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Gestantes em situação de rua no município

de Santos, SP: reflexões e desafios para as


políticas públicas1
Homeless pregnant women in the city of Santos, São Paulo,
Brazil: reflections and challenges to public policies

Samira Lima da Costa Chao Tsai Ping


Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Medicina e Universidade Federal de São Paulo. Departamento de Fisioterapia.
Instituto de Psicologia. Santos, SP, Brasil.
Departamento de Terapia Ocupacional. Programa de Pós-gra- E-mail: janyminey@hotmail.com
duação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social.
Marina Galacini Massari
Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
E-mail: biasam@uol.com.br Universidade Federal de São Paulo. Departamento de Psicologia.
Santos, SP, Brasil.
Cindy Passeti da Costa Vida E-mail: massari.marina@yahoo.com.br
Rede de Reabilitação Lucy Montoro. Associação Casa da
Tailah Barros de Paula
Esperança. Santos, SP, Brasil. 
E-mail: cindy_vida@hotmail.com Universidade Federal de São Paulo. Programa de Residência
Multiprofissional em Oncologia Pediátrica. São Paulo, SP, Brasil.
Isabela Augusta Gama Instituto Oncologia Pediátrica. Grupo de Apoio ao Adolescente e
Prefeitura Municipal de Pedreira. Pedreira, SP, Brasil a Criança com Câncer. São Paulo, SP, Brasil.
E-mail: isabelagama88@gmail.com E-mail: tailahb_p@hotmail.com
Nathália Tarossi Locatelli Ana Flávia Martins Bernardes
Universidade Federal de São Paulo. Programa de Pós-Graduação Universidade Federal de São Paulo. Departamento de Nutrição.
em Alimentos, Nutrição e Saúde. Santos, SP, Brasil. Santos, SP, Brasil.
E-mail: na_locatelli@hotmail.com E-mail: afm.bernardes@gmail.com
Bruno Jaar Karam
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Pós-
graduação em Serviço Social. São Paulo, SP, Brasil.
E-mail: bruno-karam@hotmail.com

Correspondência
Samira Lima da Costa
Rua Fagundes Varela, 537, Ingá. Niterói, RJ, Brasil. CEP 24210-520.

1 Pesquisa financiada pelo CNPq/PIBIC. O estudo foi realizado na cidade Santos, SP, durante os anos de 2009 a 2013.

DOI 10.1590/S0104-12902015134769 Saúde Soc. São Paulo, v.24, n.3, p.1089-1102, 2015 1089
Resumo Abstract
O estudo teve como objetivo investigar o cotidiano The study aimed to investigate the daily routine
de gestantes em situação de rua e sua relação com as of homeless pregnant women and their relation to
políticas públicas na cidade de Santos, litoral do Es- public policies in the city of Santos, State of São
tado de São Paulo. A coleta de dados foi feita através Paulo. Data was collected through the record and
do registro e estudo de narrativas de memórias de study of narratives of life memories. The analysis
vida. A análise deu-se pelo agrupamento temático de was conducted through the thematic grouping of
trechos das narrativas, sendo identificadas quatro excerpts of narratives, and four main categories
principais categorias: vida na rua; cuidado e ges- were identified: life on the street; care and preg-
tação; projetos futuros; e rede pública de serviços. nancy; future projects; and public services. The
As narrativas revelam mulheres com capacidade narratives reveal women with creative ability to
criativa para desejar uma vida melhor a partir da desire a better life based on the possibility of hav-
possibilidade de ter um filho. Entretanto, a condição ing a child. However, the social condition in which
social em que vivem, envolvendo a luta diária pela they live, which involves the daily struggle for sur-
sobrevivência e, em alguns casos, a dependência vival and, in some cases, drug addiction, hinders
química dificultam o planejamento de estratégias the planning of strategies to transform the desire
que transformem o desejo em um projeto de vida. into a life project. Thus, most of them lose custody
Dessa forma, na maioria das vezes perdem a guarda of their children. Although they know the public
de seus filhos. Embora conheçam os serviços públi- services, they go to them only in emergencies,
cos, quase sempre os acessam apenas em casos de mostly. We have not identified, in the network of
urgência. Não se identificaram na rede de serviços care services - public and third sector -, programs
assistenciais – pública e do terceiro setor – progra- focusing on the issue of homeless pregnant women,
mas focados na questão da gestante em situação de even though Brazil already witnesses, today, stories
rua, ainda que o Brasil já viva, atualmente, histórias of families who have the homeless situation as an
de famílias que têm a situação de rua como experi- intergenerational experience. The results point to
ência intergeracional. Os resultados apontam para the need of making intersectoral policies targeted
a necessidade de constituição de políticas interse- at homeless pregnant women.
toriais, voltadas para gestantes em situação de rua. Keywords: Pregnant Women; Homeless Persons;
Palavras-chave: Gestantes; Sem-Teto; Assistência Social Work; Public Policies.
Social; Políticas Públicas.

