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Tendo como eixo norteador a premissa e aos leitores de suas obras relacionavam-se às
metodológica de que os projetos de educação e características peculiares de um período de
de ensino das diferentes épocas correspondem transição.
às diferentes necessidades sociais, no decorrer Conforme destacamos, nos chamaram a
deste trabalho, procuramos situar Agostinho no atenção as circunstâncias resultantes das
universo histórico, intelectual, religioso e familiar migrações dos nômades e da desagregação
de sua época. Ao analisar os aspectos política do Império Romano. Nas quais
particulares da vida, bem como da formação de percebemos que sua proposta de educação que
Santo Agostinho em face dos aspectos gerais da contempla muitas questões relativas ao ensino,
sociedade, percebemos que algumas questões emergia das necessidades que os tempos e a
desse contexto foram abordadas pelo autor e demanda impunham. O atendimento dessas
destacadas pela historiografia que o estudou. necessidades somente poderia ser realizado por
Pudemos reiterar, com base nesses historiadores, pessoas que tivessem condições culturais e
que a ênfase de Agostinho sobre alguns aspectos religiosas para tal. Ao ensinar seus discípulos,
de sua educação familiar e cultural, bem como o Santo Agostinho preparou-os para formar
cuidado com que ele se dirigia aos seus ouvintes outros; assim, juntamente com a evangelização,
PEINADO, M. R. S. de S. Imagens da Educação, v. 2, n. 1, p. 1 - 10, 2012.
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figuradas, quando estas se referissem aos Assim, para santo Agostinho, a leitura, a
animais, pedras, plantas ou outros seres matemática, a natureza, a música, o
citados freqüentemente nas Escrituras e conhecimento das línguas e a memória
servindo como objeto de comparações tornam-se condição primeira para a
(AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, L. II, conversão do cristão. O cristão deve ser
cap. 17, § 24). antes de tudo um ser que consegue
entender e interpretar os escritos sagrados
Segundo ele, para a compreensão eficaz das pelo conhecimento e não somente pela fé.
Escrituras, o estudioso deveria passar, O cristão também deve entender as
necessariamente, pelo conhecimento das coisas, relações sociais de cada tempo presente
vivido pelos homens, pois são elas que
da ciência do raciocínio e das instituições
imprimem os signos do conhecimento. É
humanas, dominar os sentidos das palavras e dos exatamente por isso que o autor chama a
signos, conhecer outras línguas, entre outros atenção para as mudanças que ocorrem de
aspectos importantes do conhecimento. uma dada sociedade para outra (p. 6).
Dessa maneira, tão importantes como os
conteúdos do Trivium, são os conhecimentos do Nesse sentido, para Agostinho, os
Quadrivium, que consistem num conjunto de conhecimentos que compunham as disciplinas
conhecimentos objetivos e abstratos de do Quadrivium eram pré-requisitos à formação do
aritmética, geometria, música e astronomia, os cristão.
quais também eram úteis, segundo Santo Para Durkheim (1995), em sua análise sobre
Agostinho, à compreensão das expressões os campos de conhecimento, o Quadrivium
referentes a essas artes utilizadas nas Escrituras
como objeto de comparações a fim de alcançar o [...] era um conjunto de conhecimentos
entendimento das coisas espirituais e, relacionados com as coisas. Seu papel era
consequentemente, a rejeição das ficções tornar conhecidas as realidades externas e
supersticiosas. suas leis, leis dos números, leis do espaço,
A astronomia teria como objeto de estudos a leis dos astros, leis dos sons. Assim, as
ciência dos astros, da natureza e de seu poder. artes que abraçava eram chamadas artes
reales ou physica (1995, p. 52).
Santo Agostinho alertava, porém, que não se
deveria utilizar esse conhecimento para tirar
É importante destacar que se atribuía um
prognóstico de horóscopos, como faziam os
sentido alegórico às quatro disciplinas.
genetlíacos, hoje chamados astrólogos. Em lugar
Procurava-se um significado oculto nos
de fazer conjecturas exatas para o tempo futuro,
números, nos astros. Desse modo, as disciplinas
calcular o curso dos astros ou da lua, dizer qual a
fase dentro de um período passado ou futuro, a do Quadrivium ofereciam um conjunto de
conhecimentos externos, necessários à
astronomia era importante para desvelar o
sentido das Escrituras como ciência dos astros compreensão das ilustrações ou de expressões
figuradas dos Livros Santos.
criados por Deus. Assim, ele combatia um
hábito característico do paganismo.
