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FORMA DA GEOGRAFIA
A RECRIAÇÃO DO CAPITALISMO E AS RELAÇÕES HOMEM-ESPAÇO-MEIO AMBIENTE DO
MUNDO GLOBALIZADO
Ruy Moreira
1. O ESPAÇO GLOBALIZADO
O hibridismo do espaço vai se traduzir na geração de um meio ambiente no geral altamente alterado e
degradado. A degradação do meio ambiente urbano, já registrada pela literatura de ficção, através da obra
romanesca de escritores como D. H. Lawrence para as cidades industriais inglesas do meado do século XIX,
generaliza-se para o campo e todos os espaços, leva da pelo aumento do consumo de matérias-primas por uma
indústria cada vez mais mundializada. Até que a degradação se completa com perda do contato com os bens,
sons e imagens dos meios locais, trazida pelo meio ambiente urbano fortemente hibridizado, levando a um
desenraizamento cultural do homem em escala planetária.
A velha relação homem-meio, descartada pelo hibridismo e degradação do meio ambiente num espaço
globalizado, deve ser assim recriada.
A percepção do problema tem lugar de início no campo da reflexão ética e teórica, relacionada a uma
condenação radical de uma economia comandada pelos interesses de consumo da indústria, até que por fim se
traduz num conjunto de medidas de reconstrução das paisagens nos espaços de meio ambiente mais
degradados. Entre um momento e outro, vive-se uma fase de resgate das diferentes práticas experimentadas
pelos países onde os problemas da degradação foram fisicamente sentidos, via atitudes de conservação e
preservação das paisagens alteradas.
Um choque está assim se dando entre o desenvolvimento desnorteado das forças produtivas da indústria
e as relações de produção capitalistas criadas para regularizá-las. E uma pressão conseqüente pela substituição
dessas relações por outras que reorientem e dêem novo direcionamento ao desenvolvimento das forças
produtivas em suas relações com a sociedade capitalista e o meio ambiente, consideradas as possibilidades
criadas pela ciência e tecnologia da nova revolução industrial em curso (a terceira revolução industrial) e os
interesses da globalização financeira.
A forma do Estado capitalista atual, o Estado do Bem-Estar-Social (Welfare State), é a que este adquire
quando nos finais do século XIX e começos do século xx a forma liberal entra em crise. É assim o fruto de
uma reforma realizada para reestruturar o modo como então se relacionavam política e economia, provocada
por três importantes transformações em curso: (1) o nascimento da ação classístamente organizada dos
trabalhadores urbanos; (2) a passagem do capitalismo da fase competitiva para a dos monopólios; e (3) a
conseqüente crise da auto-regulação mercantil.
E esta forma historicamente determinada de Estado que por sua vez hoje entra em crise para ceder lugar
a uma forma nova, O neoliberalismo com sua voracidade privatizante é a ideologia dessa nova reforma.
A ação operária exerce papel importante nessa redefinição do Estado liberal. Emergindo nos ambientes
pontuais dos locais de trabalho, a movimentação dos trabalhadores cresce com o movimento das contestações
que se acumulam no campo democrático contra os limites do direito político que são próprios do Estado
Liberal. Mas ao mesmo tempo o movimento operário se soma a este movimento geral organizado por
intelectuais, classe média e burgueses menores pelo sufrágio universal e dele se mantém nitidamente
diferenciado por conceber que a simples conquista do direito de igual cidadania política não bastará para
garantir aos trabalhadores o que estes reivindicam: a mais ampla cidadania econômica e social. Isto o leva a
orientar suas lutas para além das reivindicações puramente políticas, para conduzi-las também no campo das
condições gerais de vida. Para tanto, a ação operária precisou criar seus próprios organismos.
A história dessa criação começa com as entidades mutualistas, surgidas entre os trabalhadores para
organizarem suas lutas no plano das questões mais prementes do cotidiano, como saúde, alimentação,
escolaridade, seguridade. Através dessas entidades, os trabalhadores reúnem fundos financeiros com recursos
recolhidos entre eles mesmos, para ajudarem-se em momentos urgentes como desemprego, doença, morte.
Embora tenha nível simples, esta solidariedade mutualista leva-os a formar uma concepção de mundo
alicerçada na consciência comum de desassistidos e de que eles mesmos têm que tomarem suas mãos as
rédeas do seu destino, resolvendo seus problemas sociais cotidianos. Isto não deixa de afrontar a ordem social
burguesa, por se constituir numa ordem paralela. Mas para os trabalhadores cedo o mutualismo se mostra uma
forma incipiente de organização, requerendo a criação do sindicato operário. Já existente embrionariamente na
forma das Ligas Operárias em simultâneo às entidades mutualistas, os sindicatos ganham agora corpo mais
definido, logo se mostrando um organismo de maior poder de intervenção porquanto ao tempo que reforçam o
alcance da ajuda mútua, dilatam os horizontes da ação operária aliando às questões do cotidiano as lutas mais
amplas por melhores salários e condições de trabalho. Mas logo este mesmo aperfeiçoamento leva o
movimento ao alcance de um estágio mais avançado, quando a fusão da ação dos trabalhadores com a dos
intelectuais críticos socialistas do capitalismo desemboca na criação dos partidos operários. Com estes
partidos os trabalhadores elevam suas lutas ao plano mais geral do próprio Estado burguês, ao qual vão
reivindicar diretamente por meio de seus representantes no Parlamento leis de defesa de direitos do trabalho,
de observância obrigatória pelo Estado como pelo patronato. A classe trabalhadora impõe assim mudanças
nas suas relações com o capital que terão efeito direto nas formas gerais da organização da oi existente, a
começar pela organização do Estado burguês.
