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Cidadania&MeioAmbiente 3
E D I T O R I A L

A revista Cidadania & Meio Ambiente


Caros Amigos, é uma publicação da Câmara de Cultura
Rua São José, 90, 11o andar, grupo1106
Debater os grandes temas sociais e ambientais, expor os problemas e apre- Centro – 20.010-020 – Rio de Janeiro/RJ
Telefax (55-21) 2215-5515 • 2215-8689
sentar, se existirem, as soluções possíveis deve ser um real compromisso cultura@camaradecultura.org
de toda a mídia. Parece uma afirmação óbvia, mas não é. www.camaradecultura.org

As crises sociais, os desastres ambientais, a degradação ambiental, a


maciça extinção animal e vegetal, o aquecimento global, a escassez
hídrica e outros destes temas produzem grandes matérias e excelentes
manchetes. Mas pouco contribuem para com a informação dos leito-
Diretora Regina Lima
res/cidadãos. regina@camaradecultura.org
Editor Hélio Carneiro
Desde o início, tanto na revista Cidadania & Meio Ambiente como no carneiro@camaradecultura.org

portal Ecodebate, sempre privilegiamos a informação, não necessari- Subeditor Henrique Cortez
henrique@camaradecultura.org
amente a notícia. Em meados do século passado, os editores norte- Projeto Gráfico Lucia H. Carneiro
americanos diziam que a manchete de hoje embrulha peixe amanhã e lucia@camaradecultura.org
Revisão Adilson dos Santos
isto, conceitualmente, ainda é verdade. JP14455/65/09

Quando socializamos a informação, tentamos oferecer uma ferramenta


que incentive o conhecimento e a reflexão, através de matérias, artigos
de opinião, artigos técnicos e entrevistas, sempre discutindo cidadania e
meio ambiente, de forma transversal e analítica. Colaboraram nesta edição

Nesta edição, por exemplo, colocamos em debate temas como o João Alfredo Telles Melo
José Goldemberg
ecossocialismo, a sustentabilidade do sistema energético, o aproveita- Rogério Grasseto Teixeira da Cunha
mento de dejetos orgânicos, as mudanças climáticas e seu impacto na Relatório PNUD
pobreza, as ameaças ambientais do PAC, o desperdício de alimentos, Marcilene Ferreira
Henrique Cortez
agricultura orgânica e sustentável e a democratização do acesso à água. Marcelo Leite
Joel Henrique Cardoso
Diversos autores e diversos temas, mas todos significativos para o de- Frei Beto
bate e para melhor compreensão de nossa realidade e de nossos desafi- Norbert Suchanek
os. Temas e autores selecionados de acordo com o nosso compromisso Correio da Bahia
de socializar a informação e conforme nossa compreensão de que o
desenvolvimento sustentável deve ser socialmente justo, economica-
mente inclusivo e ambientalmente responsável.
Acreditamos que a sociedade, nacional e planetária, pode transformar Visite o portal EcoDebate
as crises em oportunidades e, ao nosso modo, nos esforçamos em ofe- [Cidadania & Meio Ambiente]
www.ecodebate.com.br
recer as informações necessárias e com a qualidade adequada para Uma ferramenta de incentivo ao
que as oportunidades sejam realmente possíveis. conhecimento e à reflexão através de
notícias, informações, artigos de opinião
Desejamos a todos uma boa leitura, lembrando que a revista também e artigos técnicos, sempre discutindo
cidadania e meio ambiente, de forma
está disponível para leitura e/ou download em http:// transversal e analítica.
www.ecodebate.com.br/revista.asp

Henrique Cortez A Revista Cidadania & Meio Ambiente não se


responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos
Coordenador do portal e do blog EcoDebate em matérias e artigos assinados. É proibida a
reprodução dos artigos publicados nesta edição sem
a devida solicitação por carta ou via e-mail aos
respectivos autores.
Editado e impresso no Brasil.
Nº 13 – Dezembro 2007
Capa: ©Greenpeace/Rodrigo Baleia

6 Aquecimento global, ecologismo dos pobres e ecossocialismo


O autor analisa as bases da Revolução Ecológica, que objetiva o surgimento de uma nova
sociedade ecossocialista democrática, capaz de superar a crise social e ambiental modela-
da pelo atual modelo produtivo. Por João Alfredo Telles Melo

10 Por um sistema energético sustentável


Usar de forma crescente energias renováveis oferece imensas oportunidades para o
progresso tecnológico, além de resolver simultaneamente os problemas de mudanças
climáticas e de segurança energética. Por José Goldemberg

12 Biodigestor: da porcaria à luz


A conversão de dejetos orgânicos em biogás e biofertilizante – tanto em escala doméstica
quanto industrial – é uma opção comercialmente rentável, além de eficaz contribuição à
redução do gás metano na atmosfera. Por Rogério Grasseto Teixeira da Cunha

14 Mudança de clima e pobreza mundial


Os países desenvolvidos são os mais aptos a enfrentar as conseqüências do aquecimento
global, que vai penalizar os países pobres e desencadear forte retrocesso do desenvolvi-
mento em escala planetária. Relatório PNUD

18 PAC e meio ambiente


O Direito Ambiental no Brasil é o direito da prudência e da vigilância, no que se refere à
degradação da qualidade ambiental, e não o direito da tolerância com as condutas e
atividades lesivas ao meio ambiente. Por Marcilene Ferreira

Desperdício de alimentos é crise ambiental


21 Além de inaceitável frente à situação de fome de 850 milhões de pessoas, o desperdício
de alimentos acarreta conseqüências nefastas – nem sempre tão conhecidas e discutidas –
ao meio ambiente. Por Henrique Cortez

22 Carbono inorgânico
A conversão da agricultura mundial para padrões orgânicos – que excluem pesticidas e
fertilizantes à base de nitrogênio – ainda é utópica, mas vital se quisermos mudar os
paradigmas de produção de alimentos. Por Marcelo Leite

23 RLs, APPs e agricultura sustentável


Descubra porque as Reservas Legais e as Áreas de Preservação Permanente contribuem de
forma decisiva para o equilíbrio e a manutenção da produtividade dos sistemas por elas
integrados. Por Joel Henrique Cardoso

24 Saciar a sede de água e cidadania


O Programa 1 Milhão de Cisternas prova que o povo do semi-árido é capaz de dirigir seu
próprio destino e encontrar meios de resolver seus problemas, quando lhe são garantidos
meios e políticas de convivência com o fenômeno natural da seca. Por Frei Beto

26 Velho Chico: luta em defesa da vida


Membro titular do Comitê Hidrográfico do Rio São Francisco, o pescador artesanal
Antonio Gomes dos Santos apresenta sua visão estratégica do questionado projeto de
transposição das águas do Velho Chico. Entrevista a Norbert Suchanek.

28 O Governo não investe em irrigação


Enquanto a União projeta gastar bilhões com a transposição das águas do Rio São
Francisco, políticas públicas de distribuição de água mal-estruturadas e especulação
imobiliária geram terras ociosas no semi-árido. Por Correio da Bahia
A

AQUECIMENTO GLOBAL,
I
G
O

ECOLOGISMO DOS POBRES


L
O

E ECOSSOCIALISMO
C
E

O autor analisa a
Revolução Ecológica
ora em curso no
planeta, que objetiva
o surgimento de uma
nova sociedade
ecossocialista
radicalmente
democrática e capaz
de superar a atual crise
social e ambiental.
por João Alfredo Telles Melo

foto:Eduardo Amorim

“ Do ponto de vista de uma formação socioeconômica mais avançada, a


propriedade privada dos indivíduos na Terra parecerá tão absurda como a
propriedade de um homem sobre outros homens. Mesmo uma sociedade inteira,
uma nação, ou mesmo todas as sociedades existentes num dado momento, em
conjunto, não são donos da Terra. São simplesmente os seus possuidores, os seus
beneficiários, e têm que a legar, num estado melhorado, para as gerações seguintes,
como boni patri famílias (bons pais de família).” Karl Marx, O Capital

6
E
m artigo recente, intitulado A Ecologia da Destruição, John
Bellamy Foster – autor de A Ecologia de Marx, materialis-
mo e natureza (Civilização Brasileira), um dos livros mais
importantes para os ecossocialistas – chama a atenção para o
fato de que “é uma característica da nossa época que a devasta-
ção global pareça sobrepor-se a todos os outros problemas, ame-
açando a sobrevivência da terra como a conhecemos”.

A CATÁSTROFE ANUNCIADA
A grande repercussão do quarto relatório do IPCC (Painel Inter-
governamental de Mudanças Climáticas, da ONU, em sua sigla
em inglês) – em que milhares de cientistas não só constataram a
relação direta entre fenômenos climáticos intensos, decorrentes
foto:Harry Firmo
do aquecimento global com a emissão dos chamados gases de
efeito estufa (GEE) pelas atividades industriais, energéticas e
agrícolas, mas também apontaram projeções catastróficas para
este século, caso não haja uma drástica mudança na matriz ener-
gética e no padrão de consumo – deu foros de cientificidade ao
documentário A Verdade Inconveniente, do ex-vice-presidente
“ O Brasil é o quarto maior
emissor de gases
estadunidense Al Gore, que recebeu o Oscar deste ano e tam-
bém, juntamente com o próprio IPCC, o prêmio Nobel da Paz.
do efeito estufa pelas
Portanto, com exceção da minoria dos chamados céticos, dentre
queimadas e desmatamentos
os quais se encontram cientistas sérios como o brasileiro Aziz
Ab´Saber, e organizações bancadas pelo Governo Bush e pelas
grandes indústrias de petróleo e carvão mineral no mundo, há
uma ampla maioria – amplíssima, diria – de gente da comunidade
de florestas.

das geleiras e calotas polares, a desaparição de espécies, a subi-
científica (e aqui se perfilam brasileiros da maior respeitabilidade, da do nível do mar, a desertificação e seus profundos impactos
como José Goldenberg, Carlos Nobre e Luis Pinguelli Rosa), de sobre a humanidade, que poderá conviver – aliás, já está convi-
movimentos ambientalistas, de governos e até de setores empre- vendo – com os chamados “refugiados ambientais” (vítimas de
sariais que, a partir dos dados do IPCC, procuram encontrar saí- enchentes, tornados, secas, furacões, que, nos últimos tempos,
das para a crise planetária, manifestada hoje pelo aquecimento têm atingido populações tão diversas como as asiáticas, as das
global que ameaça a vida na Terra. Abram-se aqui parênteses pequenas ilhas do Pacífico, ou mesmo, nas terras do Império
para aduzir que a aposta dos céticos – em sua versão séria e não Americano, com o Katrina, em New Orleans, e o incêndio que
comprometida com os interesses do capital petroleiro e mineiro – devastou a Califórnia nos últimos meses deste ano).
é uma aposta perdida em suas duas possibilidades, a saber:
Se voltarmos ao nosso país – o quarto maior emissor de GEE
Se estiverem errados (quando afirmam que o fenômeno do pelas queimadas e desmatamentos de florestas –, o que se pre-
superaquecimento é natural e que as previsões do IPCC estão nuncia é gravíssimo. Se em todo o planeta, no próximo século,
equivocadas), eles podem, de forma involuntária, estar contri- ultrapassarmos a linha perigosa de acréscimo de 2oC na tempera-
buindo com o lobby das grandes corporações petrolíferas e tura média da Terra, metade de nossa Floresta Amazônica (a mais
mineiras, impedindo a mudança do padrão energético para as importante cobertura vegetal tropical do planeta) se transforma-
fontes renováveis, e serem co-responsáveis pela catástrofe rá em savana, causando profundos impactos não só na própria
que se prenuncia. temperatura da terra, como no regime de chuvas em todo o he-
misfério sul. Para o Nordeste brasileiro, as previsões não são
Se estiverem certos (o que não é muito provável, dado o menos sombrias. O nosso semi-árido, que, mais uma vez, convi-
amplo consenso científico alcançado depois de quase 20 anos ve com uma estiagem prolongada, se transformaria em região
de IPCC), estão atrasando a evolução para a despoluição do árida, num quase deserto, sem água e sem produção agrícola.
planeta. Ou seja, ainda que, numa hipótese quase absurda,
não esteja ocorrendo o aquecimento provocado pelas ativi- Estaríamos diante do apocalipse? Paulo Artaxo, um dos cientis-
dades humanas, no mínimo o alerta do IPCC questiona o modo tas brasileiros do IPCC, tenta nos tranqüilizar: “O aquecimento
de produção e o modo de vida humana no planeta e nos induz global não é o fim do mundo, de jeito nenhum”, mas adverte:
a mudanças profundas e necessárias. “Um dos pontos cruciais do relatório do IPCC é a urgência da
diminuição da emissão dos gases do efeito estufa. Se não fizer-
A TERRA EM SURSIS: ATÉ QUANDO? mos isso, a temperatura vai subir de forma a trazer danos para
Voltando ao tema, vou me permitir não mais ter que detalhar, mas os ecossistemas e zonas costeiras sem precedentes na história
apenas listar, em parte, o extenso e impactante elenco de fenô- da humanidade”. Para ele – e o IPCC – esse corte deveria ser em
menos climáticos e de suas resultantes sobre a vida no planeta, torno de 50 a 70 por cento. (Caros Amigos, edição especial: “Aque-
como o acréscimo da temperatura média da terra, o derretimento cimento Global, a busca de soluções”.)
Cidadania&MeioAmbiente 7
©Greenpeace/Alberto César
Manaquiri (Amazonas) - Seca em 2005

“A ecologia política e a economia ecológica podem desvendar


e apontar as soluções para a atual crise planetária.