Um homem fala com tanto maior
Quanto à importância da aritmética, sabedoria, quanto maior ou menor
Agostinho afirmava que a ignorância dos progresso faz na ciência das santas
números impedia a compreensão de expressões Escrituras. E eu não me refiro ao
figuradas ou simbólicas empregadas nas progresso que consiste em ler bastante as
Escrituras. O mesmo vale para as noções escrituras ou aprendê-las de cor, mas do
musicais. Segundo ele, tanto a música quanto os progresso que consiste em compreendê-las
números eram colocados em lugar de honra em bem e procurar diligentemente o seu
muitas partes das Escrituras. sentido (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã,
A música, nesse contexto, não deveria ser L. IV, cap. 5, § 7).
entendida como a arte do canto, mas como a
disciplina que estabelecia as relações da música Assim, percebemos que a proposição
com a aritmética, com a harmonia dos astros e agostiniana para a difusão do cristianismo
com as leis da acústica. passaria pelo conhecimento do Trivium e do
Segundo Oliveira (2008) Quadrivium, já que, como as Escrituras foram
escritas em linguagem humana, era necessário
utilizar a ciência das coisas terrenas para explicar Le Goff (2007) destaca o fato de essa
os princípios abstratos da religião. escolha de conteúdos feita por Agostinho ter
Gilson (2001) destaca a importância com permanecido até o século XII e XIII, o que, de
que os Padres e Agostinho, em particular, nossa perspectiva, implica a permanência do
consideravam a cultura clássica, especialmente as conhecimento elaborado na Antiguidade.
“[...] artes liberais, bastante apropriadas ao uso
da verdade e ainda alguns preceitos morais Entre as escolhas culturais essenciais que o
muito úteis” (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, cristianismo medieval fez, em primeiro
Livro II, cap. 41, § 60). Elas seriam uma forma lugar, e sobretudo está a das classificações
de o homem melhor interpretar as sagradas científicas e dos métodos de ensino.
Transmitida por um retórico latino cristão
Escrituras.
do século V, Marciano Capella, a
classificação e a prática das artes liberais
Para compreender o texto todos os dominam o ensino medieval. Divididas em
recursos das artes liberais eram requeridos, dois ciclos, o do trivium, ou artes da palavra
isto é, toda a erudição enciclopédica de (gramática, retórica e dialética) e o do
Varrão: história (II, 28); geografia, quadrivium, ou artes dos números
botânica, zoologia, mineralogia, (aritmética, geometria, música e
astronomia (II,29); medicina, agricultura, astronomia), estas artes recomendadas por
navegação(II,30); a dialética, tão útil para Santo Agostinho vão, nos séculos XII e
discutir as questões colocadas pela XIII, fornecer o fundamento do ensino
Escritura (II, 31-35); enfim, a aritmética, universitário na faculdade propedêutica
com suas diversas aplicações às figuras, dita faculdade de artes (LE GOFF, 2007,
aos movimentos e aos sons (II, 38). Mas p. 26).
achar-se em condições de compreender a
Escritura não é tudo, é necessário, além
disso, saber falar a seu respeito. É aqui que Em A Doutrina Cristã fica evidente o papel
intervém a Retórica, à qual é consagrado do conhecimento clássico na formação
todo o livro IV da obra: porque os cristãos intelectual dos cristãos, tendo em vista que estes
podem e devem ensiná-la, quais os deveres deveriam ensinar outros cristãos, reforçando,
de um professor de retórica cristão e como assim, o entendimento que continuava
os autores sacros uniram a eloqüência à motivando o desenvolvimento do trabalho
sabedoria. Que satisfação para Agostinho intelectual nas Igrejas, nos mosteiros, nas escolas
pensar que as Escrituras realizam, assim, o paroquiais e episcopais.
ideal de Cícero! Aliás, ele cita-o Nessa corrente, A Doutrina Cristã se tornou
expressamente ao descrever o gênero de
manual de educação e de ensino para a sociedade
estilo e de eloqüência que convém ao
cristão; ele se entrega a uma exegese em medieval, uma vez que nele Agostinho deu nova
regra de texto do Orator, 29, para explicar roupagem às leituras das Escrituras. Diferindo
como, em que sentido o orador cristão de Tertuliano, por exemplo, que no segundo
pode observar os preceitos aí contidos, e século, não concordava que os cristãos
essas discussões não eram, para ele, ensinassem as letras, por considerá-las saber
simples debates acadêmicos, já que, pagão. Nesse aspecto, as orientações
expulsa do fórum e confinada às salas de agostinianas foram adotadas nas escolas
escola desde Júlio César, a eloqüência paroquiais e nas dos mosteiros por conter a
vinha de reencontrar um público e concepção de educação cristã e por definir o
retomar vida nas igrejas. Ambrósio,
conjunto de disciplinas que deveria ser ensinado.