No campo do capital também ocorre em paralelo ao do trabalho urna sucessão de mudanças. Por força
da própria competição, as diversas em presas pequenas e médias que compunham a estrutura do capitalismo
concorrencial estão falindo ou simplesmente se fundindo para originarem uma nova estrutura composta de um
número pequeno mas poderoso de grandes empresas. Requerendo meios infra-estruturais e de mercado de
maior escala, os novos interesses monopolistas começam a conflitar com o uni verso acanhado da infra-
estrutura e de mercado que servira ao empresariado de até então, levando-os a se voltarem para o Estado.
Interessa-lhes uma nova base territorial de transportes, produção, circulação de produtos e consumo, que só
vem com investimentos em grande escala. Olhando ao redor, localizam num Estado ampliado a fonte geradora
dessa nova base. Passam assim a requerer uma nova forma para o Estado, que tome para si essa tarefa do
arranjo dos grandes espaços, que organize as demandas de infra-estrutura e de livre movimento do capital
desde a base local até a mundial.
Tanto do lado dos trabalhadores como do lado do capital partem os sinais que evidenciam a necessidade
da transformação do Estado. Mas a nova forma que este deve assumir é entendida de modo diverso,
antagonicamente até.
Ao atingir seu nível da organização partidária o movimento operário adquire um poder inusitado de
ação, mas paradoxalmente divide-se neste momento em duas grandes correntes. Uma que vê na sucessão de
reformas legalmente aprovadas pelo Parlamento o modo de realizar-se a construção de uma forma justa de
sociedade. Outra que vê na desmontagem do Estado burguês e sua substituição pelo poder dos organismos dos
trabalhadores o caminho concreto de efetuar-se esta construção. O socialismo é a ideologia reclamada por
ambas, mas estas duas correntes se posicionarão opostamente diante do problema do Estado burguês: a
primeira corrente deságua como os monopólios na reforma que converte o Estado liberal no Welfare State e a
segunda na revolução russa de 1917. Assim, no século xx surgem duas distintas formas de Estado: a do
Welfare State e a soviética.
O Welfare State é portanto a resultante da união de duas forças sociais que colidem mas acabam por se
encontras num ponto comum. Interessa a uma fração do movimento dos trabalhadores um Estado que realize
suas demandas sociais. Incomoda aos monopólios tanto os estreitos limites institucionais do capitalismo
concorrencial quanto o crescente poder orgânico e ideológico de ação do movimento operário. Se a cultura de
classe gerada pelo mutualismo e ainda mais reforçada pelos organismos sindicais representara para o capital
uma forma de questionamento da ordem burguesa, o surgimento do pai-tido operário e agora da revolução
operária traz a gravidade da ameaça do seu fim na história. Por isso, incomoda-o sobretudo o rumo que o
desdobramento da crise do capitalismo segue na Rússia com sua tendência a difundir-se pelo continente.
Converge-se assim para a substituição do Estado Liberal pelo Estado que intervém e toma como tarefa sua a
questão econômica e social.
Desse modo, a regulação estatal aparece para substituir a regulação mercantil. É que instrumentada nas
regras espontâneas do livre jogo das trocas a regulação mercantil mostra-se impotente para responder por si
mesma tanto às demandas sociais dos trabalhadores quanto às demandas de infra-estrutura das novas
empresas capitalistas. O novo Estado irá assim conjugar a velha tarefa de criar nos planos judicial e policial-
militar as condições gerais que reproduzam o capital e a nova tarefa de crias noutros planos as condições que
gerem o capital. As demandas sociais dos trabalhadores são então direcionadas para a geração do capital
variável via uma espécie de salário indireto na forma da escola publica medicina publica seguridade social
etc. e as demandas infra-estruturais de grande escala do capital monopolista o são para a geração do capital
constante, via implantação de redes de transportes sistemas de energia etc. Mas estes monopólios vão ter que
conviver com o fato de que o capital já não faz a historia como ate então fizera Por isso a nova forma do
Estado vai refletir em sua estrutura e tarefas tanto o novo poder do capital quanto a nova fase em que o
movimento da classe trabalhadora entra no século xx com sua capacidade organizada de ação.
Mas esta nova forma do Estado capitalista não surgira de imediato Ela vai sair dos turbulentos anos de
guerra recessão e repressão como uma espécie de síntese das experiências do planejamento soviético, do new
deal americano e dos governos autoritários europeus. A partir da década de 30, pois.
A infra-estrutura requerida pelo capitalismo dos monopólios só pode existir na escala da sua
mundialidade. O Welfare State é assim a fase da paulatina mundialização do processo produtivo capitalista
que encerra a velha fase de relação puramente colonialista.
Mundializar o capitalismo com suas próprias relações de produção nos quadros da economia imperante
nas décadas iniciais do século xx pressupõe antes de mais nada implantar em cada canto atrasado as condições
mínimas requeridas para tanto. Num mundo dividido em países industrializados e não-industrializados como o
de então, isto significa o maciço investimento que abrevie nos países não-industrializados os longos anos que
os países industrializados consumiram com a acumulação primitiva, incluindo-se as experiências científicas e
técnicas que desembocarão na revolução industrial. A finalidade é obter a baixa do custo de capital e a alta da
produtividade do trabalho que resultem na taxa de mais-valia mais compatível com a alta taxa de acumulação
sem a qual a mundialização não compensa. A fórmula parece simples: para a formação do capital variável,
significa realizar o deslocamento maciço e controlado da força de trabalho alocada na monoprodução para seu
amontoamento nas cidades como exército de reserva e a transformação de suas demandas sociais de educação,
saúde e seguridade social, transportes urbanos, habitação e lazer numa política de reprodução a baixo custo da
força de trabalho que valham como salário indireto para que o patronato, tal como aprendera nas suas lutas
contra o trabalho no capitalismo adiantado, pague salários reais baixos mas sem prejuízo do mercado de força
de trabalho; já para a formação do capital constante, tanto o fixo quanto o circulante, significa o investimento
maciço em vias de transporte, sistema de telecomunicações, usinas de energia, refina rias de petróleo,
indústrias siderúrgicas, com que se integrem todos os cantos do território nacional no roteiro da
industrialização, incluindo-se a modernização da agricultura que libere excedentes de força de trabalho e pro
dutos em volume crescente para o desenvolvimento da indústria. Tudo isso com recursos tomados ao público
por meio de um sistema indireto de tributação (o sistema de repasse do imposto ao preço das mercadorias,
cujo fim de linha são os próprios trabalhadores), seguindo a política que irá tornar-se clássica nesses países de
“socializar os custos para os fins da acumulação privada”.
