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Divorciados no século 20, precisam voltar. Do contrário, não será possível
superar nem o velho desenvolvimentismo, nem a mediocridade do
“capitalismo verde”
OUTRASPALAVRAS PÓS-CAPITALISMO
por Eduardo Mancuso Publicado 24/11/2017 às 20:28 - Atualizado 13/12/2018 às 14:09
Divorciados no século 20, precisam voltar. Do contrário, não será possível superar nem o velho
desenvolvimentismo, nem a mediocridade do “capitalismo verde”
A história pode ser vista por dois lados: ela pode ser dividida
Os dois lados, porém, não devem ser vistos como entidades independentes.
Ninguém denunciou tanto como Marx a lógica capitalista da produção pela produção, a acumulação
de capital, de riquezas e mercadorias como um fim em si. Sua ideia de sociedade socialista está
baseada na produção de valores de uso, de bens necessários à satisfação das necessidades humanas.
Para Marx o objetivo do progresso técnico não é o crescimento infinito de bens (“o ter”), mas a
redução da jornada de trabalho e o aumento do tempo livre (“o ser”).
Mesmo uma sociedade inteira, uma nação, enfim, todas as sociedades contemporâneas
tomadas em conjunto, não são proprietárias da terra. Elas são apenas ocupantes,
usufrutuárias, e devem, como bons paters famílias, deixá-la em melhor estado para as
futuras gerações.[4]
Assim, na obra magna de Marx sobre o capital vai surgir o conceito de metabolismo. A ideia
de metabolismo é absolutamente central para a concepção materialista-histórica de Marx, pois nela
o trabalho serve de mediador entre a existência humana e a natureza. Ele passa a definir, então, o
socialismo como o sistema social em que a dominação humana sobre a natureza é substituída pelo
controle (democrático) do intercâmbio do homem com a natureza:
[…] a única liberdade possível é a regulação racional, pelo ser humano socializado, pelos
produtores associados, de seu metabolismo com a natureza, que eles controlam juntos ao
invés de serem dominados por ele como por uma potência cega.[5]
O conceito de metabolismo permitiu a Marx não apenas expressar esta relação fundamental de
forma mais científica, retratando a troca complexa, dinâmica, entre os seres humanos e a natureza
decorrente do trabalho humano, que abrangia tanto as “condições impostas pela natureza” quanto à
capacidade dos seres humanos de impactar esse processo. Segundo o marxista norte-americano
John Bellamy Foster, esse conceito deu a Marx um modo concreto de expressar a noção de
alienação da natureza (e da sua relação com a alienação do trabalho), isto é, o desequilíbrio ou a crise
na relação entre a humanidade e seu meio ambiente natural: a falha metabólica.
Lowy afirma que a questão ecológica é o grande desafio para uma renovação do pensamento
marxista no século XXI. Ela exige dos marxistas uma ruptura radical com a ideologia do progresso
linear e com o paradigma tecnológico e econômico da civilização
industrialmoderna, reorientando o desenvolvimento humano, tornando-o compatível com a
preservação do equilíbrio ecológico do planeta.
Lowy propõe aplicar ao aparelho produtivo moldado pelo capital a mesma lógica revolucionaria que
Marx propunha em A guerra civil na França (1871), para o tema do aparelho de Estado: A classe
trabalhadora não pode se contentar em tomar a máquina do Estado e fazê-la funcionar por sua
própria conta. Por sua natureza e estrutura, o sistema produtivo (assim como o Estado) não é
neutro, os trabalhadores precisam superar o velho e construir algo novo, que realmente supere o
existente e atenda as necessidades das amplas maiorias e da relação da humanidade com o
ambiente natural.
O que implica não apenas a substituição das formas de energia destrutivas por fontes de
energia renováveis e não-poluentes como a energia solar, mas também uma profunda
transformação do sistema produtivo herdado do capitalismo, assim como do sistema de
transportes e do sistema de habitação urbana.[7]
Nesse sentido, o ecossocialismo significa uma ruptura com a civilização material capitalista, pois uma
nova sociedade exige não apenas um novo modo de produção, mas também um novo paradigma de
civilização:
O socialismo e a ecologia – ou pelo menos algumas das suas correntes – têm objetivos
comuns, que implicam questionar a autonomização da economia, do reino da
quantificação, da produção como um objetivo em si mesmo, da ditadura do dinheiro, da
redução do universo social ao cálculo das margens da rentabilidade e às necessidades da
acumulação do capital. Ambos pedem valores qualitativos: o valor de uso, a satisfação das
necessidades, a igualdade social para uns, a preservação da natureza, o equilíbrio ecológico
para outros.[8]
A maior contribuição da ecologia crítica tem sido a de alertar a humanidade dos perigos que
ameaçam o planeta em consequência do seu modo de produção e consumo insustentáveis. O
crescimento exponencial das agressões ao meio ambiente e as rupturas cada vez mais drásticas do
equilíbrio ecológico colocam em questão a sociedade humana, confrontando-nos com uma crise de
civilização, exigindo mudanças radicais.
