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A SIGNIFICAÇÃO DA MORTE:
UM OLHAR SOBRE A FINITUDE HUMANA

THE MEANING OF DEATH:


A LOOK INTO THE HUMAN FINITUDE

Michele Negrini1
Recebido em: 25/09/2012
Aprovado em: 13/08/2013

RESUMO ABSTRACT

A morte é um tema com complexas e fundamen- Death is a theme with complex and funda-
tais significações entre os humanos. Os compor- mental meanings among humans. Social at-
tamentos sociais diante da morte e as reflexões titudes towards death and the reflections on
acerca desse tema têm tido diferentes configu- the topic have had different settings during
rações no decorrer do processo histórico. Este the historical process. This article aims to re-
artigo objetiva refletir sobre os significados e a flect on the meaning and significance of death
importância da morte para o homem, bem como for the man as well as observe the constitu-
observar a constituição do indivíduo a partir do tion of the individual from the moment he is
momento em que ele tem a certeza de sua finitude. sure of his finitude. It will be presented some
Serão apresentadas algumas ponderações acerca considerations about the extreme changes in
das mudanças radicais nos valores e nos compor- social and behaviors values towards human
tamentos sociais perante a finitude humana, que finitude, manifested dramatically in the twen-
se manifestaram expressivamente no século XX. tieth century.
Palavras-chave: Morte; Cultura; Individualismo; Keywords: Death; Culture; Individualism;
Pós-modernidade. Postmodernism.

1 Introdução tamento fundamental. Com o reconhe-


cimento da morte, a vida torna-se mais
A morte é um tema cujas ideias, plena, uma vez que a consciência do fim
hipóteses e argumentos, fora do campo embasa um olhar diferenciado sobre o
biológico, têm amplas relações com as presente, dando forma à vida. Adaptar-
características de cada cultura e de cada se à ideia da morte oferece bases para a
período histórico. Também as crenças vivência (SIMMEL, 1998).
religiosas, muitas vezes, determinam Como os humanos constituem a
concepções sobre a finitude humana. única espécie que tem a certeza da mor-
A morte é um dos temas mais deli- te presente durante a existência e que
cados e controversos da história cultural pratica ritos fúnebres, a sua essência
da humanidade. É um elemento estrutu- está associada às suas crenças em rela-
ral para o entendimento do homem, pois ção à morte. As formas de viver têm am-
o ser humano só se reconhece a partir plas relações com o fim. Dastur (2002)
da aceitação de sua finitude. A vida está salienta que o conhecimento que as
estreitamente ligada com a significação pessoas têm do próprio fim é que torna
que se atribui à morte. A concepção que possível a relação que os humanos têm
o homem tem de vida e a que tem de com a própria mortalidade. Morrer não
morte fazem parte de um único compor- é apenas uma determinação extrínseca

1
Doutora em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Brasil. Docente da Universidade Federal de Pelotas
(UFPEL). E-mail: mmnegrini@yahoo.com.br.

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da existência, um acidente, mas um atri- foco a reflexão acerca dos significados