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Introdução anteriormente vividas [...]”, passando a desenvolver
formas de sobrevivência diária com vistas a satisfazer
O presente trabalho apresenta parte dos dados e da suas necessidades e superar as barreiras apresenta-
análise gerados a partir das pesquisas “Mulheres em das pela cidade, tornando esse ambiente familiar e di-
situação de rua no período gestacional: perspectivas minuindo a vulnerabilidade inicial vivenciada por ele.
da terapia ocupacional e da nutrição” (Vida et al, 2009; Essa população apresenta duas principais ativi-
Locatelli et al, 2010) e “Mulheres em situação de rua dades diárias: a busca por meios de sobrevivência e
no período gestacional: cotidiano e políticas públicas” por trabalhos temporários, como “bicos” na constru-
(Karam et al, 2011; Bernardes et al, 2012) ambas sob ção civil, recolhimento de materiais recicláveis para
orientação da professora Dra. Samira Lima da Costa. a venda, guardador de carro ou no setor de limpeza
Esse estudo foi realizado na cidade de Santos, litoral (Ghirardi et al., 2005).
paulista, e teve como objetivo investigar a realidade As pessoas que fazem das ruas seu espaço
de vida e o cotidiano de gestantes em situação de rua. de permanência e sobrevivência trazem à tona o
Na última década, o empobrecimento progressivo processo de vulnerabilidade social vivenciado por
da população contribuiu para o aumento do número muitas famílias brasileiras marcadas pela situação
de pessoas que vivem em situação de miséria: “Basta de miséria, abandono e violência. Nesses grupos,
andar pelas ruas dos grandes centros urbanos, com identifica-se um processo crescente de fragilização
um pouco de atenção, para constatar os efeitos e ruptura dos laços que os inserem no trabalho e nas
deletérios do fim da sociedade salarial sobre a vida relações sociais (Gontijo, 2007).
dos cidadãos” (Ghirardi et al., 2005, p. 601). Parte de
tais efeitos configura-se pelo aumento da população
Sexo, gravidez e maternidade nas
em situação de rua. Embora haja trabalhos com essa
população, levantamentos específicos sobre mulhe- ruas
res nessas condições não são comuns, sendo ainda As falas de pessoas que residem nas ruas apontam
mais raros estudos de gestantes em situação de rua. o sexo como bom e prazeroso, e o fato de estarem
nas ruas não é motivo para se privarem de relações
População em situação de rua sexuais. Entretanto, as manifestações afetivas são
pouco comuns e os tratamentos são geralmente
Este trabalho baseia-se na conceituação proposta ríspidos e até agressivos (Medeiros et al., 2001). Ao
pela Secretaria de Assistência Social de São Paulo pesquisarem adolescentes em situação de rua, esses
(SAS/FIPE) para pessoas em situação de rua: autores identificam que:
Todas as pessoas que não têm moradia e que pernoi- Geralmente as meninas sonham com um grande
tam nos logradouros da cidade – praças, calçadas, amor que será capaz de mudar suas vidas e, quan-
marquises, jardins, baixos de viadutos – ou casa- do estão envolvidas com algum menino, vivem
rões abandonados, mocós, cemitérios, carcaças de intensamente aquelas experiências. Os meninos
veículos, terrenos baldios ou depósitos de papelão também almejam uma relação afetiva sólida, como
e sucata. (...) Foram igualmente considerados mo- o casamento, mas a escolha da futura noiva incidirá
radores de rua aquelas pessoas ou famílias que, entre aquelas que não estão nas ruas, pois estas são
também sem moradia, pernoitam em albergues ou para casar e as que estão nas ruas não servem para
abrigos, sejam eles mantidos pelo poder público ou o casamento (Medeiros et al., 2001, p. 39).
privados (São Paulo; FIPE, 2000, p. 05).
Identifica-se que “[...] algumas mulheres aca-
Segundo Vieira, Bezerra e Rosa (2004, p. 26), bam utilizando o sexo como um meio para obter
“[...] a condição de morador de rua expõe o sujeito ao proteção ou mesmo amparo financeiro para a
enfrentamento de carências de toda ordem, além de sobrevivência” (Varanda; Adorno, 2004, p. 66).
exigir que ao mesmo tempo ele se adapte a outras E, por estarem expostas às ruas, apresentam
referências de vida social bastante distinta daquelas dificuldades em ora dizer sim e ora dizer não aos

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parceiros sexuais. Por serem frágeis, muitas ve- Métodos
zes não conseguem se defender quando forçadas
a praticar sexo, e algumas acabam fazendo o uso A coleta de dados foi feita através de narrativas de
de bebidas alcoólicas, o que as deixam ainda mais memórias de vida de mulheres gestantes acima de
18 anos em situação de rua. O projeto foi submeti-
vulneráveis.
do ao Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade
A maternidade não pode ser reduzida aos as-
Federal de São Paulo/Hospital São Paulo, aprovado
pectos biológicos, pois, “[...] do ponto de vista da
em 23/10/2009 (CEP 1600/09), em acordo com a
cultura humana, não existe fato biológico em si; o
Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde
que existe são, portanto, discursos próprios a cada
(CNS). Foram também consideradas mulheres em
cultura que constituem os fatos biológicos” (Sza-
situação de rua mães de bebês com menos de 2 anos
piro; Carneiro, 2002, p. 183). A maternidade seria,
de idade, cuja gestação tivesse ocorrido nas ruas.
então, um fenômeno social e consequentemente
O contato com serviços voltados para popula-
uma construção sócio-histórica (Kimura, 1997).
ção em situação de rua facilitou a localização das
A gravidez pode ser considerada um fator de
gestantes. Entretanto, o receio que apresentam ao
risco social na esfera da saúde pública e um re-
primeiro contato é evidente. Algumas, ao entende-
forço à marginalidade e pobreza, dependendo das
rem que não é “obrigatória” sua colaboração com a
condições em que se desenvolve. Assim, no caso da pesquisa e também que não é uma intervenção da
gestação em situação de rua pode-se identificar prefeitura ou da polícia, sentiram-se à vontade para
a possível precariedade das condições de vida e a relatar mais livremente sua trajetória e suas dificul-
dificuldade de acesso aos serviços como fatores dades. Outras, pelos mesmos motivos, sentiram-se
de risco para mãe e bebê. igualmente à vontade para recusar a participação.
O fato de estar nas ruas expõe a gestante a uma De acordo com informações oferecidas pela
série de riscos, além de dificultar sua vinculação equipe do serviço de abordagem direta a essa popu-
a um serviço de atenção básica que realize seu lação, no período da pesquisa foram localizadas 20
prénatal, uma vez que tais serviços são territo- gestantes nas ruas da cidade e outras 7 mulheres
riais, tomando como referência de território o cujas gestações haviam ocorrido também nas ruas,
endereço residencial do usuário, não havendo nos últimos dois anos. Dessas 27 mulheres, 13 parti-
na cidade pesquisada a possibilidade de atenção ciparam da pesquisa, tendo idade acima de 18 anos.
básica itinerante durante o período da pesquisa. Para que as gestantes participassem do estudo,
A gestação traz em si uma série de transforma- leu-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
ções na vida da mulher, que inclui desde altera- para cada uma delas; em alguns casos, a própria
ções físicas evidentes até mudanças de humor. As gestante leu o documento. Durante e após a leitura
atividades cotidianas vão sendo paulatinamente do termo foi esclarecida a finalidade da pesquisa e
alteradas, também. A posição para dormir, a re- a forma de participação. A gestante que manifes-
lação sexual, o controle da fome e das atividades tou estar de acordo em participar assinou o termo,
miccionais podem ser mudanças que incomodam. ficando com uma cópia assinada pela pesquisadora
Por outro lado, a gestação avançada expõe a ma- responsável. Quando autorizado, as narrativas fo-
ternidade e pode mobilizar socialmente outras ram gravadas e posteriormente transcritas; quando
pessoas, ampliando as possibilidades de produção não autorizado, foi feito apenas o registro escrito.
de redes de apoio e assistência. Para as narrativas optou-se pela entrevista aber-
ta, no modelo de história oral de memórias de vida.
Esse recurso narrativo permite que a entrevista
Objetivos flua no formato de uma conversa (Minayo, 2004).
O estudo teve como objetivo investigar a realidade Nessa perspectiva, há a possibilidade de condução
de vida de moradoras em situação de rua durante o em função dos objetivos, mas sem direcionamento
período gestacional, caracterizando seu cotidiano. por recortes temáticos específicos, que devem ser

