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Bebês, crianças bem pequenas e crianças pequenas: reflexões sobre a leitura

para a primeiríssima infância

Resumo:
De modo generalista e apequenado permanece em parte da sociedade
contemporânea um olhar para os bebês e crianças bem pequenas sob a ótica da
fragilidade do tamanho, a “inabilidade para sobreviver” e a dependência de outros
para viver e, até mesmo, vir a ser. Como afirma Larossa(2010) sua extrema
vulnerabilidade torna absoluto nosso poder, sem qualquer oposição. Exposta ao
nosso olhar, planos e delírios, submete-se; propagando-se a ideia de que o
“recém-nascido não é outra coisa senão aquilo que colocamos nele”. Mas os bebês,
crianças bem pequenas e pequenas ainda não são? Não são um outro, diferente,
que está além do que se espera ou antecipa?
Inclusive, nesse contexto, é que são planejadas parte das práticas pedagógicas
ofertadas em instituições educacionais. Mas o que será que os bebês e as crianças
bem pequenas tem para ensinar? Tal qual a metáfora do estrangeiro, os bebês e as
crianças bem pequenas ávidos pelas descobertas e experimentações, seguem em
resistência, dando mostras de suas preferências, desejos, saberes, percepções e
apropriações sobre a organização do mundo. E é a partir da posição respeitosa de
aproximação e escuta à primeiríssima infância que se pretende pensar a leitura e o
ato de ler obras (de literatura) escritas para a infância. Partindo de reflexões que
rompem com os parâmetros generalistas, calcados em presunções, busca-se
assumir um lugar investigativo, em meio a bibliografia vigente que propõe uma
metodologia de escuta atenta sobre os ritmos, tempos, percepções dos bebês e das
crianças bem pequenas, em situações de mediação de leitura, por meio de obras
escritas para bebês e crianças.

Palavras-chave: Leitura; Infância; Literatura infantil; Bebês, Crianças bem


pequenas
Bebês, crianças bem pequenas e crianças pequenas: reflexões sobre a leitura
para a primeiríssima infância.

Profa. Dra. Giane Aparecida Sales da Silva Mota.


Profa. Dra. Maria Walburga dos Santos.

De modo generalista e apequenado permanece em parte da sociedade


contemporânea um olhar para os bebês e crianças bem pequenas sob a ótica da
fragilidade do tamanho, a “inabilidade para sobreviver” e a dependência de outros
para viver e, até mesmo, vir a ser. Como afirma Larrosa(2010) sua extrema
vulnerabilidade torna absoluto nosso poder, sem qualquer oposição. Exposta ao
nosso olhar, planos e delírios, submete-se; propagando-se a ideia de que o “
recém-nascido não é outra coisa senão aquilo que colocamos nele”. Mas os bebês,
crianças bem pequenas e pequenas ainda não são? Não são um outro, diferente,
que está além do que se espera ou antecipa? Estas reflexões conduzem o esmiuçar
do dia a dia da creche, em seu atendimento cotidiano, estabelecendo as práticas de
leitura como foco de estudo e atenção.
Com os pés firmes, bem apoiados no chão, mira-se o presente e como em um
caleidoscópio, feito por fragmentos1 (de espelhos), as cenas vão ganhando forma,
cores e dimensões. Cena 1:Uma geladeira quebrada ocupa um canto do pátio de
uma creche na zona leste da cidade.Carinhosamente, para a equipe, ela se chama
geladeira literária. No início havia gibis, pequenas coleções de contos de fadas e
livros diversos. Com o tempo, permanecem ainda diferentes materiais de leitura,
livros rasgados, folhetos de supermercado e livros de adultos. Alguns materiais com
um aspecto envelhecido, de cor amarelada. Ao lado, o acolchoado cobre os pallets
e sugere a ideia de um futon. Em cima do acolchoado, foi posto um urso, desses
enormes, um meio para atrair os pequenos para que compartilhem o espaço, tão
logo consigam abrir a geladeira para retirar um livro, ou aguarde o adulto fazê-lo.
Cena 2: destrancando o armário da sala de aula uma professora da creche retira os
seus livros de literatura infantil, dentre os exemplares de que dispõe( comprados
com próprios recursos), escolhe um que utilizará para contar a história, não ler a
história.Com todas as crianças dispostas no tapete, junto aos auxiliares, ela inicia a

