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VIII FALA ESCOLA

Re-existir nas Pluralidades do Cotidiano

25 a 28 de julho de 2017

A PAIXÃO DE LER O MUNDO

Cotidiano e práticas educativas

Cristina Gottardi Van Opstal Nascimento


vanopstal@uol.com.br
Unisanta (Universidade Santa Cecília)
Prefeitura de Santos

Resumo: Após conhecer minha turma de 5º ano de 2015, percebi que, embora todos estivessem
alfabetizados, não possuíam o gosto pela leitura, isto é, não liam por prazer, sem uma imposição ou
estímulo externo. Além disso, notei que, embora gentis, eram ensimesmados, sem a dimensão de
outras realidades, e tinham pouca autonomia e protagonismo. Diante disso, acreditando no poder
transformador da leitura, tanto por seu aspecto criativo, ao estimular a fantasia e o sonho, quanto por
auxiliar na construção da autonomia e da empatia, uma vez que amplia olhares e revela verdades
diferentes das nossas, idealizei o projeto A paixão de ler o mundo. A partir da leitura do livro “Malala,
a menina que queria ir para a escola”, de Adriana Carranca, e da propositura às crianças de partilharem
essa história com outras pessoas por meio de um teatro de fantoches, desdobraram-se as demais ações
do projeto. Num processo colaborativo, foram confeccionados os materiais necessários à realização do
teatro, o qual foi encenado para os alunos da nossa escola e a outros convidados (outra escola, pais e a
própria escritora!). Promovemos, assim, o (re)conhecimento e a valorização da pluralidade étnica,
religiosa e cultural por meio de ações interdisciplinares; o uso dialógico e responsável da rede social; o
envolvimento da turma e seus familiares com uma prática solidária (doação de livros para uma
biblioteca) e a produção textual de entrevista, notícia e carta, dentro de suas funções sociais. Como um
“bônus” de todo o nosso caminhar, tivemos a visita da escritora Adriana à escola para partilhar
conosco suas experiências. Por fim, os alunos apaixonaram-se não só pela leitura e pelos mundos que
ela descortina, mas também foram tocados pelo protagonismo de Malala.

Palavras-chave: formação de leitores; protagonismo; empatia; pluralidade cultural.

Introdução

“A educação não pode estar somente em informar o que já foi feito.


Deve abrir uma porta para que o sujeito possa fantasiar o futuro e dar-lhe corpo.
A literatura é importante para que a educação se confirme também o lugar da transformação.
É o que a literatura abre a todos que desejam se entregar à fantasia: [...] romper o limite do
provável.”
(Bartolomeu Campos de Queirós)

Acredito que a formação de leitores apaixonados ocorre de formas diversas, mas,


essencialmente, pelo estímulo ao comportamento leitor, o que se faz por exemplos cotidianos.
Os alunos precisam vivenciar a leitura em todas as suas dimensões, e não apenas em sua
faceta pedagógica, aquela em que lemos o livro para estudar um conteúdo. Não que isso não
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seja importante, mas definitivamente não é o único objetivo pelo qual as pessoas leem ou
devem ser incentivadas a ler. É por meio de ações recorrentes que se promove, no aluno, a
apropriação dos livros e dos mundos que neles se descortinam. Dentre elas, destaco, por gosto
e por crença na eficácia, a prática da leitura de fruição.
Acredito ainda no poder transformador da leitura, tanto por seu aspecto criativo, ao estimular
a fantasia e a capacidade de sonhar, quanto, e principalmente, por auxiliar na construção da
autonomia e da empatia, uma vez que amplia olhares e revela realidades diferentes das nossas.
Pois bem, quando conheci e “sondei” esta minha turma de 5º ano durante o mês de fevereiro,
percebi que, embora não houvesse nenhuma criança que não soubesse ler ou escrever, não
havia nelas o gosto pela leitura livre, por prazer, sem “imposição” ou “estímulo”; para ser
bem precisa, notei-o parcamente semeado em apenas 3 ou 4 alunos no máximo, num universo
de 35 alunos. Além disso, durante as conversas com eles, notei que embora fossem gentis e
doces, eram ainda bem ingênuos, com pouca autonomia e protagonismo, ensimesmados e sem
a dimensão de outros mundos e verdades. Só conheciam o seu “mundinho” e, talvez por isso,
só com ele se importavam!
Cabe ainda dizer que nossa escola, localizada na Ponta da Praia, atende, em sua maioria,
alunos moradores do bairro, mas atende também uma significativa parcela de moradores do
bairro Nossa Senhora dos Navegantes, no Guarujá, em decorrência de seus pais trabalharem
em Santos. No geral, trata-se de uma comunidade acolhedora, com razoável participação nas
decisões escolares, mas ainda aquém do desejado. Em certa medida, as famílias reproduzem a
mesma falta de protagonismo observada nas crianças.
Sendo assim, mais do que nunca, a leitura de fruição com que eu nos presenteava diariamente
(sim, essas histórias são também um presente para mim) ousava alcançar esses 2 objetivos:
fomentar leitores e dissipar fronteiras! Foi então que, no início do ano letivo, decidi ler para
eles a história de 2 paquistaneses bastante corajosos: a menina Malala e o garotinho Iqbal...
Foi então que eu conheci a história de outra menininha bem corajosa, e essa era brasileira, a
alagoana Mell, e seu desejo de montar uma biblioteca na sua cidade... E foi assim que tudo
começou...
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Objetivos
“Uma criança, um professor, um livro e uma caneta podem mudar o mundo.”
(Malala Yousafzai)

