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- E há alguma mudança na estrutura de família, mudança - E o irmão, como é o relacionamento deles?

Agora, o pai as-


de casa, de escola. Enfim, algo que chame a atenção de vocês?
sume a dianteira:
A mãe olha para o pai, parecendo estabelecer certa cumpli- - Muito bom, João é uma criança muito dócil. Eles são muito
cidade e aguarda. Parecia esperar que ele falasse alguma coisa e carinhosos um com o outro, brincam muito, um não tem ciúmes
o pai se pronuncia:
do outro. Como a idade é próxima, eles são muito amiguinhos.
- Acho que não, que eu me lembre nada se modificou. Mu- Agora, João não dá problemas, as notas na escola são sempre boas,
damos de casa, mas já faz algum tempo, morávamos em uma casa ele é muito inteligente. (A mãe permanece em silêncio).
maior e fomos para um apartamento e a avó materna foi morar a analista, então, resolve abrir um espaço para que Lea
junto no apartamento, mas isso já tem quase dois anos.
se pronuncie:
Nesse trecho, aparece a atmosfera familiar do afanar, fazer - E você, Lea, tem algo a acrescentar?
com que as coisas desapareçam. Aqui aparecem indícios não ver- - Não, é tudo isso que ele falou. Só acho que você tem que
bais de que há coisas que não devem aparecer, não devem ser ditas prestar mais atenção ao que você fala. Se Antônio ouve o que você
ao psicólogo. Mãe e pai apresentam uma cumplicidade com rela- falou, ele vai se sentir diminuído.
ção ao que deve e não deve ser dito. Mas interpretar o que o gesto O pai responde:
quer dizer é fenomenológico? A fenomenologia não ignora o fato - Só porque estou falando a verdade. É melhor mentir?
de que os olhares, como atos de olhar, têm uma direcionalidade. A mãe retruca:
Quanto à interpretação dos gestos, Husser! (1970) diz que esta de- - Só estou dizendo para você prestar mais atenção ao que
pende da inserção do sentido e, assim sendo, não é fenomenológi- você está falando.
ca. Heidegger coloca-se de outro modo e diz que o gesto é decisivo Ao terminarmos a sessão, perguntei-lhes se Antônio sabia
para indicar o comportamento que devemos acompanhar. que eles estavam vindo à entrevista, que essa se destinava a um
a analista volta-se para a mãe e pergunta: acompanhamento psicológico com ele. Eles responderam que
- E você, Lea, se lembra de alguma coisa? ainda não haviam comunicado, pois estavam esperando ver o
Lea responde:
encaminhamento que seria dado pelo psicólogo. Já começando
- Antes disto acontecer, de percebermos que estava aconte- a psicoterapia propriamente dita, o psicoterapeuta deu início ao
cendo? As notas de Antônio vinham baixando, acho que ele já es- rompimento da atmosfera do segredo, do esconder coisas. Orien-
tava pedindo ajuda, sempre que o seu rendimento cai, percebo aí tei-os a contar ao menino sobre a entrevista, sobre o porquê de
um pedido de ajuda.
eles pedirem ajuda ao psicólogo e o que vinha preocupando-os
Novamente, a mãe passa a interpretação de que aquilo que no comportamento dele. Eles concordaram e marcamos o en-
a criança faz tem outra intenção. Era preciso sair desse tipo de contro com Antônio três dias depois.
interpretação, pois, dessa forma, nunca alcançaríamos o que re- Em uma postura antinatural, o analista suspende o "diag-
almente está em questão.
nóstico" dado pela mãe e pelo médico e volta-se para o fenô-
a analista, ao perceber indícios de segredos familiares, meno em sua mobilidade estrutural. Neste momento, importa o
respeita a situação, não insiste e vai investigar as outras rela- sentido que Antônio dá à sua experiência. A postura fenomeno-
ções de Antônio:
lógica implica deslocar-se das interpretações comum ente atribu-
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idas, asswnindo uma atitude antinatural com relação à questão Todos contam mentirinhas. Na escola, meu amigo Carlos faz os
que se apresenta. Ou seja, tomando o modo de ser da criança em mesmos erros que eu. Se eu tenho um lápis, Carlos também quer
sua expressão singular, tem início a atuação clínica. Para tanto, o lápis. Ele acaba pegando meu lápis. Eu peguei o bonequinha de
é preciso que a visada sobre o fenômeno que se apresenta não se meu irmão, peguei escondido. Aí o que acontece, Laura me acu-
dê a partir de nenhum pressuposto em tese acerca do que pos- sou de ter pego um lápis dela. Eu não peguei, eu tinha igual. Não
sa ser uma "compulsão a afanar coisas". A atenção do psicólogo peguei o de Laura, mas ela disse para todo mundo que fui eu. Aí,
volta-se para a criança em seu modo próprio de comportar-se para ela não ficar triste comigo, eu dei um card game para ela.
e deixando que ela se mostre por si mesma. E isto consiste em Após um longo silêncio, Antônio propôs uma brincadeira
deixá-Ia livre para si mesma, para assim poder assumir a sua li- de erros e acertos e, assim, poder continuar as revelações. À es-
berdade e responsabilidade. querda do papel pediu que eu escrevesse "erros" e à direita" acer-
A criança, ao se apresentar ao analista, deve ser recebida a tos" e a brincadeira consistia em pensarmos nós dois o que se
partir daquilo que vai acontecer na relação nesse momento es- enquadraria em cada uma dessas colunas. Antônio prontamente
tabelecida. Para tanto, o analista deverá assumir uma atitude fe- preenche a primeira linha da coluna erros com o seguinte: "Pegar
nomenológíca, e, assim .suspender todo e qualquer pressuposto escondido" e na coluna acertos: "Pedir verdadeiro"
que anteriormente se fez presente, inclusive no relato dos pais.
"Pegar escondido" "Pedir verdadeiro"
Para exemplificar este modo de proceder clinicamente, apresen-
Bonequinho do irmão: peguei para Agenda: fiquei um pouquinho triste,
taremos um trecho desse atendimento:
brincar, depois ia devolver.' depois passou, mas ainda não ao passou."
Antônio compareceu à sessão, acompanhado do pai. Estava
muito bem arrumado. O pai me apresentou a ele. O menino sor- Bonequinho do primo: peguei para
brincar, depois devolvi e troquei por Troquei. "
riu e prontamente dirigiu-se à sala, mostrando certo entusiasmo.
objetos. II
A fim de saber se os pais haviam seguido sua orientação, o ana-
lista iniciou com a seguinte pergunta: Peguei as coisas do papai e ele Pedi ao papai. "

- Teus pais te disseram o porquê de você vir à psicóloga? descobriu"

Antônio consentiu com um gesto e disse: o erro que aconteceu: eu fui no porta- Coloquei de volta.

- Eu sei por que estou aqui, mas tenho medo, vergonha de óculos do meu irmão e peguei 1 carro e

dizer. Eu também rôo unha, às vezes, mas nem sei por quê. dois cards. 15

Após um silêncio prolongado, retoma: Peguei coisas do meu avô e do meu pai. 16

- Também gosto de contar algumas mentirinhas. Mas lá em


9 Verdades que assumi
casa todo mundo gosta de contar algumas mentirinhas. Às vezes, 10 Mentiras que preguei
meu pai pede para eu contar, às vezes minha mãe pede para eu 11 Mentiras que preguei
contar, só minha avó é que não pede. Meu pai pediu para eu men- 12 Mentiras que preguei
tir para o guarda e dizer que eu tinha 12 anos, para que ele não 13 Verdades que assumi
14 Mentiras que preguei
multasse meu pai porque eu estava no banco da frente. Minha mãe 15 Verdades que assumi
fez a mesma coisa para eu entrar no hospital para ver meu primo. 16 Verdades que assumi

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Antônio suspende a brincadeira e diz: emitir nenhum juizo de valor, nem buscar evidências de um
- Eu queria contar um problema: Pedro vai ter a festa de transtorno. A criança expressou-se livremente e logo apresentou
aniversário dele, só que vai ser na casa dele. Eu não tenho vontade a atmosfera da convivência familiar, na qual esconder coisas se
de ir, sabe? Eu não quero ir à festa, tem muita gente que rouba e fazia presente. Ao mesmo tempo, Antônio deixou claro o clima
também tem um pequeno probleminha, acusam a pessoa de uma de medo e tristeza em que ele se encontrava, ao mesmo tempo
coisa que ela não fez. Alex rouba as coisas dos outros. Eu desconfio em que reconhecia que o prazer em pegar coisas poderia acabar
também da Flávia, ela também pega as coisas dos outros. Mas não por deixá-lo em uma situação difícil entre os demais. Sabia do
é só isso não, tem outro problema, meu pai vai sair com João, e eu risco que corria, já que a tonalidade do êxtase frente ao prazer
também quero ficar com meu pai, sair com os dois. de pegar coisas, ao suspender as prescrições do mundo no que se
- Então você tem dois motivos para não querer ir à festa. refere ao certo e ao errado, facilitava que, no final, ele as pegasse.
- Tem outro, tenho medo de não controlar. Por isso, preferia abrir mão de ir à festa.
- Tem medo de não controlar o que? A sessão termina e, no encontro seguinte, Antônio chega
- A vontade." (silêncio) animado e começa a falar:
- %ntade de que, Antônio? - Sabe, pensei bem e não me importo de não ter amigos. Dei-
- De pegar as coisas dos outros. Eu não quero pegar, mas eu xar de ter amigos não faz mal para mim.
olho a coisa e me dá muita vontade, vontade mesmo. Também te- O analista tenta buscar o que estava acontecendo para que
nho medo que Gabriel coloque coisas na minha bolsa e depois me ocorresse uma mudança de atmosfera. Aquilo, que anteriormen-
culpe. Elejá fez isso,guardou no meu estojo o lápis de Bruna. Bru- te trouxera um astral de tristeza, nesse momento não importava
na sentiu afalta do lápis, aí eu coloquei o lápis na mesa de Bruna, mais:
só que ela me viu colocando o lápis e eu me defendi, disse que tinha - E na escola, como vai serficar sozinho?
sido o Gabriel que tinha colocado no meu estojo, só que ninguém Antônio retoma o humor anteriormente apresentado e diz:
acreditou, ficou todo mundo olhando para mim. - Ficar sozinho e não ter ninguém para brincar,ficar sozinho
Antônio fica calado, parecendo triste, abaixa a cabeça, põe a no recreio. Vou ficar triste, sem ninguém brincando comigo, é, não
mão no rosto, parecia estar chorando. Repentinamente, levantou vou gostar.
a cabeça e fitou-me por um longo tempo. Na tentativa de mobili- O analista questiona:
zá-Io e tentar compreender o que estava acontecendo, falei: - E você quer isto para você?"
- Parece que essa situação te deixa muito triste. Antônio prontamente responde:
- E vou ficar muito sozinho. - Não. Quero beber água. (Bebe água, vai ao banheiro, faz
- E como éficar sozinho para você? hora para não retomar a sala). Não vou à festa. O quinto erro, já
Antônio: (permanece em silêncio) consertei, dei minha nota de cinco. Já consertei ontem. Já te dei
- Não ter ninguém por perto, nunca vivi isto, tenho medo, uma pista do que [oi o erro. Vê se você descobre.
ficar sozinho no recreio. O analista arrisca:
Nesse primeiro encontro com a criança, é importante ob- - Você pegou uma nota de cinco.
servar que a psicóloga deixou que a criança se expressasse sem Antônio retruca:

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- Não. Eu troquei a nota de dez e uma moeda de um real. esqueceu a Emilia, tinha ido lá para buscar a Emilia e as pílulas
Troquei com a minha mãe e eu deixei. Eram seis reais de duas falantes com Dr. Caramujo. Quando colocou uma pílula na língua
pessoas. Diminui uma conta, seis e alguma coisa. de Emília, elafalou: "Que pílula horrível".
O analista então pergunta: Após acabar o desenho e a história, Antônio solicita outra
- Então você devolveu o dinheiro que tinha pego. E como você atividade:
se sentiu? - Famos fazer a brincadeira dos erros e dos acertos?
Antônio responde:
- Aliviado, consertei meu erro. Erros Antônio Acertos Antônio

Antônio pediu para desenhar e disse: Maluca Inteligente x


- Vou desenhar o 'Viscondede Sabugoza.
Emflia Cria confusão x fala a verdade às vezes
A primeira fala da Emília:
- Era uma vez, um lugarzinho no meio do mato. Era um mentiras
x
faladeira x
Não tem erros Inteligente x
sítio. Nesse lugar, moravam muitas pessoas como o Visconde de
Sabugoza. Ele [oi feito por Pedrinha com uma espiga de milho. O Sabugoza Sábio x
passatempo mais divertido dele é ler livros e sempre pensa uma
Honesto às vezes
coisa para resolver todos os problemas. Quando a Emília está com
uma idéia, elejá está com outra. Ele também tem muitos amigos: fala verdades às vezes
Narizinho, Pedrinho, Emília e Dona Benta. Emília sempre entra
numa confusão e numa aventura; aventura perigosa. Tivemos a oportunidade de observar a tensão em que
Um dia, Narizinho estava sentada na beira do rio com sua Antônio se encontrava. Ele oscilava entre a vontade de contar o
amiga Emília que não sabia falar. Um dia apareceu o Príncipe do que ele mesmo denominava de "erros e acertos" e a vontade de
rio e foram para um castelo. Tinha um sapo tomando conta do não trazer essas mesmas questões. Essa tensão, que se apresentava
castelo, estava dormindo. O príncipe obrigou o sapo a comer cin- em uma oscilação, continua a acontecer nos encontros seguintes.
qüenta pedrinhas. O analista apenas o acompanhava, sem forçá-lo a seguir nenhuma
Eles entraram no castelo,foram jantar e aí chegou uma bru- direção, acompanhava-o naquilo que ele queria expressar.
xa eperguntou: você virou o pequeno polegar e todos responderam: No próximo encontro, logo que Antônio chega diz:
( - "
nao. - Saí com meu pai. Só um problema nesta semana.
Aí Narizinho joi falar com Pedrinho e o Barnabé e o Fis- Fica em silêncio. Respira fundo, passa a mão no rosto, abai-
conde para ir para junto com ela. Pedrinho foi conhecer o reino. xa os olhos, mexe-se na cadeira, ri, fica em silêncio, ri novamente.
O polvo puxou o rabico.Pegaram o rabicó eforam para o castelo. O analista, então, convida Antônio a sentar-se no sofá. A criança
No dia seguinte, o príncipe mandou uma carta dizendo: "Na- vai para o sofá, deita-se e permanece em silêncio. Retoma a pa-
rizinho, você quer casar comigo?" lavra e diz:
Narizinho respondeu; "Quero". - Não aconteceu nada nesta semana.
Tia Anastácia não aceitou. Narizinho não quis casar, ela - Então você não tem nada para me contar.

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I'

o profissional interrompe e ambos permanecem assim até o final pai vai ser meu terapeuta, vai me pegar toda quarta-feira, vai con-
da sessão.
versar tudo, vai começar nas férias.
No encontro seguinte, Antônio inicia a sessão: No final da sessão, Antônio pediu ao analista para guardar
- Eu estou com um problemão, mas não é nenhum erro não. o envelope, mas disse que ele estava lacrado e proibia que o les-
É irpara a casa de meu pai. Perco de brincar com Lauro e Cláudio, se. Ele queria apenas que fosse guardado. Quando o psicólogo
o chatinho, fica afastado. Pedi a Lauro para ir também. Meu pai entregou Antônio a seu pai, este comunicou-lhe que estavam en-
disse que não pode, porque meu irmão também vai. Eu também trando de férias e que iriam viajar. Depois, quando retomassem,
prefiro não ir. Meu pai ficou o tempo todo tentando me convencer. marcariam as sessões. O analista interpretou o ocorrido como
Eu não estou convencido. (silêncio). uma desistência do processo psicoterapêutico: o compromisso
O analista, na tentativa de continuar falando do assunto, com o silêncio, que me parecia algo da atmosfera familiar, o fato
sugeriu que dramatizassem a conversa com seu pai. Ele pronta- de o pai não ter se comprometido com o horário no retorno das
mente aceita e pede que inclua a mãe também: férias, o fato de o pai tomar-se o terapeuta às quartas-feiras, a
- Eu sou meu pai e você é eu . Só que eu não sei o que vou tristeza de Antônio etc. No entanto, não foi o que aconteceu. Na
falar, sou muito indeciso.
primeira semana de agosto, ao retornarem das férias, marcaram
- "Vocêé indeciso ou está com medo defalar? a sessão para a semana seguinte.
- Tenho medo, minha mãe vai ficar triste se eu falar. A idéia Antônio chega com um cartão meio que escondido. E pede
foi do meu pai. Lembra do envelope do segredo que o analista converse com seu pai enquanto ele iria fazer uma
- Lembro.
coisa. O pai aproveita para me contar que percebe Antônio bem
- Então vamos fazer. O Título: "Antônio escreve o que aconte- melhor, que ele já não tira mais as coisas dos outros. Ao retomar,
ceu.': (fecha o envelope e guarda-o com ele, ficando em silêncio). o menino pede que o psicólogo vá buscar as correspondências.
- Eu fiz coisas horríveis, (soletra) m-e-n-t-i-r-a. Às vezes te- O clínico pega o cartão, retoma, entra com ele na sala e Antônio
nho vontade de chorar,por outra coisa, não é pela mentira não, só pede para irem para a sala de lu do e para guardar o envelope
que eu não posso falar. Como uma criança entra em tratamento? ' lacrado. Desenha um coração, ele transforma-o em borboleta,
- Os pais telefonam para o psicólogo e pedem que ajudem a depois abandona a tarefa e, por fim, procura material na gave-
família.
ta. Antônio brinca sozinho com os fantoches, pega as bonecas
- E o que eu conto aqui, eles sabem? anatômicas, explora-as, arruma-as devidamente em seus lugares.
- O que acontece aqui é nosso segredo. Ele desenha, mas não quer falar sobre o desenho. Ele pega a tinta
- É o nosso segredo?
e começa a fazer borrões de tinta. Antônio não quer falar. Ele
-É.
demonstra que quer estar ali, realizando diferentes atividades.
- Problemas, vou escrever, me dá um papel: Brigas - irmão. Todavia, quer manter-se no seu silêncio, não pede que o clínico
Repartir - um amigo da onça. Timidez e nervosismo - Gabriel, participe e esse o acompanha também em silêncio. Ao terminar
amigo da escola. Preocupação excessiva - só adulto: pai, mãe etc. a sessão, Antônio entrega seus desenhos e pede que o analista
Quando estou com problemas, prefiro ficar sozinho, prefiro não os guarde. Esse prontamente diz que os guardará junto aos seus
falar do problema. Preciso de ajuda. De uma ajuda especial. Meu outros desenhos e envelopes lacrados.

