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CECÍLIA MEIRELES

Lua adversa
Motivo
Tenho fases, como a lua
Eu canto porque o instante existe Fases de andar escondida,
e a minha vida está completa. fases de vir para a rua…
Não sou alegre nem sou triste: Perdição da minha vida!
sou poeta. Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
Irmão das coisas fugidias, tenho outras de ser sozinha.
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias Fases que vão e que vêm,
no vento. no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
Se desmorono ou se edifico, inventou para meu uso.
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico E roda a melancolia
ou passo. seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
Sei que canto. E a canção é tudo. (tenho fases, como a lua…)
Tem sangue eterno a asa ritmada. No dia de alguém ser meu
E um dia sei que estarei mudo: não é dia de eu ser sua…
— mais nada. E, quando chega esse dia,
Cecília Meireles o outro desapareceu…
Cecília Meireles

Retrato Nadador
Eu não tinha este rosto de hoje, O que me encanta é a linha alada
Assim calmo, assim triste, assim magro, das tuas espáduas, e a curva
Nem estes olhos tão vazios, que descreves, pássaro da água!
Nem o lábio amargo.
É a tua fina, ágil cintura,
Eu não tinha estas mãos sem força, e esse adeus da tua garganta
Tão paradas e frias e mortas; para cemitérios de espuma!
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra. É a despedida, que me encanta,
quando te desprendes ao vento,
Eu não dei por esta mudança, fiel à queda, rápida e branda
Tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida E apenas por estar prevendo,
a minha face? longe, na eternidade da água,
sobreviver teu movimento…
Cecília Meireles
Cecília Meireles
Recado aos amigos distantes Canção
Meus companheiros amados, No desequilíbrio dos mares,
não vos espero nem chamo: as proas giram sozinhas…
porque vou para outros lados. Numa das naves que afundaram
Mas é certo que vos amo. é que certamente tu vinhas.

Nem sempre os que estão mais perto Eu te esperei todos os séculos


fazem melhor companhia. sem desespero e sem desgosto,
Mesmo com sol encoberto, e morri de infinitas mortes
todos sabem quando é dia. guardando sempre o mesmo rosto

Pelo vosso campo imenso, Quando as ondas te carregaram


vou cortando meus atalhos. meu olhos, entre águas e areias,
Por vosso amor é que penso cegaram como os das estátuas,
e me dou tantos trabalhos. a tudo quanto existe alheias.

Não condeneis, por enquanto, Minhas mãos pararam sobre o ar


minha rebelde maneira. e endureceram junto ao vento,
Para libertar-me tanto, e perderam a cor que tinham
fico vossa prisioneira. e a lembrança do movimento.

Por mais que longe pareça, E o sorriso que eu te levava


ides na minha lembrança, desprendeu-se e caiu de mim:
ides na minha cabeça, e só talvez ele ainda viva
valeis a minha Esperança. dentro destas águas sem fim.
Cecília Meireles Cecília Meireles

Segundo motivo da rosa


Por mais que te celebre, não me escutas,
embora em forma e nácar te assemelhes
à concha soante, à musical orelha
que grava o mar nas íntimas volutas.

Deponho-te em cristal, defronte a espelhos,


sem eco de cisternas ou de grutas…
Ausências e cegueiras absolutas
ofereces às vespas e às abelhas.

E a quem te adora, ó surda e silenciosa,


e cega e bela e interminável rosa,
que em tempo e aroma e verso te transmutas!

Sem terra nem estrelas brilhas, presa


a meu sonho, insensível à beleza
que és e não sabes, porque não me escutas…
Cecília Meireles
Vinícius de Moraes A ROSA DE HIROSHIMA

