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SÓCRATES, A FILOSOFIA

E A QUESTÃO DA MORTE*

Adão José Peixoto**

Resumo: esse artigo apresenta uma reflexão sobre a morte e


suas dimensões pedagógicas e políticas em Sócrates. Esse filósofo foi
considerado, em sua época, o mais sábio dos sábios. Mesmo assim,
foi condenado à morte devido às posições críticas que assumia com
relação aos costumes, às tradições, às práticas políticas e aos esforços
para ajudar as pessoas a romperem com o mundo da doxa, do senso
comum, e se ascenderem ao mundo da epistemé, do conhecimento,
também no que se refere a morte.

Palavras-chave: Filosofia. Morte. Política. Pedagogia.

Morrer é que me assusta.


(Montaigne)

A epígrafe acima expressa bem a nossa angústia sobre a morte. Sentimos


um profundo desconforto quando nos deparamos com a questão da
morte. Ela é fonte de medo, angústias, desesperos, dramas, revoltas e inter-
rogações. Quando nos deparamos com a perda de alguém da nossa família
ou de algum amigo, somos tomados pela angústia, pela interrogação e, até
mesmo, pela revolta. A morte é o acontecimento humano mais temido e
menos discutido. Esse temor se deve ao fato de que ela é um destino ine-
vitável para todos nós e imprevisível, no que diz respeito à temporalidade.
O homem é, entre todos os seres, o único que tem consciência da morte.
Essa consciência surgiu quando ele se deparou, ao longo da história, com
o problema da finitude e da infinitude; daquilo que é passageiro e daquilo

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que é eterno, do que é mortal e do que é imortal: quando se descobriu
como ser finito, ou como afirma Heidegger, quando passou a compreender
que é um ser-para-a-morte (HEIDEGGER, 2007, p. 309-15).
Parece-me que o susto expresso na epígrafe de Montaigne, a angús-
tia que toma conta de nós quando nos deparamos com a problemática da
morte, não aparece na atitude de Sócrates. Creio que, na história da filoso-
fia, nenhum pensador se deparou com a questão da morte de forma mais
serena do que esse filósofo. Sócrates pensou e discutiu a morte enquanto
esperava o cumprimento de sua pena: a própria morte. Mesmo nos instan-
tes em que se aproximava dela não se desesperou, mas manteve-se sereno,
lúcido e crítico. Sua atitude diante da morte foi uma atitude filosófica, por-
que se ocupou em compreender o seu sentido. Mas, além de filosófica, foi
também uma atitude pedagógica, porque nos ensinou a agir com sabedoria
nos momentos de dores e embates políticos, porque não abriu mão dos
princípios que acreditava e defendia. São essas reflexões que pretendemos
desenvolver neste artigo.

QUEM FOI SÓCRATES

Sócrates nasceu em Atenas, por volta do ano 469 a.C., em uma


família de boas condições financeiras. Seu pai, Sofronisco, era escultor, e
sua mãe, Fenareta, era parteira. Aprendeu o ofício de seu pai, mas passou
a se dedicar à filosofia. Deve ter recebido a educação que era comum aos
jovens atenienses de sua época, música, ginástica e gramática. Viveu num
dos períodos mais ricos político e culturalmente de Atenas, o chamado
“século de Péricles”, a idade de ouro da civilização ateniense, época dos
grandes autores trágicos. Quando Ésquilo morreu, por exemplo, Sócrates
tinha aproximadamente quatorze anos. Foi contemporâneo de Sófocles e
Eurípedes. Atenas era, no tempo de Sócrates, “um ponto de convergência
cultural e um laboratório de experiências políticas, onde se firmara, pela
primeira vez na história dos povos, a tentativa de um governo democrático,
exercido diretamente por todos os que usufruíam dos direitos de cidada-
nia” (PESSANHA, 1980, p. XVI).
Atenas foi pioneira quanto a instituição da democracia: o poder
político, as decisões administrativas e políticas da cidade, os rumos e desti-
nos da sociedade, estavam sob a responsabilidade não mais de uma pessoa
ou de um grupo, mas de todos os que eram considerados cidadãos. Isso
obrigou os atenienses a desenvolverem a arte política, a arte do debate,
da crítica, da argumentação, do ouvir o outro, do contestar, do votar, do

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decidir, da consideração do que era justo e injusto e do executar as decisões
do coletivo.
Foi neste ambiente de efervescência política e cultural que Sócra-
tes foi educado. Sócrates começou seus estudos de filosofia ainda muito
jovem. Inicialmente se interessou pelo estudo do pensamento de Anaxá-
goras e depois se dedicou aos estudos dos demais pensadores que ficaram
conhecidos como pensadores cosmológicos, porque se preocupavam em
desvendar e entender a natureza (physis), em especial, a origem do cosmos.
Ao contrário dos pensadores cosmológicos que se preocupavam com o uni-
verso da physis, Sócrates volta-se para a compreensão do universo humano,
para compreensão das suas finalidades práticas, morais e espirituais. Enfim,
volta-se para o universo do nomos, das convenções, dos valores, do modo
de ser, pensar e agir da polis.
Participou como soldado de vários confrontos militares com cora-
gem e heroísmo. Em 432 a. C. participou da guerra de Atenas com Poti-
déia. Neste confronto, salva a vida de Alcebíades, sobrinho de Péricles, que
se tornou mais tarde político e militar famoso, que tinha grande admiração
por Sócrates. Na guerra do Peloponeso, de Atenas com Esparta, na cidade
de Délio, salvou a vida de Xenofonte. Na atividade política, nas discussões
e decisões na Ekklesia (Assembléia Popular), ele tomava as decisões con-
forme suas convicções. Quando foi sorteado para presidí-la, para julgar os
generais que foram derrotados na batalha das ilhas de Arginusas, percebeu
uma irregularidade: a Assembléia queria julgar os generais e condená-los
à morte, em conjunto, num só julgamento. Segundo as leis atenienses, o
julgamento das pessoas teria que ser individual. Enfrentou a ira da multi-
dão que exigia a condenação sumária e fez prevalecer a lei, garantindo que
houvesse tantos julgamentos quantos eram os acusados. No fim de cada
julgamento teve também a coragem de ser o único a votar pela absolvição
dos acusados. Em outro episódio, quando terminou a guerra do Pelopone-
so, em que Esparta derrota e domina Atenas, o General espartano Lisan-
dro impôs à Atenas um regime ditatorial, com trinta homens atenienses
escolhidos pelo general, que passaram a ter plena autoridade. Essas pessoas
passaram a ser consideradas pelos seus concidadãos traidores. Este regime
ficou conhecido como regime dos Trinta Tiranos, que durou oito meses.
Foi um período de terror para os atenienses. Ordenaram a Sócrates que
ficasse em silêncio e não conversasse com menores de trinta anos. Porém,
Sócrates não se intimidou e continuou discutindo com os atenienses os
problemas da pólis. Em outro momento, exigiram que ajudasse a pren-
der Leon de Salamina e sequestrasse seus bens. Recusou a participar deste