Tal é o que vemos acontecendo em todo o mundo ao longo do período dos anos 30 aos anos 80, limites
com que se inicia e se conclui a expansão capitalista que muda a face planetária.
Hoje, não por acaso, o capital clama pelo retorno ao privado e à regulação mercantil. Exige do Estado a
privatização das empresas que este foi instalando neste e naquele setor país a país para cumprir sua tarefa de
construir o capitalismo em escala mundial e que se retire da esfera econômica deixando-a como área de ação
exclusiva da empresa privada.
E o neoliberalismo. Uma metáfora talvez nos ajude a aclarar a sua lógica. Imaginemos um escultor com
um cinzel na mão e diante de um bloco informe de pedra sabão, Aos poucos o escultor vai dando à pedra
contornos definidos de um corpo: aqui aparecem os dedos das mãos, acolá as pernas e os pés, mais adiante os
traços de um rosto, até que por fim aparece o corpo inteiro. O escultor é o Estado, o cinzel são os recursos
retirados do público e investidos em infra-estrutura e serviços sociais, e o corpo é a sociedade capitalista
industrial. Enquanto o capitalismo engatinhava a caminho da sua industrialização o empresariado protestava
contra o que acusava de intromissão do Estado no livre funcionamento da economia de mercado. São críticas
que entretanto se desfazem diante das taxas gerais de lucro que, tal como reza a cartilha do keynesianismo, a
ideologia do Welfare State, é justamente a intervenção planejada do Estado quem propicia. Mas por volta dos
anos 70, concluída para a maioria dos países esta fase histórica de sua transformação capitalista, então já
construído o capitalismo no seu todo e faltando apenas alguns arremates essenciais para terminar, como a
reforma agrária e a menor desigualdade da repartição da riqueza social, que estabilizem o mercado e as
tensões sociais internamente, a grande empresa privada capitalista sente que já pode andar com suas próprias
pernas e então declara cumprido e cessado o papel do Welfare State, proclama em cada país recém-
industrializado a sua maioridade perante o Estado, e pede o fim dos seus dias exigindo que este transfira para
si o patrimônio acumulado e construído com recurso público.
É assim que surge o neoliberalismo, para fundamentar, com a rudeza das transparências que só não vê
quem não quer, esta rapinante surrupiaçao privatista de um patrimônio construído com o suor dos
trabalhadores. Condenando o que chama de gigantismo estéril do Estado do Bem-Estar-Social e acusando-o
de descapitalizar e asfixiar a empresa privada, o neoliberalismo apresenta-se como o portador das medidas
reparadoras do “equívoco histórico” capaz de restaurar a livre economia de mercado. A primeira medida que
apresenta é a redução fiscal, tomada como a medida recapitalizadora e desasfixiante que devolverá às
empresas a iniciativa e liberdade de criação bloqueadas pela regulação estatal. Mas esta medida, afirma-se, só
cumpre sua função renascentista mediante uma segunda, que consiste em de volver pela privatização o
sistema econômico ao domínio da empresa privada. Por fim, a essencial medida da desregulamentação, que
retorne a sociedade amplamente ao sistema da regulação mercantil.
Pode-se ver que o neoliberalismo vem para operar a desconstrução do capitalismo do Welfare State. Seu
discurso consiste num repertório de contrapontos, um a um, a cada elemento da fórmula keynesiana.
Ponhamos ao avesso tudo que um keynesiano aponte como elemento edificador do capitalismo e teremos um
neoliberal. Se para o keynesiano é o investimento estatal o antídoto contra a paralisia do sistema capitalista,
para o neoliberal a intervenção estatal é exatamente a sua anestesia; se para o keynesiano o investimento
estatal é a fonte geradora do pleno emprego, da distribuição da renda e do impulso ao consumo, para o
neoliberal é ele pura fonte de burocratismo estatal e de espiral inflacionária que só o investimento priva do
desfaz e reverte. E se para o keynesiano é a regulação estatal quem pode garantir a paz social e a conseqüente
fluidez do sistema, para o neoliberal estas situações ideais são intrínsecas somente à regulação mercantil.
Redução fiscal, privatização, despatrimonialização, desregulamentação, tal é o perfil do Estado neoliberal.
A crise do capitalismo em nosso tempo é mais profunda que as do passado porque entrou em crise a
própria cultura técnico-científica que a sociedade moderna tem por sua raiz. Sob o nome sutil de crise
ambiental esta crise está afetando a sociedade inteira.
Vimos que a sociedade moderna tem sua base orgânica na cultura da técnica fabril que transborda da
fábrica e se difunde para a sociedade como um todo para converter-se na ordem social do conjunto.
Esta cultura é a cultura da repetição.
A LÓGICA DA REPETIÇÃO
A repetição é o cíclico movimento disciplinar do trabalho monotonamente reproduzido dentro da fábrica
e da administração alicerçada na operação contábil. É o cotidiano dos eternos ciclos da vida: acordamos,
saímos para o trabalho e voltamos para casa ao final do dia sabendo que este dia repetir-se-á exatamente do
mesmo modo no dia seguinte.
Nem sempre todavia a sociedade se organizou dessa maneira. A nossa sociedade moderna é que tem esta
característica. Há uma razão para isso. E que a repetição organiza o controle, do processo produtivo às
diferentes relações de classes. Pela repetição pode-se controlar os custos da produção nas fábricas seu volume,
ritmo, velocidade do modo que se queira. E por ela pode-se modelar a estrutura das instituições como controle
social regular, a exemplo da lei e do Estado.
