buriti;
aí dava nó; aí dizia. “Começa hoje”, começa isso aqui tal dia,
aí tudo avisava até domingo, até chegar aquele dia do pra-
zo marcado deles né, naquele dia que vão lá pra festa, né?
“Aqui, tal dia nós vamos chegar”, aí chegava naquele dia. Aí
começavam beber, aí começavam dançar já a tal de aleluia,
tinha tal de tukui, tinha tal de parixara, esses músicos deles
que eles dançavam.
DF: E o senhor sabe alguma música daquelas ainda?
JV: Não.
DF: O senhor lembra?
JV: Não, eu não estou dizendo que eu nunca aprendi! Aí
eles dançavam, festejavam a noite toda, faziam roupa de
olho de buriti, assim. Aqui estavam fazendo, fabricando aqui
pra apresentação. Não sei se eles ainda têm por aí. Faziam
chapéu de olho de buriti. Aí eles dançavam, pintavam com
uma pitada de jenipapo, ficava roxo, pintavam por aqui, tudo
pintado. Aí o que é que eles faziam? Aí tinha umas carreiras
pra peitar nos outros também. Nesse meio do festejo deles,
eles faziam pra peitar nos outros.
DF: Como era?
JV: Ficava só de calção, tiravam a camisa. Aí se pintavam,
aí ficavam assim, umas dez aqui na chegada, as pessoas
vinham correndo de longe, lá da Boca da Mata, vinham
correndo pra peitar no outro. Aí outro ficava esperando lá,
ficava já pronto. Rapaz, eles não vêm brincando não, vêm
pra peitar com força. Aí chegava de lá, aí tava assim espe-
rando, quando pensar que não: “Tá!” Aí se ele fosse forte,
se segurava. Pegava ele, não sei como eles faziam força. Aí
Projeto: Panton pia’ 261

tinha força, quem tinha força não suspendia não, aí precisava


vir mais cinco ou seis pra poder suspender só um, porque ele
tinha força. Eles lutavam, arrastavam um por aqui assim na
cintura dele, arrastando ele aí porque ele fazia força. Sei que
eles lutavam muito, até suspender ele. Aí quando suspendiam
ele, pronto, acabou. Aí vinha outro de novo.
DF: E isso era pra chegar na festa?
JV: Era pra chegar na festa. Aí, até que tá bom. Aí dança-
vam a noite toda, cantando aleluia, cantando tucui, aleluia,
tudo. Agora tinha uma ordem: “Olha, pra vocês quando
conhecer menina, não é pra mexer com menina não, se for
pego com a menina pode fazer casamento dele, logo.” Aí se
for pego com a menina, já saíam casados de lá.
DF: [risos] Ah é!
JV: Eh. De primeiro, eu digo assim, antigamente até eu
conheci, naquele tempo a mulher não usava calcinha né,
calcinha dela só roupa mesmo. Como foi que a velha disse:
“Rapaz, tu não tem vergonha de dizer não?” O peixe era
criado sem loca. Mas, então naquele tempo não usava, só
chegou agora, poucos tempos apareceram essas calcinhas.
Naquele tempo não existia cueca também. Existia só cal-
ção. Primeira cueca do homem era o calção, primeira cueca
quando chegava, quando eu conheci no garimpo, mas era
só depois, já apareceram essas cuecas, calcinha pra mulher,
quando apareceu. Agora hoje, criança nasceu, com meia hora
já tem uma calcinha nela, né?
DF: [risos]
JV: E quando tá com dez anos, já tá tarada, já tá ficando
buchuda, isso que tá acontecendo hoje. Tudo eu digo assim,
né, que tá acontecendo isso. Pois é, antigamente eles dan-
çavam assim. Aí passavam dois, três dias ficavam bêbados,
e ninguém não abusava, eles não brigavam não. Aí ia acabar
a festa, ia embora. Aí outro tempo, já outra comunidade ia
fazer outra festa, já a tal de parixara, né? Agora, o negócio
de aleluia era pra ser visto no Natal, dia 24, 25, eles dançavam
muito esses daí também, eles dançavam muito.
262 Projeto: Panton pia’
DF: Sim.
JV: E acabou. Hoje acabou.
DF: E, por exemplo, história de macaco, de alguma coisa,
o senhor sabe?
JV: Não... História de macaco, tem muita história de
macaco, né...
DF: Assim, alguma lenda. O senhor sabe alguma, já ouviu
falar?
JV: Tem. Nunca ouvi falar dessa de macaco. Tem essas de
macaco, muito, mas eu não sei contar bem não. Tem a do
jabuti também, né...
DF: Então!
JV: Tem o Jabuti, diz que enganava onça, né?
DF: Como?
JV: Só tinha um bebedor. Aí história começa com a do
macaco. Só tinha um bebedor. Aí, jabuti tava lá, destar que
tinha uma onça no bebedor. Demorou, Jabuti não aguen-
tou mais de sede, né, aí apareceu lá. Aí a Onça velha “tan”,
pegou. Aí: “Ah! compadre Onça, o que tem de comida pra
gente comer, tô com uma fome” “Ah! Compadre, não vai me
comer não, rapaz. Não vai me comer, não.” “Tô com fome.
Tava só esperando boia pra chegar aqui pra mim pegar; tu
apareceu, vou te comer agora.” Aí tinha um pé de buriti,
assim: “Então pra mim não escutar teu dente dentro do
meu casco, quebrando, tu me leva lá no pé de buriti, aí me
quebra todo e tu me come; aí não escuto zoada do teu dente
valente.” Aí, Onça velha foi lá no buriti, aí “pá”, escapuliu,
não quebrou não, aí mergulhou dentro d’água. Aí onça tava
lá esperando jabuti boiar, Jabuti nunca boiou, foi pra outro
canto. Lá aparece o Macaco de novo com sede, aí pega o
Macaco de novo. Aí Jabuti fala: “Olha, compadre Macaco,
tem uma Onça aí que tá só esperando pra comer a gente.
Eu enganei ela dizendo que ia quebrar casco no pé de buriti,
mas não quebrou não. Eu caí e mergulhei, aí eu vim boiar
Projeto: Panton pia’ 263

aqui.” “Eu vou enganar ela lá.” Aí ele foi. Aí tava bebendo
água, aí pegou ele: “Ah! Macaco, eu vou te comer. Jabuti me
enganou, agora eu vou te comer.” “Não rapaz, como é que
tu vai fazer? Me pega pelo rabo assim, me roda assim e me
joga lá, pra mim bater no pau, pra não escutar teu dente na
minha cabeça.” “Tá bom.” Aí ele pegou assim, jogou no pau,
pegou no pau lá dentro. Aí Macaco foi embora. Só tinha um
bebedor. “Agora, dois me enganaram. Agora, como que eu
vou beber água agora?” Aí ele entrou, achou um abelheiro,
né, se melou de mel todinho, se melou lá. “Eu vou beber
água agora.” Aí se melou de mel, chegou lá se encheu de
folha, o Macaco. Ele já tinha ido duas vezes. Aí chegou lá.
“Ah! Compadre Folharal, agora eu vou te comer. Macaco
me enganou, eu vou te comer.” E o [Macaco Folharal falou]:
“Eu não sou Macaco não. Aqui não tem nada pra tu comer
não, eu sou magro.” “Não, eu te como assim mesmo, eu tô
com fome.” Aí pegou de novo. “Agora eu vou fazer assim o
mesmo que tu fez com o Macaco. Tu me leva...” Lá ele joga
de novo; escapuliu e foi embora. Lá, ele correu atrás dele lá,
aí entrou no buraco do tatu assim. Entrou no chão. Aí tá lá, no
buraco, pelejando pra tirar. Peleja pra tirar e nada. Aí chamou
urubu: “Ei compadre Urubu, tu fica aqui vigiando esse buraco
aqui que o Macaco Folharal tá aí dentro; que eu vou buscar
ferramentas pra mim cavar.” “Tá bom, então pode ir.” Aí foi
embora atrás de coisas dele pra cavar. Aí ele chegou, não, aí
ele apareceu, aí Urubu tava lá. Aí o Macaco: “E aí compadre
Urubu, o que é que tu tá fazendo aí?” “Rapaz, eu tô vigiando
aqui que o compadre Onça deu ordem aqui, ele foi buscar
as coisas dele pra tirar o Folharal que tá aí dentro.” “Sou eu
que estou aqui rapaz.” “É tu é?” “É, mas tu arregala bem os
teus olhos assim, porque se tu não arregalar bem teu olho,
assim, eu vou sair e tu não vai nem me ver. Tu arregala teus
olhos bem assim e fica bem perto do buraco com os olhos
arregalados, aí tu vai me enxergar quando eu sair.” Aí ele
pegou um pouco de barro lá, aí quando ele arregalou os olhos
dele, aí “tá”, ele jogou areia nos olhos dele, barro nos olhos
dele. Aí ele saiu e foi embora. Olha aí a história do compadre
Folharal. Aí a Onça chegou: “Cadê, ele tá aí.” “Rapaz, ele tá
264 Projeto: Panton pia’
aí.” Aí cavou o buraco, o lugar mais limpo. Folharal já tinha
ido embora. Mas era mesmo ele, o Macaco, só que ele se
melou com o mel, né, aí se enrolou na folha e ficou cheio de
folha. Acabou já a história do Macaco. Uma história que eu
estou concluindo até hoje...
DF: [risos] Dá saudade?
JV: [risos] Matando a saudade. Pois é, professor, é assim
a história...
DF: E história do Macunaima, o que é que o senhor sabe
a respeito, que o senhor ouviu contar?
JV: A história do Macunaima com aquele irmão dele. O
irmão dele era o Anaipê,64 do Macunaima, do Insikiran,né? 64
Anaipê é conhecido em
geral por Aninkê.
Do Insikiran, eles andavam muito por aí. Aí irmão dele, esse
Anaipê era danado, era danado, ele andava em todo coisa
que não prestava, né? Aí o irmão desse, o Insikiran dizia pra
ele: “Meu irmão, deixa de estar fazendo danação rapaz,
tu morre!” “É nada. Não vai acontecer nada comigo, não.
Eu sei o que eu tô fazendo.” Aí acharam um buraco onde
morava um camaleão muito grande. Aí: “Eu vou cavar esse
camaleão, mano, pra mim, pra nós comer, pra...” “Não rapaz,
deixa ele, ele é brabo...” “Não, eu vou cavar ele!” Aí foi cavar
ele. Aí lá esse camaleão comeu ele, engoliu ele. Agora o que
esse Insikiran faz? “Agora comeu meu irmão, eu fiquei sozi-
nho.” Aí cava o buraco, até que achou camaleão lá dentro,
camaleão grande que tinha engolido o irmão dele. Aí lá ele
matou o camaleão, partiu o camaleão, e o irmão dele tava
lá dentro inteiro, tinha engolido inteiro, já tava morto já,
né? Lá ele trabalhou, rezou, aí lá levanta de novo esse irmão
dele: “Rapaz, mas tu é muito teimoso. Eu não disse que ia te
engolir. Você é muito teimoso...” “Não, eu só queria malinar
de ti fazendo isso.” “Mas não faça mais uma coisa dessa
não, meu irmão, porque tu só fica me dando trabalho.” Lá
foram de novo. Aí tinha esse tal de Mapinguari, aí tava lá.
“Mano, umbora empurrar uma pedra.” “Rapaz, deixa aí, o
Sol vai escurecer, vai escurecer aqui pra nós.” “Não, eu vou
arrumar uma pedra.” Aí tinha uma pedra em falso assim em
cima dele, aí empurrou a pedra. Quando ele se espantou, a
Projeto: Panton pia’ 265

pedra veio “pá”, aí matou o Curupira. Lá escureceu, aí eles


estavam no escuro. “Rapaz, você é muito danado.” Aí lá fez
trabalho de novo pra clarear. “Mas, você é danado!” Então,
assim a história desse Macunaima né, que eles chamavam
Insikiran e o irmão dele era Anaipê né, história deles. E fize-
ram tanto aquelas serras, serra do... Aquelas pedras por aí
que tem, aquelas pedras de carapanã foi eles que fizeram; aí
aonde mexe com essas pedras, aí dá carapanã. Aí tem pedra
de pium, aonde fizeram, pedra de pium mesmo, fica ali, aí
quando mexe com ele, com pedra de pium, aí dá muito pium.
Foi eles que fizeram isso. Esse era armação do irmão dele,
desse Anaipê que fez.
DF: Eram três?
JV: Eram três. Era Macunaima, Insikiran e Anaipê, né? Eram
três. Até hoje essa história do Macunaima com o Anaipê, com
o Insikiran serviu pra oração pra tratar gente doente, que
os parentes índios rezam, desde esse tempo né? Tudo coisa
que irmão dele ia fazendo, tudo ia levantando irmão dele.
Às vezes o irmão dele morria, engolia, matava, todo tempo,
os bichos engoliam ele. Aí irmão dele pegava ele, tirava de
dentro, aí fazia ele ficar vivo, fazia ele ficar vivo. Até hoje
serve de oração. Quando a gente tá fazendo oração tem que
chamar o nome dele: do Insikiran, Macunaima...
DF: O senhor conhece alguma oração?
JV: Eu sei oração.
DF: E pode falar ou não?
JV: Eu posso falar, mas o senhor não vai entender né?
(risos) Não tem problema não?
DF: Tem não.
JV: Então, assim que eles se chamam. Então, hoje é meu
filho, assim, meu filho adoece, de susto, qualquer coisa,
meu filho, criança, né? Aí tá doente, aí papai vai dizer: “Meu
filho tá doente, o que ele tem?” Aí vão olhar, aí tá bom, aí
eu rezo assim:
266 Projeto: Panton pia’
Urî sane tî, urî sane tî Insikiran pia
Sene moi’ e’tarîmo’tî pî wai tî piri’ya enato’pe
Î’ pî iteparan era’tisa, o’ma ya ira’tisa, paran ya
yapî’sa
Yannanî pî pî wai tî urî tî Insikiran pia tî
Insikiran pia ya imasa’kapî mantî,
Anike pia ya i’masa’ka pî mantî
Makunaimî pia ke imasa’ka pî wai tî,
tumasi yenî pan nî pî’ wai tî,
Kumi ya wanî tî ke, yennî pan nî pî’pi wai tî,
i’masa’kapî wai tî
Inîrî piri ya para wanî ton pe para, i’masa’kapî wai tî,
Urî tî Insikiran pia, Anike pia se tî,
Makunaimî pia ke i’misa’kapî wai tî
Inîrî piri ya para enato’ pe para i’masa’kapî wai tî
urî sane tî
Insikiran pia se tî.

[Eu sou eu, eu sou eu filho do Insikiran.


Estou rezando este menino pra ele ficar bom,
Porque a doença virou nele, bicho virou ele, doença
pegou.
Fiz ele melhorar. Sim, sou filho do Insikiran.
O filho do Insikiran fez ele levantar, filho de Anikê
fez ele levantar.
Com filho de Makunaima fiz ele levantar, fiz ele
comer.
Com puçanga fiz ele ficar esperto, com Makunaima,
com puçanga,
Com minha comida, com minha peneira.
Com meu mel fiz ele ficar bom.
Fiz ele levantar pra ele nunca mais ficar doente,fiz
ele levantar.
Sou eu filho de Insikiran, filho de Anikê, filho de
Makunaima.
Fiz ele levantar, para nunca mais ele ficar doente.
Fiz ele levantar, sim, sou eu filho do Insikiran.]