Ora, a necessidade imperiosa da redução na emissão de GEE na RIQUEZA NATURAL E RIQUEZA MATERIAL
escala de 50 a 70% torna o Protocolo de Kyoto (não assinado Esse debate se situa no campo da chamada Ecologia Política,
pelos Estados Unidos, primeiro ou segundo maior emissor de CO2, que, na compreensão de Joan Martinez Alier, estuda “os confli-
e que neste mês de dezembro foi ratificado pela Austrália, uma das tos ecológicos distributivos - isto é, os conflitos pelos recursos
maiores exploradoras de carvão mineral) absolutamente obsoleto ou serviços ambientais, comercializados ou não”. Para ele, a eco-
e inócuo. Recorde-se: Kyoto propõe, apenas para os países em logia política é “um novo campo nascido a partir dos estudos de
desenvolvimento (principais responsáveis pelo aquecimento), o casos locais pela geografia e antropologia rural, hoje estendi-
corte de somente 5% (nos níveis de 1990) até 2012. O Brasil, a Índia dos aos níveis nacional e internacional” (“O Ecologismo dos
e a China (que, dado o seu crescimento econômico vertiginoso, já Pobres”, Editora Contexto). É a ecologia política, juntamente com
teria ultrapassado os EUA e que tem na base de sua matriz energé- a economia ecológica, quem pode nos desvendar as causas da
tica o combustível de maior poluição, que é o carvão mineral), crise e apontar as soluções reclamadas por Foster, acima.
dentre outros, não são obrigados a cumprir metas de redução.
Carlos Walter Porto-Gonçalves – um dos mais atilados ecologis-
Todo esse debate não se refere, por óbvio, apenas a números. tas políticos da atualidade – nos situa de forma ainda mais preci-
Aqui se trata, em primeiro lugar, da tentativa de se compatibilizar sa na atual crise planetária, quando afirma que
a urgência urgentíssima na diminuição drástica de emissão de “o desafio ambiental se coloca no centro do debate geopolíti-
CO2 e outros GEE para a atmosfera, com o direito e a necessidade co contemporâneo enquanto questão territorial, na medida em
de países pobres se desenvolverem e atenderem os direitos e que põe em questão a própria relação da sociedade com a
necessidades de sua população. natureza, ou melhor, a relação da humanidade, na sua diversi-
dade, com o planeta, nas suas diferentes qualidades” (“O
Como atender tais necessidades sem tocar no padrão de vida e Desafio Ambiental”, Editora Record).
consumo das classes médias e altas tanto no hemisfério norte
(onde são majoritárias) como no hemisfério sul (onde são minori- Para ele, há contradições profundas entre a economia capitalista e
tárias)? (Já gastamos 25% a mais do capital natural da Terra e a dinâmica ambiental. A separação –“a mais radical possível”–,
seria preciso que tivéssemos pelo menos quatro planetas Terra em suas palavras entre homens e mulheres, de um lado, e a nature-
para que todos alcançassem o nível de vida do chamado american za, de outro; a apropriação privada dos recursos ambientais, em
way of life.) Uma nova utopia (sustentabilidade ambiental, igual- que tudo é transformado em mercadoria; o princípio da escassez,
dade social e desenvolvimento econômico em escala planetária) pelo qual um “bem só tem valor econômico se é escasso” são
seria possível na atual configuração geopolítica mundial, onde o absolutamente contraditórios com a visão ecológico-ambienta-
poder destrutivo da indústria armamentista, petrolífera e minerá- lista de riqueza natural. Vejamos, em suas próprias palavras:
ria se materializa em governos como de Bush, senhor das guerras “Os economistas modernos vão fundar a economia no con-
no mundo? É possível superar a atual crise nos marcos do siste- ceito de escassez, que, paradoxalmente, é o contrário da
ma capitalista? Nas palavras, mais uma vez, de Foster: “Como é riqueza. Tanto é assim que os bens abundantes – idéia cen-
que isto se relaciona com as causas sociais e que soluções soci- tral da riqueza – não são considerados como bens econômi-
ais podem ser oferecidas em resposta tornaram-se as questões cos e, sim, como naturais (...). Somente à medida que a água
mais urgentes com que a humanidade se defronta.” e o ar se tornam escassos – com a poluição, por exemplo – é
8
que a economia passa a se interessar em incorporá-los como
bens no sentido econômico moderno, isto é, mercantil.”

foto:Tatiana Cardeal
Essa distinção entre riqueza natural – objetivo maior de todos os
movimentos ecológicos – e riqueza material – que advém da es-
cassez e, para deleite do sistema mercantil, transforma os bens
ambientais em mercadoria – também é tratada por Foster, em ou-
tro belo texto, chamado Revolução Ecológica, onde se vale do
filósofo grego Epicuro, que declarava: “Quando medida pelo
propósito natural da vida, a pobreza é grande riqueza, riqueza
ilimitada é grande pobreza.”
Portanto, para Foster,
“o livre desenvolvimento humano, surgindo num clima de limi-
tação e sustentabilidade naturais, é a verdadeira base da ri-
“ecologismo
As lutas socioambientais do
popular têm uma
queza, de uma riqueza para a existência multilateral; a busca
sem limites de riqueza é a fonte primária do empobrecimento e
importância fundamental não só
sofrimento humanos. É desnecessário dizer que tal preocupa-
ção com o bem-estar natural, em oposição a necessidades e
para os ecossocialistas, mas para
estímulos artificiais, é a antítese da sociedade capitalista e a
pré-condição de uma comunidade humana sustentável”.

Assim, é plenamente justificável que se afirme que, sob o capita-


o próprio futuro do planeta.
Aqui, estamos diante do que Martinez Alier denomina de ecolo-

lismo, não há possibilidade de superação da atual crise planetá- gismo dos pobres ou ecologismo popular, que, nas palavras do
ria, o que nos permitiria atualizar, como quer Michel Löwy, outro autor, tem como eixo fundamental o interesse pelo meio ambiente
grande expoente atual do ecossocialismo, a consigna de Rosa como fonte de condição para a subsistência e como fundamento
Luxemburgo para “Ecossocialismo ou Barbárie”. ético a demanda por justiça social (e ambiental, acrescentaria)
contemporânea entre os humanos. Essa corrente do movimento
Ora, afirmar isto – a contradição fundamental entre o sistema ambientalista, por lutar contra os impactos ambientais que amea-
capitalista e uma nova forma de organização sócio-político-eco- çam os pobres, que constituem a ampla maioria da população em
nômica fundada na sustentabilidade e justiça ambiental, na igual- muitos países, tem uma presença muito forte nos países do he-
dade social e, também, por óbvio, na democracia política, em misfério sul (no antigamente denominado terceiro mundo).
suas formas mais avançadas de participação popular – por si só
não é suficiente para os ecossocialistas. Nas palavras de Löwy: As lutas com tais características – socioambientais, do ecologis-
“É preciso começar a construir esse futuro desde já. É neces- mo popular – têm uma importância fundamental não só para os
sário participar de todas as lutas, inclusive das mais modestas ecossocialistas, mas para o próprio futuro do planeta. Ali, há uma
como, por exemplo, a de uma comunidade que se defende resistência que, partindo da luta concreta por direitos humanos
contra uma empresa poluidora; ou a defesa de uma parte da básicos de moradia, cultura, de modo de vida e de produção, e,
natureza que esteja ameaçada por um projeto comercial des- também, ao ambiente saudável, questiona os fundamentos não só
trutivo. É importante ir construindo a relação entre as lutas do atual modelo econômico, mas, em última análise, investe contra
sociais e as ambientais, pois elas tendem a concordar, unidas, as bases do próprio modo de apropriação privada do sistema capi-
ao redor de objetivos comuns” (Ecologia e Socialismo). talista, responsável pelo atual estágio de degradação do ambiente
planetário. Nessas comunidades, se contrapõem não só interes-
OS ECOSSOCIALISTAS E AS LUTAS SOCIOAMBIENTAIS ses materiais, mas formas de vida e produção antagônicas.
É esse campo – o das lutas socioambientais – que reclama a
presença dos ecossocialistas. Aqui, poderíamos listar as lutas Portanto, neste momento (mesmo que ainda de forma não articu-
das comunidades costeiras contra o turismo predatório e a cria- lada) podem se estar forjando não só as alianças sociais funda-
ção de camarões em cativeiros; a resistência dos atingidos por mentais para esse processo de transformação urgente e necessá-
barragens contra os grandes projetos hidrelétricos; o movimen- rio – a Revolução Ecológica – mas, também, as bases sócio-
to que reúne sem terra, agroecologistas, defensores de consumi- econômico-ecológico-cultural-ético-políticas de uma nova soci-
dores e ambientalistas contra a adoção de sementes transgêni- edade que possa superar a atual crise ambiental global para se
cas; a luta de populações locais contra a ampliação das usinas tornar, a um só tempo, ecologicamente sustentável, socialmente
nucleares; a resistência de índios e pequenos agricultores no justa e igualitária, cultural e etnicamente diversa, e política e radi-
embate contra a transposição das águas do Rio São Francisco; a calmente democrática: a sociedade ecossocialista. Estaremos à
articulação dos povos da floresta – índios, quilombolas, serin- altura desse imenso desafio? ■
gueiros e ribeirinhos – contra ao avanço do agronegócio do gado
e da soja na Amazônia brasileira; a luta das mulheres campone-
sas contra o exército verde da monocultura do eucalipto; o en- João Alfredo Telles Melo – Advogado, professor de Direito Ambien-
tal e consultor do Greenpeace. Artigo originalmente publicado pela
frentamento dos ecologistas e urbanistas contra a especulação Agência de Informação Frei Tito para a América Latina – ADITAL,e em
imobiliária nas grandes metrópoles etc. http://www.ecodebate.com.br/default.asp?pagvis=6684

Cidadania&MeioAmbiente 9
A

É hora de promover o
I

desenvolvimento de
G

tecnologias de armazenagem
R

de energia para expandir


E

a contribuição de uma
N

variedade de novas opções


E

energéticas renováveis.
por José Goldemberg

POR UM
SISTEMA
ENERGÉTICO SUSTENTÁVEL
OS COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS vão, petróleo e gás. Estes combustíveis fo- OS EXCLUÍDOS DO CONFORTO
Existe uma crença generalizada de que os ram as molas propulsoras do extraordinário Dois terços da humanidade não têm aces-
avanços científicos e tecnológicos dos úl- progresso técnico do século 20, mas o pro- so aos confortos da civilização moderna –
timos 200 anos resolveram muitos proble- blema é que esse progresso neles baseado que se baseia, justamente, no uso de com-
mas da humanidade, como a eliminação de não pode durar, por diversas razões. bustíveis fósseis –, o que é inaceitável do
doenças, o aumento da vida média das pes- ponto de vista moral e constitui uma fonte
soas, e permitiram estender conforto e As reservas de combustíveis fósseis são fi- de instabilidade social e política permanen-
prosperidade a um terço do gênero huma- nitas e as atuais reservas de petróleo não te, gerando, inclusive, imigração ilegal para
no (cerca de 2 bilhões de pessoas), o que deverão durar mais de 40 ou 50 anos. Os a Europa e a América do Norte. Além dis-
não tem precedentes na história. Roma, no problemas geopolíticos para conseguir aces- so, combustíveis fósseis estão “envene-
seu esplendor, deu aos romanos um exce- so a esses recursos estão se tornando cada nando” a atmosfera com suas emissões de
lente nível de vida, mas à custa do traba- vez maiores, em razão da dependência cres- gases responsáveis pela poluição local e
lho de cerca de 100 milhões de outros se- cente dos Estados Unidos de petróleo im- pelo aquecimento global (e pelas mudan-
res humanos escravizados. Apenas 1% da portado e do aumento de consumo na China ças do clima decorrentes) – as manifesta-
população mundial da época se beneficiou e em outros países em desenvolvimento. As ções mais claras desse problema.
dos confortos da Cidade Imperial. guerras do Oriente Médio têm muito que ver
com isso, como assinalou recentemente o Em outras palavras, o progresso técnico que
Essenciais para esses avanços são fontes insuspeito Alan Greenspan, que foi presi- alcançamos no século 20 não é sustentável
apropriadas de energia, 80% da qual pro- dente do Federal Reserve (Fed, o Banco Cen- a médio prazo e o problema precisa ser re-
vêm hoje de combustíveis fósseis – car- tral dos Estados Unidos) de 1988 a 2006. solvido nas próximas décadas, ou seja, pela