buto essencial do homem. A relação do e da importância da morte para os se-
ser humano com a morte é constitutiva res humanos. Intenta, ainda, observar
de seu próprio ser. a constituição do indivíduo a partir do
É difícil conhecer o ser humano momento em que ele tem a certeza do
sem entender a morte, pois é nela que o fim da vida.
homem mostra-se ao mundo. É nas ati-
tudes diante da morte que o ser humano 2 O homem perante a morte
explicita suas diferenças em relação aos
outros seres vivos. A morte é a imagem As atitudes dos homens diante
do homem, e, quando este a olha, ele da morte são reflexos da sociedade, da
observa a si próprio (MORIN, 1988). A temporalidade e da cultura em que es-
morte é um perigo constante, é um aca- tão inseridos. O espaço e a localização
so que surge no cotidiano humano, que geográfica também são importantes na
aparece nas transformações do mundo determinação dos modos de proceder
e que norteia o decorrer da vida: “De diante da morte.
qualquer modo, a morte penetra, enraí- Mannomi (1995) fala que Phili-
za-se no mistério que é simultaneamen- ppe Ariès, em seu livro L’Homme de-
te o mistério da Matéria e da Vida. Para vant la mort, explica as mudanças de
o homem, a morte faz parte da teia do atitudes das sociedades frente à doença
seu mundo, do seu ser, do seu espírito, e à morte. Na Idade Média, entendia-se
do seu passado e do seu futuro” (MO- que a morte dava aviso prévio, de modo
RIN, 1988, p. 325, grifos do autor). O que as pessoas sabiam que iam morrer e
mesmo autor expõe ainda que separar o aguardavam o momento final.
homem da morte é um desejo alienado.
Para Chiavenato (1998), a morte Quando chegava a hora, morriam exa-
é o tema mais delicado e controverso da tamente como era preciso. A morte
história cultural da humanidade. Morin maldita (que se apresenta como uma
(2005a) salienta que é na morte que se dá figura aterrorizada) era a morte súbi-
ta (acidente, envenenamento). Essa
a maior ruptura entre o espírito humano
morte era marcada com o selo da
e o mundo biológico. “Na morte, encon- maldição, como se forças misteriosas,
tram-se, chocam-se, ligam-se o espírito, demoníacas, estivessem na origem
a consciência, a racionalidade e o mito” do drama; era a essas mesmas forças
(MORIN, 2005a, p. 45). O autor ressal- demoníacas que se atribuía, na Idade
ta que é através da morte que o homem Média, a origem da epilepsia e da lou-
constrói o entendimento de si. É na cons- cura. A morte familiar (na época em
ciência da própria finitude que o homem que se morria em público) é chamada
diferencia-se dos outros seres vivos. por Philippe Ariès a morte domestica-
O momento em que o homem da (MANNOMI, 1995, p. 40).
percebe que vai morrer é fundador para
a cultura. Com a consciência da morte, o Desde o século XVIII e até o iní-
homem tem a preocupação de transmis- cio do século XIX, era comum os pa-
são e de conservação de todo o seu patri- rentes assistirem ao fim do moribundo.
mônio cultural. A morte leva à difusão de Quando a morte aproximava-se, a casa
hábitos, costumes e conhecimentos, que era aberta para a entrada de todos. Os
são preservados entre gerações. À medi- médicos do século XVIII que observa-
da que o homem entende que vai morrer, vam as regras de higiene queixavam-se
ele adquire a preocupação de preserva- do excesso de pessoas no quarto dos
ção cultural e acaba tendo um sentido agonizantes. No começo do século
mais consistente para a sua vida. XIX, as pessoas que passavam na rua,
Assim, este artigo tem como ao encontrarem um pequeno cortejo, do

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qual participava o padre levando o viá- boa morte á aquela que não perturba a
tico, acompanhavam-no, entrando com sociedade, que se dá de forma discreta
ele no quarto do doente. (ARIÈS, 2003).
Ariès (2003) enfatiza que, do Na atualidade, é característica a
período da alta Idade Média até a me- atitude do homem de negar a própria
tade do século XIX, as atitudes diante morte. A finitude humana não é cogi-
da morte foram mudando, mas de modo tada no cotidiano e as pessoas vivem
tão lento que os contemporâneos não de forma como se ela não existisse.
se deram conta. Há uma revolução nos Oliva-Augusto (1995) explica que um
sentimentos tradicionais. E a morte, que mecanismo de negação da morte nas
foi presença marcante no passado, dei- sociedades atuais é o “fazer passar a
xa de ter espaço nos círculos de conví- vida”. Loureiro (1998) acrescenta que
vio da sociedade atual. por estarmos submersos na vida, em
Já na segunda metade do século atividades cotidianas, corriqueiras para
XIX, o moribundo começa a ser poupa- nós, eliminamos, quase por completo,
do da gravidade do seu caso. De acordo as ideias da morte, principalmente as
com Ariès (2003), a motivação inicial de nossa morte. O homem, no decorrer
para a mentira era poupar o doente do de seu cotidiano, na maioria das vezes,
conhecimento de seu quadro clínico. vive como se a morte não estivesse pre-
Esse comportamento foi dando espaço sente nas suas relações.
para um sentimento bem distinto, ca- Freire (2006) complementa esse
racterístico da modernidade, que é o de pensamento afirmando que, apesar de o
poupar a sociedade das perturbações e homem desejar a superação da morte,
emoções fortes causadas pela agonia e algumas mudanças na compreensão do
pela presença da morte em meio a um papel do indivíduo2 nas sociedades mo-
contexto de vida. dernas contribuíram para uma maneira
No século XX, entre as décadas diferenciada de negar a morte. “Não
de 1930 e 1950, ocorre o deslocamen- são mais as projeções da ideia de con-
to do local da morte. Já não se morre tinuidade em um plano metafísico que
mais em casa, entre os familiares, mas asseguram a amenização para o enfren-
no hospital, onde há recursos de tra- tamento da morte. Negar a mortalidade,
tamento e de higiene não disponíveis atualmente, é viver como se ela não
no lar. O hospital passa a ser um lugar existisse” (FREIRE, 2006, p. 28).
privilegiado para a morte; os pacientes Oliva-Augusto (1995) explicita
não são mais levados para lá somente que a consciência do homem de sua fi-
para serem curados, mas também para nitude e o reconhecimento da temporali-
morrerem em um local mais adequado, dade como dimensão irreversível reme-
sem a presença de parentes e vizinhos. tem à noção do individualismo diante da
O deslocamento do lugar da morte dá morte. À medida que o homem tem cons-
respaldo para a sua higienização e, tam- ciência de que vai morrer, quer aprovei-
bém, para que a sociedade seja poupada tar o tempo e focar-se no seu bem estar.
de abalos. A finitude humana deixa de A perspectiva da existência de um limite
ser um momento coletivo. para a vida aponta para a necessidade de
Na cultura ocidental do século vivência plena e com realizações.
XX, procurou-se reduzir ao mínimo Como o homem tem a certeza de
as operações diante da morte, tendo- sua morte física e sabe que é impotente
se apenas as atitudes necessárias para diante dela, a crença na imortalidade3
fazer o sepultamento do corpo. As ce- 2
Neste estudo, estamos trabalhando com a construção do indivíduo na
sua relação com a morte. Portanto, não contemplamos nenhum concei-
rimônias devem ser simples e evitar to específico das Ciências Sociais, pois, aqui, será relevante somente a