Mas o motivo mais profundo de a repetição ser a base de todo o sistema industrial é a razão mercantil.
Mercado é competição e competição implica regularidade. Sem repetição não há a regularidade da
competição e então não há mercado. Não há sociedade de classes. Não há capitalismo.
Não é a primeira vez na história que uma sociedade se organiza com base nas relações de mercado. A
sociedade escravista da Antiguidade era mercantil. E se analisarmos de outra maneira diferente da corrente,
veremos que a sociedade feudal também o era. Mas foi a sociedade capitalista que levou a ordem mercantil a
engravidar a totalidade social desde o dia-a-dia do nosso cotidiano. O segredo é o mecanismo da repetição.
Nosso sistema econômico é repetição pelo motivo simples de a produção mercantil requerer o controle
disciplinar do trabalho. A nossa ordem econômica é repetitiva para que a produção e a competição possam
interagir: o mercado possa organizar a produção e a produção regular-se pelo fundamento da ordem
econômico-social capitalista.
De modo que a lógica da repetição é a necessidade da regularidade, porque é pela regularidade que o
sistema como um todo pode se organizar e funcionar em caráter perpetuo.
A REPETIÇÃO MECÂNICA E A INVENÇÃO TÉCNICA DA NATUREZA
A repetição é uma das fontes da contradição do mundo moderno. É que olhando para o mundo o que
vemos não é a repetição, mas a diferença. Cada pessoa que vemos é diferente da outra. Cada lugar, cada
objeto, cada momento do tempo. A realidade do mundo não é a repetição e sim a diversidade. Mas a realidade
da organização de nossa sociedade moderna é a sujeição da diversidade à repetição. E a tendência da repetição
é modelar a vida como um padrão uniforme, embora a vida antes de repetição seja diversidade e assim
negação do padrão único. Sobre a base dessa contradição entre a diversidade e a repetição ergueu-se o mundo
moderno.
Mas esta contradição que está na base da nossa sociedade moderna não foi inventada pela nossa
sociedade. Se ela é assim, é porque de alguma forma corresponde à realidade objetiva.
Nosso mundo realmente tem o seu quê de repetitivo. Cada vez que solto um objeto no ar, ele repete
sempre o mesmo movimento de queda. Conhecemos esse fenômeno: é a Lei da Gravidade. Já na Antiguidade
os gregos haviam notado que o mundo segue um ciclo: a toda noite sucede o dia e a todo dia sucede a noite;
as estações também ciclicamente se repetem; o homem nasce, cresce e morre; nasce um novo homem para
que o ciclo da vida humana se repita permanentemente. Mas ao lado da repetição os gregos também
perceberam que o mundo é diversidade. Tanto assim que a Filosofia nasceu em face de uma pergunta
suscitada pela constatação des ta contradição do mundo: como pode o mundo ser ao mesmo tempo repetição e
diversidade, padrão e diferença?
Olhando o mundo os gregos perceberam que por dentro da diversidade havia a unidade, unificando-a
numa totalidade. A repetição assim se combinava dialeticamente com a diversidade. Temos aí a velha
dialética de Heráclito, que vai sendo retomada no tempo por diferentes pensadores, até chegar à modernidade
com Kant, mas sobretudo com Hegel.
Se então a nossa sociedade tem na estrutura da sua organização simultaneamente a repetição e a
diversidade é porque encontram-se elas objetivamente no mundo. Portanto a contradição da nossa sociedade
moderna é uma contradição da própria realidade objetiva. Sucede, no entanto, que a história da construção da
sociedade capitalista teve o intuito de fazer da repetição a normalidade e da diversidade a anormalidade,
quebrando e dicotomizando a relação dialética entre elas existente com o objetivo claro de fazer prevalecer
sobre a diversidade humana o interesse repetitivo da reprodução capitalista.
O ponto de partida dessa dissolução da diversidade no filtro da repetição é o enquadramento da natureza
num molde técnico mecanicista e ma temático. Por isto, a história da construção do capitalismo coincide com
a história da redução da natureza pela ciência moderna a uma natureza física. A natureza é o regularmente
repetitivo, mecânico e matemático, diz Galileu Galilei na origem da formação da cultura técnico-científica
moderna; tudo, mesmo que seja diverso, mas desde que não se comporte em termos matemáticos, diz, não é
natureza e não faz parte da natureza. Ora, como só o que é regularmente repetitivo condiz com a intenção
técnica, reduz-se a natureza ao fim técnico e dela exclui-se a diversidade, o seu caráter diverso, e assim se
constitui uma idéia de natureza exclusivamente fundada na repetição.
Aquilo que acontece com o movimento da Terra é o que se passou a considerar a partir do Renascimento
como o comportamento padrão da natureza. E do Renascimento ao Iluminismo esta idéia da natureza foi
apenas se aperfeiçoando, referenciando a idéia que hoje temos de organização do mundo como ordem
gravitacional.
O objetivo é a criação do mundo como campo de forças de ação centrífuga e centrípeta se resolvendo
num movimento cíclico. Portanto um mundo em tudo semelhante a uma máquina, com seu vaivém de subida
e de descida, seu deslocamento de peças para um canto e para o outro voltando sempre ao mesmo ponto de
partida, numa regularidade de repetição constante.
A REPETIÇÃO MECÂNICA E A ORDEM SÓCIO-CULTURAL
Do movimento dos astros no sistema solar passa-se ao movimento das matérias-primas nas fábricas, e
dos homens na sociedade, o mundo é assim convertido num só: aquele ordenado pela Lei da Gravidade.