10
■ Para os países em desenvolvimento a es-
tratégia é adotar, cedo – no seu processo
de crescimento –, as melhores e mais efici-
entes tecnologias (evitando repetir o cami-
nho seguido no passado pelos países in-
dustrializados, quando se industrializaram).
Em outras palavras, os países em desenvol-
vimento podem saltar na frente, adotando
as melhores tecnologias existentes.
■ Usar de forma crescente energias reno-

váveis, em suas muitas formas, incluindo a


biomassa, que oferece imensas oportuni-
dades para progresso tecnológico e ino-
vação, além de resolver simultaneamente

©2005 Greenpeace/Xuan Canxiong - Fazenda eólica em Guangdong, China


os problemas de mudanças climáticas e de
segurança energética. Exemplos de suces-
so são o programa de etanol da cana-de-
açúcar do Brasil, a ampla utilização de ener-
gia eólica na Alemanha e na Espanha e
energia fotovoltaica no Japão.
■ Promover o desenvolvimento de tecno-

logias de armazenagem de energia, que


podem reduzir substancialmente os cus-
tos e expandir a contribuição de uma vari-
edade de novas opções energéticas.
■ Introduzir tecnologias para captura e se-

qüestro de carbono de combustíveis fós-


seis, particularmente do carvão, que po-
dem desempenhar um papel importante
na redução das emissões globais de dió-
xido de carbono, desde que sejam de-
monstradas viáveis do ponto de vista téc-
nico, econômico e ambiental, o que ainda
não ocorreu.
■ A energia nuclear também foi amplamente

discutida e se reconheceu que pode conti-


nuar a dar uma contribuição significativa se
os problemas relacionados a seu custo, se-
atual geração, para evitar uma crise sem pre- outros setores da sociedade) devem fa- gurança, disposição dos resíduos radioati-
cedentes na história moderna. zer e como, mas o que é preciso ser feito. vos e proliferação de armas nucleares fo-
rem equacionados adequadamente.
Para analisar esta situação, e propor solu- RECOMENDAÇÕES DO RELATÓRIO
ções, as Academias de Ciências de todo o As recomendações contidas nesse rela- Este é um amplo menu de soluções que re-
mundo (incluindo as dos Estados Unidos, tório representam, portanto, o melhor que presenta o melhor que os cientistas de todo
da Inglaterra, da França e da Rússia) deci- os cientistas podem sugerir às autorida- o mundo podem sugerir às autoridades, mas
diram criar um grupo de 15 cientistas, que des. E são, basicamente, as seguintes: compete, é claro, aos governos escolher as
preparou – após dois anos de trabalho – ■ Para os países industrializados do he- que são mais adequadas às características
um relatório intitulado A Transição para misfério norte a melhor solução, e a mais próprias dos seus países. ■
um Sistema Energético Sustentável. A ini- barata, é o aumento da eficiência energé-
ciativa para o estudo partiu das Academi- tica, ou seja, a economia de energia, para
(1) O Comitê das Academias de Ciências que
as de Ciências da China e do Brasil.(1) o que já existem tecnologias disponíveis. preparou o relatório foi presidido por Steve Chu,
A energia está sendo usada por esses pa- Prêmio Nobel de Física, dos Estados Unidos, e
O relatório representa a visão de cientis- íses de forma ineficiente. Melhorar essa José Goldemberg da Universidade de São Paulo.
Artigo publicado pelo IHU On-line (Instituto
tas altamente qualificados, expõe o pro- eficiência não prejudicará em nada a qua- Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do
blema com objetividade e analisa as pos- lidade de vida das populações, como mos- Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São
síveis soluções, sem nenhuma conside- tra o exemplo da Califórnia, onde o con- Leopoldo, RS.) e no www.ecodebate.com.br
ração de caráter político. Ele não diz em sumo de eletricidade per capita é hoje o
nenhum momento o que os governos (e mesmo de 20 anos atrás. José Goldemberg é prof.da USP

Cidadania&MeioAmbiente 11
P A

Na guerra contra o
M
I

aquecimento global
E N E R G I A L

e o uso desvairado
de recursos naturais,
a conversão de
dejetos orgânicos
em biogás
e biofertilizante –
tanto em escala
doméstica quanto
foto: Mostlysunny1 industrial – é uma
opção comercialmente rentável, além de
eficaz contribuição à redução do gás
metano na atmosfera.

A palavra “porco”
costuma evocar idéias negativas nas pes-

DEJETOS e soas, sendo sinônimo de sujo e sem higie-


ne. Apesar dos esforços da suinocultura
industrial no Brasil (que possui reconheci-

BIODIGESTORES:
dos padrões de qualidade) em modificar a
imagem do animal, é fato que os suínos ge-
ram uma quantidade enorme de dejetos, pro-
blema amplificado pela sua produção alta-
mente intensiva. Se não tratados adequa-

DA PORCARIA damente, a disposição destes dejetos no


ambiente causa a poluição de rios e lagos, o
que por sua vez acarreta a diminuição da

àLUZ
qualidade da água para consumo humano,
disseminação de doenças, mortandade de
peixes, com outros efeitos em cascata.

Mas, pior do que isso, os dejetos suínos


(e de animais em geral, incluindo os dos
seres humanos) também têm influência
sobre o efeito estufa. A razão para isto é
algo complexa. Estes dejetos são normal-
mente acumulados em grandes quantida-
por Rogério Grassetto Teixeira da Cunha
des, o que favorece a sua decomposição
anaeróbica, ou seja, sem oxigênio. Quan-

12
do a decomposição de qualquer cura razoável. Mas os projetos
matéria orgânica (e dejetos não precisam ser cuidadosamente
passam de matéria orgânica pura) planejados de acordo com as ca-
se dá na presença de oxigênio, o racterísticas e tamanho das pro-
resultado principal é a liberação priedades, e é necessária assis-
de gás carbônico para a atmosfe- tência técnica qualificada aos
ra. Isto, por si só, não interfere na produtores. Como isto não ocor-
conta do efeito estufa, pois este reu, esta primeira leva de biodi-
volume de gás carbônico (mais gestores acabou se esvaindo.
aquele resultante do consumo e
digestão da carne) é equivalente Com a entrada em vigor do Proto-
ao que foi retirado da atmosfera colo de Kyoto houve um interes-
pelas plantas que produziram a se renovado pelos biodigestores.
ração dos animais. Mas na ausên- Como eles permitem uma redução
cia de oxigênio, os microorganis- na emissão de gases do efeito es-
mos decompositores produzem tufa em relação a outros métodos
outras substâncias, entre elas o de tratamento de dejetos, sua im-
gás metano, aparentado quimica- plantação pode permitir a comerci-
mente ao gás de cozinha, que foto:Cecília alização de créditos de carbono,
possui um efeito de aquecimento ou seja, dejetos virando dinheiro.
da atmosfera vinte vezes maior que o do O interesse é tanto que, em diversas propri-
gás carbônico. Neste caso, a “conta do
aquecimento” não fecha.

BIODIGESTOR: FONTE DE RIQUEZA


“deA implantação
biodigestores
edades no Brasil, a instalação dos biodi-
gestores está sendo financiada (a custo
zero) por empresas internacionais interes-
sadas nos créditos. O produtor comprome-
É aí que entram os biodigestores, estrutu- possibilita a te-se a fornecer os dejetos e as informações
ras hermeticamente fechadas nas quais se necessárias ao cálculo dos créditos e rece-
acumula grande quantidade de dejetos (ou comercialização de be parte do lucro de sua comercialização,
de qualquer matéria orgânica). Com isto, recebendo o biodigestor depois de 10 anos
estimula-se a digestão anaeróbica da ma- créditos de carbono, em regime de comodato.
téria orgânica e, por conseqüência, a pro-
dução de metano, gerando um produto fi- ou seja, o dejeto vira Com a implantação em larga escala dos
nal chamado biogás. Este gás pode ser utili- biodigestores e com o devido apoio téc-
zado de diversas formas após ser purifi-
cado, seja em equipamentos adaptados
a uma menor pressão em relação aos bo-
dinheiro sonante! n
” nico e cuidados na aplicação de biofertili-
zante, podemos ter uma solução que fa-
vorece a todos:
tijões (fogões, aquecedores, lampiões), FERTILIZANTE: BENEFÍCIO ADICIONAL ■ O produtor, que se livra de um pro-
seja em geradores de energia elétrica. Outra vantagem é a utilização da sobra blema sério e ainda ganha com isto
Assim, apesar de o processo inicialmen- dos dejetos, após a passagem pelo biodi- (energia barata, fertilizante e, agora,
te estimular a produção do danoso me- gestor. Este resíduo pode ser utilizado dinheiro);
tano, acaba por gerar somente gás car- como fertilizante para agricultura (normal- ■ O meio ambiente local, com uma
bônico e água, que são os resultados da mente, após uma etapa adicional de trata- poluição reduzida; e
queima do biogás, como se tivesse havi- mento e tomando-se alguns cuidados), ■ O ambiente global, com a redu-
do somente digestão aeróbica. pois possui teores consideráveis de ni- ção de emissões de gases.
trogênio e fósforo, e reduzida probabili- Além disso, não há qualquer razão que nos
Mas há mais vantagens. O produtor pode dade de disseminação de doenças. O uso impeça de também aplicar a idéia na cria-
reduzir custos, ao economizar gás e/ou de dejetos animais como fertilizante – par- ção de aves (que cresce em ritmo acelera-
energia elétrica. Assim, além de evitar a ticularmente os de suínos – já vem ocor- do no Brasil), de bovinos, ou mesmo no
poluição dos rios, o uso do biogás pode rendo há algum tempo como forma útil de tratamento de esgoto doméstico. Neste
reduzir a demanda por gás de cozinha ou eliminação dos mesmos. Porém, o uso caso (se for tecnicamente viável), o poder
por energia elétrica. Claro que o efeito iso- agrícola sem tratamento, muito comum público poderia contar com uma fonte de
lado sob o ponto de vista energético e de ainda, gera problemas semelhantes ao energia limitada, mas barata. ■
aquecimento global é pequeno, mas, se descarte puro e simples nos rios.
um percentual grande de propriedades
passar a adotar este esquema, ele pode Com tantas vantagens, por que o uso de Rogério Grassetto Teixeira da Cunha,
representar algo mais significativo. E, biodigestores não é mais comum ou mes- biólogo, é doutor em Comportamento
nesta guerra contra o aquecimento e o mo estimulado? Bem, quando a idéia apor- Animal pela Universidade de Saint Andrews.
E-mail: rogcunha@hotmail.com
uso desvairado de recursos naturais, qual- tou por aqui, no final dos anos 1970, a
Publicado originalmente em
quer ajuda é bem-vinda. prática até foi incentivada e teve uma pro- www.EcoDebate.com.br - 20/07/2006
Cidadania&MeioAmbiente 13
MUDANÇA DE CLIMA

fotos: Bangladeshboat. e Pinakianisk


E POBREZA MUNDIAL
Os países desenvolvidos
O
Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008 do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento –
– maiores poluidores – Combatendo a Mudança Climática: Solidariedade Huma-
na num Mundo Dividido – revela um mundo cada vez mais dividi-
são os mais aptos a do entre nações altamente poluidoras e países pobres.

