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Curso de Extensão Universitária

A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

O Homem Que Virou Suco, de João Batista de Andrade (1981)

A Análise do Filme

Tema: Precariedade salarial e precarização estrutural do trabalho

O filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade, de 1981,


possui como tema central, as formas da precarização do trabalho nas condições do
capitalismo brasileiro. Num primeiro momento, expõe, de modo realista, o
cotidiano de miséria da classe operária pobre da metrópole paulistana expostos à

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precariedade salarial extrema no auge do “milagre brasileiro” (1968-1979). É um
filme que trata das várias nuances da superexploração da força de trabalho que
caracteriza o capitalismo brasileiro. Ao mesmo tempo, expõe a opressão e
exploração capitalista que desefetiva o ser genérico do homem, isto é, enlouquece o
homem-que-trabalha. Deste modo, o filme “O homem que virou suco” vincula
superexploração da força de trabalho como característica ontogenética do
capitalismo hipertardio brasileiro e adoecimento do trabalhador assalariado (o
homem que virou suco), como um modo de desefetivação humano-genérica ou
loucura do homem-que-trabalha.
O filme nos permite refletir sobre um tema crucial para compreendermos a
persistência das desigualdades sociais no Brasil: o modo de objetivação do
capitalismo no Brasil, capitalismo hipertardio dependente de gênese colonial e
formação escravista. Os traços ontogenéticos do capitalismo brasileiro estão
presentes no filme através da exposição da desigualdade social historicamente
crônica, baseada na síndrome da superexploração estrutural da força de trabalho,
caracterizada pelo trabalho intenso, longas jornadas de trabalho, arrocho salarial,
autocracia oligárquico-burguesa e manipulação ideológica exacerbada.
A narrativa do filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade,
num primeiro momento, nos apresenta a via crucis de Deraldo, homem
nordestino, poeta popular e trabalhador de rua (interpretado por José Dumont). Ao
fugir da policia, acusado injustamente de ter matado o patrão na solenidade de
entrega do Premio Operário-Padrão, Deraldo trabalha em várias ocupações
salariais precárias. Dos serviços domésticos à indústria da construção civil, o poeta
popular Deraldo vive o inferno da precariedade salarial extrema. A odisséia pessoal
de Deraldo é a odisséia da individualidade pessoal de classe que percorreu as
estações da precariedade laboral no Brasil do “milagre econômico” da década de
1970. O filme expõe o desamparo dos desvalidos imersos na condição de
proletariedade, condição histórica que fundou a civilização brasileira. Deraldo
tornou-se narrador da tragédia proletária brasileira, projetando-se como
individualidade de classe que, após percorrer o inferno da precariedade salarial
extrema, reconheceu o valor da luta do em-si da classe como pressuposto da
emancipação social do trabalho.

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Num segundo momento do filme, liberto da via crucis da precariedade
salarial extrema, após provar sua inocência, o poeta popular Deraldo buscou
conhecer a história do sósia, o operário José Severino da Silva que matou o patrão
na entrega do Premio Operário-Padrão. O operário metalúrgico José Severino da
Silva é o verdadeiro homem que virou suco. Ao transformar a história de Severino
em literatura de cordel, Deraldo tornou-se o narrador da desgraça do operário
metalúrgico que sonhou ascender na empresa, traindo companheiros de trabalho,
colaborando com o patrão. Ao furar a greve, Severino é marginalizado pelos
companheiros que se recusam a trabalhar com ele. O patrão o demite.
Transtornado, Severino decide matar o patrão e depois enlouquece.
Por um lado, o filme “O homem que virou suco” nos apresenta o mundo
social da precariedade salarial extrema, com ocupações assalariadas informais em
que os sujeitos que trabalham estão expostos à exploração salarial e espoliação
indiscriminada à margem da legislação trabalhista. É o mundo social da “classe”
imersa na condição de proletariedade, o mundo social do “povo” que, como disse
Capistrano de Abreu, está “[...] há três séculos capado e recapado, sangrado e
ressangrado”. Não existem organizações sindicais ou políticas no mundo social da
precariedade extrema que caracteriza a proletariedade “pobre” no Brasil. Ao
percorrer as ocupações precárias, Deraldo, fugitivo da policia, é um pária social. Na
verdade, ele representa o povo brasileiro, composto por “homens livres” que
exercem o trabalho manual, oprimidos e explorados pelos donos do poder.
Deraldo, o poeta popular, amante da liberdade, não possui cidadania, pois é
homem sem registro de identificação civil, sendo, deste modo, marginalizado pela
ordem burguesa.
Como trabalhador de origem nordestina, Deraldo busca encontrar um
espaço de trabalho na metrópole paulistana, vendendo livrinhos de literatura de
cordel produzida por ele. Ele é trabalhador de rua, poeta de cordel não reconhecido
efetivamente como trabalhador, sendo, deste modo, discriminado não apenas pela
policia que o persegue, mas também pelos próprios companheiros de bairro que
não reconhecem o trabalho de artista do poeta Deraldo como sendo efetivamente
trabalho digno.,

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O filme “O homem que virou suco” expõe, num primeiro momento, a luta
cotidiana de Deraldo contra a opressão, preconceito e discriminação de classe que
caracterizou historicamente a ordem burguesa no Brasil. Na verdade, o estigmas da
precariedade salarial extrema que persegue os proletários pobres oculta a
superexploração estrutural da força de trabalho que caracteriza o capitalismo
histórico no Brasil. Existe um vínculo ontogenético entre opressão, preconceito e
discriminação contra os trabalhadores proletários pobres oriundos das regiões
mais atrasadas do País, principalmente a região nordeste, expulsos do campo pelo
latifúndio; e a superexploração da força de trabalho, padrão histórico de consumo
do trabalho vivo que caracteriza o capitalismo dependente.
Em nossa análise do filme “O homem que virou suco”, utilizaremos bastante
o conceito de superexploração da força de trabalho. Para o economista marxista
Ruy Mauro Marini, a superexploração da força de trabalho caracteriza os países
capitalistas dependentes. Para ele, a economia dependente se contrapõe à
transferência de valor (que ocorre por meio do intercâmbio desigual) através de
compensações no plano da produção interna. Na medida em que se vincula ao
mercado mundial, convertendo produção de valores de uso em valores de troca, a
economia dependente se insere no circuito do intercambio desigual entre centro e
periferia que caracteriza o sistema mundial do capital. Para Marini, o intercambio
desigual que caracteriza as relações de dependência da economia mundial
capitalista, tem o efeito de exacerbar nas economias periféricas, o afã de lucro e a
agudização dos métodos de extração do trabalho excedente.
Deste modo, para Ruy Mauro Marini, a superexploração da força de trabalho
se caracteriza pelo (1) aumento da intensidade do trabalho, com o aumento da
mais-valia obtido através da maior exploração do trabalhador assalariado e não do
incremento da sua capacidade produtiva); (2) prolongamento da jornada de
trabalho com o aumento da mais-valia absoluta em sua forma clássica,
aumentando, deste modo, o tempo de trabalho excedente; e a (3) redução do
consumo do operário além do limite normal (como observou Karl Marx em “O
Capital”: “O fundo necessário de consumo do operário se converte, de fato, dentro
de certos limites, num fundo de acumulação de capital”).

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Elementos da superexploração da força de trabalho
(segundo Ruy Mauro Marini)
Aumento da intensidade do trabalho
Prolongamento da jornada de trabalho
Redução do fundo de consumo do trabalhador assalariado

Portanto, é a superexploração da força de trabalho que compensa a


transferência de valor dos países dependentes para os países metropolitanos. É este
padrão histórico de consumo da força de trabalho no capitalismo dependente que
explica a presença ampliada da precariedade histórica em nosso País. A
superexploração da força de trabalho, que consideraremos como uma síndrome
social, tendo em vista que implica não apenas determinações de ordem salarial
como o trabalho intenso, jornada de trabalho longas e arrocho salarial, mas
também determinações ideológicas, políticas e culturais, como o preconceito
étnico-racial, autoritarismo político e manipulação ideológica exacerbada, tornou-
se uma necessidade estrutural das formações capitalistas dependentes.
Ricardo Antunes em sua tese de doutorado “A Rebeldia do Trabalho – O
confronto operário no ABC paulista: as greves de 78/80) utilizou o conceito de
“superexploração do trabalho”, considerado por ele como sendo “a articulação de
uma jornada prolongada de trabalho com uma intensidade extenuante do processo
produtivo”. Na perspectiva de Antunes, a superexploração do trabalho no Brasil da
década de 1970 ocorreu num cenário de persistente depreciação salarial, constante
subtração do quantum referente a remuneração do trabalho em beneficio do mais-
valor apropriado pelo capital monopólio. Um detalhe: Antunes não vincula a
depreciação salarial (o arrocho salarial) à superexploração do trabalho, como o faz
Marini, que inclui a redução do fundo de consumo dos trabalhadores assalariados
como um dos elementos compositivos da categoria de “superexploração da força de
trabalho” (Antunes fala em “superexploração do trabalho”).

A precariedade salarial extrema que caracterizou o mundo do trabalho no


Brasil desde a Colônia, Império e República Velha, atingiu hoje a vasta massa de
trabalhadores pobres informalizados que vivem à margem da legislação trabalhista.

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A precariedade salarial extrema se contrasta, por exemplo, com a precariedade
salarial regulada que abrange os trabalhadores assalariados com direitos. No
Brasil, a precariedade salarial regulada se caracteriza pelos acesso aos direitos
inscritos na CLT (Consolidação das leis Trabalhistas) que, em 1940, quando foram
criados, regulamentaram o trabalho urbano (o trabalho rural não eram cobertos
pela CLT, deixando, naquela época, a maior parte dos trabalhadores brasileiros
imersos na precariedade salarial extrema).
Portanto, o mundo social do trabalho no Brasil imerso na condição de
proletariedade dividiu-se historicamente entre a precariedade salarial extrema e a
precariedade salarial regulada. Na primeira, a precariedade salarial extrema, os
trabalhadores assalariados, proletários pobres, não tem acesso aos direitos
trabalhistas, não sendo, deste modo, sujeito de direitos. Na segunda, a
precariedade salarial regulada, os operários e empregados têm acesso aos direitos
trabalhistas inscritos na CLT e que dividem-se entre trabalhadores assalariados
não-organizados, que constitui a maioria dos formalizados, no sentido de não
possuírem representações sindicais com poder de barganha e negociação coletiva; e
trabalhadores assalariados organizados, os formalizados capazes de negociação
coletiva.
Deste modo, o trabalhador assalariado formal com capacidade de negociação
coletiva está no topo da pirâmide – o nível superior da precariedade salarial
regulada - representando o patamar mais elevado da cidadania salarial no País. Os
trabalhadores assalariados formalizados, principalmente os organizados e com
poder de barganha sindical, têm a capacidade de resistir como classe em-si, à
superexploração da força de trabalho que caracterizou historicamente o
capitalismo brasileiro.

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Modos da precariedade salarial no Brasil

(organizados)
(não-organizados)
Precariedade regulada

Precariedade extrema
(não-organizados)

A persistência da precariedade salarial extrema que historicamente


caracterizou o mundo social do trabalho no Brasil, vinculou-se ao modo de
entificação do capitalismo brasileiro: capitalismo hipertardio de extração colonial-
prussiana com cariz escravista.

No filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade, o foco


principal está no proletário pobre de origem nordestina, egresso das regiões mais
atrasadas e que, ao chegar na cidade grande, assume sua face autenticamente
proletária, de ser social moldado pelo mundo industrial. Ele é o “homem livre”
expulso do campo pelo latifúndio, grande propriedade fundiária que caracterizou a
ordem burguesa no Brasil. O Brasil industrializou-se sem fazer uma reforma
agrária, preservando a estrutura fundiária do campo nos moldes arcaicos. Deste
modo, as cidades incharam com a presença do proletário de origem rural que
conduzido pelo sonho de vida melhor, abandonou a vida de miséria no campo.
Deraldo e a maioria dos personagens proletários do filme “O homem que virou
suco” são proletários oriundos das regiões mais atrasadas do País (o próprio diretor
e autor do roteiro do filme “O homem que virou suco”, João Batista de Andrade foi
um proletário oriundo do interior de Minas Gerais).

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A nova via de objetivação do capitalismo brasileiro de cariz hipertardio (via
colonial) caracterizou-se pela articulação entre o moderno (a indústria) e o arcaico
(o latifúndio de origem escravista). Na verdade, o arcaico garantiu a materialidade
social da superpexploração da força de trabalho, traço estrutural do capitalismo
dependente. Portanto, por um lado, o filme “O homem que virou suco” nos leva a
refletir sobre a questão democrática, questão social não-resolvida pelo
desenvolvimento capitalista no Brasil: a concentração fundiária e o latifúndio,
originariamente de base escravista e que, depois, expulsou proletários pobres do
campo para a cidade, dando origem a ondas migratórias de trabalho vivo
disponíveis para a superexploração da força de trabalho nas cidades. A irresolução
da questão democrática e a herança escravista, que caracterizaram a “via
prussiana” do desenvolvimento capitalista no Brasil, tornou-se adequada para a
afirmação do caráter dependente do capitalismo brasileiro (a questão nacional). A
expulsão do homem do campo criou a população excedente disponível para a
superexploração da força de trabalho, traço estrutural do capitalismo dependente.

Formas de entificação do capitalismo brasileiro


Capitalismo hipertardio de extração colonial-prussiana com cariz escravista

“via colonial” “via prussiana”


capitalismo dependente latifúndio
(questão nacional) (questão democrática)
superexploração da força de trabalho herança escravista

Portanto, na análise critica do filme “O homem que virou suco”, torna-se


interessante resgatar a discussão dos modos de entificação do capitalismo no
Brasil, tornando claro, por exemplo, o significado de “via colonial” e “via prussiana”
de desenvolvimento do capitalismo no Brasil. No caso do Brasil, a via de
objetivação do capitalismo pode ser caracterizada como via colonial-prussiana de

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cariz escravista. É esta categorização histórico-estrutural que explica a persistência
da superexploração da força de trabalho, ou melhor, a síndrome histórica da
superexploração da força de trabalho no Brasil baseada na desigualdade social,
discriminação étnico-racial e autoritarismo nas relações sociais da formação
capitalista brasileira.
O filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade, ao expor o
drama do êxodo rural para a cidade grande (questão democrática), a
superexploração da força de trabalho como traço estrutural do capitalismo
dependente (questão nacional) e a discriminação étnico-racial e autoritarismo nas
relações sociais no Brasil (herança escravista), condensou em sua narrativa fílmica,
a problemática da via colonial-prussiana de cariz escravista que caracteriza a
entificação do capitalismo brasileiro. Primeiro, a superexploração da força de
trabalho é uma derivação estrutural da condição dependente do capitalismo
histórico no Brasil. Depois, o preconceito étnico-racial e o autoritarismo nas
relações sociais no Brasil é uma derivação estrutural da formação escravista do
capitalismo brasileiro baseado na grande propriedade (latifúndio).
Podemos assinalar três vias particulares de objetivação do capitalismo:
1. A "via clássica" em que o desenvolvimento da burguesia culminou com a
supremacia do modo de produção capitalista marcado pela época das revoluções
democrático-burguesas, em torno de propostas onde o historicamente novo
suplantou o historicamente velho, com movimentos nacionais, que trazem no seu
bojo o caráter da participação das massas populares. São movimentos em que a
maioria da população participa na destruição da sociedade feudal, liderada pela
burguesia, que nesta época traz a marca de classe revolucionária.
Friedrich Engels, em nota à edição inglesa de 1888 do “Manifesto
Comunista”, ao tratar da especificidades da Inglaterra e da França, na sua evolução
capitalista, aponta nuances, próprias de cada um desses países de “via clássica". Diz
ele: "De modo geral, considerou-se aqui a Inglaterra como país típico do
desenvolvimento da burguesia, e a França como país típico do desenvolvimento
político desta classe”. No caso inglês, os antigos proprietários feudais, a partir do
século XVI (com a Reforma), foram aburguesando-se, em função da mudança da
estrutura rural inglesa, pois "a terra tornara-se um domínio extremamente atraente

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para o investimento de capital”. Sendo assim, o pacto realizado deu-se a partir do
"respeito" aos "troféus políticos" da aristocracia inglesa: "desde que defendessem
os interesses da classe média financeira, industrial e mercantil”. E, cabe frisar, tais
"interesses econômicos eram já, na época, bastante poderosos para em última
análise determinar os rumos da política geral da nação. Haveria muitas
divergências sobre questões de pormenor, mas a oligarquia aristocrática sabia
bastante bem quanto a sua prosperidade econômica estava irrevogavelmente unida
à da burguesia industrial e comercial."
Todavia, se, no caso inglês, o desenvolvimento dos movimentos nacíonais
transformou a burguesia "em parte integrante, modesta, mas oficialmente
reconhecída, das classes dominantes da Inglaterra, compartilhando com as outras
do interesse de manter oprimida a grande massa operária da nação”, no caso
francês, os movimentos nacionais conheceram tonalidades mais vivas nas disputas
das classes envolvidas ". Diz Engels: "Na França, a revolução rompeu
completamente com as tradições do passado, varreu os últimos vestígios do
feudalismo...”. Essa peculiaridade da França, no seu processo revolucionário,
demonstra historicamente os "limites" do processo político inglês, cuja diferença de
desenvolvimento sempre esteve presente nos textos clássicos.
É típico dos caminhos clássicos, nos seus movimentos nacionais, "a
incorporação neles do campesinato como a camada da população mais numerosa e
mais ‘difícil de mover' em relação com a luta pela liberdade política em geral e
pelos direitos da nacionalidade em particular". E, ainda, sobre este aspecto, é
importante salientar que nas três decisivas revoluções realizadas pela burguesia na
supressão do feudalismo (a reforma protestante, a revolução inglesa e a revolução
francesa), "tenha sido o campesinato a fornecer as tropas de combate e a ser
precisamente a classe que, depois de alcançar o triunfo, sai arruinada
infalivelmente pelas conseqüências econômicas desse triunfo". Portanto, na “via
clássica”, o historicamente novo suplantou o historicamente velho, com
movimentos nacionais, que trazem no seu bojo o caráter da participação das
massas populares.
2. A "via prussiana" que caracterizou o capitalismo tardio, considerado aqui
como o período que corresponde ao que Lênin chamou de segunda época do capi-