Aqui, a idéia da repetição natural desemboca na idéia da ordem social. Se a repetição é a incansável
rotina do ciclo, há que haver algo que tenha força suficiente não só para promover seu movimento, mas
também para dirigi-lo ordenadamente. Algo que tenha a força suficiente para fazer que as coisas que tendam a
ir voltem, e depois deixe-as irem de novo para então puxá-las de volta, num eterno ciclo de repetição. Por isso
o sistema solar virou o modelo de referência da organização tanto da ordem física como da ordem social: o sol
é o centro dos planetas, assim como o pai o é da família, o professor da sala de aula, o presidente do país, deus
do cosmos.
Evidentemente que o capitalismo não inventou a cultura da repetição. Ele a herdou de toda uma
evolução histórica que vem desde o escravismo antigo. A cultura da repetição faz parte da velha tradição
cultural da metafísica, segundo a qual há algo no mundo que é sempre universal, sempre constante, na
composição da ossatura do mundo. Algo que está onipresente em cada detalhe do diverso, agindo para
padronizá-la sob um arcabouço eterno, a exemplo da relação do uno e do múltiplo dos criadores da filosofia.
Mas na modernidade, expressando um pacto estabelecido des de o Renascimento entre a ciência e a religião,
sob o olhar rigoroso da metafísica, foi ela reinventada para os fins próprios de organizar o mundo do
capitalismo. Na sociedade moderna esse algo é a repetição matemático-mecânica porque sua função é aqui a
de assentar a base técnica da reprodução capitalista.
Assim, o capitalismo não inventou a repetição, a diversidade, e a contradição que há entre elas;
reinventou-as, para dar-lhes um novo molde, o molde capitalista, do mesmo modo como fez com os seres
humanos, reinventando-nos para dar-nos o molde social que hoje concretamente somos.
E o capitalismo pode fazer isso porque o homem é um ser cultural, dando-nos às vezes a impressão de
primeiro nascermos no mundo dos símbolos para só depois irmos para o mundo da psicologia, estando nossa
essência humana muito mais para a semiologia que para a fria razão matemática. Não é por acaso que nossa
primeira idade é a idade da fantasia, e não a da lógica pura. E a fantasia que nos vai suscitando a indagação
lógica, embora assim não nos pareça porque nossa cultura da repetição mecânica, a cultura moderna por
excelência, racionalista, concebe a fantasia como o oposto do real, como a fuga ao real, quando a fantasia é o
sonho da construção utópica de um mundo com sabor dos nossos desejos.
É que o capitalismo constrói o nosso mundo como mundo dos seus desejos. De que maneira? Filtrando a
diversidade do mundo objetivo que vivemos pelo filtro da repetição físico-mecânica. Mas com qual intenção?
A de nessa filtragem organizar o mundo com base na repetição mecânica, para, então, depois de o mundo já
assim se encontrar, restabelecer a diversidade como diversidade interna da repetição mecânico-matemática.
Um ardil bem arquitetado.
Para tanto, bastou aos “intelectuais orgânicos” do capitalismo observarem que os objetos movem-se no
espaço segundo leis mecânico-matemáticas, para, numa sumária simplificação, reduzir o mundo como um
todo a este movimento único, e sob esta base nele intervir tecnicamente.
O grande veículo dessa construção foi a revolução industrial do século XVIII-XIX. Não por acaso o
estuário onde deságua a natureza reduzida à repetição mecânica. Foi a revolução industrial o acontecimento
histórico consolidador por excelência do mundo como ordem capitalista.
É com a revolução industrial que a repetição gravitacional se transpor ta definitivamente da astronomia
para transfigurar-se no centro da ordem social. Nascida parametrada na fábrica, a ordem social capitalista nos
mo dela sob a diversidade centrada gravitacionalmente no poder deste sol que é o capital.
O problema é que com isso o capitalismo reuniu em si mesmo todas as contradições que o mundo
acumulou na sua longa evolução histórica. Por que ao reinventar a contradição naturalmente existente entre a
repetição e a diversidade nos termos da sua ordem social, fez da diversidade de suas classes o boomerang que
contra ela se volta como ordem de repetição: aqui, é um capitalista competindo com outro capitalista; acolá, é
o trabalha dor conflitando com seu patrão por uma forma mais justa de repartição da riqueza social, riqueza
produzida pela classe trabalhadora, mas como mundo orbital da força centrífuga do capital. Persiste assim a
contradição da diversidade com a repetição, manifestada agora como contestação de uma repetição que é a
própria ordem burguesa.
A MUNDIALIZAÇÃO DA REPETIÇÃO CAPITALISTA
É esta contradição da repetição capitalista que faz o capitalismo, tal como as forças do “Efeito Doppler”
com o universo, expandir-se pelo espaço planetário até torná-lo a ordem mundial de nossos dias.
Impulsionado pelas contradições de suas próprias forças sociais, o capitalismo mundializou-se rapidamente,
tornando universais, em menos de um século, problemas que são seus.
A cultura da repetição toma-se mundial. É que a expansão do capitalismo submeteu o mundo a uma
economia política viciada na cultura científico-técnico enraizada no consumo de forças naturais baratas como
meio de equacionar seus conflitos de produção. Trata-se de uma economia política que à semelhança da física
faz o sistema econômico assemelhar-se a um campo de forças, movido pela competição. Para realizar-se, a
competição depende de um constante rebaixamento de custos e elevação da produtividade, e, portanto, do
aperfeiçoamento do padrão tecnológico. A lógica é gerar a elevação da produtividade. Esta elevação é
perseguida por cada capitalista particular, que dela depende para recuperar as taxas de lucro e de acumulação
do capital sempre sujeitas à pressão, seja da classe trabalhadora em sua luta por melhores salários e seja por
outro capitalista em sua disputa pelo domínio do mercado. Como a elevação da produtividade num Setor é
logo copiada pelos demais, assim se estabelecendo a generalização que nivela o sistema econômico no seu
todo, a competitividade retoma o seu ciclo, reiniciando-o sempre. Uma vez que o consumo sempre renovado e
amplia do implícito no processo cíclico só é possível pelo acréscimo de novos espaços, a expansão territorial
do capitalismo é a condição desse ciclo não colapsar, levando o sistema capitalista rumo a uma mundialização
incessante. Duas características adquire em conseqüência essa economia política em nosso tempo: o nível da
mundialidade e o da alta concentração técnica.