Quando homem diz que é pia, né? Quando é mulher,


menina, diz Insikiran pasi. Assim, oração dele. Então, desde
quando ele levantou esse irmão dele doente, foi engolido
pelo bicho, tudo ele ia levantando. Até hoje serve de oração.
DF: E a tradução é mais ou menos como?
JV: Uhn?
DF: A tradução pro português.
Projeto: Panton pia’ 267

JV: É porque diz assim: “Eu estou levantando esse nene-


zinho que tá doente, [como é o nome?] com esse Insikiran,
Macunaima, e com ele mesmo que estou fazendo saúde dele,
chamando meu nome, chamando o nome do meu irmão,
nome do outro irmão mais velho, que é o Macunaima [que
o senhor falou]. Daí são os três que estou chamando que daí
foram trazendo, e já devolvendo e já tirando a doença dele
tudo, voltando pra eles melhorarem a situação dele, como ele
tá”, que ele tá dizendo assim, né? É assim que até hoje serve
pra oração, esse Macunaima, todo mundo sabe essa oração.
DF: Ah é?
JV: Eh, tudo, não é só eu não. Eu aprendi com eles, com
os antigos, eu não disse que eu não aprendo muito, mas eu
aprendo oração.
DF: Sim.
JV: Aprendi essa oração pra doente, pra curar doente.
DF: Tem mais alguma história que os antigos contavam,
que o senhor já ouviu e que possa contar pra gente?
JV: O finado vovô contava história... Como eu tava dizen-
do, esses portugueses que carregaram os índios daqui de
Roraima, eu não sei dizer que ano, que tava dizendo agora.
Esses portugueses vieram, eu não sei de que ano, mas vie-
ram muitos brancos, eles vieram de navio. Saía, não sei se o
senhor conhece lá no Normandia, tem a que se chama Casa
Branca, aí que era ponto do navio, quando chegavam os por-
tugueses. Aí começaram carregar criança de 10 anos, de casal,
todas malocas pegaram, aí levaram pra Manaus, [Portugal],
carregando lá pra ilha da Baixa da Amazônia que ficaram por
aí. Até hoje existe ainda. Aí levaram, aí já foram carregando,
aqueles que levaram primeiro estudaram, botaram pra es-
tudar pra lá; aí serviram o quartel, tudo serviram pra lá. Aí já
no final, com os tempos, aí já começaram a carregar de 20, já
de anos, aí já começaram a carregar já os outros que ficaram.
Já pro final, eles estavam começando já carregar o papai já,
o velho. Os restos dos filhos dele que foram primeiro, que
já eram soldados, aí falavam pra ele: “Olha, quando...” Aí,
268 Projeto: Panton pia’
naquele tempo os antigos eram ligeiros, eles não tinham
medo não, eles quando pra flechar um, eles se armavam
ligeiro, eram treinados. Hoje não tem mais, hoje tem gente
civilizada, ficaram medrosos. Todo mundo tá vendo que eles
ficaram todos medrosos. Aí não sabe nem mais lidar com
esses problemas que estão tendo hoje, mas antigamente
não. Aí, tinham uns soldados assim, esses aí tudo têm medo,
se flechar um deles, eles não vão pegar a arma deles não:
“Quem flecha ele? Mas não vão me flechar não!”, que era
parente dele, né? Aí o primeiro que flecharam era ele, aí de
repente acabavam com ele. Finado vovô mostrou lá pra cá
do Normandia, tem uma tal de fazenda, fazenda Baiano, cá
pra Serra, perto do Normandia, aí começaram a matar ele. Aí
tinha outro boqueirão que chamava [...], pra pegar, chegar
aqui no rumo do morro; também mataram muito pra aí. Eu vi
lá os ossos dele. Mais pra cá da serra do Caranguejo mataram
outro, também. Aí ontem mataram um aqui na subida da
serra da Pedra Branca. Aquela serra faz assim que tem uma
subida, tem uma maloca que ela tá cheio de osso de branco
lá, último que mataram. Eh, por que é que eles mataram?
Por causa do pai deles, [como é], filho deles que foram pra
lá e que levaram, que já estudaram e serviram, aí já trouxe-
ram eles pra já pegarem o resto deles; mas foi o contrário,
disseram que ele tinha medo do pessoal deles que estavam
pegando, ele tinha medo. Aí agorinha acabaram essas histó-
ria do branco. Aí isso, minha cunhada que era amazonense,
que estudou nesses colégios que o senhor trabalha, aí eu
falei pra ela: “Não, existiu isso mesmo!”, que tem livro deles
dos alunos, tem história deles. Existiu, e ela fala.
DF: Que vieram pegar as pessoas aqui?
JV: Eh, que tem história de verdade, que aconteceu isso
daí.
HM: Seu José, o senhor falou sobre o Mapinguari. O se-
nhor poderia contar um pouco sobre ele pra gente?
JV: Esse Mapinguari se chama Taitei. Ele mora na mata,
pai da mata né, daí ele chama Taitei. Pode ver que tudo que
Projeto: Panton pia’ 269

é fumaça que tem por aí na mata, tudo é ele que faz na mata.
Esse Taitei é um bicho assim cabeludo, que nem arma ou de
tiro, assim, não mata ele não. É tudo cabeludo uma vez que
eu mostrei ele bem por aqui que nem bicho, careca pelado
assim, assim um bicho que faz, gritando por aí. Ele grita na
mata quando ele tá sozinho por aí. Só na mata, ele grita.
Um bicho que ele é muito difícil a gente ver, mas quando
ele ataca, ele aparece e grita “huuuuuuuu!”, ele grita. Agora
só que já tá tudo desmatado, tá muito longe por dentro
dessas matas. Tem uma moradia dele por aí, o Mapinguari;
os macuxis chamam pra ele Taitei.
DF: Taitei.
JV: Pois então.
DF: E ele faz o quê?
JV: Ele mesmo, ele uma pessoa, mas só que ele é um
bicho encantado.
DF: É um bicho encantado.
JV: Bicho encantado que vive na mata também.
HM: O senhor pode descrever ele pra gente, como é
que ele é?
JV: Não, ele é gente mesmo, ele é gente, completamente
gente, mas só que ele cabeludo.
DF: Ele faz maldade, alguma coisa?
JV: Ele não faz não, ele não faz maldade não. Ele mora
mesmo por aí, pra espantar os outros, por aí.
DF: E sobre o Canaimé, o que é que o senhor sabe?
JV: Canaimé, é gente mesmo, rabudo, né? É como tem
bandido na cidade, então esses daí são Canaimé, chama
Kanaimî.
DF: Kanaimî?
JV: Kanaimî, que nós chamamos Kanaimî, em macuxi.
Kanaimî anda de muito, não andam de pouco não, anda de
270 Projeto: Panton pia’
quarenta, anda de trinta, anda até menina, mulher deles,
anda com eles pra pegar homem, assim. A gente, eu estou
trabalhando ali, aí eles estão aqui, aí estamos trabalhando,
fazendo a roça. Aí o que é que ele faz? “Aí tu se apresenta
lá pra ele.” [Diz] pra menina né: “Enquanto tu se apresenta
pra ele lá, aí tu convida ele pra fazer relação contigo. Aí
então tu faz, tu segura ele com força que nós vamos pegar
ele lá!” Aí apresenta menina lá. Ele anda com menina. Aí
enquanto a gente fala pra ele lá, aí ela encontra o homem,
que homem [não tá] cismado, aí pega ele, se ela agarrar aí já
vem e encosta, o rabudo velho. Aí pegam ele, aí quebra ele
todinho. Eles tiram bumbum da gente enfiando a faca, eles
tiram bumbum, assim. Aí costuram lá dentro aquela tripa da
gente, lá o resto do bumbum, fica a costura. Aí eles cortam
a piroca da gente, corta, corta língua. Às vezes eles furam,
pinicam todinha a língua, todinha com espinho. Aí passam
cuspe na boca da gente assim, aí a gente olha, vai bonzinho
daqui, não vai sentindo nada, quando chega na tua casa, aí
já vai logo, dá febre em você lá na casa.
DF: Dizem que a pessoa não lembra.
JV: Não lembra não. Aí chegando você não diz nada,
você sabe, lembra, mas só que não conta pra sua família. Lá
doente, morre.
DF: Pra poder contar tem que fazer o quê?
JV: Tem que lavar água de pilão.
DF: Ouvi falar.
JV: Eh, água de pilão, lava água de pilão. Bota água, lava
pilão, aí dá pra pessoa. “Ah! Mas se tiver vivo, conta”, mas
tem gente que morre na hora, mas sempre conta também.
Assim, tem é muito desse que vem da Guiana.
DF: Vem da Guiana?
JV: Vem da Guiana.
DF: Já me falaram isso também.
JV: Vem da Guiana, vem daquelas serras, pro lado do
Bonfim. Ali só tem parente rabudo pra lá. Aqui nessa faixa
da Venezuela tem; pra Guiana tem; tudo vem de lá.
DF: E eles fazem por fazer, não tem motivo nenhum.
JV: Sem motivo nenhum. Às vezes é assim, eles trazem
trança de peneira, jamaxim, abano, essas coisas assim, al-
gumas coisas que eles trazem, panela, lá vindo da Guiana,
eles trazem. Aí eles vêm vender a troco de uma rês. Vamos
dizer: eles tem uma rede, e querem uma rês, aí: “Ah! não, tal
dia nós vamos pegar, a gente deixa tudo fiado. Tá bom nós
vamos voltar.” E com poucos dias eles já vêm fazer isso já, aí
não tá nem esperando, tá devendo, quebram dois, três por
aí, aí vem embora, aí eles viram lobisomem (nós chamamos
oilubut, que vira bicho, aí vira tamanduá, se transforma em
tamanduá; transforma até na galinha, no cachorro; até em
mambira, tatu, tudo ele se transforma, tudo bicho. Aí fica
gritando assim, como imitando grito de macaco, imitando
pássaro, imita assim quando tá virando lobisomem, nós
chamamos assim no macuxi oilubut, que é lobisomem no
macuxi, oilubut.
DF: E iniciação de menino ou menina, como é que era
antigamente? Menina quando tá na puberdade, virando
mocinha, o que é que fazia antigamente?
JV: Antigamente, quando a menina se formava, era mui-
to difícil andar como hoje, não tem mais a lei, né? Hoje já a
menina se forma, como tava dizendo agora, a menina hoje
nasceu, com meia hora tá de calcinha, mas naquele tempo
a mãe da menina, e os curumim mesmo, não usavam roupa
primeiro, não usavam roupa não. A mulher nascia, até mu-
lher mesmo, até quando arranjava marido, e naquele tempo
[quando ia] arranjar marido, ela era moça, não era como hoje
que menina de dez anos não é mais nada. Antigamente tinha,
existia menina moça, porque... não usava calcinha, mas tinha
respeito, tinha lei pra não coisar isso. Naquele tempo, era
muito cuidado que eles tinham quando a menina se formava.
Aí diziam assim: “Mamãe, já sangrei agora...” Aí cortavam o
cabelo bem curtinho assim, cortezinho assim, aí escondiam
lá dentro, aí só saía de lá depois de um mês. Aí guardado lá,
pendurado lá em cima, lá que a mãe dava [tudo]. Só tirava
escondido ela pra fazer xixi, levavam ela bem escondido dos
272 Projeto: Panton pia’
outros pra ela fazer cocô. Pra ela urinar era bem escondido,
ninguém não via não. Quando depois de um mês, quando ti-
ravam de lá, que faziam... Aí tem esse urucum né, chama hoje
de urucum que faz de coisa, colorau, esse daí. Apanhavam
um bocado aí, misturavam, fazia e dava pro velho rezar, pra
poder levantar da rede, levantar pra poder olhar os outros,
pra poder andar com os outros. E o velho rezava, aí tirava
da rede, aí fazia, fazia um cinturão de miolo de buriti, tinha
mais isso ainda! Ele botava, tirava esse daí, trançava um
cordão assim: “Agora cunhantã vai sair hoje.” E lavava ela
por aqui tudo, nas pernas dela, por aqui tudo. Aí tinha mais
outro ainda, molho de pimenta que passava por aqui pelos
pés dela, por aqui pelos olhos, tudo.65 Aí depois que passava 65
Essas foram ditas e acom-
esse urucum, pintava ela tudo bem vermelho por aqui na panhadas por uma gesti-
culação indicando onde
cabeça dela, por aqui no pé, tudo, pelos tudo pintado, pra eram passadas a pimenta,
poder sair, né? [...] Hoje ninguém não faz mais: a menina se o urucum..

formou, aí fica por aí mesmo, não tem mais respeito. Aí, até
antigamente... Por isso não adoeciam primeiro, não adoe-
ciam não, todo pessoal era sadio. Hoje a menina de 10, 12, tá
adoecendo, tá desmaiando, porque não aguardou a lei que
o vovô, antigamente, eles guardavam, não existe mais hoje,
tá na civilização, não deixa né? Aí não tem como.
DF: Sim.
JV: Né?
DF: E os meninos, tinha alguma coisa?
JV: Os meninos... Os meninos ficam rapazes, mas era
assim mesmo. Antigamente, os velhos criavam filho assim:
eles usavam muito, tal de puçanga. Usavam puçanga de
veado; usavam puçanga de jabuti; usavam puçanga de
capoeiro; usavam oração de tatu; de paca. Tudo tinha uma
parte, uma plantazinha como diz daí, eles usavam. O que é
que eles faziam? Os velhos, que eram pais deles, tratavam as
crianças, esses meninos, pra ser caçador, pra ser pescador.
Aí tem aquele, nesse mato por aí tem um [jericazinho], ele
corta que só. Aí tem aquele tal de, como que chama?, um
mato que tem por aí, aí corta tudo, mistura com pimenta. Aí
mandava pela venta, aí já pegava tudo assim, essas pimentas,
Projeto: Panton pia’ 273

tudo eles passavam. Aí metia assim corda pela venta, aí tirava,


cortava tudo, tá tratando. Aí passava um mês, aí levavam ele
pra caçar, pra pescar, aí tá pegando peixe. Pegando peixe aí.
Por quê? Porque foi tratado, aqueles que não eram tratados
não pegavam nada.
DF: Pegavam não?
JV: Não pegavam, não. Aquele que não era tratado não
caçava, não enxergava veado, porque botava [pimenta],
planta nos olhos. Aí quando vai andando, tá olhando veado:
“Tem um veado ali.” “Mata!” Também eles não comiam
aquela caça que ele matou.
DF: A primeira.
JV: A primeira. Só comia já a terceira caça que ele matava,
que ele já podia comer; mas a segunda, primeira e segunda
ele não comia.
DF: O senhor sabe por quê? Tem alguma explicação?
JV: É porque, se ele comesse logo caça dele, que ele
matou, ele não matava mais, não matava mais, não acertava
mais tiro na caça. É por isso que era assim. Então, esses meni-
nos também, também tinham tratamento também, pra fazer
caxiri. Por que é que hoje caxiri não é mais gostoso? Hoje se
chama caxiri, chibé. Antigamente, quando as mocinhas iam fi-
cando grande, a mãe delas, avó pegava aquele mel de abelha,
aí queimava bosta de cachorro, secava bosta de cachorro por
aí, aí misturava, aí pegava folhinha, corta né, aquelas folhas
amoladas, aí cortava a língua delas assim, mandava botar
a língua pra fora, aí cortava, tudo cortava, botava sangue
pra fora, aí deixava o sangue sair. Aí quando o sangue saía,
parava, aí mandava lavar com água, aí já queimava com esses
negócios. Já tinha pimenta malagueta por cima, aí queimava
tudo. Aí quando fazia caxiri, aí fazia um caxiri!: “Agora mas-
tiga beiju!” Então, é assim a história do parente. Aí molhava
um bocado daquele beiju assim, aí molhava de molho, botava
de molho assim, mastiga aquilo tudinho. Aí como tinha o do
finado velho Cícero que morreu, o gaúcho, caxiri de boca, aí
mastigava caxiri, aí botava na vasilha. Aí, massa tá cozinhan-
274 Projeto: Panton pia’
do lá na panela, né?, tá no fogo lá a massa que faz caxiri. Aí
pegava essa outra coisa mastigada e misturava lá todinha.
Aí quando cozinhava tudo, tirava, peneirava. Quando dava
três horas, o caxiri tava bom de beber, já tava azedo já. Era
assim que se tratavam. É o trabalho de mulher fazer caxiri
ficar forte, azedo. Ficar apurando assim, tipo como estar
fermentando, né? Fermentando, é.
DF: Me contaram que é assim mesmo.
JV: Pois é assim mesmo. Hoje não usa mais, não tem mais,
não tem mais não.
DF: Hoje é diferente?
JV: É diferente, muito diferente. Antigamente tinha uma
cantiga da mulher, que o finado vovô cantava. Nesse tempo
não tinha motor, era ralo. Estão ralando mandioca aqui no
ralo, mandioca, aí estão ralando, e tinha a cantiga.
DF: E como é que era?
JV: Era assim, finado vovô cantava assim, diz assim:
Pîkakî sumari, pîkakî sumari, pîkakî
Wirisi yenpî’kakî, wirisi yenpî’kakî, wirisi
Sau, sal ta to’ pe sumari ya, pî’kaki wirisi
Sau, sau, sau, só.

[Acorda ralo, acorda ralo, acorda ralo. Acorda.


Acorda menina, acorda menina , irmã
Para o ralo dizer sau, sau, menina.
66
Esses sons finais são ono-
Sau, sau, sau, só] 66
matopeias do barulho oriun-
do do ato de ralar mandioca.
É mulher que trabalha com mandioca. “Mari.” é ralo, tá
mandando o ralo acordar pra fazer “sosó.” e pra ralar, pra
fazer ralo, aí diz assim:
Pîkakî sumari, pîkakî sumari, pîkakî
Wirisi yenpî’kakî, wirisi yenpî’kakî, wirisi
Sau, sal ta to’ pe sumari ya, pî’kaki wirisi
Sau, sau, sau, só.

Aí elas vão fazendo chiiiiii67, mulher tocando e chiiii, chiiii, 67


Imita som do processo
ralar mandioca.
fica cantando, mulher cantando.
DF: Ela sai cantando e sai ralando.
Projeto: Panton pia’ 275