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talismo, vê nascer seus Estados nacionais, quando os países da “via clássica", já
estão plenamente constituídos, conscientizados teórica e praticamente, do
antagonismo entre burguesia e proletariado. Enquanto a “via clássica” é o caso
inglês e o caso francês, a “via prussiana” é o caso alemão, onde o particularismo
feudal existente até quase final do século XIX coloca na ordem do dia da revolução
burguesa a problemática da unidade nacional, pois, não efetuando sua
centralização territorial, vive uma realidade de numerosos principados
independentes, que obstaculizam sua unificação. Temos, no caso alemão, diferença
significativa do que ocorreu, especialmente com a França e Inglaterra, cujo
processo de dissolução feudal esteve acompanhado da organização das monarquias
nacionais, passo decisivo para a unidade nacional.
É interessante salientar a longa (e necessária) observação de Georg Lukács
no livro “Goethe e sua época”, analisando o caráter retardatário do processo de
objetivação do capitalismo na Alemanha. Diz ele:
"A Alemanha entrou muito tardiamente pelo caminho da moderna
transformação em sociedade burguesa, tanto no econômico, como no político e no
cultural. Já estão nascendo no Ocidente as primeiras grandes batalhas de classe do
proletariado ascendente quando, em 1848, apareceu pela primeira vez de forma
concreta para a Alemanha os problemas da revolução burguesa. Por certo que, com
exceção da Itália, somente na Alemanha se colocam esses problemas de tal modo
que a questão central da revolução burguesa resulta ser a da unidade nacional que
ainda há que criar. A revolução inglesa do século XVII e a francesa do século XVIII
realizam-se já dentro de Estados discretamente constituídos, ainda que somente a
Revolução lhes dê sua figura definitiva e consumada; por isso, para ambas as
revoluções ocidentais, o que se encontra em primeiro plano é a liquidação do
feudalismo e, antes de tudo, a liberação da servidão camponesa jurídica e factual.
Esta peculiaridade da revolução burguesa alemã é que possibilita antes de tudo a
semi-solução reacionária de 1870. Tudo isto tem como conseqüência que na
Alemanha, o progresso social e a evolução nacional não se apóiem e empuxem
mutuamente, como em França, mas ao contrário se encontrem em contraposiçâo.
Por isso também o desenvolvimento do capitalismo não consegue produzir uma
classe burguesa capaz de fazer-se com a direção da nação” (os grifos são nossos)

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Deste modo, a frágil burguesia alemã, temendo ser encontrada pelo
proletariado revolucionário, abandona covardemente suas tarefas políticas,
realizando só as econômicas. Portanto, a constituição do Estado alemão se põe
através da conciliação do historicamente novo (a industrialização e o progresso
social) com o historicamente velho (o latifúndio e a autocracia junker), em que o
primeiro paga alto tributo ao segundo. Esta forma particular de ser do capitalismo,
no que tange aos movimentos nacionais, desconhece a revolução democrático-
burguesa. Como observou V. I. Lênin no texto “Sobre o Direito das Nações à
Autodeterminação”: "É típica da segunda época (do capitalismo) a ausência de
movimentos democrático-burgueses de massas, quando o capitalismo
desenvolvido, aproximando e misturando cada vez mais as nações já plenamente
incorporadas na circulação comercial, coloca em primeiro plano o antagonismo
entre o capital internacionalmente fundido e o movimento operário internacional"
(o parêntese é nosso).
No texto “A ‘Politização’ da ‘Totalidade’: Oposição e Discurso Econômico”
(de 1977), José Chasin observou que a via alemã ou o caminho prussiano é "um
caminho histórico concreto que produziu certas especificidades que, em contraste,
por exemplo, com os casos francês e norte-americano, muito se aproxima de
algumas das que foram geradas no caso brasileiro". De maneira que, para Chasin, o
caso brasileiro "sob certos aspectos importantes, é conceitualmente determinável
de forma próxima ou assemelhável àquela pela qual fora o caso alemão",
ressaltando que "de maneira alguma de forma idêntica”. Assim, salienta Chasin,
“irrecusavelmente, tanto no Brasil, quanto na Alemanha, a grande propriedade
rural é presença decisiva; de igual modo, o ‘reformismo pelo alto' caracterizou os
processos de modernização de ambos, impondo-se, desde logo, uma solução
conciliadora no plano político imediato, que exclui as rupturas superadoras, nas
quais as classes subordinadas influiriam, fazendo valer seu peso específico, o que
abriria a possibilidade de alterações mais harmônicas entre as distintas partes do
social”.
Também nos dois casos – Alemanha e Brasil - o desenvolvimento das forças
produtivas é mais lento, e a implantação e progressão da indústria, isto é, do
verdadeiro capitalismo', como distinguia Marx, do modo de produção

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especificamente capitalista, é retardatária, tardia, sofrendo obstaculizações e
refreamentos decorrentes da resistência de forças contrárias e adversas. Em
síntese, num e noutro caso, conclui Chasin, verifica-se que “o novo paga alto tributo
ao velho”.

Via prussiana de objetivação do capitalismo


(caso alemão)
preservação da grande propriedade rural
Reformismo pelo alto
Industrialização retardatária

José Chasin observou que, embora apresentem generalidades com um grau


razoável de semelhança, nas suas gêneses próprias, Alemanha e Brasil são
distintos, apresentando a totalidade concreta do caso alemão, singularidades
diferentes da totalidade concreta do caso brasileiro. Sendo assim, estas identidades
abstratamente tomadas, pertencentes a esses dois processos, os igualam em relação
às diferenças que ambos têm dos casos clássicos, mas não os tornam, efetivamente,
idênticos entre si. Diz Chasin: "Desse modo, se dos dois casos convém o predicado
abstrato de que neles a grande propriedade rural é presença decisiva, somente
principiamos verdadeiramente a concreção ao atentar como ela se objetiva em cada
uma das entidades sociais consideradas, isto é, no momento em que se determina
que, no caso alemão se está indicando uma grande propriedade rural proveniente
da característica propriedade feudal posta no quadro europeu, enquanto no Brasil
se aponta para um latifúndio procedente de outra gênese histórica, posto, desde
suas formas originárias, no universo da economia mercantil pela empresa colonial”
(diríamos nós, escravista).
Avançando mais nas diferenças dos dois casos, achamos importante frisar
(com Chasin) que, mesmo sendo o desenvolvimento das forças produtivas nas duas
vias mais moroso que nos casos clássicos, "a industrialização alemã é das últimas
décadas do século XIX, e atinge, no processo, a partir de certo momento, grande
velocidade e expressão, a ponto da Alemanha alcanças a configuração imperialista,

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[enquanto] no Brasil a industrialização principia a se realizar efetivamente muito
mais tarde, já num momento avançado da época das guerras imperialistas, e sem
nunca, com isto, romper sua condição de país subordinado aos pólos hegemônicos
da economia internacional. De sorte que o verdadeiro capitalismo alemão é tardio,
se bem que autônomo, ao passo que o brasileiro, além de hipertardio, é caudatário
das economias centrais”. Deste modo, percebemos a existência de mais de uma via
particular não-clássica de entificação do capitalismo – é o que José Chasin vai
denominar de “via colonial”.

Via colonial de objetivação do capitalismo


(caso brasileiro)
grande propriedade rural (latifúndio de origem colonial)
reformismo pelo alto
industrialização hipertardia (capitalismo dependente)

3. A “via colonial” é a via de objetivação do capitalismo próprio aos países ou


pelo menos a alguns países (questão a ser concretamente verificada) de extração
colonial. Como salientou José Chasin, “ficam distinguidos, neste universal das
formas não-clássicas, das formas que, no seu caminho lento e irregular para o
progresso histórico-social, pagam alto tributo ao atraso, dois particulares que,
conciliando ambos com o historicamente velho, conciliam, no entanto, com um
velho que não é, nem se põe como o mesmo". O que significa que o “historicamente
velho” no caso brasileiro não é o mesmo do caso alemão (por exemplo, a grande
propriedade rural na Alemanha possuía origem feudal e no caso brasileiro, origem
colonial). Portanto, a via colonial é a via particular do capitalismo brasileiro que
nos informa como se põem, aqui, os movimentos nacionais.
Em primeiro lugar, a via colonial implicou a ausência de rupturas
transformadoras, levadas a cabo pelas massas populares, no processo de
constituição do capitalismo tardio e do capitalismo hipertardio, sendo, pois,
próprio do universal das formas não-clássicas de objetivação do capitalismo, a
ausência da revolução democrático-burguesa. Diz José Chasin no seu livro “O

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Integralismo de Plínio Saldo: Formas de regressividade no Capitalismo
Hipertardio” (1978):
"No Brasil, bem como na generalidade dos países coloniais ou dependentes,
a evolução do capitalismo não foi antecedida por uma época de ilusões humanistas
e de tentativas - mesmo utópicas - de realizar na prática o ‘cidadão’ e a comunidade
democrática. Os movimentos neste sentido, ocorridos no século passado e no início
deste século, foram sempre agitações superficiais, sem nenhum caráter verda-
deiramente nacional e popular. Aqui, a burguesia se ligou às antigas classes
dominantes, operou no interior da economia retrógrada e fragmentada. Quando as
transformações políticas se tornavam necessárias, elas eram feitas ‘pelo alto’,
através de conciliações e concessões mútuas, sem que o povo participasse das
decisões e impusesse organicamente a sua vontade coletiva. Em suma, o
capitalismo brasileiro, ao invés de promover uma transformação social
revolucionária - o que implicaria, pelo menos momentaneamente, a criação de um
‘grande mundo’ democrático contribuiu, em muitos casos, para acentuar o
isolamento e a solidão, a restrição dos homens ao pequeno mundo de uma
mesquinha vida privada".
Deste modo, uma das características mais marcante, em nossa formação
histórica, são as medidas econômicas antinacionais e as políticas autocráticas. Diz
José Chasin:
"Ditaduras e ‘milagres’ traduzem o caráter essencial de nossa formação e
estrutura coloniais. Estrutura que se vem conservando sob formas diferentes mais
ou menos complexas, ou mais ou menos sofisticadas, como eixo básico de nossa
existência social. Assim é, desde a empresa açucareira colonial, até a recente
tentativa de uma economia de exportação de manufaturados. Assim é, para só falar
da nossa história republicana, desde a máscara democrático-liberal da República
Velha, até a ditadura explícita da última década e tanto." E mais, "só para
relembrar os períodos dominantes e mais decisivos do nosso processo econômico-
social: sucessivamente tivemos o ‘milagre’ da cana-de-açúcar, o ‘milagre’ da
mineração, o ‘milagre’ do café, e finalmente, dentro do ‘milagre’ da industrialização
subordinada ao imperialismo, o menor e mais curto de todos, o ‘milagre’ de 1968 a
1973". E diga-se ainda que: "Este último (‘milagre’), baseado na dinâmica

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econômica da indústria automobilística e produtos correlatos, os chamados bens de
consumo duráveis, destinados a uma absorção por segmento privilegiado do
mercado interno; ‘milagre’ também sustentado pelo ‘esforço’ exportador
predominantemente, como sempre, de produtos primários e matérias-primas, e, de
modo complementar, mais na aparência do que em termos efetivos, pela venda ao
exterior de manufaturas." (o parênteses é nosso)1.
Depois, como observou Chasin, "a particularidade da via colonial, (...)
engendra uma burguesia que não é capaz de perspectivar, efetivamente, sua
autonomia econômica, ou o faz de um modo demasiado débil, conformando-se,
assim, em permanecer nas condições de independência neo-colonial ou de
subordinação estrutural ao imperialismo. Em outros termos, as burguesias que se
objetivaram pela via colonial não realizam sequer suas tarefas econômicas, ao
contrário da verdadeira burguesia prussiana, que deixa apenas, como indica
Engels, de realizar suas tarefas políticas. De modo que, se para a perspectiva de
ambas, de fato, é completamente estranha a efetivação de um regime político
democrático-liberal, por outro lado a burguesia prussiana realiza um caminho
econômico autônomo, centrado e dinamizado pelos seus próprios interesses,
enquanto a burguesia produzida pela via colonial tende a não romper sua
subordinação, permanecendo atrelada aos pólos hegemônicos das economias
centrais. Em síntese, a burguesia prussiana é antidemocrática, porém autônoma,
enquanto a burguesia colonial, além de antidemocrática, é caudatária, sendo
incapaz, por iniciativa e força próprias, de romper com a subordinação ao
imperialismo" (o grifo é nosso).
Ao longo da história brasileira, põe-se e repõe-se a estrutura colonial,
subordinada aos centros hegemônicos do capital, traduzindo um "continuismo
histórico", vivido pelo país ao longo de sua existência. Essa existência é marcada
por uma história em que a miséria e a opressão acompanharam a vida da maioria
da população. Para Chasin (em 1977), o que se colocava como tarefa radical era a

1
Temos utilizado à exaustão, citações de José Chasin – citado por Maria Angélia B. Rodrigues no seu texto
“Particularidade e objetivação do Capitalismo” – por ele representar o intelectual brasileiro que desenvolveu
de forma brilhante (em contraposição, por exemplo, a outros intelectuais de esquerda que trataram do tema
das particularidades de objetivação do capitalismo no Brasil, como Carlos Nelson Coutinho e Antonio Carlos
Mazzeo), o conceito de “via colonial”.

16
democratização no país, entendida como democratização econômica, política,
social e cultural.

Formas de entificação do capitalismo

via clássica via prussiana via colonial


(França e Inglaterra) (Alemanha e Itália) (Brasil)

vias não-classicas

Portanto, a particularidade concreta da entificação do capitalismo no Brasil


exigiu conceituá-lo como sendo um capitalismo hipertardio de extração colonial-
prussiana de cariz escravista.
José Chasin, Ricardo Antunes e Antonio Carlos Mazzeo, intelectuais que
utilizaram o conceito de via colonial (Chasin) ou via colonial-bonapartista
(Mazzeo), salientam, em suas reflexões, a irresolução da questão nacional
(capitalismo dependente) e a irresolução da questão democrática (grande
propriedade latifundiária ou Estado autocrátrico-burguês de cariz bonapartista)
como elementos-chaves da via colonial-prussiana. Entretanto, é importante
salientar no bojo desta reflexão sobre o modo de entificação do capitalismo
brasileiro, a presença da herança escravista (sem considerá-la, entanto, um novo
modo de produção, como queria Jacob Gorender).
Por exemplo, ao tratar da particularidade da classe operária brasileira, no
livro “Classe operária, sindicatos e partido no Brasil”, Antunes salienta a pesada
herança do latifúndio e da economia agrário-exportadora (curiosamente ele não faz
referencia ao escravismo), observando que a classe operária do capitalismo
hipertardio encontrou “um mundo onde a mecanização e a divisão do trabalho
apresentavam-se de forma plena”, o que significa que a classe operária brasileira
“já nasce, objetivamente, dentro daquelas condições que caracterizaram a última
fase do trabalhador europeu clássico (a grande indústria).” E mais adiante observa:
“Apesar de, em seu nascimento, não ter percorrido as formas de produção

17
anteriores, ela não pôde crescer normalmente, limitada que foi por uma
industrialização que pagou alto preço ao latifúndio para poder desenvolver-se, ao
mesmo tempo em que se encontrava nas condições de uma industrialização
subordinada” (segundo ele, a organização técnica da grande indústria pesou mais
na formação da classe operária do que a herança escravista).
Deste modo, o que observamos é que Chasin, Antunes e Mazzeo fazem pouca
referencia à herança escravista que caracterizou o caso brasileiro. Na verdade, para
eles, a classe operária é interpretada na chave da imigração estrangeira que
trabalha nas grande indústria. Deixa-se de lado o fato de que o lastro de
preconceito étnico-racial e autoritarismo das relações sociais no Brasil, um dos
elementos compositivos da síndrome da superexploração da força de trabalho,
provém historicamente da formação escravista-colonial do capitalismo hipertardio.
A ordem escravocrata impregnou o ethos burguês no Brasil de uma sociabilidade
autoritária, violenta e hierárquica que se perpetuou após a abolição da escravatura.
A sociedade brasileira pagou um alto preço pelo passado escravista: a estrutura
social profundamente hierárquica e rígida. Foi a formação escravista que
impregnou a sociedade brasileira do preconceito com o trabalho manual,
disseminando discriminações étnico-racial no interior do próprio mundo do
trabalho. Após a libertação dos escravos, a classe dominante relegou os
trabalhadores negros para a precariedade salarial extrema, utilizando, por outro
lado, imigrantes brancos nas fábricas. Como observou Emilia Viotti da Costa, “a
abolição libertou os brancos do fardo da escravidão, abandonando os ex-escravos à
sua própria sorte”. O preconceito com o trabalho manual impregnou o horizonte
ideológico das “classes médias” no Brasil. Enfim, a escravidão foi uma mancha
persistente na sociabilidade brasileira (a maioria dos trabalhadores assalariados
brasileiros que vivem em precariedade salarial extrema hoje são afro-
descendentes).
Deste modo, soa estranho que José Chasin, Ricardo Antunes e Antonio
Carlos Mazzeo não tenham salientado a contento, como traço ontogenético de
formação do mundo social do trabalho ou de construção da sociedade do trabalho
no Brasil, o passado escravista vinculado à grande propriedade latifundiária.
Portanto, deve-se salientar a presença e persistência da grande propriedade

18
latifundiária no processo de desenvolvimento do capitalismo histórico no Brasil,
como ocorreu, por exemplo, no caso alemão; e deve-se salientar também sua
origem colonial ou colonial-bonapartista, como diria Mazzeo (o que a distinguiria,
por outro lado, do caso alemão); mas um traço particular-concreto deveras
importante é a formação escravista da grande propriedade latifundiária.
A formação colonial-escravista que caracterizou a objetivação do capitalismo
brasileiro contribuiu para a desigualdade social no Brasil, uma das maiores do
mundo ocidental, e para a discriminação salarial com recorte étnico (a maioria da
população trabalhadora imersa na precariedade extrema é afro-descendente). De
fato, a pobreza tem cor. Foi a precariedade salarial extrema ou precariedade
salarial cronicamente estrutural que criou a cultura da discriminação racial. O que
significa que a clivagem de classe social assumiu a forma de determinação racial.
Os negros e pardos são discriminados porque representam na consciência coletiva
brasileira, de extração escravista-colonial, a classe-que-vive-do-trabalho. Ao
mesmo tempo, o próprio mundo do trabalho no Brasil impregnou-se da cultura da
opressão de classe oligárquico-burguesa de matriz escravista-colonial (existe
preconceito racial entre os próprios trabalhadores assalariados). A ideologia do
escravismo penetrou profundamente na alma brasileira.
A precariedade salarial cronicamente estrutural que caracterizou a sociedade
brasileira desde as suas origens coloniais, ampliou-se com a exclusão do negro do
mercado de trabalho logo após a abolição da escravatura, assumindo, deste modo,
clivagens étnico-raciais. Na verdade, com a abolição da escravatura ampliou-se a
classe social dos “homens livres sem posses”, sendo a maior parte deles, de cor
negra ou parda, relegada para ocupações precárias e intermitentes, discriminados
no mercado de trabalho urbano ou rural. O mundo do trabalho da precariedade
salarial cronicamente estrutural é elemento compositivo da modernidade arcaica
brasileira de gênese colonial e formação escravista.
A multidão dos “homens livres” sem posse compunha um dos três
segmentos sociais da sociedade colonial (os outros eram os latifundiários e os
escravos). Como nos diz Robert Schwarz, “nem proprietários, nem proletários, seu
acesso à vida social e a seus bens dependem materialmente do favor, indireto ou
direto, de um grande. O agregado é a sua caricatura. O favor é portanto o

19
mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade,
envolvendo também outra, a dos que tem. [...] Assim, com mil formas e nomes, o
favor atravessou e afetou no conjunto a existência nacional, ressalvada sempre a
relação produtiva de base, esta assegurada pela força”.
Portanto, na medida em que não se resolveu a questão nacional (economia
dependente) e a questão democrática (o acesso a terra), e muito menos a questão
social, que surgiu com o problema da inclusão do negro na ordem competitiva
burguesa (o mercado de trabalho), a precariedade salarial extrema, caracterizada
pela flexibilidade estrutural da força de trabalho, tornou-se o fardo historicamente
pesado para amplas parcelas do mundo social do trabalho do Brasil,
principalmente para os homens livres negros e pardos afro-descendentes,
proletários que sofreram diretamente o tributo que o novo tem que pagar ao
arcaico (o passado escravista).
Num primeiro momento, pode-se explicar a vigência da precariedade
salarial extrema no Brasil pela oferta abundante de mão-de-obra que faz cair o
valor da força de trabalho. Entretanto, a explicação demográfica não é, por si só,
suficiente. A oferta historicamente abundante de mão-de-obra no Brasil deve-se,
em primeiro lugar, à concentração da propriedade fundiária, que obstaculizou o
acesso a terra e expulsou o trabalho vivo para a exploração da força de trabalho nas
cidades (a irresolução da questão democrática, isto é, a falta da Reforma Agrária).
Depois, com a industrialização brasileira ocorrida na etapa do capitalismo
monopolista, a grande indústria instalou-se com um arcabouço técnico de capital
intensivo. Deste modo, constituiu-se irremediavelmente no Brasil, uma
superpopulação relativa excedente às próprias necessidades de acumulação de
capital.
Esta precariedade salarial cronicamente estrutural caracterizou-se pela
alienação dos direitos trabalhistas para amplas parcelas do mundo do trabalho no
Brasil, principalmente trabalhadores pobres do campo ou trabalhadores pobres
oriundos do campo que vivem nas grandes cidades. O mundo da precariedade
salarial cronicamente estrutural é o mundo do trabalho sem proteção social,
desamparado das conquistas civilizatórias do século XX e que permeia a história
social do Brasil com seu povo pobre “capado e recapado, sangrado e ressangrado”

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(como disse Capistrano de Abreu). O mundo da precariedade salarial cronicamente
estrutural é mundo social do povo espoliado e explorado pelos senhores da casa-
grande, industriais e financistas.