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Em conclusão, parecia que o pedido do menino para uma colocou como aquele que desde início já sabia qual era o pro-
conversa em família anunciava o rompimento, por sua parte, da blema e o que fazer para solucioná-lo. Caso o clínico partisse de
atmosfera do escondido, do mistério e do segredo. O segredo pa- teorias acerca do que era o problema e de como resolvê-lo, criaria
recia constituir a tonalidade mediana que sustentava toda a situ- obstáculos à apresentação do fenômeno. Na situação de Antônio,
ação familiar e que Antônio agora resolvera, mesmo com toda um tal obstáculo seria propor, por exemplo, o encontro com a
a tensão do momento da quebra dessa atmosfera, romper. Essa família para forçar o diálogo e desvelar seus segredos.
passagem remete-nos à obra-prima de Henry lames (1898/2006), Poderíamos também colocar a questão como sendo do âm-
"A volta do parafuso': Nesse romance, [ames relata uma situação bito de uma subjetividade encapsulada, de uma falha psíquica, e
na qual reinava um pacto de silêncio, em que as crianças, uma de destinando-lhe uma identidade de cleptomaníaco, insistir para
oito e outra de dez anos, nessa atmosfera, apresentavam modos de que ele falasse no tema e buscar rapidamente o que determina-
agir totalmente estranhos e bizarros, não esperados para crianças va esse comportamento. Mas ao ver que o escondido tratava-se
nessa faixa etária. Nelas acontecia o que Kierkegaard denomina da disposição afetiva da família, na qual Antônio também estava
de mau hermetismo (2010), posição psicológica de não-liberdade envolvido, o analista preferiu aguardar. Assim, Antônio entregue
em que, em silêncio, resistimos à condição de nossa liberdade. a si mesmo pode reconhecer outras articulações possíveis e só a
E, ainda para Kierkegaard, nisso encontramos a doença que nos ele cabia a decisão do que iria ou não fazer.
acomete quando nos desoneramos de nossa própria responsabili- Partir do diagnóstico que lhe havia sido conferido seria
dade (2010). O próprio título do romance aponta para a metáfora dar-lhe uma identidade que, além de retirar dele o seu caráter
da tensão que, além de apertar, esgarça a existência, no caso das de poder ser, também o desoneraria de sua escolha. Assim, todo
duas crianças. A governanta responsável pelo cuidado das mes- o seu modo de ser seria justificado por tal identidade, não ca-
mas, percebendo a situação, resolve agir de forma sutil e paciente, bendo a ele mesmo a sua tutela. Retirar o caráter de poder-ser
a fim de que o mistério e o segredo se dissipassem. Ela parecia de sua existência, por um procedimento identitário, constitui-se
acreditar que apenas desse modo poderia ajudar a aliviar a tensão, como um caminho de acesso fácil, porém pode acabar por sedi-
mesmo que em um primeiro momento mobilizasse mais tensão, mentar um determinado modo de ser. Esse processo é discuti-
daí o título com que também se conhece essa obra "A outra vol- do com muita pertinência em Sartre (2005), ao referir-se a todo
ta do parafuso". Assim, também parecia ser essa a atmosfera em percurso de Lucien Fleurier, até tornar-se um chefe, tal como já
que se encontrava nosso analisando. Agora, Antônio queria criar havia sido decidido pelos seus pais, muito antes dele nascer. Do
uma situação em que todos falassem e, assim, estava disposto a mesmo modo que Lucien assumiu a identidade que lhe haviam
romper com a atmosfera de segredo que reinava no âmbito fami- conferido, na clínica devemos cuidar para que a identidade atri-
liar. Antônio, ao propor o rompimento desse clima familiar, em buída à criança não se engesse. Não podemos dizer que não se
um primeiro momento, cria uma tensão ainda maior. O pedido deve fazer, devemos nós mesmos como clínicos ir pouco a pouco
do menino para que abríssemos um espaço para a comunicação desfazendo, ou pelo menos, não fortalecendo esses aglomerados,
familiar parecia fazer sentido e ter lugar. No entanto, não foi uma essas identidades.
proposta antecipada pelo analista. Este, com paciência e sutileza, A atenção fenomenológica consistiu em abandonar toda e
assumindo uma atitude fenomenológica, não interveio, nem se qualquer identidade estabelecida para a criança, seja com rela-

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ção a um diagnóstico, expectativa familiar ou social, entre outros surgir uma psicologia fenomenológica, a pretensão também é de
modos. Em uma postura fenomenológica, coube, então, ao psi- pensar o psíquico como algo imanente, co-originário ao mundo
cólogo deixar a criança em liberdade e entregá-Ia sua própria tu- e, portanto, não passível de ser determinado, nem localizado em
tela, ou seja, à sua própria responsabilidade. Tratava-se, sem dú- uma interioridade.
vida, de uma tarefa delicada. No entanto, ao deixá-Ia caminhar Pensar a psicologia a partir das filosofias da existência con-
por si mesma, sem tentar desonerá-la dessa tarefa, vem à tona de siste em assumir o caráter de indeterminação que não pressupõe
diferentes modos o fato de que, nesse caminho no qual a criança mais uma essência, seja ela qual for, que precede a existência.
perde a tutela do adulto, ela pode ganhar a si mesma. Deixá-ia Consiste ainda em aceitar a árdua tarefa de não ter como prever,
sozinha consigo mesma é uma arte que consiste em estar sempre nem garantir nenhum resultado, dado o caráter de abertura e
presente, sem mostrar a criança que se está ali. E, assim, permitir consequente liberdade em que a existência sempre se encontra.
que a criança por si própria possa aproximar-se, entregue a si Articular uma proposta de clínica infantil com base na filoso-
mesma o mais demoradamente possível, de uma experiência que fia existencial torna-se possível ao tomar a criança na mesma pers-
faça sentido no âmbito de sua situação. pectiva em que se toma o adulto, logo em liberdade e responsável
Com o desenvolvimento da temática acerca da clínica psi- por si. Trata-se de pensar a existência em sua imanência, qualquer
cológica em uma perspectiva existencial, pudemos afiançar que que seja a etapa de vida em que nos encontramos. Logo, importa é
a filosofia da existência traz aspectos formais, que criam um es- que, aquele que tenta evitar a sua condição de liberdade, abertura e
paço de articulação de uma práxis clínica por diferentes motivos. indeterminação possa assumir-se como um ser de possibilidades,
O primeiro deles é que as filosofias da existência retomam o que logo em liberdade para dizer sim e não às determinações inseri-
as filosofias modernas haviam abandonado, ou seja, a existên- das no horizonte histórico em que ele se encontra.
cia mesma tal como acontece em seu campo de imanência. Esse
projeto de voltar-se para a imanência é ineditamente apresenta-
3.2. A tonalidade da angústia e a antecipação da finitude
do por HusserL Esse filósofo desloca-se da noção de consciência
como algo encapsulado, que se encontra localizado em uma in- É muito comum, nas elaborações da perspectiva heideg-
terioridade e com sentidos e determinações dados em si mes- geriana em Psicologia e psicoterapia, considerações acerca do
mos, tomando, então, a consciência como algo que acontece em ser-para-a-morte confundirem-se com a idéia de que a cons-
um espaço relacional, logo imanente. Ele refere-se à intenciona- cientização dessa condição existencial consistiria na libertação
lidade, que passará a ser o elemento fundamental, mesmo que ou superação de uma problemática existencial. No entanto, esta
com diferentes acepções nas filosofias da existência. Heidegger não é nem de longe a discussão travada por Heidegger em Ser
e Sartre dão continuidade ao projeto de retomada da existência, e tempo. O filósofo trata antes do horizonte de finitude em que
cada um a seu modo, mas preocupados com a faticidade onde o todas as possibilidades sempre se encontram, e no qual o ser-aí
existir acontece. Esse mesmo movimento é acompanhado pela se abre como cuidado, em seu ter de ser quem ele sempre é, para
psicologia que, primeiramente, seguindo o projeto moderno, o caráter de indeterminação de sua existência. Portanto cabe ao
toma o psíquico em todas as suas denominações como algo da ser-aí e apenas a ele a sua tutela: é isto que a decisão antecipadora
ordem de uma interioridade que se relaciona com o exterior. Ao da morte revela, determinando o seu modo próprio de ser.

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A questão trazida pelo analisando será discutida aqui, con- pelas teorias psicológicas (já que a irmã tem uma formação em
siderando uma tonalidade afetiva fundamental, a angústia, em psicologia), seja pelo senso comum. Um ato fenomenológico
seu poder de revelar a finitude essencial do ser-aí. Esse contexto consiste em tomar frente ao apresentado uma atitude antinatu-
aparece, então, como possibilidade ôntica, pano de fundo para ral, ou seja, suspender qualquer interpretação acerca do que está
as considerações heideggerianas do ser-para-a-morte. É o que acontecendo com Paulo, para assim acompanhar o fenômeno no
procuraremos mostrar a seguir. De uma situação em que a an- seu modo de revelar-se.
gústia coloca o ser-aí em contato com o seu ser mais próprio, O analista oferece a sua disponibilidade de horário e a irmã
abrindo a possibilidade de singularização, que se pronunciava marca a consulta logo para a segunda-feira. Paulo telefona no
como angústia frente à antecipação do seu ser-para-o-fim (ser- domingo, pedindo a troca de horário. Não poderia comparecer
para-a-morte). Após este esclarecimento, daremos destaque a al- na segunda-feira por motivos de trabalho. Marcamos na quar-
gumas concepções de importância fundamental para se elaborar ta-feira e Paulo avisou que chegaria em cima da hora. Chegou
esta perspectiva clínica: a atitude fenomenológica e a questão do à sessão com dez minutos de atraso. Iniciou, dizendo de forma
círculo hermenêutico na clínica psicológica. lenta e com a fala pausada, que estava deprimido e que o final de
semana fora péssimo. Estava sem vontade de fazer nada e, por
várias vezes, havia questionado se valia a pena viver. Às vezes
3.2.1. A atitude fenomenológica na clínica
chegava a pensar pelo que, afinal, valia a pena a vida. Não tinha
Paulo" procura um acompanhamento psicológico por su- ânimo para fazer nada. Estava entediado, cansado de si mesmo.
gestão de sua irmã. Esta, formada em Psicologia, toma a iniciativa Só comparecia ao trabalho pelo compromisso assumido. Refe-
de procurar um psicoterapeuta, com o consentimento de Paulo. riu-se à melancolia, depressão, desânimo.
Ao telefone, em um sábado, ela diz que está muito preocupada Paulo queria encontrar uma denominação para seu estado
com o irmão e que este se encontrava muito deprimido. A famí- afetivo. É o que comumente acontece com aqueles que procuram
lia temia pelo que pudesse acontecer, por exemplo, o suicídio. a clínica psicológica. A tendência a apresentar um diagnóstico já
Uma psicoterapia com base fenomenológica consiste antes estabelecido, que muitas vezes foi dado pelo psiquiatra, outras
de tudo em considerar a atitude ingênua daquele que busca psi- vezes pelas interpretações de psicólogos ou ainda por interpreta-
coterapia, já que este tende a trazer uma configuração da ques- ções que o próprio faz de si mesmo. Esses diagnósticos que, por
tão como previamente determinada. A atitude da irmã de Paulo, um lado, têm um potencial tranquilizador, por outro obscurecem
bem como o diagnóstico de depressão e a preocupação com o o fenômeno, na medida em que enquadram a questão existencial
suicídio falam da atitude natural da irmã frente ao fenômeno, desde o início em uma categoria. Ao tomar uma postura natural,
atitude essa na qual o fenômeno é tomado como previamente tanto o analista quanto o analisando perdem o que realmente
dado e com determinações, aprioristicamente, fornecidas seja está acontecendo. Na atitude fenomenológica, antinatural, o ana-
lista não diagnostica nem interfere; mas posiciona de modo que
aquele que está dizendo alguma coisa ganhe voz em si mesmo.
17 Esta situação clínica foi anteriormente apresentada em Feijoo,
No interior da interpretação clínica, o analista coloca em sus-
A.M. (2010) Tédio e finitude: da filosofia à psicologia. Belo Horizonte:
Fundação Guimarães Rosa. pensão seus pressupostos e, assim, deixa que as interpretações de

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sentido surjam por aquele que se reconhece estranho a si mesmo. total estado de indiferença. Imersa nesse tédio, a rotina passa a
O psicoterapeuta, apenas, articula quais são os pressupostos que ser experimentada como uma manifestação da ausência de tem-
irá combater, bem como o modo cuidadoso com que vai fazer o poralização. Fazia-se necessário deixar que Paulo continuasse a
combate. O analista, atendo-se a todo o detalhamento de como falar, já que parecia não ter outra saída a não ser a de ouvir. Para
se dá o acontecimento em questão, dará prosseguimento ao des- tanto o analista posicionou-se, sutilmente, um pouco à frente,
velamento da estrutura de sentido em jogo nesta situação. para que Paulo tivesse voz; e ele, então, continuou:
Nesse momento, o analista, em um ato fenomenológico, - Há tempo venho me sentindo estranho, questionando o sen-
não se precipita em uma atitude ingênua. E, assim, solicita e in- tido da vida, do trabalho, da família. Por vezes, tenho vontade de
cita a descrição do que vem acontecendo com o analisando. Age abandonar tudo, mas logo depois reconheço minhas obrigações e
desta forma para que a questão apareça, no final das contas, para retorno. Algumas vezes fico melhor, outras pior. E muitas vezes,
o próprio que a coloca. Com isto, nesta situação clínica, o analis- penso que é apenas uma melancolia, desanimo, cansaço.
ta volta-se para o analisando, buscando no seu acontecimento o O analista insistiu inúmeras vezes, em diferentes momen-
que este reconhece como péssimo, pergunta: tos, para que Paulo respondesse a questão: "Você tem idéia de
- Péssimo como? desde quando isto vem acontecendo?".
Responde Paulo: Pode parecer à primeira vista que o analista estivesse a de-
- Não sei, uma sensação de sufoco aqui no peito. Um incô- tectar o acontecimento que provocou o estado de ânimo de Pau-
modo não sei de que. lo. A busca, no entanto, referia-se àquilo que desencadeou a at-
mosfera em que Paulo se encontrava. Tratava-se de fazer emergir
o horizonte mais originário da transformação. Para Heidegger, é
3.2.2 O circulo hermenêutico e a atmosfera afetiva
por meio das tonalidades afetivas fundamentais que ocorrem as
Sem dúvida, ser gente significa, vez por outra, estar triste, crises do projeto impessoal, das quais nasce a singularização.
estar amuado. A Organização Mundial de Saúde, ao estabelecer Paulo silenciava, dizia que não sabia e que era um mistério,
categorias da saúde pautadas por um estado constante de felici- até que um dia, pronunciou-se:
dade e harmonia, modifica totalmente o que significa ser gente. - Era mais fácil quando eu acreditava que se tratava de um
No caso, Paulo parecia que estava se referindo ao seu "ser gente": espírito possessor. Ia ao centro, fazia as preces e voltava para casa
tensão basicamente humana. No entanto, era preciso cuidado, o muito melhor.
analista, na tentativa de não estabelecer nenhuma categorializa- - Agora não acredita mais?
ção, pode acabar por entender que a questão apresentada é algo - Eu sempre [u! muito religioso, kardecista. A minha família
passageiro, tensão básica da vida e, como tal, basta dar tempo ao sempre foi bem afinada com os ensinamentos de Kardec. Eu fazia
tempo, que a situação vai passar. A inquietação silenciosa com parte do grupo jovem, passava os ensinamentos para os mais jo-
aparência de que nada está acontecendo pode ser um alerta do vens. Acreditava totalmente nos princípios reencarnacionistas. A
próprio tédio profundo ou mesmo da própria angústia. No caso morte nunca foi um problema, como é para a maioria das pessoas.
do tédio, ele aponta para a ingerência insuportável do ser obri- Ao entrar para a faculdade, alguns professores ateus me confron-
gado a viver todo dia o mesmo, o igual, levando o homem ao taram com as minhas crenças. No início me mantive firme, depois

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conheci a minha atual esposa, que também era atéia, e também se clui o filósofo: "O homem absurdo opta pelo desespero frente
posicionava contra aquilo que eu acreditava. Relutei bravamente, à questão que se impõe: O que seria, então, a vida além do que
parecia que eu não poderia abandonar algo que dava total sentido viver na ilusão e se resignar à mentira?" (CAMUS, 2008, p.54).
à minha vida e à vida, em geral. Sentia-me totalmente apoiado,
amparado pelos espíritos. Tudo dependia da minha dedicação e
3.2.3 O horizonte da finitude da existência
da minha fé. AJas aos poucos não conseguia mais sustentar as mi-
nhas crenças. Até que meu irmão mais velho, sem nenhum motivo A relação da angústia na confrontação com o seu poder- ser,
aparente, suicidou-se. Isto me fez muito mal. Um cristão não pode juntamente com o modo como o tempo consome a existência no
de maneira alguma cometer este ato, pensava. Às vezes sentia mui- seu incessante fluir, trazendo ao homem o aviso de sua finitude,
ta raiva, revoltava-me com o gesto do meu irmão. Outras vezes, é encontrada em Casanova (2006, p. 29), quando se refere ao ab-
pensava: ele estava deprimido e não contou para ninguém. Mas, surdo, do seguinte modo: "O absurdo é, portanto a coroação da
às vezes, era assaltado pela idéia de que ele, tal como eu, havia se vigência sem travas do devir em sua articulação com a visualiza-
dado conta da falta de sentido da vida e concluíra que não valia a ção por parte dos homens de sua finitude essencial':
pena viver, já que não havia sentido. Ao mesmo tempo em que Paulo mostrava um esforço para
Paulo vivia a ilusão de invulnerabilidade e quiçá de "imor- desfazer suas crenças, o analista tentava facilitar o desfazer de
talidade" reforçada pela sua crença religiosa. Parece que o sui- suas crenças, mobilizando-o a que falasse mais do acontecimen-
cídio do irmão, parafraseando Kierkegaard (1966), desfizera os to no qual as suas crenças estavam em jogo:
laços da ilusão. Camus (2008) faz consideráveis reflexões acerca - Você me disse que este pesar vem persistindo mais intensa-
da temática apresentada por Paulo. Logo no primeiro capítulo de mente desde a semana passada. Aconteceu algo que você se lembre?
O mito de Sísifo, ele aborda a questão acerca do quanto o vulgo - Não. Minha vida está toda normal. Acabei o curso de medi-
e até mesmo algumas teorias científicas posicionam o suicídio. cina. Estou trabalhando em dois hospitais. Tenho uma boa orien-
Postulam como sendo a solução encontrada pelo homem frente tação. Faço residência. Estou indo bem. No início, não. Estava
ao absurdo da existência, ou seja, a falta de sentido. Este filóso- meio incomodado. As exigências eram muitas. Era muito cobra-
fo conclui, ao contrário, que é o sentimento trágico de absurdo, do. Por outro lado, não aceitava errar. No entanto, meu superior
a certeza de que a existência carece de sentido, que infunde no apontava os erros. Fui ficando muito ansioso, meio que pisando
homem o desejo inesperado de viver. O filósofo argelino recorre em ovos. Quando chamava a atenção, aquilo meio que me hu-
ao mito de Sísifo, a fim de provocar, em seu leitor, por meio des- milhava, aquilo me ridicularizava. Eu não me sentia bem com
ta metáfora, o despertar do sentimento do absurdo, para assim a situação ..Mesmo quando acontecia com os outros. Sabia que a
chegar à consciência daquilo que constitui a existência propria- qualquer momento a situação de humilhação poderia acontecer
mente dita. Isto se deve ao fato de que, para Camus, a existência, comigo. Quase larguei a residência, de tanto que temia a situa-
seja da humanidade, seja do indivíduo, se dá tal como o destino ção. Antes de ir para o hospital, me sentia mal, até fisicamente.
de Sísifo, condenado pelos deuses a subir com uma grande pe- Vi que estava somatizando e pensei que não tinha que passar
dra ladeira acima, que tão logo alcance o cume, tornará a cair. por essa situação. Fiquei assim por bastante tempo, durante uns
A grandeza deste homem é que ele tem ciência deste fato. Con- seis meses. Pensei muito no que deveria fazer e resolvi falar com