JV: É... Sai ralando. Só o que eu aprendi nunca esqueci até


hoje, e essa eu aprendi desde faz tempo, nunca que esqueci
dessa música.
DF: Dessa música.
JV: Dessa música, até hoje eu canto. Aí às vezes, aí eu
canto de manhã, quando um fala: “Esse velho já amanhe-
ceu doido de novo!” É que eu lembro né, aí os outros ficam
malinando aí...
DF: Sabe alguma outra música?
JV: Não, não sei não.
DF: Essa aí o senhor guardou, né?
JV: Só essa que eu guardei. Não sei por que não saiu da
minha cabeça. Eu escutei faz tempo quando eu era criança,
quando vovô cantava assim pelas festas. Pois é, só sei que
são assim minhas histórias.
DF: E o senhor já passou alguma vez por algum tipo de
preconceito, alguma coisa, por ser indígena? Como é que o
senhor vê os índios hoje, essas questões todas?
JV: Professor eu, quando me entendi nesse... Até 1970,
a gente vinha vivendo assim tudo em paz com os brancos,
nunca via briga lá atrás. Dizem hoje, dizem: “Ah! Por que bran-
co mata?” Como que eu estou dizendo que os portugueses
vieram pegar lá o pessoal lá, vieram pegar o pessoal daqui né,
há tempos atrás. Aí, mas de lá pra cá, nós víamos aqui muito
fazendeiro. Agora, fazendeiro batia na gente por quê? Porque
pegavam uma rês dele, sem pedir dele. Até hoje ninguém não
gosta né, pegar o que é da gente, ninguém não gosta não.
Então, branco criador, quando índio pegava um boi dele,
aí às vezes foi descoberto, aí ia pegar e dava uma surra e
botava pra trabalhar de graça. Por quê? Pra pagar o que ele
fez, não era assim à toa. Então, nós vivemos até, quando eu
trabalhei com esse branco, eu trabalhei com esse meu pai
que me criava, ele era riograndense, do Rio Grande do Sul.
A mulher dele também era do Rio Grande do Sul, era Maria
Viei... Mariano Vieira. Aí no [município de] Normandia tem
276 Projeto: Panton pia’
ainda família dele, esse Chico Vieira, o único irmão dele que
tem lá. Aquele pai do “Pipoquinha,”68 esse Mariano Vieira. 68
Aqui refere-se ao líder da
Pipoquinha de Normandia,
DF: Ah! Sim. banda de forró originária
deste município.
JV: É pai dele. Ele é meu irmão de criação, esse “Pipo-
quinha”, que eles dizem que é tocador, cantor, esse daí é
meu irmão de criação, ele. Eu fui criado com pai dele. Então,
naquele tempo, não existia encrenca com branco. Meu pai
trabalhou muito na serraria com os brancos fazendeiros,
trabalhava na serraria fazendo cercado, fazendo curral. Meu
pai nunca apanhou não, nunca sofreu não, ninguém nunca
sofreu. Então, quando fui trabalhar com os brancos, fui traba-
lhar com aquele Mariano Vieira que falei agora, me criou com
7 anos [até 16 anos]. Corria com mulher do poder dele né? Aí
o que hoje eu vejo. Então, de lá pra cá, nós, a gente vê muito
tudo festejo de Natal e aonde nós festejamos lá no - não sei
se o senhor já foi lá no Maturuca? Ali era ponto de gente.
Antigamente, os tuxauas eram respeitados, não tem tanto
tuxaua miúdo como tem hoje. Cada comunidade tinha, tem
tuxaua hoje, novo, curumim; antigamente era tuxaua velho,
tuxaua era respeitado, tinha umas espadas, até hoje não sei
cadê essas espadas deles. Umas espadas, eu vi lá na Serra
do Sol, lá na comunidade Serra do Sol de Roraima tem uma
espada. Uma mulher mostrou lá pro exército, essas espadas,
tempo de general Rondon. Deixou essa espada pro finado
pai dela. Quando estrangeiro chegar aqui em Roraima, aqui
no Brasil é pra mostrar essa espada pra esse estrangeiro, que
essa é a defesa do Brasil, que general Rondon deixou pra ela.
Aí no Maturuca a gente também tem. Até eu procurei, por
esses dias, essa espada, porque ainda tá lá. Então, quando
tuxaua lá era Melquior, perguntava, convidava toda região,
olha, Pedra Branca, Uiramutã, Socó, Lilás, Morro, tal de Ma-
cedônia, Maracanã, Santa Maria, por aí, nessas malocas tudo,
pra tudo ir. Tinha uns fazendeiros, aí falavam com o patrão
lá, com o dono da fazenda, diziam: “Olha, nós queremos
umas quatro rês pra festejar.” Eles davam, eles davam as
reses, eles não vendiam não, eles davam. Aí eles cozinha-
vam, tratavam tudo, também caçavam, também pegavam
Projeto: Panton pia’ 277

veado, peixe, jabuti, tatu, fazia logo. Todo mundo comia, né?
Aí nunca acontecia de maltratar com nós. Por que é que tá
acontecendo hoje? Padre Jorge chegou aqui em 1970, 69...
DF: Quem?
JV: Padre Jorge. Padre Jorge, que chegou aqui pra fazer
essa guerra aqui. Foi padre Jorge que trouxe essa guerra.
Antigamente os padres pegavam tudo. O padre chegava na
comunidade fazia batismo, fazia casamento, era um padre
mesmo que fazia casamento, não tinha guerra não. Agora,
em 69 o padre chega aqui em Roraima, aí ele trouxe guerra.
Foi o primeiro guerreiro, foi esse padre Jorge, que chegou
aqui em Roraima. Não tem outro padre que trouxe guerra,
não, foi padre Jorge que trouxe essa guerra aqui em Roraima.
DF: Isso foi na década de 70.
JV: Foi na década de 69 que ele chegou aqui. Aí o que é
que ele fez? Esse padre Jorge andava nas fazendas dos fa-
zendeiros. Andava, passava semana na fazenda e tratavam
ele muito bem, porque ele era padre. Destar que ele tava
prestando atenção como ele vivia. Aí passava semana nas co-
munidades vendo a situação também dos parentes também.
Aí quando foi na de 70, 71, ele disse assim, ele falou, eu sei
bem lembrando dessa história do padre Jorge. Ele fazia reu-
nião nas comunidades, ele fazia assim: “Olha, vocês botam
os brancos pra fora, esses brancos não são daqui não, esses
brancos vem aqui, tá na custa de vocês aqui, usando terra
de vocês, criando gado pra eles com vocês passando fome
aqui”. Ele dizia né, padre Jorge: “Quando vocês acabarem
de matar gado dele aí, aí vocês não vão precisar não, porque
é de vocês, o gado é de vocês.” Aí o pessoal tinha medo de
matar gado. O finado velho Jair tinha muito desse aí, eram
quarenta e cinco mil reses, era o maior fazendeiro que tinha
em Roraima, que tinha placa nº 01, maior fazendeiro aqui
em Roraima. Aí acabaram com medo. Começaram a come-
çar. Aí tem aquele motorista da FUNASA, meu primo Lauro,
foi criado com Jair, e ele apanhava muito quando ele era
curumim. Aí então ele serviu o quartel, aí deu baixa e ficou,
278 Projeto: Panton pia’
voltou pra lá; foi ele que começou a matar gado. Aí chegava
gado assim no terreiro, muito boi, vaca gorda, boi gordo, aí
falava pro irmão dele, pro Pereira que mora lá: “Mano, me
dá uma espingarda que tem um veado bem ali assim.” “Tu
não tá mentindo não, Lauro?” “Não, não estou mentido que
eu vou lá matar ele.” “Já foi embora.” “Não, não foi não!”
Aí pegou espingarda dele, aí foi lá [...] pertinho assim, boi
tava comendo no terreiro. Aí “pow”, matou né. “Mas rapaz,
tu matou!” “Não, rapaz, tá com medo é? Umbora comer
gado. Eu já apanhei tanto, por que é que vou apanhar? Não
vou apanhar mais não.” Aí, por aí começou. Filho do velho
Jair Alves tinha quarenta e cinco mil reses, eles comeram
dez mil reses do Jair. Aí Jair: “Já que não estão nem mais
tratando carne certo, estavam só tirando carne numa boa e
deixando o resto, aí quase todo mundo entrou!”, ordem do
padre Jorge. Aí, finado velho Jair trazendo polícia, levando
polícia, levando exército, fazendo medo. Aí: “tá bom de
vocês começarem fazer o retiro ali, o gado vem pra vocês.”
Aí quebraram forças dos fazendeiros, aí já coligaram com
Funai também. Aí Funai já foi botando Polícia Federal em
cima, aí retiraram fazendeiro tudo. Até hoje estão tirando.
Estão tirando até hoje. Quem fez isso foi padre Jorge; mas
antigamente ninguém não vivia assim não. Porque quando
fazendeiro tinha um serviço, convidava: “Compadre, tem um
serviço pra fazer, um cercado, limpar terreiro...”. Eles não
levavam de graça, eles pagavam. Aí eles [os índios] falavam:
“O senhor me vende uma rês?” “Vendo, tanto. Então, tu faz
esse trabalho.” Aí vendia uma rês, aí pra trocar com sal, pra
trocar com roupa, tudo ele fazia. Naquele tempo era difícil,
não tinha roda de carro, hoje tem muita roda de carro e estão
querendo acabar? Então, era difícil. Nós enchemos tanto de
vasilha olha, o telefone bem aí, qualquer coisa a gente corre
aí. Aí não existia isso, chave na porta, mas naquele tempo...
Então, tudo existiu isso, não maltratavam não, mas hoje eles
dizem: “Não, porque fazendeiro maltratava, batia muito nos
índios.” Índio nunca foi maltratado não, nunca foram mal-
tratados não, contrário, os brancos que ajudavam a gente.
Agora, hoje é que nós vamos sofrer. Tem um senhor ali em
Projeto: Panton pia’ 279

casa, lá do Mutum. Por que tá saindo do Mutum? Porque


lá tá no sofrimento. Tiraram a vila lá do Mutum, não tem
mais branco, só tem dois lá, vão tirar energia de lá. Vão tirar
telefone de lá. Eles estão vindo pra cá, eles vêm falar com o
pessoal pra vir aqui na maloca, pra arranjar transporte pra
buscar, pra fazer mudança dele pra cá. Tem muito deles que
estão por aqui na beira da estrada aqui, que estão morando.
Tudo vem da região da serra, aí pro lavrado, pra serra do
Pium tem muito parente, estão fugindo tudo pra cá. Por
que é que estão fugindo? Por que é que não ficam pra lá?
Agora que eles vão sofrer. Lá tem muita gente aposentada.
Aqueles que não são aposentados não têm sabão, não têm
sal, não têm roupa. Não tem mais branco! Estão pra retirar
todo mundo daqui. Pra onde nós vamos agora? Nós já esta-
mos acostumados, comunidade que hoje tá na civilização,
nós comemos sal, nós comemos tudo que o branco usa,
que nós não temos a fábrica de nada. Nós sabemos fábrica
de farinha, de beiju, pajuaru, e de rede de fio, mas de roupa,
ainda não tem fábrica de fazer roupa não, nem sal, não tem
fábrica aqui, não tem. Aqui andaram os técnicos de [...], pro
pessoal fazer, plantar cana, fazer açúcar, aquele pessoal
que fez curso aí pra fazer açúcar, fazer rapadura, tudo, mas
não estão fazendo, ninguém não tá plantando não. Por que
ninguém não planta, né? É que aqui não vem pra gente como
vem professor pra ensinar no colégio. Também a gente pre-
cisa pra ensinar a gente também, mas ninguém não faz, por
quê? Aí, da outra vez que nós fizemos, nós trouxemos ele
pra fazer, pra ensinar a fazer tudo isso. Então, é assim que
a gente vivia primeiro. Não tinha maldade do branco não,
a gente vivia tudo junto. Eu participei da assembleia lá em
Boa Vista, essa da ALIDCIR, essa que o pessoal de Brasília
veio. Uma mulher e três homens, uma pequena gente aqui
de Roraima, vieram ver a situação desse pessoal que é a
favor do branco, a SODIUR. Aí falaram muito, aí você vê o
documento que nós falamos, esse documento aqui então,
leva esse documento aqui de volta. Agora, tudo nós temos
documento, porque disseram, Funai chegou aqui dizendo
280 Projeto: Panton pia’
que nós somos os primeiros índios brasileiros daqui da terra.
Agora, por que é que nós não somos agora? “Terra não é de
vocês não, porque vocês são ocupantes de terra. Índio não
é dono de terra, ele é ocupante. Essa terra é de União, não
é de vocês não!”

DF: O que é que o senhor pensa a respeito disso?

JV: Eu penso que ninguém não tem direito mesmo. A


força tá aí, estão chegando, tá faltando respeito, ninguém
não pode fazer nada. Aqui nós discutimos com a Funai, ali
também no BV-8, sobre isso também. A Funai não dá nada,
não dá colégio, não tem saúde, não dá nada, só tá ganhando
dinheiro nas custas da gente, em nome do índio. Não tem
nada na vida do índio aqui.

DF: E o que o senhor pensa nessa questão da terra ser


da União e o índio só...
JV: Só pra ocupar a terra.
DF: Por exemplo, o senhor não pode fazer algumas
coisas, né?
JV: Não pode. Como que não podemos fazer?
DF: Bom, a lei não é assim que funciona? O senhor não
pode tirar terra daqui, pedra, pode?
JV: Pode não.
DF: Então, é essas coisas...
JV: Olha, aqui, aqueles parentes bem aqui no malocão,
ali embaixo...
DF: Sim.
JV: Aqueles são fiscais, é da Eletronorte, da associação
São Marcos. Ninguém não pode vender pedra, ninguém não
pode vender barro, ninguém pode vender areia, nem palha,
não pode vender nada. Eles estão aí. Se a gente tá venden-
do madeira, aí eles estão aí perto. Tomaram. Tem até um
senhor ali no Igarumã, com um filho aleijado, tava com oito
metros de tábua pra vender, pra comprar alimento pro filho.
Projeto: Panton pia’ 281

Aí o parente, o próprio parente mesmo fiscal foi lá e disse:


“Você tá vendendo aqui?” “Não tô vendendo.” Aí tomaram
o trabalho dele. “Não, mas eu sou índio!” “Não, você não
pode vender nada não.” Tomaram madeira dele pra lá. Aqui,
o próprio parente tá contra a gente. Ele tá ganhando dinheiro
e nós não ganhamos nada. Agora, isso que eu penso: como
é que nós poderemos viver agora, do garimpo? Quando me
entendi no garimpo, como eu disse pro senhor, todos nós
tínhamos dinheiro, mulher tinha dinheiro, curumim desse ta-
manho tinha, porque vivia no garimpo. Aí nesse tempo desse
padre Jorge fechou esses garimpos tudo, tudo ele acabou,
tudo padre Jorge acabou, tudo. [Depois veio] esse Jaci, esse
pessoal tudo aprendiz de Jaci. Aqueles chefes deles aí só
vêm pegar o dinheiro em nome de comunidade. Ninguém
nunca vê ele, só vive trocando de carro, todo ano tá trocando
carro. Nós não temos dinheiro, esse dinheiro vem com todo
mundo. A linha da Eletronorte passou aqui e deram não sei
quantos mil pra dar de seguro pras comunidades. Só uma
pessoa usou esse dinheiro, e hoje tá sumido. Hoje o pessoal
tá cobrando esse dinheiro, mas eles dizem que já pagaram.
[Parece que é assim mesmo], Jaci tá pegando dinheiro, lá
pelos Estados Unidos, por aí, com o nome de comunidade,
só tá só pra ele. Porque tá sofrendo por aí, tá sofrendo por
aí? Outro dia, ano passado, teve um irmão meu baleado com
uns tiros assim, na lavoura do Paulo César, mas que ele veio
procurar. Ele foi mexer com a área do homem! Então, isso
não tá de acordo, não.
DF: Sei.
JV: Garimpo fechou, apareceu tanto pilantra na cidade,
apareceu tanto ladrão. Por quê? Não tem mais aonde tra-
balhar. Na fazenda não tem mais fazendeiro pra trabalhar,
não tem mais garimpo. Como é que nós vamos viver? Só tem
dinheiro pro funcionário, né, que estudou, que terminou
estudo, pro governador, pra Funai. Pra esses ladrões aí tem,
pros padres tem dinheiro. Tem um senhor aí que me con-
tou, quando o primeiro dinheiro saiu aqui em Roraima, pela
Diocese, né, os padres lá, esse padre Jorge tava lá na terra,
282 Projeto: Panton pia’
lá com o Papa, onde mora pra lá. Tem tantos mil milhões,
oferta dinheiro pra ajudar essa Diocese de Roraima. Davam
de cinquenta, cem mil reais de dinheiro aí por cada oferta pra
vir pra cá pra Roraima. Então, chegou muito dinheiro, mas só
que não deram gado pra todo mundo, gado ficou todo pra
lá. Pra lá eles têm muito gado. Parente fala que tem muito
gado. Aí ficamos sofrendo assim sem nada, hoje tá na briga
já, já demarcaram a área tudo. E aonde é que nós vamos ficar
agora? Aonde que nós vamos comprar nossas coisas? É muito
sofrimento, fica difícil. Aí passou um militar aí, um senhor
gaúcho falou: “Olha, agora vai ficar ruim pra nós todos, não
é só pra vocês não, pra nós todos vai ficar difícil.”
DF: Nem pra um nem pra outro, né? Vou repetir uma
pergunta que já fiz e o senhor não falou: o senhor já passou
por alguma forma de preconceito por ser índio?
JV: Não.
DF: Nunca?
JV: Não, nunca.
PV: Sempre normal.
JV: Eh, sempre normal.
DF: Tá certo. Acho que tá bom, senhor Vitor.
JV: Eh, acho que é só isso mesmo que eu sei...
DF: Alguma coisa que o senhor lembrou?
HM: O senhor não falou sobre um momento feliz da sua
vida.
JV: Como?
HM: Um momento feliz na sua vida?
JV: Não, eu até agora eu vivo feliz na minha vida, porque
eu vejo assim sem perturbação de ninguém, que eu vivo
feliz, trabalhando.
DF: E um momento triste, uma coisa que marcou o senhor
muito, que o senhor viu acontecer e que nunca esqueceu,
Projeto: Panton pia’ 283

no garimpo?
JV: Eh, no garimpo eu vi. Eu fiquei muito triste, porque
eu vi duas mortes de faca no garimpo, quando trabalhava
no garimpo. Os parentes mesmo se esfaquearam, que eu vi,
foi muito triste. Eu vi o pessoal morto na beira do rio assim,
esfaqueado, foi muito triste. Conhecido, era meu amigo que
morreu. Eu fiquei muito triste no garimpo. Agora, depois
nunca mais, depois teve muita alegria no garimpo porque
pegava muito dinheiro, mas hoje não tem nada. Como eu
disse né, não tem nada.
DF: Entendo.
JV: Peguei muito dinheiro.
DF: Muito diamante?
JV: Muito diamante, naquela época era diamante, não
era ouro não.
DF: Sei.
JV: Peguei muito dinheiro. Se eu tivesse aproveitado bem
esse dinheiro eu seria milionário até hoje.
DF: Qual foi o maior diamante que o senhor pegou até
hoje?
JV: Sim eu peguei muito dinheiro, muito diamante.
DF: Mas o senhor pegou algum grande?
JV: Não, nunca peguei não, só mesmo os medianos, de
180, 170 pontos, 80 pontos, assim.
DF: Sim.
JV: De quilate.
DF: O senhor tinha muito parente no garimpo?
JV: Era mais indígena que trabalhava, era mais indígena.
Depois chegou muito pessoal de fora.
DF: Que veio de fora?
JV: Assim, cearense, maranhense. Mas o que mais tem
284 Projeto: Panton pia’
é cearense, né?
DF: Sei.
JV: Amazonense é muito difícil no garimpo. Chegou mais
cearense, paulista também.
DF: E me diga uma coisa, o senhor sabe alguma história
do timbó, a história dele?
JV: Timbó?
DF: Eh, timbó, pescar né?
JV: É, tem timbó aí.
DF: Mas o senhor sabe alguma história, algum mito atrás
dele, narrativa, alguma coisa?
JV: Esse timbó, são três qualidades de timbó: tem timbó
“folha”, tem folha que é uma, uma folhinha mesmo assim,
uma folhinha redonda. Esse daí mata peixe também, mas
ele é zangado. Ele tem que pegar dois sacos daquele, aí ma-
chuca ele todinho, calado, né? Tem um pocinho assim cheio
de peixe, aí machuca ele todinho, aí ele, porque tem gente
como o senhor ali. Aí ele manda: “Vocês calem a boca aí, va-
mos botar calado, sem gritar, sem bater água.” Aí machuca
todinho, aí bota, aí vai botando no saco aquela golda dele
todo, aí quando os peixes estiverem boiando já começando
a virar, deixa eles morrerem né, não deixa ninguém pegar
não, deixa ele morrer primeiro. Quando estiver tudo ruim,
morrendo mesmo, aí eles começam a pegar. Quando gór-
dio, que eles começam a pegar, aí pega todinho. Mas antes,
quando ninguém obedecia ao chefe que tá mandando não
mexer, se mexer, os peixes ficavam todinhos, aí esse timbó,
essa folha, elas ficavam, a água ficava roxa todinha.