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ato alegando que era injusto (PESANHA, 1980; DORIAN, 2006). No
entanto, Sócrates não foi nem santo e nem profeta. Foi um homem con-
victo e intransigente com suas posições, conforme os relatos de Platão e
Xenofonte. Em função disso, muitos atenienses o considerava arrogante e
presunçoso, o que o levou a ter muitos inimigos.
Entretanto, é importante ressaltar que o Sócrates descrito por Platão e
Xenofonte como filósofo sério, ético e crítico audaz das tradições dos costu-
mes e das convenções atenienses, é muito diferente do Sócrates descrito por
Aristófanes como um tagarela anti-ético e presunçoso. É por isso que Dorion
(2006, p. 27) afirma que o retrato de Sócrates na peça as Nuvens, de Aristó-
fanes, “é diametralmente oposto ao que nos oferecem Platão e Xenofonte”.
Como que explicar a posição de Aristófanes sobre Sócrates tão diferente das
posições de Platão e Xenofonte? Dorion (2006, p. 29-30), recorrendo às
contribuições de K. J. Dover, afirma que uma hipótese pode ser a de que
Aristófanes critica um tipo de intelectual por causa das ideias inovadoras e
perigosas que propagavam entre os jovens atenienses. Assim, o Sócrates das
Nuvens seria uma caricatura, um retrato compositório de diferentes grupos
de pensadores. A pesar das contradições interpretativas, as posições que mais
sobressaem são as que descrevem Sócrates como um filósofo que se dedicou
inteiramente à busca dos princípios da vida ética, “consagrou sua vida a esta
busca, até o ponto de perdê-la” (DORION, 2006, p. 9).
Podemos afirmar, a partir de Platão, especialmente, que Sócrates
não se deixou encantar e entregar às benesses que a vida política e intelec-
tual poderia lhe proporcionar. Julgava que sua missão era servir à sociedade
ateniense, vivendo de modo justo e honesto, contribuindo para a formação
de cidadãos sábios, honestos, temperados e virtuosos.
Um aspecto bastante peculiar é que Sócrates não deixou nada escrito.
O acesso a sua vida e obra só é possível através dos pensadores que escreve-
ram sobre elas. Segundo Pessanha (1980, p. XII), depois de sua morte,

eclodiu uma rica produção literária que tomava Sócrates por personagem
central. Seus discípulos fazem-lhe a defesa póstuma e apresentam-no como
modelo da sabedoria e das virtudes humanas: Platão torna-o a figura prin-
cipal da maioria de seus Diálogos, Xenofonte exalta-o principalmente nas
‘Memoráveis’, Esquines, em diversas obras (que se perderam).

Mas deve-se a Platão, considerado por muitos historiadores da fi-


losofia o mais fiel amigo e discípulo, que o acompanhou até os últimos
momentos de sua vida, os relatos mais confiáveis.

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A DIFICULDADE DA FILOSOFIA E DO FILÓSOFO
NA SOCIEDADE

Historicamente, a filosofia e o filósofo sempre encontraram dificul-


dades de espaço nas sociedades. Merleau-Ponty (1998) comenta, em seu
livro Elogio da filosofia, que essa dificuldade revela “o que há de difícil nas
relações do filósofo com os outros ou com a vida” (p. 44). Por que essas
dificuldades? Elas são decorrentes de vários fatores, em especial da intole-
rância à atitude crítica e à postura pragmática, utilitarista e consumista da
sociedade. Quanto à intolerância com a atitude crítica, deve-se ao fato de
que o pensar filosófico não se conforma com o instituído, busca compreen-
der o seu sentido, assume uma atitude de inquietação e de inconformismo,
problematiza e visa o instituinte; estabelece um distanciamento do mundo
cotidiano e de si mesma para melhor compreender os sentidos das coisas;
questiona, segundo Chauí (2006, p. 15), as crenças silenciosas, a aceitação
tácita de evidências que nos parecem naturais e óbvias que alimentam a
nossa existência. Ao adotar esse distanciamento, o filósofo deseja conhecer
por que crê no que crê, por que sente o que sente e o que são suas crenças
e seus sentimentos.
Assim, a filosofia é a reflexão que não aceita “[...] como óbvias e
evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os valores, os comporta-
mentos de nossa existência cotidiana [...] sem antes havê-los investigados
e compreendido” (CHAUÍ, 2006, p. 15). Portanto, a filosofia é reflexão, a
volta da consciência para si própria e para o mundo em busca da verdade;
é reflexão crítica, “crítica das ilusões e preconceitos, das teorias e práti-
cas científicas, políticas e artísticas” (CHAUÌ, 2006, p. 15). Para Japiassu
(1997, p. 40), “filosofar consiste em apelar à reflexão crítica. E toda socie-
dade teme a reflexão, pois constitui um perigo social e individual””. Esse
perigo é o de revelar como falso o que era tido como verdadeiro e justo; é
possibilitar a libertação da escuridão da caverna, do mundo da ignorância,
do senso comum, das ilusões; é possibilitar a ascensão ao mundo da luz,
da sabedoria, da razão, da crítica. Com relação à postura pragmática, uti-
litarista e consumista, que é a postura valorizada pela sociedade, que só
considera útil “[...] o que dá prestígio, poder, fama e riqueza. Julga o útil
pelos resultados visíveis das coisas e das ações, identificando utilidade
com a famosa expressão ‘levar vantagem em tudo” (CHAUÍ, 2006, p.
24). A postura filosófica constitui uma resistência frente às orientações
pragmáticas e utilitaristas. É, sobretudo, uma tomada de consciência do
sentido da existência humana. Para Japiassu (1997, p. 41),

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se nossa cultura resiste a uma tomada de consciência de si mesma, é porque
o pensar filosófico apresenta um duplo inconveniente: a) ensina-nos a criti-
carmos (não rejeitar, mas passar ao crivo, examinar) as opiniões recebidas
ou impostas, as tradições transmitidas e as idéias admitidas; ensina-nos
a ultrapassarmos o conformismo e o não-conformismo em vista de uma
coerência sempre maior do pensamento e da ação.