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levantados a posteriori, a partir da organização dos quando “moram” nas ruas. A condição de estar na
dados em categorias emergentes nas narrativas. rua provoca re-interpretações diversas a respeito da
Realizou-se apenas um registro de narrativa com imagem dessas mulheres e aumenta consideravel-
cada participante, levando em consideração a pos- mente sua vulnerabilidade. Porém, talvez por isso
sibilidade de que, por ser parte de uma população mesmo, o circuito de amparo para que elas saiam da
itinerante, a mesma pessoa não fosse encontrada situação de rua é maior do que no caso dos homens
mais de uma vez. O local da entrevista foi escolhido (Frangella, 2004, p. 195-196).
pela gestante.
A menor presença feminina nas ruas também
Para analisar as narrativas foi utilizado o método
pode ser observada em estudo realizado pelo Centro
de análise do conteúdo, a partir do agrupamento em
Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde
categorias semânticas (Minayo, 2004).
(Clave) com a população em situação de rua da cidade
do Rio de Janeiro, no qual foi constatado que 85%
Caracterização do grupo dessa população é do sexo masculino. A partir disso,
Considerando o que foi possível observar nesta nota-se a dificuldade em localizar mulheres em situ-
pesquisa e somando dados de outras, entende-se ação de rua, restringindo o número de participantes
que o número de mulheres que se encontram em dessa pesquisa (Gomes, 1996).
idade fértil e período gestacional em situação de O perfil da população em situação de rua, em
rua seja bastante reduzido dentro do universo de muitos municípios brasileiros, já aponta para uma
pessoas em situação de rua. Isso ocorre porque experiência de vida de caráter intergeracional. Al-
essa população é majoritariamente masculina, gumas famílias encontram-se na terceira ou quarta
composta basicamente por homens sozinhos. Se- geração nas ruas, o que faz com que a questão da
gundo Vieira, Bezerra e Rosa (2004), a prevalência gestação, nestes casos, seja ainda mais relevante
masculina nas ruas deve-se ao fato de que as mu- e urgente.
lheres encontram mais alternativas que os homens A partir do contato direto com a Equipe de
de locais para morar, como com a própria família Abordagem de Rua, serviço público da Secretaria
(onde muitas vezes são submetidas a situações de Assistência Social de Santos, foi possível identi-
de violência) e empregos domésticos. Além disso, ficar em seus registros, nos anos de 2009 e 2010, a
segundo Frangella (2004), às mulheres em situação presença de 12 gestantes nas ruas, dentre as quais
de rua são ofertadas maiores possibilidades de 7 foram localizadas e, destas, 5 concordaram em
acessar benefícios governamentais que favoreçam participar da pesquisa. Identificaram-se também
a saída das ruas. Lembra, entretanto, que “[...] o registros de 7 mulheres que estiveram grávidas
acesso a tais benefícios depende da boa adequa- nos dois anos que antecederam à pesquisa, dentre
ção dessa mulher ao papel feminino tradicional: as quais foram localizadas e entrevistadas 3, tendo
dependentes, necessitadas, vulneráveis” (p. 195). ocorrido, ao todo, 8 entrevistas nesse período. Em
Ou seja, há um papel social esperado da mulher, 2011 a 2012 foram identificadas e contatadas outras
que deve ser dócil, frágil, vulnerável. Se ela atender 8 gestantes em situação de rua, das quais 5 concor-
a esses requisitos, poderá ter acesso facilitado a daram em participar da pesquisa. Assim, entre 2009
benefícios como Bolsa Família (que exige um perfil e 2012 foram entrevistadas ao todo 13 mulheres com
de obediência e submissão às condicionalidades), experiência de gestação nas ruas.
casas de acolhimento, organizações filantrópicas As mulheres que integram o presente estudo,
etc. Já para o homem morador de rua os benefícios no momento em que foram entrevistadas, tinham
ficam distantes da realidade, uma vez que o papel entre 18 e 40 anos. A maioria delas nasceu no estado
social esperado dele é o de trabalhador e provedor. de São Paulo, sendo duas de outros estados. Todas
as mulheres possuíam outros filhos, que viviam
[...] as mulheres, cujo domínio está associado ao em instituições ou com parentes. Apenas uma das
mundo privado e à circulação no ambiente do- entrevistadas mantinha a guarda de alguns dos
méstico, encontram-se deslocadas espacialmente seus filhos.