DF: Roxa?

JV: Ficava roxa tudo, porque zangou já, já zangou. Todo


ele é zangão. Essa raiz também chamam de timbó também.
Ele zanga também. Aí essa raiz, eles arrancam muito essa
folha, muito assim, trinta, quarenta sacos pra botar no rio,
no rio assim. Quando o rio é seco, aí bate tudinho, aí mesma
Projeto: Panton pia’ 285

coisa. Aí: “Bota aí todo mundo por igual. Deixa os peixes


morrendo aí, quando tiver aí, não vão flechar ele agora não,
fica com flecha, né.” Aí deixava morrendo, revirando tudo,
aí dizia: “Pode começar a ajuntar peixe.” Aí vamos embora
matando peixe aí, morrendo tudo, aí se mexer também ele se
zanga. Aí peixe fica bom todinho, não morre não, não morre
não. Tem outra que é chamada “casca”, também tem casca
que é igual sangue. Esse é zangão também, tem que botar
com muito cuidado. Aí morre peixe, deixa morrer. Agora,
quando peixe estiver começando a morrer também, se mexer
com ele também ele fica bom todinho, ele zanga também.

DF: Entendo.

JV: É assim o timbó.

DF: Tem que seguir o que o chefe tá falando, né?

JV: Tem que obedecer ao que o chefe tá falando, se não


obedecer ele se zanga pra lá, aí a gente passa fome.

DF: Sei.
JV: Eh.
DF: Então, tá certo senhor Vitor.
JV: Ouvir dizer professor, que esse timbó tá servindo pra
diabetes?
DF: Eh? Não estou sabendo, não.
JV: Estão dizendo por aí que não é pra dizer pra ninguém,
mas estão dizendo aí pra Venezuela. Diz que pra Venezuela...
DF: Estão usando.
JV: Já usaram esse timbó, essa raiz que tem na mata. Aí
lá condenaram ele de doente de AIDS, de diabetes. Então,
porque lá eles não tratam, quem tá condenado vai embora,
quem tá condenado morre pra lá. Aí, lá vai, aí pega cipó que
é esse timbó.
DF: Entendi.
JV: Aí arrancaram: “Vamos logo tomar esse timbó que
286 Projeto: Panton pia’
nós morremos aqui mesmo, nós já estamos sofrendo por
aqui.” Aí pisaram, aí tiraram aquela golda do timbó, tudo.
Aí tiraram um pouquinho assim, aí manda pro peito; aí des-
maiaram. Quando foi umas dez horas aí acordaram, tudinho
acordou, com fome [risos], com fome acordaram, aí levaram
pra comer tudo. Quem tava com AIDS também provocou.
Aí ficou tudo bom. Aí passou um dia, voltaram, tudo bom.
Aí foram pro médico, aí foram fazer exame, não tinha mais
nada. Aí perguntou: “O que é que vocês beberam? Com o
que é que se trataram?” “Nós nos tratamos, nós tomamos
golda de timbó.” Aí ficam provando. Aí estão estudando pra
fazer remédio pro diabético, pra AIDS.
DF: Se for bom, que beleza, não?
JV: É porque esse aí a gente bota num igarapé desse, mata
piaba. Às vezes não mata tudo. Aí água fica limpa, limpa,
limpa; depois que a gente coisa né, limpa a água bem limpa,
o igarapé fica tudo limpo. Aí deve ser bom pra remédio, aí
eles devem estar provando esse.
DF: Tá certo. Se o senhor tiver uma história depois que
quiser contar pra gente, a gente volta.
Projeto: Panton pia’ 287

Projeto: Panton pia’


Entrevistado: Aprígio Ramos (AR)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Local: Comunidade Guariba, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Assistente de Entrevista: Huarley Mateus do Vale Monteiro
Data da Entrevista: 21/03/2009
Transcritora: Ana Maria Alves de Souza
Conferência de Fidelidade: Airton Vieira
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 28’’35’’’
288 Projeto: Panton pia’
DF: Qual o nome do senhor?
AR: Aprígio, Aprígio Ramos.
DF: Aprígio Ramos. Qual a idade do senhor?
AR: É sessenta, sessenta e oito, sessenta e nove.
DF: Sessenta e nove?
AR: É.
DF: O senhor nasceu quando?
AR: Em 1930, 39, por aí assim. Tá na minha identidade,
por aí assim.
DF: A etnia do senhor é a macuxi?
AR: É macuxi.
DF: Hoje na comunidade o senhor tem alguma função?
De tuxaua ou secretário, alguma coisa?
AR: Tem. Tem esse aí que passou, o tuxaua, né? Tem outro
irmão dele, o Alfredo, é segundo dele. Agora secretário não
tem não. Tem não.
DF: Mas o senhor tem alguma função hoje?
AR: [risos] Não entendo muito bem.
DF: A pergunta?
AR: Sim, português.
DF: Ah! Entendi agora.
AR: A função, função...
DF: O senhor representa alguma coisa na comunidade
hoje?
AR: Não. Apenas que sou membro.
DF: E o senhor chegou a estudar?
AR: Eu sei ler um pouquinho e escrever. Eu estudei, eu
estudei em 1940, em 49. No tempo da escola que começou,
na Escola Beteu no bairro Surumu. Estudei só um ano só. Só
aprendi a escrever meu nome e eu sei as letras. Eu entendo
Projeto: Panton pia’ 289

as letras tudo, mas eu não sei. Eu tava com doze anos, quan-
do comecei a estudar, tava com doze anos, e eu não sabia
69
Dentre os indígenas en- falar português, eu entendia só gíria,69 gíria, esse macuxi,
trevistados, “gíria” refere- né, eu falava só isso aí. Que meu pai, minha mãe não sabiam
-se à língua nativa.
falar nada; meu pai só falava gíria, então me ensinaram a
falar gíria. Aí quando eu entrei na escola, eu não entendia
português não; aí quando eu aprendi, recebi o livro desse
abecedário, aí eu aprendi. Eu aprendi ler antes de aprender
falar português. Eu aprendi ler livro; eu aprendi mais ligeiro
as letras. Depois foi aprendendo português, pouco; entendia
mais um pouquinho português. Aí fui assim. Aí entendo mais
português, pouco.
DF: Como é que era a escola naquela época? Qual foi a
dificuldade que o senhor teve?
AR: Porque acabou a escola. Parou. O missionário foi
embora, americano, na época, quando abriu a Escola Beteu.
Aí acabou, foram embora, voltaram os missionários, foram
embora pra terra deles. Aí ficaram as professoras, eram bra-
sileiras, de Boa Vista. Dona Levina, dona Edite Barros, que
era professora maranhense. Aí voltaram pra terra deles, aí
acabou, parou a escola.
DF: Parou a escola, né?
AR: Eh. Acabou. Quantos anos, não sei quantos anos
passou, aí ficou missionário Aroldo aí no Beteu. Sempre ele
caminhava pro Contão. Eu sou morador lá do Contão.
DF: Ah! O senhor é do Contão?
AR: Eh. Fui criado aí. Até quando nós tornamos a aceitar
os crentes, ser crentes. Era tudo bagunçado lá no Contão,
eh, tudo: vivia só na bebedeira, pajuaru, cachaça. Cachaça
morava assim perto, o comércio dos brancos aí, tinha outro
lá embaixo. Quando tomava pajuaru e acabava pajuaru iam
atrás da cachaça, traziam dois, três, garrafas e bebiam; tudo
na briga um com os outros, né? Vivia assim. Até quando nós
tornamos a aceitar a palavra de Deus, assim, os crentes, essa
Igreja Batista Regular, aí parou, parou muito no Contão. Os
velhos que entenderam a falar assim gíria, a pregação do
290 Projeto: Panton pia’
Evangelho, aí ficaram; tornaram mais ser crentes; entende-
ram mais; aí pararam com bebida; pararam mais com bebida.
Aí foi até quando eu vim morar pra cá, já tava parada já a be-
bida. Muitos não queriam parar, mas foi deixando, deixando,
deixando, e hoje parou, como até hoje tá parado a bebida.
Mas têm alguns que estão bebendo mais, tem muitos que
estão bebendo lá.
DF: Bebem ainda, né?
AR: Eh. Estão se matando, furando outro de faca, essas
coisas que tem acontecido lá. Até hoje existe ainda briga lá.
Mas pra aqui eu vim sozinho, eu saí de lá, eu vim pra cá. Até ia
com seu Macário e entrei pro Bananal. Cheguei lá no Bananal
com finado velho Bento, que era um velho daí também, que
era morador. Os filhos dele estão aí, que já morreu. Ele tinha
esposa dele, morreu também. Eu tava aqui quando morre-
ram. O velho Macário tava com esposa, morreu a esposa,
hoje tá sozinho sofrendo aí, tá velho já.
DF: Eu o vi.
AR: É esse aí. Eles são os moradores daí.
DF: O senhor chegou aqui quando?
AR: Eu cheguei aqui não sei que ano não, não sei que ano
não. O professor sabe, esse professor sabe. Esse tuxaua que
passou pelo senhor, ele sabe de que ano chegamos aqui. Eu
não sei que ano que eu cheguei aqui não. Aí foi indo assim.
Aí formamos comunidade. Precisei da escola. Aí esse meu
genro, professor João (a casa dele é ali), ele era professor,
veio de lá do Contão, aí casou com minha filha. Aí caminhava
daqui lá na entrada; tinha escola lá na entrada, nessa BR, sei
lá. Aí vivia assim, vivia encrencando lá, o pessoal de lá ficava
encrencando com ele. Aí procuramos levantar uma escola
aqui. Quando eu fui procurar, nós fomos procurar, preci-
sava tuxaua, aqui não existia ainda tuxaua não. Só era um
pouquinho, só um pouquinho, só nós mesmos: uns quatro
ou cinco, tinha uns dez alunos ainda. Aí nós fomos procurar
na Funai, aí disseram que só com o tuxaua. Atrás de tuxaua,
levantava a escola. Aí fomos procurar de novo, procurar de
Projeto: Panton pia’ 291

novo, foi indo assim. Aí tinha doze alunos quando levantamos


escola, bem ali assim onde tão estudando; aí era, não era
essa aí não, era outra casa. Aí começou aí, nós começamos
aí, começou, professor começou, foi trabalhando aí, até
que melhorou. Essa escola aí foi do tempo do governador
Neudo Campos, onde saiu no tempo dele. Assim foi senhor,
começando assim.
DF: Qual o nome dos pais do senhor?
AR: Meus pais?
DF: Eh.
AR: Era, meu pai é Afonso, Afonso; minha mãe Carolina;
meu avô é Moisés; minha avó era Alda.
DF: E todos eram macuxi?
AR: Tudo macuxi. Misturou com Monaicó; misturou com
eliang, porque meu avô é eliang, do pai do meu pai né, eliang.
Agora minha mãe é monaicó, pai dela, mãe dela, é tudo mo-
naicó. Aí misturou com eliang com monaicó. É assim.
DF: A sua esposa, ela é macuxi também?
AR: Minha esposa é macuxi.
DF: Quantos filhos o senhor tem?
AR: Tem, tem onze. Era doze, morreu um, uma filha, aqui
mesmo. Era quinze, morreram três, quatro. Aí ficou esses
filhos aí. Essa é só minha família daqui, não tem outra não.
É só mesmo esses. Agora aqueles ali são outros, lá da Pedra
Branca, esse acolá, aonde o senhor chegou lá na casa deles,
são da Pedra Branca. Chegaram por aí...
DF: Qual foi a coisa mais triste que o senhor viu nesse
tempo todo que o senhor viveu? Tem alguma coisa triste que
o senhor queira contar pra gente, que tenha vivido ou visto?
AR: Não senhor, tem não. Parece que não tem não.
DF: E alegre?
AR: É sempre alegre, somos crentes, evangélicos. Toda
292 Projeto: Panton pia’
semana a gente entra aqui na igreja; faz a pregação. Tem
nosso pastor, lá adiante, lá do fim das casas. Esse pastor é
parente mesmo meu, parente dos índios. Ele estudou pra ser
pastor, aí faz trazer a palavra de Deus pra gente. Explicar,
ensinar, ensinar as crianças andar, viver, assim na paz.
DF: Foi o senhor que fundou a comunidade?
AR: Foi. Fui eu que fundei. Os primeiros que chegamos
aqui era eu e ele, esse tuxaua, esse tuxaua mais velho, mais
velho da turma é esse aí.
DF: Ele é filho do senhor?
AR: Eh. Meu filho. Só nós dois que fundamos aqui.
DF: Que veio lá do Contão não é isso?
AR: Eh, do Contão.
DF: Como é que era a alimentação quando o senhor
morava lá no Contão, quando o senhor era menino? E hoje,
mudou alguma coisa?
AR: Era um pouco melhor né? Lá, lá tem muita gente que
diz que lá no mesmo lugar lá no Contão, lá no lavrado, dá,
plantando, trabalhando. Eles dizem né, tem muita gente que
diz isso aí. Aí quando eu vim pra cá, eu achei melhor do que
lá, porque lá dá no inverno, que planta mandioca, planta
tudo, o que planta lá só dá no inverno, mas quando chega
o verão brabo mata tudo, morre, seca, na beira do rio ali,
igapó, seca, seco, seco, seco mesmo ali.
DF: Aí não produz mais nada?
AR: Não, não nasce mais nada. No verão não, com dois,
três meses de verão, não nasce mais nada. Quente. Muito
seco. Aqui não, todo tempo, porque aqui é cabeceira do rio,
dos igarapés. Aí todo tempo é úmida a terra: aí não morre
não; não morre plantação; não morre não. Dá abacaxi, dá
o que a gente plantar, cana, não morre não. No tempo da
banana, banana comprida. Lá não existe, no Contão não
existe, não dá lá, terra não dá. Dá e, quando chega verão, cai,
desce antes de dar frutos. Aqui não, todo tempo dá banana,
Projeto: Panton pia’ 293

dessas bananas dá miúdo ali, de prata, banana prata, todo


tempo dá. Aí eu achei melhor aqui.
DF: Eh. Se se produz o ano inteiro é muito melhor, não?
AR: Eh.
DF: Vocês fazem algum ritual antigo ainda, alguma coisa
da época dos pais do senhor, o senhor lembra?
AR: Como?
DF: Por exemplo, os rituais antigos, fazem ou não ainda
na comunidade? Vocês dançam ainda o parixara ou não?
Acabou tudo...
AR: Não senhor. Dançava lá no Contão, eu cheguei ver
dançar quando tinha doze anos, antes de ir pra escola. Depois
mesmo da escola, tá com quinze anos, existia esse parixara,
existia. Meu pai dançava o negócio de aleluia, chamam outro
tipo de cântico que eles chamam sem ser parixara, né? Nunca
vi papai dançar parixara, mas tem outro tipo de dança dele
e que dançava assim rodeando; assim, rodeando, tomando
pajuaru, bebo, só tinha essa aí. Aí quando acabou esse aí,
parou tudo, quando nós aceitamos religião, crente né, aí
acabou tudo, parou tudo. Aí ninguém, não existe mais essas
coisas aqui no nosso meio não.
DF: Tem algum canto naquela época que o senhor lembra?
AR: Cântico?
DF: Eh. Quando o senhor era criança o seu pai cantava,
falava alguma história...
AR: [Risos] Não senhor.
DF: Nada?
AR: Não. Tem muita coisa que ele aprendeu. Ele cantava,
dançava e assim, mas eu nunca consegui aprender não.
DF: E alguma história o senhor sabe? Seu pai contava
alguma história de bicho...
AR: Contava história do macaco, do... eu já esqueci tam-
294 Projeto: Panton pia’
bém, né? [risos].
DF: O senhor não sabe nenhuma não?
AR: Não, senhor. Eu nunca aprendi também história, des-
sas histórias. Eh, estudando na Bíblia, na Escritura, aí esquece
tudo. Estuda mais na Escritura, na Bíblia. História, onde foi
que os antigos andaram? Andaram em Israel, Jesus cristo
nasceu no meio do Israel, Israel rejeitaram, essas história
assim que a gente estuda que tá no...
DF: Na escritura.
AR: Eh.
DF: Mas a história do macaco o senhor não lembra?
AR: Não. Do macaco tem muitos que sabem, tem gente
que sabe contar história, agora eu não sei não.
DF: E a história, por exemplo, do Macunaima?
AR: Também Macunaima tem muita história dele. Dizem
que Macunaima ele nasceu não sei aonde, aí foi andando
pra lá... O senhor já viu Pedra Pintada? Pois esse aí diz que é
escola dele. Aí diz que a Pedra Pintada foi a escola dele. Aí
foi, lecionou não sei quantos alunos lá, daí foi embora. E tem
outra pedra lá na beira do rio, dele também, esse mesmo
como aí na Pedra Pintada, na beira do rio assim. O senhor já
não andou por aí não.
DF: Nessa outra não. Só na Pedra Pintada.
AR: Pedra do Rio assim, tem três assim. Ninguém vai lá
não. Tem uma janela desenhada assim. Hoje em dia a gente
olha muito pra ele e só aparece uma visão lá. E disseram que
não olha muito tempo não, pode olhar assim, desenhado
assim, numa janela assim. Aí ninguém vai lá não, lá na beira
do rio assim, feio lá, aí a laje é grande, fica aqui, aí ela fica
separada assim. Era casa dele também, do Macunaima. Daí
ele foi embora, foi embora, lá pra Santa Maria, lá tem pedra
também lá. Lá diz que ele, ele também tem um inimigo dele
e queria matar ele; entrou na terra, foi embora e saiu lá, lá
no Santa Maria. Lá tem uma pedra alta também, ele ficou aí,
Projeto: Panton pia’ 295

por aí. A gente conta assim, história de Macunaima. Agora


não sei de onde ele.