enfrentar as E mostra que, enquanto os pobres contribuem de maneira des-


prezível ao aquecimento global, são eles que vão sofrer os resul-
conseqüências do tados mais imediatos da mudança no clima. O aquecimento glo-
bal, alerta o relatório, provavelmente desencadeará um forte re-
aquecimento global que trocesso no desenvolvimento e o completo fracasso em
implementar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM),
vai penalizar os países acordados na Organização das Nações Unidas em 2000, para a
redução da pobreza mundial.
pobres e desencadear
forte retrocesso do AS DESIGUALDADES
PEGADAS DE CARBONO DESIGUAIS:
desenvolvimento em ■ Enquanto apenas 13% da população do planeta vivem nas
nações economicamente mais desenvolvidas, são essas as na-
escala planetária. ções responsáveis por mais da metade da emissão dos gases de
efeito estufa.
■ O estado australiano de Nova Gales do Sul (6,9 milhões de
Por PNUD
habitantes) tem uma pegada de carbono de 116Mt CO2.
■ Esse índice é comparável ao total de Bangladesh, Camboja,
Etiópia, Quênia, Marrocos, Nepal e Sri Lanka juntos.
14
14
■ Nos Estados Unidos, os 23 mi- ■ O relatório afirma que US$ 279 mi-
lhões de habitantes do estado do
Texas somente são responsáveis
por mais emissões de gás carbôni-
“ Adaptação tornou-se
um eufemismo para
lhões foram prometidos ao Fundo
Especial de Mudança Climática, for-
mado para ajudar os países pobres a
co (CO2) do que os 690 milhões de mitigar os efeitos do aquecimento
habitantes da África subsaariana. injustiça social em global. Isso corresponde à metade
do que o estado alemão de Baden
■ Um residente médio dos Esta-
dos Unidos é responsável pela
emissão de 20,6 toneladas de gás
carbônico por ano. Um chinês mé-
escala global.
” Würtemberg planeja gastar anual-
mente para fortalecer suas proteções
contra enchentes.
dio, 3,8 toneladas; um etíope, ape- ■ Em alguns locais, a agricultura co-
nas 0,1 tonelada. mercial poderá se tornar 8% mais pro-
■ O crescimento per capita de dutiva em conseqüência do aqueci-
emissão de CO2 no Canadá des- mento global. Por outro lado, a pre-
de 1990 (cinco toneladas) é visão para a agricultura irrigada por
maior do que o total de emis- chuvas, da qual depende o agricul-
sões per capita na China hoje. tor mais pobre, é de que se torne 9%
menos produtiva. A estimativa para
■ Os Estados Unidos e a União
2060 é de que a renda da África sub-
Européia juntos são responsá-
saariana caia um quarto em relação
veis por 10Gt dos 29 Gt liberados
aos níveis atuais.
anualmente em todo o planeta.

Se todo o mundo seguisse a trajetó-


ria dos Estados Unidos nas emis-
“ Nos países mais pobres,
a cobertura dos seguros
■ Na Etiópia, os reservatórios arma-
zenam 50 metros cúbicos de água por
pessoa. Na Austrália, eles armazenam
sões de CO2, afirma o relatório, nós 4.700 metros cúbicos por residente.
precisaríamos de nove planetas para é limitada e desastres ■ A França gasta atualmente em sis-
absorver, a salvo, todos os gases temas de monitoramento meteoroló-
que provocam o efeito estufa. naturais podem gicos mais do que gasta toda a Áfri-
ca subsaariana. A Holanda possui 32
APARTHEID DA ADAPTAÇÃO desencadear a vezes mais estações meteorológicas
Enquanto os países mais pobres por 10 mil km² do que a África.
são os mais despreparados para se condenação à pobreza ■ Quando furacões, enchentes e
adaptarem às mudanças climáticas,
são as suas populações que pas-
sarão pelo maior deslocamento nas
próximas décadas.
por gerações.
” secas atingem o mundo desenvol-
vido, companhias de seguro pri-
vadas compensam grande parte
das vítimas. Nos países mais po-
bres, a cobertura dos seguros é extremamente limitada e desas-
Numa seção especial do relatório, o ex-arcebispo da Cidade do tres naturais podem desencadear a condenação à pobreza por
Cabo, Desmond Tutu, chama a isso de o surgimento do Apartheid gerações. Isto ficou demonstrado quando o furacão Mitch atin-
da Adaptação. As desigualdades são várias: giu Honduras, em 1998. A porção mais pobre da população, com
■ Os países ricos possuem muito mais recursos para aplicar em menos cobertura de seguro, perdeu mais e levou mais tempo
defesas contra enchentes, sistemas de armazenamento de água e para se recuperar. Os mais ricos perderam menos e começaram o
em modificações na agricultura. O Reino Unido gasta anualmen- processo de reconstrução mais rápido. Fenômeno semelhante
te US$1,2 bilhão no manejo de enchentes e prevenção da erosão aconteceu quando Nova Orleans foi arrasada pelo furacão
costeira. A Agência Ambiental requisitou US$ 8 bilhões a serem Katrina, em 2005. Em 2001, quando Gujurat na Índia sofreu um
investidos no fortalecimento das defesas contra enchentes em forte terremoto, somente 2% das vítimas possuíam seguro.
Londres. O estado alemão de Baden-Württemberg estima que ■ O relatório destaca ainda outra questão relacionada: a aten-
terá que gastar um excedente de US$685 milhões por ano, em ção da mídia enfoca mais os desastres que acontecem no pri-
infra-estrutura de proteção contra enchentes. O Japão elaborou meiro mundo, tais como a enchente causada pelo furacão Ka-
planos de proteção do país contra a elevação dos níveis do mar, trina. Igualmente devastadores furacões na América Central
cujos custos poderiam chegar a US$93 bilhões. recebem apenas uma fração da atenção e uma fração dos recur-
■ Ao mesmo tempo, mulheres do Delta do Ganges, Bengala sos de reconstrução pós-desastre.
Ocidental, na Índia, se preparam contra os crescentes riscos
de enchente, construindo como refúgio plataformas elevadas Adaptação tornou-se um eufemismo para injustiça social em esca-
feitas de bambu. Soluções semelhantes estão sendo introdu- la global, alertam os autores do Relatório de Desenvolvimento
zidas nas ilhas Char, em Bangladesh. No Egito, estima-se que Humano. Cada vez mais, o mundo é dividido entre países que
o aumento do nível do mar pode custar ao país US$ 35 bilhões estão desenvolvendo a capacidade de se adaptar à mudança cli-
e desalojar dois milhões de pessoas. mática e aqueles que não estão. ■
Cidadania&MeioAmbiente 15
U M A N OVA M A R C A
COM OS MESMOS COMPROMISSOS.
E O NOME
QUE O BRASILEIRO
ESCOLHEU. A nova marca da Vale vai levar
para o mundo sua ousadia, ética,
disciplina nos investimentos
e compromisso socioambiental.
A Vale é apaixonada pelo que faz
e busca a permanente superação
para transformar recursos
minerais em elementos essenciais
para o nosso dia-a-dia.

www.vale.com
16
Cidadania&MeioAmbiente 17
O Direito Ambiental no Brasil é o direito da prudência
D I R E I T O A M B I E N T A L

e da vigilância, no que se refere à degradação da qualidade


ambiental, e não o direito da tolerância com as condutas
e atividades lesivas ao meio ambiente.

foto: Abnoqueir
PAC
e
MEIO AMBIENTE por Marcilene Ferreira

AS REAÇÕES À POLÍTICA AMBIENTAL DO PAC


O Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, proposto pelo governo
federal, refletiu na condução da política ambiental, com mudanças estrutu-
rais no Ministério do Meio Ambiente e no Instituto Brasileiro de Meio Ambi-
ente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, o que causou reações
dos movimentos ambientalistas e sociais. Essa situação nos leva de forma
concreta a pensar sobre a forma de articular o progresso científico e o desen-
volvimento econômico com o desenvolvimento sustentável, aplicando o
princípio da precaução e o da prevenção.

A Comissão Pastoral da Terra / CPT, entidade ligada à Conferência Nacional


dos Bispos do Brasil / CNBB – que presta um serviço aos camponeses e
camponesas, nos temas terra, água e direitos, há mais de 30 anos –, manifes-
tou sua indignação na carta de sua XIX Assembléia:
18
“ De modo especial, nesta XIX Assembléia, nos organizamos para o estudo detalhado da
Lei de Concessão de Florestas Públicas, mais um instrumento que se integra ao PAC. Conclu-
ímos que esta lei é inútil, cínica e iníqua.
INÚTIL porque o Brasil já possui um conjunto de leis – nunca levadas a sério – que comba-
tem a grilagem e o desmatamento, regulamentam o manejo florestal e garantem os direi-
tos territoriais das populações tradicionais.
CÍNICA porque manipula os discursos e as práticas da defesa do meio ambiente e dos
interesses nacionais, enquanto se multiplicam as ameaças à legislação ambiental, e o go-
verno não oferece condições ao INCRA e ao IBAMA e demais órgãos de fiscalização e loteia
cargos públicos a ONGs interessadas na certificação florestal a serviço do mercado.
INÍQUA porque a única e verdadeira novidade desta lei, a concessão, é uma autêntica priva-
tização do uso das florestas públicas, atendendo interesses de grupos nacionais e interna-
cionais motivados pelo lucro e pelo esgotamento da madeira em muitos países, e nas
propriedades particulares. Também iníqua por desobrigar o mercado madeireiro a obede-
cer a legislação ambiental e fundiária existente no país, contradizendo o dispositivo cons-
titucional que considera as florestas patrimônio público inalienável. Isto, que diz respeito à
Amazônia, à Mata Atlântica, à Serra do Mar, à Zona Costeira e ao Pantanal, também, deve
ser aplicado ao Cerrado, à Caatinga e aos demais biomas (CPT, 2007).

CPT E SOJA TRANSGÊNICA A TEORIA GLOBAL DE RISCOS te em concepção preventiva, criar meca-
Lembremos, também, da reação da CPT O progresso científico em torno dos trans- nismos de desenvolvimento com prote-
quando o Governo Federal criou a medida gênicos arrebatou inflamados debates so- ção ambiental”.
provisória para autorizar a comercialização bre a teoria global dos riscos. No entanto,
e o plantio de soja transgênica, safra de os eventos em torno dos transgênicos Nesse sentido, fica fragilizada a aplica-
2003 e de 2004, até que se elaborasse uma colocam a teoria global dos riscos diante ção dos princípios da prevenção e o da
lei ampla sobre biossegurança, pois a soja do desafio de traduzir as críticas e propos- precaução. Alertam os movimentos ambi-
já era cultivada ilegalmente no Brasil: tas em procedimentos operacionais, não entais e sociais sobre os impactos do PAC
só frente a um conflito entre leigos e peri- na atual divisão do IBAMA, pois impli-
A CPT faz coro a vários pesquisadores e tos, visto que também envolve influências cam em medidas não só para a aceleração
a organizações dos trabalhadores – de políticas, poder das corporações, veloci- do processo de licenciamento ambiental,
modo especial à Via Campesina –, para se dade da mudança tecnológica, problemas mas de flexibilização. E nos diz Sampaio
opor ao cultivo indiscriminado dos trans- éticos, efeitos econômicos diversos, es- (2003) que a prevenção é a forma de ante-
gênicos, baseada em duas razões: pecialmente se consideramos os pequenos cipar-se aos processos de degradação
produtores agrícolas e a ação dos grupos ambiental, mediante adoção de políticas
■ PRIMEIRO, há total ignorância quanto de interesse público tentando mudar o rit- de gerenciamento e de proteção dos re-
aos possíveis riscos que tal cultivo pode mo e a trajetória do próprio processo de cursos naturais.
trazer ao meio ambiente e à saúde huma- globalização. Trata-se do cenário de um
na. Por isso, o princípio ético da precau- conflito global em torno dos riscos. Seja como for, políticas e medidas preven-
ção exige que se façam estudos profun- tivas devem ser orientadas não apenas
dos e independentes que possam garan- As opções da política econômica dos Es- em sentido conservacionista, mas princi-
tir que os transgênicos não oferecem qual- tados vivem num constante impasse com palmente com vistas à exploração susten-
quer perigo. as opções da política ambiental, pois inci- tada dos recursos ambientais. O que exi-
dem sobre as diferentes compreensões de ge ações integradas e um planejamento
■ S EGUNDO , por trás do cultivo dos desenvolvimento sustentável. Ainda não global e sistemático de uso desses recur-
transgênicos, sobretudo da soja, se es- atingimos “um grau de maturidade políti- sos. (Sampaio, 2003, p. 72)
condem interesses poderosos de grandes ca, econômica e social que nos possibilite
empresas que pretendem controlar toda a fundir o Direito Econômico com o Direito O imediatismo do setor empresarial para
cadeia alimentar, desde a produção, até o Ambiental”, observa Antunes (2006), para ações de desenvolvimento econômico ri-
consumo. Entre estas empresas se desta- que de forma ideal “possamos instituir um valiza com ações de desenvolvimento
ca a Monsanto, que patenteou a soja RR. Direito do Desenvolvimento Sustentável sustentável. Nota-se isso, claramente,
Isso significa a total dependência dos que pudesse, em um conjunto coerente e quando das inovações apresentadas pelo
pequenos produtores rurais dos interes- harmônico de normas jurídicas, princípios progresso científico e que podem auferir
ses destas empresas. e jurisprudências, fundado essencialmen- lucros. A efetividade do princípio da pre-
Cidadania&MeioAmbiente 19
o bem comum. As aplicações tec-
nológicas que impliquem riscos
potenciais de grande envergadu-
ra precisam ser decididas, aprova-
das, negadas ou aperfeiçoadas a
partir de decisões democráticas e
sob controle do povo”. (CPT)