A CRISE DITA AMBIENTAL: O LIMITE DO PARADIGMA DA REPETIÇÃO
Esta escalada é visível a partir dos anos 50, quando por tudo que é canto que se ande ver-se-á
multiplicando-se uma mesma paisagem geográfica: a dos grandes complexos industriais e urbanos
circundados por imensidões de áreas agropecuárias cada vez mais submetidas à mecanização.
E a escalada do desastre: o mundo diverso dos ecossistemas está sendo reorganizado planetariamente
segundo a uniformidade férrea do padrão repetitivo da cultura científico-técnica do capitalismo. Assim, a
diversidade subordina-se por inteiro a um único padrão técnico de organização, homogeneizando as
formações vegetais pelos cultivos especializados, envenenando as águas, erodindo os solos, assoreando os
rios. A padronagem heterogênea dos grandes espaços naturais desaparece diante da homogeneidade imposta
pelos padrões mecânicos em rápida propagação pelas mais diferenciadas áreas rurais do mundo.
Por isso o mundo de nossos dias é o mundo da repetição capitalista se difundindo através da
homogeneização do planeta na sua tecnologia de grande escala territorial. Repetição que modela
mundialmente sob um único padrão nosso modo de vida: um mesmo padrão de roupa, de escola, de livro, de
seriado de televisão, de política econômica (atualmente a neoliberal).
Por isso mesmo, paradoxalmente este momento de auge do capitalismo é o de sua maior crise: a
diversidade reage contra o padrão único como as águas contidas por uma represa.
E esta crise se exprime ambientalmente pelo simples fato de a cultura técnico-científica planetarizada ter
por traços básicos características que conflitam com as da natureza: a cultura técnico-científica é um padrão
uniformizante e não auto-regenerativo quando a natureza que esta técnica transforma é pelo contrário
diversamente padronizada e auto-regenerativa. Exemplifiquemos: quando se sofre um corte no corpo ou
quando se derruba um trecho da mata amazônica, por mais tempo que leve a natureza se regenera por si
mesma; mas a máquina devasta e não traz consigo congenitamente a mesma possibilidade da auto-
regeneração natural, só a possibilidade da irreversível destruição.
O PARADIGMA DA REPETIÇÃO E A CONTRADIÇÃO ENTRE A TÉCNICA E A NATUREZA
É assim que a destruição da natureza diversa e auto-regenerativa denuncia ao mundializar a cultura
técnico-científica as contradições congênitas da ordem capitalista.
Esta contradição entre a técnica e a natureza não é de agora. Na verdade, existe desde que existe o
capitalismo, porque lhe é congênita. Mesmo quando o capitalismo limitava geograficamente sua ocorrência
aos diminutos espaços industrializados da Europa Ocidental, do Japão e dos Estados Unidos, já o efeito
ambiental era danoso. A literatura de ficção, como os romances de D. H. Lawrence, está repleta de descrições
de ambientes devastados pela tecnologia inventada pelo capitalismo e não por acaso os romances ingleses
passaram a designar as áreas industriais da Inglaterra de “regiões negras”. Mas enquanto esta destruição
ambiental restringia-se àquelas poucas áreas, o próprio âmbito maior do planeta se incumbia de amortecer-lhe
os efeitos. Ao mundializar-se e ampliar em sua abarcagem a própria heterogeneidade planetária, a
transparência da contradição veio à tona. O mundo inteiro virou uma região negra, quando a epiderme inteira
do plane ta se viu exposta à repetição mecânica.
A grande contradição de nosso tempo é que há cada vez menos área ainda não transformada em “região
negra”, levando a capacidade de a repetição mecânica responder às demandas da expansão capitalista ao
esgotamento.
Durante muito tempo os geógrafos advertiram para o conteúdo físico-técnico do nosso conceito de
recursos naturais, um conceito vazado na re petição mecânica. O balanço da abundância ou escassez de dado
recurso, observam, faz-se por uma leitura literalmente orientada pelo estômago des se artefato gerado pela
Física chamado máquina. A tal ponto que a escassez de um recurso resolveu-se até agora com a criação da
tecnologia apenas reguladora do seu consumo e o estoque resumiu-se a uma questão de evolução da
tecnologia. Não se deu ouvido aos geógrafos.
Enquanto a periferia territorial do capitalismo favoreceu, este paradigma mecânico não foi posto em
balanço. Até que um dia atingiu-se o limite do horizonte de novas áreas. Então, percebeu-se que havia um
limite para a continuidade da expansão do capitalismo e que este limite real não era o físico-geográfico, mas o
congênito do próprio paradigma de cultura técnico-científica que tem por base.
Entre um momento e outro, a ciência criou dois meios de controle do problema surgido: de um lado, a
classificação dos recursos em renováveis e não-renováveis além de esgotáveis e inesgotáveis, de grande
utilidade gestora, e de outro o conservacionismo, que cedo evolui para o ecologismo e para o ambientalismo,
de maior poder de ação que os mecanismos de pura administração. Seja como for, o esquema de classificação
serviu para mensurar o que já estava evidente: que em sua estratégia de custo—produtividade eram
justamente os recursos não-renováveis e esgotáveis que o capital vinha consumindo em maior conta. E o
movimento de conscientização sobre o meio ambiente serviu para preparar os ambientes político e intelectual
para a denúncia dos males do paradigma mecânico-matemático e a necessidade de sua superação.
Assim, chegou-se à descoberta de que o limite real da expansão do capitalismo está localizado dentro do
ardil da repetição mecânica, como desde o século XVIII-XIX denunciam os críticos socialistas.
