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Gestos de Equilíbrio

de Marcus Mazieri

“A função específica da arte não é, como comumente se imagina, expor ideias, difundir
concepções ou servir de exemplo. O objetivo da arte é preparar uma pessoa para a
morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem.”

Andrei Tarkovski

Este texto é um manual de execução da obra Gestos de Equilíbrio. Por si só, ele não
garante a obra e nem tira a responsabilidade de reflexão, paixão e entrega dos
envolvidos. O atuante, em especial, precisa encontrar em si mesmo o equilíbrio.

O gesto é uma partícula em potência do ser como um todo. A comunicação mínima e


sintética dos estados psicofísicos. Mas também, quando equilibrado, dos estados extra-
psicofísicos: os estados espirituais. Estados da alma, no popular. Mas esse “da alma”
pode causar uma confusão. Não se trata de estados específicos virtuosos de um ser
divino (ou do “verdadeiro eu”), mas sim de um estado com as qualidade do espiritual:
impermanência, não-forma e não-eu. Ou então: ausência de conteúdo, de forma e de
subjetividade. Vazio. Vacuidade.

O espaço vazio, a sala vazia, a moringa, o céu azul sem nuvens. Metáforas do vazio,
qualidade última da realidade, que servem de inspiração ao esvaziar do ser: esvaziar
da mente, esvaziar do corpo, esvaziar da existência. Esvaziar de conceitualização.
Encontrar uma percepção ausente de conceitos. Des-interpretar. Ou seja, buscar novos
processos de geração de significados. Buscar, inclusive, possibilidades de significados
ainda fora de nossos hábitos mentais. Ser contra a interpretação!

Os gestos precisam ser descobertos, inventados, criados, gerados. Estão em:


movimentos do corpo, movimentos da mente, imobilidade do corpo, imobilidade da
mente, imagens do corpo, imagens do vazio, imagens do vazio em relação ao corpo,
imagens do corpo em relação ao vazio, sons do corpo, sons dos objetos em relação ao
corpo, sons do silêncio, som que tudo permeia em forma de zumbido, silêncio do corpo,
silêncio da mente, silêncio do espaço, respiração, observação do corpo, observação
das sensações corporais, observação da mente, observação dos conteúdos mentais,
observação do espaço, fusão da mente com o espaço, observação do corpo da
inspiração, observação do corpo da expiração, observação da respiração além de

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inspiração e expiração, observação dos objetos no espaço, troca de olhares neutros,
posturas do corpo em relação ao seu próprio eixo, posturas do corpo em relação ao
eixo do planeta, postura do corpo em relação a base que o sustenta, consciência da
luta contra o desequilíbrio no ato de andar, os gestos do gesto de equilíbrio.

Não há começo, meio e fim. Há surgir e desaparecer constante. E, como um


microscópio, pode-ser ver esse surgir e desaparecer por um tempo. E a partir daí ver o
surgir e desaparecer em outros lugares, em outros momentos.

A forma material é como espuma


Tocando uma bolha de água;
A percepção é só uma miragem,
Volições semelhantes a um tronco de planta,
Consciência, um truque de magia -
Assim diz o Parente do Sol.

(Buda Shakyamuni)

Não se trata de palavras. Não se trata de falar algo a alguém. Uma comunicação é
estabelecida. Evidente. Não poderia ser diferente. Mas não se trata, em absoluto, de
transferir uma ideia, informação ou discurso. Se trata, talvez - e esse talvez é
importante - de transferir percepções. De possibilitar sensações. Até porque às vezes a
gente precisa apenas relaxar. E respirar. Encontrar o equilíbrio.

Não se trata de rubricar as ações. Nem de dar voz às frases. O fulano de tal traço o
que ele diz (baseado no que ele sente e pensa). Não se trata de drama. Se trata, talvez
- e esse talvez é importante - de transferir a capacidade de se manter atento a
respiração.

Aqui não cabe nenhum palavra. Nem texto, nem subtexto. Sequer rubrica.

Este é o primeiro gesto de equilíbrio: RESPIRAR

Não se trata de encenar, representar, interpretar. Se trata de pisar no chão. Pisar no


chão é pisar no chão. Mas há níveis de qualidade para se pisar no chão. De qualquer

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forma o atuante estará pisando no chão. Como pode ele escapar do chão? Aqui cabe
uma rubrica.

O atuante anda pelo espaço calmamente enquanto olha para as pessoas que o olham.