O aquecimento global, entre ou-


tros problemas mundiais, pode ter
soluções com a mudança das po-
líticas de desenvolvimento econô-
mico dos estados, onde ambien-
talistas, indígenas, quilombolas e
comunidades tradicionais não se-
jam percebidos como entraves ao
crescimento do país. Incluí-los
©Greenpeace/Daniel Beltrá - Sobrevôo de Santarém a Alta Floresta (fevereiro 2006) como fontes legítimas de saber,
para elaboração das políticas de
crescimento, é um modo de optar
por um desenvolvimento susten-

“ A prevenção é a forma de se antecipar os


processos de degradação ambiental, mediante
tável do país. ■

adoção de políticas de gerenciamento e de Referências


ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito
proteção dos recursos naturais.

caução rejeita essa postura empresarial,



O modo de conduzir a política econômica
Ambiental. Rio de Janeiro, 2006. Ed.
Lumens Júris, 9ª ed. p. 16.
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CTP). Os
transgênicos e a preservação das
sementes. Disponível em: http://
que entre outros momentos aparecem deve partir da internalização do princípio www.cptnac.com.br/
com a exigência da prova científica abso- da precaução, sobre o qual não cabe mais ?system=news&eid=88
luta do risco. ao poder público e aos diversos segmen- COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CTP).
tos da sociedade ignorar. As atividades Carta da XIX Assembléia da Comissão
Em termos práticos, o princípio da pre- econômicas não podem ameaçar ou ser Pastoral da Terra. Goiânia, mai. 2007.
caução significa a rejeição da orientação lesivas ao meio ambiente. Disponível em: http://
www.cptnac.com.br/
política e da visão empresarial que duran-
?system=news&action
te muito tempo prevaleceram, segundo as A partir da consagração do princípio da =read&id=1849&eid=8
quais atividades e substâncias potenci- precaução não pode mais haver dúvidas DALLARI, Sueli Gandolfi; VENTURA, Deisy
almente degradadoras somente deveriam de que o Direito Ambiental no Brasil é o de Freitas Lima. O princípio da precau-
ser proibidas quando houvesse prova ci- direito da prudência, é o direito da vigi- ção: dever do Estado ou protecionismo
entífica absoluta de que, de fato, repre- lância no que se refere à degradação da disfarçado? . São Paulo Perspec. , abr./
sentariam perigo ou apresentariam noci- qualidade ambiental e não o direito da to- jun. 2002, vol.16, no 2, pp.53-63. ISSN
0102-8839, Disponível em http://
vidade para o homem ou para o meio am- lerância com as condutas e atividades le- www.scielo.br/pdf/spp/v16n2/12111.pdf
biente. (Mirra) sivas ao meio ambiente. Esse o enfoque GUIVANT, Julia S. A teoria da sociedade de
que deve prevalecer em toda atividade de risco de Ulrich Beck: entre o diagnóstico
E AINDA... aplicação do direito nessa área, inclusive e a profecia. Disponível em http://
Para o direito ambiental, o princípio da pre- na esfera judicial. (Mirra) bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/
caução significa que os Estados devem brasil/cpda/estudos/dezesseis/julia16.htm
tomar medidas para prevenir a degradação A efetivação do princípio da prevenção e MIRRA, Álvaro Luiz V. Direito AMBIENTAL:
O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO E SUA APLICAÇÃO
ambiental, mesmo na ausência de certeza o da precaução não é caminho antagônico
JUDICIAL . Disponível em: http://
cientifica absoluta quanto aos efeitos ne- ao progresso científico ou à aceleração do www.aprodab.org.br/biblioteca/doutrina/
fastos das atividades projetadas sobre o crescimento do país, bem afirmaram os bis- alvm01.doc
meio ambiente (Martin-Bidou, 1999:633). pos da CPT na discussão sobre os trans- SAMPAIO, A. A constitucionalização dos
Ele compreende, assim, as questões nu- gênicos: [...] “não se trata de travar a ciên- princípios de direito ambiental. pp. 70-72
cleares, da camada de ozônio e dos fun- cia ou a pesquisa, nem de provocar medo
dos marinhos, mas igualmente o problema paranóico perante o novo. Pelo contrário, Marcilene Ferreira -
dos transgênicos e da biotecnologia de defende-se o mais amplo espaço para a ci- Agente da CPT de Minas. Publicado em
modo geral. (Dallari, Ventura, 2002) ência e a pesquisa; orientadas, porém, para www.EcoDebate.com.br - 28/05/2007.

20
M E I O
DESPERDÍCIO

A
DE ALIMENTOS

M B I E N T E
É CRISE AMBIENTAL Foto: Mr Kris
por Henrique Cortez

A
relação entre o desperdício de ali- culo usada pelo Ministério do Meio Ambi- portantes emissores de metano – um gás
mentos e as mudanças globais foi ente do Reino Unido. Qualquer que seja com potencial de aquecimento vinte vezes
proposta pelo jornal inglês The este valor absurdo, ele é inaceitável, tanto maior do que o CO2. Nos aterros e lixões, o
Independent na edição de 02/11/2007, ao em termos sociais como econômicos e metano é produzido pela fermentação da
analisar o colossal desperdício alimentar ambientais. Socialmente é injustificável matéria orgânica, e o desperdício de ali-
no Reino Unido. jogar fora a comida que poderia alimentar mentos influencia a emissão, potencializan-
mais de 20 milhões de brasileiros. do a produção do gás.
Citando informações do Ministério do Meio
Ambiente inglês, ficou-se sabendo que, anu- ALIMENTO É ÁGUA Assim, quando evitamos o desperdício
almente, são desperdiçados 6,7 milhões de O desperdício também afeta o meio ambi- de alimentos através da compra do estri-
toneladas de alimentos, ao custo de 200 a ente porque, em primeiro lugar, alimento tamente necessário, na quantidade neces-
400 libras por família – o que equivale a um é água. A compreensão do que seja água sária e preparando de modo adequado,
terço de todo o alimento consumido no virtual indica que um quilo de carne bo- estamos obtendo três ganhos diretos:
Reino Unido. Considerados todos os cus- vina “inclui” de 10 a 20 mil litros de água.
1 – reduzimos gastos em nossos or-
tos (transportes, embalagem, manuseio, re- Um quilo de arroz de um mil a dois mil
çamentos domésticos;
frigeração, descarte, etc.), o desperdício cus- litros de água. Um mero e simples filé com
2 – induzimos o aumento da oferta
ta 8 bilhões de libras ao ano. fritas equivale a “consumir” pelo menos
em relação à demanda e, assim,
dois mil litros de água.
também a redução do preço por to-
No caso brasileiro, as pesquisas indicam
nelada de alimento, o que pode re-
que também desperdiçamos 30% de todo Neste sentido, o desperdício de alimen-
duzir o contingente dos que não con-
o alimento produzido. O último dado tos é um gigantesco desperdício de água,
seguem pagar pelo alimento; e ao
confiável é do IBGE que, em 1999, informa- que vem a ser um dos mais sérios proble-
mesmo tempo
va que tínhamos desperdiçado 39 milhões mas socioambientais do século 21.
3 – estamos contribuindo para a re-
de toneladas de alimentos. O IBGE estima-
dução da produção de metano.
va que tal desperdício seria suficiente para Em segundo lugar, é um potente emissor
alimentar 19 milhões de brasileiros(1). de metano. Qual é a emissão de metano Como a fome de mais de 850 milhões de
pelos alimentos jogados nos aterros sani- pessoas em todo o mundo parece não ser
Este desperdício ocorre ao longo de toda a tários e lixões? 65% do lixo domiciliar no suficiente para sensibilizar muitas pesso-
cadeia produtiva, da colheita/criação/abate Brasil é composto por matéria orgânica, as, quem sabe o aquecimento global ve-
ao transporte, processamento, embalagem, essencialmente resíduos alimentares (fo- nha a ser um argumento mais forte para
armazenamento e distribuição até as nos- lhas, talos, cascas, gordura animal, restos incentivar a redução do desperdício. Po-
sas mesas. Nosso desperdício, de 1999 para de alimentos preparados, etc.). De qual- demos e devemos eliminar o desperdício
cá, certamente aumentou... e muito. quer forma, mesmo considerando apenas de alimentos. O planeta, a sociedade e o
o lixo doméstico, fica claro que o desperdí- nosso bolso agradecem. ■
Já em 1999, o desperdício brasileiro em cio de alimentos é uma parte substancial
(1) Ver artigo Reduzir desperdício de
relação aos britânicos era muito maior em do lixo descartado pelos brasileiros. alimentos exige mudança de atitude de
termos absolutos, mas também era maior mercado e consumidores,
em termos relativos, porque nossa popu- Em termos de aquecimento global, sem- in http://www.ecodebate.com.br/
lação é três vezes maior e desperdiça quase pre pensamos no metano a partir da emis- Principal_vis.asp?cod=6515&cat=
seis vezes mais que a do Reino Unido. são dos animais ruminantes, dos campos
Nem sei quantos bilhões de reais custa de arroz, dos pântanos e dos reservatóri- Henrique Cortez – coord. do EcoDebate
este desperdício, seguindo a lógica de cál- os. No entanto, os aterros e lixões são im- henriquecortez@ecodebate.com.br

Cidadania&MeioAmbiente 21
A G R O E C O L O G I A

A conversão da agricultura mundial


para padrões orgânicos – que excluem
pesticidas e fertilizantes à base de
nitrogênio – ainda é utópica,
mas vital se quisermos mudar
os paradigmas de produção

foto: Lillies
de alimentos para proteger
a humanidade e o planeta.