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o meu chefe. Chamei-o para uma conversa e expliquei que não fora e que, então, reagia com sintomas corporais. Ocorre que a
estava confortável com o modo com que as coisas estavam sendo origem da tensão não provém necessariamente nem de fora, nem
conduzidas e que estava pensando até em fazer outra especiali- de dentro. Trata-se do sentido mesmo da situação em questão,
zação. Enfim, disse tudo que não estava gostando. Ele então me nas palavras de Heidegger, do "em virtude de" que em Paulo es-
disse que eu estava me precipitando. Perguntou-me se eu já havia morecia. Este mostrava certa distância entre o seu poder-ser e
passado por qualquer uma daquelas situações. Respondi que não. as circunstâncias factuais. Logo, não implicava necessariamente
E ele então me disse que não tinha nenhuma queixa do meu traba- uma somatização, mesmo porque a rachadura no modo de ab-
lho, que eu tinha responsabilidade e encaminhava toda a questão sorver a realidade não é doença, é sinal de "saúde". O analista,
do paciente com muita atenção e compromisso. E, enfim, que eu então, se pronuncia, sem sedimentar nenhum diagnóstico, mas,
fazia um bom trabalho. Eu pude ver que aquela forma dele falar ao contrário, tentando destruí-los. Era preciso buscar e desfa-
era uma característica dele, era um problema dele. Ficou mais fácil zer o emaranhado no qual imaginação, recordação e presença
para mim continuar trabalhando com ele. Pude ver que o problema estavam se aglomerando para que Paulo tivesse a oportunidade
não eram os erros graves, era o modo irritadiço com que elefalava, de se dar conta do que estava acontecendo. Fazia-se necessário
que me levava a pensar que a gravidade dos equívocos pareciam continuar procurando a atmosfera em que essa desarticulação se
maiores do que eram na verdade. Hoje, fico muito mais tranqüilo, instalou. O analista insiste na descrição do acontecimento. Para
gosto do que faço, adoro UTI. Não é o trabalho que me incomo- tanto, diz:
da, superei o problema. Não me arrependo do que escolhi. Estou - Você disse que esse mal estar começou na semana passada.
no lugar certo. A princípio fiquei até na dúvida, pensei: vou para Como [o! o seu trabalho na semana passada?
a psiquiatria. Agora vejo que não. Gosto mesmo é das situações O analista escolheu procurar a situação mobilizadora no
de emergência, de tomar providências rápidas. Esta é a atividade contexto do trabalho de Paulo. É ingênuo pensar que a lida do
que eu quero para minha vida, meu futuro. Mas desde a semana psicoterapeuta é pura, pois as suas concepções e sua história se
passada estou desanimado, frio e sem vontade de voltar ao traba- fazem presentes. Um analista não deve desprezar os horizontes
lho. Pensei que, com o final de semana prolongado, iria melhorar. hermenêuticos que estarão sempre presentes na situação clínica.
Pensei que fosse cansaço, estafa, mais nada. Descansava e pronto, E o que de fato se interpreta são os encontros de horizontes, que
estaria novo, uma vez mais. Toda vez que pensava que tinha que consistem precisamente no que se fala e se escuta, a partir de
voltar na segunda-feira para o hospital, chegava a me dar uma uma relação intencionaL Este choque de horizontes é o horizon-
coisa aqui por dentro. Sentia-me mal, depressivo, sem vontade de te mesmo de aparição do que acontece no encontro clínico, ou
nada, vontade só de desistir. Fiquei então pensando: será que estou seja, da aparição da coisa. Quando o fundir dos horizontes se dá
deprimido? Mas resolvi procurar primeiro um psicólogo, antes de de maneira integral, essa fusão abre o espaço para que o outro
procurar um psiquiatra. Resolvi não fazer uso de antidepressivos. apareça para ele mesmo. O que o analisando diz vai ser escutado,
Tenho dúvida se é depressão ou se é outra coisa. Sei que, na verda- a partir do horizonte compreensivo do analista, porém o anali-
de, sinto algo que não consigo identificar. sando é a medida.
Paulo trazia assim seu diagnóstico: "somatizaçâo', "depres- Paulo responde:
são': parecendo pressupor que estava sendo afetado por algo de - Foi normal, o de sempre. Não me lembro de nada que possa

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ter me trazido mal estar. Como tefalei, hoje não tenho mais proble- Paulo:
mas com o meu chefe. Não aconteceu nada de errado. - Na UTI, normalmente, as pessoas estão mal. Algumas con-
Esta fala de Paulo mostra um esvaziamento da ação. Von- seguem sair, outras morrem. A gente faz tudo para mantê-Ias vivas.
tade é algo que se dá tardiamente. Quando você quer alguma O que é mais difícil é a relação com osfamiliares. Mas faz parte.
coisa, é porque esta coisa faz sentido para você, é "em virtude O analista reconhece em Paulo o anúncio ainda difuso da
de" que a vontade aparece. Era preciso buscar o "em virtude de" angústia na qual se instaura a possibilidade de desvelar o que se
que Paulo não tinha mais vontade de retomar ao trabalho. Falar encobre na cotidianidade trivial, e, portanto, descobrir o mais
em vontade pode reportar-nos à teoria. A empiria nos mostra a próprio do ser-aí, que em última estância é o seu poder-ser, que
tensão entre o poder-ser e o mundo fático. Há um problema de se descortina como o ser-para-a-morte. Então, retoma, tentando
absorção, o "em virtude de" mantém a nossa vida estruturada. alcançar o instante em que o rompimento de sentido aconteceu:
Paulo havia perdido esta absorção, daí perdera a tranqüilidade. - 'Vocêse lembra em que dia da semana passada começou
Havia aqui um anúncio da dificuldade da absorção. O analista esse mal estar?
insiste no acontecimento: Paulo pensa e responde:
- Conta para mim o que aconteceu de normal. - Na quarta-jeira. [oi na quarta-feira. Na quarta, quando
Ao dizer que estava deprimido, Paulo dizia que não con- cheguei em casa, já não estava bem.
seguia mais acompanhar o ritmo, não conseguia mais trabalhar. O analista, então, continua a busca pelo acontecimento:
Pode-se até, neste momento, pensar: "Paulo encontra-se entedia- - E como [oi a quarta-feira?
do?" Mas não, Paulo mantém-se no ritmo do tempo, mantém Paulo, depois de um longo tempo pensando, diz:
a rotina, logo se projeta no tempo, mantém o compromisso. O - Perdemos um paciente. Um homem forte, com aparência
que faz com que se mantenha esse ritmo é a absorção no mun- de saudável. Chegou mal, não conseguia respirar. Queria respirar
do fático. A experiência de dissonância, ao mesmo tempo em e não conseguia. Estava morrendo. A ordem fOi para que deixás-
que é desagradável, abre a possibilidade de rearticular-se com o semos. Não adiantaria, o pulmão já estava tomado. Ficamos eu e
cotidiano sem se distanciar da possibilidade que é a sua. A ques- o outro médico. Ele iria morrer, não havia mais nada a ser feito.
tão é como se rearticular com o mundo fático, sem retomar à (O silêncio se prolongou).
tranqüilidade e segurança do impessoal, sem perder de vista a - E o que vocêfez?
sua singularidade; já que se comportar consiste em adequar-se - Coloquei-o no oxigênio. Não consegui deixar. Estava insu-
às condições marcadas pelo mundo. O mundo tende a apagar portável para mim vê-Ia morrer.
o caráter de poder-ser. Daí duas possibilidades derivadas do ter Novamente o silêncio se prolongou.
de ser que colocam em jogo o seu ser: a propriedade, que abre - E o que aconteceu?
para as possibilidades; e a impropriedade, que determina de an- - Ele morreu. O que impressionou é que ele era um homem
temão o que o ser-aí é e deve ser. Paulo parecia incomodado pela forte. Tinha 59 anos. Não me identifiquei com ele. Muito distante
primeira vez por confrontar-se com a finitude, abrindo-se como de minha idade. Não me identifiquei, mas me impressionou.
cuidado que sempre é para o caráter de indeterminação de sua Novamente, Paulo buscava ou descartava a situação, obscu-
existência. Portanto, cabia a ele determiná-Ia. recendo-a com a teoria, aqui da identificação. O analista, então,

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na tentativa de desconstruir a postura teórica, retoma ao fático. O analista pretendia dar voz ao seu clamor e, agora desper-
Não ficou na postura natural, na qual a teoria estabelece que a tado pelo clamor para as possibilidades que se lhe apontam, o
questão esteja na identificação, mesmo porque na relação dos que faria frente à finitude que se lhe antecipara, tanto a do outro
homens todos se afinam e estão em um mundo compartilhado. como a sua. Surge uma sensação de impotência com relação ao
Por isso, ater-se à identificação implicaria deixar de buscar o "em acontecimento: "não tinha nada a fazer". Diante da situação, re-
virtude de que havia se mobilizado": tomariam as sedimentações do impessoal, que tranqüilizavam;
- Te impressionou ver um homem forte, aparentemente sau- ou ele assumiria a condição mais própria da existência e, com
dável, morrendo? isto, singularizava-se. Onde a experiência traz certa lucidez e cla-
Parece, então, que Paulo havia antecipado a possibilidade reza, evidenciada pela sua relação com a finitude, que, no entan-
da sua morte, em um primeiro momento; depois aparecera a re- to, não era o problema, mas sim o ter-se evidenciado o caráter de
lutância de lidar com esta possibilidade, que nas palavras de Hei- seu poder-ser.
degger trata-se do insuperável, intransponível e incontornável. Analista:
Na profissão de médico, Paulo, ao mesmo tempo em que a tarefa - Ficou na tua cabeça que mesmo o forte e saudável pode ser
lhe exige uma absorção, vê-se incessantemente confrontado com posto de lado, pode morrer.
brechas que continuamente revelam o caráter mais próprio de Se Paulo tivesse embarcado na chamada do impessoal, a
seu poder-ser, mobilizando a todo o momento um possível esva- partir do que se diz acerca da imortalidade, teria se acalmado
ziamento. Assim, ele prosseguiu e disse: com o conforto que a impessoalidade proporciona e passaria a
- Eu vejo a toda hora pessoas morrendo. Estou acostumado. atuar em virtude das sedimentações do impróprio, atenuando,
Na verdade, ele olhava toda a hora a morte acontecendo, assim, um problema de sua existência. No entanto, ele não fez
mas não a via. Provavelmente, essa foi a primeira vez que ele a viu. isto, mas respondeu:
Ele poderia até ter visto em qualquer um, mas foi naquele homem - Com aquele paciente aconteceu assim. Nunca tinha batido
que, segundo ele, apresentava uma aparência saudável. O que se dessaforma para mim. Vejo muitas pessoas morrerem, mas nunca
lhe mostrou foi uma situação de confrontação, de contraste: ele me mobilizou daquela forma, desta forma.
trabalha em um setor em que se luta o tempo todo para não dei- - Aquele homem morrendo foi diferente para você.
xar morrer e a ordem agora consistia em que se deixasse morrer. - Foi, acho que [oi o modo como ele morreu. O esforço para
Parecia que a rachadura havia se dado no confronto e que respirar. Todo esforço em vão. Eu, ali, impotente, não podia fazer
a finitude seria o ponto constitutivo da intranqüilidade de Pau- nada. A cena ainda me incomoda.
lo, na qual a consciência clamava silenciosamente. No entanto, O analista tenta, então, fazê-lo lembrar daquilo que Paulo
era preciso continuar e tentar abrir para ele a possibilidade de tentava não lembrar. O esquecimento mostra-se como a estra-
encontrar a experiência do que aconteceu, o sentido desta expe- tégia utilizada pelos antidepressivos e pelas técnicas psicotera-
riência em Paulo. O analista, na tentativa de dar continuidade ao pêuticas que levam a pessoa a sair da situação para se abrigar na
que Paulo falava, mantém-se no tema: superficialidade do impróprio. Aqui, era preciso manter o con-
- Pessoas que estão na UTI:fracas e não saudáveis; mas um fronto com ele mesmo. A voz da consciência, que nada tem a
homem saudável, como pode morrer? É isso? dizer, confronta você com você mesmo, e, ao decair de si mesmo,

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momento outras possibilidades se mostraram como tais. E Paulo cafiava-os para poder estudar profundamente a loucura em suas
pode pelo menos deixar que outra atividade entre na sua existên- diferentes classificações. Bacamarte acreditava que descobriria a
cia, outra atividade que parecia fazer muito sentido. causa do fenômeno, bem como seu remédio. Ocorria que qual-
Com Paulo, pudemos constatar que a tonalidade afetiva "an- quer comportamento, que escapasse ao padrão que o médico
gústia" foi o que mobilizou a transformação, rompendo o círculo identificava como normal, levava aquele que o expressou à casa
hermenêutico em que ele se encontrava imerso. Essa imersão que de reclusão. A situação chegou a uma proporção tal que todos da
se encontra no horizonte histórico no qual há o domínio da técni- comunidade itaguaiense foram encaminhados para a Casa Verde
ca e a morte é tomada na impessoalidade, ou seja, "morre-se': Em e, por fim, o próprio médico também concluiu que deveria ser
Paulo, a situação limite revelou-se como angústia frente ao seu ser- retirado da convivência com os outros e ele mesmo prescreveu a
par-a-morte. O tédio não consistia na disposição de confrontação, sua ida para a tal Casa.
mesmo porque a sua relação com o caráter temporal da existência Assis parece, com isto, que estava se referindo à atmosfe-
apresentava-se pelo preenchimento do compromisso e da rotina. ra de seu tempo, onde reinavam os critérios de normalidade e
Se ele estivesse no tédio profundo, o tempo desapareceria e com anormalidade em uma perspectiva de verdade e método. Nes-
ele o ritmo do existir. Frente à solicitação do ter de trabalhar, ele se momento histórico em que nos encontramos, destacamos
não diria "não tenho vontade': diria "prefiro não ir, prefiro não como um traço do comportamento em geral a compulsão. E
fazer': Antes de ter ou não ter vontade estaria o não faço, não que- se considerássemos loucos os compulsivos e os encaminhás-
ro, não sou. Com Paulo, o anúncio da negatividade e da finitude semos ao hospício, aconteceria o mesmo que ocorreu em "O
se deu por meio da angústia. Esse clamor ocorria de forma a que Alienista": todos nós iríamos para uma casa de reclusão. Hoje,
ele nem ouvisse a voz que silenciosamente clamava. Na situação aqueles que recebem o diagnóstico de obsessivos compulsivos
clínica, o analista apenas caminhou de modo a não facilitar, como não são encaminhados para as atualmente denominadas Casas
acontece nas determinações do impessoal, o abafar dessa voz e o de Repouso. Já se conhece o remédio para curar a compulsão,
aplacar do anúncio da angústia. Assim, abriu-se a possibilidade de logo são imediatamente medicados. Tanto Bacamarte como
manter, na medida do possível, tal clamor, suprimindo a incapaci- os especialistas atuais acreditam que o problema insere-se em
dade de Paulo de suportar tamanha indeterminação. Só assim ele uma interioridade, na qual existe uma falha seja biológica, seja
pôde, então, se rearticular no âmbito do ser-aí finito. psíquica que precisa ser reparada. Heidegger, na contramão
dessas interpretações, afirma que a questão da compulsão tem
uma relação direta com o nosso horizonte epocal. A atmosfe-
3.3. Transtorno obsessivo-compulsivo:
ra em que atualmente nos encontramos é obsessiva-compulsiva.
atmosfera afetiva do temor

Machado de Assis (1882/2008), em seu conto "O alienista"


retrata uma situação do mundo moderno em que um especialis- }.3.1. A era da técnica e o traço compulsivo da existência
ta, Simão Bacamarte, psiquiatra, portanto, considerado conhe- Heidegger refere-se ao problema da técnica como aque-
cedor da mente humana, a partir de suas pesquisas, identifica le problema que envolve justamente a essência compulsiva. De
os insanos mentais e encaminha-os à Casa Verde. Assim, tran- acordo com sua exposição, a técnica tem em si um traço com-

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pulsivo fundamental que caracteriza o nosso tempo. No mun- não haviam surgido no âmbito da psiquiatria. Anteriormente,
do da técnica, essa é a lei, esse é o princípio de determinação denominavam-se os transtornos de neurose. Porém, como essa
de todas as coisas. A técnica, além de estabelecer as conjecturas denominação tornou-se uma categorização utilizada pelo senso
a cada vez novas, sempre está se projetando para além daquilo comum, os estudiosos do assunto resolveram utilizar uma nova
que ela estabeleceu. Daí, em uma incessante projeção para além nomenclatura. Assim, alguns elementos aí discutidos podem nos
de todas as configurações que a técnica conquista, aliado ao seu levar a acreditar que o transtorno obsessivo compulsivo se dá
descompromisso, essa tem uma aceleração que não pára. Com na ordem de uma interioridade que se cindiu e, então, adoeceu
isso, não há mais nenhuma barreira, nenhum limite, enfim ne- psiquicamente, e que isto pode ser constatado pelos seus sinto-
nhuma trava que possa funcionar como um obstáculo para téc- mas, facilmente encontrados no CID 10. Uma vez estabelecido o
nica. Absorvidos por essa atmosfera, agimos a todo tempo em diagnóstico, recorre-se aos procedimentos medicamentosos ou
uma autonomia total do comportamento com relação ao sujei- disciplinadores do comportamento, a fim de que a pessoa possa
to do comportamento. E, de um modo geral, a nossa ação, ao retornar a normalidade.
se tornar uma repetição incessante, passa a ser definida como Os transtornos existenciais, na visão heideggeriana, são
compulsiva, já que o sujeito do comportamento não tem mais comportamentos que promovem um estreitamento do horizonte
nenhum controle sobre si. É essa compulsão que se materializa existencial de modo que acaba por enfraquecer e encurtar todas
em uma série de transtornos, interpretados aqui não como falhas as possibilidades existenciais. Em Ser e tempo (1988), Heidegger
de uma determinada subjetividade, mas como transtornos que pensa o cotidiano em uma perspectiva do comportamento me-
ousamos denominar epocais. Hoje, se tivéssemos que mandar os diano, no qual permanecemos com a impressão de que temos
compulsivos para a Casa Verde, aconteceria assim como o que se o controle e agimos de modo a que nada seja mais importante
passou no Alienista: todos ficaríamos trancafiados lá. Queremos do que tomar conta daquilo, que de algum modo acreditamos
com isso dizer que o horizonte da compulsão atravessa, hoje, os ameaçar nossa existência. E toda vez que temos o anúncio do
nossos modos de ser. incontrolável, dispomos de um esforço enorme para conquistar
Mas por que falarmos de transtorno obsessivo-compulsivo? novamente o controle. Acontece que nada disso é da ordem do
A palavra transtornar significa virar. A pessoa acometida por um racional, como diria Sartre (1997). Isso acontece na síntese do
transtorno é aquela que virou excessivamente, além dos limites projeto, na ordem do pré-lógico, horizonte esse que não pode
aceitáveis. Parece, então, que a pessoa transtornou-se. Obsessivo jamais ser controlado. Por isso, podemos arriscar dizer que, na
refere-se ao pensamento que não cessa de pensar e ordenar que cotidianidade mediana, o que mais acontece são modos de ser
algo seja feito, a fim de que todo e qualquer elemento impre- restritivos, controladores, portanto, tendencialmente neuróticos.
visível não possa surgir e destruir aquilo que se é. Compulsão Acontece que, ao apertar do torno, de modo a tentar controlar
diz respeito à ação que efetivamente e definitivamente protege. tudo, esse projeto fracassa, já que na vida nunca é possível ter
A denominação transtorno obsessivo compulsivo surgiu em controle total sobre tudo e todas as coisas. Aquele que vive o
1991 com o CIO 10. Este manual foi elaborado com o propó- transtorno apresenta uma tentativa de controle total, porém em
sito de atualização das descrições atualizadas das doenças psí- um espaço reduzido. E ao reduzir o espaço das possibilidades à
quicas já existentes, acrescentando-se novas doenças que ainda vulnerabilidade e ameaça à sua existência, o transtornado acaba