DF: Ele fazia o quê?

AR: Ele diz que andava, andava mesmo, abria escola né,
aí foi embora pra aí. Aí quando na beira do rio não fez nada
não, só tinha, só tinha casa dele; e, do outro lado do rio, é,
casa do Raposa, esse cachorro dele, Raposa, e [olhar] dele
né, assim, Raposa. Aí agourava ele, cavava toda noite lá, aí
que é onde inimigo perseguiu ele. Ele entrou na terra e saiu
lá no Santa Maria, Raposa que agourava ele, cachorro dele.
Tem duas pedras lá, laje grande, é dele. E assim acabou pra
lá, a história do Macunaima.

DF: E a história do Canaimé, o senhor sabe pra contar


pra gente?

AR: Canaimé?

DF: Eh.

AR: Não senhor. Canaimé existe até o dia de hoje, Canai-


mé, rabudo, né, que chama.

DF: Rabudo.

AR: Eles matam parente, perseguem parente, mata, que-


bra. Aí fica lobisomem e vira lobisomem, depois eles tornam
de novo homem. São assim, rabudos.

DF: Por que ele faz isso?

AR: Desde o princípio né, que persegue gente, mata


gente, mata outro. Esse chamado bandido. Hoje muito na
cidade, existe bandido, mesmo rabudo.

DF: Mesmo rabudo [risos].

AR: Canaimé é bandido, ele.

DF: O senhor já ouviu falar da história da mulher que foi


pega pelo macaco ou não?
AR: Não senhor.
296 Projeto: Panton pia’
DF: Não?
AR: Não.
DF: Tem alguma história que o senhor queira contar pra
gente? Que o senhor sabe, que o seu pai falava, alguma
narrativa...
AR: Não senhor, nunca, nunca aprendi história não.
DF: A comunidade tem pajé ainda?
AR: Pajé?
DF: Eh.
AR: Não senhor.
DF: Tem não, né?
AR: Não. Ninguém consente mais pajé aqui, nem reza.
Nós quando ficamos doentes, contamos só com hospital,
remédio, mas pajé, reza já não existe mais.
DF: Qual a principal dificuldade que tem aqui na comuni-
dade que o senhor vê?
AR: Dificuldade?
DF: É.
AR: Nada não.
DF: Nada?
AR: Nada.
DF: Vocês pescam ainda com timbó ou não?
AR: Às vezes. Quando eu cheguei aqui, o pessoal pescava,
o pessoal daí desse Bananal só usava esse aí, o timbó. Esses
igarapés que estavam lá em cima, vem matando o que tiver
dentro. Vai embora pra baixo, só ajuntando, mas também
esse igarapé fica sem nada, nada, nada...
DF: Mata tudo.
AR: Mata tudo. Até as piabinhas, miudinhas que estão os
filhotezinhos vão acabando tudo. Aí quando nós chegamos
aqui não existia piaba quase não. Agora quando nós chega-
Projeto: Panton pia’ 297

mos daqui, aqui tá cheio de piaba, sarapó, cará, traíra, tem


muitozinho aqui, criaram mais, estão criando ainda, porque
ninguém não tá botando mais. Nós usamos, eu uso mais
esse aí...
DF: Ah! Tarrafa.
AR: Esse aí. Esse aí não mata tudo não, mas pega os mais
graúdos. Aí de vez em quando nós estamos pescando pra
fora com tarrafa, nós estamos usando malhador, pra peixe
grande, aí pro Paricarana, Parimé, esses lagos pra lá. Isso
aí. Agora isso aí ninguém usa não. Algumas vezes a gente já
usou, mas não é toda vez não.
DF: Então, tá certo. A entrevista é só isso mesmo.
AR: Ahã.
DF: Obrigado.
298 Projeto: Panton pia’
Projeto: Panton pia’ 299

Projeto: Panton pia’


Entrevistada: Áurea da Silva Galvão (AG) e seu Genário (SG)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Local: Comunidade Samã, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 24/3/2009
Transcritora: Keyty Almeida Oliveira
Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 15’’22’’’
300 Projeto: Panton pia’
Projeto: Panton pia’ 301

DF: Qual é o nome da senhora?


AG: Áurea da Silva Galvão.[...]
DF: Quantos anos a senhora tem?
AG: Cinquenta.
DF: [...] Qual a etnia da senhora?
AG: Macuxi.
DF: A senhora é macuxi. Na comunidade, a senhora tem
alguma função específica ou não?
AG: Tem não.
DF: A senhora pertence a alguma associação?
AG: Não.
DF: A senhora chegou a estudar?
AG: Até a segunda série. [...]
DF: Qual foi a primeira língua que a senhora aprendeu?
Foi o português ou o macuxi?
AG: Português. Esse que nós estamos falando.
DF: Português. A senhora sabe macuxi?
AG: Não senhor.
DF: A mãe da senhora não ensinou pra senhora?
AG: Eu escutava ela falar com o meu pai, mas nunca
passaram pra gente.
DF: A senhora trabalha em quê? Na agricultura mesmo?
AG: Eh, na agricultura.
DF: Na agricultura. O que vocês estão produzindo de
bom aqui agora?
AG: Mandioca, macaxeira, banana. [...] Batata, abacaxi.
DF: E qual o nome do pai da senhora?
AG: Paulo.
DF: Seu Paulo. E a sua mãe?
302 Projeto: Panton pia’
AG: Martina.

DF: De quê? A senhora lembra?

AG: Do papai era Ferreira.

DF: Os dois eram macuxis?

AG: Ele era taurepang e a mamãe era macuxi.

DF: Ah! Ele era taurepang...

AG: Eh. Martina da Silva.

DF: Sim. A senhora tem alguma religião?

AG: Eh, eu tenho.

DF: Qual é?

AG: Assembleia.

DF: A senhora é da Assembleia. A senhora é evangélica.

AG: Ahã.

DF: A senhora é casada há quanto tempo?

AG: Desde 95. Ah, 96, 96 mesmo.

DF: O senhor também é macuxi?

SG: Sou.

DF: Qual é o nome do senhor?

SG: Genário.

DF: Seu Genário? E quantos filhos a senhora tem?

AG: Eu tenho nove.

DF: Nove filhos. Agora uma coisa bem pessoal: qual foi a
coisa mais triste que a senhora já viu na vida? O que a senhora
menos gostou, ficou mais chateada?

AG: Como assim?

DF: A coisa mais triste, que a senhora nunca esqueceu.


Só teve coisa boa?! Olha que beleza!

AG: Pra mim não tem tristeza, pra mim.


Projeto: Panton pia’ 303

DF: Não tem tristeza não? E felicidade, qual foi a melhor?

AG: Não tem melhor também, pra mim.

DF: Não tem, não?

AG: Eu tenho pra mim, melhor.

DF: E qual foi a melhor coisa que aconteceu?

AG: A melhor coisa é que eu estou vivendo, a saúde. [...]

DF: A senhora nasceu onde? Nasceu por aqui mesmo?

AG: Nasci por aqui mesmo.

DF: Foi aqui em Pacaraima mesmo? Essa região aqui?

AG: Pertence à Pacaraima.

DF: Em qual local?

AG: Serra do Rato. [...] [risos] Na realidade é no Arai que


eu nasci.[...]

DF: Na comunidade do Arai. A senhora sabe a história da


fundação da comunidade? Quando foi fundada?

AG: Nunca lembrei. Nunca botei na minha cabeça assim.

DF: A senhora sempre morou aqui mesmo?

AG: Moro. Teve uma vez que eu passei dois anos fora
daqui.

DF: A senhora já morou em outro local também? Outra


cidade?

AG: Boa Vista.

DF: A senhora já morou lá?

AG: Cheguei agora, esses tempos, dezembro vai fazer um


ano que eu cheguei. Passei um ano e seis meses lá.

DF: Sei. Em relação à comunidade, a senhora sabe quem


foi o primeiro líder? O primeiro tuxaua?
AG: Era Feliciano. Se eu não me engano, era Feliciano.
DF: E a alimentação, a senhora acha que mudou muito,
304 Projeto: Panton pia’
é a mesma coisa?
AG: Mesma coisa.
DF: De quando a senhora era novinha mudou muito? A
mesma coisa?
AG: A mesma coisa. Continua a mesma coisa.
DF: Antigamente as pessoas tinham uma espécie de ini-
ciação, por exemplo, os meninos, quando estavam virando
rapazes, raspavam o braço deles assim, pra sair sangue, pra
ficar um guerreiro forte, coisas assim. A senhora chegou a
ver alguma coisa?
AG: Não, nunca.
DF: Nunca, né?
AG: Foi como é, assim, normal.
DF: Quando tava virando moça também...
AG: Também não.
DF: Também não, né? Normal como é hoje mesmo, né?
AG: Nunca aconteceu isso de arranhar o braço? [risos]
DF: E nem usar pimenta pra ficar esperta?
AG: Não, disso aí também não tenho lembrança, não.
DF: E como a senhora vê o indígena hoje? A senhora é
mulher, é indígena e como é que a senhora vê hoje? [...] A
senhora passa por algum preconceito? Não passa? A senhora
tem...
AG: Tem não, não tenho não.
DF: Tem não?!
AG: Normal.
DF: A senhora vive normal, tudo tranquilo. Nunca acon-
teceu nada triste?
AG: Pra mim, não.
DF: E as coisas que saíram por aí falando, da discussão
dos indígenas...
AG: Também não! Eu não saio daqui.
DF: Não sai não.
AG: Não saio por aí pra, eu não tenho como...
DF: Sei. Outra coisa, as histórias antigas, a senhora lembra
alguma? História de Macunaima, do Canaimé, do timbó...
AG: Do timbó eu me lembro bem que a minha mãe con-
tava, mas eu não sei bem.
DF: O que ela contava? Vai deixar morrer? Se a senhora
não lembrar ninguém vai saber.
AG: É.
DF: O que ela contava?
AG: Do timbó não sei, já esqueci.
DF: Não lembra do menino que foi levado pela dona
Raposa?
AG: Ahã.
DF: É essa a história?
AG: Acho que é, não lembro. Não tem uma história do
passarinho que fica arrastando o couro da sucuriju, sempre
ele passa por aqui... [risos]
DF: Como é que é? Essa eu não conheço não, pode me
contar? Como é essa história? Gostaria de saber!
AG: Ele me contava que o passarinho tava (como é que
era o nome dele mesmo?), tal de Carapanã. E ficava passando
por cima. Daí diz que é couro da sucuriju que ele vai levando.
Aí esse menino, o Timbó, que estão falando, sei muito pouco,
não gravei muito não...
DF: E levava esse couro pra quê?
AG: Nem sei. Foram arrastando, que tiraram esse couro
da sucuriju, saíram levando...[...] Se a minha mãe estivesse
aqui, mas ela tá lá no Surumu.
DF: Sua mãe tá no Surumu?
AG: Tá. Martina da Silva, da maloca do Barro. [...]
DF: E ela sabe essas histórias todas?
DF: E a senhora não lembra da história então?
AG: Não tenho história não.
DF: Tem não?! Nenhuma? Da anta, da raposa?
AG: Da anta só indo no rio pra eu contar, mas não lembro
não... [...]
SG: Não, da Mariazinha, é de um menino que se perdeu,
que a mãe tinha uns filhos, uns quatro filhos pequenos, mas
que esse tinha uma base de uns seis anos, mais ou menos. Aí
ela foi e saiu pra roça com ele (isso foi na Guiana, o cara me
contando). Aí foi, não têm esses araçás, tipo uma goiaba?
DF: Sim, conheço.
SG: Tem muito na beira do rio. Nesse Amajari é só o que
tem. Aí diz que esse menino foi buscar uns araçás pra comer,
aí sei que a mãe seguiu na frente (lá tem muita serra, né?);
e aí quando o menino entrou lá pro meio das serras, sei lá
pra onde, sei que não acertou mais o caminho de volta. Aí
pronto, entraram na serra atrás dele, aí pronto. Cada vez
que ele andava, ele entrava mais pra serra. Aí andaram atrás
dele, nunca acharam ele. Sei que passou um ano aí mais ou
menos perdido, aí: “Ah, esse aí morreu, um bicho comeu,
com certeza, qualquer coisa parecida!” Aí um pescador vinha
pescando de lá pra cá, e tinha um poço d’água no verão né?
Tinha um poço d’água lá que nunca secava. Aí esse menino
já tava virando bicho mesmo, já morava dentro da serra,
dentro das pedras, sei lá onde que ele morava. Aí o pescador
foi lá e viu ele lá, só que aí: “será que era o menino?” Era o
local dele brincar sozinho lá naquela praia lá. Ele tava sozi-
nho, daí já brincava sozinho. Aí ele corria pela aquela areia
lá: pulava, banhava, deitava na areia, pulava, tava que nem
bicho mesmo, em um ano. Daí eu sei que ele foi lá na casa
do pai dele. Falou. Sei que reuniram um bocado de pessoas e
foram lá buscar esse menino. Aí pareceu que ela já tava tipo
bicho mesmo, porque o bicho selvagem ele sente qualquer
Projeto: Panton pia’ 307

pessoa, ele sente, e ele já tava desse jeito. Sentiu os caras;


sei que correu pra trás e não pegaram não. Aí foram de novo,
foram. Toda tarde ele banhava nesse igarapezinho: banhava,
pulava, brincava, aí tava se divertindo ali naquela praiazinha.
Aí sei que ficaram longe, escondidos, aí ficou muita gente
já. Aí eles viram na hora que ele chegou lá na areia; bebeu
água; começou a pular; rolava na areia; brincava; pulava. E
já vai cinco horas da tarde, que era pra ele ir já pra casa dele,
que ele morava na serra, numa pedra lá. Rapaz, que esses
caras partiram nesse menino pra pegar. Pensou que não, já
estavam fechando ele, e ele mordeu um bocado, soltava. Ele
levantava e gritava bravo mesmo. Um ano já que ele tava, ele
tava com seis anos. Já tava com sete anos, mais ou menos, e
não tinha morrido não. Eu sei que pegaram ele, levaram pra
casa, mas ele não se acostumava mais não. Se soltasse ele,
ele corria: não conhecia mais mãe, não conhecia mais pai.
Aí levaram ele pra casa. Aí ele não acostumou; aí não comia
nada; só queria correr pro mato. Aí sei que passou uma se-
mana sem comer. Não comia mais comida assim, só queria
comer fruta. Sei lá o que comia na mata. Aí sei que ele passou
mais de um mês, levaram ele pra outro lugar. Um mês que
ele tava, que ele foi começar voltando pro normal. Parece
que o nome dele, parece que era Raimundinho, uma coisa
assim. Ele era guianense, ele. Aí sei que levaram ele aí pra
cidade, pra estudar, parece. Aí ele também já, aí ele amansou,
também mais de anos e anos ali, estudando. Aí não sei mais
que fim levou esse Raimundinho. Só sei que ele mora pra lá...
DF: Mora na cidade?
SG: Mora na cidade. Parece que até doutor é.
DF: Tá certo. Na comunidade tem algum ritual antigo?
Parixara? A senhora dançou parixara já?
AG: Dancei.
DF: Sabe algum pra cantar pra gente?
AG: Sei não. Só sei quando eu escuto por aí.
DF: Não lembra. Tem uns bonitos, não?[...]
308 Projeto: Panton pia’
AG: Aqui ninguém faz, nunca, nunca vi assim.
DF: Não lembra nenhum que a senhora queira cantar
pra gente?
AG: Não lembro não, aí eles cantam só no macuxi, né, aí
não tem como...
DF: Então, tá certo, dona Áurea. Obrigado.
AG: De nada.
Projeto: Panton pia’ 309

Projeto: Panton pia’


Entrevistado: Seu Oliveira (SO)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Local: Comunidade Samã, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 25/3/2009
Transcritora: Keyty Almeida Oliveira
Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 19’’25’’’
310 Projeto: Panton pia’
Projeto: Panton pia’ 311

DF: Qual é o nome do senhor?


SO: Oliveira. [...]
DF: Quantos anos o senhor tem?
SO: Eu tenho 51.
DF: De qual etnia o senhor é?
SO: Sou wapixana misturado com macuxi.
DF: O senhor tem alguma função específica na comuni-
dade?
SO: Rapaz, a minha função é essa aqui.
DF: O senhor tece.[...]
SO: Que encomenda né, aí eu faço aí...
DF: O senhor faz por encomenda?
SO: Eh.
DF: Esse é um tipo de tecelagem, não é?
SO: Eh, isso que eu faço aí, eu faço assim quando as pes-
soas encomendam, aí eu faço [...]
DF: Ah sim, só quando faz a encomenda. E o senhor
aprendeu com quem?
SO: Eu aprendi por conta própria mesmo.
DF: Conta própria.
SO: Eh.
DF: O senhor viu as pessoas fazendo...
SO: Fazendo... aí botei na cabeça de fazer também, aí
fui fazendo.
DF: Sim, e o senhor chegou a estudar? Foi pra escola?
SO: Não, nunca fui.
DF: Nunca foi.
SO: A região onde eu fui criado não tinha escola. A escola
era muito longe. Nesse tempo não existia todos esses colé-
312 Projeto: Panton pia’
gios, ainda não. A pessoa que corria atrás do colégio. Hoje
não, o colégio que corre atrás da pessoa e as pessoas não
querem estudar.
DF: O colégio é dentro da comunidade.
SO: E as pessoas não querem estudar. Eu não tive essa
oportunidade.[...] Fui criado nas fazendas depois do Maú,
fui criado por essas bandas do Maú, pelos lados da Guiana.
DF: O senhor quando aprendeu a língua, aprendeu qual
língua primeiro?
SO: Quando meu pai foi falecido, eu fui, a minha mãe
me deu pra outras pessoas me criar. Eu fui criado com meu
padrinho, mora em Boa Vista, mas já morreu também. Fui
criado com ele. Passei uns tempos com ele, ele foi me buscar.
E de lá, tinha meu padrasto, mas só que ele bebia muito e me
maltratava muito, aí eu fui embora; vim embora.
DF: Entendo.
SO: [...] Mas tudo que eu aprendi foi bom.
DF: Mas a língua que o senhor aprendeu primeiro foi o
português?
SO: Foi o português mesmo.
DF: O senhor sabe wapixana e macuxi?
SO: Não, sei não. Não sei falar não.
DF: Sei. E o senhor trabalha na agricultura?
SO: Eh, na agricultura.
DF: Sempre trabalhou na agricultura?
SO: Na agricultura.
DF: E o que tá produzindo hoje em dia?
SO: Hoje em dia não estou produzindo muito porque eu
não... Faz quatro anos que eu separei da família, eu fiquei sem
fazer nada [...], mas é assim, sai pra trabalhar pelo garimpo,
depois a gente volta.
DF: Ah! o senhor é garimpeiro também?
Projeto: Panton pia’ 313

SO: Sou, também garimpo. [...]