CARBONO INORGÂNICO por Marcelo Leite

AGRICULTURA ORGÂNICA E BIOTECNOLOGIA Seu ponto de partida é o paradoxo do sis- mitigar os efeitos do aquecimento global e
A inércia das idéias feitas é a saúva do tema alimentar internacional, que tem uma da escassez de água que rondam o planeta.
conhecimento – ou acabamos com ela, ou face dupla:
ela ainda acabará conosco. O lugar-co- ■ Primeira: o suprimento de comida é su- Seria imprudente tomar essas afirmações
mum sobre baixa produtividade e alto ficiente para alimentar toda a humanida- por verdades comprovadas. Elas estão
custo da agricultura orgânica (agroeco- de, mas 854 milhões de pessoas passam sujeitas, no entanto, a corroboração em-
logia pode ser um nome menos tautológi- fome no mundo. pírica. Só que a agroecologia permanece
co) é o correlato perfeito da noção não ■ Segunda: o uso de insumos químicos restrita a 2% da produção agrícola mun-
menos precária de que só a biotecnologia na agricultura não pára de crescer, mas a dial, se tanto, e não passa de um gueto
(transgênicos na vanguarda) poderá livrar produção de grãos caiu por dois anos exótico nas escolas de agronomia. Nelas
o mundo da fome. consecutivos (1% de 2004 a 2005 e 2,7% imperam as saúvas biotecnológicas, que
de 2005 a 2006). podam sem cessar os brotos de um pro-
Nenhuma das afirmações acima foi ainda grama de pesquisa comparativa – perfei-
adequadamente testada e provada até A turma da conferência em Roma pode ser tamente racional – sobre a sustentabili-
agora, mas ambas estão na base das no- quixotesca, mas não rasga estatísticas. dade dos estilos agrícolas concorrentes.
ções predominantes sobre a agricultura. Reconhece no documento a necessidade
Enquadrado por essa moldura de aço, o de aumentar a produtividade da agricultu- Diz uma velha máxima do ativismo políti-
debate público não encontra espaço para ra em 56% até 2030, só que vê um papel co que é preciso ser pessimista na análi-
apreciar conclusões divergentes, como as para a agroecologia nesse desafio. Pelas se e otimista na ação. Há momentos si-
que emergiram da Conferência Internaci- simulações, a conversão da agricultura nistros, porém, em que a realidade mono-
onal sobre Agricultura Orgânica e Segu- mundial para padrões orgânicos – que ex- poliza toda a margem para o pessimismo
rança Alimentar, realizada em Roma, entre cluem pesticidas e fertilizantes à base de e ainda condena o otimista à análise, lo-
os dias 3 e 5 de maio deste ano. O relató- nitrogênio – resultaria num suprimento de daçal que separa um oceano de boas in-
rio final do encontro organizado pela FAO 2.640 a 4.380 quilocalorias diárias por pes- tenções e medidas sensatas da terra fir-
(Organização das Nações Unidas para soa. O mínimo recomendado é 2.200. me em que homens de carne e osso car-
Alimentos e Agricultura) pode ser obti- bonizam o próprio futuro. ■
do, em espanhol, no endereço ftp:// Não se trata de trocar seis por meia dúzia.
ftp.fao.org/docrep/fao/meeting/012/ Os defensores da agricultura orgânica sus- MARCELO LEITE é autor de Promessas
J9918S.pdf. Os 350 participantes de 80 tentam que suas práticas consomem 33% a do Genoma (Ed.da Unesp, 2007) e de Clones
Demais e O Resgate das Cobaias, da série de
países, filiados a 66 governos, 45 ONGs, 56% menos energia que a convencional, ficção infanto-juvenil Ciência em Dia (Ed.
24 institutos de pesquisa e 31 universida- dobram a quantidade de carbono seqües- Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia
des, remaram com esforço contra a cor- trado no solo, reduzem 48% a 60% as emis- (www.cienciaemdia.zip.net). Artigo publicado
na Folha de S.Paulo - 28/10/2007 e em
rente, sem nenhuma garantia de que che- sões de CO2 e retêm 20% a 40% mais água http://www.ecodebate.com.br/
gariam a algum lugar. no solo. Ou seja, são muito melhores para default.asp?pagvis=6604

22
Reservas Legais

P R OT E Ç Ã O
e Áreas de
Preservação
Permanente: vitais
RLs, APPs e
para o equilíbrio e
AGRICULTURA

foto: Eridiane
a manutenção da

A MBIENTAL
produtividade dos
sistemas que elas
integram.
por Joel Henrique Cardoso
SUSTENTÁVEL
LEGISLAÇÃO NEGLIGENCIADA Agora, apesar de que seja incoerente a posição dessas áreas, com aplicação de pro-
Por exigência legal, as propriedades ru- tomada de decisão dos agricultores de gramas de educação ambiental sobre a im-
rais devem conservar a vegetação de ocor- eliminarem a vegetação dos ecossistemas portância dos ecossistemas naturais para
rência natural nas áreas definidas como naturais, bem cabe dizer que pouco ou áreas cultivadas a todos os agricultores,
de preservação permanente (APP) e de nada tem sido feito para que estes consi- definição de prazos para ajustamento de
reserva legal (RL). gam perceber a importância dessas áreas conduta para os irregulares e criação de ins-
em suas propriedades. Desde uma pers- trumentos de política pública que recom-
As APPs são aquelas áreas impróprias pectiva mercadológica, manter a vegeta- pensem a averbação de reserva legal.
para o cultivo ou criação por serem muito ção nativa por exclusivo civismo, signifi-
declivosas ou por servirem como área pro- ca reduzir a área plantada e, conseqüen- Estas ações significariam um passo impor-
tetora de corpos de água. As RLs, como o temente, perder dinheiro. tantíssimo na direção de um modelo de agri-
próprio nome indica, são áreas reserva- cultura mais sustentável, principalmente
das para o desenvolvimento espontâneo No entanto, conforme tem sido verifica- no que diz respeito à formação, que seria
da vegetação de um determinado local. do nos trabalhos em agricultura de base um momento ímpar para se questionar as
ecológica, a exemplo das pesquisas reali- práticas da agricultura convencional, que
Estas determinações constam no Código zadas na Estação Experimental Cascata da defende altas produtividades a qualquer
Florestal Brasileiro (CFB) desde 1964, mas Embrapa Clima Temperado, as RLs e APPs custo e desconhece os princípios ecológi-
infelizmente a maioria das propriedades têm papel estratégico para a saúde dos cos que sustentam a importância dos ecos-
não cumpre com o estabelecido na lei. cultivos, criações e pessoas que residem sistemas naturais como espaços regulado-
em uma determinada área rural. res das condições ambientais e de conser-
Apesar do gradativo avanço dos índices vação da biodiversidade.
de desmatamento e substituição de ecos- Os ecossistemas naturais têm a capacidade
sistemas naturais, somado às muitas de estabilizar os fluxos de energia e ciclos As demais ações que orientam para a re-
flexibilizações da lei que têm ocorrido des- materiais, propiciando as condições ideais cuperação e manutenção das RLs e APPs
de então, os setores da sociedade mais di- para a vida. Como exercício pedagógico, estão previstas em lei e possuem um apa-
retamente afetados por este regulamento poder-se-ia dizer que a manutenção das RLs rato institucional fiscalizatório e de regis-
não se acanham em demandar ajustes que e APPs em uma unidade de produção equi- tro já devidamente organizado para levar
lhes permitam reduzir as áreas de interesse vale ao mesmo princípio que recomenda a a cabo a meta de ajustamento de conduta
público, ainda que se viva em um momen- manutenção da floresta Amazônica – maior dos inadimplentes e compensação dos
to de profunda reflexão frente à crise ambi- floresta natural do mundo. Ambas contri- adimplentes que tenham ou queiram suas
ental ocasionada pelo modo de produção buem de forma decisiva para o equilíbrio e áreas averbadas.
e consumo das sociedades atuais. manutenção da produtividade dos sistemas
que elas integram, estando as RLs e APPs É certo que sem resolver questões apa-
A um primeiro olhar, parece inacreditável no nível sistema local (agroecossistemas), rentemente pontuais, como é o caso das
que algo tão relevante como as RLs e APPs assim como a floresta Amazônica está para RLs e APPs, dificilmente se alcançará
seja passível de questionamento nos dias o sistema global (biosfera). metas tão ousadas como a tão propalada
atuais. No entanto, o fato é que, mais do agricultura sustentável. ■
que questionada, essa legislação é negli- AÇÕES DE CONSCIENTIZAÇÃO
genciada e sua efetiva aplicação ainda está Mantendo-se as devidas proporções, as
Joel Henrique Cardoso é pesquisador em
num horizonte distante, ou seja, a maioria RLs e APPs têm uma importância tão estra- Sistemas Agroflorestais da Embrapa Clima
dos proprietários rurais que não possui RL tégica para o futuro da agricultura brasileira Temperado. Artigo publicado no Jornal da
ou APP não tem sido devidamente cobra- quanto a Amazônia tem para o futuro da Ciência, SBPC, JC e-mail 3400,
de 29 de novembro de 2007 e no
da, e aqueles que as mantêm não recebem humanidade. Portanto, faz-se necessária http://www.ecodebate.com.br/
nenhum prêmio social. uma ação agressiva na direção da recom- Principal_vis.asp?cod=6873&cat=

Cidadania&MeioAmbiente 23
O Programa
S E M I - Á R I D O

1 milhão de
Cisternas
prova que
o povo do
semi-árido
é capaz de
dirigir seu
próprio destino
e encontrar
meios de
resolver seus
problemas
quando lhe são garantidos meios e políticas de

SACIAR convivência com o fenômeno natural da seca.

A SEDE
de ÁGUA e
CIDADANIA
por Frei Beto - fotos: FEBRABAN

CISTERNAS DE CHUVA: O programa parte da concepção de que o ponsavelmente desperdiçada, entope


ÁGUA POTÁVEL NO SEMI-ÁRIDO povo do semi-árido é capaz de dirigir seu bueiros, causa erosão de encostas, ala-
Como impedir que a população do semi- próprio destino e encontrar meios de re- gamentos e enchentes.
árido brasileiro prossiga vítima da seca? solver seus problemas, desde que a ele
A melhor iniciativa é o Programa 1 Milhão sejam garantidos meios e políticas de con- ÁGUA DE QUALIDADE PARA TODOS
de Cisternas, também conhecido por Pro- vivência com a seca, e não de combate a Hoje, mais de 1 milhão de pessoas têm
grama de Mobilização e Formação para este fenômeno natural. Assim como em garantido o acesso a água de qualidade
Convivência com o Semi-árido. Em no- outros países não se combate a neve, mas para beber e cozinhar, o que significa,
vembro último comemorou-se o marco de se aprende a conviver com ela, o mesmo em termos de segurança alimentar e nu-
1 milhão de pessoas favorecidas pela se aplica à seca. tricional, efetiva revolução em suas vi-
construção de cisternas. das. Quando se sobrevoa o semi-árido
notam-se pontinhos brancos esparsos
Quem o monitora, há quatro anos, é a Arti- Até agora, o programa mobilizou 228.538 na zona rural. São as cisternas alocadas
culação no Semi-árido Brasileiro (ASA), famílias e construiu 221.362 cisternas de nas casas dos agricultores, muitas em
ONG que conta com o apoio do governo placas para captação de água de chuva – lugar de difícil acesso.
federal, da Federação Brasileira de Bancos via calha do telhado da casa –, para con-
(Febraban), da sociedade civil e de vários sumo humano. Nada mais potável que a Um dos efeitos mais tangíveis é favorecer
parceiros nacionais e internacionais. água da chuva – que, nas cidades, irres- mulheres e crianças que, todo dia, deixam
24
de caminhar quilômetros para buscar água,
muitas vezes poluída. Agora, podem dedi-
car o tempo à educação, à família, à produ-
ção, ao lazer. Como muitas mulheres afir-
mam, sentem-se mais mães, mais esposas,
mais companheiras, mais gente.

As crianças, agora mais saudáveis, já não


são acometidas por doenças transmissí-
veis por recursos hídricos, entre as quais
a diarréia; idosos e portadores de defici-
ências são atendidos; famílias inteiras, que
anteriormente nunca tinham acesso a no-
ções e cursos de tratamento da água e CISTERNAS: ÁGUA POTÁVEL NO SEMI-ÁRIDO
convivência com o semi-árido, agora usam
essas informações para melhorar sua qua- SEMI-ÁRIDO NORDESTINO
lidade de vida.  Área de 868 mil km2.
 Abrange o norte dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo; o sertão da
Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará,
As cisternas são construídas com, e não Piauí e o sudeste do Maranhão.
para as pessoas; essas se envolvem pro-  Estima-se que vivam aproximadamente 8 milhões de pessoas na área rural
fundamente na obra, o que garante o seu dessa região, o que a torna o semi-árido mais populoso do mundo.
cuidado. Como todo o processo é feito  Na região chove em média 700 a 750 milímetros por ano.
 A chuva não é regular, e o solo não absorve a água, que evapora
em comunidades, vê-se ali a erradicação rapidamente.
da exclusão social e a afirmação da cida-  Por isso é importante captar a água das chuvas e armazená-la para a estiagem.
dania. São mais de 1 mil municípios do
semi-árido que, mobilizados, compõem um CISTERNAS
novo cenário.  Cisternas caseiras são o reservatório mais simples e eficiente.
 Cisternas de placas são o tipo mais comum.
 Cisternas de placas são reservatórios cilíndricos, cobertos e semi-enterrados
As cisternas, perfuradas ao lado da casa e que permitem o armazenamento de água para consumo humano.
revestidas de placas de cimento, são equi-  O tamanho da cisterna varia de acordo com o número de pessoas da casa e
pamentos simples, de tecnologia barata e do tamanho do telhado.
fácil manejo. Têm longa vida útil quando  As cisternas podem armazenar 10 mil, 15 mil, 16 mil, até 20 mil litros.
 A experiência mostra que a cisterna pode garantir água potável para a
cercadas de cuidados mínimos, de acordo
família beber e cozinhar por oito meses.
com o que se aprende nos cursos. Ao visi-  Uma família de cinco pessoas terá água para beber por até um ano, com
tar a região, notei em algumas girinos vi- 200 mm de chuva por ano.
vos, sinal de que a água é própria para
consumo humano. Inaugura-se, assim, uma MATERIAIS E CUSTOS
política pública não-clientelista, efetiva-  Os materiais necessários são cimento, areia, ferro, arame, brita, vedacit,
calhas de zinco, pano, canos de PVC e joelho de PVC e supercal.
mente voltada aos mais pobres.  Segundo técnicos da ONG dos funcionários do Banespa que trabalham com
o Projeto Cisternas, os custos atuais variam bastante: de um mínimo de
Falta, agora, o governo federal dar mais R$844,00 até o máximo de R$1.200,00. Há construções de R$880,00 a
apoio à ASA, para que se possa atingir a R$900,00, até R$1.111,00.
meta de construir 1 milhão de cisternas e  A mão-de-obra é a própria família, que precisa aprender não só a construir
a cisterna, mas como fazer sua manutenção e como tratar a água.
favorecer 5 milhões de pessoas com aces-  Pedreiros são treinados para fazer cisternas. Pela obra podem receber
so à água potável. R$100,00, muito acima da média do sertão. Dá-se preferência a pedreiros
da própria comunidade.
E fica a pergunta que não quer calar: por
que nas edificações urbanas raramente se BENEFÍCIOS
 Queda vertical dos casos de verminose. Uma comunidade da Bahia acusou
encontram equipamentos de captação da
100% de habitantes com verminose antes da construção de cisternas. Depois,
água da chuva, gratuita e potável? O exem- o índice caiu para 7%.
plo não deveria começar pelas obras do  Uma família gasta em média uma hora por dia para buscar água nos
poder público? ■ açudes. Com a cisterna a família tem mais tempo para outras atividades.
 Diminui a dependência da população aos caminhões-pipa enviados por