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por tomar como ameaçadora uma única possibilidade. Esse es- soante a sua vontade, da qual Bentinho não teria controle. Era
paço restrito traz a ilusão de um controle possível, mas é justo preciso, para que ele ganhasse tranquilidade, a total e absoluta
nessa redução que, ao apertar o torno, transtorna. transparência de Capitu. Como tal transparência era impossível,
A situação em que o transtorno aparece é muito bem ilus- como o fato de jamais confirmar tal certeza instaurava a dúvida,
trada em um conto de Kierkegaard, intitulado Uma possibilidade ele não tinha como saber se Capitu realmente o teria traído. Eis
(Valls, 2004). O próprio título já aponta para o problema da res- que Bentinho vai assistir à ópera "Otelo" Essa ópera traz a histó-
trição. Trata-se de um personagem, o guarda livros, que sempre ria de Otelo, que é enganado pelo seu ajudante, Yago. Esse quer
levou uma vida regrada e era um trabalhador exemplar, tanto vingar-se de Otelo. Para isso, cria uma intriga entre Otelo e sua
que seu patrão deixou-lhe como herança o seu negócio. Essa mulher, inventando que ela andava traindo-o com um amigo.
excessiva vida apolínea já apontava para uma restrição que nos Otelo, não suportando a infidelidade de sua esposa, acaba por as-
dava indícios de uma tentativa de controle. O rapaz levava uma sassiná-Ia e depois mata o amigo. Ao descobrir a intriga em que
vida tranqüila, sem grandes preocupações, até que uns amigos o • havia sido enredado, comete suicídio. Nesse caso específico, o
chamam para uma noitada que acabou em bebidas e mulheres. fato de alguém ter sido traído, sem que a traição fosse realmente
Acontece que o jovem passou a noite com uma mulher e, a partir efetiva, reforça em Bentinho a dúvida, por não suportar que essa
daí, começou seu infortúnio. Ele desespera-se pela possibilidade se acirre ao aparecer outra possibilidade. Em um encurtamento
de que essa única decisão desregrada em sua vida pudesse gerar e em uma tentativa de obter a certeza, opta por manter a idéia
frutos, no caso, um filho. Sem dúvida, essa era apenas uma pos- de que ele mesmo foi traído. Na verdade, Bentinho não supor-
sibilidade, frente a outras possíveis. No entanto, o guarda livros ta a dúvida, por isso opta pela certeza. A certeza é a obsessão,
só via uma, em total encurtamento frente aos possíveis. Ele, em elemento de determinação, a necessidade de Bentinho. Por isso,
desespero da necessidade, faz com que apenas a possibilidade resolve por aquilo que, de alguma forma, termina com a situação
do filho abarque toda a sua existência. No desespero da necessi- de indeterminação e incerteza.
dade, o rapaz não consegue suportar qualquer indeterminação, A história do Guarda livros e a de Bentinho retratam bem
daí ocorre um encurtamento total que não permite o acesso a o que caracteriza o transtorno do controle. A impossibilidade de
qualquer outra possibilidade. controle de todos os elementos traz a restrição daquilo que elege-
Machado de Assis (1895/2008) também trata do tema do mos controlar. Essa eleição torna-se o foco para o qual passamos
encurtamento das possibilidades que visa ao controle no seu ro- a dirigir toda a atenção. Com o foco uma vez elegido, passamos
mance Dom Casmurro. Nesse romance, Machado de Assis relata a empenhar-nos nele de forma determinada. E, assim, temos a
a dúvida de Bentinho acerca da fidelidade de Capitu, sua esposa. neurose como elemento decisivo para o controle, determinação
Bentinho, consumido pela dúvida, por mais que ele não tives- e compulsão.
se evidências lógicas de que a traição acontecia, quanto mais as Para pensar no horizonte histórico que determina as nossas
evidências de uma possível fidelidade apareciam, mais ele se tor- ações por meio dos elementos da técnica com a sua atmosfera
nava certo da traição. Ele não tinha como ocupar os pensamen- própria de controle, compulsão e violência, buscamos na literatu-
tos nem as ações da esposa, o que deixava sempre um espaço de ra elementos para ilustrar de que modo as expressões singulares
liberdade para que o outro estivesse possivelmente agindo con- se dão nesse círculo hermenêutico de orientações sedimentadas,

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nas figuras do Guarda livros e de Bentinho. Esses dois elementos, do descompasso com a vida e retomar a vida, entregando-se a ela
que traduzem o geral e o singular nas expressões de um tem- tal como ela se dá. Mas cabe agora a questão: afinal, como essa
po, levam-nos a estabelecer as referências, nas quais se assentam clínica acontece? É isso que tentaremos mostrar com a análise fe-
possibilidades de uma psicologia clínica existencial. Clínica essa nomenológica do discurso clínico que apresentaremos a seguir.
que não mais entende o transtorno como algo que se dá em uma
interioridade fragmentada ou desadaptada, mas como algo que
3.3.2. A clinica psicológica na tonalidade do temor
se dá no próprio espaço existencial.
Com base em uma psicologia existencial, caminhamos no Em março de 2008, uma senhora telefona, pedindo para
sentido de entender o fato de que o que está em jogo nos trans- que marcássemos uma sessão para seu filho, Otávio, 22 anos. Ela,
tornos neuróticos é oriundo do espanto que se apresenta frente relatando excessiva preocupação com o filho, diz que o rapaz está
ao indeterminado e à tentativa de controlar essa indeterminação. cursando medicina, e que vem prosseguindo o curso sem dificul-
Como tal tentativa fracassa, resta, então, restringir possibilidades dades. No entanto, no próximo semestre ocorrerá a parte prática
e, assim, quem sabe retomar o controle. Outro aspecto relevante e ela teme que Otávio não consiga dar continuidade ao curso.
que esclareceremos aqui é o de que a questão do transtorno ou A terapeuta pede para marcar uma entrevista com os pais, pois
da neurose não diz respeito a uma subjetividade encapsulada que teme que o próprio rapaz não transmita tudo o que está aconte-
carrega em sua interioridade o seu transtorno e, portanto, nela é cendo. O analista pede que Otávio entre em contato, para que ele
que repousa toda a responsabilidade pelo modo como conduz a mesmo marque o encontro (momento da responsabilidade).
sua vida. Traremos à discussão aquilo que Heidegger denomina Neste primeiro trecho, a questão já se evidencia como algo
como tonalidades afetivas, que implicam um espaço existencial muito próprio aos distúrbios ou doenças em geral. Nessas situa-
que não é nem interior, nem exterior e que sustentam a situação ções, os familiares, amigos ou pessoas próximas assumem a tute-
e o lugar onde as determinações acontecem. A atmosfera que la por aquele que julgam que, por estarem doentes, não a podem
parece sustentar o transtorno do controle é o temor. O temor assumir. Acreditam eles, que nessa situação a pessoa se torna
relaciona-se com o medo. Heidegger diz em Ser e tempo que o incapaz de cuidar de si mesma. Em uma clínica existencial, acre-
medo torna a rede referencial mais presente, de tal modo que a ditamos que, retirar da pessoa a sua tutela, consiste exatamente
circunvisão por meio dele se acirra. Aquilo de que temos medo naquilo que acirra a doença psíquica. Por esse motivo, inicia-
nos torna mais atentos àquilo que previne o acontecimento que mos a situação clínica já a partir desse primeiro contato, pedindo
tememos. Aparece, assim, a atmosfera do temor. que Otávio telefonasse para marcar o nosso primeiro encontro.
Em uma perspectiva existencial na clínica psicológica, o A mãe prontamente atende à solicitação e diz que lhe dará o re-
caminho clínico aconteceu no sentido de tentar sempre abrir o cado. Assim, mantemos a oportunidade, que normalmente é re-
leque da indeterminação, de modo que aquele que vê sua exis- tirada daquele que consideramos doentes, de que Otávio assuma
tência repentinamente transtornada possa, afinal, entregar-se à a sua responsabilidade, o seu cuidado, a sua tutela.
situação onde ele sempre se encontrou e encontra: na situação da O acento do clínico se dá aí na abertura de possibilidades
indeterminação e incerteza. E também se faz necessário modifi- para que Otávio reconquiste a sua responsabilidade. E assim
car a atmosfera de temor de modo que o transtornado possa sair acontece. Otávio telefona para marcar a sessão e diz estar mui-

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to interessado em buscar ajuda. Consente na entrevista com os essa medicação, introduziria neurolépticos (antipsicóticos em
pais, dizendo que não só aceita que eles venham, como também dose baixa).
acredita que seja bom para que eles reduzam a ansiedade, já que Com as observações e descrições dos pais, bem como com
ultimamente eles andam muito preocupados. Essa preocupação as do médico psiquiatra, podemos concluir que o diagnóstico, a
dos pais, que Otávio considera ansiosa, também fala da tentativa descrição dos sintomas e a prescrição pretendiam colocar a si-
deles de dividirem a responsabilidade pelo rapaz com um pro- tuação sob controle. Os pais já tinham o diagnóstico e o médico
fissional que o venha tutelar; de dizerem o que fazer de alguma já mapeara toda a situação de Otávio. Enfim, todos já sabiam o
forma, seja de forma medicamentos a, seja por técnicas de mo- que Otávio tinha e como tratá-lo, Os pais e o médico já haviam
dificação do comportamento ou por uma descoberta do meca- se tranquilizado, pois já haviam encontrado uma identidade para
nismo que se encontra por trás do que acontece; e, portanto, eles Otávio, bem como os procedimentos que o livrariam dos sin-
acreditam que o profissional indicará, com certeza, o caminho. tomas. Nesse momento, portanto, eles já apresentavam o rapaz
Eles marcaram, então, a entrevista com os pais. ao analista por meio de categorias universalizantes que, por sua
Na entrevista com os pais, a mãe toma a palavra e expõe o vez, garantiriam uma atuação psicológica definitiva. Em face do
problema de Otávio com os seguintes itens: processo identificatório, essa atuação deveria trazer a tutela asse-
• Ela fala da dificuldade de relacionamento, que se dá devido gurada que os pais tanto procuravam.
à rigidez de critérios com os quais Otávio conduz sua vida. Otávio chega à sessão muito agitado, como se estivesse
• Refere-se a princípio ao medo da morte e, em seguida, se em estado de alerta, mexia-se muito, piscava em excesso. Ele
corrige: "medo não", o pavor com que Otávio leva a vida. jogou-se ao sofá. E começou a falar sem que o analista lhe per-
• E relata que os dois, pai e mãe, receiam que Otávio aban- guntasse nada:
done a faculdade. - Vim aqui porque já não suporto mais a aflição. Ando com
A mãe refere-se ao fato de se sentir culpada e o pai mos- muito medo de me contaminar com o vírus HIY. Saí da outra psi-
tra-se preocupado, porém mais contido. Os pais informam que cóloga porque odeio psicólogo, tenho nojo do que eles falam, só
Otávio vem sendo acompanhado por um psiquiatra. O psiquia- falam besteiras, burrices. Você me desculpe, mas os psicólogos são
tra, logo que foi informado que Otavio iria ser acompanhado despreparados, burros, só faz faculdade de psicologia quem não
por uma psicóloga, entrou em contato e falou de seu diagnóstico. entra para afaculdade de medicina. São complexados. Não quero
Ele disse que se tratava de um Transtorno Obsessivo Compulsivo que você me fale bobagens. Sabe o que a psicóloga Maria, você deve
(TOC) e que o paciente estava medicado com Aropax (anti-de- conhecer, sabe o que ela me disse? Que raiva! Tenho vontade de dar
pressivo, um comprimido por dia). Além disto, contou que Otá- um murro na cara dela! Estava falando de como tenho raiva, ódio,
vio apresenta os seguintes sintomas: da minha mãe, tenho vontade de cuspir na cara dela; e ela me disse
• Compulsões (que desapareceram com a medicação). que era o meu complexo de Êdipo. Pedi a ela: decifra o que é isso
• Tiques (que aumentaram com a medicação); que vO'cêfalou. Ela respondeu: no fundo você a deseja e como não
• Pensamentos obsessivos (que diminuíram com a medicação) pode possuí-Ia, porque ela pertence ao seu pai e como você não
• História familiar de TOe: tia materna e mãe. pode destrui-to, mesmo porque o ama, você quer destruir o objeto
Ele comunicou, ainda, que caso Otávio não respondesse a da rivalidade de vocês dois. Que raiva, que burrice, que idiota des-

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preparada, deve ter estudado em uma faculdade de merda. isso,já que sou incrédulo, porque tenho medo de espírito? Mas fico
Otávio continua: achando, sentindo que tem espírito perto de mim. Minha mãe, que
_ Não suporto gente burra, eu já não estava gostando há diz que é católica, quis me levar num centro de macumba. Eu não
muito tempo das burrices que ela falava. Dizia: você não vai ser aceito esta palhaçada. É claro que não fui, nem vou.
contaminado, você não usa camisinha? Burra, não entende nada. Otávio falava muito, não deixando espaço para que eu me
Qualquer um pode ser contaminado, tenho medo porque sei que pronunciasse. O analista manteve-se em silêncio, atento ao que
mesmo com todas as precauções você pode ser contaminado, até o rapaz dizia, facilitando, assim, que ele trouxesse à tona todos
ela pode, mas a babaca acha que ela não vai ser contaminada. os incômodos, insatisfações e medos. Mostrava-se, assim, a dis-
Você conhece a Maria Alves? Conhece, não conhece? Sabe que ela posição para escutar o que ele quisesse falar e para acompanhar
é incompetente não sabe? as expressões de suas emoções. Frente a tudo aquilo que Otávio
O analisa conhecia a primeira psicóloga e acreditava que e>"'Pressava,o analista conduzia-se conforme indicam os man-
Otávio talvez tivesse razão no que estava falando. Por mais que damentos do psicoterapeuta existencial (FEIJOO, 2010): indo
seja hoje cada vez mais raro encontrar psicanalistas assim tão onde o outro estava, mostrava-se um ouvinte atento e revelava
reducionistas, existe sempre ainda a possibilidade. Por isso, ela interesse naquilo que Otávio tinha mais motivação em relatar.
acenou que sim e acrescentou que desconhecia dados acerca de Era preciso paciência, só assim poderia ajudá-lo. Por fim, era
sua formação e competência. Otávio, então, lhe disse: preciso compreender que toda a sua raiva e indignação com o
- Avise para todos que você conhece sobre como ela é incom- psicólogo consistiam em sua dificuldade, atmosfera em que se
petente. Desejo a minha mãe ... Nem gosto de velha, odeio a minha encontrava. O psicólogo precisava também reconhecer que só
mãe, tenho nojo dela. Mas, não é por isso que estou aqui. Terminei poderia alcançá-Io, se não partisse do pressuposto de que toda
a terapia há três meses. Terminei não, abandonei depois da burri- a sua forma de expressar-se consistia em sua doença, tal como o
ce que ela me falou. E ando me sentindo muito mal, fico o tempo psiquiatra havia diagnosticado. Se assim fosse, relacionar-me-ia
todo pensando que fui contaminado pelo vírus da AIDS. Isso me com a categoria que lhe fora destinada e não com ele mesmo em
perturba, às vezes é tãoforte que não suporto, não consigo parar de seu modo de mostrar-se, que estava ali e se apresentava em suas
pensar e até vomito, sem parar. É horrível. Transar; já nem tran- expressões singulares. Expressões essas que traziam uma atmos-
sa mais, sinto vontade, mas depois fico tão perturbado, achando fera de violência, um estado de humor, afinação em que ele se
que me contaminei que prefiro evitar. Depois que terminei com movimentava; enfim, se relacionava com aquilo que lhe vinha
a minha namorada, nunca mais transei com nenhuma mulher. ao encontro.
Tenho medo. No final do relacionamento, já fiquei cismado de ter Ao perguntarmos sobre as razões de tanta raiva e violência,
me contaminado com ela. concluímos que essas razões não se situam na ordem da lógica.
Otávio continua: No interior do transtorno, há um horizonte que não é lógico.
- Sabe, tem outras coisas que atormentam minha vida. Penso Por esse motivo, teríamos que aguardar, pacientemente, para que
que não quero morrer, pensar nisto me traz um grande incômo- Otávio se pronunciasse. Quando a sessão acabou, Otávio quis
do. Também cismo às vezes que há espíritos junto de mim. Tenho marcar a próxima sessão na mesma semana. Ele disse que estava
medo, fico cismado. Não sou religioso, nem acredito em Deus. Por precisando muito. O clínico concordou com esse segundo encon-

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tro e acertaram o dia e a hora. No segundo encontro, Otávio co- sei, ou ela não me interessa ou quando me interessa parece que
meça a contar como foi o término de seu namoro: elas não gostam de mim. Quando saio com meus amigos, eles saem
- Namorei durante dois anos com esta moça, gostava deficar sempre com uma garota e eu fico sozinho. Às vezes, acho que as
com ela, mais velha do que eu, ela era paciente e sem essasfrescuras mulheres gostam de homens safados que mentem. Eu já não sei,
das garotas mais novas, o sexo era bom. Só que eu comecei a des- nem gosto de mentir, digo a verdade e elas não gostam. Preferem
confiar que ela me traía. E isto eu não aceito deforma alguma. Eu a os safados. Cada vez eu fico mais certo disso.
pressionei e ela não confessou. Outra coisa que eu não suporto, fico - Então você quer encontrar uma garota, mas não quer cor-
com muita raiva, tenho vontade de matar é a mentira. Como odeio rer risco.
traição e mentira, resolvi terminar. E, depois que termino, não me - É isso.
arrependo. Também não iria correr o risco de me contaminar. - A questão é como ter certeza de que não corre risco. Parece
- E quais os indícios de que ela mentia? que sem risco também não há garotas.
- Não sei direito, ela se contradizia. Eu tenho boa memória, Otávio contava sobre as suas relações amorosas, so-
ela pensava que eu tinha esquecido de algo que ela tinha contado bre o fracasso na tentativa de novos relacionamentos. Falava
e contava de outro jeito. Estava acontecendo coisas esquisitas, um da atmosfera de desconfiança e de medo em que ele se mo-
ex-namorado que estava telefonando para ela, ela dizia que era só vimentava. A contaminação e a desconfiança pareciam tra-
telefonema, mas não sei. E desconfiando não dá. Fiquei mais pre- zer à tona o caráter de indeterminação e incertezas em que
ocupado com a contaminação. Se ela estava transando com outro, ele se encontrava. O analista lembra-se do romance de Ma-
as chances aumentavam. Nós nem brigamos, nem nada, terminei chado de Assis e pensa que o que ocorria com Otávio pare-
o namoro e pronto. Ela chorou muito, disse que estava sofrendo, cia ser a mesma coisa que sucedera a Bentinho. A dúvida era
que gostava muito de mim. Eu, de verdade, nem sofri tanto, gos- mais insuportável do que a traição. Por isso, ela só o podia
tava dela, mas a desconfiança estava me atormentando tanto que estar traindo e não havia nada a fazer senão terminar o na-
achei melhor terminar. Agora já tem algum tempo que termina- moro. Pensou nas razões que o levaram a concluir que houve-
mos, sinto falta algumas vezes, mas não sofro, nem choro. Nada, ra traição. Ao mesmo tempo, o analista sabia que mesmo que
não deu, não deu. houvesse razões suficientes para negar as certezas de Otávio,
- Parece que o mais importante é não correr o risco de se isso de nada aliviaria o seu sofrimento, pois tais razões não
contaminar. eliminariam por completo a possibilidade de infidelidade.
- É. Tenho muito medo, sei que não é difícil isso acontecer. O pré-lógico parece ter aí um acento que radicaliza a decisão.
Prefiro prevenir. Depois que acontece, não há mais nada que eu Em meio a essas reflexões, o psicólogo se calava e, pacientemen-
possa fazer; mas controlar para não acontecer, eu posso. te, esperava o momento em que pudesse se pronunciar. Intuiti-
Analista: vamente, ele pensava que deveria ser prudente. Anteriormente,
- É. E você até sente falta da garota, mas não sofre mesmo, já havia demonstrado o ódio que sentia pelas pessoas que não
não é? o compreendiam. Por isto, o clínico preferia continuar a ouvi-
- O que eu quero, agora, é arrumar outra namorada, mas 10. Ele, por sua vez, não solicitava que o analista lhe dissesse
está difícil. Conheço a garota em uma festa ou em barzinho. Não alguma coisa. Parecia necessitar, pelo menos e por enquanto,