Se trata, talvez - e esse talvez é importante - de trazer os pés de todos para o chão.

Este é o segundo gesto de equilíbrio: PISAR NO CHÃO

Se trata de sons que partam do equilíbrio. Sons que levem ao equilíbrio. Som como
uma estrada. Queria dizer cantar. Mas a palavra canto trás responsabilidades. E o
canto remete a ideia de que tenha alguma letra. Qualquer canção, com letra, vai
significar algo. Significar o que? Ela vai significar, isso que importa, ela vai significar
algo. Opta-se, então, em apenas a vocalização de uma música.

O atuante vocaliza uma música de forma que os sons que emite vibrem e ressoem
pelo espaço, atingindo o corpo e a mente dos que o olham.

Isso não descarta a possibilidade de simplesmente vocalizar vogais. Isso tem poder. Se
trata, talvez - e esse talvez é importante - de provocar vibrações em si, no outro e no
espaço.

Este é o terceiro gesto de equilíbrio: VOCALIZAR

O ator se utiliza do jogo de luz e sombra do seu próprio corpo e dos objetos no espaço
para criar imagens. Tais imagens devem ser contempladas pelo ator e pelo público.

Se trata, talvez - e esse talvez é importante - de gerar uma imagem abstrata que, como
um imã, atrai toda a atenção de quem o olha.

Este é o quarto gesto de equilíbrio: CONTEMPLAR

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O atuante, por si, não deve esperar por coisa alguma. Ele deve realizar cada ação
como se tivesse um fim em si mesmo. O atuante não pode prever o futuro. Um
personagem, por acaso, pode prever o futuro?

Talvez - e esse talvez é importante - seja necessário falar. Não se trata de falar algo
sobre o tema. Ou que remeta ao tema. Não se trata de levar as palavras a sério.
Qualquer coisa pode ser falada. Qualquer coisa mesmo. Qualquer. Qualquer frase
escrita em um pedaço de papel. Qualquer frase sussurrada ao atuante pelo público.
Em qualquer língua. Com qualquer intonação. A rubrica poderia até ser essa:

O atuante fala qualquer coisa para si mesmo. O atuante fala qualquer coisa para o
espaço. O atuante fala qualquer coisa para o público.

Mas isso pode (talvez) não se tornar um gesto. E é preciso que tudo seja um gesto.
Gestos de equilíbrio. Então o atuante fala alguma coisa planejada.

1 - Tudo que surge na mente flui junto com sensações.

E ele repete.

1 - Tudo que surge na mente flui junto com sensações. Tudo que surge na mente
flui junto com sensações. Tudo que surge na mente flui junto com sensações.

É preciso internalizar algumas palavras.

1 - Tudo que surge na mente flui junto com sensações. Tudo que surge na mente
flui junto com sensações. Tudo que surge na mente flui junto com sensações.
Tudo que surge na mente flui junto com sensações. Tudo que surge na mente flui
junto com sensações. Tudo que surge na mente flui junto com sensações. Tudo
que surge na mente flui junto com sensações. Tudo que surge na mente flui junto
com sensações.

A fala também pode indicar a visualização de algo. Pode descrever o que é visto. Pode
descrever uma pessoa do público, por exemplo. Ou uma pessoa qualquer.

1 - Esse corpo. Esse corpo mesmo. Um meu, outro seu, outro de outro e assim
por diante. Corpo que é coberto de pele e cheio de impurezas de todos os tipos
das solas dos pés para cima e do cabelo da cabeça para baixo. Neste corpo há
cabelos da cabeça, pelos da pele, unhas, dentes, pele, carne, ligamentos, ossos,

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medula óssea, rins, coração, fígado, pleura, baço, pulmões, intestinos,
mesentério, estômago com seus conteúdos, fezes, bile, catarro, pus, sangue,
suor, gordura, lágrimas, sebo, saliva, muco nasal, líquido sinovial e urina. Ver um
corpo é simples. É exatamente como se houvesse um saco de provisões com
duas bocas, cheio de vários tipos de grãos e sementes, como arroz integral,
feijões, ervilha, lentilha, sementes de gergelim e arroz descascado, e como se
houvesse um homem com olhos perspicazes que, depois de ter aberto esse saco
examinasse o conteúdo, dizendo: “Isso é arroz integral, isso é feijão, isso é
ervilha, isso é lentilha, essas são sementes de gergelim e isso é arroz
descascado”. Cabelos da cabeça, pelos da pele, unhas, dentes, pele, carne,
ligamentos, ossos, medula óssea, rins, coração, fígado, pleura, baço, pulmões,
intestinos, mesentério, estômago com seus conteúdos, fezes, bile, catarro, pus,
sangue, suor, gordura, lágrimas, sebo, saliva, muco nasal, líquido sinovial e
urina. Isso é o corpo.