Com este projeto, busquei que os alunos fossem estimulados a:


 Apaixonarem-se pela leitura – em todas as suas expressões e finalidades;
 Desenvolver a empatia e o protagonismo em suas vidas, decidindo e assumindo
responsabilidades;
 Engajar-se solidariamente em projetos de promoção do bem-estar coletivo;
 Valorizar os livros como suportes de cultura e saberes múltiplos;
 Conhecer e valorizar outros povos e suas culturas;
 Reconhecer a faceta solidária e comunicativa que uma rede social (Facebook) pode
assumir, se usada de forma crítica e reflexiva;
 Produzir os textos “carta” e “notícia” dentro de suas funções e usos sociais;
 Praticar a revisão textual como parte do processo criativo de escrita;
 Encenar uma peça teatral com fantoches sobre a história da Malala para outras
classes e produzir os elementos constituintes desse gênero: cenários, adereços,
cartazes;
 Comprometer-se com um projeto coletivo, desenvolvendo sua parte com
responsabilidade e valorizando-a como indispensável à excelência do produto final.

Nosso caminhar
“Acredito no contágio dos comportamentos virtuosos.”
(Hubert Reeves)

Todos os dias, leio uma história para meus alunos, geralmente no início da aula, como prática
da leitura de fruição. Quase sempre, leio uma história mais curta, que possa terminar num dia
só, mas eventualmente também escolho um livro mais “longo”, o qual vou lendo dia após dia,
seguindo os seus capítulos. Para a escolha desses livros, respeito minha memória afetiva tanto
quanto os critérios literários para a seleção de uma boa obra infanto-juvenil, no que diz
respeito à temática e à sua escritura. Garimpo histórias que inspirem meus alunos a sonhar, a
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criar, a conhecer mais... E procuro lê-las de tal modo que eles queiram reler o livro “com seus
próprios olhos”.
Seguimos nesse diálogo amoroso com livros e autores desde fevereiro. A alma desse projeto,
porém, teve seu despertar no final de março, após saber por uma de minhas alunas da
Universidade que uma jornalista santista havia escrito um livro para crianças sobre a Malala.
Encantada pela luta dessa paquistanesa, de quem li a biografia, saí à procura da obra pelas
livrarias físicas e também as virtuais, mas soube que ainda não estava disponível para venda.
Numa das livrarias daqui, porém, achei outro livro, da escritora Jeanette Winterson, que
contava essa história e ainda, a de um garoto muito corajoso também, o Iqbal. Sem titubear,
agarrei a oportunidade de apresentar Malala e sua coragem para meus alunos. Teria que
esperar um pouco mais pelo livro de Adriana Carranca, bem mais profundo, como pude ler
depois, mas, enquanto isso, o 5º C já poderia começar a se inspirar...
Numa quarta-feira de abril, véspera de feriado, li a história da Malala para os alunos e, como
era de se se esperar, ficaram impressionados com os fatos e curiosos com as diferenças
culturais. Para eles, a princípio, foi complicado entender que uma menina havia sido baleada
porque queria ir para a escola. Logo após o feriado, eu li o texto sobre o garotinho Iqbal.
Nesses primeiros contatos, o que mais lhes marcou foi a coragem de ambos e a vontade de
lutar não só por eles, mas por todos os outros que sofriam injustiças. É, meus objetivos
começavam a ser, devagarzinho, vislumbrados.
Cabe dizer que, desde o início do ano letivo, criei um grupo fechado da classe na rede social
Facebook, do qual fazem parte os alunos, os pais que queiram participar, a professora
mediadora de inclusão, a de Educação Física e a equipe gestora da escola. Como o objetivo do
grupo é fomentar a partilha do que vivemos nas aulas e a construção coletiva de saberes,
postamos fotos das atividades que desenvolvemos, vídeos aos quais assistimos, sugestões de
links e lembretes. Porém, como dos 34 alunos da classe, apenas 26 possuem perfil no Face e,
assim, integram o grupo, preciso esclarecer que nenhuma novidade é partilhada na rede sem
que antes (ou depois, em último caso) seja partilhada em classe, com meu notebook e a TV.
Assim, logo após a leitura do livro, eu indiquei a página do livro autobiográfico da Malala
para que as crianças, se quisessem, pesquisassem mais informações. Acredito que a web 2.0,
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as redes sociais e as novas TICs ampliam e potencializam os espaços dialógicos na escola, e