Formas da precariedade salarial no Brasil


(década de 2000)

Precariedade salarial extrema cronicamente estrutural


(trabalho desregulado)

Nova precariedade salarial


(trabalho flexível)

Um detalhe: a precariedade salarial cronicamente estrutural que


caracterizou historicamente o mundo do trabalho no Brasil distingue-se, por
exemplo, da nova precariedade salarial que disseminou-se no Brasil da década de
2000, com o desenvolvimento do capitalismo global. A nova precariedade salarial
constituída pela ofensiva do capital na produção, atingiu o contingente moderno do
mundo do trabalho no Brasil, isto é, as camadas sociais da precariedade salarial
regulada que conquistaram direitos trabalhistas por conta da organização sindical e
negociação coletiva.
A reestruturação produtiva do capital que ocorreu a partir da década de
1990 no Brasil, sob a lógica do trabalho flexível, atingiu o núcleo moderno do
mundo do trabalho no Brasil. É o que Francisco de Oliveira denominou de
“desmonte do trabalho”, isto é, desmontou-se aquilo que era o arremedo de
modernidade salarial e que se contrastava, por exemplo, com a modernidade
arcaica do mundo do trabalho imerso na precariedade salarial cronicamente
estrutural.
A crise do capitalismo global promoveu uma ofensiva do capital às
instituições de regulação laboral de cariz fordista-keynesianas constituídas no
decorrer da “era dourada” do capitalismo central, surgindo, deste modo, a “nova

21
precariedade salarial”. A nova precariedade salarial é não apenas uma precariedade
salarial regressiva, na medida em que atenta contra o acúmulo civilizatório de
direitos sociais do trabalho, mas é também uma precariedade salarial contraditória,
pois repõem a superexploração da força de trabnalho nas condições históricas de
desenvolvimento amplo das forças produtivas do trabalho social, inclusive nos
países capitalistas dependentes. A nova precariedade salarial significa a elevação
num patamar superior do estranhamento social. Pode-se dizer que existe um
estranhamento dos miseráveis imersos na precariedade salarial cronicamente
estrutural, que caracterizou o mundo do trabalho no Brasil há séculos; e um
estranhamento dos formalizados da nova precariedade salarial com suas
experiências vividas de precarização do trabalho.

Após uma longa digressão teórico-histórica sobre o modo de entificação do


capitalismo no Brasil e a natureza do sociometabolismo do trabalho nas condições
do capitalismo hipertardio dependente de extração colonial-escravista, iremos
tratar da análise crítica do filme “O homem que virou suco”, de João Batista de
Andrade. O filme inicia-se com um ato de violência física cometido ironicamente
por um operário-padrão contra seu patrão numa cerimônia de entrega do Premio
Operário-símbolo de 1979. Os operários-símbolo ou operários-padrão, como diz o
locutor da cerimônia, são “os operários mais responsáveis, mais conscientes de seu
papel perante a nação...”. Diz o roteiro do filme, escrito por João Batista de
Andrade: “Solenidade pesada, numa salão da FIESP (Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo). O salão lembra um caixão visto por dentro. Nas cadeiras,
operários que disputam o título, com amigos e familiares. A frente, numa mesa
pomposa, autoridades; no meio, no centro, o presidente da FIESP: Teobaldo de
Nigris” (o roteirista observa que trata-se da festa real do operário-padrão, onde
estão “enfiados” os atores José Dumont, Renato Máster, Ruth Escobar). Diz o
roteirista: “Chega Mr. Joseph Losey (Renato Máster), importunado pelos
repórteres e protegido pelos seguranças.” O empresário norte-americano Joseph
Losey é o proprietário da empresa Ashby Losey do Brasil S/A.
Teobaldo de Nigris – vide na imagem abaixo - na época presidente da FIESP
(Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), diz na abertura do filme: “Para

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sermos uma grande nação precisamos da vossa constante dedicação ao trabalho, de
vossa assiduidade, de vossa responsabilidade em relação à família. Do elevado grau
de companheirismo, do respeito aos princípios e às leis que regem o nosso país.”

Sob aplausos, José Severino da Silva, operário da Ashby Losey do Brasil,


levanta-se para receber o premio, sendo cumprimentado pelo seu empregador, Mr.
Joseph Losey. Um detalhe: José Severino da Silva, descrito pelo roteirista como
sendo “um homem de óculos, nordestino seco, fatalista...”, embora tenha sido
indicado para receber o Prêmio Operário Padrão de 1979, foi demitido há pouco,
por Mr. Joseph Losey.
Severino se levanta, beija a mulher e vai à frente sob aplausos. Seu patrão vai
cumprimentá-lo, ele tira uma faca e o mata. Deste modo, a cena de abertura do
filme “O homem que virou suco” é uma cena de violência brutal que rompe, de
modo diruptivo, com a solenidade ritualística de entrega do Premio Operário-
símbolo na FIESP. Entretanto, a violência brutal cometida pelo operário José
Severino da Silva contra o capitalista na abertura do filme, representa tão-somente
o ato sintético da violência destilada que impregna a narrativa fílmica de João
Batista de Andrade. O filme “O homem que virou suco” é um filme de violência do
capital contra o mundo do trabalho em suas múltiplas formas, violência atroz que
não se encontra apenas no começo do filme, mas também no meio e inclusive, no
fim do filme.
A violência condensada no gesto grotesco de José Severino da Silva, o
homem que virou suco, é a expressão antípoda da violência diluída, violência

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simbólica e física das classes dominantes contra as classes subalternas que
percorre a narrativa fílmica. Na verdade, o título do filme – “O homem que virou
suco” – é expressão da violência sistêmica que está diluída no modo de produção (e
reprodução) do capitalismo histórico no Brasil, sociedade burguesa hipertardia de
gênese colonial e formação escravista.
A violência diluída das classes dominantes contra os proletários pobres que
aparece no decorrer do filme, se expressa, primeiro, no não-reconhecimento dos
proletários pobres como sujeitos de direito. O preconceito étnico-racial e a
discriminação de classe que marca a atitude cotidiana das classes proprietárias
(incluindo a “classe média”) contra os pobres, no caso, trabalhadores pobres de
origem nordestina, são expressões da violência estrutural do capital contra o
trabalho que está na raiz do capitalismo brasileiro. Por isso, são obrigados a
trabalhar sem carteira assinada e, portanto, sem acesso aos direitos sociais
inscritos na CLT.
No ato grotesco do operário-padrão José Severino da Silva, estava contido,
em si, o ressentimento secular das classes subalternas brasileiras contra a opressão
e exploração capitalista. Ao mesmo tempo, existe um contraste dialético na
expressão do movimento da classe (contingente e necessário) exposto no filme: se,
por um lado, o operário José Severino da Silva, ao matar o patrão, deu uma
resposta meramente individual, radicalmente contingente e bizarra, àquilo que o
capital fez consigo, por outro lado, naquele ano de 1979, a classe operária brasileira
organizada como classe em-si, tinha dado historicamente uma resposta coletiva e
necessária contra a exploração capitalista nas greves do ABC paulista (naquele ano,
de 13 a 27 de março de 199, a classe operária metalúrgica do ABC organizou uma
longa greve greve contra a superexploração do trabalho na indústria
automobilística no ABC paulista, o pólo mais desenvolvida da indústria brasileira).
Na verdade, o ato grotesco de Severino foi um ato antípoda à luta de classe. Ao
recusar-se a aderir ao movimento do em-si da classe, Severino enlouqueceu. Mas a
loucura de Severino é o contraponto grotesco da lucidez de Deraldo. Na verdade,
João Batista de Andrade organizou a narrativa fílmica em pólos antitéticos que
expõem a dialética do movimento da consciência de classe – da contingência

24
grotesca à necessidade trágica que caracteriza o desenvolvimento do capitalismo
hipertardio (os limites do sindicalismo é a tragédia da modernidade do capital).

As simetrias antípodas da modernidade perversa


(filme “O homem que virou suco”)

Severino Deraldo
loucura luta de classe
grotesco trágico
contingente necessário

É importante contrapor o grotesco ao trágico na fenomenologia do filme “O


homem que virou suco”. Por exemplo, José Severino da Silva, não é uma figura
trágica, mas sim uma figura infeliz. Severino não age, limita-se a sofrer a
exploração e pior: adequar-se a ela, colaborando para que ela aumente. Severino é
uma figura perversa: sofre e goza com a exploração. Existe um conflito íntimo em
Severino. A colisão é interna. O sofrimento de Severino é interno e não externo.
Externamente, ele colabora com o patrão que lhe explora. Mas ele sofre a
exploração e vive seu conflito interno em sua subjetividade fechada. O conflito não
é público (como o de seus companheiros do chão-de-fábrica que organizam a
greve): ocorre na esfera privada mais íntima. Nada em Severino vai além da miséria
das relações humanas deformadas pelo isolamento e pelo anonimato massificador.

25
Severino é produto e vítima dessas relações e nenhum movimento em sua
vida ou em sua loucura aponta para a superação do quadro em que surgiu. O
operário Severino não deixa transparecer nenhum poder capaz de romper o
isolamento e contribuir para o embrião de uma nova comunidade humana. Ele
recusa o sindicalismo e a greve como instrumento de luta. A própria vida de
Severino o encaminha para a morte. Severino não é um cidadão, mas um burguês
(produtor e consumidor). A origem da tragédia moderna está no conflito entre o
burguês e o cidadão. Mas em Severino não existe este conflito – pelo contrário, nele
o homem como produtor e consumidor (como burguês), o operário que aspira a
ascensão social sacrificando seus laços de companheirismo no chão-de-fábrica, se
sobrepõe ao homem como cidadão com absoluta superioridade. O trágico em
Severino se torna ironia histórica e decepção: ele mata o patrão que tinha lhe
indicado como operário-símbolo do Brasil. Ao ser demitido, Severino se
decepcionou com o patrão. A loucura de Severino é expressão de sua infelicidade e
sofrimento sem saída. Ele comete um ato grotesco.
O operário José Severino da Silva é o Gregor Samsa (do conto “A
metamorfose”, de Franz Kafka), aquele que, após uma noite mal dormida, acordou
transformado num “monstruoso inseto”; Severino é o Gregor Samsa enlouquecido
que cometeu seu ato grotesco: matar o patrão. Ao trair companheiros e isolar-se em
suas aspirações de ascensão profissional colaborando com o patrão, Severino se
metamorfoseou e passou a achar que a “normalidade” é a banalidade, a
superficialidade, a pequenez. Os sonhos e aspirações de Severino se
amesquinharam na medida em que renunciou a lutar por uma sociedade mais
justa. Severino é o oportunista que cedeu ao medo e se calou diante do sistema,
anônimo e onipotente – e pior, colaborou com o mal (a exploração).
Como seus companheiros de chão-de-fábrica, não teve a coragem de
sustentar uma convicção. Severino não tem mais disponibilidade ou vontade para
sair dessa situação degradante; nem a loucura tem força para arrancá-lo dela. Por
isso, ao decepcionar-se, enlouqueceu. Por isso, a loucura de Severino, ao matar o
patrão, o levou a expressar-se mais pelo grotesco e pela caricatura do que pelo
trágico. O trágico significa disponibilidade ou vontade para se insurgir contra o
sistema mesmo à custa da intranqüilidade e sacrifício pessoal. Ao matar o patrão,

26
Severino não fez um sacrifício pessoal. Ele não se insurgiu contra o sistema, mas
sim contra si mesmo, isto é, contra o bicho quem se tornara, grotescamente
desumanizado, isolado das relações humanas, ser humano metamorfoseado,
enlouquecido pela decepção com o sistema.
Após a abertura do filme com o ato grotesco de assassinato do empresário
Joseph Losey pelo operário José Severino da Silva, na solenidade de entrega do
Premio Operário-Padrão 1979, e os letreiros iniciais do filme com a canção “Se eu
fosse um beija-flor” de Vital Brasil, as primeiras cenas do filme, nos mostram o
local de moradia do poeta Deraldo num lugar típico da periferia de São Paulo.
Maria, vizinha de Deraldo, põe roupa no varal; um Boeing passa por cima da vila
operária. Diz o roteiro: “Ali é o terraço de uma construção com quartos para alugar.
Embaixo, o armazém do Ceará, tipo miúdo, subdesenvolvido e que subiu na vida
em São Paulo.”
O barraco de Deraldo fica no terraço improvisado. Diz o roteiro: “um
cubículo de 2,5m x 2,5m atopetado de gravuras e instrumentos de trabalho, livros
de cordel com seu nome: Deraldo José da Silva.” Nesta primeira cena, quando
Deraldo sai para o trabalho, logo pela manhã, após empacotar alguns livros de
cordel, ele é provocado por Maria que pergunta se conseguiu emprego. O poeta
popular expressou, de imediato, sua repulsa pelo trabalho estranhado. Diz ele: “Se
eu soubesse quem inventou o emprego, eu mandava fuzilar...”.
Como poeta popular, trabalhador autônomo, Deraldo se recusa a assumir o
trabalho alienado, trabalho heterônomo que produz riqueza para o capitalista e
empobrece o trabalhador assalariado. Deste modo, Deraldo se apresenta como
crítico da ordem burguesa baseado no trabalho assalariado. O poeta popular é
totalmente avesso à divisão hierárquica do trabalho que caracteriza o trabalho
estranhado do capital. Deraldo, interpretado por José Dumont, é um personagem
rebelde por natureza, artista criativo que cultua a liberdade de expressão estética.
Mas a tragédia de Deraldo é que ele vive no mundo da escassez extrema. Maria
retruca Deraldo: “Pensa que a vida é só cantar? A vida é dura, é agarrar no
batente...”. Para Dona Mariazinha, quem quer ganhar a vida, é obrigado a ter
emprego assalariado.