Essas dificuldades encontradas pela filosofia e pelo filósofo não ocor-


rem só nas sociedades contemporâneas, mas também em todas as outras
fases históricas, inclusive na sociedade grega clássica, berço do nascimento
e desenvolvimento da democracia e da filosofia. Exemplo disso foi à con-
denação de Sócrates à morte, considerado pela historiografia tradicional
“o pai da filosofia”1 e o “maior de todos os filósofos”. Para Merleau-Ponty
(1998, p.46), a vida e a morte de Sócrates são a história das difíceis relações
do filósofo com a cidade: “difíceis relações que o filósofo, que não é pro-
tegido pela imunidade literária, mantém com os deuses da cidade, isto é,
com os outros homens”. Essa relação conflituosa do filósofo com a cidade
ocorre porque ambos estão em planos diferentes: enquanto o filósofo vive
à procura do sentido da existência, a sociedade vive voltada para a utilidade
prática e imediata.

FILOSOFAR PODE SER PERIGOSO OU POR QUE SÓCRATES


FOI ACUSADO E MORTO?

Sócrates é considerado a grande expressão da filosofia como acima


a caracterizamos. A sua condenação à morte demonstra que filosofar pode
ser um perigo para a própria vida, porque o pensar filosófico é um pensar
livre, seu compromisso é com a verdade, por isso é um pensar crítico, au-
tônomo e criativo. A crítica e a verdade presentes no pensamento de Sócra-
tes incomodavam porque superavam, as superficialidades, as aparências, o
particular e revelavam as essências, o universal, os fundamentos das coisas.
Sua filosofia desinstalava as pessoas do seu comodismo; oferecia elementos
que lhes permitiam esclarecer e julgar o sentido do mundo, seja ele o da
política, do trabalho, da educação, do pensamento, da cultura.
Para Sócrates, o objeto da filosofia não é o sensível, o particular,
o individual, o que é passageiro; mas é o inteligível, o conceito que se
exprime pela definição. Este conceito se obtém por meio do processo dia-
lético indutivo, que consiste em comparar várias coisas da mesma espécie,
eliminar-lhes as diferenças individuais, as qualidades mutáveis e manter o

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elemento comum, permanente, a essência. A construção do conhecimento
desta forma se dava por meio do diálogo, que tinha uma dupla forma: a
ironia e a maiêutica. Na primeira, Sócrates já lançava questionamentos, ai
ampliando-os até que o interlocutor entrasse em contradição e fosse cons-
trangido à confissão de sua ignorância. Na segunda, ampliava ainda mais
os questionamentos, dirigindo-os para obter um conceito, uma definição,
a essência do objeto em questão. Na primeira forma, a ironia, temos a crí-
tica, a desconstrução da argumentação. Na segunda, a maiêutica, temos a
reconstrução, a síntese. Nessa, Sócrates tomou como referência a profissão
de sua mãe, que era parteira, para desenvolver seu método, o da arte de fa-
zer parir as idéias. Não se propunha ensinar como os sofistas, mas a ajudar
a construir o conhecimento.
Sócrates viveu tanto o contexto áureo da democracia e da cultura
ateniense quanto o contexto de sua crise, provocada pela demagogia e pe-
las consequências da guerra do Peloponeso. Ocupou-se, principalmente
a partir dos 40 anos, com a reestruturação moral e política da sociedade
ateniense. Entretanto, a liberdade de seus discursos, a sua atitude crítica,
a sua ironia, a sua afeição austera e a filosofia que ministrava, geraram
hostilidades e inimizades daqueles que se sentiam menosprezados e viam
sua reputação e prestígio ameaçados. Sócrates (1980, p. VII) era “admi-
rado e enaltecido por alguns, particularmente pelos jovens” e “criticado
e combatido por outros, que nele viam uma ameaça para as tradições da
polis e um elemento pernicioso à juventude”. Foi por sentirem ameaçados
pelo poder das palavras de Sócrates que representantes do poder político e
econômico, na pessoa de Ânito, comerciante, influente orador e político, e
do poder cultural, na pessoa de Meleto, poeta, e por Lição, que não possuía
grande importância na sociedade ateniense – o qual poderíamos dizer que
representaria o povo -, denunciaram e solicitaram a sua morte. A mesma
sociedade que o admirou também o acusou e o condenou a morte.

A ACUSAÇÃO, A DEFESA E A CONDENAÇÃO

Mas o que mais mobilizou algumas autoridades políticas, culturais e


econômicas contra Sócrates foi o fato de ele desafiar aqueles que eram con-
siderados sábios a provarem se de fato o eram. Sócrates resolveu desafiar
os que eram considerados sábios quando ouviu de seu amigo Querefonte
a confissão de que o Oráculo de Delfos havia lhe revelado que Sócrates era
o mais sábio dos homens. Eis o relato de Sócrates, que diz que Querofonte
“certa vez, indo a Delfos, arriscou esta consulta ao oráculo [...] ele per-

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guntou se havia alguém mais sábio que eu; respondeu Pítia que não havia
ninguém mais sábio. Para testemunhar isso, tendes aí o irmão dele, porque
ele já morreu” (PLATÃO, 1980, p. 8).
Sócrates tomou a decisão de investigar se a revelação do oráculo era
de fato verdadeira: “fui ter com um dos que passam por sábios, porquanto,
se havia lugar, era ali que, para rebater o oráculo, mostraria ao deus: ‘eis aqui
um mais sábio que eu, quando tu disseste que eu o era” (PLATÃO, 1980,
p. 8). Assim se procedeu. Procurava aqueles que eram considerados sábios
e lhes desafiavam provar que o eram. A primeira pessoa que ele investigou
era um político. O resultado a que chegou foi que “achei que ele passava por
sábio aos olhos de muita gente, principalmente aos seus próprios, mas não
o era. Meti-me, então, a explicar-lhe que supunha ser sábio, mas não o era.
A conseqüência foi tornar-me odiado dele e de muitos dos circunstantes”
(PLATÃO, 1980, p. 8-9). Com isso, Sócrates chegou a conclusão de que

ao retirar-me, ia concluindo de mim para comigo: ‘mais sábio do que esse


homem eu sou; é bem provável que nenhum de nós saiba nada de bom,
mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei,
tampouco suponho saber. Parece que sou um nadinha mais sábio que ele
exatamente em não supor que saiba o que não sei’ (PLATÃO, 1980, p. 9).