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Cabe ressaltar que, segundo declarações das as mais comuns. A primeira é dada por aquelas que
próprias entrevistadas, é possível que em alguns optam por organizar seu novo cotidiano nas ruas a
casos as entrevistas tenham sido respondidas sob partir da incorporação do ideal de mulher, no qual
o efeito de drogas. Destaca-se que os nomes a seguir deve “[...] aceitar o papel de parceiras fiéis e dóceis,
são fictícios. prontas às práticas sexuais.” Quando esse perfil é
adotado, essas mulheres habitualmente ligam-se a
um parceiro, e cobram dele que assuma o lugar de
Resultados e discussão
provedor. A segunda resposta é dada por aquelas que
Os dados alcançados contribuem para a identifi- definem seu novo cotidiano pela solidão:
cação de quatro principais categorias semânticas
nas falas dessas mulheres: a vida na rua, o cuidado Optam por estarem sós e circunscrevem corpo-
com a gestação, o projeto de futuro e a rede pública ralmente essa opção ao se lançarem em posturas
de serviços. fortes, agressivas, com relação aos homens com
quem convivem. Essa postura é necessária para
A vida na rua impedir a apropriação de sua condição feminina
O processo de ir para as ruas acaba causando uma por parte destes. São mulheres muito agressivas,
transformação no cotidiano das pessoas. Em alguns que, se necessário, utilizam facas para se proteger.
casos, a ida para as ruas ocorre de forma lenta e gradu- Muitas vezes, essas fronteiras de isolamento são
al, intercalada com retornos à família e com tentativas marcadas pela performance corporal exacerbada,
de novas alternativas de moradia (cortiços, moradias movimentos de mãos, olhos arregalados, voz alta,
coletivas etc.); em outros a ida para as ruas ocorre de tornando difícil situar se tal comportamento é um
forma repentina e marcada por rupturas. Em ambos sintoma de algum distúrbio mental ou uma mani-
os casos, porém, a transformação se passa de forma festação de defesa (Frangella, 2004, p. 197-198).
processual, sendo caracterizada pela construção de
novas referências e desligamento e ressignificação de Algumas mulheres encontram na androgenia
referências antigas. Nas ruas elas já não possuem uma uma alternativa para amenizar a situação do abuso
rotina fixa: cada dia é diferente do outro. A questão contra elas: “É comum encontrar mulheres vestidas
central, nessa nova vida, passa a ser a busca por meios com trajes masculinos, com o andar e voz menos
de sobrevivência (alimentação, higiene pessoal, lugares femininos possíveis” (Tiene, 2004, p. 89), tomando
para descanso, estratégias em situação de violência), essa travestilidade não como expressão de sua se-
o que expõe a mulher a carências de toda ordem, exi- xualidade, mas como forma de proteção.
gindo, ao mesmo tempo, que ela se adapte a outras Metade das entrevistadas dorme nas ruas, a
referências de vida social (Vieira; Bezerra; Rosa, 2004). outra parte faz uso de equipamentos de serviço da
Após um tempo na rua, esta deixa de ser apenas prefeitura (Equipamento Público de Abrigamento
a alternativa para o pernoite, diminuindo a impres- e Equipamento Público de Passagem), vivenciando
são da rua como ameaçadora, não pela ausência de essa situação há mais de dois anos. Antes de mo-
riscos, mas pelo reconhecimento e mapeamento rarem na rua, essas mulheres moravam com seus
dos mesmos. familiares, ex-maridos, em sua própria casa ou em
Por serem minoria numérica, as mulheres que quarto alugado.
vivem na rua estão expostas a diversas violências. A sua rotina baseia-se em torno das refeições
Segundo Frangella (2004, p. 197), “[...] mulheres sozi- realizadas durante o dia – café da manhã, almoço
nhas são, na maioria das vezes, compartilhadas por e jantar. Todas as entrevistadas relataram tomar
vários parceiros do agrupamento. Elas estão sempre banho e escovar os dentes diariamente, realizando
expostas a estupros, apanham dos parceiros, que isso em diversos locais, como lugares de abrigamen-
agem sozinhos ou em grupos.” to, chuveiros da orla na praia e banheiros do cais.
Para sobreviver a tais exposições, as mulheres A maioria delas relata não ter o que fazer ao longo
que estão nas ruas desenvolvem diferentes respos- do dia, e por isso acabam consumindo drogas, que
tas, das quais, segundo Frangella (2004), duas são fazem parte do cotidiano das ruas. Porém, sob efeito

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de drogas, a rotina acaba se desestruturando, como não gostam da sua presença, bem como do poder
pode ser percebido pelas falas a seguir: policial. Outra violência que o morador de rua sofre
é a simbólica, já que vai adquirindo a identidade de
Quando uso droga, não consigo dormir e também inútil, fracassado e indesejado.
não tenho fome (Catarina). Os meios mais comuns para conseguir renda
Sempre que estou nas ruas acabo usando crack são a petição de dinheiro e a realização de trabalhos
e, daí, fico uns três dias sem dormir e sem voltar informais (como o recolhimento de materiais reci-
para o Plantão Social [equipamento público de cláveis, olhar carros e trabalhar em quiosques na
acolhimento] (Fabiana). praia). A maioria das mulheres entrevistadas vive
de doações, fazendo destas sua fonte de renda. O
Os motivos que as levaram para as ruas variam, ambiente que de início lhe causava medo passa a ser
podendo ser condições financeiras precárias, en- aceito, de forma que a mulher inicia um processo de
volvimento com drogas, brigas, separação, prisão, estruturação do seu dia a dia neste contexto.
desemprego e a busca pela liberdade, entre outros. Diversos equipamentos públicos e privados
Metade das entrevistadas disse não gostar de estar distribuem alimentos, doam roupas, oferecem lu-
nas ruas, alegando ter de permanecer nelas devido gares para banho e cuidados pessoais, suprindo as
à falta de oportunidade: necessidades dessa população e favorecendo a sua
fixação nas ruas. Entretanto, o caráter assistencial-
Ninguém gosta, mas tenho que ficar por falta de caritativo dessas ações também interfere no de-
oportunidade (Bianca). senvolvimento da autonomia desses sujeitos, uma
Vai para a rua para ver se você gosta. Ninguém vez que inibe as possibilidades de poder contratual
gosta, não (Tatiana). do sujeito em suas relações sociais. A relação esta-
belecida entre esses equipamentos e a população
As que responderam gostar de estar nas ruas, em situação de rua tende a perpetuar um laço de
justificaram-se falando sobre a liberdade que dependência, mantendo as pessoas numa situação
possuem, fazendo das ruas uma fuga e/ou uma passiva e tutelada.
proteção, além de não precisar pagar aluguel e Gradativamente ocorre a desvinculação das redes
conseguir alimento com facilidade. Por outro lado, sociais de suporte anteriores e a adesão aos códigos
afirmaram haver desvantagens como chuva, falta das ruas, gerando uma articulação do cotidiano em
de privacidade, não ter onde dormir, envolvimento torno desta nova realidade. O contato com os fami-
constante com drogas e possibilidade de sofrer liares torna-se raro:
violência, que envolve desde os policiais até os pró-
prios amigos e pessoas de seu convívio. A maioria É uma vez na vida e outra na morte (Tatiana).
das entrevistadas disse já ter sofrido algum tipo Dessa forma, elas percorrem progressivamente
de violência, principalmente por parte de policiais o caminho que Castel (1994) denomina processo
e ou familiares. de desfiliação, no qual o sujeito migra de um polo
Uma entrevistada menciona sobre os policiais: de inclusão social (com moradia, com saúde e com
A polícia, os guardas municipais são péssimos, trabalho) para uma situação de perdas de direitos
agridem nós (Bianca). sociais e de progressivas rupturas de redes sociais.
Segundo as mulheres pesquisadas, um dos
A partir desses dados pode-se relacionar a motivos da perda de contato com a família está re-
violência à rua, que se apresenta como local sem lacionado ao sentimento de vergonha, uma vez que
proteção, estando as mulheres mais expostas a a situação de rua simboliza um fracasso pessoal
diversos riscos. (Vieira; Bezerra; Rosa, 2004), de forma que prefe-
Segundo Alba Zaluar (1995 apud Domingues Ju- rem que a família não saiba como estão. Em outros
nior, 2004), o morador de rua está sujeito à violência casos, as famílias têm conhecimento da situação
concreta e real emanada por diferentes pessoas que que estão vivendo:

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Minha família tá espalhada pela cidade. Eles sabem Através da análise pode-se constatar que a maio-
que moro na rua, mas não ajudam em nada. Meus ria das gestantes descobriu a gravidez devido às
dois filhos estão com minha mãe (Michele). mudanças corporais e por ter experiência de outras
gestações:
Na fala acima identifica-se que o cuidado com
os filhos não é compreendido como uma ajuda da A gente que é mulher sente, sabe quando está grá-
família. Pode-se inferir que a dinâmica imediatista vida (Mariana).
imposta pela vida na rua inscreve as necessidades
básicas da própria entrevistada como negligenciada Descobrindo. Quando tá grávida a gente sabe. Ex-
pela família, não parecendo estar incluído, entre periência do outro filho (Daiane).
essas necessidades, o cuidado com seus filhos, algo Essas falas sugerem que, apesar do desejo de
um tanto distante. não engravidar manifesto pelas entrevistadas, elas
A partir do distanciamento do contato com os não usam preservativo ou algum outro método
familiares, novas redes sociais vão se constituin- contraceptivo, fazendo com que a gravidez seja
do. Das 13 mulheres entrevistadas, 10 possuem a uma possibilidade cotidiana, identificada median-
companhia de outras pessoas em situação de rua ao te transformações do corpo e frente à experiência
longo do dia. Ao se referirem aos amigos, a maioria empírica com gestações anteriores.
os considera como a segunda família, dizendo que se
b) Vínculo afetivo e proteção do filho
dão bem com todo mundo e que estão sempre juntos:
A grande maioria das entrevistadas manifestou
Eu ando com as meninas ali. A gente tá sempre insatisfação ao saber que estava grávida. Uma delas
junto (Michele). referiu ter se sentido “revoltada”. No entanto, foram
aceitando e acabaram ficando felizes, como relatado
Apenas uma disse não confiar, pois sempre tem
nas falas a seguir:
briga e que “eles roubam”.
Me senti horrível, péssima, não queria mais ter
A gestação
filho. Pra aceitar a gravidez pedi muito a ajuda de
As mulheres participantes da pesquisa não apre- Deus (Laura).
sentaram a gestação e/ou os filhos de forma central
em suas narrativas, sendo necessária a condução É aquele quer, não quer, mas deixei vim (Daiane).
da conversa para este tema, através de questiona-
Me senti revoltada (Mariana).
mentos gerais. As respostas dizem respeito princi-
palmente aos cuidados com a gestação e aos afetos. Feliz por estar grávida, mas triste por não saber
a) Cuidados com a gestação e com saúde como sustentar a criança (Fabiana).
Das 13 mulheres entrevistadas, 7 realizaram
Quando descobri que estava grávida “meu mundo
acompanhamento médico e 6 não realizaram. Entre
caiu” (...). Comecei a me perguntar: “como vou fazer
as que não realizaram, todas consumiam drogas; pra sustentar uma casa e as crianças”? (Catarina).
entre as que realizaram acompanhamento pré-natal,
apenas uma não fazia uso de drogas. Eu não queria; a vida é mais fácil sem filhos. Fica
A partir desses dados, verifica-se que, apesar mais difícil para arrumar emprego. Se eu não
dos efeitos nocivos, a droga não parece ser um fator tivesse grávida eu não tinha que estar no abrigo
limitante para o cuidado com a saúde. Identifica- [equipamento público de abrigamento], eu “me
-se, portanto, que a ausência de acompanhamento viro” sozinha. Só tô aqui por causa deles [dois
médico pode estar associada a outros fatores, não filhos, um recém-nascido], pra não deixar eles
necessariamente ao consumo de drogas: sozinhos (Michele).

Fiquei feliz com a gravidez (...). Fui ao médico em No entanto, aceitar a gravidez para essas mu-
Praia Grande (Jéssica). lheres não significa necessariamente a criação de

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um vínculo afetivo com filho, ou desejo de ficar Identificou-se um excessivo consumo de drogas
com a criança e criá-la. O papel materno dentre as por essa população. Das 13 gestantes entrevistadas,
mulheres entrevistadas é constituído de maneiras 11 relataram usar drogas todo dia. Dessas 11 mulhe-
diferentes. Constata-se um vínculo protetor, com res, 7 relataram não ter parado o uso durante a gesta-
diferentes variações: algumas buscam instituições ção, e as outras disseram estar tentando suspender
e pessoas que possam criar seu filho com melhores o uso: duas tinham parado havia 15 dias, uma tinha
condições; outras dizem que, independente de sua parado havia 3 dias e outra não usava droga havia 1
situação atual, desejam ficar com seu filho e criá- dia. O crack é a droga mais consumida, sendo usado
lo; outras ainda não demonstram vínculo, o que por 9 delas, em associação com outras substâncias
leva ao abandono da criança. Esses diferentes tipos psicoativas, como maconha e cocaína.
de vínculos podem ser entendidos de acordo com Subproduto da cocaína, o crack é obtido através
as relações que a mulher vivenciou, a relação que da adição da pasta de coca e do bicarbonato de sódio,
possui com sua família e com filhos anteriores, e a sendo comercializado na forma de pedras porosas.
perspectiva que tem de vida e de futuro. A ação dessa droga acontece instantaneamente,
As drogas e o álcool estão presentes na vida dos ou seja, entre 5 e 10 segundos depois de aspirada
moradores de rua e permanecem mesmo durante o a fumaça o sistema nervoso central do usuário é
período gestacional. Das 13 mulheres, 9 consumiam estimulado, ocorrendo o bloqueio da ação da no-
bebidas alcoólicas, sendo que 7 o faziam diariamente radrenalina, dopamina e serotonina nas sinapses.
e 1, uma vez na semana. Dessas mulheres, apenas Esse processo leva o usuário de crack a sensações
uma relatou ter parado de beber havia um mês em intensas de prazer, euforia, poder, excitação e hipe-
função da gestação. Em relação ao cigarro, das 13 ratividade; porém, esses efeitos não perduram por
mulheres 11 fumavam todo dia e nenhuma parou mais de duas horas. Em seguida o usuário começa
durante a gestação. a ficar sonolento, seu apetite é reduzido, há um
Na população estudada, as mulheres afirmam aumento do ritmo respiratório, da hipertensão ar-
que interromper o uso é um ato difícil, tanto pelo terial, da temperatura corporal, ocorrem tremores
vício quanto pelo próprio ambiente em que vivem. nas mãos e agitação psicomotora (Nassif Filho et al,
É o que se pode verificar nestas falas: 1999). O usuário tem desejo de repetir o uso, além de
apresentar alucinações e delírios. A utilização gera
[...] eu não posso ir pra rua se não eu fumo. Por isso também sensação de arrependimento, depressão e
tenho que ficar aqui dentro [em abrigamento] pra perseguição, intensificando o medo e a angústia, es-
fugir das drogas (Fabiana). timulando comportamentos repetidos e atípicos. Há,
O crack é uma droga que faz você fazer qualquer ainda, efeitos psíquicos motores como contrações
coisa por ele; e ainda onde eu vivo acaba incenti- involuntárias e intensa protrusão do globo ocular,
vando o uso da droga: as pessoas te oferecem ajuda que expressa seu pânico.
e acabam te afundando ainda mais (Elizabete). O crack é uma droga muito barata e de manuseio
simples, portanto o acesso a camadas pobres da
Além disso, a maioria das mães entrevistadas de- população é fácil, favorecendo o consumo frequente
monstrou não saber ao certo o potencial patogênico da droga, como aprontado no estudo de Nassif Filho
do uso de drogas, álcool e cigarro durante a gestação. et al. (1999), que constatou que quase 80% dos usu-
Nenhuma delas era primípara, e o fato de terem outros ários fazem uso diário e o restante utiliza a droga
filhos que nasceram saudáveis, não apresentando cerca de cinco vezes por semana, convergindo com
qualquer problema de saúde, aumenta a descrença os achados da presente pesquisa.
que têm com relação à ação nociva das drogas. A invi- Constatou-se, dessa forma, que o consumo de
sibilidade de alguns problemas causados pelo uso de drogas faz parte da rotina das mulheres entrevista-
drogas durante a gestação pode produzir esse efeito, das, tornando-se um hábito, em princípio, porquê os
uma vez que oferece a falsa impressão de que não há efeitos destas substâncias minimizam os problemas
nenhum problema com a criança. que esse grupo enfrenta, como frio, fome, dor, sono,