Cipriano, Agostinho não reivindicavam a
tarefa de conduzir o povo ao bem comum Os escritos dos padres e dos monges,
da Cidade terrestre, mas acaso não eram os posteriores ao século V, evidenciam o
guias do imenso povo da Cidade celeste conhecimento da proposição agostiniana.
em peregrinação até Deus? (GILSON, Uma vez que Agostinho considerava que o
2001, p. 209). domínio do conhecimento clássico fornecia
subsídios para o conhecimento das coisas
Assim, imbricado na cultura clássica, espirituais e propiciava condições de aprimorar a
Agostinho fundamenta o corpo teórico que daria fé, ele defendia que o homem cristão fizesse uso
a sustentação à compreensão e à difusão da do pensamento racional, no qual a linguagem
doutrina cristã. tinha papel fundamental. Por isso, em item
específico, vamos analisar a importância que ele
PEINADO, M. R. S. de S. Imagens da Educação, v. 2, n. 1, p. 1 - 10, 2012.
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elas transmitem e, por isso, ele discute também a Segundo Horn, para se entender o que
questão dos signos. Agostinho pretendia com a definição das
Na medida em que a linguagem estabelece a palavras como sinais, é necessário considerar
comunicação entre as pessoas, ele considerava uma importante distinção: a palavra como um
que o conhecimento dos signos constituía-se em sinal que representa (substitui) o objeto e como
elemento potencial de aprendizagem. Da mesma um meio de comunicação, de conhecimento.
forma que a palavra que se profere pode ser
percebida pelo ouvido, a palavra escrita Poucos anos depois da sua redação, no
apresenta-se como um sinal para os olhos, escrito De magistro, do ano de 389,
despertando na mente o que se percebe com os Agostinho já se apóia muito claramente
ouvidos. nessa definição, quando define palavras
(verba) como sinais (signa) (2,3). Sem
Segundo Horn (2006), esse aspecto do
dúvida, para entender corretamente a
pensamento era tão inovador, que o autor foi concepção ali contida, tem-se de
considerado um precursor da concepção diferenciar entre duas funções, nas quais as
semiótica. palavras podem aparecer como sinais (cf.
De magistro, 2002). (HORN, 2006, p. 7).
Um ponto que se destaca por todo o
pensamento agostiniano sobre a filosofia Assim, a primeira função estaria relacionada
da linguagem é a tese de que palavras ao campo da semântica:
representam sinais. Parece residir aqui uma
inovação digna de nota, diante dos seus
Por um lado, pode-se ter em vista uma
predecessores, razão pela qual
função substitucional (nisso pensamos nós
repetidamente se afirmou que Agostinho é
contemporâneos, via de regra): palavras
o patrono de uma concepção semiótica (de
designam algo, na medida em que elas,
teoria dos sinais) da semântica, ou, ainda,
como sinais, estão por esse algo como que
da teoria do significado lingüístico (cf.
‘a modo de substituição’. Assim a palavra
Coseriu, 1969; Eco, 1984 apud HORN,
‘mesa’ designa o objeto mesa, na medida
2006, p. 6-7).
em que ela, como fonema (sinal sonoro)
ou como grafema (sinal escrito), está para
Horn (2006) informa ainda que essa uma mesa no mundo das coisas físicas
definição de linguagem aparece em outras obras (HORN, 2006, p. 7).
de Agostinho anteriores ao De Magistro:
Na segunda, os sinais têm um sentido
Agostinho dispõe de uma série de constitutivo do conhecimento e, segundo o
observações interessantes e modos de autor, é com essa acepção que Agostinho
visão originais sobre o fenômeno da
considera a palavra em suas orientações sobre o
linguagem. A sua intenção, contudo, não
reside no desenvolvimento de uma ensino.
filosofia sistemática da linguagem. Ao
fundo, encontra-se, antes, a sua pretensão Por outro lado, palavras podem ser
teológica de comprovar a presença de uma tomadas como sinais num sentido ainda
realidade divina no nosso falar e pensar. mais geral, a saber, constitutivo do
Apesar desse interesse de conhecimento conhecimento. Palavras abrem para nós
incomum, pode-se atestar a Agostinho que novos conteúdos de saber, na medida em
a sua ocupação com filosofia da linguagem que formam o veículo de uma exposição,
alcança, nas diferentes fases biográficas, de uma narrativa ou de uma argumentação
um nível absolutamente respeitável. oral ou escrita. Palavras desvelam à
Possuímos, primeiramente, um tratado ouvinte ou ao leitor algo novo; elas
juvenil com o título De dialectica, que se apresentam a ela ou a ele algo até então
ocupa com algumas questões de filosofia não-sabido. É esse segundo significado
da linguagem e de teoria dos sinais, e que Agostinho tem em vista com a sua
sabemos que existiu um tratado surgido tese do caráter de sinal das palavras, e não
simultaneamente, De grammatica, o qual, uma teoria de semântica. Palavras são
porém, já cedo se perdeu (HORN, 2006, sinais, não primariamente em sentido
p. 6). substitucional-semântico, mas sim em
sentido constitutivo do conhecimento
(HORN, 2006, p. 7).
REFERÊNCIAS