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Portanto, nesta primeira cena, temos a contestação da atividade criativa do
artista como trabalho. Primeiro, o poeta Deraldo não é reconhecido como
trabalhador. Escrever poesia, imprimi-las em livros de cordel e vender no centro de
São Paulo, não é reconhecido como emprego. Diz ele para Maria: “Na sua
concepção isso aqui não é emprego, não?”. Ela assevera: “Isso é diversão, seu
Deraldo. Se o senhor fosse cego, vá lá, mas com uns olhinhos desses tão
vivos...Porque não faz igual a meu marido, que pega no batente desde 6 horas da
manhã e só volta a noite?”. Deraldo não deixa de fazer sua observação mordaz e
irônica sobre o relacionamento conjugal de Maria: “Tai, descobri...Vocês vivem tão
bem é por isso, não é?”.
Mas Deraldo foi contestado em sua atividade de artista não apenas por
Maria, mas, também, logo a seguir, pelo dono do bar. O poeta popular entra no Bar
do Ceará que o olha com ar de hostilidade. Deraldo tem uma divida com o Ceará.
Diz que vai pagá-la. “Vai pagar com o quê?”, exclama Ceará. Deraldo afirma:
“Poesia”. Indignado, Ceará retruca: “Poesia, seu Deraldo? O custo de vida subindo
todo dia...e o senhor vem me dizer que vai pagar com poesia? O senhor acha que eu
pago a mercadoria aqui com quê?”.
Mais uma vez, percebemos a diferença radical entre a visão de mundo de
Deraldo e a visão de mundo de Maria e Ceará. Deraldo, com sua atitude atrevida, se
recusa a aceitar como parâmetro de vida e sociabilidade, o trabalho alienado,
propriedade privada, divisão hierárquica do trabalho e dinheiro, mediações
estranhadas de segunda ordem do capital. Deraldo é uma individualidade pessoal
exótica no mundo da escassez, onde a atividade criativa, viver bem (no sentido
humano) e as relações de confiança, não são mediadas pelos parâmetros
estranhados do capital. Maria vive bem com seu marido, porque ele tem um
emprego (“pega no batente desde 6 horas da manhã e só volta à noite”); o dono do
bar Ceará só se dispõe a ser amigo de Deraldo desde que ele pague as dividas. O
mundo da escassez é o mundo social fetichizado onde as coisas se interpõem entre
os homens.
O trabalho de Deraldo não é reconhecido como trabalho digno no mundo da
indignidade humana. Ceará exclama para Deraldo: “Vai trabalhar, seu vagabundo!
Em vez de ficar pensando o dia todo em poesia”. Pensar o dia todo em poesia não é

28
trabalho, pois a concepção de trabalho como emprego assalariado é a concepção de
trabalho como atividade estranhada. O trabalho do artista popular não é
reconhecido como trabalho, por isso foi imputado a ele a pecha de vagabundo. A
ideologia do trabalho estranhado o desqualifica como homem digno. Ceará
expressa, primeiro, a ideologia do trabalho estranhado e depois, a ideologia do
empreendedor que ascendeu na vida em São Paulo. Exclama ele para Deraldo: “Seu
Deraldo, vá trabalhar, seu vagabundo! Ta pensando que eu conseguiu isto tudo com
o quê? Foi com o suor do meu ganho. Veja isso aqui, veja tudo isso. Foi trabalhando
e muito, Foi muita fome que passei. Foi muita fome e muito trabalho. Não foi com
poesia, não senhor”.
O personagem Ceará é um homem livre sem posses que acumulou recursos
com sacrifício pessoal e montou seu próprio negócio. É o típico empreendedor
popular cujo sonho da ascensão social pelo empreendedorismo adensou nele, a
ideologia do trabalho. Para ele, o trabalho dignifica o homem. Ceará representa os
anseios dos proletários pobres da ordem burguesa hipertardia. É o empreendedor
que cultua a ideologia do trabalho como tripalium e o sacrifício pessoal como
expiação pelos “pecados” da exclusão social na qual estavam condenados escravos e
homens livres na ordem competitiva burguesa escravista.
Mas o dia 6 de setembro de 1979 não era o dia de sorte de Deraldo. Após seu
trabalho não ser reconhecido por Maria e Ceará, nem como emprego, e muito
menos como trabalho, o poeta popular é abordado pelo fiscal da Prefeitura no
centro de São Paulo, quando vendia, em cima de uma toalha no chão, seus livrinhos
de cordel intitulados “O homem que trocou duas pernas por um pão”. O fiscal cobra
de Deraldo documentos. Ele diz: “Não, não tenho documentos”. E o fiscal exclama:
“Como não tem documento, rapaz? Então vamos jogar essa porra fora”. Deraldo
tenta convencê-lo a não jogar fora os livros de poesia. O fiscal diz: “Isto aqui é São
Paulo, não é Nordeste. Vamos conversar direito. Isto aqui é São Paulo, não é
Nordeste. E digo mais...se você vai ficar fazendo baderna, isto não é Nicarágua.
Vem cá, menino, Aqui todo mundo tem documentos” (o fiscal chama um hippie
para mostrar que ele tem documentos).
O hippie, figura de classe média deslocada no tempo e no espaço - São Paulo
não era EUA e a contracultura tinha-se se esgotado há tempos - era o artesão

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“rebelde” contra os costumes burgueses... mas tinha documentos. O hippie tira sua
carteira de documentos (de dobrar) e deixa desdobrar, imensa, cheia de
documentos. O fiscal recolhe os livros de Deraldo, sempre afirmando: “Isso aqui é
São Paulo, entendeu?”. Enfim, sem lenço e sem documentos, como diz a canção,
Deraldo não era reconhecido como cidadão. O Estado burguês só reconhece o
sujeito como cidadão desde que ele esteja com documentos que provem sua
idoneidade civil. O “vagabundo” Deraldo não era sequer um sujeito de direitos pois
não possuía documentos, portanto não poderia exercer atividade comercial nas
ruas de S.Paulo.
Tal como discurso de Maria e Ceará, o discurso do fiscal da Prefeitura
expressou a ideologia da ordem burguesa regressiva. A frase “isto aqui é S.Paulo”,
afirmado por ele, continha elementos de discriminação regional que caracterizou
historicamente o desenvolvimento do capitalismo hipertardio. O Estado de S.Paulo,
pólo do desenvolvimento capitalista no Brasil, atraiu migrantes de todo o País,
sendo, portanto, o Estado-mor da ordem burguesa. São Paulo não é Nordeste,
região que exportava força de trabalho barata para o crescimento da indústria
paulista. O Brasil – diga-se de passagem, São Paulo – não é Nicarágua, onde
ocorreu naquela época uma revolução nacional-popular anti-imperialista. Enfim, o
discurso do fiscal era o discurso da ordem burguesa hipertardia, dependente,
colonial-prussiana de extração escravista.
Mas o dia 6 de setembro de 1979 ainda reservaria para o poeta Deraldo um
momento kafkiano. A noite, ao voltar para casa, Deraldo sobe as escadas rumo a
seu barraco. Um menino pára ele e diz que ele precisa fugir pois esfaqueou um
dono de fabrica. Deraldo exclama: “Eu? Tá todo mundo louco. Onde é que tu ouviu
essa conversa?”. O menino mostra o jornal onde Deraldo lê na primeira página
uma foto com sua cara. Diz a manchete: “Operário esfaqueia o patrão.” Na verdade,
Ceará viu a foto de Deraldo no jornal e chamou a policia.
Ao chegar no barraco, Deraldo lê a reportagem do jornal. A policia chega
com voz de prisão. Deraldo insiste que o cara do jornal parece com ele, mas não é
ele, pois o nome é outro (José Severino da Silva). Exclama: “E meu nome é Deraldo
José da Silva”. Entretanto, o policial retruca: “É, mas todos esses paus-de-arara é
Silva. Documentos. Não tem documentos?”. Deraldo inquieto, diz: “Não, não tenho

30
documentos. Quando eu cheguei aqui não deu tempo de tirar documento.”. O
policial, preconceituoso e agressivo, exclama: “Ah, esses pau-de-arara sempre sem
documentos. Mas que onda é essa? Você é um descarado mesmo. Mexer com pé-
de-chinelo é foda. Como é, do Norte, e a identidade?”. Sentindo-se acuado, Deraldo
aproveita um descuido e foge.
A truculência autoritária dos agentes policiais e do fiscal da Prefeitura contra
o poeta popular Deraldo, que vimos nas primeiras cenas do filme “O homem que
virou suco”, são exemplos da violência diluída perpetrada cotidianamente pelos
agentes sociais do Estado capitalista brasileiro contra os trabalhadores pobres. Ela
permeia a vida cotidiana dos homens simples. Representa o traço da sociabilidade
autoritária que caracteriza a formação social brasileira e o capitalismo brasileiro de
origem colonial-prussiana com extração escravista. O autoritarismo dos agentes
sociais do Estado contra os pobres, negros ou pardos, trabalhadores simples
oriundos do campo, é um elemento compositivo da síndrome da superexploração
da força de trabalho no Brasil. Ela reforça (e perpetua) a lógica da superexploração
da força de trabalho.
A truculência autoritária contra os pobres no Brasil origina-se, como
salientamos acima, da formação social constituída historicamente na base do
latifúndio colonial-escravista. O latifúndio que caracteriza a formação social
brasileira, além da posse da terra, representa, no plano da sociabilidade, a
perpetuação do status quo opressor. Nele, uma minoria pensa, desenvolve,
estabelece e decide regras de comportamento e de direitos que se impõem a uma
maioria amorfa e sem nenhuma possibilidade de inverter ou subverter o processo.
A lógica social do latifúndio de origem colonial-escravista que caracteriza a
formação do capitalismo brasileiro, concebe duas vertentes ideológicas: os
“naturalmente inferiores” e os “naturalmente superiores”. Deste modo, como
salienta Paulo Freire (no livro “Extensão ou comunicação?”, Paz e Terra, 1992), a
posse da terra não é só um instrumento de poder e controle econômico, mas
também uma legitimação para o domínio até mesmo da alma e do futuro dos
homens. Diz Freire: “A estrutura latifundista, de caráter colonial, proporciona ao
possuidor da terra, pela força e prestigio que tem, a extensão de sua posse também
até os homens”. Portanto, a truculência autoritária das personificações sociais do

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capital (fiscal da Prefeitura, agentes policiais e, mais adiante, o Mestre de obras),
reproduzem a lógica latifundista que impregna a vida cotidiana e as relações sociais
de trabalho no Brasil.

Síndrome da superexploração do trabalho no Brasil


Trabalho intenso (mais-valia relativa)
Longas jornadas de trabalho (mais-valia absoluta)
Arrocho salarial (Redução do Fundo de Consumo)
Autoritarismo das personas do capital
Redução do valor de reprodução da força de trabalho
Controle biopolítico do trabalho vivo
Riscos à saúde e acidentes de trabalho

Começa a odisséia de Deraldo José da Silva pelo mundo da precariedade


salarial cronicamente estrutural. Ao perseguirem Deraldo naquela noite, um
holofote ilumina os barracos enquanto policiais invadem tudo. É a expressão da
truculência policial com o povo sofrido, truculência característica do Estado
colonial-prussiano de extração escravista. Como diz o roteiro: “O foco de luz do
refletor vai revelando fachadas de casas pobres, becos, caras sofridas. O foco de luz,
repressor, passa a ser usado como revelação para quem asssiste (para a polícia,
continua instrumento de repressão).”

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A cena do holofote da policia iluminando as caras sofridas do povo é
acompanhada pela música de Vital Farias: “Bate com o Pé o Xaxado” que fala da
Paraíba e suas misérias. João Batista de Andrade fala em “foco de luz repressor”.
Talvez o diretor-roteirista tenha em mente o foco de luz utilizado nos porões do
DOPS nas sessões de interrogatório policial. Mas o foco de luz não apenas reprime,
mas expõe para o público espectador, com claro-escuros, a proletariedade impressa
na miserabilidade das habitações precárias e caras sofridas e intimidadas pelo
aparato policial. A montagem da cena segue a canção de Vital Farias que nos fala de
lembranças (“Que não sai da minha idéia/Que não sai da minha mente”), fome
(“Eu vejo mesa sem prato/Eu vejo prato sem ceia”) e sofrimento do proletário
pobre oriundo da Paraíba (“Bem curtida e bem pra frente/Esse suor que escorre no
peito da nossa gente”).
Bate com o Pé o Xaxado
(Vital Farias, 1978)

[Refrão]
Bate com o pé xaxado
Bate com o pé rachado
Bate com o pé xaxado
Bate com o pé rachado

Essa linda Filipéia,


Digo João Pessoalmente,
Que não sai da minha idéia
Que não sai da minha mente.

[Refrão]

Essa Paraíba agora,


Bem curtida e bem pra frente
Esse suor que escorre no peito da nossa gente

[Refrão]

Eu aqui no Baixo Roger,


Vejo uma luz de candeia
Eu vejo mesa sem prato
Eu vejo prato sem ceia

[Refrão]

Taperoá, Paraíba
Na minha imaginação...
Paraíba hospitaleira,
Que sublime, que besteira, ou que torrão

[Refrão]

33
Porto do Capim, existe
Sua sorte é meu desgosto
Ilha do Bispo
Cimento deformando o nosso rosto

[Refrão]

Essa antiga Guanabara...


Centenas de edifícios nos subúrbios coisa e tal
Favelados e mocambos no centro da capital

A cena impactante do holofote da policia iluminando as caras sofridas do


povo é uma cena de ligação com a parte II do filme que expõe as estações da
precariedade salarial cronicamente estrutural percorridas por Deraldo, o fugitivo.
Na seqüência, vemos Deraldo pela manhã, caminhando perdido entre a multidão
que assiste a Marcha Militar no desfile de 7 de setembro de 1979. Diz o roteirista
que Deraldo não vê “o sentido de tudo aquilo”. A cena da Marcha Militar compõe a
candente temporalidade histórica do filme desvelando suas determinações sociais e
políticas. A odisséia de Deraldo ocorre no espaço-tempo da ditadura militar-
bonapartista, explicitando, em sua trajetória errática, dimensões da precariedade
salarial cronicamente estrutural que caracterizou a modernidade conservadora do
Brasil.

O ano do filme é 1979 é ano-chave de crise do Estado militar-bonapartista


(como nos diria Antonio Carlos Mazzeo). Neste ano, ocorreu a sucessão do general
Ernesto Geisel que transmitiu o cargo de Presidente da República para o General
João Batista de Figueiredo. É o ano da abertura política negociada. Em março de

34
1979 ocorreu a greve geral metalúrgica de 15 dias que desafiou o novo governo
militar. Na verdade, 1979 é um ano tumultuado com o aprofundamento da crise do
“modelo econômico” e crise social contra a política de arrocho salarial do regime
militar. 1979 explicitou a face social do “milagre brasileiro” baseado na
superexploração do trabalho. Ao situar o filme naquele ano, João Batista de
Andrade expõe, com seu foco de luz desvelador, o Brasil do “milagre econômico”.
A primeira estação de Deraldo é o trabalho pesado na zona cerealista de São
Paulo, carregando sacos para um caminhão. É o trabalho manual pesado e
informal. Deraldo não agüenta o trabalho. Pede para sair. Diz ele: “É meio pesado
para mim”. O trabalho de carregador é trabalho similar à escravidão, tripalium que
desgasta corpo e entorpece a mente. É insuportável para o poeta Deraldo passar
horas carregando sacos pesados de cereais para um caminhão. Na Zona Cerealista
o trabalho de Deraldo é um trabalho avulso que presta serviço de curta duração.

Trabalhador avulso, diz a legislação trabalhista, “é o que presta serviços com


a intermediação da entidade de classe, que tem o seu pagamento feito sob a forma
de rateio”. Entretanto, não é o caso de Deraldo, que, no filme é trabalhador avulso
precário contratado sem intermediação de sindicato, não tendo deste modo,
direitos trabalhistas. O patrão exclama: “Você não precisa trabalhar?”. Deraldo
retruca: “Precisar eu preciso, mas não agüento”. O patrão lamenta que Deraldo
abandone o serviço pois tem necessidade de mão-de-obra. Na verdade, o lamento

35
do patrão é devido a perda da mão-de-obra barata de Deraldo, trabalhador avulso
precário.
A segunda estação do itinerário da “paixão de Deraldo”, é o trabalho num
prédio em construção. Deraldo chega ao prédio procurando emprego. Diz a placa:
“Precisa-se Guincheiro”. O termo técnico de “guincheiro”é operador de elevadores
de obra. O número da ocupação de “operador de elevadores de obra” na CBO
(Classificação Brasileira de Ocupações) é 9-73.50. A descrição da ocupação de
Guincheiro (Construção civil) é a seguinte: “ Opera um equipamento de arrasto e
elevação, constituído de um cabo e um tambor de enrolamento, girando uma
manivela ou acionando um motor elétrico, para movimentar cargas diversas”. Ou
ainda: “Verifica as condições do equipamento, examinando o estado do cabo, do
tambor, do freio e outros componentes, para garantir o bom funcionamento e a
segurança; passa o cabo pelas roldanas e engata suas extremidades ao peso a ser
removido, manipulando-o de acordo com a técnica requerida, para prender a carga
e possibilitar sua movimentação; opera o equipamento, acionando o motor ou a
manivela, controlando a velocidade de tração e frenando o movimento, para
arrastar ou levantar a carga ou plataforma até o local destinado. Pode operar uma
instalação elevatória de obra em construção.”

Logo ao chegar, Deraldo assiste a bronca do mestre-de-obra com um


operário. Diz o mestre-de-obra: “Ta me sacaneando, rapaz? Não sabe que tem que
fazer hora extra? Não combinei com você? Tem que fazer hora extra todo dia.”. O

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operário retruca: “Eu falei que ontem não podia.” Mas o mestre, com sua
truculência autoritária, é incisivo: “Hoje, amanhã, ontem...qualquer dia tem que
fazer. Isso foi combinado, foi dito pra você. Ta me deixando mal com o engenheiro,
rapaz. Aqui não tem que esperar ninguém não. Você tem que fazer teu trabalho.”
De imediato, percebemos a lógica da superexploração da força de trabalho
na industria da construção civil, um dos setores industriais afluentes durante o
“milagre brasileiro”. Intensificação e prolongamento da jornada de trabalho com
arrocho salarial – e mais ainda: relações de trabalho autoritárias. Eis a síndrome da
superexploração da força de trabalho que caracterizou o capitalismo dependente no
Brasil.
É importante salientar que a indústria da construção civil, tal como a
indústria automobilística, produziu bens de consumo durável para a classe média.
Ao trabalhar como operário da construção civil, indústria que empregava, em sua
ampla maioria, proletários pobres de origem nordestina (como a indústria
automobilística), Deraldo se inseriu no âmago do mundo social da superexploração
do trabalho no Brasil.
Construindo prédios de apartamento de luxo para classe média alta, a
indústria da construção civil mobilizou naquela época, milhares de operários
pobres oriundos das regiões mais atrasadas, mal organizados em sindicatos (o que
os distingue, por exemplo, dos operários da indústria metalúrgica do ABC). Apesar
de mal organizados em sindicatos, os operários da construção civil conseguiram em
1979 se mobilizar em várias capitais e fazer greve contra o arrocho salarial.
O movimento dos operários da construção civil de 1979 está inserida dentro
da “onda grevista” dos trabalhadores brasileiros que provocou uma reviravolta no
mundo do trabalho no triênio 1978-80. O núcleo dessa grande agitação iniciou-se
na região paulista do ABC, espalhando-se posteriormente para o resto do país.
Uma das principais greves da categoria ocorrida em 1979 foi a greve dos
trabalhadores da construção civil de Belo Horizonte, também conhecida como “A
Rebelião dos Pedreiros”, teve duração de quatro dias, mas colocou a cidade em
estado de convulsão social. A greve teve a participação de mais de 30 mil
trabalhadores e foi violentamente reprimida causando a morte de um operário e

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deixou mais de 50 feridos. Esta não foi apenas uma greve, mas uma grande revolta
operária que contribui para acentuar a crise do regime militar.
Os trabalhadores da construção civil são um dos setores do proletariado
brasileiro mais explorado. Em 1979, cerca de 80% tinham vindo do campo, sendo
que 70% ganhavam apenas um salário mínimo. Estes trabalhadores tinham as
piores condições de trabalho, trabalhando até 11 horas por dia, um trabalho
superpesado com alto índice de acidentes e também muitos operários que
adquiriam doenças causadas pelo trabalho. Os operários da construção civil eram
submetidos a grande atraso cultural e grande parte eram composta de
trabalhadores analfabetos.
A truculência autoritária do mestre-de-obras era um elemento do sistema da
superexploração da força de trabalho, onde o mestre-de-obras, persona do capital,
exercia o controle biopolítico sobre o trabalho vivo na medida em que proibia, por
exemplo, os operários de levarem mulher para o alojamento e inclusive, usar
barba. Na verdade, nesse caso, a superexploração da força de trabalho se articula
visceralmente com o controle do modo de vida do operário como trabalho vivo. O
operário resiste, exclamando: “E a barba empata meu serviço?”. Mas o
autoritarismo vigente das relações de trabalho e o preconceito senhorial que
impregna a mentalidade do supervisor (que é trabalhador assalariado exercendo
função do capital), impedem quaisquer diálogo entre operários e chefias
autocráticas. Diz o mestre: “Não discute comigo. Dou um pé no seu rabo e te
mando embora. Essa barba aí me invoca. Tu é hippie? Se não é hippie, não amola.
Tu é Jesus Cristo? Então tira essa porra dessa barba. Vai trabalhar, vai embora.”
O mestre-de-obra interroga Deraldo sobre a sua qualificação para o trabalho
na construção civil: “Em que obra você já trabalhou? Em que edifício você
trabalhou?”. Ou ainda: “Você já trabalhou em alguma obra de edifício que nem
essa?”. E vocifera, arrogante: “Já misturou areia com cimento? Sabe fazer
concreto? Sabe o que é concreto armado? Sabe o que é vergalhão?”. E salienta a
dureza do trabalho na construção civil, preparando o espírito de Deraldo para a
rotina da superexploração do trabalho: “Olha, meu chapa, o trabalho aqui é dureza.
Não é que nem aquelas molezas que você tinha lá no Norte. Isso aqui é trabalho pra
macho. Aqui é salário mínimo. E você tem duas horas por obrigação de dar pra