para além dela, quando mediadas por um olhar criterioso e reflexivo.
Tanto é que foi por meio do Face que uma nova ideia se juntou ao nosso projeto. No início de
abril, eu li, no perfil de um amigo, a história da Mell, uma alagoana de 7 anos que desejava
montar uma biblioteca em sua cidade e, para isso, pedia a ajuda de uma tia, moradora na
capital. Em sua carta, a menina pedia que a tia doasse alguns livros para sua “coleção”. A tia
compartilhou a carta no Face e daí nasceu a campanha de doação de livros para a Biblioteca
da Mell. Essa iniciativa combinava perfeitamente com a nossa paixão de ler o mundo e eu
quis partilhar isso com os alunos!
No mesmo dia em que li sobre Iqbal, contei a história da Mell, e eles ficaram impressionados
por causa da idade dela e por descobrirem que havia lugares no Brasil onde não havia
bibliotecas! Diante disso, perguntei-lhes o que achavam de procurarmos em casa algum livro
para doarmos. Encantei-me, confesso, com a imediata aceitação! Fiquei feliz também por
terem comparado a história da Mell (e sua luta por livros) com a história da Malala.
Comentaram que Mell era guerreira como a paquistanesa e, ainda que inspirados pela minha
reflexão, afirmaram que a brasileira defendia não só o seu direto à leitura, mas o de toda a sua
gente, assim como Malala lutava não só em causa própria, mas por um bem maior. Enfim,
disseram que Mell era a Malala brasileira! Guardadas as proporções, ambas são exemplares e
o fato de perceberem isso mostrava que eu estava no caminho certo.
Assumo, porém, que ainda não tinha certeza de que realmente os livros viriam no dia
seguinte. Mas eles foram chegando! Aos poucos, é verdade, mas estavam ali! E durante o mês
de abril, recebi obras para crianças e adultos e gibis. Como parte de nossa rotina, compartilhei
o link da comunidade Biblioteca da Mell para que crianças e pais conhecessem mais sobre a
ideia. Então, no final desse mês, decidimos que era hora de enviar os 53 livros que havíamos
arrecadado e, para isso, decidimos escrever uma cartinha que acompanharia a remessa.
Elaboramos, coletivamente, a nossa carta para a Mell e foi uma oportunidade para que
produzissem um texto desse gênero dentro de sua função social. Escolheram juntos a
saudação, o vocativo e explicaram que estavam doando os livros, fazendo questão de
mencionar que comparavam Mell à Malala. Tiramos fotos com os livros e enviamos também.
Depois que despachei pelo correio, escrevi uma mensagem privada na página da Biblioteca da
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Mell contando da doação e, para a nossa alegria, eles agradeceram num post com uma
montagem das fotos e da carta. As crianças vibraram muito e eu fiquei tão orgulhosa deles!
Os dias seguiam e esperávamos ansiosos pelo lançamento do livro brasileiro sobre Malala.
Vínhamos conversando sobre a ideia de partilhar a história com outras crianças e propostas
surgiram. Antes, aventamos a hipótese de cada um ler para outras classes e até fizemos uns
ensaios, mas, considerando-se que apenas um aluno por vez contaria a história em cada sala,
isso, de certa forma, restringia nosso objetivo maior, que era o de abraçarmos um projeto
coletivo. Logo, buscamos outra ideia e, como já havíamos feito um teatro de Páscoa, optamos
por contar a história com um teatro.
Enfim, o dia do lançamento do livro de Adriana chegou e, num sábado de maio, eu estava lá
em SP, na fila de autógrafos, com 2 livros na mão, um para mim, e outro para meus alunos do