POEMA DOS OLHOS DA AMADA Pensem nas crianças


Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Ó minha amada Cegas inexatas
Que olhos os teus Pensem nas mulheres
São cais noturnos Rotas alteradas
Cheios de adeus Pensem nas feridas
São docas mansas Como rosas cálidas
Trilhando luzes Mas oh não se esqueçam
Que brilham longe Da rosa da rosa
Longe nos breus… Da rosa de Hiroshima
Ó minha amada A rosa hereditária
Que olhos os teus A rosa radioativa
Quanto mistério Estúpida e inválida.
Nos olhos teus A rosa com cirrose
Quantos saveiros A antirrosa atômica
Quantos navios Sem cor sem perfume
Quantos naufrágios Sem rosa sem nada.
Nos olhos teus… Vinícius de Moraes
Ó minha amada
Que olhos os teus
Se Deus houvera TOMARA
Fizera-os Deus
Pois não os fizera
Quem não soubera Tomara
Que há muitas eras Que você volte depressa
Nos olhos teus. Que você não se despeça
Ah, minha amada Nunca mais do meu carinho
De olhos ateus E chore, se arrependa
Cria a esperança E pense muito
Nos olhos meus Que é melhor se sofrer junto
De verem um dia Que viver feliz sozinho
O olhar mendigo
Da poesia Tomara
Nos olhos teus. Que a tristeza te convença
Que a saudade não compensa
Vinícius de Moraes
E que a ausência não dá paz
E o verdadeiro amor de quem se ama
Tece a mesma antiga trama
Que não se desfaz

E a coisa mais divina


Que há no mundo
É viver cada segundo
Como nunca mais...
Vinícius de Moraes
SONETO DE SEPARAÇÃO O VERBO NO INFINITO

Ser criado, gerar-se, transformar


De repente do riso fez-se o pranto
O amor em carne e a carne em amor;
Silencioso e branco como a bruma
nascer
E das bocas unidas fez-se a espuma
Respirar, e chorar, e adormecer
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
E se nutrir para poder chorar
De repente da calma fez-se o vento
Para poder nutrir-se; e despertar
Que dos olhos desfez a última chama
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E da paixão fez-se o pressentimento
E começar a amar e então sorrir
E do momento imóvel fez-se o drama.
E então sorrir para poder chorar.
De repente, não mais que de repente
E crescer, e saber, e ser, e haver
Fez-se de triste o que se fez amante
E perder, e sofrer, e ter horror
E de sozinho o que se fez contente.
De ser e amar, e se sentir maldito
Fez-se do amigo próximo o distante
E esquecer tudo ao vir um novo amor
Fez-se da vida uma aventura errante
E viver esse amor até morrer
De repente, não mais que de repente.
E ir conjugar o verbo no infinito…
Vinícius de Moraes
Vinícius de Moraes

SONETO DO AMIGO
SONETO DE FIDELIDADE

Enfim, depois de tanto erro passado


De tudo ao meu amor serei atento
Tantas retaliações, tanto perigo
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Que mesmo em face do maior encanto
Nunca perdido, sempre reencontrado.
Dele se encante mais meu pensamento.
É bom sentá-lo novamente ao lado
Quero vivê-lo em cada vão momento
Com olhos que contêm o olhar antigo
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
Sempre comigo um pouco atribulado
E rir meu riso e derramar meu pranto
E como sempre singular comigo.
Ao seu pesar ou seu contentamento
Um bicho igual a mim, simples e humano
E assim, quando mais tarde me procure
Sabendo se mover e comover
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
E a disfarçar com o meu próprio engano.
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
O amigo: um ser que a vida não explica
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que só se vai ao ver outro nascer
Que não seja imortal, posto que é chama
E o espelho de minha alma multiplica…
Mas que seja infinito enquanto dure.
Vinícius de Moraes
Vinícius de Moraes
SONETO DO AMOR TOTAL O VELHO E A FLOR

Amo-te tanto, meu amor… não cante Por céus e mares eu andei,
O humano coração com mais verdade… Vi um poeta e vi um rei
Amo-te como amigo e como amante Na esperança de saber
Numa sempre diversa realidade O que é o amor.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante, Ninguém sabia me dizer,


E te amo além, presente na saudade. Eu já queria até morrer
Amo-te, enfim, com grande liberdade Quando um velhinho
Dentro da eternidade e a cada instante. Com uma flor assim falou:

Amo-te como um bicho, simplesmente, O amor é o carinho,


De um amor sem mistério e sem virtude É o espinho que não se vê em cada flor.
Com um desejo maciço e permanente. É a vida quando
Chega sangrando aberta
E de te amar assim muito e amiúde, em pétalas de amor.
É que um dia em teu corpo de repente Vinícius de Moraes
Hei de morrer de amar mais do que pude.
Vinícius de Moraes