38
obra, por dia. Ai você tem o salário e tem as duas horas em que você ganha por
fora.”
Percebe-se que o mestre-de-obra não diz “hora-extra”, mas sim “horas por
obrigação para dar pra obra”. A mais-valia absoluta torna-se elemento crucial do
processo de extração de sobretrabalho. Ela se põe articulada com a mais-valia
relativa na medida em que temos a intensificação do trabalho no interior da
jornada laboral. Ao pagar um salário mínimo, institucionaliza-se o arrocho salarial
da categoria operária, efetuando a redução do fundo de consumo do trabalhador
assalariado abaixo do valor da força de trabalho. Eis o caráter da superexploração
da força de trabalho.
Deraldo reclama: “Mas só um [salário mínimo]?”. O mestre-de-obras
argumenta salientando que existe um “salário indireto”: “Tu acha pouco? Um
salário só, não. É salário mínimo, mais as duas horas e mais que você pode morar
aqui. Se você fosse pagar aluguel, você ia pagar uma nota, Isto que você economiza
morando aqui é salário também.” Na verdade, o “salário indireto” oculta a própria
superexploração do trabalho, pois morar na obra, reduz (ou elimina) o tempo
“improdutivo” de trajeto do operário do local de moradia para o local de trabalho,
permitindo, além disso, o controle biopolítico do trabalho vivo (não pode trazer
mulher, etc). Enfim, morar na obra reduz o valor de reprodução da força de
trabalho (como ocorre, por exemplo, com o trabalho doméstico), permitindo deste
modo, maior apropriação do sobretrabalho pelo capital. Ao articular-se com a
“hora-extra” (o prolongamento da jornada de trabalho), o capital incrementa ainda
mais a extração de trabalho excedente com o recurso da mais-valia absoluta.
Na verdade, a superexploração da força de trabalho é um elemento
categorial da vigência da extração da mais-valia relativa nas condições da forma
social da grande indústria, que mobiliza, em torno de si, um complexo de
elementos de precarização da força de trabalho, tais como, o prolongamento da
jornada de trabalho, isto é, a extração da mais-valia absoluta (horas extras,
trabalho não-pago, etc), mais ainda, redução do valor de reprodução da força de
trabalho (por exemplo, morar na obra ou ainda, o trabalho doméstico), controle
biopolitico do trabalho vivo e o controle autoritário do trabalho pelo capital
(chefias autocráticas e imposições de metas).

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Aos poucos, Deraldo expressou seu comportamento irreverente contra o
trabalho estranhado: primeiro, logo na cena de entrada na obra do prédio em
construção, quando o Mestre, arrogante, fala sem parar, Deraldo por trás, zomba
dele, fazendo caretas. É a primeira manifestação da irreverência de Deraldo diante
das personas do capital de origem autocrático-colonial. Como vimos, Deraldo
recusa o trabalho estranhado e não se adapta ao tripalium – não apenas na forma
do trabalho pesado do carregador de sacos na zona cerealista, mas também na
forma do trabalho dominado pela superexploração da força de trabalho com gestão
autocrática na obra de construção civil. Deraldo se recusa a “virar suco”.
Após Deraldo aceitar o emprego, um operário o ensina a monobrar o
guincho. O operário faz o elevador subir e descer. Diz o roteiro: “É visível a
insegurança daquilo”. Mais adiante, na cena em que um casal de classe média,
acompanhado do engenheiro visitam a obra, o próprio engenheiro fica temeroso de
andar no guincho (elevador da obra de construção civil). Ele chega a exclamar para
o mestre-de-obras: “Seu Manoel, isso aqui ta seguro mesmo?”.
Na verdade, os maiores índices de acidente de trabalho ocorrem na indústria
da construção civil. A construção civil é considerada uma das indústrias mais
perigosas em todo o mundo, liderando as taxas de acidentes de trabalho fatais, não-
fatais e anos de vida perdidos. A principal causa ocupacional de morte na
construção civil são os acidentes de trabalho. Dentre outras enfermidades de risco
elevado entre esses trabalhadores, encontram-se os sintomas músculo-
esqueléticos, dermatites, intoxicações por chumbo e exposição a asbestos. As
razões apontadas para a ocorrência destes problemas de saúde na construção civil
são o grande número de riscos ocupacionais, como o trabalho em grandes alturas, o
manejo de máquinas, equipamentos e ferramentas pérfuro-cortantes, instalações
elétricas, uso de veículos automotores, posturas antiergonômicas como a elevação
de objetos pesados, além de estresse devido a transitoriedade e a alta rotatividade.
Por exemplo, com dados de Comunicações de Acidentes de Trabalho (CAT), do
Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), estimou-se a incidência de acidentes de
trabalho fatais na construção civil, entre 1979-1989, em 59,77 por 100 mil
trabalhadores/ano, menor apenas do que a do ramo de "minerais não metálicos"
(na maioria das vezes, descumpre-se as normas de segurança em canteiros de obra,

40
descumprimento que se concentra, em especial, nas instalações de andaimes e
proteções periféricas).
Portanto, os riscos à saúde e acidentes de trabalho compõem o cenário do
trabalho dominado da indústria de construção civil no interior da qual se insere
Deraldo em sua odisséia pela precariedade salarial cronicamente estrutural. A
precarização do homem-que-trabalha é um traço compositivo candente da
síndrome da superexploração da força de trabalho.
À noite, no alojamento dos operários da obra, um espaço de sociabilidade. O
roteirista descreve o barracão: “camas amontoadas, fotos de mulheres nas paredes,
fogareiros, etc.” Analfabeto, um dos operários pergunta a Deraldo se ele sabe ler.
Pedrão recebeu uma carta da família, mas não sabe ler. Na época, a maioria dos
operários da construção civil vinham do campo, tendo origem nordestina. Além
disso, eram analfabetos em sua maioria Apesar disso, um meio de comunicação
com os parentes distantes era a carta escrita. Muitos deles recorriam a outras
pessoas para ler e escrever a carta dos familiares. Deraldo diz que sabe ler e
escrever muito bem. Com os companheiros, homens simples, proletários migrantes
nordestinos, como ele, Deraldo é afável e generoso. Pedrão pede a Deraldo para ler
a carta da sua noiva: “Deraldo pega a carta, seu rosto irradia camaradagem.
Começa a ler”. O roteirista observa ainda: “Enquanto lê, todos os operários
escutam emocionados como se a carta fosse para cada um deles.”
A leitura da carta de Pedrão é um momento de efusiva sociabilidade entre
companheiros que, como proletários pobres oriundos do campo, compartilham a
experiência do estranhamento na metrópole. A carta de Pedrão é a narrativa
comum a todos. Como diz João Batista de Andrade, “é como se a carta fosse para
cada um deles”. A leitura da carta de Pedrão é um momento de “experiência
compartilhada” da saudade da família que arde no peito do migrante.
A “experiência compartilhada” da proletariedade (tal como a “experiência
expectante”) é um traço da experiência vivida das individualidades pessoais de
classe. A “experiência compartilhada” é a experiência vivida de proletários e
proletárias por meio da linguagem humana, experiência compartilhada capaz de
evocar sentimentos de reconhecimento mútuo e identidade de classe no sentido de
comunidade. Por exemplo, a leitura da carta de Pedrão, lida em voz alta por

41
Deraldo, evocou a cada um dos ouvintes, um sentimento de pertencimento àquela
comunidade de classe. A fala em grupo produziu a “experiência compartilhada” (o
que não ocorreria se a carta fosse lida apenas por Deraldo para Pedrão ou lida
apenas por Pedrão). Na medida em que a carta foi lida publicamente – o “público
de classe” (como disse Pedrão: “...quem quiser escutar, pode”), instaurou-se a
“experiência compartilhada” da condição de proletariedade. O drama humano de
Pedrão era também o drama humano de cada um deles. Eles pertenciam à mesma
condição existencial de proletariedade.
Portanto, a leitura da carta é um exemplo de “experiência compartilhada”
capaz de evocar o pertencimento à condição de proletariedade (outro exemplo de
experiência compartilhada de “classe” – uma dos mais candentes - é a luta grevista,
com tudo aquilo que ela implica - engajamento e participação em assembléias,
piquetes e atividades de grupo). Deste modo, a experiência vivida como experiência
compartilhada é sempre uma experiência humana coletiva, experiência de
interação social intensamente dialógica e identitária.
Ao contrário da “experiência expectante”, experiência de sonhos, aspirações
e anseios das individualidades pessoais de classe, experiência vivida do individuo
social; a “experiência compartilhada” é a experiência vivida do grupo social (como
“classe” do proletariado) compartilhada por meio da linguagem humana (a fala, o
gesto e a ação). Ao mesmo tempo, a ideologia (como “experiência percebida”)
perpassa as experiências vividas como experiência expectante/experiência
compartilhada.
A leitura da carta de Pedrão tornou-se uma “experiência compartilhada” de
“classe” – cada um dos operários se reconheceu na fala de leitura de Deraldo. No
silêncio da leitura de carta havia um espírito de comunhão de “destino”: o destino
da proletariedade.

42
Formas de experiência vivida da “classe”

Experiência expectante
(sonhos, aspirações, anseios)

Experiência compartilhada
(linguagem e interação social)

A carta de Pedrão contém elementos do “destino” de classe daqueles


operários da construção civil. Ela descreve o drama humano do trabalhador
migrante que sente saudade da família e provoca saudade nos familiares. A
saudade, o sentimento que experimentamos pela ausência prolongada de entes
queridos, é expressa, por exemplo, nas preocupações e pesadelos de Mariazinha.
Diz ela:
“Já faz mais de 4 meses que não recebo carta sua. E todo mundo aqui fica
preocupado quando você não escreve. Eu tenho sonhado muito com você. Outro
dia mesmo tive um sonho ruim. Você era perseguido por uma novilha preta. E eu
olhava e não conseguia me mexer, vendo você tentando se livrar. Chorei o dia
inteiro, mas minha madrinha Dagmar me disse que era bobagem. Sonho não é
nada, mas eu fiquei preocupada e só vou ficar alegre quando chegar carta sua
dizendo que está tudo bem”.
Na verdade, a “novilha preta” que persegue Pedrão no sonho de Mariazinha
é a metáfora da metrópole do capital, espaço urbano estranhado da modernidade
“automobilística” com sua desigualdade social extrema. É o que ela descreve logo a
seguir com seus temores da cidade grande. Diz Mariazinha: “A gente houve notícias
de São Paulo que assustam. Só crimes, assaltos, mortes. Tanto carro na rua. Falam
de tanta gente atropelada. Não deixe passar tanto tempo sem me escrever”.
A carta de Mariazinha expressa também o drama social do trabalhador
sertanejo, pequeno sitiante, agricultor pobre, pressionado pelos latifundiários
nordestinos (como o Dr. Armando) que utilizam a propriedade fundiária para
especular. Diz Mariazinha:

43
“Por aqui vai tudo muito bem. Só meu pai e meus irmãos que só falam de
abandonar tudo, vender a terra e ir pra São Paulo também, que aqui não tá dando.
A terra é pequena demais, só dá trabalho, no fim não rende nada e nem tem
dinheiro pra plantar mais, nem pra comprar um trator que a gente precisava. E o
Dr. Armando, que sempre prometeu vender mais um pedaço de terra pra gente,
agora só fala em comprar a nossa. Não sei o que esse homem quer fazer com tanta
terra. Quase tudo parada, sem plantar, sem nada”.
Talvez o Dr. Armando, o grande proprietário de terras, latifundiário, seja
também um coronel nordestino (no filme “O homem que virou suco” existe
referências a dois coronéis nordestinos: o primeiro, o Dr. Armando da carta de
Mariazinha; e o segundo, o Coronel, que aparece, de bota e chapéu na casa da
Madame, onde Deraldo vai trabalhar como empregado doméstico).
Portanto, pressionado pela expansão do latifúndio, o pequeno agricultor
pobre, sem recursos técnicos e financeiros, como o pai e irmãos de Mariazinha,
pensam em migrar para São Paulo em busca de melhores condições de vida. Na
verdade, a carta de Mariazinha expõe a candente questão agrária no Brasil. Ela
trata da sinistra simbiose entre as classes proprietárias no capitalismo hipertardio
brasileiro, constituído pela conciliação entre o historicamente novo e o
historicamente velho: o velho coronel do Nordeste (o historicamente arcaico)
“expulsa” os pequenos sitiantes para serem superexplorados pelo capitalista
industrial do Sul (o historicamente novo). Diz Mariazinha: “Por isso meus irmãos
Antonio e Wilson pedem pra você escrever, contando mais como é a vida aí em São
Paulo. Se dá pra arranjar emprego ganhando mais ou menos. Não precisa ser
muito... o bastante pra sustentar bem a família. Um pouco que cada um ganhe,
somos oito pessoas, dá pra viver, não é? Ninguém é de luxo”.
Apesar da integração do Brasil no sistema do capitalismo global, devendo se
tornar em 2013, a 5ª. economia do mundo industrial, o capitalismo hipertardio
brasileiro põe e repõe a questão agrária, mostrando no campo, sua dimensão
regressiva. No filme “O homem que virou suco”, por exemplo, o Dr. Armando é o
típico coronel nordestino que cultivou a especulação imobiliária, com a
propriedade da terra funcionando apenas como reserva de valor contra a corrosão
inflacionária e meio de acesso aos favores fiscais e creditícios das políticas

44
governamentais. Isso porque, no sistema capitalista, pouco importa que um pedaço
de chão produza soja ou cana-de-açúcar ou feijão. O que interessa é que produza
lucros. Nem mesmo interessa se esse lucro advém da utilização produtiva do solo
ou não. E enquanto milhões de hectares de terras férteis e bem localizadas são
retidos improdutivamente, outros milhões são apropriados à custa de trambiques e
violência, por grandes empresas capitalistas que, como já destacamos não são mais
apenas os “velhos latifúndios”, mas também os bancos e as empresas
multinacionais (o que mostra que a regressividade do capitalismo hipertardio se
articula com a modernidade conservadora do capitalismo dependente). Como
resultado disso são expulsas do campo, a cada ano que passa, milhares de famílias,
que não têm para onde se dirigir a não ser às favelas das periferias das cidades. É
por isso que a reforma agrária aparece hoje como a bandeira de movimentos sociais
como o MST, única solução democrática possível para a questão agrária.
É claro que há outras soluções para a questão agrária, como, por exemplo,
deixar os migrantes morrerem de fome, continuar confinando esses excedentes de
população em novas favelas (como ocorre hoje). É importante salientar que a
questão agrária se alia hoje a uma série de “outras” questões, como a questão
energética, a questão indígena, a questão ecológica, a questão urbana e a questão
das desigualdades regionais. Ou seja, a questão agrária permeia hoje uma série de
problemas fundamentais da sociedade brasileira. No fundo, todos eles têm a ver
com o caráter parasitário que atingiu a forma específica como se desenvolveu o
capitalismo neste país.
Finalmente, é interessante observar um detalhe: um dos traços da condição
de proletariedade nas camadas proletárias pobres é a resignação moral. Mas no
caso de Mariazinha, casada com Pedrão, a condição de mulher pobre a obriga a
aceitar os desígnios do marido, provedor da família. Na verdade, existe um misto
de resignação e sentimentos de afeição (no caso de Mariazinha) que caracterizam a
condição da mulher nordestina. Ela diz: “Eu não queria, mas desde que você foi pra
São Paulo, o jeito é aceitar. E também que minha vida tem que ser com você, onde
você estiver.”

45
No dia seguinte, um casal de classe média (vide imagem acima),
acompanhado pelo engenheiro, visitam o prédio em construção, sendo
recepcionado pelo mestre-de-obra. O prédio em construção é um prédio de luxo,
provavelmente financiado com fundo público (FGTS), destinado a venda para as
classe média alta. É mais um aspecto do capitalismo hipertadio no Brasil: a
transferência de renda do fundo público – no caso o FGTS – para financiar a
construção de imóveis de luxo. É um modo de espoliação que caracteriza o
capitalismo regressivo brasileiro.
Na verdade, o modelo de desenvolvimento militar-bonapartista do
capitalismo brasileiro adotado pela ditadura militar-civil (1964-1984) caracterizou-
se pelo deslocamento do centro de decisão em favor das empresas transnacionais e
do sistema financeiro internacionalizado (isso potencializou os desequilíbrios
estruturais da nossa formação social – capitalismo hipertardio dependente de
extração colonial-prussiana: dependência tecnológica e financeira e concentração
de renda). A mimetização dos padrões de consumo das economias capitalistas
centrais significou colocar o foco da produção industrial em bens de consumo
duráveis (por exemplo, automóveis e inclusive, no caso da indústria da construção
civil, prédios de condomínio de luxo) combinada a uma mudança necessária no
perfil da demanda através de uma transferência de renda das classes trabalhadoras
para as classes médias mais elevadas, a fim de viabilizar o mercado aos novos
padrões de industrialização. Expandiu-se o gasto público e o crédito ao consumo

46
das classes médias, via nexos com o sistema financeiro internacional, e
aumentou=-se a pressão pelo rebaixamento dos salários (arrocho salarial).
Ao descrever a construção para o casal de classe média, o engenheiro civil
diz: “Todo o acabamento é de primeira, até mesmo de luxo, que é pra dar um nível
alto para o projeto. Eu acho que não vale a pena prédios para clientela de baixa
renda. Então com esse, nós estamos lançando uma série de luxo...pra clientela de
alta renda. Gente que está deixando suas mansões por causa do comércio...e
problemas de assalto...essas coisas. Cuidado, tem piscina aqui. Cada apartamento
tem 4 dormitórios, 2 salas, dependência de empregada...”.
Portanto, percebemos que a lógica da indústria da construção civil
acompanhou a lógica do próprio modelo de crescimento da economia baseada na
concentração de renda nas classes médias para consumirem os automóveis, as
geladeiras, as televisões, com o endividamento financiando o consumo e a
importações de bens de capital. Optou-se por construir prédios de luxo para classe
média endinheirada ao invés de prédios para clientela de baixa renda. Primeiro, a
margem de lucro na construção de prédios de luxo era muito maior; e depois, a
venda dos imóveis de luxo era garantida, tendo em vista o medo que a alta classe
média tinha dos assaltos que cresciam na medida em que aumentava a
desigualdade social no País. Naquela época, a alta classe média, beneficiária do
“milagre econômico” brasileiro (1968-1973), mudava-se das mansões para os
prédios de luxo nas áreas nobres da metrópole. No bojo da crescente especulação
imobiliária, expandiu-se a construção de prédios de luxo. Foi um período de boom
da indústria da construção civil no País. Como nos diria Celso Furtado no livro
“Subdesenvolvimneto e estagnação na América Latina” (1966), a herança colonial
atualizou-se, com a dependência e o subdesenvolvimento reforçando suas conexões
fundamentais.