5º C, para quem Adriana Carranca fez uma linda dedicatória. Com o livro autografado,
fotografei-o e postei no grupo, a fim de aguçar a curiosidade das crianças. Na segunda-feira,
cada criança viu o livro e a dedicatória, e eu li o prefácio para que sentissem o que viria pela
frente. Não iniciei imediatamente a leitura da história, pois estávamos lendo outro livro que
ainda demoraria um pouco para acabar. Ao ler o prefácio, minha intenção também era a de
explorar a descrição que Adriana faz sobre o ofício de jornalista, uma vez que trabalhávamos
com o gênero jornalístico, especialmente a notícia. Explorei um pouco também o mapa que
consta no começo do livro, para ir relembrando para as crianças onde ocorreu a história da
Malala. Depois, postei no grupo o link para a página da ONG da Malala para que eles
pudessem descobrir mais coisas por conta própria.
Durante 2 semanas, seguimos trabalhando com o gênero jornalístico e combinamos que
iríamos produzir algumas notícias sobre o que tinha acontecido ou viesse a ocorrer, de
inusitado, em nossa classe. Desse modo, decidiram que os temas iniciais seriam a doação de
livros para a Mell e a visita do Vovô sabe tudo, um projeto fixo da Seduc. Como eu já pensava
em utilizar a produção de notícia como um instrumento avaliativo do projeto, propus
escrevermos coletivamente a do Vovô, pois, assim, eles teriam mais subsídios para
elaborarem sozinhos ou em duplas a da doação de livros.
Enfim, numa terça-feira ensolarada de junho, sentados em frente ao pequeno jardim que
temos em nossa escola, eu iniciei a leitura de Malala, a menina que queria ir para a escola.
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Foi um começo promissor. Eles perguntavam muito e queriam saber mais sobre o Paquistão e
a sua cultura. Como o livro é longo, fui lendo-o em capítulos, e a cada passagem da história,
já íamos conversando sobre como seria o teatro, se tal acontecimento faria parte do texto, que
personagem não poderia faltar, etc.
Sem dúvida, as diferenças culturais entre nós e Malala são muito grandes e isso era um
excelente mote para discutirmos pluralidade cultural e diversidade étnica e religiosa. Fui-lhes
esclarecendo as dúvidas que o livro suscitava. Desde questões como a vestimenta das
mulheres paquistanesas até os preceitos dos muçulmanos, tudo foi sendo explicado com
respeito. Comentei da mesquita existente aqui em Santos, mostrei-lhes um vídeo sobre o
muezzin e fotos de um dyna e do blog da Malala. Valendo-me do que a própria Adriana conta
no livro, expliquei que os preceitos religiosos dos muçulmanos não proíbem ninguém de
estudar, nem sequer justificam qualquer violência, e ainda analisamos como se “doutrinam”
talibãs desde meninos. A reflexão sobre a diferença entre preceitos de fé e extremismo
religioso não poderia ser ignorada. Procurei sempre relacionar com as suas religiões e
costumes para que entendessem que a variedade existe aqui também. Fomos aproveitando a
riqueza da história para descobrir novas realidades e ampliar o repertório das crianças.
Na verdade, essa discussão enriqueceu nosso aprendizado em História, pois estávamos
estudando sobre os índios, a chegada dos portugueses ao nosso país e as diferenças culturais.
Causou estranhamento nas crianças o fato dos índios, ainda hoje, andarem naturalmente
desnudos ou com pouquíssima “roupa” em suas aldeias, do mesmo modo que lhes espantara o
fato de Malala ter que andar coberta por shawl ou dupatta. Aproveitamos para relacionar essa
diversidade, enaltecendo-a e respeitando-a. Como faríamos um estudo do meio numa aldeia