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desconforto e humilhação. De acordo com Vieira, Eu tenho vontade de sair do abrigo, alugar uma
Bezerra e Rosa (2004), o uso dessas drogas pode casa, voltar a viver como antes (Mariana).
ser principalmente realizado com o intuito de se
Essa dificuldade de transformar desejos em
desligar das obrigações e dos papéis sociais, en-
projetos de futuro precisa ser tomada como fator
trando em outro plano de realidade para afastar-se
relevante, principalmente considerando-se como
da percepção de fracasso, esquecer as decepções e
característica de populações itinerantes a presença
tornar suportável o dia a dia.
de uma forte perspectiva eternamente presente,
Planos para o futuro vivendo quase sempre de forma imediatista. As
Quando questionadas sobre seus planos para o políticas e os serviços voltados a essa população,
futuro, fica explícito que existe um motivo para as apesar de se modificarem ao longo da história, ainda
mulheres entrevistadas terem uma expectativa de guardam traços filantrópicos fortes, apostado em in-
melhora de vida. Esse motivo é a chegada do novo tervenções pontuais de idealização de projetos para
filho. Os planos para o futuro relatados por 8 das 13 os moradores de rua, mas não com eles. A entrada e
mulheres entrevistadas são de conseguir um empre- o acolhimento nos serviços, portanto, é priorizada
go para sair das ruas, possuir melhores condições em detrimento da saída, através de elaboração, pelo
de vida e poder cuidar de seus filhos. sujeito, de projeto de vida e de futuro, e de encami-
De acordo com suas falas, percebe-se que o cuidar nhamento acompanhado.
O desejo é exposto em seus discursos como algo
do filho que vai nascer/nasceu é um fator motivador
possível de ser realizado. No entanto, as mulheres
para seguirem em frente, sendo o trabalho visto por
entrevistadas não apresentam nenhuma estratégia
elas como a principal ma­neira de oferecer os cuida-
concreta ou efetiva para consegui-lo. O desejo exis-
dos maternos necessários.
te na fantasia, no imaginário; contudo, essas mu-
Algumas delas têm seus parceiros (pais dos filhos
lheres não conseguem tra­çar a maneira pela qual
que esperam) como um companheiro na situação de
podem alcançar esse sonho de uma vida melhor,
rua e nos planos de futuro. Uma delas chega a fazer
tirando-o do imaginário e agindo com intenção
planos para a vida com seu parceiro e seu filho:
de efetivá-lo. Portanto, mesmo tendo construído
Ele está procurando emprego pra alugar um quarto um sonho para uma vida me­lhor, não sabem como
e me tirar do Plantão Social (Bruna). farão para chegar ao fim almejado. E os serviços
de acolhimento pouco ou nada contribuem para
Nota-se nas entrevistas sonhos e planos para esse processo.
sair da situação atual com vistas à guarda do filho: A dificuldade em construir projetos de vida pode
estar ligada ao fato dessas mulheres enfrentarem
A gente pensa em sair da rua e alugar uma casa ou
diariamente carências de todas as ordens e a bus-
um quarto. Vamos lutar contra o Conselho Tutelar e
ca permanente por meios de sobrevivência, não
ficar com a guarda do nosso filho (Michele).
possuindo uma rotina estruturada (Ghirardi et al.,
No entanto, embora todas as entrevistadas já te- 2005). Sendo assim, a falta de organização do coti-
nham filhos e mencionem certa repetição de desejos diano dessas mulheres dificulta a transformação de
a partir da gravidez, elas continuam em situação de seus desejos em projetos de vida.
rua ou abrigamento, o que parece indicar que seus É nesse sentido que se coloca em relevo a
planos de futuro são seus atuais desejos, não neces- necessidade de que a rede de serviços públicos
sariamente constituindo-se em projetos. Em suas voltados à população em situação de rua apresente
narrativas esse futuro emerge por meio de alegorias propostas de intervenção que não apenas incluam
oníricas, com pouca ou nenhuma condução diretiva o usuário, mas que o coloquem no centro do pro-
ou produção de projeto de mudanças: cesso de construção do presente e do futuro. Para
tanto, faz-se urgente a constituição de políticas
Eu vou casar com meu marido, ter mais filhos e uma e serviços que tenham como diretrizes a conti-
casa; ter o que eu nunca tive (Bruna). nuidade da ação, investindo no protagonismo do