1
Nota da autora: Fragmentos aqui podem ser compreendidos por recortes do cotidiano.
contação modificando o tom de sua voz para cada personagem, que é destacado
nas imagens ao longo das páginas. As crianças pequenas só prestam atenção se
for feita a contação de histórias, pois parece um teatrinho, defende a docente em
questão. Cena 3: uma professora empurra um carrinho com alguns exemplares de
livros. Livros e carrinho eram de seus filhos, hoje adolescentes.Com sua remoção
este material será utilizado em outro espaço escolar, deste modo, parte do acervo
se vai. Cena 4:uma roda de bebês confortos é compartilhada por meio de uma
fotografia. Em cada bebê conforto, há um bebê seguramente preso com o cinto,
mais a frente uma professora com o livro em mãos apresenta uma história. Na
segunda imagem ela coloca o livro sobre o colo de um dos bebês, mas não o solta
enquanto o bêbe tenta ao menos pegar o objeto livro. Ela é uma mediadora de
leitura do programa de mediação de leitura, implantado pela Secretaria da
Educação.Cena 5: a gestora de uma escola é convocada a retirar livros de literatura
infantil do depósito da prefeitura. Esses livros farão parte do acervo da creche. Ao
todo são destinados apenas 63 exemplares de títulos diversos para os mais de
trezentos alunos da creche( um total de 6 livros para cada turma). Além do pequeno
número de livros disponíveis aos bebês, crianças bem pequenas e pequenas,
destaca-se que a escolha não passou pela instituição, pelos professores, tampouco
por uma equipe preparada para analisar e selecionar acervos.
Estas cenas do cotidiano, observadas no período de 2020 a 2022, parecem
chancelar alguns estereótipos sobre a leitura na creche, principalmente, sobre a
leitura para o bebê, a criança bem pequena e a criança pequena.
Submetidos ao planejamento pedagógico, submetidos à política partidária de leitura,
a cada cena, a leitura no contexto da creche, manifesta sua articulação com a face
do poder.No planejamento dos adultos é possível identificar o controle, a filantropia,
o equívoco entre o narrar e o ler histórias, e até mesmo a exclusão social a que
estes brasileiros, na condição de bebês e crianças bem pequenas e pequenas,
estão relegados pois a eles até o espaço planejado limita o acesso, além de serem
mantidos objetos de leitura pouco cuidados.
Para uma parcela dos profissionais da primeiríssima infância, a leitura parece ser
um mero termo adotado pela documentação pedagógica, pelo currículo oficial, do
que uma prática em si. Afinal, o bebê é leitor? A criança pequena é leitora de livros?
Por que e para que selecionar livros de qualidade, se mal conseguem manter-se
atentos a narrativa?
Para outros ainda, a leitura realizada no espaço educacional visa a preparação
para o que há de vir - o processo de alfabetização. A partir da Educação Infantil, há
um agrupamento de profissionais que se posicionam pela antecipação de domínio
do código, custe o que custar, atropelando as crianças na compreensão do mundo,
na vivência das experiências, das interações e brincadeiras.
E nessa divergência de opiniões, os bebês, as crianças bem pequenas e
pequenas recebem caixas com livros rasgados, sob o argumento de que vão rasgar
mesmo, não sabem ler. Ou ainda os livros ficam trancados nos armários docentes,
para serem vistos à distância, nas mãos do educador, no momento da leitura. Fora a
famosa “geladeira literária” que adentra a escola para guardar e ofertar livros e
outros materiais de leitura, aparentemente sem a percepção de que este
equipamento, inclusive, dificulta o acesso de quem ainda é pequeno e está
compreendendo como este mundo se organiza.
Ademais, o livro em sua materialidade ora é considerado objeto apequenado e
pouco importante, ora é considerado objeto de valor, cujo acesso se restringe às
mãos do adulto. Ou ainda, torna-se pretexto para a narração de histórias2,
dramatização, sob a justificativa de que as crianças da primeiríssima infância só
prestam atenção na contação de histórias e não na leitura.
Isso sem abordar o aspecto da qualidade literária do material oferecido à
primeiríssima infância, pois como afirma Bajour e Carranza(xxxx) a literatura infantil,
por estar relacionada ao mundo da infância, parece para muitos pertencer ao
território do conhecido, do familiar e, portanto, dominado por muitos leitores adultos,
que se sentem inclusive especialistas em livros para crianças. São apenas livros
para crianças, que problemas podem ter? - elucidam as autoras.
E a leitura , por meio de livros, de qualidade, é vista por muitos como algo simples e
sem grandes implicações: basta pegar um livro qualquer e contar a história!
Um tanto disso, pode ser sentido nas cenas apresentadas. Mas o que não
parece evidente, identificável, dentres estas cenas é a compreensão do direito à
cultura letrada, por meio do direito à leitura, a que os bebês, crianças bem pequenas
e pequena tem
Direito que segundo Castrillón(2011), parafraseando Emília Ferreiro(2002):

2
Termo utilizado também como contação de histórias.
não é um luxo, nem obrigação. Não é um luxo das elites que
possa ser associado ao prazer e à recreação3, tampouco uma
obrigação imposta pela escola. É um direito de todos que[...]
permite um exercício pleno da democracia.(CASTRILLÓN,
2011:19)