o extravasamento de emoções. A boa construção da individualidade nesta relação do homem com sua finitude.
3
A imortalidade presente nas crenças dos homens ocorre no campo do
morte é a morte maldita do passado. A imaginário. O homem crê na vitória de sua alma sobre a morte e no fato
de que essa alma terá espaço em outras dimensões. Morin (1988) tra-

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dá suporte para a negação da finitude. mana. Para o autor, vencer a morte sig-
A partir dessa crença é que vive o ho- nifica domesticar a espécie em todos os
mem, o qual, muitas vezes, embora co- planos. “Colonizar a espécie é coloni-
nhecendo a morte e tendo certeza de sua zar a morte, e vice-versa, é o triunfo da
chegada, vive cego frente a ela, como se individualidade, a sua possibilidade in-
a finitude só existisse longe de suas re- finita” (MORIN, 1988, p. 306). Assim,
lações. A angústia provocada pela certe- o triunfo do indivíduo sobre a espécie
za da morte existe, mas está mascarada como um todo ocorreria no vencimento
pela perspectiva da vivência da alma. da finitude humana, mas, no cotidiano
Morin (1988) afirma que essa vi- das pessoas, a morte pode ser ultrapas-
são da imortalidade não significa a igno- sada somente no campo simbólico e
rância da morte, mas o reconhecimento imaginário5. Já no campo biológico, a
de sua chegada. “Assim, a mesma cons- morte é intransponível. A morte, como
ciência nega e reconhece a morte: ne- fim das atividades biológicas, está além
ga-a como aniquilamento, reconhece-a do alcance do homem.
como acontecimento” (MORIN, 1988,
p. 26). O autor acrescenta que é a indi- Nesse desastre do pensamento, nessa
vidualidade humana que tenta negar a impotência da razão perante a morte,
morte, elaborando o mito da imortali- a individualidade jogará os seus úl-
dade. A consciência da morte não nasce timos recursos: procurará conhecer
a morte, não já pela via intelectual,
com o homem, mas é adquirida no de-
mas sim farejando-a como um ani-
correr de sua existência. mal, a fim de penetrar no seu covil;
O fato de o ser humano estar procurará fazê-la recuar recorrendo
condenado a aceitar o fim do funcio- às mais brutais forças da vida. Esse
namento de suas funções vitais é o afrontamento-pânico, num clima de
maior problema que o acompanha e o angústia, de nevrose, de niilismo,
fere como indivíduo4. Dessa forma, o adquirirá aspectos de autêntica crise
horror à morte é relacionado por Mo- da individualidade perante a morte.
rin com a perda da individualidade: “O Mas essa crise da individualidade
horror da morte é, portanto, a emoção, não pode ser abstraída da crise geral
o sentimento ou a consciência da per- do mundo contemporâneo (MORIN,
1988, p. 261).
da da individualidade. Sentimento que
é o de uma ruptura, de um mal, de uma
catástrofe, isto é, sentimento traumáti- O complexo da perda da indi-
co” (MORIN, 1988, p. 32). O autor faz vidualidade é traumático e a ele estão
um encadeamento entre morte, trauma- relacionadas muitas perturbações pro-
tismo da morte e imortalidade. A cons- vocadas pela morte no ser humano. “A
ciência da morte evoca o traumatismo, morte vai, portanto, estender-se, afir-
que, por sua vez, evoca a imortalidade. mar-se, de acordo com o movimento
Morin (1988) diz que, se o ho- fundamental da individualidade [...]”
mem é condenado a manter-se impo- (MORIN, 1988, p. 52). Quando o indi-
tente frente à morte biológica, então ela víduo colide com a ideia do fim da vida,
será o mais falso (o mais verdadeiro) mostrando o seu horror a ela, demonstra
dos problemas da individualidade hu- sua inadaptação exterior com a natureza
e com a própria espécie.
ta a alma como sendo um duplo. Para o autor, é através da consciência
do homem e dos movimentos de seu duplo que a ideia da morte tem
Refletindo sobre as ideias de
espaço. A morte vai ser apropriada pelo homem mágica e miticamente. traumatismo da morte e da crença na
O domínio da morte continuará a ser a zona de sombra onde triunfam
a magia e o mito, da forma mais categórica e permanente. O conteúdo 5
Nas Sagradas Escrituras, encontram-se passagens que narram a vitória
antropológico da morte dá espaço para a demonstração da amplitude do sobre a morte biológica. Jesus, em seu período de pregações, ressuscitou
imaginário do homem. Lázaro, irmão de Marta e Maria, quatro dias após seu sepultamento (João
4
Morin (1988) situa a morte como um elemento desafiador para o indi- 11, 1-44). A filha de Jairo também vence a morte com a intercessão do
víduo. A consciência da morte fere a individualidade, mostra a possibi- Cristo (Marcos 5, 21-43). O filho da viúva de Naim foi ressuscitado no
lidade de aniquilamento do homem e o fato de que ele é igual aos outros caminho da sepultura (Lucas 7, 11-17). O próprio Jesus venceu a morte
no momento da finitude. após ter sido crucificado e estar morto há três dias (João 20, 1-18).