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ser ouvido. O analista sabia que, em algum momento, preci- acreditava, no entanto, que era preciso cuidado, para não se pr -
saria criar um espaço em que essa tentativa de obter certezas e cipitar e acabar por destruir uma relação que estava ainda se ini-
controle desmoronasse. Ele sabia também que a inconsistência ciando. Otávio continua o relato:
de seu projeto de controle, que falseava o caráter de indetermi- - Eu gosto muito de meu pai, ele é um cara bom, ingênuo, a
nação, deveria se revelar. E, assim, Otávio poderia se entregar à minha mãe faz dele gato e sapato, mente e ele acredita. Ela gasta
indeterminação própria ao existir. Esse rapaz, no desespero da todo o dinheiro dele, ela não trabalha, mas sabe gastar que só ela.
necessidade de certezas, não conseguia suportar essa indeter- E tem uma situação que eu jamais esqueço. Ela mentiu para o meu
minação. Daí o encurtamento total rumo a apenas uma possi- pai, quando eu era pequeno, eu sabia que ela estava mentindo. No
bilidade. Assim, não precisava acompanhar esse mar de possi- entanto, para não magoá-to, eu não contei nada, até hoje guardo o
bilidades que sempre podem acontecer. Foi nesse movimento, segredo. Não por causa dela, mas apenas para não magoá-Ia. Ela
apontando para a falta de coragem e a evitação do risco que, éfalsa com as amigas, estáfalando ao telefone que está muito feliz
pouco a pouco, Otávio foi ganhando coragem; mesmo porque pela amiga ter ligado e fazendo careta. Eu detesto isto, fico com
já havia assumido o quanto ter uma namorada era importante raiva, com nojo dela. Em casa, está sempre falando mal de todo
para ele. mundo. Meu pai ouve e não fala nada. Ela é tudo para ele. Ela se
Nesse último encontro, relatou repetidamente como era aproveita disto e faz o que quer. Comigo eu não deixo, xingo ela,
difícil achar uma garota e que o que ele gostava de fato era de digo que ela éfalsa e mentirosa. E ela pergunta por que eu a odeio
namorar. Ele relata as saídas com os amigos, as farras, os chur- tanto, chora, meu pai fica com pena e só paro e não faço pior por
rascos com os amigos da faculdade, as chopadas, mas diz que, causa dele, ele não merece sofrer. Então, o ambiente da minha casa
em nenhum desses lugares, arrumava garotas para ficar com ele. é este, eu me enfio no meu quarto, é lá que eu passo a maior parte
O analista ficou pensando no que poderia estar acontecendo. do meu tempo.
Otávio era um rapaz bonito, com um corpo bem talhado, estu- Otávio continua:
dava em uma boa faculdade, cursava medicina, era inteligente - A outra psicóloga me disse que isto acontecia por causa do
ete. Refletiu se não era pela forma bizarra com que se mostrava: meu Édipo,você também acha isto? Eu acho que isto é uma burri-
tiques sonoros, gestuais, fala agressiva. O clínico sabia que teria ce. Eu não gosto dela porque ela éfalsa. Eu não gosto de mentira e
que buscar mais situações do seu cotidiano que revelassem o que ela é uma mentirosa de marca maior. Tenho vontade de dar porra-
vinha acontecendo. Marcaram o terceiro encontro. da nela, só não faço por causa de meu pai. Ele não merece isto.
Na terceira sessão, Otávio quis falar de sua mãe. Portanto, Por inúmeras vezes, Otávio revelava excessiva raiva em sua
ainda não foi desta vez que chegara o momento de saber mais so- fala, referia-se ao seu desejo de agredir as pessoas que o frustra-
bre a dificuldade de iniciar um relacionamento com as moças. O vam por algum motivo, até mesmo por sujarem as ruas. A ex-
psicólogo precisava saber esperar, agora o momento era de novas pressão de raiva era tamanha, que chegava a arregalar os olhos e
revelações. Talvez fosse a mesma situação que fez a profissional trincar os dentes. Ele transfigurava-se. O analista surpreendia-
anterior interpretar como uma situação edípica mal resolvida. se com uma expressão tão natural, que parecia que a situação
Este risco, o psicólogo não correria, pois este tipo de interpre- estava acontecendo e que não se tratava de um relato. No en-
tação não constava do seu repertório hermenêutico inicial. Ele tanto, ela percebia que a violência se dava apenas nas palavras.

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Até o momento, não houvera nenhum relato de uma ação vio- eu me aproximo, éporque ela me interessou. Sou defalar a verdade
lenta. Parece que a violência se mostrava em palavras no espaço e acho que elas gostam de mentira.
da análise, espaço em que esse modo de expressão é acolhido - E que verdades vocêfalou para essagarota especificamente?
sem críticas. A psicoterapeuta telefonou para o psiquiatra para - Por exemplo, eu vi uma mancha no seu dente e perguntei
perguntar-lhe sobre essa raiva. Este, por sua vez, não deu impor- se ela estava com cárie, aí não dava nem para beijar. Sei lá se ela
tância à situação. E Otávio, então, no nosso quarto encontro, co- cuida direito dos dentes. Perguntei há quanto tempo ela não ía ao
meçou a falar uma vez mais sobre como não conseguia arranjar dentista. Fui sincero, se eu não tivesse esses dados eu não ia beijar
uma namorada, sobre como tinha saído com seus amigos nesta mesmo. Mesmo a garota sendo gostosa, não iria correr o risco de
final de semana e todos tinham se arranjado. Conta que ele ha- me contaminar.
via ficado com uma garota, que avaliara como interessante, mas - E o que a garota respondeu?
que a garota deu uma desculpa e saiu da situação. Ela precisava - Disse que ía com freqüência, eu não acreditei efiquei ten-
aproveitar o relato para saber o que especificamente acontecera. tando olhar o resto dos dentes. Ela me falou: "pâra de olhar, estou
O analista disse-lhe: ficando sem jeito". Ela estava escondendo alguma coisa, por que
- Conta para mim como tudo aconteceu desde que você en- ficar sem jeito se ela não tivesse nada a esconder? Isso também
controu a garota até ela cairfora. já me broxou. Perdi o interesse. Mas fOi ela mesma que deu uma
Otávio prossegue: desculpa que iafalar com uma amiga e desapareceu. Bem feito, vai
- Bom, olhei a garota e gostei dela, fazia o meu tipo. Fiquei encontrar um pilantra que vai se dar bem e cairfora. Me dá uma
com ela à mesa, conversamos. raiva das mulheres. Que ódio!
Continuei a investigar, para assim poderem, pouco a pouco, Analista:
ir se desfazendo os campos intencionais amalgamados, onde per- - Vocêacha, então, que a garota não gostou do que você disse?
cepção e campo significativo se confundem. Então perguntei: - Não, falei a verdade, ela não gostou porque não fiz promes-
- Sobre o que conversaram? sas como meus amigos fazem. Porque não menti. Foi o que tefalei,
Otávio prossegue: as mulheres gostam de homens safados. Dizem o que elas querem
- Vários assuntos:faculdade que estudávamos. Ela ficou im- ouvir e elas dão o que eles querem ganhar.
pressionada pelafaculdade que estudo. Ela estuda na Estácio. Sobre o - E é sempre assim que você se aproxima das garotas?
que gostávamos defazer. Achei até que tínhamos os mesmos gostos. - É, eu não gosto de mentiras. Meus amigos me dizem: "tem
Analísta: que mentir cara".Eu não gosto e não minto. Às vezes eles até acham
- Estava até aí tudo indo muito bem. O que será que aconteceu? engraçado esse meu jeito. Uma vez conheci uma garota, caloura.
- Eu acho que as mulheres gostam de canalhas, que mentem. Gostei dela, e as calouras gostam dos caras mais adiantados. Mas a
Meus amigos me aconselham, quer comer a mulher, dá indícios de saia dela era esquisita e eu achava que ela tinha que trocar de saia.
que você pensa em casamento, quer ter filhos, que ela é especial, Joguei.ketchup na saia dela, na parte de trás, ela não viu, todo mun-
que não se encontram mulheres tão legais, que hoje é difícil encon- do começou a rir dela. Ela não gostou, perguntou quem tinha sido o
trar uma mulher com tanta seriedade e no máximo dois dias de- engraçadinho, meus amigos não falaram, mas eufalei. Disse:[ui eu;
pois você a leva para a cama. Mentem, eu não gosto de mentir. Se e você com essa saia ridícula. A garota nunca mais falou comigo.

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- Parece que esse seu modo de ser com as meninas é verdadei- As pessoas não gostam da verdade, é isso? Preferem mentira? Isso é
ro, mas acaba fazendo com que elas se afastem de você. geral? Aquela história do cachorro, já fiz a mesma coisa só que com
- Não acho que é isso não. Será que é isso? o gato da vizinha. O gato me enchia o saco, miava a noite toda,
Analista: não me deixava dormir, não conversei, dei um sumiço no gato. A
- Eu penso que sim. vizinha desconfiou que tinha sido eu (Otávio ri). Mas nunca teve
- Então eu tenho que mentir? a certeza. Agora, com o bicha, também não gosto deles perto de
Analista: mim, não tenho nada se o cara quer dar o rabo, mas perto de mim
- Ou então deixar de ter medo e não ficar em estado de aler- não. Com a mulher, ele não fez nada demais, falou a verdade. Mas
ta. Mas como não temer? não lhe disse que elas preferem a mentira?
- Para mim, mentir ou omitir é a mesma coisa. Fico com Analista:
raiva quando a pessoa diz: não menti, só omiti! Foi isso que minha - Mas pelas verdades dele, ela acabou se afastando, sentiu-se
mãe me disse quando sacaneou meu pai, "não menti, só omiti". desrespei tada.
Só omitiu, ótima desculpa para os mentirosos. Ela mentiu, omi- Otávio pergunta:
tiu, sacaneou e me fez cúmplice de sua mentira. Me dá uma raiva - Você acha que é isso que acontece comigo?
pensar nisso. - Acho.
Analista: - Mas eu não sei fazer diferente.
- Como não dá para saber certamente se o outro mente tal - Você ainda nem tentou fazer diferente e acha que não sabe.
como sua mãe mentiu, você prefere se certificar. Não arriscar. - Você vai me ajudar?
Otávio, ao pagar as sessões, teve dificuldade em preencher Analista:
o cheque e disse: - Claro, eu quero lhe ajudar. A questão é se você vai se per-
- Tenho medo de errar. mitir arriscar.
Terminada a sessão, o analista perguntou a Otávio se ele Aqui se fazia necessário o cuidado sob o modo da preocu-
havia visto o filme "Melhor impossível" e ele respondeu que não. pação substitutiva. Precisava mostrar a Otávio o seu modo dis-
Ele insistiu e indagou se ele poderia ver até a próxima sessão. funcional de lidar com o outro. Nas sessões seguintes, Otávio
O objetivo aqui era que eles pudessem falar de como o modo passou a contar com riqueza de detalhes a sua aproximação das
direto e verdadeiro com que o protagonista falava aos outros lhe meninas e, muitas vezes, o psicólogo tinha que conter o riso. Ou-
trazia conseqüências desfavoráveis nas relações interpessoais. tras vezes, ela não conseguia e ria ... Ao mesmo tempo, Otávio co-
O analista utilizou de uma metáfora para poder mostrar-lhe as meçava a rir junto. Pouco a pouco, ele foi se dando conta de suas
suas dificuldades, e, assim, poder de alguma forma flexibilizar inconveniências por conta da tentativa de controle. Ele se enche
mais as suas verdades. No encontro seguinte, Otávio iniciou a de coragem, arrisca, beija as meninas. Depois inicia um namoro.
sessão falando do filme: E ele começa a ter relações sexuais com a namorada.
- O cara também tem TOe, mas eu não tenho aquelas ma- O namoro se prolonga e Otávio é apresentado aos pais da
nias, não fico lavando as mãos, sou bagunceiro pra caramba, mi- moça. Certa vez, disse para a garota, que pensara que ela fosse
nhas coisas são uma zona. Agora, tudo o que ele diz é verdadeiro. branca. Mas que, ao conhecer seus pais, se dera conta de que era

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mestiça, mulata, pois sua mãe tinha origem negra. Por outra vez, que pretendia fazer frente a tais situações. E eram essas conside-
contou que falou para a garota: rações pertinentes à abordagem clínica conduzida pelo analista:
- Seu pai ou é bicha ou será, o jeito que ele olha para mim, os - Fale-me deste incômodo.
amigos dele, não sei não. Você já desconfiou de alguma coisa? Otávio:
É obvio que a relação foi se desgastando, até que a garota - Não gosto da meia, fica feio. Você ficou aborrecida? Eu não
terminou o relacionamento. Otávio ficou surpreso. Analista e queria ofender.
analisando conversaram sobre estes acontecimentos, Otávio foi - É isso que acontece na sua relação com as pessoas, você não
se dando conta de suas inconveniências, embora, algumas vezes, quer ofender, só quer ser verdadeiro.
insistisse em afirmar que não via nada demais nas suas verdades. - 'Você não tem essas frescuras.
Na nossa relação, algumas vezes, ele também se mostrava - Aias as pessoas têm e, para não ter que ouvir coisas que não
inadequado. Certa vez, pediu um copo d' água e olhou por um querem, elas se afastam.
longo tempo para o copo e disse: - Eu tento não fazer mais, mas na hora eu não consigo perce-
- Não tem outro não, este está mal lavado. ber, e, quando me dou conta, já estraguei tudo.
De outra vez falou para o analista: - E depois que estraga tudo, já era! A garota que você queria
- Você é velha. como namorada já se foi.
Inúmeras vezes referiu-se ao fato de que o analista já era - É, e eu quero muito ter uma namorada, eu fico muito bem
velho e de que faltava pouco tempo para que ela morresse, per- quando tenho uma garota.
guntando em seguida se isso não a assustava. Um dia olhou para - É, mas desse jeito vai acabar ficando muito mal, pois as
a meia do analista e disse: garotas vão continuar a desaparecer.
- Ridícula essa meia. Não sei como é que você usa, também - Eu vou mudar, você vai ver. Claro que com sua ajuda. Mas
não tenho nada com isso, mas me incomoda. você ficou aborrecida comigo?
Pela psiquiatria em uma perspectiva moderna, as reações - Eu não fico aborrecida, mas as pessoas em geral ficam.
de Otávio são interpretadas como impulsos determinantes de Com o tempo, Otávio foi se dando conta dessas suas reações
sua resposta. Essa resposta, uma vez constituindo-se como sin- e, na medida do possível, modificando-as. Pensava antes de falar
toma, torna-se uma resposta autônoma. Logo, exime-se com isto o que vinha a sua cabeça. Ele teve algumas namoradas e rompia
o autor da ação como não-responsáveL Desta forma, a doença o relacionamento por outros motivos, embora algumas desa-
passa a ser a justificativa pela resposta inadequada. Na perspec- parecem de sua vida. Apareciam outros problemas, que Otávio
tiva existencial, essa interpretação se constitui como posição trazia para a sessão, refletia sobre eles e decidia o que desejava
psicológica de não-liberdade. Segundo a análise existencial, ao fazer. Até que chegou por fim o momento dele começar a esta-
homem cabe a responsabilidade pelo seu modo de agir frente giar, como acadêmico teria que trabalhar no hospitaL Temia a
às solicitações do mundo. Portanto, a Otávio cabia continuar ou contaminação pelo sangue dos outros. Pensava em todas as for-
deter-se no modo como correspondia à solicitação do mundo. mas com que poderia evitar uma possível contaminação: uso de
Era necessário, no entanto, que ele reconhecesse o modo como luvas, certificar-se de que o outro não era portador do vírus. Ao
respondia, bem como assumisse a responsabilidade e decidisse o mesmo tempo, porém, sabia que a possibilidade estava sempre

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presente. Certo de que o que ele desejava era o total controle vulnerabilidades. Novamente, poderíamos dizer que essa idéia
de sua vulnerabilidade, eu insistia sempre na questão de que a persistente tratava-se de um pensamento compulsivo, sintoma
contaminação era uma possibilidade. Certa vez, Otávio, apresen- do TOe, mas essa explicação mostrava certa insuficiência para
tando muitos tiques, disse: abarcar a situação em que Otávio se encontrava. Preferia atu-
- Atendi uma garota bonita. Certamente eu ficaria com ela. ar de modo que ele se apropriasse da atmosfera de medo em
E ela é portadora do vírus. Você tem razão, a gente não tem con- que se encontrava e de suas tentativas de controlar o incon-
trole dessa situação. trolável. Muitas vezes, na tentativa de manter-se na restrição
Neste relato, apresentava-se com muitos tiques. Daí por e consequente determinação, argumentava no sentido de con-
diante, ele resolveu fazer exame e pedia: vencer-se de que se queria controle, porque não tinha medo
- Mas eu não vou conseguir pegar o resultado. Você vai comi- de ter câncer ou de morrer com bala perdida ou acidente de
go. Não, trago o envelope lacrado e vejo aqui com você. carro. Logo depois, ele mesmo concluía que, no fundo, acre-
- Do que você tem medo? ditava que dessas situações ele tinha o controle e ainda dizia
- Do resultado positivo. o que poderia fazer frente a tais situações. Nesses momentos,
- Teme estar contaminado? O que faz você acreditar que está? lembrava do guarda-livros de Kierkegaard. E, assim, prosse-
- Não sei, a luva não furou, não tive contato com o sangue guimos em nossos encontros.
da garota. Olhei a luva e a mão toda minuciosamente, não tinha Em um outro encontro, Otávio chegou muito ansioso e pe-
nada. Mas assim mesmo fico com medo. diu que o analista lhe fizesse um relaxamento. Assim, fez um re-
- Já verificou tudo, mas mesmo assim quer ter a certeza. laxamento muscular progressivo e, ao terminar, sentou-se ime-
- É certeza de que não estou com o vírus. Estou muito nervo- diatamente e disse:
so com isto,já pensei até em abandonar afaculdade. - Resolvi, eu mesmo, por conta própria, suspender o medi-
- E depois: o que você vai abandonar, para ter certeza de que camento. Estudei a respeito e sei como posso suspender. Além do
não será contaminado? mais, semana que vem é meu aniversário. Quero beber à vontade.
- Você tem que concordar que, na minha profissão, a chance Mais uma novidade, terminei com minha namorada. Ela esta-
é sempre maior. va me cobrando demais, muito nova, virgem e eu quero transar.
- Sem dúvida, mas na vida sempre há chances. Estou me sentindo bem melhor, percebo quando dou furo e meus
E assim prosseguiram os encontros. Otávio deixava cada amigos já me entendem. Estou arrumando garota à beça.
vez mais claro que a sua idéia central era a de controle, o qual O mundo sempre diz o que devemos temer, de modo que
acreditava poder manter, reduzindo-o a situações específicas. isso cria um estado de atenção e de alerta. Isso nos avisa sobre
O analista atuava de modo a trazer à tona a atmosfera de in- as situações acerca das quais devemos ter cuidado, cautela, pru-
determinação em que sempre nos encontramos e, assim, tirá- dência. A questão do transtorno é o descompasso entre o cui-
10 da restrição para um espaço de possíveis. E insistia que ele dado que a situação requer, de modo a permanecer em uma in-
poderia evitar algumas situações, mas não poderia escapar de segurança radical. O problema está em reduzir as possibilidades
si mesmo. E era em seu modo de se articular com o mundo, de tal modo que acreditemos que, assim, poderemos controlar
que residia toda a tentativa de controle das indeterminações e toda a situação que tememos. Há duas possibilidades em que