DF: Sei. O senhor lembra o nome dos seus pais?
SO: O meu pai era Marino. A minha mãe é Regina, ainda
é viva, mora em Boa Vista.
DF: Ah! ela é viva e mora em Boa Vista. E o seu pai era
de qual etnia?
SO: Wapixana.

DF: Sua mãe?

SO: Macuxi.

DF: O senhor tem religião hoje?

SO: Rapaz, a religião que eu frequentei mais foi a Assem-


bleia de Deus.

DF: E o senhor é casado?

SO: Sou. Fui casado.

DF: O senhor era casado com alguém da etnia macuxi?

SO: Eh, macuxi.

DF: Qual a coisa mais triste que o senhor viu até hoje? Que
o senhor tem recordação?

SO: A coisa mais triste que acho que [...] comunidades,


porque a gente não [...].

DF: E a coisa mais alegre, o senhor lembra?

SO: A coisa mais alegre que eu lembro é trabalhar junto


com meus colegas de trabalho.

DF: O senhor nasceu onde? Aqui mesmo?

SO: Nasci no Surumu. [...]


DF: E o senhor sabe a história da fundação da comunida-
de? Como é que ela foi fundada?
SO: Isso aqui foi em 87, eu cheguei aqui. Ela foi fundada já
no final de 87. Os fundadores dessa comunidade foram: com-
padre Feliciano, Mozarildo, Manoel, Áureo, Lourenço (não sei
314 Projeto: Panton pia’
mais?), finado Cristiano. Foram os fundadores daqui dessa
comunidade, Samã II, que tem ali embaixo, né? Isso aqui era
colônia, era colônia. Foi indenizado, aí nós passamos pra cá.
DF: Quem foi o primeiro tuxaua, o senhor lembra?
SO: O primeiro tuxaua foi o Feliciano. Segundo tuxaua
foi o Mozarildo.
DF: E agora é o seu Lorenço?
SO: Agora é o Lourenço.
DF: [...] O senhor morou na cidade?
SO: Não, eu não morei muito na cidade não. Eu não gosto
da cidade não, prefiro assim, no interior. Nunca gostei de
cidade. Minha mãe mora lá. Tenho até que ir lá uma hora. [...]
DF: E a alimentação, como era antigamente? E agora, o
senhor acha que mudou muito?
SO: Não, mudou nada não. [...] Dentro da mata aqui não
tem coisa ruim não. Todo tempo eu gostei de morar aqui
dentro da mata. Eu morava numa comunidade ali no Arai,
eu botei a roça lá dentro da mata[...]. Passei uns dois anos
morando em Pacaraima. [...]Tava indo bem, depois deu
contrário.
DF: O senhor pertence a alguma representação indígena?
SO: Agora, por enquanto não. [...] O Mozarildo é o se-
gundo tuxaua dele[...].
DF: E como o senhor vê o índio hoje? O senhor acha que
mudou muito, não mudou? Qual é a sua opinião a respeito?
SO: A minha opinião dos índios, por uma parte ficou bom,
né, por outra parte ficou pior, porque depois que indeni-
zaram, que saíram essas indenizações, o próprio parente
mesmo ficou pior do que os civilizados.
DF: Por quê?
SO: Porque por uma parte, o cara não pode caçar lá pras
áreas dele. Pra ir caçar e pescar, tem que passar lá. Então, não
Projeto: Panton pia’ 315

melhorou nada, eu sei que eu acho que não melhorou não.


DF: E qual é a parte boa que o senhor tava falando?
SO: A parte boa é que a gente acha aqui dentro, porque
assim, morar aqui dentro nós temos liberdade pra sair pra
qualquer canto dentro da nossa área, né? Não tem quem
empate a gente. [...]
DF: E as festas hoje na comunidade, como é que são?
Antigamente era melhor? Pior? É diferente? O senhor lembra?
SO: As festas da comunidade [...], dessa que tá acon-
tecendo, essa comemoração do dia que a comunidade foi
fundada, sempre foram boas, né?
DF: Sim.
SO: Tem dificuldade não.
DF: E as danças antigas têm ainda?
SO: Ah, não tem não, isso aí não tem não. Pra cá não existe
mais não. Existe é pra essas outras comunidades por aí. [...]
Os mais antigos que tinham aqui, que cantavam na língua
deles, não tem mais, acabou tudo. Mas tem um sobrinho
deles que aprendeu um pouquinho e quando tem festa ele
canta... uns parixarazinhos...
DF: E o senhor não sabe nenhum?
SO: Não, sei não. [...]
DF: E tem história antiga de seu povo, por exemplo, do
Canaimé. O que o senhor sabe a respeito do Canaimé?
SO: [risos] Rapaz, do Canaimé eu não sei não.
DF: Nunca ouviu falar nada?
SO: Sei do Canaimé, não.
DF: Nunca ouviu falar nada?
SO: Vi falar dele: Canaimé faz aquilo, Canaimé faz isso,
eu não sei [...]
DF: E histórias, o senhor conhece alguma história de anta,
de raposa, alguma coisa de Macunaima?
316 Projeto: Panton pia’
SO: Sei não, de Macunaima também não sei não.
DF: E a história do surgimento do timbó, ouviu falar ou
não?
SO: Do surgimento do timbó também não. Que eu morei
em aldeia, não. Morei mais assim nas fazendas.
DF: Em fazenda, né? Então, o senhor não ouviu um contar
pro outro?
SO: Nunca ouvi não.
DF: Existe na comunidade alguma tentativa de resgatar
um pouco essas histórias?
SO: Não, não sei não.
DF: A língua eu acho que tem, porque eu passei ali e eles
estão ensinando macuxi.
SO: Eh, deve ter né?
DF: E a caça hoje continua do mesmo jeito ou...
SO: Continua, não acaba não.
DF: De vez em quando o senhor caça?
SO: De vez em quando vai, dá uma caçada...
DF: E existe algum tipo de iniciação pros meninos? Por
exemplo, quando tá virando rapaz tem comunidades que
eles pegam, cortam, passam pimenta...
SO: Ah não, aqui pra cá ninguém usa isso não.
DF: Mas na época do senhor não usava, quando era
criança?
SO: Não, eu não fui criado com isso não. Já fui pra mão
do meu padrinho[...]. e de lá eu saí pra trabalhar desde pe-
quenininho, que eu vivo assim trabalhando. Pequeno não,
desde de novo, que eu ainda sou pequenininho [risos]. Desde
novo, trabalhando pra me sustentar. [...]
SO: Quem foi criado no interior sabe o que é bom e o que
é ruim. A pessoa que nasce na cidade não sabe de nada, só
coisa fácil. Filhinho de papai e mamãe[...]
DF: Qualquer coisa é difícil. [...]
SO: Era o sistema dos antigos, qualquer coisa era pimenta.
Quando não era pimenta, era ferrada de tucandeira. Como
uma mulher tava falando aí, a senhora dali. O tratamento
de primeiro era de tucandeira, enfiava um bocado de tucan-
deira na flecha e tacava no espinhaço do cara, pra não doer
o espinhaço.
DF: O que é tucandeira?
SO: São umas formigonas que tem no mato. Formigão.
Dói mais que [a correia]. Aí não pode mais maltratar as crian-
ças por causa disso.
DF: E pra caçar, pra pescar, pra ser bom caçador, tem uns
rituais, não tem?
SO: Eu acho que tem, né? Eu nunca vivenciei não.
DF: Tem um que bota pimenta no olho do cidadão, tabaco,
pra enxergar longe. [...]
SO: Na nossa tradição aqui, não é das pessoas ficar usando
mais essas coisas, né?
DF: Então, tá certo, seu Oliveira. Obrigado.
318 Projeto: Panton pia’
Projeto: Panton pia’ 319

Projeto: Panton pia’


Entrevistados: Domício Pereira da Silva (DP) e Regina Santos (RS)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Local: Sol Nascente, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 30/3/2009
Transcritora: Ana Maria Alves de Souza
Conferência de Fidelidade: Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 55’’22’’’
320 Projeto: Panton pia’
DF: Qual o nome do senhor?
DP: Domício.
DF: Domício de quê?
DP: Domício Pereira da Silva.
DF: Qual a idade do senhor?
DP: Sessenta e dois.
RS: Três.
DP: Sessenta e dois.
DF: Qual a etnia?
DP: Macuxi.
DF: O senhor tem alguma função específica na comuni-
dade?
DP: Tenho.
DF: Qual é?
DP: Eu sou tuxaua da comunidade. [...]
DF: Qual é o nome da comunidade agora ou se ela já teve
outro nome?
DP: Não. Só teve só um nome, que é Sol Nascente. Quan-
do nós formamos, nós já colocamos esse nome, Sol Nascente.
DF: O senhor chegou a estudar, seu Domício?
DP: Não, nunca cheguei a estudar.
DF: Qual a primeira língua que o senhor aprendeu? Foi o
português ou foi o macuxi? Foi o macuxi que o senhor falou
[primeiro]?
DP: Foi. Bom, a primeira língua que eu aprendi foi o
português, porque no tempo da minha mãe, ela achava que
ninguém mais podia aprender a nossa própria língua que
era o macuxi. Ela falava, aí não sei quem deu a ideia que nós
não podia mais falar. Ela não ensinou mais nada da nossa
língua pra gente.
DF: Ah! Falaram pra ela que não podia...
DP: Falavam pra ela que não podia ensinar nós, que não
era língua. Aí ela não falava mais pra nós o macuxi. Ela tentou
ensinar nós desde criança já no português.
DF: Aqui na comunidade o senhor é o quê? O senhor é
agricultor, mexe na agricultura ou não? Ou já mexeu?
DP: Aqui na comunidade nós estamos mexendo com
agricultura, nós também mexemos com a pecuária. Tudo
isso é o que nós temos aqui na comunidade.
DF: O que é que tá produzindo mais hoje?
DP: Hoje nós temos aqui, a gente planta mandioca, feijão.
Tudo o que você plantar dá. Cana...
DF: O senhor lembra os nomes dos pais do senhor?
DP: Lembro. O do meu pai é Sisinato Pereira da Silva, e
da minha mãe Sivilda Lauriano de Lima.
DF: Qual a etnia deles? Eles eram o quê?
DP: A minha mãe era macuxi. Agora o meu pai tem outra
etnia. Foi quando vieram de Manaus. Ele era amazonense, aí
ficaram aqui em Roraima, se encontraram, aí que construiram
a família.
DF: Mas ele era indígena ou não?
DP: Não. Ele era assim preto, como diz, moreno, porque
sempre teve aquela, as indígenas sempre casavam com...
Hoje ainda acontece.
DF: Claro. É normal.
DP: É normal. Não era de agora não. Aí diziam que era de
agora, mas não era não, já vem desde de faz tempo, bastava
um casal querer...
DF: Aqui na comunidade hoje tem alguma regra, alguma
coisa que fala “Olha, tem que casar só com indígena... Tem
que casar é aberto.” Como é que é?
DP: Sempre eu aconselho é que case com indígena, que
Projeto: Panton pia’ 323

tem mais o costume de viver na comunidade, que branco


às vezes nunca acostuma, reclama assim, com a norma da
comunidade. Agora, indígena não, ele já nasceu, ele conhe-
ce, acostuma mais fácil. Sempre acontece quando bota
pra estudar, que até termina, estuda até a quarta série na
comunidade. Então, sai. Aí quando sai assim: “Mãe eu vou
fazer faculdade”, em Pacaraima ou em Boa Vista. Nesse
intermediário de escola, já começa a namorar um branco,
uma hora já tá junto.
DF: E aqui na comunidade o senhor tem alguma religião?
DP: Tem. Nossa religião até agora é católica, ainda. [...]
Todos nós.
DF: O senhor é casado?
DP: Sou.
DF: Qual a etnia da sua esposa?
DP: É macuxi.
DF: Quantos filhos o senhor tem?
DP: Nós temos nove. [...]
DF: Ah! Que beleza. [...] Qual é a coisa mais triste que
o senhor viu? Depois eu vou perguntar qual é a mais feliz,
até hoje.
DP: Como assim?
DF: A sua vida inteira, uma coisa triste que o senhor viu,
que o senhor nunca esqueceu, que marcou.
DP: Uma história triste.
DF: O senhor já viveu bastante. Já deve ter visto um
monte de coisa.
DP: Eh, a coisa mais triste que a gente vê assim é quando
tá doente. Doente é a coisa mais triste que tem na vida da
gente. Isso que eu vejo assim.
DF: E feliz? Coisa boa.
324 Projeto: Panton pia’
DP: Eh, coisa boa é você estar com saúde, ter disposição
pra trabalhar. Então, a gente tá feliz. Como têm muitos que
dizem assim: “Não, que, pra gente ficar feliz é dinheiro.” Não
é dinheiro não, é saúde da gente. Você estando com saúde,
você pode adquirir dinheiro. Primeiramente é a saúde. Então,
que Deus ajudando a gente, dando saúde da gente, né. Estou
com toda essa idade, sessenta e quatro anos, até hoje, graças
a Deus, não estou doente, assim dizer que vivi doente, ainda
vivo trabalhando, tenho vontade de trabalhar, arrumando
as coisas. Lá em casa é tudo arrumadinho. Então, sempre
gosto de participar da reunião, que tem a nossa reunião, eu
sempre gosto de estar no meio, porque a gente busca travar
conhecimento de trabalho hoje.
DF: Tem algum fato marcante que o senhor queira contar?
DP: Como assim?
DF: Alguma coisa que aconteceu que o senhor achou
que foi importante pro senhor, uma coisa marcante que
aconteceu. A gente tem na vida da gente algumas coisas
que acontecem...
DP: A coisa mais triste que há de marcante foi quando a
gente coisou que a gente tava com toda essa... Pacaraima é
uma, tá dentro de uma área indígena. Quando a gente ques-
tionava pelos direitos da gente, muito pessoal de Pacaraima
criticava e marcava a gente. “Ah! Porque vocês fazem...?”
“Não. Porque nós estamos procurando nossos direito.”
Pacaraima tá numa terra indígena. E o que eu tenho que
dizer que nós temos que ver a situação de Pacaraima, sentar
pra conversar. Então, é uma crítica que eles fazem, é muita
crítica em cima da gente. “Não é assim. Não, eu sei que não
pode. Não, é eu que tô fazendo.” E tem autoridade dizendo
que foi demarcado, homologado como área indígena. Agora,
nós vamos ver como resolver o problema de Pacaraima. Aí
sempre o pessoal ficava assim, marcando a gente, falavam.
Pelos meus direitos eu posso falar em qualquer canto, não
vou esconder se eu tenho meus direitos todo tempo, que
tava errado.
Projeto: Panton pia’ 325

DF: E aí aconteceu alguma coisa?