O MENINO AZUL – CECÍLIA MEIRELES


PELA LUZ DOS OLHOS TEUS
O menino quer um burrinho
Quando a luz dos olhos meus para passear.
E a luz dos olhos teus Um burrinho manso,
Resolvem se encontrar que não corra nem pule,
Ai que bom que isso é meu Deus mas que saiba conversar.
O menino quer um burrinho
Que frio que me dá o encontro desse olhar
que saiba dizer
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus só p'ra me provocar o nome dos rios,
Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar das montanhas, das flores,
– de tudo o que aparecer.
Meu amor, juro por Deus O menino quer um burrinho
Que a luz dos olhos meus já não pode
que saiba inventar histórias bonitas
esperar
com pessoas e bichos
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará e com barquinhos no mar.
Pela luz dos olhos teus E os dois sairão pelo mundo
Eu acho meu amor que só se pode achar que é como um jardim
Que a luz dos olhos meus precisa se casar. apenas mais largo
Vinícius de Moraes e talvez mais comprido
e que não tenha fim.
(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)
PONTINHO DE VISTA – PEDRO O DIREITO DAS CRIANÇAS – RUTH
BANDEIRA ROCHA
Eu sou pequeno, me dizem, Toda criança no mundo
e eu fico muito zangado. Deve ser bem protegida
Tenho de olhar todo mundo Contra os rigores do tempo
com o queixo levantado. Contra os rigores da vida.
Mas, se formiga falasse Criança tem que ter nome
e me visse lá do chão, Criança tem que ter lar
ia dizer, com certeza: Ter saúde e não ter fome
— Minha nossa, que grandão! Ter segurança e estudar.
Não é questão de querer
Nem questão de concordar
A PORTA – VINICIUS DE MORAES
Os diretos das crianças
Sou feita de madeira Todos têm de respeitar.
Madeira, matéria morta
Tem direito à atenção
Não há nada no mundo
Direito de não ter medos
Mais viva que uma porta
Direito a livros e a pão
Eu abro devagarinho Direito de ter brinquedos.
Pra passar o menininho
Mas criança também tem
Eu abro bem com cuidado
O direito de sorrir.
Pra passar o namorado
Correr na beira do mar,
Eu abro bem prazenteira Ter lápis de colorir…
Pra passar a cozinheira
Ver uma estrela cadente,
Eu abro de supetão
Filme que tenha robô,
Pra passar o capitão
Ganhar um lindo presente,
Eu fecho a frente da casa Ouvir histórias do avô.
Fecho a frente do quartel
Descer do escorregador,
Eu fecho tudo no mundo
Fazer bolha de sabão,
Só vivo aberta no céu!
Sorvete, se faz calor,
Brincar de adivinhação.
POEMINHA DO CONTRA – MARIO Morango com chantilly,
QUINTANA Ver mágico de cartola,
O canto do bem-te-vi,
Todos estes que aí estão
Bola, bola,bola, bola!
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão. Lamber fundo da panela
Eu passarinho! Ser tratada com afeição
Ser alegre e tagarela
Poder também dizer não!
Carrinho, jogos, bonecas,
Montar um jogo de armar,
Amarelinha, petecas,
E uma corda de pular.
A LUA FOI AO CINEMA – PAULO GUARDA-CHUVAS – ROSANA RIOS
LEMINSKI
Tenho quatro guarda-chuvas
A lua foi ao cinema, todos os quatro com defeito;
passava um filme engraçado, Um emperra quando abre,
a história de uma estrela outro não fecha direito.
que não tinha namorado.
Um deles vira ao contrário
Não tinha porque era apenas seu eu abro sem ter cuidado.
uma estrela bem pequena, Outro, então, solta as varetas
dessas que, quando apagam, e fica todo amassado.
ninguém vai dizer, que pena!
O quarto é bem pequenino,
Era uma estrela sozinha, pra carregar por aí;
ninguém olhava para ela, Porém, toda vez que chove,
e toda a luz que ela tinha eu descubro que esqueci…
cabia numa janela.
Por isso, não falha nunca:
A lua ficou tão triste se começa a trovejar,
com aquela história de amor, nenhum dos quatro me vale –
que até hoje a lua insiste: eu sei que vou me molhar.
– Amanheça, por favor!
Quem me dera um guarda-chuva
pequeno como uma luva