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podemos atuar frente à atmosfera do temor. A primeira consiste nho não suportava a indeterminação e a única forma de controlar
em reduzir tudo o que tememos a uma só situação, e, assim, o caráter de indeterminação que a situação sempre traz fez com
acreditar que, por se tratar apenas de uma situação, dela podere- que ele se resolvesse pelo asseguramento, destruindo toda e qual-
mos ter controle. A outra consiste em lidar de maneira corajosa, quer possibilidade que um dia Capitu lhe fosse infieL
apesar do medo. Parece que era essa coragem que começava a A decisão antecipadora depende da escuta à voz da consci-
aparecer em Otávio. ência, à voz da angústia, à voz própria ao caráter de indetermi-
Heidegger em Ser e tempo fala sobre as possibilidades que nação da existência. Essa voz, que não diz nada, clama para que
se abrem em meio à atmosfera do temor. Pela disposição do reconquistemos o ser que é sempre o ser de cada um de nós no
temor, que não se encontra reduzido a possibilidades restritas, seu horizonte finito. E é no ser-para-a-morte que encontramos
encontramo-nos em uma posição antecipadora da finitude, que o modo em que se estrutura a existência singular. E ao assumir
nasce da negatividade que se anuncia pelo temor. Heidegger, en- aquilo que diz respeito ao que lhe é mais próprio, Otávio entre-
tão, aponta para o fato de que é a partir do temor que nasce a gou-se à sua vulnerabilidade e desamparo, que, afinal, é a situa-
coragem, a decisão, na qual se retém o temível. E isso consiste ção em que sempre nos encontramos. Acreditamos que foi desse
em viver de maneira confiante apesar do temor. É preciso que modo que aconteceu com Otávio e, assim, ele poderá escapar da
tenha lugar a supressão da incapacidade de suportar a indeter- Casa Verde, lugar em que hoje nos encontramos com a utilização
minação. E essa pode se articular com o temor no âmbito do excessiva da medicalização.
ser-aí finito.
Com o guarda livros aconteceu de ele sucumbir frente a ape-
3.4. A tonalidade afetiva do tédio
nas um possível - ter um filho com a prostituta - e essa possibi-
lidade eliminou toda e qualquer outra possibilidade, exatamente "As tonalidades afetivas caracterizam-se, assim, em primei-
por revelar o fato de ele não poder suportar a existência no seu ro lugar, por determinar o modo de afinação da convivência"
âmbito de abertura, indefinição e incerteza. No desespero da pos- (CASANOVA, 2006, p.l l Z). Segundo Heidegger, por sua vez, o
sibilidade, esse rapaz desconhecia a lógica da necessidade, não tédio consiste na tonalidade afetiva fundamental do horizonte
desdobrando a lei do possível. Ele precisava buscar a determina- histórico em que nos encontramos. A tentativa de obscurecer,
ção do necessário pelo possível. Protasio (2009, p.139) refere-se aplacar o total desinteresse e esquecimento do ser consiste no
à situação do guarda-livros da seguinte forma: ela "aponta para a modo em que nós nos encontramos afinados na era da técnica.
doença do guarda-livros, sua restrição de sentidos, presente nos A situação clínica que apresentaremos abaixo aparece com
outros momentos de sua existência, uma existência que refletia uma expressão singular do modo como o homem atual compar-
a incapacidade de suportar o peso da possibilidade, da abertura tilha seu espaço de convivência. Na era da técnica ocorre que
que o constitui enquanto impossibilitado de não se responsabi- as orientações do mundo da técnica se dão de forma tal que ela
lizar" Bentinho, de Machado de Assis (2008), ao acompanhar a absorve radicalmente o homem. E, assim, ele acaba por automa-
saga de Otelo, diz em certo momento: "Hoje, eu tive certeza que tizar totalmente seus atos. O espaço de temporalização do exis-
Capitu me traiu" Por que não dizer o contrário: "Então, ela não tir do homem se estreita de modo que a sensação é de asfixia.
me traiu': ou ainda" Será que ela me traiu mesmo?': Mas Benti- O tempo, ao se afinar com o tempo do mundo, constitui-se de

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um modo acelerado, nunca pára e nem diminui a velocidade. impede que o fenômeno apareça. É importante a escuta, o acom-
Esse mover-se incessante sem sair do lugar remete-nos ao deses- panhar daquilo que acontece na dinâmica da situação clínica.
pero dos possíveis por carência de necessários, tal como descrito O analista quer deixar vir o incomodo, a tensão. A escolha da-
por Kierkegaard (1849/2008). Esse filósofo diz que tal homem quilo que o analista traz como questão se dá atendo-se àquilo
gira em torno de um único ponto, sem jamais experimentar urna que lhe chega e faz sentido, sem que nada seja interpretado. O
mudança de lugar. Sem necessários, o homem da era da técnica clínico poderia buscar a falta de vontade, as justificativas, o não
perde totalmente o interesse por si mesmo e se perde na poeira ter que cumprir as obrigações. No entanto, ele optou por perma-
dos possíveis. Para não se dar conta desse seu destino, ele tenta necer na fuga. De que fugia? Da opinião dos outros? O diálogo
o quanto pode ter com que se distrair. Kierkegaard e Heidegger também não se dá de modo natural, como se daria qualquer
referem-se à distração de todos os tipos, seja pelo excesso de di- outro diálogo. O analista mantém a temática trazida pelo anali-
versão, seja pelo excesso de trabalho. Com isto, a distração trans- sando em discussão. É este interesse que permeia este diálogo.
forma-se no modo de não permitir que o tédio venha e diga, Pedro responde: Na verdade estou. Não sinto vontade de fazer
afinal, o que está acontecendo. Porém, é justamente ao deixar nada. Mas não vai dar para fugir sempre, e daqui a pouco as
que o tédio venha, e do mesmo modo que Bartleby expressa o pessoas vão descobrir, desconfiar. O analista, então, apenas con-
seu "prefiro não fazer': é que surge uma categoria de diagnós- clui aquilo que o analisando falou no primeiro e no segundo
tico como o de "depressão. E a depressão, ao ser tomada como momento: desconfiar que você está fugindo. Pedro, então, pára
doença, retira totalmente a possibilidade de que aquele que se de falar, atém-se ao pensar e reinicia: É, estou sempre arruman-
encontra nas vias de rompimento com a cadência do mundo, do uma desculpa. Ou digo que a tarefa é fácil e que um aprendiz
se confronte com tal experiência. E, por meio de medicação e pode fazê-Ia. Ou arranjo um motivo para me afastar na hora de
de estratégias clínicas, as formas clínicas de lidar com a depres- executar o trabalho. (Pára, silêncio) Mas acabo não fazendo. A
são remetem esse homem ao lugar da ação e da produtividade. vontade que tenho é de não fazer tarefa alguma. O analista ape-
Assim nos deparamos com Pedro, nosso analisando. nas conclui: Enfim, Você acaba arranjando um jeito para não
fazer a tarefa.
Pedro: Sempre faço isso, mas todos vão acabar descobrindo.
3.4.1. A clínica psicológica em uma atmosfera do temor Analista: E é isso que você teme: que os outros acabem sabendo.
Logo no primeiro encontro, Pedro comunica seu diagnósti- Heidegger aponta ontologicamente para o temor como
co. Diz: Ando muito deprimido, não tenho vontade de fazer nada, disposição e diz que, para se chegar à disposição, deve-se ques-
já tirei licença no trabalho, agora já voltei e sempre estou dando tionar o que se teme, para que se teme e como se teme (Heideg-
uma desculpa, me justificando para não ter que cumprir com mi- ger, 1927/1989). Para este filósofo, no final das contas, o que se
nhas obrigações. Daqui a pouco vão perceber que estou fugindo. teme é algo que pode acabar por destruir a coisa que suposta-
O analista tenta manter a questão e pergunta: E estáfugindo? mente somos.
Neste momento, o importante é manter o foco de interesse Pedro: Claro, evidente, eles vão pensar que sou um fracasso,
voltado para aquilo que o cliente diz, sem se importar com o que fracassei.
diagnóstico. Esse diagnóstico, caso seja tomado como referência, Analista: E você também pensa que é um fracassado?

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Pedro: Eu sou um fracassado e me sinto frustrado por isso. você me acha complicado, sabe? Aqueles casos perdidos, que não
Eu sou minha grande frustração. Aliás, sempre fracassei, as con- têm mais jeito. Como médico, acontece quando já sabemos que
quistas na minha vida foram por sorte, acaso, pura sorte. Sempre não tem mais jeito, nem cirurgia, nem medicamentos. Nada vai
medíocre como aluno. Na escola, fui sempre medíocre, dava para adiantar ..Mas continuamos a dar esperança.
aprovar e pronto, nunca me esforcei, nunca fui de estudar. Estava Analista: Você fica preocupado com qualquer coisa que eu
sempre com muita preguiça. Acomodado foi o que sempre fui. Até pense a seu respeito e que lhe desvalorize ou lhe coloque em posição
quando passei para a faculdade [oi pura sorte, tanto que entrei de inferioridade, como um coitado.
só porque houve reclassificação. Não tinha estudado o suficiente, Pedro: Detesto que me chamem de coitado. É isto que pre-
aliás não estudei nada. Essa é a verdade. Até durante o vestibular tendo evitar e é por isso que não conto minhas fragilidades para
me acomodei. Tinha preguiça de estudar. Fiz o curso de medicina ninguém. No hospital, ninguém sabe da minha hérnia por isso.
sempre deixando a desejar. Perdi algumas disciplinas durante o Não quero que me olhem e pensem: 'coitado'. Não quero que me
curso, deixei de aprender muita coisa na hora certa, fui ficando vejam como sendo menos, sem valor, inútil, fragilizado. Assim, já
para trás. Disfarçava bem, não deixei que ninguém soubesse que, entro na vida profissional em desvantagem.
na verdade, eu não sabia nada. Analista: E aqui você também não se sente à vontade para
Analista: E agora você tem medo de ser descoberto por não dizer o que lhe aconteceu, porque eu posso lhe ver como alguém
conseguir disfarçar mais. menor.
No próximo encontro, Pedro entra na sala, senta-se no mes- É importante ressaltar que o analista não ficou curioso para
mo lugar que anteriormente havia trocado por sentir mais dor. saber o que aconteceu. Isto era apenas um fato. Tornou-se mais
Apresentava-se com uma fisionomia mais descontraída. Inicia a imperioso trabalhar o modo como o analisando revelava a sua
sua fala: Não sei como te falar. Aconteceu uma coisa em minha dificuldade de mostrar-se ao outro e como isto acontecia em ou-
vida que [oi diferente de tudo que já tinha me acontecido, mas tras relações de sua vida.
acho que você não iria entender. Pedro: Vou contar (silêncio breve e interrompo).
Analista: Você está preocupado com o que eu posso pensar Analista: E o medo do que eu possa pensar de você?
de você? Pedro: Vou arriscar. Estou aqui para isto. Tenho que falar
Pedro: É, você pode achar que é bobagem. Não acreditar. Mas minhas coisas. ( silêncio) É difícil. Acho que você não me desquali-
[oi importante para mim. ficaria, pensaria outra coisa.
Analista: Você receia que eu avalie como de pouco valor algo Analista: Por isto, fica tranqüilo frente ao que eu pudesse
que [o! valioso para você. pensar.
Pedro: É, é isso. Você pode achar medíocre. Pedro: Não, estou me sentindo em paz. Não quero ficar me
Analista: E você tem medo que, me contando, eu vá criticar incomodando com as coisas pequenas, menores.
você. Teme o meu olhar, como teme o olhar daqueles que traba- . A comunicação de Pedro aparece de forma ambígua: im-
lham com você. porta-me e não me importa ao mesmo tempo. O analista prefe-
Pedro: Hoje, agora, nem temo o olhar do pessoal lá do rnes- riu, neste momento, não trabalhar a ambigüidade. Às vezes insis-
trado, mas com o seu fico preocupado. Já fico até pensando que tir no tema de modo muito direto, ao invés de facilitar, dificulta,

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pois aquele que vive na ilusão poderá criar maior resistência na Pedro: É, como eu já lhe disse, é difícil confiar nos profissionais
relação analista-analisando. de saúde. Vivo no meio deles e conheço muito bem o que acontece.
Analista: Mais especificamente, o que aconteceria se você Analista: E o que acontece?
me contasse? Pedro: Irresponsabilidade, descompromisso, desconhecimen-
Pedro: Não tenho coragem de contar. É vergonhoso. to, incompetência. Na mão da maioria desses profissionais se cor-
Analista: E outra vez você fica preocupado com a imagem re risco.
que eu vou fazer de você? Analista: E parece que você luta para que os outros não te
Pedro: É porque você nem imagina do que eu era capaz. coloquem no rol desses profissionais.
Analista: E se eu souber do que você era capaz, o que pode É importante observar que o psicoterapeuta não tentou ame-
acontecer? nizar a inquietação de Pedro. Não disse em momento nenhum
Pedro: Não sei. Não vou contar. Sei que hoje não faria. Achei que a aprovação no vestibular já mostrava a sua competência. Que
bonito, honesto, humano as pessoas que fazem, se doam para o ele se desvalorizava ou exigia demais de si. Se fizesse isto, estaria
outro. Quero me doar ao outro também. Sei que vou fazer isto. tentando apaziguar, amenizar a tensão, o temor, a dor. Pedro refe-
Sartre (1997) refere-se à importância do olhar do outro no ria-se ao quanto não estava acompanhando a cadência do mundo,
modo como a existência se constitui, pois é esse olhar que tem o po- que no horizonte da técnica não se abre espaço para o ócio, para a
der de tornar aquele que é visto em um em-si, situação que a todo preguiça, para a improdutividade. E quando esses comportamen-
momento se esvai, mas que o olhar do outro traz de novo. Parecia tos acontecem, rapidamente, são categorizados e inseridos em um
que era isso que Pedra queria evitar,tanto com relação ao meu olhar, contexto de doença ou desadaptação. Pedro insistia em atribuir
quanto ao dos outros. Este tema permaneceu até o final da sessão. ao seu comportamento uma identidade, acreditando que, dessa
Chegamos ao quarto encontro e Pedro inicia: Vim agora pra forma, poderia encontrar um profissional que o faria retomar ao
cá pensando: não tenho nada para falar. Gostaria que você me ritmo do mundo. Em um horizonte técnico, o especialista é aquele
dissesse alguma coisa. que, com suas intervenções também técnicas, leva aquele que o
Analista: Alguma coisa sobre o quê? procura a deixar, o mais rápido possível, de sofrer.
Pedro: Sobre mim.
Analista: Sobre o que eu penso de você?
3.4.2. As posições de não-liberdade
Pedro: É. Como psicóloga.
Analista: Quer saber se você é daqueles clientes difíceis como O analista tenta sustentar a atmosfera de tensão e tristeza
você disse, desses que a gente vai levando, mas que não há nada em que Pedro se encontrava. Ele, no entanto, assume uma posi-
afazer? ção psicológica de não-liberdade, dizendo que outras situações
Pedro: (Ri) Às vezes temo que isto seja verdade. Já passei por independentes de sua vontade o conduziram à situação em que
outros dois psicólogos efiquei na mesma. se encontrava:
Analista: Já passou por vários ortopedistas eficou na mesma, Pedro: (Fica em silêncio por alguns segundos) retoma: É.
por vários psiquiatras eficou no mesmo, por vários fisioterapeutas Agora está mais difícil. (Silêncio) Para tentar recuperar o tempo
e o mesmo aconteceu. perdido, acreditar mais em mim, resolvi concorrer ao mestrado em

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cirurgia. Passei, estou lá no Fundão. A princípio valeu a pena. Fi- Pedro: Muito. E agora tenho que sair dela. Não quero assumir
quei bem, pensei que agora teria um recomeço e recuperaria toda um fracasso. Eu sempre quis ser um cirurgião. Esse foi sempre o
a falta de estudo anterior. Só que eu repito tudo outra vez, a parte meu sonho. E agora me sinto infeliz, fracassado por não realizá-to.
teórica deu até para levar bem. Mas agora, na verdade, não quero Kierkegaard refere-se a este modo de existir como lamen-
fazer nada. Nunca tive habilidade manual. Lembro de uma cirur- tação pelas possibilidades que se deixa para trás. Pedro fez al-
gia que fiz na residência e [oi muito ruim. Não dava para ter sido gumas escolhas e abandonou outras, mas lamenta pelas não
pior. Cirurgião já nasce feito. Ou você tem o dom, ou ... Não dá escolhidas. Pedro escolhia não arriscar-se, não expor-se nas ci-
para ser cirurgião sem ter dom. rurgias, mas lamentava não se tornar um cirurgião. Queria não
Analista: E você não tem o dom. Portanto, será difícil tornar- ter nada do que se arrepender, mas também parecia que nada
se um cirurgião. queria fazer.
Pedro: É (silêncio). Eu tentei, mas não consegui. Quando era Analista: E o medo, a acomodação, fazem neste momento
apenas um acadêmico, poderia ter treinado. i\1e acomodei, não apren- você se assumir como fracassado.
di no momento certo, deixei passar, agora é tarde, não dá mais. Aqui o analista tenta devolver a Pedro a responsabilidade
Pedro lamenta o que deixou para trás no passado e, com pela tutela de sua vida. E, novamente, ele justifica na interiorida-
isto, justifica a sua não liberdade. Não é livre para projetar um de a sua escolha: Não, não é isso, é o dom. Se não tiver dom não
futuro ou realizar um presente, já que o passado não se deu de adianta. E eu não tenho. Não tenho habilidade manual. Assim não
modo a permitir o presente e o futuro que ele diz desejar. Kierke- dá para ser cirurgião. Tem que nascer. Técnica só não adianta. É,
gaard (2010) assim se posiciona com relação à liberdade e Feijoo também é tarde. Eu já tinha que ter exercitado no momento certo,
(2000) refere-se a esse modo de justificar-se característico de po- quando era estudante. Aí sim cabia aprender, era o momento cer-
sições psicológicas da liberdade diante da escolha. Pedro parecia to. Fui deixando o tempo passar e agora não dá.
decidir-se pela não-liberdade e, assim, referir-se a um passado O analista, na tentativa de manter o tema em questão de
que estreitava suas possibilidades. Na tentativa de tentar devol- modo que o analisando pudesse desfazer os aglomerados, per-
ver-lhe a tutela pelas suas decisões, o analista lhe diz: Parece que gunta: Como deixou o tempo passar?
novamente surgiu em você um modo preguiçoso e acomodado de Pedro: Não estudei, não me dediquei. E agora estou depri-
lidar com as suas tarefas. E Pedro, prontamente, responde: Não, mido. Já [ui a vários psiquiatras, não confio. Agora estou tomando
não foi só isso. Logo que iniciei as cirurgias, fiquei muito nervoso. EUFOR 20mg, um comprimido pela manhã, e VALIUM 10mg, um
Trancado na sala, sem poder sair de lá, sentindo um mal estar ter- comprimido pela manhã; mas acho que esta dosagem está errada.
rível. Suava muito, tentei disfarçar, mas parecia que seria impossí- Há um mês e não vejo nenhum resultado. Estou pensando eu mes-
vel chegar até o final. Eu pensei, teve uma hora que eu achei que o mo em aumentar a dosagem. Não quero voltar ao psiquiatra. Tam-
médico que estava do meu lado tinha percebido. Me mantive firme bém tem o problema da coluna, me desanima, me paralisa. Como
e agüentei até ofinal. Aí, então, ficou impossível eu mesmo fazer a vou ficar horas afio na cirurgia, sentindo tanta d01: Já [ui a vários
cirurgia. Por isso sempre arrumo um jeito de fugir da situação. ortopedistas. Todos insistem em afirmar que o meu problema não
Analista: Imagino que esta situação tenha sido muito difícil provocaria tantas seqüelas. Já procurei os melhores especialistas.
para você. Não confio. Agora vou em um muito bem indicado.