DP: Não, não. Não aconteceu assim porque a gente evi-
tava. Quando tava no conflito, a gente saía dessa parada pra
não ter aquele confronto. A gente sempre se retirava pra não
acontecer esse caso, agressão, sempre saía.
DF: O senhor fala alguma língua indígena?
DP: Não. Não falo não. Eu entendo um pouco, porque
minha mãe nunca deixou a gente assim. Ela falava, a gente
entendia algumas coisas que ela falava, mas ensinar mesmo
assim falar, eu não sei não.
DF: Não. E o senhor nasceu onde?
DP: Eu nasci aqui mesmo na área de São Marcos. Nasci
na... Ela disse que eu nasci na Formosa, era um sítio. Ela
morava por lá, eu nasci lá, ali perto do Perdido.
DF: Perto do Perdido?
DP: Eh. Era um retiro lá. Ela disse: “Tu nasceu na Formo-
sa.” Aqui na área do São Marcos, mesmo. Eu nasci aqui no
São Marcos.
DF: E qual a história da fundação da comunidade, dessa
comunidade aqui?
DP: A nossa? Nós morávamos ali no Curicaca, primeiro.
Aí nós, como teve aqui a retirada dessas pessoas dessas fa-
zendas, aí nós ficávamos pensando: “Como é que nós vamos
ocupar?” Foi o que falavam pra mim. “Porque eu sou índio,
vocês vêm ocupar, vão tomar de conta?” “Vamos. Nós vamos
tomar de conta.” “E não vão abandonar?” Eles disseram:
“Não.” Então, a gente morava lá e saiu. Nós tiramos o gado
primeiro de lá. Nós tínhamos gado lá dentro, aí a pessoa
sempre trabalhava de roça, o gado ficava na roça. “Não nós
vamos tirar porque aqui gado tá invadindo e tal.” “Nós vamos
deixar aí tu tirar o gado.” Aí desocuparam aqui a fazenda,
aí nós tiramos o gado de lá. Aí nessa saída do gado, aí nós
ficamos pensando, aí nós e mais seis pais de família: “Como
é que nós vamos sair daqui e cuidar lá no Curicaca? Acho que
é melhor nós ficarmos morando logo aqui, cuidar desse lugar
326 Projeto: Panton pia’
que vão deixar, nosso gado já tá aqui, e se quiserem ocupar
alguém de lá e quiserem tirar a gente, a gente sai daqui,
senão nós vamos ficar.” Aí foi uma decisão junta. Aí um dia
o meu irmão me chamou: “Olha, umbora logo arrumar um
lugar aqui pra gente morar, porque senão ninguém cuida de
lá e nem daqui.” Então, aí nós nos reunimos, nós juntos nos
reunimos, a família toda, os seis pais: “Nós vamos formar
uma comunidade.” Aí convidamos, os outros ficaram lá. “Nós
vamos fazer uma comunidade lá embaixo, senão ninguém
cuida nem daqui e nem de lá. Tem que trabalhar.” Aí eu disse:
“Ninguém vai pra lá. Lá ficam só quatro pais de família, ficou
lá dentro.” Aí com a fazenda nossa, pra cá com os três, aí
veio mais gente, aí com pouco nós távamos com nove pais
de família. Aqui nós temos o igarapé mais perto pra gente
pescar, tomar banho. Aí nós nos reunimos, aí tivemos uma
reunião. A gente escreveu a ata de fundação, nós temos ela
guardada, ela todinha. Aí que nós ficamos aqui morando,
formamos aqui. Então, hoje nós temos nove pais de família
que trabalham aqui. Então, aqui é assim, porque sempre ele
ficou daquele lado ali do igarapé Paricarana, então aqui, tu
vai ficar morando aqui, cada qual, mas nós vamos fazer nosso
centro mesmo lá do outro lado. Lá tem posto de saúde, já lá.
Aí tem outro retiro lá da comunidade. E aí a gente vai fazer
tudo pra lá, lá que tem mais casas do morador.
DF: Ah! O caminho é por aqui, é?
DP: O caminho, estrada de carro vai por ali. Agora o ca-
minho de pé vai por todo o canto. [Risos] Agora de carro vai
por ali assim. Então, aqui eu fiquei. O tanto que eu fique aqui,
porque aqui nós tínhamos que zelar, custou muito dinheiro,
né, que foi quase que mil reais nossa casa. Aí quando entre-
garam pra nós quiseram tomar de conta. Nós investimos
nosso dinheiro dessa energia de Guri, que era pra nós ter
usado pra comprar alguma coisa, comprar um carro, comprar
alguma coisa pra nós. O que é que nós achamos? Achamos
melhor usar nosso dinheiro pra pagar os fazendeiros, pra
nós podermos ficar, porque se não a Funai não tinha recurso
na época pra pagar, pra indenizar. Aí nós conversamos com
a Eletronorte aqui, pra dar a nossa parte. Aí nós ficamos
Projeto: Panton pia’ 327

assim: “Pai, vamos gastar nosso dinheiro então pra tirar os


fazendeiros? Porque não vai adiantar nós com esse dinheiro e
comprar gado, depois nós vamos botar esse gado onde?” Nós
não temos terra, colocar lá no Curicaca vai ficar imprensado.
Aí nós convidamos os tuxauas, resolvemos tirar, contanto
que a Funai repusesse nosso dinheiro de volta. A obrigação
da Funai era pagar, indenizar. Então, nós vamos usar nosso
dinheiro e a Funai reporá esse dinheiro de volta pra nós. Isso
foi a negociação que nós fizemos.

DF: E a Funai repôs esse dinheiro?

DP: Até agora não. [Risos]

DF: Ah! Então, os fazendeiros até hoje não receberam...

DP: Esses que moravam aqui ameaçavam muito os pa-


rentes. Nós, quando nós íamos pescar, que o pesqueiro era
aqui no igarapé, aí ele ameaçava que ninguém ia pescar,
que isso aqui era dele, que tava pagando, que nós fôssemos
pra ali. [Ameaçou quase ninguém]. Aqui de primeiro não ia
porque o Curicaca era por ali, aí ele fechou todinho, aí tinha
que passar por aqui. Aí quem fosse viajando tinha que passar
bem aqui, senão ele não autorizava passar por lá, tinha que
ser por aqui. Então, o cara ameaçava muito aqui, então por
isso nós tivemos que gastar nosso dinheiro pra desocupar,
pra ficar livre. Hoje não, agora você é livre, você chega em
todo canto, o pessoal vão. Então, foi uma dificuldade grande
que a gente teve na época, mas a gente conseguiu. Nós com
todo recurso nosso, porque senão até hoje nós távamos lá
no Santa Rosa. Que ali era Curicaca, Santa Rosa só naquele...

DF: É, eu conheço. E as famílias vão crescendo.

DP: É. Então, graças a Deus ficou mais livre pra gente


trabalhar.

DF: E o senhor morou em quais locais até hoje?

DP: Bom, eu morei em três locais. Quando nós nascemos,


quando nós viemos, o senhor sabe onde é o Cem hoje?

DF: Sei.
328 Projeto: Panton pia’
DP: Ali perto do Cem era chamado de Liberdade, nós mo-
ramos lá quinze anos, na casa da comunidade. Ali nas comu-
nidades Três Corações que chama, ali era, não sabiam quem
morava, morava numa casa e outro morava ali. Chamava lá
Liberdade ou Santa Lúcia, depois mudou pra Três Corações.
Nós moramos lá, eram duas famílias, nós morávamos com o
pai, nós moramos lá quinze anos. Aí de lá quando nós saímos,
quando construí família aí eu vim pra cá, pro Perdido. Que ela
era daqui do Perdido, morava aqui no Perdido. Aí morei mais
ou menos três anos no Perdido. Então, aí é quatro, porque
quando eu vim de lá do Perdido nós fomos pro Curicaca. Vi-
vemos parece que dezoito anos no Curicaca. Foi do Curicaca
que nós já viemos pra cá.
DF: E como funciona, por exemplo, o senhor não perten-
cia a Curicaca?
DP: Não.
DF: E aí de repente o senhor vai pra lá. Como funciona?
O senhor conversa com o tuxaua e pergunta “A gente pode
ficar aqui?”
DP: Sim.
DF: Como é que funciona esse trâmite?
DP: A gente chega lá, vai lá com ele, com o tuxaua, aí
o tuxaua faz a reunião com a comunidade. Aí a gente vai
participar, dizer que a gente tá querendo morar, que ali já
não deu pra nós ficar, aí tudo bem, se a comunidade decidir:
“Não porque nós somos parente, vocês não são de outra
família, vocês podem vir morar aqui com a gente.” É assim
que é conversado. Mas às vezes se a comunidade não aceita,
o tuxaua diz: “Não, não dá certo. Ele tem alguma que vem
de lá, já fez sujeira pra lá e vem pra cá...” Aí a comunidade
não aceita também. Mas quando você é uma pessoa limpa
em todo canto, aonde você chegar pode morar tudo, mas
não conhece. Quando nós fomos pra lá que falamos: “Não
vocês podem vir, que é uma família nossa.” Inclusive essa
dona Letícia é, a Regina é sobrinha dela.
DF: Ah é!
Projeto: Panton pia’ 329

DP: É. São família. Por isso quando nós chegamos lá, era
tudo família, aí nós ficamos. Aí depois que já viemos pra cá.
DF: E outra coisa: o senhor pertence a alguma represen-
tação indígena?
DP: Sim. Nós temos, nós fazemos parte da APIR, Asso-
ciação [dos Povos] Indígenas de Roraima, que é a APIR. E
tem essa que a gente criou logo depois que a, primeiro tinha
uma que era um programa na região do Truaru, que era um
programa da energia de Guri, e depois mudaram o nome pra
APTISM, porque achavam que o programa não era certo,
não falava indígena, aí isso aí se precisa colocar outro nome.
Então, ela mudou desse nome que antes era um programa
de quando eles começaram, e quando já veio lá o programa
da Eletronorte pra fazer esse convênio, era um programa. Aí
quando nós achamos: “Não, ninguém quer programa não.”
“Quem quer programa?” “Não, que programa já é coisa as-
sim passado, vamos mudar o nome que tem que pegar com
a terra indígena São Marcos.” Aí botaram APTISM. Botaram
outro nome, aí mudou.
DF: Associação dos Povos das Terras Indígenas do São
Marcos.
DP: Porque não quiseram mais programa... Mas até hoje
tem gente que chama programa, nunca esqueceu. “É o
Programa São Marcos.” É que eles se acostumaram e muita
gente ainda fala esse nome.
DF: O senhor foi o primeiro tuxaua da comunidade ou
não? Ou teve outro?
RS: Mas daqui ou não?
DP: Daqui eu fui o primeiro.
DF: Então, quantos anos têm a comunidade, mais ou
menos?
DP: Vixi! A gente esquece.
DF: Não precisa ser exato. Uns quatro anos ou cinco.
DP: É mais ou menos isso, quatro anos.
330 Projeto: Panton pia’
DF: E outra coisa: os rituais antigos, é feito algum na
comunidade ainda?
DP: Como ritual?
DF: Um ritual assim é... as danças, tudo. Existe alguma
coisa ainda, ou não?
DP: Existe. Nós temos aqui o nosso próprio, nós temos
um grupo, que faz a dança parixara, que faz assim uma
representação, que os pessoal às vezes pede: “Será que
vocês podiam fazer uma representação assim de dança?”
Nós temos o nosso grupo que tá preparado, as crianças,
os rapazes, os trajes pra sair, aí assim que a gente sai com
grupo pra fazer representação. É de dança parixara, tucui.
Essas coisas de tradição que a gente tem.

DF: Como é que o senhor vê o indígena hoje? Assim na


relação dele com o branco?

DP: Assim, a gente vê, assim, que os indígenas com os


brancos, o que nós queremos é respeito. Cada um se respei-
tando, com certeza, não tem problema. Que nós vamos dizer
se o branco não respeita indígena também começa a haver
conflito, basta cada um se respeitando. Porque se você tá lá
na sua casa e eu estou na minha, no dia que o senhor quiser
vir na minha casa não tem problema nenhum. Nós não temos
inimizade, não tem problema. Agora se você é uma pessoa
que fica nos ameaçando, fica difícil pra gente se encontrar
aqui, porque ninguém gostaria de você. Mas você é branco,
e se você quiser vir num fim de semana aqui com a gente não
tem problema nenhum, que não tem aquele conflito com a
Funai. Então, é cada um com seus direitos. Nós respeitamos,
porque amizade, como eu disse, amizade é uma coisa, agora
direito é outra coisa. É isso que nós temos. Não tem nada
que, se quiser vir aqui, a gente recebe. Então, tem que ter
respeito com a gente.

DF: O senhor já passou por algum tipo de preconceito?


Alguma coisa?
DP: Não.
Projeto: Panton pia’ 331

DF: Nem por ser índio? “Não, é coisa de índio”, alguma


coisa assim nunca não?
DP: Não.
RS: Eles falam que ele não era índio, que era branco.
Que mãe dele é macuxi. E tem esse preconceito com ele, os
parentes mesmos, né, com ele: “Não, ele não é índio não,
é branco.”
DF: O senhor já passou por isso, então?
DP: Já.
DF: Mas a identidade, como o senhor vê isso então? A
identidade é aquela que o senhor assume, não é?
DP: O que eu sempre dizia pra eles: “Não, isso é por causa
da minha mãe. Que minha mãe é indígena, não tem nada a
ver com meu pai que não é daqui. Eu sou indígena por causa
da minha mãe.” Aí quando eu conversava com os próprios
parentes: “Minha mãe era indígena, quem mais sofreu comi-
go foi minha mãe, meu pai não, só minha mãe. Minha mãe
teve eu na barriga nove meses, e quando eu nasci quem me
cuidou foi ela. Eu sou indígena por causa da minha mãe.” Aí
eles ficavam assim: “Ah! Tá certo.”
DF: Como é que era a alimentação antigamente?
DP: Dos indígenas?
DF: Eh. Você acha que mudou muito ou não mudou?
DP: Mudou algumas coisas. A alimentação ela continua
do mesmo jeito. Porque hoje já tá mais aquela facilidade. De
primeiro não, a alimentação do indígena era farinha mes-
mo, com beiju, damorida, caça, não tinha negócio de carne
mesmo, era mais caça, peixe, veado, ia caçar, pra caçar era
mais assim. Plantava também muita batata, que o indígena
usou muita batata. Pra fazer a bebida dele, o caxiri, usavam
macaxeira. Hoje mudou um pouquinho porque antes não
tinha arroz, não tinha macarrão, não tinha esse negócio de
macarrão, apareceu já depois. Nós comíamos mesmo era
farinha e beiju. Agora teve a mudança que hoje já tem várias
332 Projeto: Panton pia’
coisas que o índio tá comprando. Aí índio já quer comer to-
mate, já quer comer batatinha, já quer comer cebola. Antes
não tinha isso, era mais a caça, que mais usava era assado,
não tinha coisa salgada. Era mais assado no fogo mesmo. Era
pouca coisa que salgava, nunca usavam muito caça assim no
sal. Hoje mata uma caça já quer salgar, não quer mais fazer
coisa pra assar como era. Então, mudou. Só essa mudança
que teve um pouquinho dos indígenas. Foi isso.
DF: E em relação a essas novas coisas que vêm de fora
pra comunidade, o que o senhor pensa a respeito disso?
DP: Muitas coisas que vieram como o açúcar, bombom,
chiclete, água gelada, que também ninguém tinha, eles fa-
zem muito mal pro dente da criança. Muito açúcar e chupar
bombom tem criança com quatro anos que já tá com o dente
tudo estragado. Tudo estragado. E sempre mamãe dizia
assim que água gelada estraga o dente da gente, porque
quando você bebe água ele dói. Quem não é acostumado dói
no dente. Tem gente que não aguenta, então, aquilo estraga
o dente. Então, teve até, quando começaram a dar pasta de
dente, ela dizia pra nós que não era bom, porque queimava.
Então, o que serve pra de manhã: mandava mornar água pra
lavar os dentes, porque mata os bichos. Então, eles usavam
isso aí. Eu acho que era verdade, porque os dentes dos velhos
não tinha pasta e eram bonitos. Tinha os dentes bonitos de
primeiro. Não era, como é que escapavam os dentes, né? Das
mulheres e dos homens como é que escapavam? Ficaram
assim. Eles não usavam pasta. De manhã, tem o carvão do
fogão. Eles pegavam o carvão e passavam no dente. lava-
vam com esse carvão pra ficar brilhando. Era o que dava o
brilho. Então, quando saiu a pasta ela não gostava, porque
estragava o nosso dente. “Não...” “Não dona, isso aqui vai
ser bom pros meninos escovar...” Isso foi assim.
DF: Tá certo. E a história do povo, aquelas coisas assim,
Macunaima, alguma coisa assim, o senhor já ouviu falar ou
não ouviu, como é que é?
DP: Eh, falava muito do Macunaima. Ele era... Hoje nin-
guém vê mais, mas antigamente ele caminhava, ele andava,
Projeto: Panton pia’ 333

ele era uma pessoa. Só que ele tinha poder, ele era poderoso
também, ele dizia uma coisa. Primeiro era Deus e logo depois
era ele. Por onde ele andava, você não podia tá criticando
Deus. Se criticasse, ele fazia alguma coisa do senhor. Por
exemplo, ele vinha lá, você vai levando, ela tava contando
essa história, que ele vinha aí, sempre o pessoal saía pra caçar
no Natal, pra chegar pra fazer a festa de Natal. Ele sempre
viajava. Aí teve encontro, mandaram sete mulheres pra levar
caxiri pro encontro dos maridos que vinham da caçaria. Aí
pararam num ponto que esperaram em cima de uma laje. Aí
nessa hora o Macunaima vinha de lá pra cá, aí sempre quan-
do eles encontravam com ele, eles davam caxiri pra ele, né.
Aí disseram: “Ah! Lá vem o vovô velho ali. Mas hoje a gente
não vai dar caxiri pra ele não”, eles falaram: “Ninguém vai
dar caxiri pra ele não.” Ele escutou, ele ouvia, era poderoso,
aí tá bom. Aí juntaram os baldes, os sete baldes assim. Aí
falou com ele, deu bom dia, tomaram bênção, falaram que
não iam dar caxiri: “Ah! Eu já vou.” “Tá bom.” Aí ele disse:
“Os sete baldes vão virar pedra.” Pronto. Na hora que ele
saiu, que deu as costas, quando foram olhar, os sete baldes
viraram pedra, tava tudo encarreradinho. Aí ele não bebeu
e o marido também não bebeu. Transformou os baldes em
pedra, tudo em pedra. Essa era a história que ela contava,
do Macunaima que ele era viajante. Ele, não sei como é que
ele era, não sei se Macunaima era pesado, se ele chegasse
numa pedra assim. Se ele passasse a mão, do jeito que ele
passava, ele desenhava, não sabia como fazia isso. Pois se
ele chegasse aqui: “Senhor, eu vou deixar a marca do meu pé
em cima dessa pedra”, ele pisava e ficava a marca do pé dele.
DF: Eu já ouvi também.
DP: Tudo ele fazia. Não sei como é que ele fazia isso.
A pedra ficava mole... Essa é a história dele, ele era muito
poderoso.
DF: E do Canaimé?
DP: Do Canaimé é só pra fazer mal aos outros.
DF: Ah é!
334 Projeto: Panton pia’
DP: É. Canaimé é igual a uma coisa... O Canaimé é igual
como são esses bandidos hoje. Aí às vezes ele chega com
aquela inveja do senhor, aquela inveja, aí ele vai lhe perse-
guir. Ou às vezes um parente, isso é como uma coisa... ele
é revoltado. Vamos dizer, tem um que mata algum parente
dele, pra lá, então ele vem lhe perseguir até lhe matar, ou a
tua família. Ele tem que fazer alguma coisa com a sua família,
se ele não pode lhe pegar então vai pegar um da sua família,
ou seu filho ou seu irmão, ele tem que descontar aquilo que
ele quiser. O Canaimé é assim, ele vira de todo jeito assim. Aí
quando ele pega pessoa diz que ele usa, tira dente de cobra
cascavel. Ele usa vários tipos pra lhe maltratar, que o dente
de cascavel, ele tem veneno. Aí quando ele pega, enforca, aí
cheira pra fazer mal, pra morrer mesmo, pra matar. Aí você
volta e já chega em casa com febre. Aí se não tiver nenhum
pajé perto pra ver, aí você vai morrer. Às vezes tem pajé
perto, né, chama, diz o que aconteceu: “Canaimé bateu
fulano... Vai correr atrás de pajé.” Pajé vem, vai bater folha:
“Não, foi Canaimé. E tem remédio. Vão fazer remédio.” Às
vezes escapa. Mas quando não tem pajé perto...
DF: É complicado.
DP: É complicado. Morre mesmo.
DF: O senhor conheceu algum caso?
DP: Conheci vários casos que tinham acontecido isso.
DF: E o que é que o senhor pensa a respeito?
DP: Do Canaimé?
DF: Eh.
DP: Eu não sei nem o que a gente pode fazer dele.
DF: Não sabe, não é! Agora, tão falando que eles tão
descendo por causa das questões indígenas [da Raposa].
DP: Esses que mataram agora ali no Surumu, no Banco,
ele veio de lá, tal de Roberto, conheceram numa serra aí,
era Canaimé mesmo, de lá. Aí ele veio porque eles estavam
perdendo questão lá da Raposa Serra do Sol. Aí eles vieram
Projeto: Panton pia’ 335