Na visita do casal de classe média à obra, acompanhado pelo engenheiro, o


mestre-de-obras decidiu operar o guincho tendo em vista que o engenheiro sentiu-
se inseguro com o elevador. Deraldo exclama: “Não, o operador aqui sou eu. Quem
vai manobrar sou eu”. O engenheiro observa que Deraldo está sem os
equipamentos de proteção individual (EPI´s) contra acidentes de trabalho: “O

47
senhor é manobrista? Porque o senhor não ta nem com luva, nem bota?”. Deraldo
diz: “Não me deram”. O mestre-de-obras retruca dizendo que mandou Deraldo no
barracão pegar luva e capacete. Deraldo afirma: “Eles quiseram me vender e eu não
quis comprar porque não sou trouxa”.
Eis um detalhe oculto da superexploração da força de trabalho na obra de
construção civil: o capital expõem o operário à insegurança no trabalho, culpando-
o, muitas vezes, por não cumprir as normas de segurança contra acidentes de
trabalho. No caso de Deraldo, uma flagrante ilegalidade do patrão: os
equipamentos de proteção individual eram vendidos no barracão, ao invés de
serem fornecidos gratuitamente para o operário. Como Deraldo não é trouxa,
recusou comprar os EPI´s.
Após desentender-se e brigar com o mestre-de-obras, Deraldo abandonou o
emprego na obra de construção civil. Como sempre, com sua irreverência sagaz, o
poeta Deraldo oferece ao mestre-de-obras, uma poesia criada no calor da sua
indignação. Diz Deraldo para o mestre-de-obras nordestino “puxa saco do patrão”:

Tem gente que vem do Norte


e só causa decepção...
Tu és mestre de safadeza
aleijo da criação...
Conheço a tua bravura,
puxa-saco de patrão.

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A próxima estação da precariedade salarial cronicamente estrutural é o
emprego doméstico como copeiro na Casa de Madame, uma mansão burguesa
paulistana. Tal como operário na construção civil, o emprego doméstico cresceu no
Brasil no bojo do desenvolvimento do capitalismo industrial.
Considera-se empregado(a) doméstico(a) aquele(a) maior de 18 anos que
presta serviços de natureza contínua (freqüente, constante) e de finalidade não-
lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas. Assim, o traço
diferenciador do emprego doméstico é o caráter não-econômico da atividade
exercida no âmbito residencial do(a) empregador(a). Nesses termos, integram a
categoria os(as) seguintes trabalhadores(as): cozinheiro(a), governanta, babá,
lavadeira, faxineiro(a), vigia, motorista particular, jardineiro(a), acompanhante de
idosos(as), entre outras. O(a) caseiro(a) também é considerado(a) empregado(a)
doméstico(a), quando o sítio ou local onde exerce a sua atividade não possui
finalidade lucrativa.
Foi só com a Constituição Federal de 1988, que se concedeu aos empregados
domésticos direitos sociais como: salário-mínimo; irredutibilidade salarial;
repouso semanal remunerado; gozo de férias anuais remuneradas com, pelo
menos, 1/3 a mais do que o salário normal; licença à gestante, sem prejuízo do
emprego e do salário, com duração de 120 dias; licença-paternidade; aviso-prévio;
aposentadoria e integração à Previdência Social.
Com a edição da Lei n.º 11.324, de 19 de julho de 2006, que alterou artigos
da Lei n.º 5.859, de 11 de dezembro de 1972, os trabalhadores domésticos firmaram
direito a férias de 30 dias, e obtiveram a estabilidade para gestantes, direito aos
feriados civis e religiosos, além da proibição de descontos de moradia, alimentação
e produtos de higiene pessoal utilizados no local de trabalho.
Em 1979, o emprego doméstico era ainda um emprego precário, sem direitos
trabalhistas regulamentados ou reconhecidos pela sociedade civil. O emprego
doméstico era o emprego na área de serviços que acolhia, em sua maioria,
trabalhadores pobres de baixa qualificação profissional, oriundos das regiões mais
atrasadas do País, mão-de-obra barata a serviço das famílias da classe média e
famílias da burguesia. As relações de trabalho no emprego doméstico eram relações
de exploração e opressão análogas á escravidão (como não havia direitos

49
trabalhistas, os empregados e empregadas domesticas não eram sujeitos de
direitos, sendo tratados como escravos assalariados. Na verdade, a abolição da
escravatura não modificou as estruturas hierárquicas imposta pela lógica
escravista, pois, na pratica, o pós-abolição não trouxe rupturas significativas na
vida social de um determinado grupo, as mulheres que eram escravas tornaram - se
empregadas domésticas).
Por exemplo, Deraldo diz para a jovem cozinheira que o Coronel estava
chegando na Casa de Madame. Diz ele: “Te cuida, porque menina assim como você,
ele come mesmo...Ele vai te passar a mandioca”. Deraldo sabia da natureza
opressora das relações de trabalho doméstico onde era comum o patrão, filhos e
amigos da Casa Grande (como o Coronel que visitava a Casa da Madame) assediar
os “escravos assalariados” da Senzala (eis os elementos de herança escravista das
relações sociais de trabalho no Brasil).
Na cena da Casa da Madame, João Batista de Andrade caracterizou o
Coronel como um homem nordestino rude, oligarca que chegou ao parlamento
brasileiro mas não perdeu os traços arcaicos de latifundiário do sertão da Paraíba.
O Coronel admira uma cabeça de boi de papelão dependurada na parede. Diz que
aquela cabeça de boi é diferente do boi da Paraíba: “O boi da Paraíba tem chifre
assim, agressivo, pra frente. Feito o Brasil”.
A Madame pergunta porque o Coronel não vem morar em São Paulo e deixa
aquela vida de luta...Mas o Coronel está preso àquele estilo de vida do sertão
nordestino onde o oligarca alimenta-se das relações de cordialidade do sertanejo
que o reconhece como senhor da Casa Grande (o que não aconteceria, por exemplo,
em São Paulo, onde a impessoalidade caracteriza as relações de dominação). Diz o
Coronel: “Comadre, isso aqui é lá vida? A senhora sabe que eu vim pela rua um
tempão e ninguém nem bom dia me deu? No Norte, aquilo é que é vida, no
descanso, na calma, na fartura.” E diz mais: “Olha, comadre, lá não vive bem quem
não quer. O que atrapalha muito lá é a ignorância, falta de cultura...Eu mesmo tou
montando uma indústria lá na Paraíba com incentivos fiscais. Ajuda do governo.” A
Madame afirma: “Governo bom”. O Coronel prossegue: “Graças a Deus. Mas eu vou
levar gente daqui, gente ligada à produção. Vai ser uma beleza”.

50
Por um lado, o Coronel, oligarca político do Nordeste, latifundiário e
industrial - demonstrando o vinculo orgânico entre o historicamente novo e o
historicamente velho no capitalismo hipertardio - cultua a cordialidade do atraso, a
sua calma e fartura ( como diz o Coronel, fartura “para quem quer”, pois como diz o
Coronel, “lá não vive bem quem não quer”); e, por outro lado, lamenta a ignorância
e falta de cultura quando elas significam a falta de força de trabalho mais
qualificada para a sua indústria na Paraíba construída com incentivos fiscais do
governo militar.
Mais uma vez, o filme “O homem que virou suco” expõe a espoliação do
fundo público para financiar empreendimentos das classes dominantes – o que
vimos, por exemplo, na indústria da construção civil, com prédios de luxo sendo
financiados pelo FGTS e incentivos fiscais para indústrias no Nordeste, indústrias
de propriedade da oligarquia política local, os coronéis latifundiários, que apóiam o
governo militar.
Portanto, durante a ditadura militar, o modelo de crescimento da economia
brasileira baseou-se não apenas na transferência de renda das classes
trabalhadoras para as classes médias, permitindo, deste modo, a mudança
necessária no perfil da demanda tendo em vista o padrão de industrialização
centrado na produção de bens de consumo duráveis, mas baseou-se também na
transferência de renda para as oligarquias regionais por meio, por exemplo, de
incentivos fiscais para indústrias no Nordeste. Eram as oligarquias regionais que
sustentavam politicamente o regime militar.

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Deraldo, irreverente e indignado com o cinismo das classes dominantes, age
de modo atrevido contra as personas do capital. Como um Carlitos nordestino
consciente de sua inadequação à ordem medíocre da burguesia hipertardia, ele se
“insurge” na Casa da Madame: põe as cinzas do cigarro do Coronel nos copos de
whisky dos garotos que pulam a discoteque; mistura-se aos garotos na discoteca e
dá umbigadas na filha da madame e suas amigas (o roteirista diz: Deraldo
transforma a discoteque numa dança nordestina); joga o vaso de cerâmica da
Paraíba que o Coronel deu para a afilhada, dentro da piscina e depois, finalmente,
passa a mão no bife do cachorrinho Xaxá (como diz ele, “o bife do cachorro viado”);
come uns pedaços e depois, dá um pedaço para um cãozinho vira-latas.

Mais uma vez, o poeta Deraldo está desempregado, fugindo da policia, com
os jornais acusando-o de matar o patrão. Encontra na rua um operário da obra, o
mesmo que lhe ensinou a operar o elevador; o operário lhe diz que o mestre-de-
obras mostrou a reportagem do jornal pra todo mundo, acusando-o de ser o
assassino do empresário. Deraldo diz: “Eu não matei ninguém não, viu? E meu
nome é Deraldo. O cara que matou o patrão chama-se José Severino da Silva.
Agora, como eu não tenho documento... Não posso provar. A polícia tá atrás de
mim. Realmente, amigo, estou numa pior. Tou passando fome, necessidade”.
O operário diz ter um amigo que trabalha no metrô e que o metrô está
contratando pessoas. Diz ele: “...o metrô está precisando de gente pra serviço
braçal”. Esta será a próxima estação da precariedade salarial cronicamente
estrutural: o trabalho para empreiteira da obra de construção civil pública: o metrô
da cidade de São Paulo. Ao despedir-se do operário, Deraldo, grato pela sua
amizade, dedica-lhe uns versinhos:

Nas asas do pensamento


voarei por muitos ares...
Cantarei como os passarinhos
sobrevoando os pomares.
Serei um vate das letras
cantando em muitos lugares.

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E depois, Deraldo complementa com uma “Canção de Fogo”, como ele diz:

Bem só pode estar o Sol


porque ninguém o alcança.
Haja no mundo o que houver,
o sol lá nem se balança.
Enquanto a fortuna dorme,
a desgraça não descansa.

O metrô de São Paulo é expressão da modernidade paulistana. Deraldo sobe


uma escada rolante, entra no trem que dispara acima da cidade e entra no túnel
escuro. Dirige-se ao local da obra do metro para inscrever-se como operário.
Entretanto, a empreiteira como uma empresa moderna, faz um treinamento para
seus operários, contratados para trabalhar na obra do metrô. Diz o professor do
treinamento:
“A nossa empresa tem a tradição de preparar os operários para as obras. E
para que se adaptem bem, sem criar problemas para vocês mesmos e para a obra. A
obra, como vocês sabem, é da maior importância para São Paulo e para o país.
Muitos de vocês estão chegando agora a São Paulo, certamente. E a grande maioria
vem da zona rural... Nós vamos apresentar para vocês um filme que é chamado
audiovisual. Nós vamos apresentar esse audiovisual durante 3 dias pra vocês e
discutir muito sobre ele com vocês”.
O treinamento dos operários do Metro tem como objetivo, adaptar os
operários à disciplina industrial. Como a maioria dos operários, como diz o
professor, “vêm da zona rural”, o treinamento é um modo de domar o trabalho vivo
e adaptar a força de trabalho ao rigor da produção capitalista.

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No filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade, o tema da
conformação do homem rude do sertão nordestino à vida moderna e à disciplina do
processo de trabalho capitalista é o tema candente do filme. Este é um problema
crucial do processo de modernização do capital no Brasil que exigiu a formação de
subjetividades humanas adequadas à superexploração da força de trabalho
(trabalho intenso, longas jornadas de trabalho e arrocho salarial). Como diz o
professor, preparar os operários para o trabalho é fazê-los se adaptar bem às
condições de trabalho, evitando que eles criem problemas para eles mesmos e para
a obra.
Na sua odisséia pelas estações da precariedade salarial cronicamente
estrutural no Brasil, o poeta Deraldo não se adaptou a nenhum emprego,
recusando não apenas as condições salariais da superexploração do trabalho, como
carregador da zona cerealista ou operário da construção civil, mas também o
desrespeito e o preconceito contra o homem comum de origem rural. Portanto, o
mundo social da superexploração do trabalho implica não apenas as condições
salariais do trabalho intenso, longas jornadas de trabalho e arrocho salarial, mas a
opressão cultural e o preconceito social de extração colonial-escravista contra o
povo brasileiro. É o que denominamos de síndrome da superexploração da força de
trabalho no Brasil.
O treinamento é uma operação de conformação ideológica do trabalho vivo
às condições salariais e culturais da superexploração da força de trabalho. O título
do audiovisual apresentado no treinamento – “Audiovisual do Herói Ridículo” – é
expressão sintomática da “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital.
Ridiculariza-se para quebrar a auto-estima do trabalho vivo, tornado-o para mais
dócil para introjetar a disciplina moral adequada às condições salariais da
superexploração da força de trabalho. Cria-se uma figura caricata do homem
nordestino e o ridiculariza, salientando, de forma negativa, as qualidades pessoais
que se busca denegrir. A longa transcrição da fala do audiovisual torna-se
necessária. Diz o locutor do Audiovisual:

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Este é Antonio Virgulino da Silva. Cabra macho,
valente... Domador de burro bravo. Campeão em
todas as vaquejadas, era sempre respeitado. E
nosso herói logo se via cercado de mulheres. No
braço-de-ferro, como em tudo, era campeão.
Vencia no primeiro arranco. Um dia chega uma
carta de São Paulo, enviada por um amigo seu.
Virgulino, nosso herói, não sabia ler. Seu Manoel
lê a carta. Na carta o amigo conta suas aventuras
na cidade grande... Fala de máquinas gigantes,
feito cobras, que andam em cima de trilhos.
Era o metrô. Nosso herói imaginou logo a coisa.
Deu uma grossa cusparada e disse: Vou pra São
Paulo domar essa cobra gigante. Mostrar para
os paulistas o que é um cabra-macho.
Logo que chegou em São Paulo, Virgulino procurou
uma obra do metrô. E aqui está ele. Todos
trabalham, mas Virgulino, o nosso herói, não.
Bebia. Como valente que era, não respeitava um
só dos avisos. Era o único, que só por pirraça,
andava descalço na obra.
Respeitar o chefe? Dizia ele. Quero ver quem é
mais valente.
E não só não respeitava, como ainda rasgava os
cartazes. Ameaçava o chefe com sua peixeira
sempre do lado. Com tudo isso, Virgulino foi ficando
marginalizado pelos próprios companheiros,
que ridicularizavam suas manias.
Parece que ainda está no Norte, diziam.
Nosso herói se acabrunhava, mas não se emendava.
E logo aprontava mais uma valentia: desrespeitar
as ordens. E lá vai o nosso herói, cambaleando
pela tábua.
E “chibum”, despenca na poça d’água. Virgulino
era mesmo ridículo. Tinha fama de herói, mas
era um palhaço.
Perdeu o emprego. E é expulso pelos próprios
companheiros. E acaba recebendo uma chuva de
cuspe na cara. Lá vai Antonio Virgulino Silva.
Atravessando São Paulo de volta para o Norte,
como um derrotado.

Um detalhe: todo o audiovisual que ridiculariza o herói do Sertão nordestino


foi acompanhado de músicas nordestinas: repentes, toadas, aboios.

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No discurso da pequena tragédia do herói nordestino, algumas pérolas da
ideologia da Ordem que caracteriza sociedade brasileira: primeiro, o nome do herói
ridículo era Virgulino (referência ao bandido Lampião cujo nome era Virgulino
Ferreira). Na verdade, a ideologia da Ordem quer transmitir a idéia de que é
ridículo rebelar-se. Personalidades rebeldes, negativas, criticas, são hostis e devem
ser renegadas a favor de personalidades colaborativas, pró-ativas e propositivas.
Depois, salienta-se que o herói é analfabeto (não conseguiu ler a carta que recebeu
de São Paulo), imputando-lhe incapacidade de adequar-se ao mundo social
moderno. Na verdade, a educação é um elemento de inclusão social na ordem
moderna, possuindo, em geral, caráter conformativo. A ordem burguesa cultua
aquilo que Paulo Freire denominou “educação bancária”, uma educação onde o
único papel do educador é expor/impor conhecimentos, não havendo espaço para
discussão ou reflexão. Para isto adota-se, analogamente, o termo “bancária”. A
idéia que se tem é de que aquele que possui conhecimento irá “depositar”,
transferir, pura e simplesmente, aquilo que conhece para aquele que nada sabe, o
depositário do saber de outrem.
Virgulino possuía algumas qualidades pessoais: era valente, cabra macho,
domador de burro bravo. Diz o audiovisual: campeão em todas as vaquejadas,
campeão no braço-de-ferro. era sempre respeitado e cercado de mulheres. Enfim,
era um herói daquele lugar: o sertão nordestino. Não se criticava Virgulino por ser
valente e cabra macho no Sertão nordestino, mas sim, por querer ser valente e
cabra macho em São Paulo. Era um comportamento de valentia fora-de-lugar.
A ordem burguesa no Brasil implica um duplo lugar: o lugar da ordem
moderna da cidade grande e o lugar da ordem arcaica do latifúndio. Eles se
articulam organicamente na formação hipertardia do capitalismo dependente
brasileiro de extração escravista. A modernidade brasileira é uma modernidade
cindida em dois lugares: o lugar do “novo” e o lugar do “arcaico”. Virgulino, o herói
rídiculo e o Coronel, o latifundiário que visita a Casa de Madame, pertencem, por
exemplo, ao lugar do “arcaico”. Entretanto, o Coronel conseguiu transitar pela
ordem do “novo” na medida em que ele é parte orgânica dela em sua articulação
hipertardia de extração colonial-escravista. Por outro lado, Virgulino é o homem

56
simples, rebelde, inadaptado, herói problemático, herdeiro do arcaico subalterno
que sucumbe diante da modernidade irremediável.