O RETORNO DA DIVERSIDADE
Com a crise do paradigma vem a redescoberta da diversidade. E o resgate da diversidade traz a
reafirmação da diferença como realidade de mundo.
Ao invés de um padrão geral, do qual a diversidade seria a mera diferenciação do mesmo, a realidade do
mundo é essa diversidade sem a sobreposição repetitiva.
Foi o sistema de classificação criado pela ciência comprometida com a afirmação do primado da
repetição que cristalizou em nossa cultura essa idéia da diversidade como mera diferenciação interna da
repetição. Mas este sistema taxonômico reafirmador do mundo como repetição vem sendo questionado no
próprio âmbito da ciência desde o nascimento da moderna Biologia no século XVIII-XIX.
A Biologia introduz uma nova forma de compreender a natureza. Pela primeira vez prova-se
empiricamente que a Lei da Gravidade, embora real, não é a única nem mesmo a forma fundamental de
movimento dos fenômenos naturais. Ao lado do movimento cíclico do movimento mecânico e com o mesmo
grau de determinação sobre os fenômenos encontram-se o movi mento da conservação da energia próprio da
Química e o da transformação dos seres em seres novos e diferenciados próprio da Biologia. Por isso, uma
coisa é a semelhança e outra a diferença, estabelecendo-se nessa distinção a reconceituação da repetição e da
sua relação recíproca com a diversidade. Por mais semelhança que haja entre dois objetos ou dois seres não
são eles a mesma coisa. O padrão tem a ver com a semelhança e não com a diferença. Tais são as novas
noções que a Biologia introduz no plano das idéias científicas. Dessa forma, a idéia do ciclo vai cedendo lugar
à idéia da espiral como idéia geral do movimento.
O sucesso da revolução industrial do século XVIII-XIX, um movimento fundado na repetição mecânica,
já sedimentara entretanto nossa cultura nas velhas noções de natureza geradas pela Física clássica, firmando a
revolução industrial a noção de progresso tão cara à ordem burguesa.
Por todo o correr do século XIX-XX este paradigma cultural não só consolidou-se como se firmou em
todos os campos do saber humano como realidade global de mundo. Da Física à Economia e à Sociologia o
mundo ganhou a cara da repetição e da diversidade paradigmática.
Seu poder de generalização se espraiou tanto e tão fortemente que até mesmo as novas noções trazidas
pela Biologia caíram sob sua influência, desembocando no evolucionismo.
Só quando o cisma se deu dentro da própria Física, com o surgimento da Física Relativista primeiro e da
Física Quântica a seguir é que o abalo se deu com mais força. Mas estamos nos anos 30 do nosso século e a
mundialização do capitalismo mal entrou na sua marcha final.
A progressão da Física Quântica no sentido da Biologia molecular e dessa no da Engenharia Genética
tornara todavia tão irreversível a nova tendência, que a crise da mundialização acabou por parecer não mais
que apenas uma gota d’água.
Por isso, foi preciso esperar um século mais para com o esgotamento do paradigma cartesiano-
newtoniano vermos vir à tona com toda sua transparência a dialética da diversidade.
BIODIVERSIDADE E O NOVO PARADIGMA DE TÉCNICA E DE NATUREZA
Falar em diversidade é dizer que o movimento da natureza não segue a forma circular típica do
paradigma físico-mecânico, mas sim o espiralado da reprodução por diferenciação da vida, que é próprio das
ressintetizações biológicas.
Ao invés de uma natureza dividida em inorgânica, orgânica e viva, te mos um movimento em que ora o
que temos é a natureza em forma inorgânica e mais adiante esta mesma natureza transfigurada em forma
orgânica por meio da fotossíntese, para mais alem, pela respiração, remineralizar-se e voltar à forma
inorgânica, recompondo a base para novo ciclo de síntese da matéria viva, numa recíproca transformação
abiótico-biótico sem fim. Assim, o que era há pouco mineral, agora são os sais do nosso organismo que daqui
mais para adiante readquirirão a forma mineral, num movimento tão diferente do físico-mecânico que as
máquinas nele inspiradas seriam inca pazes de reproduzir.
Estruturado para pôr em movimento uma natureza estruturada na lei da gravidade, a cultura técnico-
científica estreita-se agora diante dos próprios novos conhecimentos científicos trazidos pela evolução da
Física, da Química e da Biologia, bem como da Engenharia Genética das últimas décadas, mas também por
isso mesmo se vê perante a possibilidade histórica concreta de ser superada por uma nova cultura.
A velha lei da gravidade curva-se diante da nova lei do desenvolvimento por diferenciação. E, assim, o
velho conceito de repetição inclina-se perante o novo conceito de diversidade.
EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA DE REPETIÇÃO UNIVERSAL
Até os anos 80 o problema da crise paradigmática foi detectado desde a área técnica, com as denúncias
de envenenamento do meio ambiente e dos alimentos pela agrônoma norte-americana Rachel Carson em seu
livro A primavera silenciosa, até a área epistêmica, com as críticas à modernidade de filósofos como Jean-
François Lyotard em seu livro O pós-moderno e Deleuze—Guatari em suas diferentes obras. Reforça este
universo de crítica a adesão de intelectuais que, desencantados com a decomposição do “socialismo real”,
deslocam sua ação para o campo da denúncia ecológica. Faltava todavia alguma coisa universal a este estado
geral de crítica. E este algo vem, pela apropriação das denúncias dos seringueiros ao avanço do latifúndio
moderno na Amazônia, dando-se ao discurso florestal o valor universalizante que a ideologia ecológica
buscava.
Remetendo em linha direta à problemática da pesquisa e industrialização dos códigos genéticos, o
discurso florestal abre a era da nova cata à natureza deste final de século XX.
Diante de um quadro minimamente arrumado no campo epistêmico (um novo discurso filosófico de
natureza) como no campo técnico (novas tecnologias com novas bases científicas) precipita-se a reinvenção
paradigmática.