pra brigar com o pessoal. Mas só que quando chegaram aí,


viram ele, e aí já conheciam ele: “Esse daí era Canaimé lá da
Serra.” Aí já pegaram, mataram ele mesmo.
DF: É, me falaram. E tem algum objeto que a sua mãe tinha
como sagrado, alguma coisa? Alguma coisa que a sua mãe
tinha, algum objeto que ela gostava muito? Dos antigos...
DP: Eu não me lembro não. [...]
DF: O senhor conhece o fura-olho?
DP: Fura-olho.
DF: Já viu?
DP: Não, nunca.
DF: Nunca? É um pau em forma de garfo que eles fazem
assim, e dizem que era usado antigamente, pra furar os dois
olhos. Nunca viu?
DP: Fura-olho não. Só taquara.
DF: Taquara?
DP: Taquara era usado por Canaimé, que os parentes iam
pra roça e levavam a flecha, que é arma deles. Aí tá capinan-
do, mas ele tá prestando atenção, porque senão Canaimé
atacava eles. Aí ele flechava mesmo o Canaimé. Ele fazia
aquela flecha de maçaranduba. Ele fazia também taquara, de
ferro. Aí quando Canaimé vinha, tava capinando, prestando
atenção, ele nunca ficava entretido não.
DF: Ficava como?
DP: Ficava olhando. Aí ele tava capinando aqui, aí ele
viu quando a pessoa abaixou. Aí ele já veio logo: “É bem
Canaimé que tá querendo me atacar aqui.” Aí o Canaimé
baixou lá e ele pegou a flecha dele, aí foi pra lá. Ele calculou,
ele tinha baixado: “Eu vou flechar ele agora.” Aí ele foi pra
lá. Aí ficou aqui. Quando Canaimé levantou pra olhar, aí ele
deu no meio da testa dele. Assim que ele fazia, os parentes,
eles flechavam mesmo.
DF: E sabe da história da mulher que foi pega pelo maca-
co? O senhor já ouviu uma vez?
336 Projeto: Panton pia’
DP: Não.
DF: Quando um indígena nasce ou morre tem algum
ritual, alguma coisa? Quando nasce, por exemplo, a família
continua normal, acontece alguma coisa, tem o período de
resguardo pro homem também. Como é que é?

DP: Sim. Aí vai por etnia, o macuxi tem a coisa diferente.


Se morrer, eles fazem só enterrar e guardar uns dias, não
é como os outros. Cada etnia tem costume diferente. São
diferentes. Que Yanomami há uma diferença, eles fazem
diferente. E já aqui não, macuxi morreu, aí faz enterro, aí vai
guardar uns dias, aí pronto.
DF: E quando o senhor tá de luto, pode fazer tudo normal,
não pode fazer, como é que é?
DP: Aí não. Aí quando tá de luto tem várias coisas que
não podem fazer. Vai guardar, né, a morte do pai, da mãe.
Por exemplo, se tem festa você não pode participar dentro
de festa, porque você tá de luto. Até um mês ou dois meses,
depende do que você querer. Você não pode estar naquela
folia não, porque durante um mês você tá resguardando a
morte do seu pai, da sua mãe ou de qualquer família. Então,
assim é que eles falavam de primeiro.
DF: E quando nasce tem alguma coisa?
DP: Quando nasce é só alegria, quando vai nascer um
filho. Antigamente eles faziam caxiri, caxiri forte, aí deixava
guardado. Aí quando nasciam os índios já sabiam, os outros
estão só guardando ali. “Ah! Nasceu o filho do fulano. Vamos
pra lá tomar o mijo!”, que é o caxiri, caxiri forte, aí era o mijo,
na época que eles faziam. Eu conheci bem, lembro quando
a mamãe ia ganhar nenê, mandava fazer caxiri, pra tomar o
mijo. Aí eles guardavam, tiravam aquele caxiri que tinha o
mijo, é álcool puro que ele tá se formando, isso daí que eles
chamavam de mijo. “Onde vocês moram? Vamos lá tomar
o mijo.” “Nasceu fulano de tal.” Aí a alegria dele era ir pra
lá tomar o mijo.

RS: O mijo, mas era de caxiri.


Projeto: Panton pia’ 337

DP: Não vai dizer que era mijo da criança.


DF: E Puçanga, o senhor conhece alguma? Já viu alguma?
DP: Eu já ouvi contar história. Tem gente que fazia, né. Que
puçanga, que diz que a cobra mais traidora é a jiboia. Aí tinha
homem que usava puçanga pra mulher pra ver a cabeça da
jiboia e o rabo, aí diz que guarda. Aí quando chegava assim,
que gostava de uma menina, não sei como é que ele fazia ali,
então essa cabeça de jiboia fazia essa menina gostar dele.
DF: [Risos]
DP: Isso aí que chamavam puçanga. “Ah! Fulano parece
que fez puçanga.” “Por quê?” “Ah! Porque aquela menina,
tanta mulher que gosta dele. Acho que era puçanga que ele
tinha.”, que era que ele fazia com a cabeça de jiboia, né.
“Olha, ele tem cabeça de jiboia.” Aí começavam. Aí sempre
acontecia isso, tinha isso pra fazer. Não sei se é verdade,
mas eu sei que tinha.
DF: O senhor conhece alguma história assim de macaco,
de onça, que o senhor já ouviu falar? Que onça fez aquilo,
que macaco fez aquilo, que jabuti era onça... O senhor co-
nhece alguma?
DP: Tem uma história aí do macaco, com o veado e onça.
DF: Aí como é que é?
DP: É que um Veado tinha um gado. Aí quando foi um dia
a Onça foi lá e levou um boi pra ele: “Veado, toma conta do
meu boi?” “Tá bom. Pode deixar aí com meu gado.” Aí ficou
tomando conta. Aí quando foi com cinco anos, aí a Onça
decidiu ir lá, disse que gado dele tinha aumentado, aí queria
metade do gado do Veado. Aí diz que o Veado tava triste lá,
aí o Macaco vinha. O Macaco chega: “O que foi, camarada?
Tá triste?” “A Onça deixou um boi aqui, tá com cinco anos, e
agora diz que já produziu e quer levar metade do meu gado.”
“Rapaz, deixa de ser besta! Tu diz pra ela me esperar amanhã
até nove horas, que eu venho aqui advogar teu caso.” O ma-
caco falava que ele tava andando. “Mas tu vem?” “Eu venho.
Não pode dividir gado enquanto eu não chegar.” “Então tá
338 Projeto: Panton pia’
bom.” Aí já ficou mais animado, que o Macaco ia advogar o
caso. Quando foi oito horas, Onça chegou. “Ah! camarada
Onça, Macaco disse pra tu esperar ele.” “Que hora que ele vai
chegar?” “Nove horas ele ficou de chegar.” “Então tá bom.
Eu vou esperar.” Deu nove horas, nada. Nove e meia, nada.
Dez horas lá vem ele: “Lá vem ele.” Mas já vinha com coisa
na cabeça pra ganhar gado do Veado. Aí ele disse: “Agora,
camarada Macaco.” “Agora, rapaz. Agora que eu venho
chegando. Eu ia saindo lá de casa, tava aqui na metade da
viagem, mandaram me chamar, mandaram me chamar que o
meu pai tava sentindo dor pra ganhar nenê.” “Mas, camarada
Macaco, onde é que tu já viu homem ganhar nenê?” “Pois é,
e como é que tu quer que teu boi produza?” Aí ele advogou
causa, ganhou só uma questão.
DF: Ah! Entendi.
DP: Então, acabou-se, queria ganhar gado... Então, foi ad-
vogado o Macaco, por isso que hoje ele é sabido da história.
Ele é muito inteligente, até hoje ele tá aí, mas ele é inteligente
pra mandar. A história dele, ele já foi advogado já.
DF: Entendi. O senhor conhece alguma outra história?
DP: Bom o que eu sei tem do timbó também.
DF: Sabe do timbó?
DP: Eh. Do timbó era conhecido também pelo menino.
Que ele saía pra caçar, aí uma Anta, ela viveu com esse me-
nino. Não sei como é que se criavam na mata, né. Aí ela ficou
grávida desse homem. Aí os caçadores entraram na mata pra
caçar. Aí os cachorros deram logo com ela, com a Anta que
tava buchuda, já tava pra parir já. Aí os cachorros correndo
atrás, aí ele correu pra fora. Ele era homem, perfeito, aí os
caçadores estavam na mira certa. Aí ele foi e disse pra eles:
“Olha, vocês não vão atirar no bucho da Anta não, vocês
atiram na cabeça dela, que ela tá buchuda”, disse pra eles.
Aí por que esse homem sabia assim. Aí cachorro vinha com
ela correndo. Aí quando ela caiu n’água eles atiraram mesmo
na cabeça, aí mataram. Aí ele logo se apresentou, aí quando
atiraram, ele chegou. Aí quando mataram ele disse: “Vocês
Projeto: Panton pia’ 339

têm faca?” “Tem.” Aí cortaram ela e ele tirou. Era um me-


nino. Gerou numa Anta. A Anta gerou gente. Aí tiraram, ele
tava pra nascer, aí tiraram ele. Ele tomou mais cuidado que
era filho dele, tirou, deu banho ali. Aí quando ele deu banho
no poço, aí as piabas começaram a virar. Aí ele disse: “Não,
esse daqui vai ser nome dele Timbó.” Quando deu pra matar
peixe, porque timbó que mata. Então, essa que é a história
dele aí. Ele cuidava muito do menino dele. Aí todo mundo
quando queria pescar assim no poço, aí convidavam ele. Se
ele mergulhasse no poço, aí os peixes já iam morrendo. Aí
lá convidavam, toda pescaria assim, chamavam ele, aí ele ia.
Aí chega lá, manda ele mergulhar, aí ele saía, aí os peixes já
vinham com ele, já iam jantar peixe. Aí ficaram com inveja
dele: “Nós vamo matar esse menino.” Aí quando foi um dia
diz que levaram pra um lago, onde tinha uma cobra que
botou quebrante pra ele morrer. Aí chegaram, já tava tudo
preparado pra acabar com ele, pra matar ele. Ficaram com
inveja. Convidaram ele. Ele foi. Aí ele mandou: “Mergulha
direto bem aqui assim!” Ele mergulhou e foi sair lá com essa
cobra. Aí a cobra flechou ele. Aí ele saiu d’água, os peixes
não morreram mais, aí ele saiu triste. Aí o pai dele ficou
preocupado: “Agora sim. Botaram quebrante no meu filho
e o meu filho não tem nenhum pajé por aqui, meu filho vai
morrer.” Ficou com ele. Aí como eles iam pra matar ele, se
arrumaram e foram embora. Deixaram só ele lá. Aí ele ficou lá
e morreu o filho dele. Ele ficou lá com ele: “Agora sim, o que
é que eu faço.” Aí ficou lá sozinho, aí já tava apodrecendo.
Aí: “Eu vou levar meu filho”, mas era garotinho mesmo. Aí
essa história que conta, tem aquele timbó que tem aquelas
frutinhas. Essa o senhor ainda não viu não, né?
DF: Já sei que tem um timbó que faz da raiz.
DP: Então, daquelas frutinhas é ovo dele, quando caiu.
Então, esse timbó que dá aquelas frutas. Aí timbó de raiz é
da coxa...
DF: Da coxa dele.
DP: Da perna dele. Aí é o timbó de raiz. Então, esse daí
340 Projeto: Panton pia’
foi desse menino que criou timbó. Porque tem o que dá de
frutinha e tem o de raiz que dá no chão, do chão que caiu
da perna dele. Esse ovo dele que caiu é o que dá de rama, aí
dá aquelas frutinhas, o timbó também. Daí a história dele.
Contavam um monte. Mamãe que contava essa história.
DF: É, eu já ouvi ela, mas ela assim, é diferente em algumas
coisas. [...] E dentro da comunidade, o senhor conhece uma
outra história assim, que o senhor tenha ouvido?
DP: Pela comunidade...
DF: Eh. Pode ser a que o senhor tenha ouvido contar.
Outra história que a sua mãe contava... Qualquer uma.
DP: Até agora não. Não sei se Regina vai lembrar de
alguma que ela sabe da comunidade.
DF: Tá certo. E como que segue a educação na comuni-
dade hoje?
DP: É a educação é assim muitas coisas.70 E muitas tam- Há nesse ponto um peque-
70

no trecho incompreensível.
bém os indígenas aprenderam assim coisas que, nós dizemos,
pela educação. Primeiro os indígenas não saíam pra estudar.
Elas cresciam e os homens também na comunidade. Crescia,
se casava, se formava ali trabalhando. Aí a gente vê, de uns
tempos pra cá, que a educação, ela fazia muito o nosso
pessoal da comunidade. Se quiser, um jovem, um homem ir
estudar ele vai estudar. Às vezes vai pra cidade e não quer
mais voltar. A mulher, a gente coloca também: “Não, eu
quero fazer faculdade, vou pra Boa Vista”, aí não volta pra
essa comunidade. Então, as comunidades foram acabando
com os indígenas. De primeiro não, elas se casavam com
vinte anos, vinte cinco e ficavam na comunidade, morando,
se casavam aqui mesmo, é por isso que aumentavam muito.
Então, tem muitas comunidades hoje que elas estão muito
vazias por causa da educação. Que vai estudar pra outro
colégio fora da comunidade, termina não voltando mais. E
muitas. Na Curicaca conheci, elas foram tirar: “Não, eu vou
estudar em Boa Vista.” Aí elas foram acabando. Por uma
parte, eles aprenderam alguma coisa, por outra parte eles
fracassaram as comunidades, que saíram muito e não tão
Projeto: Panton pia’ 341

voltando mais.
DF: Por isso que é bom fazer a escola na própria comuni-
dade. E dificuldade hoje, quais as principais dificuldades das
comunidades hoje?
DP: Como assim dificuldade?
DF: O que mais atrapalha a comunidade a crescer, o
desenvolvimento da comunidade, o que é que é difícil hoje?
DP: O que atrapalha muito assim na comunidade é a
bebida alcoólica. Bebida alcoólica atrapalha a vida da co-
munidade, que às vezes você tá bem, trabalhando, e aí de
repente toma, aí começa, atrapalha a comunidade. Hoje a
gente vê através da bebida. Até o caxiri forte, ele também
atrapalha. E quando é só caxiri que você faz, levanta ele hoje
pra tomar amanhã, todos ele toma, é criança, todos tomam,
porque é um caxiri doce, né, ele não prejudica nada. Mas se
você deixar ele fermentar, ele vai prejudicar, porque um bebe
mais, aí vai ficar bêbado, vai discutir com outro, aí começa a
atrapalhar a vida da comunidade.
DF: O alcoolismo.
DP: O alcoolismo.
DF: O senhor conhece a história de algum, alguma coisa
assim relacionada a algum animal? Alguma história falando
de peixe, de alguma coisa ou não?
DP: De peixe...
DF: É. Alguma coisa assim de algum animal, alguma his-
tória aí. Conhece alguma?
DP: Não.
DF: Não, né. Tem algum amuleto, alguma coisa pra trazer
sorte assim ou não? Que o senhor já ouviu falar alguma vez.
DP: Não.
DF: Amuleto, alguma pedra, alguma coisa que possa ter.
DP: Não. Tem não.
DF: E os meninos assim, por exemplo, tem algum tipo de
342 Projeto: Panton pia’
iniciação pros meninos e pras meninas? Quando elas estão
virando moças, fazem alguma coisa ou não fazem mais? Ou
nunca fizeram?
DP: Não. Isso aí só com a mulher que pode contar alguma
coisa.
DF: E pros meninos então, pros rapazes? É porque tinha
uma cultura que cortava assim...
DP: É. Mas hoje não faz mais isso.
DF: Não faz não.
DP: Não. Já esquecemos muita coisa disso aí que o se-
nhor falou.
DF: E o senhor lembra mais de alguma coisa?
DP: Não.
DF: Então, tá certo seu Domício. [...]Tem alguma história
que o senhor queira contar, alguma coisa? Qualquer coisa
que o senhor lembre que o senhor queira falar.
DP: Por enquanto não.
DF: Não. Então, manda um recado pra alguém que vai ver
essa fita do senhor daqui a duzentos anos. [Risos] Manda
um recado. Pense que daqui a duzentos anos um neto, um
bisneto, um tataraneto do senhor vai pegar esse material
todo e vai ler o recado que o senhor deixou pra ele. O que é
que o senhor falaria pra ele?
DP: Só deixar um recado de lembrança pros netos, pros
filhos, é o recado que eu deixo pra eles.
DF: Que manda lembrança pra eles. Tá certo. Obrigado.

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