Virgulino, o herói valente do Sertão, ao receber a carta de São Paulo,


impressionou-se com o relato do amigo que mora em São Paulo. Apesar de
analfaberto, Virgulino era um homem simples de imaginação fértil. Imaginou
máquinas gigantes, feito cobras, que andam em cima de trilhos. Era o metrô –
símbolo da modernidade da cidade grande. Auto-confiante, Virgulino decidiu ir a
São Paulo, domar essa cobra gigante e mostrar para os paulistas o que é um cabra-
macho. Entretanto, ir a São Paulo “domar essa cobra grande” significava trabalhar
no metrô. Pela primeira vez, a representação de Virgulino, o herói ridículo, cruzou-
se com a auto-representação do público constituída em sua maioria por operários
oriundos da zona rural sertaneja.
A auto-confiança de Virgulino tornou-se arrogância. Ele não consegue se
adaptar ao trabalho na cidade grande. A cidade grande era um lugar estranho. Diz o
audiovisual que Virgulino só bebia. Era o sintoma da deriva pessoal. Diz ainda que
ele não respeitava avisos e rasgava cartazes. Por exemplo, era o único, que só por
pirraça, andava descalço na obra; não respeitava o chefe e o ameaçava com sua
peixeira de lado. Não se adaptar no trabalho era o sintoma crucial da inadequação
de Virgulino à inexorável modernidade. Enfim, Virgulino preservou o ethos do
cangaço, atitudes e comportamentos de insurgência popular típicos da ordem rural
do latifúndio.
As origens do cangaço como fenômeno social que alastrou o nordeste
brasileiro, particularmente a região do sertão, tem influência da forma como foi
colonizada o sertão brasileiro. Com a expulsão dos índios e a escravidão indígena e
negra, veio a colonização com as lavouras de cana na região mais próxima do mar e
mais tarde as fundações das extensas fazendas de criação de gado, os latifúndios,
nas regiões mais afastadas do litoral. O clima de violência é marcado não só desse
tempo, mais também após a escravidão, quando os pobres se veem desprovidos de
terra, vivendo num ambiente cercado pela miséria e pela violência dos coronéis e
do Estado. A falta de perspectivas de vida, em um ambiente cercado de violência de
todos os tipos, bem como a cultura de honra e orgulho que foi gerada no povo do

57
sertão, são alguns fatores que levaram muitos homens a entrar na vida do
banditismo. O ethos do cangaço estava incorporado na figura de Virgulino, cabra-
macho que cultiva a cultura de honra e orgulho. O cangaço foi um tipo de
banditismo que se iniciou por motivos de vingança entre famílias, incluindo as das
próprias elites por divergências políticas, questões de herança, salvaguarda das
terras etc. Alguns cangaceiros eram pequenos proprietários, mas é entre o povo
pobre que ele irá florescer com mais força. Existiram cangaceiros que faziam
serviços para fazendeiros, coronéis e políticos. Outros eram levados a vida bandida
por iniciarem brigas e nunca mais poderem voltar para suas antigas vidas, sendo
perseguidos pela família rival, por capangas ou mesmo pela polícia. Mas é quando
o cangaço passa a ser meio de vida, uma profissão, que vai se tornar o fenômeno
que ouvimos falar em nossos dias.
Finalmente, o audiovisual mostra que Virgulino foi ficando marginalizado
pelos próprios companheiros, que ridicularizavam suas manias. Virgulino não
percebia que o lugar era outro: ele não vivia no sertão nordestino, mas em São
Paulo, o que exigia dele, novas atitudes sociais.
O discurso do audiovisual exibido no treinamento transmitia a mensagem da
adequação do operário não apenas à obra, mas a cidade grande, adequação que
significava respeito: respeitar avisos e respeitar o chefe. Enfim, o operário deveria
adaptar-se, adequando-se à ordem social local, renunciando ao espírito de valente e
cabra-macho, atitudes e comportamentos inadequados para a vida social moderna.
Na cidade grande não havia vaquejada e quebra-de-braço. Havia trabalho,
disciplina e respeito, ingredientes morais de adequação concreta às condições da
superexploração da força de trabalho no Brasil.
Após a apresentação do audiovisual, Deraldo entra numa situação de
inquietação mental. Está transtornado com a carga ideológica do audiovisual.
Exclama para o professor: “Nunca me viu não? Fica me olhando assim como seu eu
fosse um bicho!”. Diz o roteirista: “Deraldo não suporta a tensão em sua cabeça.
Precisa fazer alguma coisa. Olha com ódio para o professor e acaba chutando uma
cadeira que se quebra, com um grande estrondo”. Na verdade, o treinamento
abateu-lhe a auto-identidade pessoal, contribuindo, deste modo, para a perda da
sua auto-estima. Deraldo é o homem que virou bicho. Após o treinamento, os

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conflitos íntimos de Deraldo se agudizaram. O treinamento tornou-se um processo
de perda de si visando adequá-lo à ordem disciplinar burguesa. É o momento da
deriva pessoal.

A cena no corredor do refeitório (vide imagem acima), corredor de madeira


por onde devem passar os operários para se servir, é uma cena metafórica que
expressa a deriva pessoal de Deraldo, o homem que virou bicho ridicularizado. O
diretor João Batista de Andrade constrói uma interessante metáfora com a cena do
corredor do refeitório, que acaba se transformando – no imaginário de Deraldo -
num corredor de gado, usado para controle, marcação, vacina. Ao contrário de
Serguei Eisenstein no filme “A greve”, João Batista de Andrade não utilizou
imagens do boi indo para o matadouro, metáfora utilizada por Eisenstein para
representar o massacre dos operários pelas forças de repressão do Czar, mas o
próprio ator no papel de Deraldo representou o boi preso e acuado no corredor
usado para controle, marcação, vacina. Diz o roteirista: “Deraldo, sozinho, em
transe, ali dentro. Faz gestos lentos, estranhos e, de inicio, bem sutis.Não sabe o
que faz. Aos poucos começa a emitir som triste, suave. O som aos poucos se parece
com um mugido de boi. Seus gestos aos poucos vão se transformando em marradas
(cabeçadas de boi) contra a cerca.Gesto e som vão num crescendo doido.”
O diretor João Batista de Andrade utilizou o transe de Deraldo no corredor
de refeitório que aparece como corredor de gado, para dizer que o operário-poeta
Deraldo sentia-se como um boi aprisionado para controle, marcação e vacina. Na

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verdade, o objetivo do treinamento capitalista imposto aos operários da obra do
Metro era “controle, marcação e vacina” dos operários contra o vírus da
insubordinação.. O capital quer imprimir a sua marca no operário-boi e vaciná-lo
contra o vírus da rebeldia. Deraldo é o homem que virou boi. Mas, como boi, ele
resiste dando marradas contra a cerca.
Tanto a cena do corredor do refeitório, como a cena onírica de Deraldo
numa rua central de São Paulo, vestido de cangaceiro, igual ao herói ridículo,
encostado a um poste, com um fuzil na mão e cruzado de cartucheiras de balas,
punhal na cintura, facão, são momentos que expressam a luta de Deraldo contra a
perda de si. Na cena onírica em que ele aparece vestido de cangaceiro, igual ao
herói ridículo, diz o roteiro: “O público se junta e todos gozam a triste figura”.
Como um Dom Quixote nordestino, o cangaceiro Deraldo, atormentado, tira seu
facão e ameaça as pessoas que cada vez mais se divertem com o tipo que não lhes
causa nenhum medo. Na verdade, Deraldo está tendo um pesadelo.
O treinamento da empresa abalou o poeta popular. As duas cenas de delírio
pessoal de Deraldo – imaginar ser um boi cercado num corredor para controle,
marcação e vacina e sonhar ser um cangaceiro, igual ao herói ridículo, no centro de
São Paulo - expressam o impacto contundente do treinamento com audiovisual na
subjetividade de Deraldo. Os cursos de treinamento para operários e empregados
nas empresas capitalistas, que têm aumentado ano após ano, são instrumentos
indispensáveis de “captura” da subjetividade do trabalho vivo pelo capital, visando
adequar a força de trabalho aos requisitos da produção de valor. Esses
treinamentos têm mais função de adequação comportamental do que transmissão
de conhecimentos técnicos. Deste modo, o objetivo dos cursos de treinamento é
conformar o trabalho vivo ao mundo social da produção capitalista, disseminando
valores empresariais.
No dia seguinte, no refeitório, um barracão de madeira onde todos se
sentam em bancos com mesas improvisadas, um operário provoca Deraldo
dizendo: “Tá gostando da comidinha?”. Ele questiona a qualidade da refeição
servida aos operários. O operário sutilmente expõe para Deraldo, traços da
precariedade salarial que compõem o desiderato da superexploração da força de
trabalho no Brasil: alimentação de péssima qualidade servida aos operários e

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condições insalubres de trabalho na obra do Metro (por exemplo, o operário diz
para Deraldo que “o quente é lá embaixo, você nem vê a luz do dia, é só terra,
tapume. A gente só vê a luz lá fora, de noite...”). Trata-se de um quadro infernal que
inquieta e abala mais ainda Deraldo. Perturbado, Deraldo acha uma barata no
prato. Diz o roteirista: “É a gota d´água, joga o prato pra cima e grita: Isso é comida
pra gente, porra? Barata na comida!”. O refeitório explode na maior confusão.
Guardas brigam com Deraldo, que consegue, mais uma vez fugir do inferno do
trabalho capitalista.
O poeta Deraldo, fugitivo da policia, homem incapaz de se adaptar à miséria
da superexploração do trabalho, rebelde, encontra-se no seu limite pessoal.
Perambula pelas ruas movimentadas de São Paulo, faminto e fraco. As pessoas o
olham com piedade. Ele encontra a caridade do público que circula pelas ruas. Diz
o roteirista: “Uma pessoa lhe dá dinheiro. Outra lhe dá um café. Uma outra pessoa
começa a conversar com ele, dando-lhe conselhos para não desistir, para enfrentar
a vida, que ele vai superar as dificuldades.”. Mas, sem forças, Deraldo acaba caindo
na calçada e no meio da gente, fica desmaiado.

A odisséia do poeta popular Deraldo pelas estações da precariedade salarial


cronicamente estrutural no Brasil o conduz ao asilo de mendigos. É o destino da
inadaptação pessoal de Deraldo ao inferno do trabalho assalariado precário. No
asilo de mendigos Deraldo está pálido e sem forças. Mendigos se amontoam nas

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camas muitos juntas. O asilo de mendigos é o depositório do lumpen-proletariado,
trabalho vivo inservível para o capital e excluído do mundo social da produção
capitalista. Deraldo está no limiar do lumpemproletariado, palavra alemã
"lumpenproletariat" "lumpen" + "proletariat"), que foi aportuguesado pelo
dicionário brasileiro Aurélio (2.ª edição) para lumpesinato ou lumpemproletariado.
Significa, ao pé da letra "trapo ou homem trapo". Esta palavra designa a camada
social carente de consciência política, constituída pelos operários que vivem na
miséria extrema e por indivíduos que vivem direta ou indiretamente desvinculados
da produção social e que se dedicam a atividades marginais, como, por exemplo, o
roubo e a prostituição.
Deraldo está no limiar do lumpemproletariado, mas não é um lúmpen
(lumpen é relativo ao "ser lúmpen", isto é, pessoa desprovida de qualquer tipo de
princípio ético; um estado de espírito que não se restringe a classes ou categorias
sociais; por vezes um oportunista. Marx classifica a palavra “lúmpen” de
pernicioso, já que a absoluta ausência de valores e o cinismo de seu
comportamento poderiam contaminar a consciência revolucionária do
proletariado. Enfim, Deraldo imerso na miséria extrema, encontra-se apenas
depauperado física e mentalmente.
Mas no mundo do capital, mendigos são personagens do espetáculo da
caridade organizada, tornando-se dependentes do gesto oportunista de filantropos
da miséria social. O que significa que, assim como existe a indústria da seca no
Nordeste, existe a indústria da miséria social que aproveita-se dos mendigos para
sua auto-promoção empresarial. Uma enfermeira diz para Deraldo: “Você está num
lugar que você vai ser bem tratado. É bom ficar quietinho porque hoje é a visita da
Condessa. A pessoa que mantém este lugar, para ajudar gente como você.”
Ao visitar o asilo de mendigos, a Condessa está acompanhada com
repórteres. A visita da Condessa é um verdadeiro espetáculo midiático com a
miséria humana. Ela detém um mendigo que o entusiasma, uma figura engraçada,
original; como diz o roteirista, “um mendigo que mais parece um ser de outro
mundo, vestido com restos de saco, o olhar catatônico...”. A Condessa diz aos
pessoal da imprensa: “Vejam o estado em que esses pobres coitados chegam aqui.
Eles chegam sem a menor condição de higiene. Cheios de piolhos, pulgas, vermes,

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um horror. E aí a nossa equipe médica faz um check-up geral... Para ver se eles têm
alguma doença grave... Se eles têm Mal de Chagas, se eles têm tuberculose... Vocês
sabem, esse povo nosso é extremamente subdesenvolvido, desnutrido. Você
percebe olhando pra ele que ele está num estado lastimável. E as nossas
enfermeiras fazem um trabalho admirável...”

Como pertencentes à camada social do lumpemproletariado, os mendigos


são ex-operários incapacitados que vivem na miséria extrema, indivíduos que
vivem direta ou indiretamente desvinculados da produção social, excluídos como
força de trabalho do mundo social da produção do capital. Eles não são seres de
outro mundo, mas sim, espectros de forças de trabalho desefetivadas e alienadas,
refugos humanos do “moinho satânico” do capital. Ao fetichizá-los como “pobres
coitados” e “povo extremamente subdesenvolvido, desnutrido” a Condessa oculta o
complexo social da superexploração do trabalho que produziu a escória humana.
Como parte ineliminavel da superpopulação relativa, o lumpemproletariado é um
subproduto da dinâmica de acumulação do capital.
Por exemplo, Deraldo encontra entre os mendigos, um ex-operário, oriundo
de Pernambuco, que sofreu acidente de trabalho e ficou incapaz de trabalhar. O
mendigo ex-operário nordestino diz: “Pra mim viver de esmola, o melhor é São
Paulo”. Na verdade, o clima cultural do asilo de mendigos é um clima nordestino.
Deraldo começa a ouvir uma música: Asa Branca (de Luiz Gonzaga), na sanfona. O

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roteirista descreve uma cena dantesca: “Os mendigos bailam, dançam com a
Condessa que ri às garganhadas ao som da sanfona.”
O asilo de mendigos é a última estação da odisséia da precariedade salarial
cronicamente estrutural percorrida por Deraldo, precariedade salarial
cronicamente estrutural que caracteriza o capitalismo hipertardio brasileiro. O
asilo de mendigo – como o hospital psiquiátrico que irá acolher José Severino da
Silva, é a última estação do homem que virou suco.

Após ser reconhecido por repórter que acompanhava a Condessa, Deraldo


consegue mais uma vez, fugir. Temos a seguir, duas cenas que compõem a
transição da primeira parte do filme para a segunda parte constituída pela
verdadeira história do homem que virou suco: o reencontro de Deraldo com
Mariazinha e depois, o encontro de Deraldo com seu Castor, seu editor. Ao
reencontrar Mariazinha, Deraldo descobre uma mulher diferente daquela que
implicava com ele no bairro. Mariazinha tornou-se mulher da noite, trabalhadora
do sexo, que ganha a vida fazendo programas sexuais. Deraldo retorna ao barraco
para pegar algumas coisas e reencontra Mariazinha. Diz Deraldo: “Ontem eu te vi
na rua...Tu tava entrando num carro. Num Volks...” O marido de Mariazinha
voltara para Natal e ela teve que ganhar a vida sózinha. Maria e Deraldo se
aproximam e se tornam íntimos. Deraldo pega um pacote de livrinhos de cordel.
No dia seguinte, Deraldo visita Castor, seu editor. Ele leva alguns livrinhos
de cordel para que ele possa apreciar e quem sabe, vender. Exclama: “Eu nunca vi

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cidade mais doida do que essa na minha vida”. Castor retruca: “Então pra que
veio?”. Deraldo arremata: “Porque que minha gente vem pra aqui ser
esprimido...Virar suco de laranja e ser jogado aí pela sarjeta. Não entendo”.
Castor vem com um jornal onde está a foto do operário que matou o patrão.
Deraldo afirma inocência e diz ser outra pessoa: “Meu nome é Deraldo e o senhor
sabe disso.” E depois: “ O senhor tem que acreditar na minha palavra. Homem é
homem. O senhor é meu amigo ou não é?”. Castro olha desconfiado para o poeta. O
editor recusa o livrinho de cordel intitulado “O homem que trocou duas pernas por
um pão”, dizendo que essa história é muito nordestina: “Coisa pra gente que vive
lá”. Deraldo exclama: “Mas não tem nordestino em São Paulo?”. Castor: “Tem, mas
não estamos interessados nisso”. Finalmente, Deraldo tem a idéia de uma história
que o ilumina e desperta o interesse do editor. Diz ele: “Eu vou escrever a história
desse operário que matou o patrão”. A partir deste momento entramos na segunda
parte do filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade.