indígena em Bertioga, conversamos sobre o que iríamos descobrir por lá. A princípio, alguns
alunos ficaram ressabiados (Eles vão estar nus?), mas refletimos muito com a ajuda de vídeos
e fotos de várias aldeias e tudo se esclareceu. Para a minha surpresa, os pais ficaram
preocupados e só permitiram a viagem depois que viram o material postado no Face e
ouviram das próprias crianças que não havia perigo. “Eles apenas são diferentes da gente”,
explicavam os pequenos, “enquanto a Malala usa véu, os índios andam nus e a gente usa
roupa”. Em meados de junho, fizemos o estudo do meio e foi uma experiência ímpar!
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No dia 17 de junho, finalizei a leitura do livro. Decidimos, então, que o teatro usaria
fantoches, pois assim poderíamos alternar as crianças que manipulariam os bonecos,
permitindo a participação de mais alunos; e ainda porque achei que usar bonecos para contar
fidedignamente a história para o público infantil seria uma boa solução cênica para a hora do
atentado, por exemplo. Expliquei-lhes que faria a adaptação do texto para a linguagem teatral
e que, na outra semana, iniciaríamos os preparativos da apresentação. Retomamos, então, o
estudo específico da Região Nordeste, de suas belezas e riquezas culturais (repente, cordel,
frevo, etc), mas também refletimos sobre as dificuldades da seca, da miséria endêmica, do
coronelismo, do voto de cabresto. Com isso, ampliaram sua compreensão sobre por que
faltam bibliotecas na cidade da Mell. Aproveitei para pedir-lhes que escrevessem, em duplas,
a notícia da doação de livros e, após minha revisão do texto, retomaram sua escrita e o
passaram a limpo, pois alguns integrariam o jornal da classe, o 5º C em ação.
E a segunda-feira chegou, trazendo decisões e providências importantes a tomar. Levei a TV
para sala, conectei meu note e, antes de tudo, li o texto adaptado, perguntando se
concordavam e se lembravam que havíamos decidido que tal passagem deveria estar presente.
Frente à complexidade do texto, optamos por fazer a gravação das falas com os efeitos
sonoros. Depois, falei da divisão de tarefas e responsabilidades e, mais uma vez, perguntei-
lhes se todos realmente queriam fazer o teatro. Ao “sim” animado que me deram, eu
correspondi, tão animada quanto preocupada, admito! Teríamos pouco tempo até a estreia,
decidida para 1º de julho. Portanto, precisávamos de foco e diligência e preenchemos juntos a
lista de tarefas, cada um dizendo o que queria fazer. A lista foi fixada no mural, para consulta
quando necessário. Distribuímos os papéis, mas para o da Malala, pelo excesso de candidatas,
houve a audição de cada uma e a classe escolheu qual preferiram. Foram escolhidos 7 alunos
para a gravação das falas, mas apenas 5 se responsabilizaram pela manipulação dos bonecos,
em razão do tamanho da casa de fantoches, que era relativamente pequena.
Em razão do tempo curto e da delicadeza da costura, optei por não confeccionar com eles os
bonecos, mas decidimos juntos que personagens fazer, e eles acompanharam cada passo da
criação. Antes eu idealizei tudo em papel para que uma professora habilidosa criasse em pano
a nossa Malala. Depois, minha mãe seguiu costurando os outros 9 fantoches. Cheguei a
pesquisar na internet para comprar os bonecos prontos, mas não achei nada, nem em sites do
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exterior. Na classe, os alunos produziram o cartaz de divulgação, adereços (helicóptero, dyna,