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imortalidade para tentar negar a mor- No período de prática do luto,


talidade, constata-se uma brecha no a sociedade impunha às famílias dos
comportamento dos humanos, que é o mortos um tempo de reclusão, que tinha
homicídio. O homicídio é um ato essen- como objetivo fazer com que os sobrevi-
cialmente humano, pois o homem é o ventes resguardassem a sua dor do mun-
único animal que mata seu semelhante do e também impedir que esquecessem
sem finalidade vital. Morin (1988) de- rapidamente do falecido (ARIÈS, 2003).
fine o homicídio como a satisfação de Na atualidade, com a interiorização do
um desejo de matar. Neste caso, há uma sofrimento, o grupo social não sustenta
volúpia, um desprezo, um sadismo, um mais o vazio deixado pela pessoa que
ódio, que traduzem uma saliência do morreu. O trabalho do luto foi modifica-
matador em detrimento dos interesses do por razões de conveniência social e
comuns de toda a espécie. É a saliência pelo enaltecimento do individualismo. A
da individualidade em detrimento dos dor de um enlutado não faz mais parte
interesses da espécie. das preocupações coletivas e o sofrimen-
to precisa ser um processo discreto.
3 Do luto ao individualismo
Hoje, à necessidade milenar do luto,
Na cultura ocidental, o luto, que, mais ou menos espontâneo ou impos-
durante a Idade Média, teve ampla vi- to segundo as épocas, sucedeu, em
gência entre as famílias, perdeu espaço. meados do século XX, sua interdição.
Durante o espaço de uma geração, a
Para Ariès (2003), o tipo de luto pratica-
situação foi invertida: o que era co-
do durante o século XIX hoje é conside- mandado pela consciência individual
rado histérico. ou pela vontade geral é, a partir de
Esse luto tinha a finalidade de então, proibido; o que era proibido,
defender os familiares, em momento de é hoje recomendado. Não convém
provação, da dor pela perda do próxi- mais anunciar seu próprio sofrimen-
mo. Hoje, com a economia dos gestos e to e nem mesmo demonstrar o estar
dos sentimentos como noções fundan- sentindo (ARIÈS, 2003, p. 250-251).
tes do “processo civilizador” da moder-
nidade (ELIAS, 1993), a exacerbação Chiavenato (1998) afirma que o
do sofrimento no luto perde lugar social sociólogo inglês Geoffrey Gorer foi o
e esse sofrimento torna-se individual. primeiro a observar a importância do
O sofrimento público transforma-se em luto no momento em que ele era aban-
inadequação. É a melancolia que dá lu- donado, nos meados da década de 1950.
gar ao luto. Os enlutados agora sofrem Foi nas sociedades industrializadas que
sozinhos, não demonstrando para a so- as pessoas começaram a desprezar o luto,
ciedade os seus sentimentos. submetendo-se aos novos costumes com
relação à morte. O autor concorda com
Os ritos da morte são cada vez mais a ideia de que já não há mais o hábito
simplificados. As conveniências exi- de sinalizar através do luto que estamos
gem que o enlutado volte a uma vida sofrendo. As imposições da sociedade
normal depois de passado algum tem- industrial vão além dos sentimentos.
po determinado pelos costumes. O re- Freire (2006) salienta que é im-
calcamento da dor é exigido em lugar portante o entendimento de como a mor-
das manifestações outrora usuais. te e o luto são tratados em uma socieda-
Pouco a pouco uma ascese (o trans- de na qual o individualismo vigora. A
porte de gozo) que preparou o cami-
nho para o capitalismo foi se instalan-
autora enfoca que, a partir da individua-
do (MANNOMI, 1995, p. 43). lização da dor, os ritos de despedida tor-
nam-se mais superficiais, minimizando
as expressões de sofrimento. A morte