Com a resolução de continuar colocando à prova a revelação do


oráculo, foi procurar os poetas, na esperança, segundo Sócrates, de “[...]
aí me apanhar em flagrante inferioridade cultural”. O resultado foi uma
grande surpresa:

quase todos os circunstantes poderiam falar melhor que eles próprios sobre
as obras que eles compuseram. Assim, logo acabei compreendendo que
tampouco também os poetas compunham suas obras por sabedoria, mas
por dom natural, em estado de inspiração, como os adivinhos e profetas.
Estes também dizem muitas belezas, sem nada saber do que dizem; o mes-
mo, apurei, se dá com os poetas; ao mesmo tempo, notei que, por causa da
poesia, eles supõem ser os mais sábios dos homens em outros campos, em
que não o são. Saí, pois acreditando supera-los na mesma particularidade
que os políticos (PLATÃO, 1980, p.9).

Depois dos políticos e dos poetas foi a vez de colocar à prova os


artífices, que Sócrates tinha a certeza de neles descobrir muitos belos co-
nhecimentos. Segundo Sócrates,

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nisso não me enganava; eles tinham conhecimentos que me faltavam;
eram, assim, mais sábios que eu Entretanto, achei que os bons artesãos têm
o mesmo defeito dos poetas; por praticar bem a sua arte, cada qual imagi-
nava ser sapientíssimo nos demais assuntos, os mais difíceis, e esse engano
toldava-lhes aquela sabedoria. De sorte que perguntei a mim mesmo, em
nome do oráculo, se preferia ser como sou, sem a sabedoria deles nem sua
ignorância, ou possuir, como eles, uma e outra; e respondi, a mim mesmo
e ao oráculo, que me convinha mais ser como sou (PLATÃO, 1980, p. 9).

Eis, segundo Sócrates, a procedência das calúnias, das inimizades


que foram cada vez mais aumentando e a reputação de que ele era um sá-
bio. Quanto ao fato de ele ter sido considerado sábio pelo oráculo, acredita

que na realidade, o sábio seja o deus e queira dizer, no seu oráculo, que
pouco valor ou nenhum valor tem a sabedoria humana; evidentemente
se terá servido deste nome de Sócrates para me dar como exemplo, como
se dissesse: ‘ o mais sábio dentre vós, é quem como Sócrates compreen-
deu que sua sabedoria é verdadeiramente desprovida do mínimo valor
(PLATÃO, 1980, p. 10).

Sócrates se entregou totalmente a essa tarefa. Mesmo com as inimi-


zades e perseguições não parou as suas investigações. Colocou-se totalmen-
te a serviço do deus, submetendo à prova de quem se considerava ou que
era considerado sábio, como podemos constatar quando ele afirma que
“essa ocupação não me permitiu lazeres para qualquer atividade digna de
menção nos negócios públicos nem nos particulares; vivo numa pobreza
extrema, por estar ao serviço do deus” (PLATÃO, 1980, p. 10).
Foi isso que motivou as pessoas, principalmente as que sentiam a
sua reputação e prestigio abalados, a levar Sócrates ao tribunal, condená-lo
e silenciá-lo. Para Merleau-Ponty (1998, p. 47),

o que lhe censuram não é tanto o que faz, mas a maneira, o motivo por que
o faz. Há na Apologia uma frase que tudo explica, quando Sócrates diz aos
que o julgam: Atenienses, eu acredito, como qualquer dos que me acusam. Eis
uma expressão de oráculo: ele acredita mais do que eles, e também de outro
modo e num outro sentido. A religião que ele diz ser verdadeira é aquela
em que os deuses não se degladiam, em que os presságios se conservam
ambíguos, - pois que, como diz Sócrates de Xenofonte, ao fim e ao cabo,
são os deuses, e não as aves, que prevêem o futuro, - em que o divino,

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como o demônio de Sócrates, unicamente se revela por uma admoestação
silenciosa, lembrando ao homem a sua ignorância. A religião é, pois, ver-
dadeira, mas de uma verdade que ela própria ignora, verdadeira tal como
Sócrates a pensa e não como ela se pensa a si própria. Do mesmo modo,
quando justifica a cidade, é pelas suas razões e não pelas do Estado.

A acusação era de que Sócrates negava os deuses e corrompia a ju-


ventude. Ao rebater a acusação de que corrompia a juventude e era uma
ameaça à sociedade, Sócrates afirma que o que procurava com seus ensina-
mentos era ensinar, não só os jovens, mas todos os cidadãos a agirem com
sabedoria a serem honestos, justos e virtuosos. Assim se defende:

Outra coisa não faço senão andar por aí persuadindo-vos moços e velhos a
não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas como de melhorar o
mais possível a alma dizendo-vos que dos haveres não vem a virtude para os
homens, mas da virtude vem os haveres e todos os outros bens particulares
e públicos. Se com esses discursos corrompo a mocidade seria nocivo esses
preceitos; se alguém afirmar que digo outras coisas e não essas, mente. Por
tudo isso, atenienses [...], quer me dispenseis, quer não, não hei de fazer
outra coisa ainda que tenha de morrer muitas vezes (PLATÃO, 1980, p. 15).