Frei Beto é escritor e autor, em parceria políticos regionais.


 Promove a educação da população em questões de saúde, higiene, ecologia
com Mario Sergio Cortella, de Sobre a
Esperança (Papirus), entre outros livros. e cidadania.
 Contribui para a geração de renda, tornando o grupo beneficiado
Artigo publicado no Estado de Minas, Belo
Horizonte (15/11/2007) e enviado por auto-sustentado.
 Fixa a população na região.
William Rosa Alves, colaborador do
www.ecodebate.com.br Fonte: Febraban - Federação Brasileira de Bancos/Superintendência de Comunicação Social

Cidadania&MeioAmbiente 25
VELHO CHICO
ENTREVISTA

LUTA
EM DEFESA DA

foto:Fábio Pozzebom/ABr
VIDA
Por Norbert Suchanek C&MA – QUAL O OBJETIVO DA PRESENÇA DA CARAVANA NO RIO
DE JANEIRO?
Toinho Pescador - Sabemos que no Rio de Janeiro também há
A Caravana em Defesa do Rio São rios, pescador, trabalhador, índios... que estão sofrendo os mes-
mos problemas que nós lá no Rio São Francisco. Gostaríamos
Francisco e do Semi-árido esteve na que os cariocas ficassem do nosso lado contra esse projeto de
transposição das águas, que tem de ser debatido com toda a
sede da Associação Brasileira de comunidade ribeirinha que vive do São Francisco.
Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, O PROJETO JÁ INICIADO PELO GOVERNO LULA DEVE CUSTAR MAIS
para apresentar sua visão DE 6 BILHÕES DE REAIS E AINDA É PRATICAMENTE DESCONHECIDO NO
BRASIL E NO MUNDO. QUAL SUA VISÃO DO PROJETO?
estratégica do questionado projeto TP – Um projeto faraônico. Dizem que vão tirar água do Rio São
Francisco para salvar o povo do Nordeste que sofre com a seca.
de transposição das águas do Velho Mas, isso não é verdade porque os estados incluídos no projeto
Chico. Durante o encontro, Toinho têm água! O que está faltando é a distribuição da água, que
existe em abundância. Como disse o Padre Cícero: o sertão vai
Pescador (Antonio Gomes dos virar mar. O sertão tem Orós, tem Castelão, milhares de açudes. É
a prova de que tem água! E por que não tem água no lado norte
Santos) – 75 anos, pescador do Ceará? Porque não há interesse pelos pobres. A mesma coisa
acontece lá no Baixo São Francisco: o rio passando e numa dis-
artesanal, vice-presidente da tância de 10-12 quilômetros o povo bebe água de carro-pipa. Isto
Federação dos Pescadores de quer dizer que não há uma política de distribuição de água para
as comunidades ribeirinhas. Então por que vai-se gastar tanto
Alagoas e membro titular do Comitê dinheiro abrindo um canal de 700 quilômetros quando tem gente
morrendo de sede em menos de 10 quilômetros?
Hidrográfico do Rio São Francisco –
POR ISSO O SENHOR E CIENTISTAS COMO O PROFESSOR AZIZ
concedeu entrevista ao jornalista AB´SABER SÃO CONTRA A TRANSPOSIÇÃO.
Norbert Suchanek. Este projeto é dispensável. Eu nasci no Rio São Francisco, criei
nove filhos, ainda adotei um menino. Todos estão vivos e foram
alimentados pelo rio porque tinha peixe em abundância! Tanto
26
peixe que não precisava nem de tarrafa nem de rede. Era um en-
contro dos peixes caindo dentro do nosso barco. Hoje, nem mes-
mo com os melhores artifícios se pega peixe. É cada vez pior. QUANTOS PESCADORES HÁ HOJE EM SUA COMUNIDADE?
Estamos, eu e 15 mil pescadores no Baixo São Francisco, abaixo
A DIMINUIÇÃO DO PESCADO SERIA DEVIDO ÀS GRANDES BARRAGENS E das hidrelétricas de Paulo Afonso e Xingó. Eu ensinei meus fi-
AO ESGOTO SEM TRATAMENTO DESPEJADO NO RIO? lhos a pescar, e hoje nenhum deles tem condições de criar um
Como fazer um projeto de transposição sem se fazer uma revitaliza- filho pescando na linha. Um de meus filhos trabalha hoje como
ção? Só que uma revitalização verdadeira, não a da propaganda do vigilante. Além de poluído, a cheia não chega mais. Sem cheia,
governo Lula. Sem estações de tratamento de todos os esgotos não há piracema! O rio só reproduz umas duas ou três qualidades
não se pode falar em revitalização. A água dos esgotos deve voltar de peixe. Surubim não aparece mais. Lá no Baixo São Francisco
limpa e pura para o rio. Essa é a verdadeira revitalização! não aparece mais pirá, corvina e outros peixes.
Outra questão fundamental: a da terra. Como revitalizar as águas
sem primeiro fazer a reforma agrária ampla, que dê terra e assistência A SEU VER, COMO A TRANSPOSIÇÃO VAI AFETAR A VIDA DAS
técnica para que o homem se fixe. Não é só dizer “Tome a terra!” É dar COMUNIDADES NAS CERCANIAS DO RIO SÃO FRANCISCO? QUAL
a terra e também capacitar. O pescador é um marginalizado: não teve SERÁ O EFEITO DA TRANSPOSIÇÃO DAS ÁGUAS?
como estudar. Como ele vai enfrentar uma burocracia tão grande Vai piorar ainda mais. O pescado diminuiu em variedade e quanti-
quanto a que temos aí?! Quando o pescador se desemprega do rio, dade por causa das barragens. Depois, veio o desmatamento, que
ele não tem como se empregar; pode até virar um assaltante! E se assoreou o rio. Hoje, não entra mais navio de navegação; mal dá
isso acontece é porque o governo o tirou do trabalho! Mas há ainda para os barcos de pescadores e as barcas para atravessar o povo.
outros problemas que têm de ser encarados e resolvidos. O São Francisco praticamente não é mais navegável. E quando se
fizer a transposição, aí na certa vai abaixar mais porque vai vazar!
PODERIA CITAR QUAIS SÃO? As lagoas marginais não mais se encherão pela falta de volume de
A questão do aquecimento global, do dizer que o álcool vai salvar água, e elas são os viveiros e criadouros dos peixes. Tudo está na
o mundo do problema da poluição. Ora, no momento em que se mão dos latifundiários, que vão plantar e queimar cana, acabando
desmata, para onde vão os animais? E os animais não fazem parte com passarinhos. Tudo vai embora e aí é a desgraça total!
da nossa vida? Então, planta-se cana, ganha-se muito dinheiro,
mas há fome para os que moram no local desmatado. O grande O SENHOR É CONTRA A PLANTAÇÃO DE CANA E A PRODUÇÃO DE ETANOL?
latifúndio desmata ou queima por perversidade uma floresta não Sou contra a plantação de cana principalmente nas margens do
para assentar o homem no campo, a fim de que ele possa viver. rio e nas lagoas marginais. Já tem cana demais plantada! Derru-
Mas só tem multa, certo? Quando o IBAMA multa em 2 milhões baram as nossas matas e plantaram cana. Mesmo aumentando a
um latifúndio que desmatou, me parece que ele incentivou a derru- área plantada, a cana não dará emprego. Nem hoje ela gera em-
bada da floresta! Por tudo isso é que estamos nesta luta e quere- prego na comunidade. O que gera emprego é a pesca no rio e as
mos o apoio de toda a sociedade para fazer a verdadeira revitaliza- plantações de arroz, milho, feijão, batata, inhame, quiabo e árvo-
ção, e parar com esse negócio de transposição! res frutíferas nas margens do rio. Cana precisa de muita terra,
certo? E aí os restos de nossas matas vão embora! Para nós,
ACREDITA QUE SUA MENSAGEM SERÁ OUVIDA? pescadores, plantar cana é desempregar mais o povo, como já
Meu recado é para o presidente da República: faça uma revitali- acontece no Mato Grosso do Sul. Hoje, não temos mais madeira
zação correta! 503 municípios despejam todo o esgoto no rio. lá em Alagoas para fazer um barco! Só se fizer barco de cana! E a
Queremos que o Lula vá lá nas margens do Rio São Francisco gente tinha madeira de primeira!
conversar com a gente, ribeirinhos, principalmente os do Baixo
São Francisco. Nosso rio era uma empresa navegável! Hoje, não É O DISCURSO DO PROGRESSO...
navega mais porque o rio está assoreado. Vejo falar em progresso, mas só a ganância aumenta. Onde estão
os peixes que moravam no rio? Onde estão o presu e o xingó?
PARECE QUE OS GRANDES BENEFICIÁRIOS DA TRANSPOSIÇÃO SÃO A Aonde estão as capivaras, os canarinhos, os curiós e o nosso
INDÚSTRIA DO CONCRETO QUE GANHA FAZENDO A OBRA E A sabiá? Já não tem mais a madeira, já não tem mais para tirar. Já não
AGROINDÚSTRIA, PRINCIPALMENTE A DO ETANOL... tem mais o tatu. Já não tem mais o mocó. E quando tudo se vai, os
Vai servir para plantar cana e criar camarão industrial. O verdadei- pobres estão na pior. ■
ro camarão se cria no rio e no mar! Por isso desmataram os man-
guezais lá na beira do Rio Jaguaribe. Lá no Ceará do Ciro Gomes
derrubaram os manguezais e fazem lagoas para criar camarão. Norbert Suchanek é
Tem centenas de lagoas improdutivas porque a carcinicultura jornalista e escritor
formado na Alemanha.
matou tudo quanto foi camarão. E ainda assim continuam com
Residente no Rio de
esta insistência em produzir esse camarão para mandar lá para o Janeiro, já publicou
exterior. Quem primeiro tem de comer o camarão é quem é da terra, vários artigos sobre a
e só depois mandar para fora. Nós também tínhamos manga-rosa, transposição do Rio
maria, espada, comum, cecília... manga gostosa. A CODEVASF São Francisco e os
problemas atuais do
(Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco) der-
povo no Nordeste do
rubou nossas mangueiras para plantar manga de exportação. Só Brasil. Email:
que a manga não é mais igual a nossa. n.suchanek@online.de

Cidadania&MeioAmbiente 27
O
C
I
H
C
O
H
L
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V

Brasília - Manifestantes protestam contra o projeto


de transposição do Rio São Francisco, em frente ao
Congresso Nacional. Foto:Marcello Casal Jr/ABr

O GOVERNO IRRIGAÇÃO: SISTEMA INOPERANTE


No Nordeste setentrional, onde as chuvas

NÃO
são esparsas e o clima predominante é o do
semi-árido, existem instalados, hoje, equi-
pamentos e infra-estrutura pública para irri-
gação em 60 mil hectares. No entanto, cerca
de 30.880 hectares dessa terra estão para-

INVESTE EM dos, sem plantio algum, segundo o próprio


órgão que os gerencia, o Departamento Na-
cional de Obras contra as Secas (DNOCS).