Pode também descrever o momento presente e os momentos passados. Ou o futuro.

1 - Um corpo. Um meu, outro seu, outro de outro e assim por diante. Um corpo
como esse nosso. Um cadáver. Um cadáver que foi jogado no campo de
putrefação, morto por um, dois ou três dias, inchado, azulado e apodrecendo. Um
cadáver que foi jogado em um campo de putrefação, sendo comido por corvos,
sendo comido por abutres, sendo comido por falcões, sendo comido por garças,
sendo comido por cães, sendo comido por tigres, sendo comido por leopardos,
sendo comido por chacais, sendo comido por diferentes tipos de criaturas. Um
cadáver que foi jogado em um campo de putrefação, reduzido a um esqueleto,
ainda com alguma carne e sangue e mantido inteiro pelos tendões. Um cadáver
que foi jogado em um campo de putrefação, reduzido a um esqueleto sem
nenhuma carne, mas lambuzado de sangue e mantido inteiro pelos tendões. Um
cadáver que foi jogado em um campo de putrefação, reduzido a um esqueleto
sem nenhuma carne ou sangue e mantido inteiro pelos tendões. Um cadáver que
foi jogado em um campo de putrefação, reduzido a ossos desconectados,
espalhados em todas as direções, aqui um osso da mão, ali um osso do pé, aqui
um osso do tornozelo, ali um osso do joelho, aqui um osso da coxa, e ali um
osso da bacia, aqui um osso da coluna, ali um osso das costas, ali de novo um
osso do ombro, aqui um osso da garganta, ali um osso do queixo, aqui um osso
dos dentes e ali um osso do crânio. Um cadáver que foi jogado em um campo de
putrefação, reduzido a ossos esbranquiçados, cor de concha. Um cadáver que foi
jogado em um campo de putrefação, de ossos amontoados numa pilha há mais
de um ano. Um cadáver que foi jogado em um campo de putrefação, os ossos

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tendo apodrecido até virarem pó. De fato, este corpo é da mesma natureza, vai
ficar igual àquele e não se pode evitar.

Este é o quinto gesto de equilíbrio: FALAR

A vida é agridoce. É preciso chorar. É preciso destruir. É preciso não caber dentro do
próprio corpo para então traçar um plano de fuga. E o plano de fuga questiona: o corpo
é o único lugar possível?

O atuante realiza alguma ação repetitiva, sem ódio, sem raiva, sem emoção alguma.
Mas o ato tem que exigir-lhe tanto que o fim dele o atuante se encontra exausto.

Não se trata de forjar um fim que substitua uma total ausência do fim. O fim será
mesmo inevitável. Se trata, talvez - e esse talvez é importante - de desistir de qualquer
tipo de luta em relação ao presente.

Este é o sexto gesto de equilíbrio: EXAURIR

Se trata, em absoluto, de materializar o gesto. Concretizar o gesto. Redefinir o gesto.


Codificar o gesto. Amar o gesto. Os gestos dos gestos. Toda a gestualidade que
conduz e parte, ao mesmo tempo, do/para o equilíbrio. É preciso entender o gesto. É
preciso mimetizar o gesto. É preciso imitar outros gestos. É preciso descobrir o gesto.
É preciso inventar o gesto.

É preciso entendimento correto.

É preciso pensamento correto.

É preciso linguagem correta.

É preciso ação correta.

É preciso modo de vida correto.

É preciso esforço correto.

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É preciso atenção plena correta.

É preciso concentração correta.

O atuante realiza todos os gestos que descobriu/inventou em sua busca pelo equilíbrio.
Ao término, olha para o público e agradece. E este é o fim.

Este é o sétimo gesto de equilíbrio: FIM

Marcus Mazieri, 2017


markito.mazieri@gmail.com
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Alguns trechos das falas em negrito são extraídos do Mahasatipatthana Sutta, o
“Grande discurso nas fundações da atenção plena”, texto que relata falas do
Buda Shakyamuni aos seus discípulos.

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