Compreender a leitura como direito implica dever e compromisso, sobretudo com


aqueles que estão chegando a esse mundo e assimilando o que ele significa,
depreendendo os códigos sociais, a relação entre os signos, os significantes e os
significados.
Após ser expulso do corpo da mãe, o bebê ajusta-se à nova ordem, por meio da
linguagem(Reyes, 2010). Adquirida em etapas cognitivas, a linguagem vai
possibilitando trocas sociais e organizando o pensamento.
Nas cenas do cotidiano as vozes familiares, em momentos diversos, ao indicar a
hora de trocar a fralda, ao cantar uma cantiga durante o banho, ao conversar com o
bebê, com a criança bem pequena, vai estabelecendo, em meio aos afetos,
experiências simbólicas com a linguagem.
E, no jogo da linguagem, dois fenômenos se consolidam de maneira simultânea,
segundo López(2016):
“la elaboración de un psiquismo (fundamento de la capacidad de pensar y
simbolizar) y el ingreso al territorio de la metáfora, del hacer como si, a la capacidad
de construir realidad a partir de la fantasía. Allí, el niño es capaz de percibir el
exceso no funcional de la lengua, origen de la experiencia artística. Los niños
pequeños ejercen su dominio sobre el mundo explorando y construyendo
significados. Viven la mayor parte del tiempo en esa zona intermedia a la que
Winnicott denominó «espacio transicional», zona construida con elementos del
mundo interno y del mundo externo, de lo que recibe del medio y también de sus

3
Em conferência apresentada no Simpósio Ibero Americano sobre Literatura Infantil e Leitura: Novos
espaços para a leitura no século XXI, em novembro de 2001, em Madrid, Castrillón apresentava
como ponto investigativo a promoção da leitura enquanto recreação e prazer. Segundo a autora, “um
dos problemas fundamentais reside no fato de que a leitura tem sido promovida como algo de que se
pode facilmente prescindir, como um luxo das elites que se deseja expandir, como leitura “recreativa”
e portanto, supérflua. [...] Nesse contexto, a moda das campanhas e de programas de leitura
baseados no lúdico, no prazer, no lazer, na diversão - com o mote de que ler é fćail e com lemas do
tipo”ler é bonito", e que reforça a oposição ao dever, ao esforço, à dificuldade e à obrigação
associados à escola - teve intenções positivas, mas ingẽnuas, pois criou , por um lado, falsas
expectativas e, por outro , associou a leitura a uma ação inútil e descartável”(CASTRILLÓn, 2011:
54-55)
propias vivencias, de sus ansiedades, de sus imágenes mentales, de sus
experiencias nacientes. El espacio transicional es la zona subjetiva por excelencia
del ser humano, donde se desarrolla su aspecto más creativo y singular. En esa
zona ocurren los fenómenos ligados al arte y al juego, la experiencia cultura"
Ao concernir tal potência, Reyes( 2010, p. 23) defende que o “reconhecimento do
ser humano como leitor pleno e completo, na qualidade de construtor de significado”
se dá “ desde o início de seus dias”. (REYES, 2010, p.23)
Portanto, a partir da clareza de que, para a primeiríssima infância, o direito à cultura
letrada está diretamente relacionado ao direito à leitura e, consequentemente, ao
desenvolvimento do sujeito leitor desde bebê, torna-se imprescindível apresentar
um mapeamento teórico sobre o desenvolvimento de uma pedagogia da leitura para
bebês, crianças bem pequenas e pequenas, conforme propõe Reyes4. Ao voltar o
olhar para a experiência da leitura literária com a primeiríssima infância, investigar
por meio das experiências artísticas, literárias de que modo os livros de literatura
infantil agem na constituição do sujeito leitor desde bebê, rompendo com os
esquemas tradicionais de ensino da leitura e sua associação com o processo de
alfabetização em si, mas pautando -se em duas premissas :
La primera es la de considerar a la lectura, en un sentido
amplio, como una forma de conocerse a sí mismo, de
descifrarse y descifrar el mundo, de encontrar nos livros y en
los objetos de las cultura, alternativas para el crecimiento, para
el diálogo, para favorecer el pensamiento y para desarrollar la
sensibilidad. La segunda premisa, [...] es la hipótesis de que la
necesidad del sentido acompaña al hombre desde su
nacimiento, y esta hipótesis nos lleva a decir que leemos
desde mucho antes de empezar el proceso de alfabetización
propiamente dicho. (REYES, 2003:01)

Corroboram com este processo as pesquisadoras Jaqueline Held, Yolanda


Reyes, Maria Emilia López, Silvia Castrillon, Maria Teresa Andruetto, Alma
Carrasco, Cecilia Bajour, Elli Bajjard, Adam Chambers, Marcela Carranza, Regina

4
REYES, Yolanda. A casa imaginária: leitura e literatura na primeira infância. 1ed. São Paulo: Global,
2010.
Zilberman, Beatriz Helena Robledo, Cassia Bittens, Umberto Eco, Antonio Candido,
dentre tanto outros que se debruçam sobre a compreensão dos sentidos e
significados da leitura literária com bebês, crianças bem pequenas e crianças
pequenas. Afinal, conforme afirma Yolanda Reyes(2011) “ em termos de linguagem
a primeira infância é definitiva para estruturar quem somos e marcar as relações
com a cultura escrita e com o pensamento”.

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