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usuário e no combate intransigente à violação Políticas públicas: conhecimento e uso de serviços
de direitos. Não basta que se criem serviços; é públicos
necessário repensar o sentido da política que De acordo com Frangella (2004), os serviços – públi-
organiza esses serviços. Caso contrário, aqueles cos ou não – voltados a esse segmento são histori-
voltados à população em situação de rua apenas
camente constituídos e têm caráter fundamental e
seguirão colaborando com sua permanência nas
essencial em seus trajetos nas ruas:
ruas. Lembrando Frangella (2004), “[...] as redes
institucionais também alimentam esse circuito de Sejam instituições de caridade, órgãos do governo
rua, produzindo sua clientela e sendo produzido ou organizações governamentais, elas sempre esti-
por ela, numa aliança contínua, mas efervescente veram presentes no universo da rua. Tais “equipa-
de conflito” (p. 32). mentos” são constitutivos desse universo liminar;
Identificou-se, portanto, que o grupo estudado servem como fonte de recurso e oportunidades no
não apresenta projeto de futuro, embora a gesta- deslocamento do habitante de rua; procuram mini-
ção seja comumente entendida, pela maioria das mizar as suas condições de sofrimento e passam
mulheres, como a evidência de transformações a ser eventualmente os mediadores de relações
futuras, que envolvem necessariamente projetos de conflito entre eles e os agentes que promovem
de vida. Relatam viver apenas no presente, “um sua expulsão dos lugares, ou entre eles e a opinião
dia de cada vez”, tendo muita dificuldade para pública (p. 32).
planejar o futuro. Talvez por esse motivo seja tão
complexo planejar e pensar em um futuro com Na cidade de Santos foram identificadas políti-
o filho. Embora a maioria relate que pretende cas públicas voltadas para a gestante ligadas aos
melhorar de vida para conseguir cuidar do filho, serviços de saúde, como segurança alimentar, orien-
essas mulheres entendem que, no momento, é tação sexual, prevenção de DST/aids, amamentação
melhor que ele fique em outro lugar, como na materna e acompanhamento pré-natal periódico.
casa de parentes ou em um Equipamento Público Entretanto, a maioria desses programas está vin-
de Abrigamento, onde serão mais bem cuidados e culada a serviços de território, o que implica uma
terão melhores condições. questão determinante quando se trata de moradores
É o que Ciampa (1990 apud Mattos e Ferreira, em situação de rua: a ausência de um comprovante
2005) chama de “impossibilidade concreta da me- de residência dificulta o vínculo a uma unidade de
tamorfose humana”, permanecendo a pessoa na saúde de referência.
“mesmice de si imposta”, que gera uma “crise do
Dei entrada no pré-natal, mas ainda não estou
ator-sem-personagem”, promovendo um sujeito
consultando como devia. O sistema de saúde é
sem perspectivas de constituir novas personagens
péssimo, horrível. Primeiramente pelos locais para
em sua identidade. Sem condições de projetar seus
atendimento serem muito longe e pela demora do
desejos em uma realidade material, o indivíduo
serviço; também pela falta de médicos (Bianca).
tende a permanecer em um eterno presente, sem
perspectivas de emancipação pessoal. A Política Nacional de Assistência Social apre-
À impossibilidade de materializar seus dese- senta-se à população em situação de rua na forma
jos, construída pela ausência de políticas públicas de serviços, equipamento de acompanhamento nas
consistentes e pela constante violação de direitos ruas e de abrigamento, além de auxílios ou trans-
a que essas mulheres estão submetidas, soma-se a ferências de renda (como Bolsa Família e Auxílio
falta de opções, uma vez que entre estar na rua e Aluguel) para pessoas e famílias que respondam a
estar no serviço de acolhimento há pouca diferen- critérios de inclusão.
ça, no que diz respeito aos desejos. A dificuldade
de construir uma rotina nas ruas não é menor do Sinto muita necessidade em relação à moradia e
que a dificuldade de sustentar uma identidade emprego. Já me senti discriminada por morar na rua
nas instituições. e também porque estou grávida (Mariana).

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Entretanto, não se identificou na rede de serviços Conclusões
assistenciais públicos ou do terceiro setor progra-
mas focados especificamente na questão da gestante A  população de rua é heterogênea, ou seja, tem
em situação de rua, ainda que o Brasil já viva histó- histórias de vidas singulares e específicas, mas que
rias de pessoas e famílias que têm a situação de rua são perpassadas por problemas comuns, tais como
como experiência intergeracional. migração, desemprego, baixa escolaridade e falta de
qualificação profissional, uso abusivo e frequente de
Frequento o Plantão há mais de um ano e ainda álcool e outras drogas, práticas delituosas, quebra
não consegui conversar com a assistente a respeito ou comprometimento nos vínculos familiares e afeti-
da “permanência”, que é um privilégio. Tem cama e vos. Problemas agravados pelo estigma e preconceito
comida fixa (Mariana). da sociedade que os vê como marginais, vagabundos,
perigosos, coitados, indesejáveis.
Me sinto rejeitada e discriminada pelo serviço
No Brasil, a segmentação da população em situ-
social. Não dão atenção, principalmente na minha
ação de rua é muito heterogênea. Não há uma expli-
situação (Bianca).
cação única para o sujeito viver nas ruas, pois, além
Com relação aos serviços e programas voltados de estar relacionado a fatores estruturais, existem
para segurança pública, as ações apontam para um grandes variações entre as pessoas, suas histórias,
confronto com a população em situação de rua, em suas escolhas, de forma que o fato de morar na rua
defesa dos demais cidadãos que não se encontram os coloca em situação semelhante, mas não os torna
nesta condição e, por diversos motivos, se incomo- sujeitos iguais.
dam com a presença daqueles. Nesse caso, os mora- O determinante das diferentes dimensões identi-
dores em situação de rua se constituem em alvo a ficadas na relação do sujeito com a rua muitas vezes
ser combatido e não a ser protegido. A lógica aqui é o tempo em que ele está nela, o que naturalmente
seria a de “proteger” os demais cidadãos dos (maus) o leva a uma maior inserção neste mundo, trazen-
hábitos e transtornos causados pelos moradores em do maior estabilidade à sua condição de morador
situação de rua. Assim, o enfrentamento se justifica daquele espaço. Ir para a rua reflete um estado de
como defesa do espaço público, que estaria sofrendo precariedade de quem, além de estar sem recursos
uso privado por parte desses moradores. para pagar uma hospedagem, não consegue vaga em
Ao identificarmos pessoas com moradia, co- um albergue ou não se submete ao perfil disciplina-
merciantes locais ou mesmo trabalhadores da dor imposto por espaços desta natureza.
segurança pública e/ou privada adotando medidas Após a análise das entrevistas, conclui-se que
de expulsão dos moradores de rua de determinada para essa população há vantagens em morar nas
região, é possível verificar o discurso explícito de ruas, pois nelas há grande liberdade, uma vez que, a
que estes últimos estão fazendo uso privado do seu ver, não possuem regras. Nas ruas, os moradores
espaço público. Entretanto, há também o discurso adquirem alimentos com facilidade, dispõem de vá-
velado de que, no fundo, as pessoas com moradia rios locais propícios para a higiene pessoal e podem
se consideram detentoras de “mais direitos” sobre fazer uso excessivo de drogas, visto que nas ruas têm
determinado espaço público do que os moradores fácil acesso a estas substâncias, que fazem parte da
de rua, escamoteando as evidências de que, de fato, sua rotina. Entretanto, as relações de violência com
nessas situações, a lógica da expulsão de uns por os demais moradores de rua, com a polícia e com a
outros também se caracteriza como uso privado do sociedade em geral, também descritas em suas nar-
espaço público. rativas, apontam para uma tensão entre liberdade e
Nessa mesma perspectiva, a “proteção” em ques- cerceamento, possibilidades e ausências.
tão pode, via de regra, desvincular a gestante em O abrigamento pode ter uma função protetora, na
situação de rua de seu bebê, caso seja identificado medida em que oferece a possibilidade de mudança
que seus (maus) hábitos são prejudiciais à criança. de rotina e de hábitos, criando condições para deixar
É o caso da atuação do Conselho Tutelar. o uso de substâncias nocivas. Todavia, o abrigamento