Lowy considera o ecossocialismo uma corrente de pensamento e de ação política que incorpora as
aquisições fundamentais do marxismo. Para o movimento ecológico socialista,
Ele destaca que o movimento não é homogêneo, mas apresenta alguns temas e princípios comuns,
tendo como eixo central,
(a) ruptura com a ideologia produtivista do progresso – na sua forma capitalista e/ou
burocrática – e oposta à expansão ao infinito de um modo de produção e de consumo
destruidor da natureza, [nesse sentido] tal corrente representa uma tentativa original de
articular as ideias fundamentais do socialismo marxista com as aquisições da crítica
ecológica.[10]
O objetivo do socialismo ecológico significa subordinar o valor de troca ao valor de uso (superando o
“reino da mercadoria”), organizando a produção em função de necessidades sociais e da proteção do
meio ambiente. Construir uma sociedade ecologicamente racional fundada no controle democrático,
na igualdade, na propriedade coletiva dos meios de produção e em uma nova estrutura tecnológica
das forças produtivas.
Segundo Lowy, as reformas parciais são insuficientes (mesmo que seja importante lutar por elas,
aqui e agora), pois do que se trata é de substituir a racionalidade capitalista baseada no lucro por
outra forma de pensar – social e ecológica. Significa lutar para construirmos as bases de uma
transição socialista para uma civilização fundada em outro paradigma tecnológico, em fontes de
energia não poluentes e renováveis, como a energia eólica e solar.
E essa questão recoloca a tese fundamental de Marx: o controle social dos meios de produção.
Atualmente poderíamos dizer que se trata de escolhermos entre que parcela da população mundial
(e de que maneira) deve controlar a economia: de forma majoritária e democraticamente; ou
através da manutenção do status quo plutocrático. Os 99% de que fala o movimento Ocupe Wall
Street (e há mais de uma década, o FSM de Porto Alegre), ou o 1% dos ricos e poderosos do Fórum
Econômico Mundial de Davos.
A mudança radical necessária (ao mesmo tempo, revolucionária e democrática) diz respeito não
apenas ao controle social da produção, mas também ao consumo, isto é (continuando na lógica de
“99% da humanidade”) ao tipo de consumo atual que a maioria da sociedade está habituada,
baseado na alienação e no desperdício. Nesse sentido, para a construção de uma nova hegemonia e
de uma transição ecossocialista, a luta pela socialização dos meios de produção precisa andar passo a
passo com a ampliação e o aprofundamento da consciência ecológica.
Essa transição levaria a humanidade a um novo modo de produção e a uma sociedade igualitária e
democrática, fundada em um modo de vida alternativo. Porém, a crise de civilização atual chegou a
tal ponto que nos exige agir desde agora. O fato de ser cada vez mais evidente a impossibilidade de
“ecologizar” o capitalismo, não significa que não devamos buscar reformas imediatas do sistema.
O combate por reformas ecossociais pode ser portador de uma dinâmica de mudança, de
“transição” entre as demandas mínimas e o programa máximo, com a condição de que se
recusem os argumentos e as pressões dos interesses dominantes, em nome das “regras do
mercado”, da “competitividade” ou da “modernização”.[12]
Dois exemplos de demandas sociais imediatas, mas que apresentam características de
“reivindicações de transição” (na melhor tradição do Programa de Transição de Trotsky, que, na
década de 1930 denunciava o potencial de barbárie do capitalismo e de seus “subprodutos
ideológicos”, o fascismo e o nazismo) e que devem ser fortemente trabalhadas pela esquerda na
conjuntura atual: transporte público de qualidade, subsidiado (barato ou gratuito), como alternativa
a poluição e ao colapso da mobilidade nas cidades produzido pelo carro individual e por transportes
poluentes e inadequados; redução do tempo de trabalho sem diminuição da renda, como resposta ao
desemprego e como proposta de sociedade que privilegie o tempo livre em relação à acumulação
de bens.