Ao se defender sobre as acusações da negação dos deuses, Sócra-


tes argumentou que “se afirma que ensino a crer na existência de certos
deuses – nesse caso admito a existência de deuses, absolutamente não sou
ateu, nem esse é meu crime” (Platão, 1980, p.12). Sócrates, em nenhum
momento de sua defesa, apelou para bajulação e muito menos tentou ob-
ter a misericórdia dos juizes. Assumiu uma postura tranqüila, mas firme:
“sua linguagem é serena – linguagem de quem fala em nome da própria
consciência e não conhece em si mesmo qualquer culpa” (PESSANHA,
1980, p. VIII). Merleau-Ponty (1998, p. 49-51) considera que Sócrates e
os juízes estavam

não estavam no mesmo plano [...] O que esperam dele é o que ele lhes não
pode dar: a concordância sem considerações. Ele, pelo contrário, compa-
rece perante os juízes para explicar o que é a cidade. Como se eles não o
soubessem, como se eles não fossem a cidade. Não defende a sua causa, mas
a de uma cidade que aceitasse a filosofia. Inverte os papéis e diz: não me
defendo a mim, mas a vós. No fim de contas, a cidade é ele, e os outros
é que são os inimigos da leis, os outros é que são julgados e lê é que é o

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juiz. Inversão inevitável no filósofo, pois ele justifica o exterior pelos va-
lores que vêm do interior. Que fazer quando não é possível defender nem
provocar? Falar de maneira a deixar transparecer a liberdade no respeito, a
exprimir o ódio pelo sorriso, - eis uma lição para a nossa filosofia que, com
o seu ar trágico, perdeu o seu sorriso. É o que se chama a ironia. A iro-
nia de Sócrates é uma relação distante, mas verdadeira, com outrem, que
exprime este dado fundamental de que cada um, sendo inelutavelmente ele
próprio, no entanto se reconhece no outro, e procura desligar um do outro
pela liberdade. Como na tragédia, ambos os adversários estão justificados,
e a verdadeira ironia usa de um sentido duplo que se funda nas coisas. Não
há aqui qualquer vaidade, pois é tanto ironia para com os outros como
para consigo.

Apesar das inconsistências dos argumentos das acusações Sócrates


foi condenado a beber a cicuta, um veneno da morte. Atenas, o berço da
filosofia e da democracia condenou à morte um dos maiores pensadores
daquela época. A democracia também não tolera a filosofia. Para Pessanha
(1980, p. VIII), “mesmo para uma democracia como ateniense ele era uma
ameaça e um escândalo”.
Foi condenado por uma margem pequena de votos, sessenta, de
uma Assembléia de quinhentos juizes. Meleto havia pedido a pena de mor-
te para o acusado mas os juizes convidaram Sócrates a fixar sua pena. Ele
poderia propor, por exemplo, pagar uma multa, como alguns de seus ami-
gos lhe sugeriram pois,

qualquer pena moderada que ele mesmo propusesse seria certamente


acatada como alívio por aquela assembléia constrangida por condenar um
cidadão que, apesar de suas excentricidades e de suas atitudes muitas vezes
irreverentes e incômodas, apresentava aspecto de indiscutível valor. Afinal,
era aquele o Sócrates que não se havia deixado corromper pelos tiranos,
inimigos da democracia, e que lutara bravamente na guerra por sua cidade
e por seu povo. Bastava que ele declarasse estar disposto a pagar algumas
moedas – e todos sairiam dali satisfeitos consigo mesmos (PESSANHA,
1980, p. IX).

Mas Sócrates permaneceu resoluto em suas posições e não fez ne-


nhuma concessão. Para ele, propor qualquer penalidade, mesmo que fosse
uma pequena multa, seria aceitar a culpa que queriam lhe imputar. No
lugar de uma pena propõe uma recompensa. Como Meleto propôs a sen-

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tença de morte, Sócrates indaga: “e eu que pena vos hei de propor em
troca, atenienses?”. Logo em seguida ele levanta vários e importantes ques-
tionamentos e anuncia a pena, que na verdade é uma recompensa:

A que mereço, não é claro? Qual será? Que sentença corporal ou pecuniária
mereço eu que entendi de não levar uma vida quieta? Eu que, negligenci-
ando o de que cuida toda gente – riquezas, negócios, postos militares, tri-
bunas e funções públicas, conchavos e lutas que ocorrem na política, coisas
em que me considero de fato por demais pundonoroso para me imiscuir
sem me perder – não me dediquei àquilo, a que se me dedicasse, haveria
de ser completamente inútil para vós e para mim? Eu que me entreguei
à procura de cada um de vós em particular, a fim de proporcionar-lhe o
que declaro o maior dos benefícios, tentando persuadir cada um de vós a
cuidar menos do que é seu que de si próprio para vir a ser quando melhor e
mais sensato, menos dos interesses do povo que do próprio povo, adotado
o mesmo princípio nos demais cuidados? Que sentença mereço por ser
assim? Algo de bom, atenienses, se há de ser a sentença verdadeiramente
proporcionada ao mérito: não só, mas algo de bom adequado a minha pes-
soa. O que é adequado a um benfeitor pobre, que precisa de lazeres para
vos viver exortado? Nada tão adequado a tal homem, atenienses, como ser
sustentado no Pritaneu; muito mais do que a um de vós que haja vencido,
nas Olimpíadas, uma corrida de cavalos, de bigas ou de quadrigas. Esse vos
dá a impressão da felicidade: eu, a felicidade; ele não carece de sustento, eu
careço. Se, pois, cumpre que me sentenciem com justiça e em proporção
ao mérito, eu proponho o sustento no Pritaneu (PLATÃO, 1980, p. 21-2).

