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Venho de uma infância permeada pelos livros e esta proximidade foi uma grande

contribuição para que eu desenvolvesse o gosto pela leitura. Minha mãe é, com certeza, meu
maior referencial em relação à leitura pois lia para mim com frequência os livros infantis e,
passada esta fase, sempre me incentivou a explorar os mais variados universos literários, além
de ser um exemplo a ser seguido pois sempre estava lendo alguma coisa; às vezes até mais de
um título ao mesmo tempo. Meu pai também reforçava este hábito lendo diariamente o jornal e
compartilhando comigo as tirinhas e as palavras cruzadas. Lembro que nossa casa sempre teve
muitos títulos à disposição nas estantes, inclusive a coleção de Monteiro Lobato e as
enciclopédias Delta Larousse e Conhecer. Não sei porque mas as enciclopédias sempre me
fascinaram mais que as histórias de Lobato.

Na escola, dois livros ficaram marcados em minha memória: A cartilha o Sonho de


Talita, que me ajudou a trilhar os caminhos da alfabetização de forma lúdica e divertida e as
Confições de um Vira Latas de Origenes Lessa. Os encontros com a Talita eram sempre
extremamente agradáveis pois proporcionavam um passeio lúdico por personagens e situações
intrigantes e divertidas, provocando desafios e premiando a sua resolução com a incrível
sensação de conseguir se expressar. Confesso que me peguei espantado com esta conclusão!
Nunca tinha tido a oportunidade de racionalizar minha relação com um livro didático e, a partir
de minhas memórias, cheguei à conclusão que, mesmo ainda muito pequeno, era esta a sensação
que eu tinha e que me dava tanto prazer e orgulho: Expressar uma idéia, comunicar um fato, por
mais simples que fosse dizer que a macaca come banana ou a bola está na lata ( pois é, eu ainda
sou deste tempo...) aquilo para mim era uma verdadeira proeza, pois me via falando como gente
grande, me comunicando como um indivíduo. A leitura da cartilha e a feitura das atividades
eram realizadas em grupo e a interatividade proporcionada pela professora era muito
agradável. Me lembro que a sala de aula era decorada com as mesmas figuras da cartilha,
transbordando fisicamente o livro e trazendo aquele mundo delicioso para a nossa vida real.

Mais tarde, quando eu já trilhava com uma certa desenvoltura o caminho das letras fui
presenteado com a leitura das Confissões de um Vira-latas. Uma história sob medida para uma
criança de imaginação fértil que falava diariamente com pelo menos uns dez cães no curto
caminho de casa para a escola. Aquilo realmente me tocou profundamente pois ampliou
significativamente meus pequeninos horizontes ao propor um mundo visto pelos olhos de um
cachorro e por fazer uma crítica, diria até mesmo contundente, ao homem. Foi maravilhoso
folhear aquele livro agora com liberdade para ir e voltar à vontade pela história, construindo de
forma personalizada meu ritmo de leitura. Talvez contaminado pelo toque questionador do autor
resolvi romper a linearidade normal da leitura e ia e voltava pela história como que
parafraseando o próprio personagem em suas aventuras pela cidade. Ainda por cima a escola
proporcionou um encontro do escritor com os alunos e foi maravilhoso poder conhecer o autor
do livro e ouvir suas impressões e intenções sobre a obra. Este livro foi realmente um divisor de
águas na minha relação com a leitura me mostrando todo um potencial de reflexão sobre o
mundo e nossa relação humana, além das possibilidades dramáticas (chorei muito com a morte
do Uau-au) a serem exploradas.

Estes dois momentos diferenciados marcam também diferentes relações com o livro
escolar (didático ou não). No primeiro momento o uso orientado da cartilha, com objetivos
pedagógicos (de aprendizagem efetivamente falando) bem específicos e de trabalho
sistematizado em sala de aula. O outro já com uma relação pessoal, onde eu mesmo ditava como
seria minha relação com a obra e quanta cumplicidade seria trocada na construção
compartilhada de mundo, extrapolando os objetivos pedagógicos (compreensão e interpretação
do texto, apropriação dos conteúdos secundários, etc..) e contemplando a vocação fundamental
da escola, da formação integral do cidadão para que o mesmo seja capaz de atuar de forma
crítica e autônoma.

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