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Outra vez Pedro assume a posição psicológica de não-li- tanto. Não pude fazer nada. Eu trabalhava muito e não sobrava
berdade. Ele justifica-se no somático, aprisiona-se no necessário. tempo para a minha esposa. Queria ficar bem de vida. Para isso, ti-
Para ele, não há possíveis. O analista atua de modo a parecer nha que ganhar muito dinheiro, queria dar conforto para a minha
compartilhar da ilusão de Pedro, mas na verdade tenta nova- família. Sabe, ambição. Acho que não via as coisas que estavam
mente mobilizá-Ia no sentido devolver-lhe o seu cuidado: Você acontecendo (chora). A minha esposa morreu (chora). Não pude
está me dizendo que os seus problemas de saúde comprometem a fazer nada. Não percebi nada. Quando vi, já tinha acontecido. É o
sua vida profissional. pior que pode acontecer a um homem. Pronto contei. Sei que tinha
Pedro: É, é muito difíciI. Eu acho que, se não fosse a coluna, que te contar isto. É difícil falar nisto.
eu conseguiria. O analista acompanhou o relato e a emoção de Pedro, dei-
Analista: Você não concorda com o que dizem os especialistas? xando que ele ficasse livre para expressar toda a sua dor, sua
Pedra: Eu sou do meio e sei que não se pode confiar. Os mé- fragilidade. Ao se calar por algum tempo e depois que ele tinha
dicos, na maioria, não estão devidamente preparados. Ofato é que parado de chorar, retomou: É difícil para você lembrar a dor de
não sei como vou fazer para sair da cirurgia. Qual a justificativa perder sua esposa. Pretendia aqui permanecer em contato com
que eu vou dar. Um lugar que todos querem, eu consigo e abando- sua dor, a fim de que Pedro pudesse demorar-se naquilo que ele
no. Ninguém vai entender nada. mesmo dissera que era tão difícil expressar: Muito (chora). Dói
Nesse encontro, parece que Pedra não entra em contato muito. No enterro me senti um nada e vi que muita coisa que até
com aquilo que realmente o mobiliza e inquieta, prefere sempre então tinha importância deixou de ter.
justificar o porquê do não fazer. Terminada a sessão, combinou- a
Analista: Ali, frente morte, você se sentiu impotente.
se a próxima sessão que se daria após uma semana. Pedro: Impotente é a palavra, foi o que senti. Mesmo sendo
médico, não fiz e não podia fazer nada. Eu nunca faço nada.
Analista: E agora continua a sentir medo. Mesmo sendo mé-
3.4.3. O clamor da angústia
dico, não pode evitar que nenhum dos seus morram.
Pedro chegou antes da hora marcada e ficou aguardando na Pedro: É, isso é o que dói. Eu não quis mais casar, muito me-
sala de espera. Iniciamos a sessão na hora que havíamos acerta- nos terfilhos. Eu amei muito a minha esposa, e também tenho mui-
do. O analista convidou-o a entrar e Pedro não conseguia manter to medo de deixar isso acontecer outra vez. Eu não agüentaria isto.
seu olhar, desviava-o e parecia caminhar meio desajeitado. Sua Analista: "E você também tem medo de sucumbir, não
postura foi interpretada pelo analista como uma mistura de des- agüentar".
confiança, desconforto e inadequação. O psicoterapeuta tentou Pedro: Depois disto, eu nunca mais [ui o mesmo. Comecei a
deixá-lo mais à vontade, perguntando coisas do dia-a-dia. Sen- ficar desanimado para trabalhar, para estudar, nada mais tem tan-
taram e Pedra fitou-a por um instante e pôs-se a falar: Há umas ta graça. Meu casamento era bom. Gostava deficar na minha casa
coisas que tenho de tefalar. São coisas duras para mim. (crispa as com minha mulher e minha filha e de não ter que fazer nada.
mãos, passa-as no rosto, olha-me firmemente e continua) É difí- Este trecho mostra a perplexidade de Pedra frente à mor-
cil admitir. Bom ...Tenho quefalar. Foi a experiência mais dolorosa te de sua esposa. Pode-se perguntar: como um médico que lida
de minha vida, a mais terrível que já me aconteceu. Nunca sofri tanto com o morrer pode se surpreender tanto com a morte?

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Como médico, Pedro lidava com a morte do outro e não com Ele não morreria, nem os seus, mesmo porque ele era médico.
a sua própria morte nem com a dos seus. Leon Tolstoi (1997, Agora, os outros sim, estes morriam. No entanto, com a morte de
p. 6) descreve muito detalhadamente, em A morte de Ivan Ili- sua esposa, ele constatara que a morte era também para si e para
tch, o modo impessoal em que comum ente se vive a morte do os seus. E, com isto, o sentimento de vulnerabilidade invadira-o
outro. Alieksiéiev e os outros, ao receberem a notícia da morte e, com este, o desespero.
de Ivan, pensavam apenas em suas promoções. Pensou Vassílie- Pedro: Não sei, acho que não tenho mais vontade de trabalhar.
vitch (1997, p.S): "Isto já me foi prometido há muito tempo, e Analista: Você disse que, antes da morte de tua esposa, você
esta promoção significa um aumento de oitocentos rublos, além era diferente, trabalhava muito e era incansável.
da chancelaria:' Ainda neste diálogo, todos no velório tagarelam Pedro: Era. O que dificulta hoje é a hérnia de disco. Sinto
acerca do cotidiano. A única coisa que não se faz é refletir sobre muita dor. Agora mesmo estou aqui e não tenho posição. Posso
a própria morte. Parece que dá mais alívio deixar parecer que só mudar de cadeira?
o outro morre. Tolstoi deixa claro tal modo de vivenciar a morte Pedro troca de cadeira, a psicoterapeuta pergunta se ele se
do outro, no seguinte trecho ( 1997, p.S): "Além das considera- sente melhor e continua: Essa dor atrapalha, já não consigoficar
ções suscitadas em cada um por esta morte, sobre transferências tantas horas no consultório, não tenho posição. Dá muito incômo-
e possíveis alterações no serviço, o próprio fato da morte de um do. Na cirurgia é quase impossível. Isto também me dá um medo,
conhecido tão próximo despertou como de costume, em cada não queria ser um médico de consultório. Já até pensei em ir para o
um que teve dela conhecimento, um sentimento de alegria pelo interior. Mas também não me agrada ser só um médico de interior.
fato de que morrera um outro e não ele." Teria uma vida mais tranqüila.
No diálogo de Piotr Ivánovitch com a esposa de Ivan Ilicht, No encontro seguinte, Pedro inicia: Hoje, eu gostaria que
Piotr se dá conta de que aquilo que acontece ao outro pode lhe você me falasse o que você viu em mim. Não é um diagnóstico, eu
acontecer também e pensa (1997, p.l O) : "Três dias de sofrimentos sei que não é o caso. Sinto-me deprimido, mas sei também que não
terríveis, depois a morte. Bem que isto pode vir para mim tam- é isto. Sei também que não é desta forma que a psicoterapia funcio-
bém, agora, a qualquer momento: pensou e assustou-se por um na, mas preciso saber. Se você não puder dizer nada a respeito,pois
instante. Mas imediatamente, ele mesmo não sabia como, acu- é assim que deve acontecer à psicoterapia, à psicanálise, não tem
diu em seu auxílio a idéia costumeira de que aquilo sucedera a problema. Não sei, também não sei a diferença, sem problemas.
Ivan Ilitch e não a ele E continua a tagarelar sobre os pormenores Permanece por algum tempo em silêncio e retoma:
acerca da morte de Ilicht. O reconhecimento da própria morte - Mesmo sendo médico e lidando o tempo todo com a morte
e a perplexidade dessa constatação é ilustrada por Tostoi (1997, dos outros, foi quando a minha esposa morreu que eu entrei pela
p.68): "Meu Deus, meu Deus! Disse ele: De novo, de novo, e nun- primeira vez em contato com a morte. A morte dela me abalou
ca há de parar. E, de repente, o caso apresentou-se-lhe por uma muito. Muito, principalmente porque tive que fazer o reconheci-
face completamente oposta. O ceco!, o rim, disse a si mesmo. O mento do corpo. Vi que minha família também morria, mesmo
caso não está no ceco, nem no rim, disse a si mesmo, mas na vida jovem também morríamos. Aquele monte de corpos, fazer o re-
e... na morte. Sim, a vida existiu, mas eis que está indo embora, e conhecimento do corpo. E ela era um daqueles mortos. Foi uma
eu não posso detê-Ia" Parece que era isto que acontecera a Pedro. sensação muito ruim. Foi o pior que já me aconteceu. Depois veio

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o problema do meu primo. Meu primo é muito bem sucedido pro- tidianidade. Ao modo do falatório, onde dizemos: "Morremos
fissionalmente. Tem uma família perfeita. Estabilidade financeira, algum dia, mas agora não:' O ser-aí cotidiano não se mostra em
um empresário reconhecido. .!vIashá algum tempo, ele sentiu-se sua apropriação, mas na sua alienação, escapando daquilo que
mal, teve um mal estar repentino. A princípio não se sabia o que lhe é mais próprio.
estava acontecendo, uma indisposição indefinida. Fez todos os No existir, o ser-aí já se encontra lançado na possibilida-
exames e, lá pelas tantas, foi dado o diagnóstico de que ele era de de, a qualquer momento, morrer. Ser-para-o-fim constitui-
portador do vírus HI\!. Ele não contou para ninguém, não queria se como o poder-ser mais próprio. Diz Heidegger (1989, p.32):
que ninguém da família soubesse. Pediu para que eu fosse con- "A morte é, em última instância, a possibilidade da impossibili-
versar com ele e contou o que estava acontecendo e pediu que eu dade absoluta do ser-aí" Na decadência, o ser-aí foge de seu po-
não contasse para ninguém em hipótese alguma. Era um segredo der-ser mais próprio, encobrindo para si mesmo o seu caráter de
que deveria ficar só com nós dois. Este fOi outro momento muito finitude. O ser-junto-a em decadência foge da estranheza do ser-
difícil, não podendo compartilhar isto com ninguém e ainda fingir para-a-morte. Este modo de ser caracteriza-se pela alienação e
que nada estava acontecendo. Ele, então, fez um segundo teste e o tranqüilidade no seu existir. No modo da decadência, o ser-para-
diagnóstico [oi confirmado. Saiu do hospital,jo ipara casa. Hoje ele a-morte mostra-se não reconhecendo a morte. Na impessoali-
está bem, portador do vírus, mas sem a doença. Mas o sofrimento dade, a explicação do ser-para-a-morte cotidiano detém-se na
daquele momento não se apagou, o medo da perda ficou. Percebi curiosidade, na ambigüidade, traduzidas no falatório impessoal:
que nós dois também éramos vulneráveis. O pior era que eu era "algum dia se morre, mas por ora não': Com o "mas", o impesso-
ausente, passava o dia trabalhando, 12 a 14 horas por dia. Achava al retira a certeza da morte. Compreendendo-se a morte com o
que, para a minha mulher, o melhor era a estabilidade financeira dizer "é certo que a morte vem"; fala-se na curiosidade, impes-
e daí não vivi tudo que podia. Foi o pior porque ela era muito soalmente: "a morte" e não a sua própria morte. Desta forma, se
importante para mim. Foi o pior porque eu sei que todos os meus está na não-verdade, encobrindo a possibilidade mais própria do
também podem morrer. ser: a sua finitude. O ser-para-a-morte impróprio vive na não-
Analista: E agora parece doer muito saber que o que acontece verdade, escapando sob a maneira da de-cadência, do cotidiano,
aos outros acontece com você também. do impessoal da sua possibilidade mais própria. Pedro lidava a
Pedra fica em silêncio e chora: todo o tempo com a morte, porém com a morte do outra, com a
- Sei que não sou nada de especial, não sou diferente de nin- sua não, nem a dos seus familiares. Era de modo impróprio que
guém. Sinto medo de errar. Como médico, como pessoa. Pedra se relacionava na maior parte do tempo com a finitude.
Analista: Ok, Pedra, terminamos a sessão. Agora, esse analisando antecipava a sua finitude como possibili-
Pedra: Poi muito bom hoje. Não sabia que a psicoterapia era dade sempre aberta, possibilidade mais própria, que em si mes-
assim. Palar de coisas passadas, mas que são tão atuais, tão pre- ma é excludente das outras, possibilidade solitária e insuperável.
sentes em mim. Dói, mas também alivia. Não se tratava mais de reconhecer-se como poder-ser, correndo
Pedra era formado em medicina. Portanto, a morte era algo o perigo de morrer, mas sabia que o poder-ser é o próprio mor-
com que há muito vinha convivendo de muito perto. Parece, no rer. Portanto, no poder-ser já reside a todo o momento a am a a
entanto, que a morte existia para Pedra ao modo de ser da co- da finitude.

186 187
Pedra existia na maioria das vezes na ignorância da sua fi- sentado, parecia não querer sair. Levantou-se e reafirmou o ho-
nitude. No entanto, essa ignorância é uma modalidade do existir rário da próxima semana.
para a morte, uma fuga que já testemunha que o Dasein morre, e
morre na medida em que existe, mas no modo da fuga, do decai-
mento, da não-verdade. Fugir da morte é um modo de reconhe- 3.4.4. O tédio como tonalidade afetiva fundamental
cê-Ia. Pedro fugia dessa situação de diferentes modos: trabalho No encontro seguinte, Pedro inicia retomando a temática
exaustivo, identificando-se a si mesmo e a seus familiares como de desqualíficação dos profissionais da saúde:
especiais, se auto-depreciando. O problema é que tudo tinha - Não quero mesmo, não quero pertencer a esta classe de pro-
falhado. Ele perguntava-se se a vida valia a pena, já que o ho- fissionais. Já te disse, prefiro não fazer nada. Você sabe que o que
rizonte finito de suas possibilidades destruiria inexoravelmente eu quero é fazer um trabalho digno como médico. Não quero ser
suas ilusões e sentidos pelos quais se mantinha valorosa a labuta perfeito, nem o melhor de todos. Quero fazer bem aquilo que me
incessante do seu dia-a-dia. Diz Heidegger: "A ocultação não é proponho a fazer. É só isto. Às vezes, porém, parece que é impos-
a antítese de uma consciência, ela pertence à clareira" (2001, p. sível para mim, acontece sempre um desinteresse. Eu não estudo
194). Esconder é uma maneira especial de ser aclarado. Os acon- o necessário. Ou melhor, não estudo nada. Se eu conseguisse pelo
tecimentos da vida de Pedro levaram-no a não poder continuar menos estudar duas horas por dia. Isto me faria sentir melhor.
ocultando. A morte mostrou-se, foi aclarada, não deu mais para Mais digno, mas o que eu gostaria era poder ser um médico capaz
tomá-la apenas no impessoal, no impróprio. Ele permanecia de fazer aquilo a que se propõe. E eu não faço um mínimo, não
frente a frente com a possibilidade mais própria, ele já não podia gosto, não quero. Eu deixo a preguiça me vencer. Eu me deixo le-
nem mesmo adiá-Ia para a velhice, nem para os outros. var. Eu não tenho ânimo. Falta vontade, determinação. E isto não
Pedro queixava-se de depressão. No entanto, o que clamava é de agora, sempre fui assim. Dava para levar porque erafácil, mas
por Pedro levou-o ao campo de uma decisão antecipadora da cada vez vai ficando mais difícil.
morte, de uma Vorlaufen zum Tode. A antecipação desta imi- Analista: Falta de vontade, de determinação de ser identifica-
nência consiste em manter essa possibilidade. A possibilidade de do como um mau profissional ...
morrer nunca se materializa. A morte não é o instante da mor- Pedro: Só me resta estudar e me sentir um profissional capaz.
te, senão o remeter-se ao possível pela sua qualidade de possível Dedicação de verdade.
- essa possibilidade única de se remeter ao possível constitui o Analista: Mas como?
existir para a morte. A morte como possibilidade não oferece ao Pedro: Duas horas por dia, não é nada, mas já seria um
ser-aí nada a realizar, nem a efetivar. A relação própria do ho- começo.
mem com a morte abre o espaço para que ele se conquiste na sua Pedro fugia da inquietação, do desconforto pela realização,
totalidade. E o que constitui a totalidade do ser-aí, por sua vez, no imaginário. Falava de duas horas por dia de estudo, mas i l
é o reconhecimento do ainda-não. Existir na verdade consiste realmente se concretizaria ou não sairia do projeto?
em se manter na antecipação. Antecipando o futuro próprio e Analista: Planejar é fácil, a questão é realizar o imagtund«
singular, o existente se mostra como seu futuro que se volta sobre É fácil pensar: Vou estudar duas horas por dia. A que tão ( ~(I P(l1 (
seu passado e seu presente. Terminada a sessão, Pedro continuou consegue realmente estudar duas horas por dia.

188
Pedro: E menos de duas é melhor então nem estudar. me preparando, estudando. Mas o que acontece é que fico adiando e
Analista: Talvez nem duas, nem menos de duas seja possível deixo tudo para cima da hora. Faço tudo na última hora.
para você. Analista: Vocêpreferia não trabalhar, não ter que ir.
Pedro: Mais tem que ser. Pedro: Eu, sem dúvida, euficaria mais ti vontade. Mas tenho
Analista: Tem que ser como? que ir. É também preguiça. Sou preguiçoso. A preguiça é algo que
Pedro: Tenho que me esforçar. Se eu me esforçar, eu consigo. me acompanha. Queria fazer medicina, mas já naquela época ti-
Analista: Consegue com esforço, mas esforçar-se é tua princi- nha preguiça de estudar. Foi acontecendo, porque o segundo grau
pal dificuldade. é fácil, o vestibular um pouco mais difícil, mas deu para passar.
Pedro: É, você tem razão. Eu já te disse isto. Mas eu vou con- Durante o curso dava para enrolar. Prejuízo meu. Não estudei na
seguir, não vejo outra saída. época certa e agora tenho vergonha de dizer que não sei. Quando
Analista: Saída para quê? não sei,fico calado,finjo que sei. Dava até para superar se chegasse
Pedro: Para eu me sentir melhor, mais capaz, mais digno. em casa e estudasse. Eu superaria, assim, aquilo que não sabia,
Fazer jus àquilo a que me proponho. Afinal, aprendo com faci- mas não ofaço. Prefiro relaxar,ficar sem fazer nada, gosto do ócio.
lidade. Aliás, foi por isso que sempre tive sorte, porque dedica- E isto é mediocridade. Sou um médico medíocre. Mas é isso que eu
do nunca [ui. A preguiça me acompanha desde criança. Desde não quero ser.
o início da minha vida escolar, sempre fugi de ter de estudar. Analista: Hum, hum. Tem medo de se ver e ser visto como
Até no vestibular, mesmo querendo medicina. Praticamente não medíocre, mas na verdade é assim que você, na maioria das vezes,
estudei. Fazia o cursinho e pronto, deu para levar. Na faculdade se reconhece.
também dava umas enroladas e pronto. Também o desânimo não (Silêncio)
era tanto. Pedro: Não trabalhar seria uma saída .. Mas não é isso que
Analista: E agora, quando tentou o mestrado, também deu eu quero. Eu quero superar as minhas dificuldades. Por issopreciso
uma enrolada. cuidar dessa hérnia.
Pedro: Não, tinha uma boa proposta e sabia que seria aceita. Analista: Você está me dizendo que a saída seria, então, não
O resto era só uma prova. E ainda restava alguma vontade. Agora ter mais dor na coluna?
tenho que apresentar trabalho para os acadêmicos assistirem. Tenho Pedro: Melhoraria muito. Pelo menos resistiria mais na clíni-
que ensinar-lhes. Tenho que fazer cirurgias que também são assisti- ca e até mesmo na sala de cirurgia. Poderia trabalhar mais.
das não só pelos acadêmicos, mas também pelos professores. Não, é (Silêncio e continua) - Você acha que esseproblema na colu-
só uma provinha ou um projeto. Por exemplo, na semana que vem na é uma somatização?
teria que dar uma aula, mas, como tive que arrancar o dente, eu Analista: Os exames e os médicos constataram a existência
pude me justificar. Justifiquei afalta. Todos entenderam. Acho que é da hérnia?
atépor issoque estou melhor hoje. Semana que vem não vou precisar . Pedra: Constataram. Já [ui aos melhores especialistas. Todos
ir.Istojá me deixa aliviado. Mas sei que depois vêm as outras coisas. são unânimes em que há a hérnia. No entanto, também afirmam
A outra semana e eu não vou poder ter uma desculpa sempre. Tenho que a dor é desproporcional ti lesão. Eles dizem que, em casos como
mesmo é de enfrentar o problema. E a melhorforma de enfrentar é o meu, a dor não é tão intensa.