Após desafiar os juizes a lhe conceder a recompensa, Sócrates ar-


gumentou que como não fez mal a ninguém, não faria também mal a si
próprio, principalmente porque não se achava culpado por nenhum crime.
A citação que apresentaremos é longa, mas muito interessante. Assim Só-
crates argumenta:

Convencido, portanto, de que não faço mal a ninguém, muito menos o


farei a mim próprio; não direi eu próprio contra mim que mereça algum
mal, nem proporei pena alguma. Que posso temer? Sofrer a pena pro-
posta por Meleto, que declaro ignorar se é um bem, se é um mal? Hei de
preferir e propor em troca uma daquelas que sei que são males? Porventura
a prisão? Para que hei de viver na cadeia, escravizado ao comando sempre
reformado dos Onze2? Ou uma multa, permanecendo preso até pagá-la

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toda? Daria na mesma, pois, como disse há pouco, não tenho bens com
que pagar. Proporei, então, o desterro, a que possivelmente me senten-
ciaríeis? Muito amor à vida deveria eu ter para ficar tão estúpido que não
compreendesse que, se vós, sendo meus concidadãos, não pudestes atu-
rar minhas conversas e assuntos, tão importunos e odiosos para vós, que
neste momento vos estais procurando livrar deles, outros hão de aturá-los
melhor? Que sentença, atenienses? Bela vida seria a minha se, homem da
minha idade, partisse daqui para viver expulso de cidade em cidade! Estou
certo de que, aonde quer que vá, os moços me virão ouvir, como aqui
[...] Pode alguém perguntar: “Mas não será capaz Sócrates, de nos deixar
e viver calado e quieto?” De nada eu convenceria alguns dentre vós mais
dificilmente do que disso. Se vos disser que assim desobedeceria ao deus
e, por isso, impossível é a vida quieta, não me darei fé, pensando que é
ironia; doutro lado, se vos disser que para o homem nenhum bem supera
o discorrer cada dia sobre a virtude e outros temas de que me ouvistes
praticar quando examinava a mim mesmo e a outros, e que vida sem exame
não é digna de um ser humano, acreditareis ainda menos em minhas pa-
lavras. Digo a pura verdade, senhores, mas convencer-vos dela não é fácil.
Acresce que não estou habituado a julgar-me merecedor de mal nenhum
(PLATÃO, 1980, p. 22).

Esta citação demonstra o quanto Sócrates foi coerente com os ou-


tros e consigo próprio. A afirmação de que a “vida sem exame não é digna
de um ser humano”, que quer dizer que a vida que não é pensada, proble-
matizada, questionada, não merece ser vivida, sintetiza o que de fato foi a
vida de Sócrates: uma vida submetida à constante crítica filosófica. Daí o
sentido de a mensagem “Conheça-te a ti mesmo”, adotada por ele como
mensagem, guia o seu pensamento filosófico.
A execução da pena teve que ser adiada durante trinta dias, porque a
sua condenação coincidiu com a partida de um navio oficial para o santuário
de Delfos. Segundo a tradição ateniense, todo ano, um navio oficial teria que
ser enviado ao santuário para comemorar a vitória de Teseu, herói ateniense,
sobre o Minotauro, monstro que habitava o labirinto de Creta e se alimenta-
va de carne humana. Enquanto o navio não retornava desta missão sagrada,
nenhum condenado podia ser executado (PESSANHA, 1980, p. X).
Durante esse período de espera da morte, Sócrates aproveitou para
debater vários temas com seus discípulos. Um dos temas e problemas que
eles se depararam, e que para seus discípulos era um tema atormentador,
foi a morte, o da morte de Sócrates que se tornava cada vez mais próxima.

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O SIGNIFICADO DA MORTE

Sócrates debateu com seus discípulos o que era morte, o medo que
as pessoas têm dela, o seu sentido e a imortalidade da alma. Ele conseguiu
transformar um acontecimento trágico num em um tema filosófico.
Na parte final de sua defesa, quando se despediu dos juízes, dos que
o condenaram, discutiu também a questão da morte. Inicialmente teceu
argumentos para demonstrar que quando se é justo e correto não se deve
temer a morte. Sócrates disse:

a verdade, atenienses, é esta: quando a gente toma uma posição, seja por
a considerar a melhor, seja porque tal foi a ordem do comandante, aí, na
minha opinião, deve permanecer diante dos perigos, sem pesar o risco de
morte ou qualquer outro, salvo o da desonra (PLATÃO, 1980, p. 14).

Em outro momento, ainda argumentando porque não se deve fugir


do perigo e do risco da morte, aproveitou para se defender, ao afirmar que

grave falta, atenienses, teria cometido eu, que, em Potidéia, em Anfípolis e


Délio, permaneci, como qualquer outro, no posto designado pelos chefes
por vós eleitos para me comandar e ali enfrentei a morte, se, quando um
deus, como eu acreditava e admitia, me mandava levar vida de filósofo,
submetendo a provas a mim mesmo e aos outros, desertasse o meu posto
por temor da morte ou de outro mal qualquer. Seria grave e então deveras
com justiça me haveriam trazido ao tribunal pelo crime de não crer nos
deuses, pois teria desobedecido ao oráculo por temor da morte e supondo
ser sábio sem que o fosse (PLATÃO, 1980, p. 14).

O que é a morte? O que é esse grande temor que se apodera das pes-
soas? Por que a tememos? Temos razão para temê-la? São esses questiona-
mentos que podemos dizer que estão, seja de modo explícito ou implícito,
presentes nas reflexões de Sócrates. Primeiramente, ele questiona por que
temer a morte, se não sabemos o que ela é: “Com efeito, senhores, temer
a morte é o mesmo que supor-se sábio quem não o é, porque é supor que
sabe o que não sabe” (PLATÃO, 1980, p.15).
Segundo Sócrates, “ninguém sabe o que é a morte, nem se, por-
ventura, será para o homem o maior dos bens; todos a temem, como se
soubessem ser ela o maior dos males. A ignorância mais condenável não
é essa de supor saber o que não sabe?” (PLATÃO, 1980, p.18). Então,

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para que temer algo que não sabemos o que é? Agir com destempero, com
dramaticidade, com revolta com relação à morte é, na concepção socrática,
não agir com sabedoria; é não agir guiado pela razão, pelo conhecimento,
pela crítica. Se a morte for a passagem para um lugar bom, então por que
ficar triste quando alguém morre?
Podemos dizer que para Sócrates, devemos encarar a morte com
esperança, pois se agimos de modo correto, não há sentido para se deses-
perar. Ela deve ser, na verdade, um coroamento das boas ações. Acreditava
que seu julgamento tinha algo de bom, porque considerava mais impor-
tante à morte na verdade do que uma vida na mentira.
Mesmo que a morte fosse o nada, segundo Sócrates, não seria des-
prezível, pois não passaria de uma boa noite de sono:

morrer é uma destas duas coisas: ou o morto é igual a nada, e não sente
nenhuma sensação de coisa nenhuma; ou, então, como se costuma dizer,
trata-se duma mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo
para outro lugar. Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que
o adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte
(PLATÃO, 1980, p. 26).