Até anos recentes o discurso econômico pautava-se pela falsa contradição entre o crescimento
populacional e o estoque dos recursos. Sob essa fórmula malthusiana enfatizava-se um limite matemático dos
recursos planetários frente às necessidades da população. Para este discurso havia um limite para a nossa
evolução histórica e este era um limite físico-geográfico. A reconceituação da repetição e da diversidade, e
então da sua dialética interativa, desloca o problema do limite da natureza secularmente concebi da no campo
físico-mecânico deste para o novo campo aberto pela biologia molecular. O limite deixou de ser assim natural,
para ser cultural, O planeta não tem limite, porquanto a limitação está no âmago do conceito paradigmático de
natureza. O limite não está nos recursos do planeta e sim na estreiteza do conceito de natureza e de recurso
natural da nossa cultura técnico-científica mecânica, no caráter cartesiano-newtoniano que o capitalismo criou
a partir do Renascimento de combinação entre a repetição e a diversidade, O paradigma é o limite.
BI0TECN0LOGIA E ENGENHARIA GENÉTICA: A NOVA REPETIÇÃO PARADIGMÁTICA?
Ora, tal paradigma nasceu com o intuito de estruturar o mundo como a ordem da repetição regularmente
constante desde a fábrica às idéias religiosas e coesionada pela regularidade das trocas. Por isso a
redescoberta da diversidade vem acompanhada de uma áurea de coisa subversiva. Em sua emergência,
contesta o padrão.
E, no entanto a redescoberta da diversidade aparece não mais que como uma reinvenção da repetição
para sob outras formas realizar os mesmos fins de padronizar a acumulação capitalista. O ponto de partida
dessa recriação da base material do capitalismo é o deslocamento da centração do paradigma técnico-
científico dos velhos conceitos físico-mecânicos de re petição e diversidade para os novos conceitos de
repetição e diversidade advindos do universo da Biologia, com o fito de reinventar-se a relação técnica do
trabalho.
Um primeiro aspecto se ressalta nesse trânsito paradigmático: a estratégia do tempo. O mundo foge
rapidamente da Física para a Biologia. Ou mais precisamente, caminha para o encontro da Biologia casada
com a nova Física, a Biologia Molecular, cujo fruto é a Biotecnologia. Há entretanto uma determinação de
tempo. É que toda a estrutura material das nossas sociedades objetifica a Física mecânica, isto significando
um volume extraordinário de capital fixo materializado na forma das máquinas desde as fábricas aos bancos e
às fazendas e isso em escala mundial. O capital necessita desmaterializar-se das máquinas para rematerializar-
se nos novos arte fatos que venham da biorrevolução e isto demanda tempo. E tempo é preciso ainda para que
a biorrevolução saia da fase da pesquisa para realizar-se tecnicamente. Quem vai pagar os custos dessa
estratégia de tempos?
Mas um segundo aspecto ressalta-se ainda: a reafirmação padronizante do trabalho. Durante todos esses
séculos da história da humanidade inicia da com o Renascimento a regularidade foi a categoria chave da
estrutura e organização da sociedade capitalista, e o fundamento dessa regularidade foi a repetição mecânica
objetivamente localizada na lei da gravidade. Pode- se dizer que de uma certa forma o capitalismo é o filho da
repetição mecânica, sem a qual ficaria inviabilizado todo o esquema da regulação, desde a mercantil à
jurídica, que o consolida como uma ordem social assentada na hegemonia da classe burguesa sobre a
sociedade como um todo a partir do controle fabril do trabalho da classe operária. Estaríamos assim diante da
pura reinvenção da cultura da repetição?
CULTURA TÉCNICO-CIENTÍFICA E LIBERDADE HUMANA
A organização do trabalho na forma de regras técnicas é fundamento da organização social em qualquer
sociedade passada e futura. Aperfeiçoando as estruturas sociais passadas, a sociedade capitalista alicerçou-se
sobre o padrão da repetição mecânica, resolvendo a favor do capital o problema da relação necessidade
—liberdade. O fracasso da experiência do socialismo soviético, sabemo-lo, tem entre suas raízes a reiteração
dessa estrutura paradigmática, que, em conseqüência, no limite, conservou e mais ainda reforçou as formas de
alienação do trabalho essencialmente capitalista dentro do corpo de uma sociedade que se pretendia socialista.
Sepultada no universo da leitura meramente técnica pela revolução industrial, a liberdade retorna à tona
hoje pelas frestas da redescoberta da diversidade. Todavia, em sendo uma reinvenção técnica da velha
subordinação da diversidade ao padrão filtrado de repetição, ontem o mecânico e hoje o biotécnico, a
biorrevolução tende a materializar em seus artefatos novos o velho artifício da repetição mecânica. Sob a
forma de uma nova ordem ou da ordem atual renovada visa-se manter a velha hegemonia de classe burguesa.
Já sabemos que a biorrevolução é a pesquisa exaustiva do segredo dos códigos genéticos e podemos
supor que em face disso os artefatos possam se pulverizar pelo infinito da biodiversidade, e assim engendrar
uma territorialidade mais plural. Por essa via estaríamos diante de um paradigma não-padronizante e auto-
regenerativo, compatibilizado com a diversidade real da vida no planeta. Entretanto, construída para ser a
nova base científico-técnica de uma economia congenitamente centrada na reprodução ampliada do capital, é
de se indagar até onde pode ir essa redescoberta da diversidade diante da regularidade que a reprodução
capitalista pressupõe.
Diante dessa reinvenção da contradição histórica entre a técnica e a natureza, o olhar de classe dos
trabalhadores indaga: para onde a reinvenção cultural da base técnico-científica tende a levar a sociedade,
para nova repetição padronizante ou para o livre curso da diversidade? Se não se põe em dúvida a necessidade
da superação da velha cultura técnico-científica, uma lição se pode tirar da velha história: o capitalismo não é
capaz de contemplar uma cultura da diferença com a liberdade humana que isso implica.