190 191
Analista: Mas você sente como sendo muito intensa, a ponto Pedra confrontava-se com o total desinteresse, traço cons-
da dor te paralisar. titutivo do aprofundamento do horizonte histórico onde predo-
Pedra: Sinto. É paralisante, dificulta o meu trabalho. mina a técnica. Parece que Pedra entediara-se profundamente
Analista: E quais foram às providências que você já tomou, e não mais conseguia distrair-se ou ocupar-se de modo a não
que tratamentos você já procurou? abrir um espaço para que o tédio se anunciasse. O tédio, como
Pedra: Fiz fisioterapia por recomendação médica. Senti me- tonalidade afetiva fundamental, promove a possíbílídade de que
lhoras, mas é caro. E sem trabalhar tanto não tenho condições de a desistência frente à exigência de produtividade Voraz se estabe-
manter o tratamento. leça. E de que, assim, possamos ouvir do ser o seu apelo. Cabia,
Analista: E sem tratamento não tem condições de se manter então, ao analista, no mínimo não abafar esse apelo, mas deixar
trabalhando. que ele clamasse silenciosamente, de modo que Pedra pudesse
Pedra: E, também, ofisioterapeuta recomendado pelo médi- dar voz àquilo pelo que apelava, clamava.
co em quem eu confio fica na Barra, muito longe de onde circulo. Analista: Agora, parece que desistir é o que mais faz sentido.
A distância torna as coisas difíceis. Pedra: Eu não estou bem, eu diria até que estou mais depri-
Analista: E as dificuldades também paralisam você. mido. Estou me sentindo anestesiado, parece que carrego um peso
Pedro: É real. enorme nas minhas costas.
, Analista: E como é seu dia-a-dia quando você se sente assim?
Analista: E a tua realidade torna difícil para você sair de
onde você se encontra. Pedra: Fico menos disposto ainda. É mais difícil, eu diria im-
Pedro: É. A acomodação, a preguiça outra vez. Também, hér- possível, participar dos seminários, das cirurgias. Aliás, hoje não
nia não tem solução. Nem tratamento, nem cirurgia, nada. participei de mais um. E nem me senti mal por isso, não fiquei
Analista: Parece, então, que a tua condição física já ditou a ansioso. Foi bom, não sei se amanhã continuarei da mesma forma,
tua sentença: permanecer para sempre onde você está. mas hoje não fazia sentido.
Pedra, então, avisa que terminou o nosso tempo. Nesse tre- Analista: Hoje você não ficou com medo pelo que os outros
cho, percebemos o quanto e o como Pedra tenta se desonerar do , poderiam falar a seu respeito?
cuidado que, no final das contas, sempre lhe compete. Ele justi- Pedra: Não estava nem aí para as outras pessoas. Também,
fica-se no somático, no passado desperdiçado, na acomodação e,
por fim, não assume aquilo que é o seu necessário.
I hoje parece que estou dando menos importância às coisas. Vem
acontecendo. Ontem, um professor, médico renomado, falava da
No encontro seguinte, Pedra inicia: importância de você criar um procedimento novo, daí ficar mais
- Não adianta, nada adianta, não agüento mais irpara o tra- fácil partir para publicações, ser convidado para congressos. Eu
balho. Não quero participar de nada. Sabe, não tem sentido, nada normalmente fico calado não me exponho, mas sem pensar, falei:
daquilo tem sentido. Fico o tempo todo olhando para o relógio, e 'E daí?' Saiu sem querer, acho que ele não gostou. Fiquei calado,
eu mesmo me pergunto por que ainda estou ali. Por que me falta não falei mais nada.
coragem para desistir. Já aumentei a dosagem do remédio e nada, Analista: Você não concorda com o tal professor?
parece que cada dia estou mais deprimido. Não vejo nenhum sen- Pedro: Não, a importância de um novo procedimento tu-
tido naquilo tudo. Não vejo sentido em nada. var mais vidas. Para quê? Quando participei do proc sso ('letivo,

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~_. -----
total e radical desistência, em que nem mesmo o olhar do outr
o professor que fez a seleção, na entrevista, me perguntou: 'Num
consistia em algo que o ligasse às determinações e obediência
hospital, qual é o elemento fundamental, a peça chave, o que tem
às prescrições do mundo, o que faria? Ele retomaria o ritmo do
maior importância?' Naquela hora, fiquei confuso, uma pergunta
mundo e novamente voltaria a trabalhar e beber compulsiva-
tão simples e eu não soube responder. Queria saber o que ele que-
mente? Ele continuaria com os antidepressivos e, assim, ame-
ria que eu respondesse. Queria falar aquilo que ele queria ouvir.
nizaria ou sufocaria o seu apelo? Ele desistiria de vez e morre-
Pensei, talvez o médico. Hoje, agora, eu responderia com a maior
ria de inanição? Não sabemos, o fato foi que Pedro nunca mais
tranqüilidade: nada é importante.
Pedro lembrava Bartleby de Hermam Merwil (1853/2008), compareceu à sessão.
sobre o qual já falamos antes, e também nos reportava a Ro-
quentin de Sartre (1938/1983). Para Pedro, Bartleby e Roquen-
tim, o mundo caíra em uma total indiferença, nada fazia mais
sentido. Parece que os três, uma vez tomados pela atmosfera do •
tédio, do total e radical desinteresse pelo mundo e por si mes-
mo, desistiram. Nessa desistência, porém, com a total suspensão
dos sentidos ditados pelo impessoal da era da técnica, abrem-se
outras possibilidades de descerrar mundo. Bartleby, ao ser to-
mado por essa atmosfera, ao suspender todos os sentidos, sem
mais nada querer fazer, em absoluto desinteresse e desânimo, no
seu "prefiro não fazer" que se irradia para toda e qualquer ativi-
dade, desiste também de comer e acaba morrendo por inanição.
Roquentim, ao suspender todos os sentidos e justificativas que
fundamentavam as razões pelas quais se existe, mobiliza-se com
a doçura com que pensava no Judeu e na Negra. Ele pensava
que eles se lavaram (não completamente) do pecado de existir
e diz (1983, p. 219-220): "Esta idéia revoluciona-me subitamen-
te, porque nem isso esperava. Sinto qualquer coisa que timida-
mente roça em mim e não ouso mexer-me, porque tenho medo
de afugentá-Ia. Qualquer coisa que já não me lembrava: uma
espécie de alegria': Ele descobre, afinal, o que faz sentido para
a sua singular e intransferível existência. Ele resolve escrever e
vê nessa atividade o sentido para existir, embora reflita: "Um
livro. É claro que, ao começo seria muito trabalho aborrecido e
fatigante; escrevê-lo não me impediria de existir, nem de sentir
que existo:' (1983, p.221). E Pedro, que agora se encontrava na

194
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Bem, chegamos ao fim e importa saber se conquistamos


aquilo a que nos propusemos no início. Sabemos que, quando o
início aparece, ele já demarca o espaço de realização possível da-
quilo que irá acontecer. Primeiramente, questionamo-nos sobre
o que nos permitiria falar em uma desconsideração da relação
primeira entre homem e mundo por parte da filosofia da subje-
tividade moderna, que acabou sendo incorporada pela psicolo-
gia? Vimos que a dicotomização foi radicalizada pelas filosofias
da subjetividade que, na tentativa de solucionar os problemas da
existência humana, precisavam conhecer e ter domínio daquilo
que se passava na sua interioridade. Descrevemos essa tentativa
tanto nas filosofias racionalistas, idealistas, como nos movimen-
tos românticos e iluministas. Logo em seguida, acompanhamos
essa mesma construção nas psicologias, surgindo, assim, as Psi-
cologias com ênfase em uma interioridade psíquica, com acento
na razão ou na emoção. E a resolução dos conflitos psíquicos
se daria na descoberta das intenções dessa interioridade. Nesses
casos, o mundo seria aquela instância que agiria como obstáculo
à liberação daquilo que era o mais natural, por não ter sofrido as
pressões do ambiente. A tarefa da Psicologia seria liberar o espa-
ço para que aquilo de mais autêntico pudesse ganhar expressão.
Sem' dúvida, então, a Psicologia inicia suas considerações teó-
ricas e práticas a partir da cisão sujeito e mundo. E, assim, des-
considera a relação que aparece antes de toda e qualquer cisão
homem e mundo, a que aqui denominamos de original.

1
197
Segue-se, então, uma segunda questão: o que pode nos ser- zio aparece. Vale ressaltar que toda transformação que se dá, seja
vir de base para uma superação dessa dicotomização homem e o processo clínico bem como o da existência em geral, não acon-
mundo, que instaurou de imediato um efeito fatídico da filosofia tece pela vontade do analista ou do próprio analisando. Há algo
moderna sobre a Psicologia? Foi então que buscamos na própria que desencadeia a atmosfera e, por mais que a crise aconteça por
filosofia uma via alternativa às modernas concepções da subjeti- meio do que acontece, há algo que realmente mobiliza a trans-
vidade. Encontramos primeiramente no proj eto fenomenológico formação que se encontra em um horizonte mais originário, que
de Husserl considerações acerca da constituição da consciência para Heidegger consiste nas tonalidades afetivas fundamentais.
em sua imanência, intencionalidade, portanto, rompendo com As situações clínicas aqui explicitadas trazem sempre à baila
a dicotomia sujeito e mundo. O projeto de Husserl ganha, por questões acerca das existências que se encontram em restrições
sua vez, uma radicalização na hermenêutica-fenomenológica de de sentido. Os filósofos da existência, cada um ao seu modo, de-
Heidegger e em suas considerações acerca do ser-aí (Dasein), fendem a tese de que a loucura encontra -se em sintonia de fundo
considerações que conduzem diretamente ao problema das to- com existências fechadas. Kierkegaard apresenta, como discuti-
nalidades afetivas fundamentais. Esses foram os elementos com mos anteriormente, a total restrição de possibilidades do guar-
os quais começamos a pensar em um projeto de uma Psicologia da-livros. Esse apenas contava com uma possibilidade, e, assim,
e, consequente, de clínica psicológica que, no esteio da fenome- acreditava permanecer no controle frente a qualquer outro pos-
nologia de Husser! e da hermenêutica heideggeriana, pudesse sível. Sartre recorre a contos, peças teatrais, entre outros escritos,
pensar em uma relação mais originária, prescindindo, assim, da para referir-se às existências enclausuradas. Heidegger mostra de
pressuposição de um psiquismo. Dessa forma, a Psicologia clíni- que modo as tonalidades afetivas fundamentais podem retirar
ca que aqui desenvolvemos não parte da relação sujeito e mundo, aquele que se encontra na total restrição de sentido e dispô-Ia
pois considera que esses são cooriginários, e toda clínica psicoló- para uma abertura de possibilidades. Antônio, Pedro, Paulo e
gica, aqui apresentada, acontece na consideração desse horizonte Otávio, cada um ao seu modo afetados pela atmosfera de nosso
em que homem e mundo se articulam mutuamente. tempo, encontravam-se em restrição, enclausurados, pobres em
A apresentação dos fragmentos de atendimentos clínicos possibilidades. Lessa (2010, p. 14) afirma sobre a loucura, enten-
permitiu que demarcássemos as possibilidades de uma clínica dida aqui como existência em restrição, o seguinte: ''A loucura,
em uma perspectiva fenomenológico-existencial. Clínica essa então, é uma possibilidade que todos os homens carregam em
que se estabelece muito mais em uma negatividade do que pro- sua existência. E pode ser compreendida como um modo de se
priamente em uma identidade positiva. O ser-aí que, marcado comportar de forma desarticulada do mundo compartilhado, re-
pela nadidade e pela fragilidade ontológica, busca a estabilida- velando a perda da possibilidade de seguir suas orientações:'
de do mundo, que se constitui em um apoio, um suporte e uma a tentativa de poder mostrar e prestar maiores esclareci-
tutela. Mas é exatamente essa busca que o coloca na cadência mentos às existências enclausuradas de nossos analisandos, re-
do mundo, esquecendo-se do seu próprio ritmo, e acaba obs- corremos à literatura, uma vez que essa nos liberta das verdad
curecendo o seu caráter de poder-ser. São as situações limites universais, na medida em que traz em seus escritos existência
que, ao entrarem na articulação do ser-aí e do mundo, rompem singulares. Por entendermos que em todo singular há o univ r aJ
com os sentidos sedimentados no círculo hermenêutico e o va- e no todo do mundo encontramos o singular, acreditamo que

198 199
os contos, romances e peças teatrais a que nos referimos aqui vrar-se da angústia, o ser-aí ou bem retoma a tutela do mundo
trazem elementos que podem enriquecer a nossa compreensão e volta àquilo que lhe é familiar, ou bem se concretiza no poder
daquilo que está em questão em todas essas existências. _ ser, singularizar-se implica perda, nem que seja por um instan-
Nas análises fenomenológicas dos discursos clínicos aqui te, da tutela do mundo. Nessa atmosfera de tensão, na tonalidade
apresentados, tentamos esclarecer de que modo as tensões, que afetiva fundamental da angústia, as prescrições do mundo são
aparecem nas declarações de Antônio, Pedro, Paulo e Otávio, não suspensas e o mundo se apresenta com todos os seus possíveis.
nos falam de uma interioridade cindida. Ao contrário, eviden- Paulo, então, enxerga outras possibilidades, que o mundo ofe-
ciam as tonalidades afetivas que, ao abrirem o leque da indeter- rece para além daquela que o asfixia. Ao romper com o círculo
minação em que a existência sempre se encontra, imediatamente hermenêutico, no qual a atividade profissional de Paulo é a mais
encontram resistência daquele que, a qualquer preço, tenta aba- valorizada, reconhecida e respeitada, tornando muito difícil dela
far o seu caráter de indeterminação, abertura, vulnerabilidade, desistir, mesmo que seja asfixiante, ele pode ver a possibilidade
enfim, de ser lançado abruptamente no mundo. da música.
Antônio, na clínica infantil, completamente tomado pela Já Otávio tinha medo de ser contaminado com o vírus HIV
tonalidade afetiva da embriaguês, teme não resistir ao êxtase de e ficar com AIDS. Se perguntarmos às pessoas em geral se elas
pegar alguma coisa. Ele teme que, uma vez totalmente absorvido têm medo de contrair AIDS, a maioria provavelmente dirá que
pela atmosfera do prazer, não resista a compulsivamente pegar tem. Logo, o medo torna possível a abertura do leque de possi-
aquilo que o embriaga. Ao mesmo tempo, o menino tem medo bilidades de que a coisa aconteça de modo que possamos nos
de ser descoberto. E dessa situação marcada por um misto de proteger. Ocorre que Otávio não só tinha medo, não considerava
prazer e medo, nessas atmosferas, nasce a tensão. E é essa tensão apenas os elementos mais comuns que podem trazer AIDS. Ele
que mobiliza a situação clínica. era acometido pela atmosfera do temor, ou seja, tornava-se cada
Paulo, o médico, confronta-se a todo o tempo com a morte vez mais alerta para os riscos que se apresentavam. Com isso,
do outro, mas, como quem morre é esse outro, ele se vê isento Otávio ficava em descompasso com aquilo que o mundo avisa
com relação à sua própria morte. Ele considera, em última es- sobre o perigo. Ia além e acabava vendo o perigo em quase tudo.
tância, que a morte é sempre do outro. Portanto, não é algo que E, assim, ocorria o acirramento da rede de controle, que o anún-
lhe diga respeito. O médico, com a ilusão da proteção pelo saber cio da angústia desarticula. Com isto, toma o lugar da angústia o
científico, cria uma distância entre aquilo que está acontecen- temor, em uma tentativa de retomar o controle. Deste modo, na
do com o paciente e a sua existência. Porém, no momento em tentativa de retenção por meio do temor, Otávio acreditava que
que essa capa protetora, por algum motivo, se esvai, Paulo ouve poderia alijar a angústia. Na situação de Otávio, em seu temor
o anúncio de sua própria indeterminação e finitude. Ele tenta máximo, no qual as possibilidades de controle caíam por terra,
se distrair, tenta voltar ao ritmo do mundo das ocupações. Po- ocorria de a atmosfera da coragem poder surgir como possibili-
rém, a voz da consciência clama. Paulo, ao mesmo tempo em dade. Otávio assume que ele queria relacionar-se com as garotas,
que quer abafar esse clamor, também quer lhe dar voz em meio mesmo com temor e tremor, decide-se corajosamente.
à angústia. A angústia emerge como um mobilizador existencial E Pedro, como se dá com ele o acontecimento da clínica? Pe-
que, imediatamente, abre duas possibilidades: na tentativa de li- dro trazia uma situação de depressão, desistência e desinteresse

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com tudo que o mundo lhe apresentava como possibilidade. Em ainda I:>zuarda elementos de influências da Psicologia e da Psi-
um total esquecimento de seu poder-ser, tentava justificar a sua quiatria inseridos no momento em que eles desenvolviam a sua
situação seja no somático, seja no passado, seja nas suas perdas. daseinsanálise. Agora, nosso esforço ao elaborar esse trabalho
Estava tudo muito confuso, ao mesmo tempo em que o desinte- aconteceu no sentido de dar continuidade à empreitada desses
resse apontava como sua máxima, preocupava-se com o olhar daseinsanalistas. E, assim, tentar lapidar aquilo que havia sido
do mundo. Ele constantemente referia-se ao medo do olhar do apresentado de modo incipiente. Sabemos que aqueles que ainda
outro. Em urna atmosfera de temor, tentava controlar seu medo, estão por vir, ao dar continuidade à tarefa de elaboração da da-
escondendo-se, não deixando que o outro o visse, principalmen- seinsanálise, também terão muito a criticar e, assim, esclarecer
te nas atividades laborais. Pedro constantemente referia-se ao aquilo que neste ensaio não conseguimos alcançar, conquistar,
mundo dos médicos como crítico, exigente, competitivo. Mundo nem responder. Por fim, a tarefa empreendida por Heidegger
esse que o amedrontava, mas ao qual ao mesmo tempo ele queria pode ser, considerando os limites de uma disciplina ôntica, a
corresponder. Nisso consistia a sua tensão. Situação essa que em empreitada de uma Psicologia clínica com fundamentos feno-
sua tensão máxima, levava-o a desistir, ao que ele mesmo deno- menológicos, hermenêuticos e existenciais.
minava depressão. No entanto, quando a atmosfera do tédio se
instaura e Pedro não se justifica, nem se distrai com as dores de
seu corpo, ele se dá conta que não precisa corresponder às solici-
tações de seu mundo que lhe exige excelente desempenho e pro-
dutividade. Não sabemos o que aconteceu, se Pedro finalmente
pode assumir uma saída singular ou se desistiu. As notícias são
de que Pedro nunca mais retornou ao hospital.
Acreditamos que as discussões aqui apresentadas tenham
prestado os esclarecimentos oportunos acerca da real possibili-
dade de se articular uma clínica psicológica a partir da fenome-
nologia hermenêutica de Heidegger. Tentamos evidenciar e es-
clarecer, também, o fato de que a substancialização do psiquismo
não consiste de modo nenhum em uma condição necessária para
que a clínica psicológica aconteça, já que não importa a interiori-
da de, mas sim a articulação ser-aí/mundo. E é esse corresponder
que se encontra perturbado quando a desarticulação acontece.
Com as considerações acima desenvolvidas, acreditamos
que é possível continuar a pensar e pôr em prática uma clínica
psicológica mesmo prescindindo de um psiquismo. Essa tarefa,
já empreendida embrionariamente por Binswanger e Boss, dei-
xou vários aspectos que precisaram ser repensados, uma vez que

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