Se a morte, segundo Sócrates, for um sonho, “digo que é uma


vantagem, porque, assim sendo, toda a duração do tempo se apresenta
como nada mais do que uma noite. Mas se ela for uma mudança, daqui
para outro lugar onde estão todos os mortos, “que maior bem haveria
que esse?”. Se é esse o destino de quem morre, é tudo que a pessoa pode
desejar, pois é a oportunidade de conviver com pessoas maravilhosas:
“quanto não daria qualquer de vos para estar na companhia de Orfeu,
Museu, Hesíodo e Homero? [...] eu de modo especial acharia lá um en-
tretenimento maravilhoso, quando encontrasse Palamedes, Ájax de Tala-
mão e outros dos antigos, que tenham morrido por uma sentença iníqua”
(PLATÃO, 1980, p.27).
Para Sócrates, a alma é superior ao corpo e encontra-se nele como
se encontra numa prisão. Assim, a morte liberta a alma desta prisão e lhe
encaminha para uma vida melhor. Por isso, devemos cuidar mais da alma
e não temer a morte.
A morte de Sócrates ensina-nos a não temer os desafios para a cons-
trução de uma sociedade mais justa e humana.
Ao despedir dos juizes, Sócrates revela que a morte é um mistério,
ao afirmar: bem, é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para

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a vida. “Quem segue melhor rumo, se eu, se vós, é segredo para todos,
menos para a divindade” (PLATÃO, 1980, p. 27).

DIMENSÕES PEDAGÓGICAS E POLÍTICAS DA MORTE


DE SÓCRATES

Como vimos, Sócrates era um homem que valorizava mais as virtudes


da alma do que as do corpo. Quais as implicações dessa valorização do ponto
de vista político e pedagógico? Isso explica o seu desapego às coisas materiais
e o que delas advém: a riqueza, o poder, a fama. O que torna o homem
melhor, mais humano, mais nobre, na visão socrática, é uma prática voltada
para o conhecimento e não para gozo desmedido dos prazeres materiais. Isso
explica também a sua posição sobre a morte. Não a teme porque entende
que ela não é o fim da existência humana. Essa existência permanece viva
depois da morte nas obras do homem, seja na sua produção teórica ou nos
seus exemplos, que passam a ser referências para outras gerações.
Podemos dizer que a atitude assumida por Sócrates diante da morte
se revestiu de uma dimensão pedagógica porque ensina-nos a agirmos de
modo sensato, com base no conhecimento e não apenas ancorados pela
emoção. Sócrates encarou a morte com nobreza, a discutiu, inclusive mi-
nutos antes de ser sua vítima, com lucidez, e agiu o tempo todo com sere-
nidade. Não apelou para a violência. Sua arma era a palavra, a sabedoria,
a filosofia, e ensinou-nos: a) que o maior dos bens que podemos acumular
é o saber, a temperança, a justiça, a coragem, a liberdade, a verdade e a
virtude; b) a superar os grilhões da ignorância, da escuridão da alienação,
das atitudes pragmáticas, consumistas, individualistas e utilitaristas, para
apreendermos o que é mais essencial na vida: a dignidade humana.
A atitude de Sócrates frente à morte também significou uma atitude
profundamente política. Em nome dos princípios que defendia, não se deixou
corromper; enfrentou as estruturas do poder político, econômico e cultural;
preferiu a morte do que silenciar e renunciar à atividade filosófica: “achei de,
meu dever correr perigo ao lado da lei e da justiça, em vez de estar convosco
numa decisão injusta, por medo da prisão ou da morte” (PLATÃO, 1980,
p.17). Em outro momento diz: “enquanto tiver alento e puder fazê-lo, jamais
deixarei de filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar ensinamentos em
toda ocasião àqueles de vós eu deparar” (PLATÃO, 1980, p. 25).
Platão descreve um Sócrates destemido, alegre e sereno, mesmo
minutos antes de sua morte. É a expressão máxima da atitude política de
Sócrates: a resistência. Para Merleau-Ponty (1998, p. 48-9),

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Sócrates tem uma maneira de obedecer que é uma forma de resistir [...]
Tudo o que Sócrates faz se ordena segundo este princípio secreto que em
vão se tenta captar. Sempre culpado por excessos ou por defeito, sempre
mais dócil e menos acomodatício, causa-lhe mal-estar infringir-lhes esta
imperdoável ofensa de os fazer duvidar de si próprios. Na vida diária, na
Assembléia popular, como no tribunal, está presente, mas de uma forma
que impede qualquer censura. Nada de eloqüência, de discursos prepara-
dos, pois seria dar razão à calúnia, entrando no jogo do respeito. Mas
também nada de provocação, pois seria esquecer que, em certo sentido,
os outros não podem julgá-lo de forma diferente daquela. É a filosofia
que o obriga a comparecer perante os juízes e o torna diferente deles, é a
liberdade que, ao mesmo tempo que o leva junto deles, o separa dos seus
preconceitos. É o mesmo princípio que o torna universal e singular.

Mas que resistência é essa, se aceita a morte que lhe impuse-


ram? Creio que mesmo aceitando a morte, sua atitude foi de resistência.
Preferiu a morte do que compactuar com as atitudes injustas. Sócrates
esperava que seu exemplo, isto é, sua obra, servisse de exemplo para as
pessoas. Por isso, segundo Merleau-Ponty (1998, p. 47-8), “Xenofonte
põe na boca de Sócrates as seguintes palavras: podemos obedecer às leis
desejando que elas mudem, do mesmo modo que podemos lutar na guer-
ra desejando a paz. Isto, não porque as leis sejam boas, mas porque são a
ordem, sendo preciso que exista para poder ser alterada”. Da mesma for-
ma, quando Sócrates se recusa a fugir, “não é por reconhecer o tribunal,
mas para melhor o recusar. Se fugisse, tornar-se-ia um inimigo de Atenas,
tornando verdadeira a sentença. Ficando, ganha, quer o absolvam, quer
o condenem, quer prove a sua filosofia conseguindo que os juízes a acei-
tem, quer a prove ainda aceitando a sentença” (MERLEAU-PONTY,
1998, p.48). Essa atitude política de Sócrates pode ser percebida no se-
guinte relato de Platão:

enquanto estive ao lado de Sócrates minhas impressões pessoais foram,


de fato, bem singulares. Na verdade, ao pensamento de que assistia à
morte desse homem ao qual me achava ligado pela amizade, não era a
compaixão o que me tomava. O que eu tinha sobe os olhos, Equécrates,
era um homem feliz: feliz, tanto na maneira de comportar-se como na de
conversar, tal era a tranqüila nobreza que havia no seu fim. E isso, de tal
modo que ele me dava a impressão, ele que devia encaminhar-se para as