rádio, TV, microfone) e cenários. Decidimos que os convidados para a estreia seriam os
alunos do 1º e do 4º C, além dos docentes e da equipe gestora. Pedi àqueles que gravariam as
falas para que chegassem mais cedo na quinta para fazermos a leitura dramatizada e, na 6ª,
gravamos os áudios. Nessa semana, também solicitei aos alunos que redigissem uma carta
para Malala, dizendo-lhe tudo o que gostariam que ela soubesse.
No fim de semana, editei tudo (áudios e efeitos sonoros) com a ajuda do meu sobrinho expert
em informática. Assim, na segunda e terça, fizemos o ensaio geral, já com os fantoches, os
cenários e o áudio, e segui mediando o processo. Por fim, conversamos muito, recordando
tudo o que fizemos até chegar a esse produto final e que tudo aquilo era resultado de uma
ação conjunta, do esforço e cuidado de cada um, e não apenas de quem iria manipular os
fantoches na apresentação teatral.
E o dia da grande estreia chegou! Todos estavam animados e sentindo-se parte daquilo tudo!
Como a sessão seria às 16h, aproveitamos para deixar tudo ajeitado na classe e assistimos ao
vídeo que lhes preparei com os bastidores do teatro: eles amaram se verem nas fotos e
relembrarem tudo! Combinamos ainda que 2 alunos recepcionariam o público e também um
aluno faria a apresentação. Como mais de um se ofereceu, fizemos uma “audição” e,
surpreendentemente, o aluno escolhido era um menino meio esquivo, de convivência difícil
com as outras crianças. É, parecia que o projeto tinha realmente dado certo! Por haver tempo,
as crianças pediram para fazer um último ensaio, com o que todos concordaram. Finalmente,
às 15h45, o “público” chegou e tomou seu lugar na plateia. Pontualmente às 16h, o encanto
começou e todos os presentes foram levados até o Vale do Swat, no Paquistão, para
conhecerem a história da Malala, a menina que queria ir para escola...
Depois da estreia, houve outras “sessões” para as demais turmas da escola, assim como fomos
nos apresentar, no contraturno, numa escola de Educação Infantil próxima à nossa unidade.
Essa manhã foi um momento especial para todos nós, mesmo os que não puderam estar
presentes, uma vez que partilhamos tudo no nosso grupo da rede social.
Houve ainda um outro grande momento que, embora não estivesse previsto na fase inicial do
projeto, foi se delineando no decorrer de nossas ações e da paixão que elas despertaram em
todos os envolvidos. A partir da minha ida à tarde de autógrafos do livro da escritora Adriana
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Carranca, estabeleceu-se um vínculo gentil entre a autora e nós e, com isso, enviei-lhe alguns
desenhos das crianças, comentei sobre o teatro e sobre nossas discussões. Na transparência de
nossos contatos, parece que nós a entusiasmamos mesmo, pois ela, generosamente, ofereceu-
se para vir conversar com as crianças. Tal encontro ocorreu em outubro, numa tarde muito
especial para toda a nossa escola, pois estendemos sua conversa para todos os alunos de 3º a
5º ano e seus professores. O 5º C teve, assim, a honrosa oportunidade de encenar o teatro para
ela, a autora! Foi encantador!