Para Michael Lowy, o combate por uma nova civilização verdadeiramente humana e que respeite a
natureza é tarefa do conjunto dos movimentos sociais emancipatórios e antissistêmicos, que
precisam associar-se politicamente. Não há mais espaço e nem tempo para sectarismos. Ele destaca
essa necessidade imperiosa citando Jorge Riechmann, em seu El socialismo puede llegar solo en
bicicleta:
Esse projeto não pode renunciar a nenhuma das cores do arco-íris: nem ao vermelho do
movimento operário anticapitalista e igualitário, nem ao violeta das lutas para a libertação
da mulher, nem ao branco dos movimentos não violentos para a paz, nem ao
antiautoritarismo negro dos libertários e anarquistas, e ainda menos ao verde da luta por
uma humanidade justa e livre num planeta habitável.[13]
Nesse início de século XXI, a ecologia tornou-se um dos elementos mais importantes do vasto
movimento contra a globalização capitalista neoliberal, tanto no Norte quanto no Sul do planeta.
Socialistas e ecologistas devem estar unidos contra a mercantilização do mundo e na defesa do meio
ambiente, resistindo à ditadura do capital (através dos mercados e das multinacionais) e
construindo alternativas sociais, democráticas e sustentáveis à crise de civilização produzida pela
globalização e o imperialismo.
O combate para salvar o meio ambiente, que é necessariamente o combate por uma
mudança de civilização, é um imperativo humanista, que diz respeito não apenas a esta ou
àquela classe social, mas ao conjunto dos indivíduos.
Em seu recente texto Fundamentos de uma estratégia ecossocialista, o marxista ecologista belga
Daniel Tanuro apresenta duas teses consistentes. A primeira tese considera:
o fato de que as forças produtivas materiais nos tenham afastado objetivamente de uma
alternativa socialista constitui a chave que fundamenta e justifica o novo conceito de eco-
socialismo.
Nesse sentido, Tanuro ressalta a luta pela gratuidade dos bens básicos (água, energia, mobilidade),
o que implica a ampliação do setor público; e a redução do tempo de trabalho sem diminuição de
salário (proposta clássica de Marx, que dizia que “toda economia se reduzia, em última instância, a
uma economia de tempo”).
Ambas as teses constituem eixos centrais de uma estratégia ecossocialista, urgente e necessária,
para enfrentarmos a crise de civilização capitalista. Pois as características da era atual mostram que
as tendências destrutivas do capitalismo, apontadas por Marx, operam agora numa escala global,
exigindo a substituição do sistema em crise estrutural (configurando uma crise geral da
modernidade) por um novo modo de produção social e ecologicamente sustentável.
Para contribuir na construção dessa estratégia ecossocialista, Jorge Riechmann lembra que o
socialismo como sistema social e como modo de produção se define pelo fato do trabalho deixar de
ser uma mercadoria e a economia estar a serviço da satisfação igualitária das necessidades humanas
(e não da acumulação de capital):
O ecossocialismo agrega às condições anteriores a da sustentabilidade: o modo de
produção e a organização social transformam-se para serem ecologicamente sustentáveis.
(Não mercantilizar os fatores de produção – natureza, trabalho, capital –…).[16]
Frente à ditadura financeira dos mercados e a desmedida do capital globalizado (acumulação pela
acumulação), o ecossocialismo defende a democracia em todos os níveis (nas palavras de
Boaventura de Sousa Santos, uma democracia sem fim). Significa construirmos a transição
parauma sociedade onde as grandes decisões sobre produção e consumo sejam
tomadas democraticamente pelo conjunto dos cidadãos e cidadãs, de acordo com
critérios sociais e ecológicos.
_____________________
[1] Foster, John Bellamy. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. Civilização Brasileira,
2005, p. 311
[5] Ibid. p. 37
[9] Ibid. p. 47
[14] Ibid. p. 73
[15] Tanuro, Daniel. Fundamentos de una estratégia ecossocialista. Viento Sur, 2011 (edição
digital – tradução do autor).
[16] Riechmann, Jorge. El ecosocialismo em diez rasgos. Viento Sur, 2012 (edição digital –
tradução do autor).
[17] Ibid.