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regiões do Hades”3, de para lá se dirigir auxiliado por um concurso divino
e de ir encontrar no além uma vez chegado, uma felicidade tal como nin-
guém jamais conheceu! Por isso é que absolutamente nenhum sentimento
de compaixão havia em mim, como teria sido natural em quem era teste-
munha de uma morte iminente. Mas o que eu sentia não era também o
conhecido prazer dos nossos instantes de filosofia, embora fosse essa, ainda
uma vez, a natureza das nossas conversas. A verdade é que havia em minhas
impressões qualquer coisa de desconcertante, uma mistura inaudita, feita
ao mesmo tempo de prazer e de dor, de dor ao recordar-me que dentro
em pouco sobreviria o momento de sua morte! E todos nós ali presentes,
nos sentíamos mais ou menos com a mesma disposição, ora rindo, ora
chorando; um de nós, mais do que qualquer outro: Apolodoro (PLATÃO,
1987, p. 58-9).

CONCLUSÃO

Somente quando tomarmos consciência da nossa finitude, desco-


berta há muito tempo, mas relegada ao esquecimento, é que será possível
compreendermos o sentido da vida e da morte. Ao tomarmos consciên-
cia da nossa finitude tomamos também consciência da nossa infinitude.
Somos ao mesmo tempo ser finito e infinito. Participamos da finitude
devido a nossa condição biológica: nascemos, crescemos e morremos.
Mas também participamos da infinitude através das nossas obras (idéias,
comportamentos, exemplos, realizações) que permanecem, se eternizam.
Creio que foi isso que Sócrates compreendeu e nos ensinou. Por isso
não teve medo da morte. Também foi por isso um grande exemplo de
como lidar com a ambigüidade da morte. Soube compreender e valorizar
aquilo que é mais importante na vida do homem: a atitude ética, os prin-
cípios políticos e a defesa da dignidade humana. Ser ser-para-a-morte na
visão socrática não é ser para a finitude, mas abertura para a infinitude.
A morte não é o fim, mas o começo de uma nova existência: a da trans-
cendência. Talvez não tenhamos a serenidade que Sócrates teve frente a
morte, mas podemos ter a dignidade que ele teve: o senso de justiça, de
lealdade, de liberdade e de coragem.
Apesar de muitas vezes se comportar com arrogância, Sócrates, até
nos momentos que antecedeu sua morte se comportou como filósofo e
educador. Ocupou-se em pensar o sentido da vida e da morte, enfim, da
existência humana. Deixou-nos um legado também sobre um assunto que
fazemos questão de ignorar: a morte.

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SOCRATES, PHILOSOPHY AND THE QUESTION OF DEATH
Abstract: this article presents a reflection on death and its pedagogic and
political dimensions in Sócrates. This philosopher was considered, at his
time, the wisest of the wise philosophers. Even though, he was sentenced
to death because of his critical statements in relation to the customs, tradi-
tions, political practices in order to help people to break with the world of
doxa, of the common sense, and to ascend to the world of epistemé, of the
knowledge, also with regard to death.

Keywords: Philosophy. Death. Politics. Pedagogy.

Notas
1 Existem controvérsias sobre quem é o pai da filosofia. Cícero, no tratado Sobre
a natureza dos deuses, apresenta Sócrates como o pai da filosofia. Para Dorion,
há outra tradição interpretativa que afirma que o primeiro filósofo foi Tales de
Mileto, cujo nascimento é anterior ao de Sócrates em mais de um século. “A
contradição entre essas duas tradições é apenas aparente, pois não é no mesmo
sentido que se atribui a Tales o título de ‘primeiro filósofo’ e a Sócrates o de
‘pai da filosofia’. Para os antigos, Tales é o primeiro fisósofo no sentido de ter
sido o iniciador do tipo de pesquisa que consiste em explicar os fenômenos
naturais a partir de causas materiais, e não mais fazendo intervir causas
sobrenaturais, como os deuses, enquanto que Sócrates é o pai da filosofia no
sentido de ter sido ele o primeiro a afastar-se do estudo da natureza e insistir
para que a reflexão filosófica se interessasse daí em diante, e exclusivamente,
pelas ‘questões humanas” (DORION, 2006, p. 7).
2 Os Onze eram autoridades policiais Eletivas. (N. do T.) (PLATÃO. Defesa de
Sócrates. In: Sócrates. p. 22).
3 Hades é o lugar para onde vão as almas.

Referências
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2006.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Márcia de Sá Schuback.
Petrópolis: Vozes/ Bragança Paulista: Ed. Univ. São Francisco, 2007.
DORION, Louis-André. Compreender Sócrates. Petrópolis: Vozes, 2006.
JAPIASSU, Hilton. Um desafio à filosofia: pensar-se nos dias de hoje. São Paulo:
Letras & Letras.
MERLEAU-PONTY, Maurice (1998). Elogio da filosofia. Lisboa: Guimarães Edi-

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tores, 1997.
PESSANHA, José Américo. Sócrates: vida e obra. In: Sócrates. 2. ed. (Coleção Os
Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1980.
PLATÃO. Defesa de Sócrates. In: Sócrates. Seleção de textos. 2. ed. São Paulo:
Abril Cultural, 1980. (Col. Os Pensadores).
PLATÃO. Fédon. In: Platão. Seleção de textos. 4ª edição. São Paulo: Nova Cul-
tural, 1987. (Col. Os Pensadores).
SÓCRATES. Seleção de textos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural. (Col. Os Pen-
sadores).

* Recebido em: 10.09.2010.


Aprovado em: 05.10.2010.

** Doutor em Educação (USP). Mestre em Filosofia (PUCCAMP). Professor na


Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás.

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