Que abrisse sem emperrar
ao ver a chuva chegar!
A CENTOPEIA – MARINA COLASANTI
Tenho quatro guarda-chuvas
Quem foi que primeiro que não me servem de nada;
teve a ideia Quando chove de repente,
de contar um por um acabo toda encharcada.
os pés da centopeia?
E que fria cai a água
Se uma pata você arranca sobre a pele ressecada!
será que a bichinha manca? Ai…
E responda antes que eu esqueça
se existe o bicho de cem pés
será que existe algum de cem cabeças?
CANÇÃO PARA NINAR DROMEDÁRIO CONVITE – JOSÉ PAULO PAES
– SÉRGIO CAPPARELLI
Poesia
Drome, drome é brincar com palavras
Dromedário como se brinca
com bola, papagaio, pião.
As areias
Do deserto Só que
Sentem sono, bola, papagaio, pião
Estou certo. de tanto brincar
se gastam.
Drome, drome
Dormedário As palavras não:
quanto mais se brinca
Fecha os olhos
com elas
O beduíno,
mais novas ficam.
Fecha os olhos,
Está dormindo. Como a água do rio
que é água sempre nova.
Drome, drome
Dromedário Como cada dia
que é sempre um novo dia.
O frio da noite
Foi-se embora, Vamos brincar de poesia?
Fecha os olhos
Dorme agora.
SE – PAULO LEMINSKY
Drome, drome
Dromedário Se
nem
Dorme, dorme,
for
A palmeira,
terra
Dorme, dorme,
A noite inteira. Se
trans
Drome, drome
for
Dromedário
mar.
Foi-se embora
O cansaço
E você dorme
No meu braço.
Drome, drome
Dromedário
Drome, drome
Dromedário
Drome, drome
Dromedário.
A CANÇÃO DOS TAMANQUINHOS – AO PÉ DE SUA CRIANÇA – PABLO
CECÍLIA MEIRELES NERUDA
Troc… troc… troc… troc… O pé da criança ainda não sabe que é pé,
ligeirinhos, ligeirinhos, e quer ser borboleta ou maçã.
troc… troc… troc… troc…
Mas depois os vidros e as pedras,
vão cantando os tamanquinhos…
as ruas, as escadas,
Madrugada. Troc… troc… e os caminhos de terra dura
pelas portas dos vizinhos vão ensinando ao pé que não pode voar,
vão batendo, Troc… troc… que não pode ser fruta redonda num ramo.
vão cantando os tamanquinhos…
Então o pé da criança
Chove. Troc… troc… troc… foi derrotado, caiu
no silêncio dos caminhos na batalha,
alagados, troc… troc… foi prisioneiro,
vão cantando os tamanquinhos… condenado a viver num sapato.
E até mesmo, troc… troc… Pouco a pouco sem luz
os que têm sedas e arminhos, foi conhecendo o mundo à sua maneira,
sonham, troc… troc… troc… sem conhecer o outro pé, encerrado,
com seu par de tamanquinhos… explorando a vida como um cego.

AS BORBOLETAS – VINICIUS DE
MORAES
Brancas
Azuis
Amarelas
E pretas
Brincam
Na luz
As belas
Borboletas.
Borboletas brancas
São alegres e francas.
Borboletas azuis
Gostam muito de luz.
As amarelinhas
São tão bonitinhas!
E as pretas, então…
Oh, que escuridão!
MEUS OITO ANOS – CASIMIRO DE Brincava à beira do mar;
ABREU Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Oh! que saudades que tenho
Adormecia sorrindo
Da aurora da minha vida,
E despertava a cantar!
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Oh! que saudades que tenho
Que amor, que sonhos, que flores,
Da aurora da minha vida,
Naquelas tardes fagueiras
Da minha infância querida
À sombra das bananeiras,
Que os anos não trazem mais!
Debaixo dos laranjais!
– Que amor, que sonhos, que flores,
Como são belos os dias Naquelas tardes fagueiras
Do despontar da existência! A sombra das bananeiras
– Respira a alma inocência Debaixo dos laranjais!
Como perfumes a flor;
O mar é – lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino d’amor!
Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d’estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!
Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minhã irmã!
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
– Pés descalços, braços nus –
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos


Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,

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