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interditada das sociedades atuais leva à homem na maioria das esferas de sua
individualização dos sentimentos diante vida, incluindo sexualidade, religião e
da finitude humana. A falta de reflexões política. Então, o individualismo diante
sobre o fim da vida tem relações diretas da morte do outro é uma maneira de o
com o individualismo e com a exigên- homem defender-se do pensamento de
cia de aproveitamento do tempo. sua própria finitude e de escamotear o
seu sofrimento.
Ao observarmos o embaraço social Morin (2005a) diz que o desen-
causado pelo luto na atualidade, tor- volvimento da individualidade humana,
na-se interessante perceber o proces- a qual é fruto do pensamento, da cons-
so de individualização ocorrente na ciência e da reflexão, não deve levar à
sociedade contemporânea – o que
redução do ser humano apenas à indi-
permite, partindo de uma visão am-
pla para uma mais específica, analisar vidualidade. Para o autor, o ser humano
como a construção da concepção de está envolto em um contexto e define-se
indivíduo, na modernidade, reflete-se como pertencente à tríade indivíduo/so-
nas relações sociais que envolvem o ciedade/espécie; o indivíduo é um termo
luto (FREIRE, 2006, p. 71). que forma o conjunto da tríade e cada
um dos termos contém os outros. O au-
Sébastien Charles, introduzindo tor associa a relação entre os elementos
o pensamento de Lipovetsky (2004b), da tríade com a complexidade humana:
diz que a pós-modernidade é o momento
histórico em que os elementos institucio- Indivíduo, sociedade e espécie são,
nais que freavam as manifestações do in- assim, antagônicos e complementa-
divíduo e a sua emancipação desaparece- res. Imbricados, não estão realmente
atrelados; há a perplexidade da morte
ram. O pensador enfoca que o consumo
entre o indivíduo efêmero e a espécie
das massas e os valores que ele veicula, permanente; há o antagonismo do ego-
como o hedonismo, são elementos res- centrismo e do sociocentrismo. Cada
ponsáveis pela passagem da modernida- um dos termos dessa trindade é irre-
de à pós-modernidade, que pode ser re- dutível, ainda que dependa dos outros.
metida à segunda metade do século XX. Isso constitui a base da complexidade
A mutação de valores identifica- humana (MORIN, 2005a, p. 52).
da por Charles aproxima-se cronologi-
camente do período de negação mais Apesar da relação entre os três
intensa à presença da morte e do cultivo elementos, o indivíduo pós-moderno é
coletivo de rituais perante a finitude hu- mais voltado para si do que para a so-
mana. À medida que o homem começa ciedade e para a espécie. Ele almeja vi-
a preocupar-se mais com a sua reali- ver plenamente a sua vida, prezando por
zação pessoal, a presença da morte no finalidades individuais, como o amor, a
seu meio pode ser um fator incômodo, felicidade, o bem-estar, o conhecimen-
pois irá lembrá-lo de que também está to, o poder e a aventura. A partir do
sujeito à morte. Lipovetsky (2004a) sa- destaque aos valores individuais, Morin
lienta que a entrada das sociedades na (2005b) salienta a necessidade de uma
era do consumo é um fator que leva ao religação entre os elementos da tríade
enaltecimento dos valores individuais, indivíduo/sociedade/espécie. O grande
bem como à busca do prazer e da sa- problema ético contemporâneo situa-se
tisfação íntima. O hiperindividualismo6 na ênfase do individualismo em detri-
persegue a maximização dos ganhos do mento do espírito comunitário. Tal ideia
6
Lipovetsky (2005b) refere-se ao momento atual como a sociedade hi-
pode ser evidenciada ao refletir acerca
permoderna, em que há uma maximização dos valores da modernidade. da morte no decorrer da história, quando
O autor explica que o homem da sociedade hipermoderna é hiperindi-
vidualista, sendo muito mais voltado para si, dono da sua existência, e fica visível o abandono da solidarieda-
recebendo menos proteção da sociedade como um todo e das instituições.
de com o grupo e, principalmente, com