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feito de forma compulsória ou a permanência em equi- Diante do cenário apresentado, vê-se a necessida-
pamentos de abrigamento que não criem condições de de de um acompanhamento com a gestante morado-
acolhimento adequado e perspectivas de mudança de ra de rua que contribua para seu acesso a serviços.
vida podem se constituir espaços de violências múl- Mostrou-se a necessidade de aumentar o cuidado e
tiplas (moral, emocional e física). Tais experiências a proteção social desse público específico, de modo
podem levar a uma resistência ao abrigamento. a construir um raciocínio político adequado, bus-
Mesmo com todas as vantagens que dizem pos- cando compreender o fenômeno contemporâneo da
suir na rua, quase todas as mulheres entrevistadas constituição de famílias com várias gerações com
(11 de 13) disseram ter expectativa de mudar de vida, extensas experiências de abrigos-ruas. Apresenta-
sair das ruas, conseguir um emprego e poder cuidar se como uma necessidade, ainda, a construção de
do seu filho, constituindo uma família. novas formas de atuar junto a essa população, tendo
Entretanto, para essas futuras mães o fato de como eixo as atividades cotidianas e as estratégias
não ficarem com seus bebês após o nascimento de vida, deslocando o foco da atenção do bebê para a
parece comum e aceitável. Elas entendem que não própria mulher, adequando-se ao ritmo e à dinâmica
possuem condições para criá-los e que em alguma de vida dessa população.
instituição ou com outros parentes o bebê será mais
bem cuidado.
Referências
Grande parte das discussões da nossa sociedade
gira em torno da democracia, da cidadania e dos BERNARDES, A. F. M. et al. Mulheres em situação
direitos garantidos. Entretanto, sabe-se que tais de rua no período gestacional: cotidiano e
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essenciais para o desenvolvimento pessoal e social. desfiliação: precariedade do trabalho e
Para a população de rua, além dessas ausências, a vulnerabilidade relacional. In: LANCETTI, A.
falta de documentação e moradia fixa torna ainda (Org.). Saúdeloucura 4: grupos e coletivos. São
mais difícil a acessibilidade a essas políticas estru- Paulo: Hucitec, 1994. p. 21-48.
turantes, muitas das quais organizadas a partir do
DOMINGUES JUNIOR, P. L. Estado, políticas
território de moradia dos usuários, considerando
públicas e cooperativismo. Revista Libertas, Juiz
moradia apenas os domicílios.
de Fora, v. 4, n. 5, p. 118-131, 2004.
A realidade que se identificou nesta pesquisa foi
a de mulheres que possuem a capacidade criativa FRANGELLA, S. M. Corpos urbanos errantes: uma
para desejar uma vida melhor, tendo a gravidez etnografia da corporalidade de moradores de rua
como um possível disparador ou potencializador em São Paulo. 2004. Tese (Doutorado em Filosofia
de sonhos. A condição social que vivem hoje – na e Ciências Humanas) - Universidade Estadual de
qual, por um lado, têm necessidade de todos os dias Campinas, Campinas, 2004.
lutar por sua sobrevivência e, por outro, adquirir de GHIRARDI, M. I. G. et al. Vida na rua e
forma relativamente fácil, mas aleatória e flutuante, cooperativismo: transitando pela produção de
os itens necessários à sua sobrevivência – dificulta a valores. Interface: Comunicação, Saúde, Educação,
possibilidade dessas mulheres planejarem estraté- Botucatu, v. 9, n. 18, p. 601-610, 2005.
gias para alcançar a realidade almejada. A incerteza
do presente pode produzir um futuro como algo GOMES, R. Processo saúde-doença ligado à
distante ou impensável, sendo, portanto, um tempo sexualidade de meninas que vivem na rua. Revista
no qual se depositam desejos inalcançáveis, fazendo Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto,
v. 4, n. 1, p. 163-176, 1996.
com que permaneçam na mesma condição, repetindo
o ciclo entre a rua e o abrigamento; entre gravidez, GONTIJO, D. T. Adolescentes com experiência de
plano de família e perda da guarda. vida nas ruas: compreendendo os significados da

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Agradecimentos
Agradecemos aos equipamentos da Secretaria Municipal de Assis-
tência Social de Santos, SP – SEAS, pelo apoio logístico.

Contribuição dos autores


Costa foi a proponente responsável pela pesquisa, participando de
todas as fases (2009 a 2013). Vida, Gama e Locatelli participaram
da coleta e análise de dados durante em 2009 e 2010 e redação do
texto deste artigo. Locatelli e Karam participaram da elaboração
do projeto de continuidade da pesquisa em início de 2011. Karam,
Ping, Massari, De Paula e Bernardes participaram da segunda etapa
da pesquisa, de 2011 a 2013, envolvendo nova coleta e análise final
de dados, e da redação do texto do artigo.

Recebido: 12/05/2014
Reapresentado: 23/07/2014
Aprovado: 10/10/2014

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