Estações da precariedade salarial cronicamente estrutural


(As aflições de Deraldo no filme “O homem que virou suco”)

carregador na zona cerealista


operário da construção civil
empregado doméstico na Casa da madame
operário da obra de construção do Metro
mendigo no asilo da Condessa

Na primeira parte do filme, constituída pelo conjunto de estações da


precariedade salarial cronicamente estrutural percorridas por Deraldo, temos
experiências vividas da superexploração da força de trabalho. É o drama pessoal do
“estrangeiro” em sua própria terra, proletários pobres oriundo do Nordeste que
enfrentam a superexploração do trabalho, preconceito étnico-racial e opressão
cultural na cidade grande. Como diz Deraldo, “...gente [que] vem pra aqui ser
esprimido...Virar suco de laranja e ser jogado aí pela sarjeta”. Deste modo, o “virar

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suco de laranja e ser jogado na sarjeta” está presente em cada estação da
precariedade salarial cronicamente estrutural mostrada no filme de João Batista de
Andrade.
Na segunda parte do filme, na medida em que Deraldo resgata a história
pessoal do operário que matou o patrão - o homem que virou suco -, ele faz uma
verdadeira genealogia da precariedade salarial cronicamente estrutural que
caracteriza o capitalismo hipertardio brasileiro. Deraldo encontra a genealogia da
miséria da superexploração do trabalho resgatando a experiência vivida do
operário da indústria metalúrgica, um dos setores mais dinâmicos da economia
brasileira, símbolo da modernidade do capital, lócus da precariedade salarial
regulada. Deste modo, a raiz da superexploração da força de trabalho no Brasil se
encontra na expressão mais desenvolvida do modo de produção capitalista: a
grande indústria da formação social do capitalismo dependente (o operário que
matou o patrão, a expressão singela do homem que virou suco, era empregado de
uma empresa metalúrgico multinacional).
O que o filme “O homem que virou suco” sugere é que existe um vinculo
orgânico entre a precariedade salarial cronicamente estrutural dos empregos
precários, informais, alguns de feição arcaica e mal-pagos (como o emprego
doméstico); e a precariedade salarial regulada nos pólos mais dinâmicos e
modernos da exploração capitalista no Brasil vinculada ao capital estrangeiro. Este
elo orgânico que explica a miséria salarial brasileira origina-se do próprio modo de
entificação do capitalismo no Brasil, capitalismo hipertardio, retardatário,
dependente, de feição colonial-escravista, que possui como traço estrutural a
articulação entre o “historicamente novo” e o “historicamente velho”.
Deste modo, o filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade,
utiliza uma perspectiva metodológica dialética na sua exposição narrativa. Como
disse Marx, “a anatomia do homem é uma chave da anatomia do macaco. [...]
Assim, a economia burguesa fornece a chave da Antiguidade, etc.”. Deste modo, a
última parte do filme – “a anatomia do homem” - explica a primeira parte com sua
fenomenologia da precariedade salarial cronicamente estrutural.

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A dialética do capitalismo hipertardio no Brasil

Precariedade salarial extrema Precariedade salarial regulada


cronicamente estrutural

“historicamente arcaico” “historicamente novo”


(miséria salarial de Deraldo) (loucura de Severino)

Na segunda parte do filme, Deraldo busca informações sobre o operário que


matou o patrão. Dirige-se ao bairro de José Severino da Silva e pergunta a várias
pessoas se o conhecem. Finalmente, numa casa em construção, Deraldo encontra
dois pedreiros que conhecem José Severino. Um deles diz que conheceu Severino
numa firma da indústria metalúrgica, quando ele começou a trabalhar na limpeza.
Diz o pedreiro:
“Severino era cearense. Tinha vindo fazia pouco tempo do Norte. Era doido
pra subir”. Severina sonhava ocupar o lugar de Olavo, um operário torneiro-
mecânico no chão-de-fábrica. Todo dia era o Olavo ir embora e o Severino ficava
ali, treinando no torno do Olavo. Não queria ficar na limpeza. Olavo era
organizador da base sindical na firma. Os operários estavam preparando uma greve
e todo mundo estava só esperando a ordem do Olavo. Diz o pedreiro: “Na hora H,
chegou a polícia e baixou o porrete em todo mundo. E prendeu o Olavo.” Quando
Olavo foi preso, Severino deixou a limpeza e ocupou o lugar dele no torno. Diante
do fracasso da greve, os operários decidiram fazer “operação tartaruga”, isto é, os
operários decidiram produzir a metade. Entretanto, Severino desrespeitando a
decisão da maioria dos operários, não parava de trabalhar. Ele escolhe ficar do lado
do capital, colocando seu sonho de ascensão no interior da firma em primeiro
lugar. Deste modo, sacrifica as relações com os companheiros de trabalho que
planejam organizar uma greve.

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Num certo momento, Severino é convocado para uma conversa com o
diretor da empresa, seu patrão, Mr. Joseph Losey, e os diretores da Ashby Losey do
Brasil. Eis como o roteirista descreve o escritório do diretor: “O escritório é ultra
sofisticado e, pelo enorme vitral, se pode ver a cidade de São Paulo do alto, o mar
de edifícios brancos.” Os diretores fazem tudo para agradar Severino. Na verdade,
querem cooptá-lo visando obter informações sobre a organização da greve pelos
operários. É interessante analisar a fala do diretor mr. Joseph Losey. Ele se dirige a
Severino (com sotaque em inglês). É interessante a transcrição da longa fala de Mr.
Joseph Losey tendo em vista que ela representa uma primorosa peça ideológica do
capital imperialista no Brasil:
“Oh, Mr. Severino… Eu pedi sua presença aqui por motivos muito sérios.
Sente-se, por favor. Certamente o senhor deve saber nosso problema... Esta
agitação...Esta indisciplina dentro da fábrica. Eu saber que o senhor é homem
responsável. Pensa com a cabeça. Por isso o chamei para falar de amigo para
amigo. Eu saber que o senhor vai ajudar a nós, como nós ajudou o senhor. Você
sabe, nossa empresa é uma das mais importantes do país. Sempre encaramos tudo
com seriedade. Temos nossos compromissos com o crescimento desse seu fabuloso
país, em busca de se tornar uma grande nação. Eu sou um estrangeiro que aqui
represento o espírito de luta do povo americano, contribuindo para a chegada desse
futuro. Nós sabemos que essa fase é difícil. Exige sacrifício de todos, pois o
importante é crescer. Não é possível o bem-estar sem produção acumulada.

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Primeiro crescer, depois distribuir riquezas. Nossos salários são fixados pelo
governo. Com estudos que nós respeitamos e que são realistas. Nós não podemos e
nem queremos pagar mais do que os índices. Estamos sabendo que alguns
operários insatisfeitos vêm persuadindo outros operários a paralisar a produção.
Isto não pode continuar. Caso contrário, vamos tomar medidas enérgicas. Talvez
vamos até decidir... Dispensa em massa de operários, que podem causar problemas
para inocentes e culpados. Causar desemprego em massa... E até violência”.
Primeiro, Losey trata Severino como um “colaborador” que “pensa com a
cabeça”, mas com a cabeça do capital. Diz o patrão: “Eu saber que o senhor é
homem responsável. Pensa com a cabeça. Por isso o chamei para falar de amigo
para amigo. Eu saber que o senhor vai ajudar a nós, como nós ajudou o senhor.”
Severino aparece no discurso do capitalista não como um trabalhador assalariado,
mas sim, um amigo do patrão e vice-versa. Por isso, o patrão espera que Severino
lhe ajude. Na verdade, o discurso do patrão é um discurso motivado por uma
preocupação: a greve dos operários que pode parar a produção e dar prejuízos para
a empresa. Deste modo, os diretores da Ashby Losey do Brasil são meras
personificações da empresa, ente abstrato do capital, lócus de acumulação de mais-
valia. Parafraseando Marx diríamos: “A empresa é tudo, o homem é nada, senão a
carcaça da empresa...”. Por isso, ao reconhecimento de Severino como colaborador,
segue-se a apresentação da empresa que ele representa.
Um detalhe: a empresa não é um mero ente abstrato. Existe uma mediação
fundamental no discurso do capitalista Joseph Losey: a Nação. A empresa Ashby
Losey do Brasil é uma empresa norte-americana. Por isso, não apenas a empresa
tem um compromisso com o crescimento do Brasil – diz ele, apelando para o
espírito nacionalista de Severino, “desse fabuloso país, em busca de se tornar uma
grande nação” – mas, como a empresa norte-americana, ela representa “o espírito
de luta do povo americano contribuindo para a chegada desse futuro.”. Portanto,
no discurso de Joseph Losey, mescla-se a empresa como capital e a empresa como
nação hegemônica do capital no plano do mercado mundial. Nesse momento do
filme, põe-se de modo inseparável, o tema da acumulação de capital que possui
como lócus a empresa e o tema do imperialismo que possui como lócus a nação

69
imperial que garante as condições políticas e ideológicas para a produção do
capital.
Mas no discurso de Joseph Losey está presente também, como outro
elemento do discurso da dominação imperialista, o tema da ideologia, isto é, existe
uma ideologia do imperialismo reproduzida pelas personificações do capital
hegemônico. Diz o capitalista Joseph Losey: “Nós sabemos que essa fase é difícil.
Exige sacrifício de todos, pois o importante é crescer. Não é possível o bem-estar
sem produção acumulada. Primeiro crescer, depois distribuir riquezas.” Eis a
ideologia do desenvolvimentismo do “milagre brasileiro” baseado na
superexploração do trabalho sob a condução das grandes empresas oligopólicas
estrangeiras com apoio do Estado bonapartista-militar.
Neste discurso existem duas falácias ideológicas que invalidam a única
afirmação verdadeira: “Não é possível o bem-estar sem produção acumulada”. É
claro que sem produção de riqueza, não há como distribuí-la. Mas o discurso
ideológico oculta o caráter estrutural de classe da produção de riqueza.
Primeiro, não é verdade que a produção de riqueza exige o sacrifício de
todos: o único sacrificado pela superexploração da força de trabalho é a classe
operária e camadas subalternas da ordem social burguesa. Depois, não é verdade
que primeiro, é preciso crescer; e depois, distribuir riqueza. O Estado bonapartista-
militar foi estruturalmente incapaz de redistribuir a riqueza acumulada. Pelo
contrário, a forma social do Estado político do capital – Estado oligárquico-burgues
de feição bonapartista-militar – que reprimiu sindicatos e movimentos sociais,
existiu para garantir, não a redistribuição de riqueza, mas sim a concentração de
riqueza, como de fato ocorreu no período do regime militar no Brasil.
Finalmente, Joseph Losey chegou ao ponto fulcral do seu discurso
ideológico: ele quer que o operário José Severino da Silva traia os companheiros de
trabalho, “dedurando” os organizadores da greve no chão-de-fábrica. Foi o que
aconteceu. Diz o operário que relata a história do homem que virou suco: “Ele
dedurou o Luisão.” Enfim, Severino, o homem que virou suco, é o homem que
escolheu ser colaborador do capital. A “captura” da subjetividade do operário
Severino ocorreu como ato de escolha moral: imbuído de sonhos, expectativas e
valores de mercado com seu fetichismo da mercadoria e anseios por ascensão

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profissional, Severino decidiu romper com o coletivo de classe e cultivar o sonho de
subir na vida.

Nas condições de luta de classes, a pressão do capital sobre Severino foi


intensa, tendo em vista que os diretores da Ashby Losey do Brasil perceberam que
ele era o elo mais fraco da corrente operária do chão-de-fábrica. Por isso, Severino
ganhou o premio de operário-simbolo. Entretanto, existe a dialética perversa do
capital que devorou irremediavelmente José Severino da Silva. Diz um operário:
“Mas depois que ele entregou o Luisão, se danou todo.” E prossegue: “Era só ele
entrar na fábrica e a gente parava. Ninguém trabalhava com ele lá, o patrão, de
quem tanto puxou o saco... Mandou ele embora com prêmio e tudo. Quando foi lá
na festa receber o prêmio de operário-símbolo... Já tava desempregado e na pior”.
Enfim, nas condições da luta de classes com a ascensão do movimento
sindical de fins da década de 1970 no Brasil, o operário José Severino e seus
anseios de subir na vida desrespeitando o coletivo de classe e colaborando com o
capital, foi esmagado não apenas pelo patrão, que o mandou embora, pois ele
tornou-se um estorvo para a produção, tendo em vista que os operários se
recusavam a trabalhar com ele; mas foi esmagado também pelo coletivo de classe
que ele próprio desrespeitou e traiu. José Severino da Silva, operário-simbolo de
1979, tornou-se um homem solitário que, alienado do ser genérico do homem-que-
trabalha, entrou numa situação de deriva pessoal. Desemprego com família e filhos,

71
decidiu matar o patrão na solenidade de entrega do Premio de Operário-Simbolo.
Foi a solidão de Severino que o enlouqueceu – solidão de classe.
Finalmente, Deraldo, que reconstrói a história do homem que virou suco,
encontra a casa de Severino na periferia de São Paulo. Diz o roteirista: “lugar alto,
espantado com a imensidão de tudo, aquele mar de casinhas construídas e pobres.”
Encontra D. Auxiliadora, mulher de Severino. É o filho de Severino que conduz
Deraldo por becos e mais becos até o local onde está o pai. Assim descreveu o
roteirista o encontro de Deraldo com seu sósia. Diz ele: “De repente, a surpresa
amarga. Num buraco imundo, de uma porta de um pequeno barraco, sai Severino,
ainda de terno (como estava na festa) e de óculos, mas todo sujo, com a peixeira na
mão, dando facadas no ar. Louco. Deraldo, extremamente comovido, é tomado pela
cena. Os dois sósias se encaram, há um encantamento nesse gesto que os une”.
Mais adiante, a cena final: “Deraldo assiste à cena final: enfermeiros levam
Severino para uma ambulância, em camisa de força. Deraldo, fortemente
emocionado, seu rosto revela sentimentos elevados de solidariedade e de gratidão
àquele homem que, na sua desgraça, o ensinou tanto. Severino vai sendo colocado
dentro da ambulância. Os dois sósias ainda se encaram por um breve instante, pela
última vez. A ambulância se vai, veloz, pelo bairro pobre”.
Deraldo escreve o novo livrinho de cordel: “O homem que virou suco”. Diz
ele: “É a história de todo nordestino. Do cara que chega em São Paulo... trabalha,
luta e acaba passando fome, virando suco de laranja”. Na rua, vendendo seu
livrinho de cordel, é incomodado novamente pelo fiscal. Mas dessa vez, Deraldo
apresenta os documentos. Diz ele: “Os documentos de um homem”. Deraldo
tornara-se homem-cidadão, sujeito de direito que luta contra a desigualdade social
e a exploração do homem pelo homem. Esta cena final é uma cena emblemática da
conjuntura social e política de 1979 com a ascensão dos movimentos sindicais e
movimentos sociais na luta contra o arrocho social e pela democracia. Diz o poeta
popular Deraldo:

72
Eu sou poeta, violeiro e repentista.
E quem despreza essas canções...
Desconhece a grandeza de Camões...
E não sabe dar valor a um artista.

Ignora que a vitória é uma conquista.


Na vida só terá decepção.
Quem trata o povo com desdém...
Se atrasou neste mundo e não...
Que é no peito, na força e mão...
E na união, que é uma semente,
A força que o povo tem”.

As cenas finais do filme “O homem que virou suco” são bastante ricas de
significados críticos que explicam a narrativa fílmica em sua totalidade concreta.
Da odisséia pelo conjunto de estações da precariedade salarial cronicamente
estrutural, que caracterizou a primeira parte do filme, à investigação etnográfica (e
etnotrágica) de Deraldo, que reconstitui a história grotesca do operário José
Severino da Silva, existe toda uma dialética do encantamento e desencantamento
das individualidades pessoais de classe na ordem burguesa hipertardia.
Primeiro, a história da loucura de Severino possui para Deraldo um sentido
catártico. Deraldo ficou fortemente emocionado com a desgraça de Severino pois
ele – Deraldo - compreendeu o sentido contingente das escolhas morais daquele
nordestino que, como ele diz, “chega em São Paulo, trabalha, luta e acaba passando
fome, virando suco de laranja”. A desgraça de Severino ensinou muito a Deraldo,
contribuindo para que ele pudesse entender a tragédia brasileira, a tragédia de um
povo cuja força está na união e luta pelos direitos sociais e democratização política
e social capaz de transformar e abolir o Estado político do capital que sustenta o
sistema social da superexploração do trabalho.
Segundo, a loucura de Severino está expressa não apenas no louco que dá
facadas no ar recolhido na favela, mas sim num processo de “captura” da
subjetividade do homem-que-trabalha que percorre a história de sua vida pessoal
como trabalhador nordestino e operário da indústria metalúrgica que
individualmente buscou subir na vida. Como disse um operário sobre Severino:

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“Era doido pra subir”. Portanto, a loucura de Severino – este poderia ser o título da
segunda parte do filme – é a loucura do consentimento espúrio do homem-que-
trabalha às disposições estranhadas do capital.
Na verdade, a loucura de Severino estava presente nos momentos de sonho,
expectativas e anseios pela ascensão profissional, mesmo que isso implicasse trair o
coletivo de classe – como ocorreu. A loucura de Severino estava no engodo da
manipulação dos sonhos e expectativas dos trabalhadores assalariados que
escolhem reduzir seu tempo de vida a tempo de trabalho visando manter seu
padrão de vida burguesa. Severina aderiu por livre e espontânea vontade à
“máquina de fazer suco de laranja” da superexploração do trabalho: trabalho
intenso com longas jornadas, visando a ascensão profissional - enfim, ganhar mais
dinheiro para ter padrão de vida de “classe média”. Disse o operário sobre
Severino: “Todo dia era o Olavo ir embora e o Severino ficava ali, treinando no
torno do Olavo”. Deste modo, a loucura de Severino era a loucura do
consentimento espúrio à lógica da superexploração do trabalho que implicava
negar a si próprio.
É claro que a perda completa de si ocorreu quando Severino se decepcionou
com o próprio patrão que o demitiu, porque Severino tornara-se um estorno na
produção da fábrica. Com o desemprego, a alienação, que estava apenas no plano
ideal da subjetividade humana (Severino preservava sua personalidade-simulacro),
efetivou-se por completo: a perda de si ocorreu efetivamente.
Terceiro, podemos afirmar a simetria real entre Deraldo e Severino:
enquanto Deraldo reage à ideologia, Severino sucumbe a ela. Deraldo se
engrandece espiritualmente e Severino enlouquece. Ao enlouquecer, Severino
reencontra a luta no plano da fantasia: ele luta contra “moinhos de vento” (Deraldo
encontra Severino, ainda de terno - como estava na festa - e de óculos, mas todo
sujo, com a peixeira na mão, dando facadas no ar). A luta de Severino enlouquecido
é a luta de quem perdeu o sentido de realidade.
Por outro lado, Deraldo se reconcilia com a realidade: vai para vender
livrinhos de cordel na rua com documentos de identidade que o tornam sujeito de
direito. Para a verdadeira luta pela cidadania plena torna-se necessário, primeiro,
reconciliar-se – não no sentido de aceitar – com a realidade, mas sim reconciliar-se

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no sentido de compreender as determinadas condições de luta, o que distingue
Deraldo, portanto, do herói ridículo Virgulino. O que significa que, ao mesmo
tempo que Deraldo se distingue de Severino, ele se distingue de Virgulino,
operando nele a negação da imputação ideológica que o treinamento com o
audiovisual queria fazer, transformando-o num herói ridículo. A ideologia do
capital queria convencê-lo que se ele não colaborasse com o capital a única
alternativa seria ser um herói ridículo. Enfim, Deraldo não renuncia à luta, mas
sabe que ela deve ocorrer no plano coletivo: a união, que é uma semente, a força
que o povo tem.

Questionamentos

1. Identifique a analise as representações da mulher no filme “O


homem que virou suco”, de João Batista de Andrade.
2. Por que José Severino da Silva, trabalhador pobre oriundo do
Nodeste, tinha tanta ânsia para subir na vida?
3. Em que medida a superexploração da força de trabalho caracteriza
ainda hoje o metabolismo social do trabalho no capitalismo hipertardio no Brasil

Giovanni Alves
(2013)

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