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aqueles que estão sofrendo pela perda demonstrar, pelo luto que estão sofren-
de alguém próximo. A dor do outro não do, a perda de um parente. As cerimônias
é mais uma questão que pertence à so- fúnebres restringem-se a rituais discretos
ciedade como um todo e sim ao âmbito para fazer os corpos desaparecerem.
privado. O prazer de cada indivíduo so- A negação da presença da morte
brepõe-se à necessidade de observação intensificou-se no período da pós-mo-
dos sentimentos alheios. É o hedonismo dernidade, época em que o sujeito tem
preponderando sobre a solidariedade. um olhar mais voltado para si. Assim,
Como forma de religação, Morin pensar a morte do outro e o culto de ri-
aponta o amor como experiência funda- tuais de contemplação da finitude são
mental entre os seres humanos. “Amor é desafios para os humanos. O homem,
também coragem. Ele nos permite viver como indivíduo, não pode ser perturba-
na incerteza e na inquietude. É remédio do com a morte do outro, pois lembra a
para angústia, resposta para a morte e sua própria finitude e pode acabar com
o consolo” (MORIN, 2005b, p. 2002). o seu prazer individual.
Morin (1988) explica que o re-
4 Considerações finais conhecimento da morte por parte do
homem é a aceitação de sua derrocada
Este estudo procurou fazer uma como indivíduo e que esta noção de
discussão acerca da significação da fini- perda da individualidade é um grande
tude para os humanos. A observação da transtorno que a morte causa. A perda
individualização do comportamento das da individualidade remete ao aniquila-
sociedades ocidentais diante do fim da mento do ser humano pela morte. Nesta
vida, que se acentuou na segunda metade perspectiva, o triunfo do indivíduo so-
do século XX, foi um dos pontos centrais bre a espécie ocorreria pelo vencimento
desta reflexão. O artigo procurou discutir da morte, o que faz com que o homem
a noção de finitude humana ancorada em negue a existência da finitude.
uma reflexão sobre o individualismo. A partir das reflexões feitas neste
Falar na morte evoca princípios trabalho, pode-se inferir que a certeza
que estão na base de toda sociedade, da finitude quebra a ideia do individua-
como transmissão cultural e permanên- lismo por igualar o homem entre seus
cia da espécie humana. O homem, ciente pares, sendo a morte a condição de sua
de sua finitude, tem a preocupação de existência. Em contrapartida, é a partir
passar para os seus descendentes traços da certeza da morte que o homem apro-
de sua cultura, incluindo hábitos e cos- pria-se de sua autonomia para aprovei-
tumes. Como já foi discutido durante o tar o tempo vivido, escamoteando a no-
trabalho, há uma complexidade ligada às ção de solidariedade com o semelhante.
discussões sobre a morte. Ela é um tema Para finalizar, convém retomar o
com diversas interpretações, as quais são aspecto de que a morte é um elemento
particulares de cada cultura e da tempo- fundador para o homem e que é a certe-
ralidade e estão intimamente ligadas às za da morte que faz com que o indiví-
formas com que o homem transmite seus duo queira viver plenamente, pensando
conhecimentos às outras gerações. em si e na transmissão de elementos de
Principalmente na segunda meta- sua cultura.
de do século XX, a morte deixou de ser
um acontecimento público, de envolvi-
mento social, para ficar em dimensões Referências
privadas. O tema passou a ser negado
com o decorrer da história e teve sua
existência distanciada da convivência 1. ARIÈS, P. História da morte no oci-
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