Nossos resultados

“[...] todo uso da palavra a todos: não porque todos sejam artistas, mas porque ninguém é escravo.”
(Gianni Rodari)

Em minha análise de todo o processo, as metas foram alcançadas e, de certa forma, superaram
as expectativas. Além dos aspectos citados na metodologia, como as reflexões que os alunos
fizeram entre as diferenças culturais, minha avaliação positiva considerou que os 34 alunos se
envolveram verdadeiramente no projeto, na medida em que expressaram sua vontade de
participar de cada etapa, opinaram, quiseram aprender mais, estão lendo muito mais (tanto os
livros da Biblioteca quanto os do acervo da sala), comprometeram-se com o sucesso global do
projeto e aprenderam a lidar com os conflitos inerentes ao processo de construção coletiva.
Saliento ainda o entusiasmo deles em partilhar a história com outras pessoas, tanto pelo teatro,
quanto pelo fato de levarem o livro (o da Jeanette) para casa e me dizerem espontaneamente
que tinham “lido a história para um monte de gente”. Sem dúvidas, constatei também a
seriedade, a organização e o comprometimento dos alunos que apresentaram a peça, desde a
concentração na “coxia”, com os adereços e fantoches arrumados numa sequência, até o
brilhantismo da encenação. Definitivamente, eles contagiaram a todos!
Acrescento como indicadores positivos os comentários no Face; desenhos e cartas voluntárias
de alunos (um do aluno com TEA); uma mensagem espontânea de um aluno, num domingo à
noite, avisando que estava passando uma reportagem sobre a Malala na TV; a melhora de
comportamento de um aluno que vivia se envolvendo em confusão, inclusive com prática de
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bullying, e que, no decorrer do projeto, conseguiu se manter longe disso e o fato de um aluno
com problemas de socialização se oferecer para ser “mestre de cerimônias”.
Quanto aos instrumentos objetivos, avaliei que a doação dos livros ocorreu numa quantidade
expressiva e que os alunos não só entenderam a função social da carta, como curtiram
escrevê-la. Pelo teor das sugestões de escrita, notei que eles se sentiram bem em colaborar e
ainda pediram uma resposta da Mell. Por sua vez, as notícias produzidas em duplas também
atestaram isso, comprovando que os alunos prezaram pela qualidade textual. Com a escrita
individual da carta para Malala, sem sugestões minhas do que dizer, constatei que realmente
conhecer a história dessa menina ampliara a visão de mundo deles. Temas como coragem,
sonho, escola, livros, direitos, orgulho, respeito, exemplo, luta, protesto, Paquistão, Swat,
teatro e Nobel foram recorrentes nas cartas. Uma delas tocou-me muito: quando da decisão de
quem seria a Malala, uma aluna que não foi a escolhida ficou muito triste, mesmo tendo sido
preparada para o fato de que isso poderia ocorrer. Conversei com ela, mas só tive certeza de
que ela conseguiria superar quando li em sua carta para a Malala: “[...] mas vou fazer que nem
você, nunca desistir”.
A avaliação das famílias também validou que houve transformações ao longo do projeto de tal
modo que isso transparecesse em casa. Além do que colhi em depoimentos voluntários na
rede social, recados na agenda ou pessoalmente, elaborei um questionário de percepção sobre
o que pensam que seus filhos aprenderam. As respostas foram tão positivas que solidificaram
o sucesso do projeto. As mães disseram que os filhos partilharam o que descobriram sobre a
Mell e a Malala, que tiveram interesse em saber mais e estão procurando se envolver mais
com as pessoas e os acontecimentos. Uma das mães relatou que o filho quer ir a Maceió
conhecer a biblioteca da Mell.
O projeto surpreendeu-me também pelos retornos inesperados que ratificaram uma avaliação
favorável. Um deles foi a compra de uma grande casa de fantoches para a nossa escola, com
recursos da APM, e que poderá ser usada por todos os alunos e professores (para a estreia,
usamos uma emprestada de uma escola vizinha). Outra bela conquista foi o vínculo que se
estabeleceu entre nós e a autora Adriana Carranca, com quem conversei pelo Face e por
email. Parece que a entusiasmamos mesmo, pois ela se ofereceu para vir à nossa escola
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conversar com os alunos, o que ocorreu em outubro, em virtude de outros compromissos dela.
Nessa oportunidade, os alunos encenaram o teatro para ela. Que honra!
Além disso, como havia prometido aos alunos, compartilhei a história do teatro nos perfis
oficiais da Malala no Brasil e as curtidas têm vindo de várias partes do mundo! Assim, se
inicialmente pensei que 34 alunos seriam impactados, ouso crer que, mesmo que
indiretamente, muito mais pessoas (alunos e não alunos) foram tocados pela ação coletiva do
5º C.
Cabe dizer ainda que, no ano seguinte ao projeto, em junho de 2016, recebemos um email
encaminhado pela escritora Adriana, no qual o pai da Malala, o sr. Ziauddin Youzafzai,
parabenizava os alunos e o nosso projeto, o que foi prontamente compartilhado, via rede
social, com os meus – agora – ex-alunos!

Referências
CARRANCA, Adriana. Malala, a menina que queria ir para a escola. São Paulo: Companhia das
letrinhas, 2015.

CITELLI, Adilson.; COSTA, Maria Cristina Castilho. (Orgs.). Educomunicação. São Paulo: Paulinas,
2011.

FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação. 7 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. Acervo da
Biblioteca Digital Paulo Freire. Disponível em <http://www.paulofreire.ce.ufpb.br/paulo freire/>
Acesso em fev. 2014.

MARCUSCHI, Luís Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. 2 ed. São Paulo:
Parábola editorial, 2013.

PENNAC, Daniel. Como um romance. 4 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998

RODARI, Gianni. Gramática da fantasia. 9 ed. São Paulo: Summus, 1982.

YOUSAFZAI, Malala. Eu sou Malala. São Paulo: Companhia das letras, 2013.

WINTERSON, Jeanette. Malala/Iqbal. São Paulo: Verus/Record, 2015.

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