IRRIGAÇÃO
Sem irrigação, pequenos produtores só
podem esperar a chuva, que nem sempre é
suficiente, para o plantio de subsistência
de feijão, milho e mandioca.

Enquanto a União projeta gastar bilhões com Neste ano de seca, a perda da produção
foi de mais de 50% no Ceará, onde 152 dos
transposição das águas do Rio São Francisco, 184 municípios do estado decretaram situ-
ação de emergência pela estiagem. Pelos
políticas públicas de distribuição de água cálculos do governo, 127 mil pessoas não
têm o que comer no estado pela perda da
mal-estruturadas e especulação imobiliária safra. As explicações para a ineficiência
do uso das áreas já prontas para irrigar
geram terras ociosas no semi-árido. são várias. Para o diretor-geral do DNOCS,
Elias Fernandes, em alguns casos há falta
d’água, e em outros, há falta de interesse
28
“emAR$6,6
transposição do Rio São Francisco está orçada
bilhões, quase o dobro dos R$3,48 bilhões
investidos na área de irrigação em 30 anos.

de agricultores ou empresários em inves- ção instalados pelo Governo Federal – 2003), os estados do Nordeste setentrio-
tir, dificuldades para conseguir crédito ou Companhia de Desenvolvimento dos Va- nal (Ceará, Rio Grande do Norte, Para-
mesmo problemas de gestão. les do São Francisco e do Parnaíba íba e Pernambuco) têm população esti-
(Codevasf). Dos 100 mil hectares instala- mada em cerca de 21,5 milhões de pes-
Além disso, segundo agricultores, há tam- dos, 81.200 hectares estão sendo cultiva- soas, sendo 10,3 milhões residentes em
bém indícios de especulação imobiliária, dos. Segundo o diretor da área de gestão região semi-árida, com sérios problemas
principalmente em áreas que serão bene- dos empreendimentos de irrigação do ór- de abastecimento. Segundo o Comitê da
ficiadas pelo projeto de transposição do gão, Raimundo Deusdará Filho, entre os Bacia Hidrográfica do São Francisco, o
Rio São Francisco e que terão seu poten- motivos para não haver cultivo nos res- Projeto de Transposição atende a menos
cial hídrico triplicado, quando a obra esti- tantes 18.800 hectares de terras figuram a de 20% da área do semi-árido e 44% de
ver pronta. Um desses perímetros do troca de culturas agrícolas, questões de sua população continuará sem acesso
DNOCS, o Jaguaribe-Apodi, em Limoeiro mercado e problemas de gestão. ao precioso líquido”, afirma João Suas-
do Norte (200 km de Fortaleza), apresenta suna, da Fundação Joaquim Nabuco.
grande contraste: largas áreas de caatin- TRANSPOSIÇÃO X
ga bem ao lado de canais cheios d’água PROJETOS DE IRRIGAÇÃO Os movimentos contrários à transposição
usados para irrigar apenas 2.800 hectares Somente a transposição do Rio São Fran- pregam justamente a transferência do me-
cultivados por empresas. cisco, iniciada este ano pelo governo fede- gainvestimento para pequenos projetos,
ral, está orçada em R$6,6 bilhões, quase o principalmente aqueles já formatados pela
A área total do projeto é de 5.400 hectares dobro dos R$3,48 bilhões investidos na área Agência Nacional de Águas (ANA), sob o
e há outros 9.800 para serem implementa- de irrigação, em 30 anos, conforme o Banco título Atlas Nordeste, e as obras para o meio
dos. Não é barato instalar uma infra-es- Mundial (Bird). As vozes contrárias à trans- rural defendidas pela ONG Articulação para
trutura de irrigação, de acordo com rela- posição alertam que a obra não surtirá efei- o semi-árido (ASA). Segundo o Atlas, cer-
tório do Banco Mundial de 2004, intitula- to social significativo, e argumentam que o ca de 70% da água retirada da transposição
do Impactos e externalidades sociais da dinheiro seria mais bem utilizado se investi- irá para o agronegócio e 26% para as cida-
irrigação no semi-árido brasileiro. O cus- do em projetos menores de irrigação. des onde já existem outras soluções. Ob-
to médio desses empreendimentos é de servam ainda que outros estados padecem
US$10 mil por hectare, segundo o banco, Conforme a publicação Transposição: águas de recursos para a finalização de perímetro
mas há casos em que os custos são bem da ilusão, editada pelo Projeto Manuelzão/ irrigados, como a Bahia, cujos projetos Baixio
maiores, como o do Jaguaribe-Apodi, que UFMG, o fluxo de água máximo previsto no de Irecê e Salitre, apesar de incluídos no
chegou a custar US$15 mil por hectare e é projeto de transposição só poderá ser reti- Programa de Aceleração do Crescimento
tido como um insucesso por esse estudo. rado quando o reservatório de Sobradinho (PAC), não foram concluídos.
estiver acima de 94% do volume útil e os
Em 30 anos, o país investiu cerca de US$2 rios e açudes da bacia receptora – Nordeste MST OCUPA ÁREAS
bilhões (R$3,48 bilhões) em obras de irri- setentrional – estiverem com nível de água Terras do perímetro irrigado Jaguaribe-
gação, segundo o banco. A construção abaixo da média. Os dois fatores só aconte- Apodi, na divisa do Ceará com o Rio Gran-
de um perímetro irrigado inclui a instala- cem a cada 12 anos. de do Norte, são disputadas por empresas
ção de canais para levar a água de um de fruticultura, pequenos agricultores nati-
reservatório às terras irrigáveis, máquinas “Uma análise acurada mostra que o pro- vos e até pelo MST. Dos 5.400 hectares do
para seu bombeamento, estações eleva- jeto está bastante descolado da realidade perímetro já implementados, 2.600 estão sem
tórias, equipamentos para a distribuição da região, pois não leva em consideração cultivo algum. Diante das terras ociosas e
da água (como os pivôs que fazem a água a existência, em praticamente todos os dos canais d’água que passam no meio de-
jorrar do alto), microaspersores e man- estados, de uma importante infra-estru- las, 160 agricultores que já foram irrigantes
gueiras para gotejamento (que permitem tura hídrica ociosa”, afirmou o doutor em da área, mas que tiveram de entregar seus
um menor desperdício de água), além de Hidrologia e Irrigação e professor da Uni- lotes para cobrir dívidas, ameaçam até inva-
galpões para a estocagem da produção. versidade Federal do Rio Grande do Nor- di-las para começar a trabalhar.
te, João Abner Guimarães. Desde 2000, a
Além das áreas do DNOCS, há no Nor- proposta teve orçamentos variados, que Água não é problema na região, garantida
deste meridional, ao longo do Rio São oscilaram de R$2,7 bilhões a R$20 bilhões. pelo Rio Jaguaribe, que foi perenizado pelo
Francisco, outros 25 projetos de irriga- “Conforme estatísticas da Sudene (de açude Orós. O que impede que as terras
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estejam sendo totalmente cultivadas é, para
NOTA DO COMITÊ DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO SÃO FRANCISCO os agricultores, a especulação imobiliária,
DE SOLIDARIEDADE AO BISPO DE BARRA, DOM FLAVIO CAPPIO pois a área será beneficiada pela transpo-
sição do São Francisco. “Um hectare de
terra valia antes R$40. Depois, já foi vendi-
do por R$1.400”, informa José Maria Filho,
da Associação dos Ex-Irrigantes do Proje-
to Jaguaribe-Apodi. “Essa terra é muito
fértil. É só ter água.” Os 160 agricultores
estavam entre os beneficiados do períme-
tro quando o projeto começou a ser im-
plantado, no final dos anos 80.

“A gente começou a colher muito, uma


safra muito boa, mas não via o retorno.
Foi então que descobrimos que a nossa
cooperativa tinha feito uma dívida enor-
me e não pagou nada. Sem dinheiro para
produzir, o jeito foi entregar as terras”,
explica Luís Ferreira da Silva, 72 anos, ex-
irrigante. O que antes eram lotes destina-
dos a pequenos agricultores passou a ser
Brasília - O bispo de Barra (BA), Dom Luiz Flavio Cappio, mostra à imprensa carta
que encaminhou ao Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre o Projeto de Integração
de empresas, que só os utilizam parcial-
do Rio São Francisco Foto: Roosewelt Pinheiro/ABr mente. “O perímetro, por si só, está irre-
gular, pois não há controle algum sobre a
O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco – CBHSF – através de sua posse dessa terra”, informa o procurador
diretoria colegiada reunida na cidade de Maceió, em Alagoas, nesta quarta- Samuel Arruda. Ele solicitou à Justiça que
feira, dia 28 de novembro de 2007, dirige-se à opinião pública brasileira para o DNOCS faça a demarcação da área para
manifestar sua irrestrita solidariedade ao bispo de Barra, Dom Flavio Cappio, estabelecer um novo espaço para os pe-
que iniciou nesta terça-feira, na cidade de Sobradinho, no Estado da Bahia, quenos agricultores. Só 15 pequenos agri-
uma nova greve de fome em sinal de protesto contra a decisão do Governo cultores da área irrigável não entregaram
Federal de dar início às obras do polêmico Projeto de Transposição das Águas
suas terras, permanecendo com um lote
do Rio São Francisco sem cumprir com acordo anteriormente firmado.
de sete hectares cada um.
O CBHSF, ao tempo em que se preocupa com a vida de Dom Cappio, entende
perfeitamente as razões pelas quais ele volta a assumir essa atitude de extrema O diretor-geral do DNOCS, Elias Fernandes,
coragem e desprendimento cívico e reconhece no seu gesto o sentimento daque- disse que toda a área não cultivada dos
les que defendem o Velho Chico. A greve de fome, vista sob esse ângulo, é
perímetros irrigados do órgão será checada
uma tentativa patriótica cujo objetivo principal é, mais uma vez, sensibilizar o
presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, e os membros do seu gover- e, se for necessário, a instituição tentará re-
no, para a necessidade de substituir a imposição do polêmico Projeto da Trans- tomar na Justiça a posse da terra, até para
posição pelo diálogo há tanto tempo prometido mas jamais concretizado. repassar os lotes a outros interessados. Para
ele, o maior prejuízo com a ociosidade das
Instituído conforme a Lei 9.433/97 (Art. 38, incisos I,II,III) como entidade a
terras é pela não criação de empregos. “Se
quem cabe estabelecer as prioridades de uso da água e arbitrar, em primeira
instância, os conflitos relacionados aos recursos hídricos no âmbito da bacia imaginarmos que, a cada hectare, poderia
hidrográfica, o CBHSF anuncia que dará prosseguimento ao processo adminis- ser criado um emprego, temos 30 mil empre-
trativo n° 01/2004, que trata do conflito provocado pelo projeto da transposi- gos a menos no semi-árido”, constata.
ção. Tal processo pode resultar em proposta alternativa que contemple os esta-
dos da bacia e inclua áreas do semi-árido fora da bacia que comprovem escas- Apesar de metade das terras de perímetros
sez de água. Em conseqüência, pede ao Governo Federal que suspenda a im- irrigados do DNOCS estar sem produção
plantação do projeto até que o citado processo esteja concluído. alguma, o órgão já planeja investir na cria-
Tal atitude, se adotada pelo presidente da República, não somente abriria cami- ção e ampliação de mais perímetros. Estão
nho para atender às demandas de Dom Cappio, como ensejaria a possibilida- inclusos no Programa de Aceleração do
de de substituição de conflito tão desgastante por uma ampla negociação demo- Crescimento cinco projetos, com investimen-
crática, transparente e republicana que permita o encontro de soluções de me- tos de R$491 milhões até 2010. ■
nor custo, mais eficiência e maior grau de sustentabilidade socioambiental para
garantir o acesso à água em todo semi-árido, bem como a efetivação do pacto
de gestão das águas da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco e a garantia da
harmonia federativa.
Textos publicados no jornal Correio da
Maceió, 28 de novembro de 2007
Bahia, BA (18/11/2007) e no portal
A DIRETORIA COLEGIADA DO CBHSF www.ecodebate.com.br

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