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96 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 6 ) : 9 6 - 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8
D É C I O P I G N A T A R I

Metáfora:
barroco, surrealismo,
Rosa
Há cerca de dez anos, Octavio Paz proferiu
algumas conferências no Brasil, a convite do jornal O
Estado de S. Paulo. À hora do debate, perguntei-lhe se
não estabelecia vínculos entre o barroco e o surrealismo,

levando-se em conta que o surrealismo marcara toda


a literatura hispano-americana dos últimos sessenta
anos e que o barroco era o sinal nascimental de toda a

cultura colonial espanhola e portuguesa. Respondeu


que não percebia nenhuma rede ou processo causal
entre os dois fenômenos culturais, sem negar afinida-
des incidentais. Surpreendeu-me a sua hesitação, pois DÉCIO PIGNATARI
é professor da FAU-
USP, poeta, tradutor e
ensaísta. É autor de,
sempre percebi notáveis conjunções entre ambas as entre outros, Poesia,
pois É Poesia
(Brasiliense) e Panteros
manifestações. (Editora 34).

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No imediato pós-guerra, teve grande física, refletida numa imensa e inexaurível
repercussão, entre interessados e estudio- metáfora – formada, por sua vez, de
sos, um certo ensaio (em verdade, uma co- miríades de inexauríveis metáforas”. E é
letânea) de Eugênio D’Ors sobre o barro- daí que começo – se não for dizer muito: da
co. D’Ors era um sub-Valéry, sub-Spengler, metáfora.
sub-Ortega, direitista supostamente bem- Para efeitos de um didatismo simplifi-
intencionado (viria a apoiar Franco), ami- cado (idéias novas tendem a ser formula-
go de outro direitista supostamente bem- das de forma um tanto emaranhada), parto,
intencionado, Luciano Anceschi (amigo de não da semiótica de Peirce, mas da lingüís-
Pound, apoiou Mussolini). O livro, organi- tica de Saussure, um pouco contaminada
zado por este, foi publicado nos estertores pela primeira, da sua distinção dualista, mas
do fascismo (Rosa e Ballo Editori, Milano, nem sempre dialógica, entre signifiant
1945 / (Ano) XXIII – do fascismo). Trata- (significante) e signifié (significado), para
se de uma delirante cocção metafísica des- dizer que assim como há uma metáfora do
tinada a promover o barroco a uma catego- signifié (assim se a entende, comumente),
ria cultural universal, devido à constância há uma metáfora do signifiant. Insisto no
de seus traços (constância, no sentido ma- exemplo que há duas décadas apresento aos
temático), a que batizou de íon (algo assim meus alunos: João é águia/Aguilar é águia.
como projeto, em grego). O barroco repre- Em ambos os casos, temos a fórmula – ló-
sentaria uma tendência contraposta e em gica, digamos – da metáfora, que se move
contrabalanço frente ao que se possa en- no eixo da similaridade do signo verbal. O
tender por “clássico”: “a idéia que voa” primeiro ilustra o caso, como disse, mais
contra “a idéia que pesa” (especialmente geral e disseminado: os referentes, ou seja,
na área da arquitetura). O barroco d’orsiano os objetos designados pelos signos verbais
abrangia os campos os mais surpreenden- João e águia, apresentam, supostamente,
tes da cultura (filosófica, artística, científi- traços de semelhança (os signos remetem
ca e utilitária), da arquitetura à culinária, para fora); no segundo caso, o mesmo pro-
passando pelas touradas e pelo sistema da cesso, mas com algo mais: os signos reme-
circulação sanguínea, de Harvey. Estra- tem também para dentro, ou seja, para si
nhamente, nesse bolo e rolo, o espanhol mesmos. Dessa forma, os signos verbais
ignora Arcimboldo e Gaudi, provavelmen- Aguilar/águia arremedam a semelhança
te para não levar água ao moinho do inimi- que se imagina existir entre os referentes,
go, entre cujos moedores estava Croce, para ou objetos designados. Trata-se de um even-
quem o barroco era a arte da aberração, do to léxico e lingüístico minoritário – nada
feio, da deformação escatológica. D’Ors aberrante, porém – que envolve a paro-
teve papel destacado, na qualidade de nomásia, vulgarmente entendida como tro-
relator dos chamados Encontros de cadilho ou jogo de palavras. Oswald de
Pontigny, na França, nos inícios dos anos Andrade opera nesse nível: é cubista e
30, onde o barroco foi debatido a fundo antibarroco; João Cabral de Melo Neto e
pela primeira vez. Como resultado, nem Mário de Andrade operam no primeiro ní-
foi o barroco límbico precipitado nas vel e tendem ao barroco. Guimarães Rosa
profundezas do inferno, nem alçado aos flutua entre ambos.
píncaros: tornou-se apenas um tópico e uma O barroco é algo assim como uma espé-
etiqueta válidos da história cultural do cie cultural clássica que sofreu mutação
mundo ocidental. (regressiva?) por pressão da Companhia de
Mas, em certa altura de seu prefácio, Jesus, do Concílio de Trento, da Contra-
Anceschi cita uma frase instigante de C. Reforma e da Inquisição. Ideologias funcio-
Calcaterra (cf. O Parnaso Rebelado, Mi- nam como supergramáticas, ou macro-
lão, 1940): “o barroco é a expressão esti- gramáticas: a “verdade” é fornecida e im-
lística de quem vê toda a vida do espírito, posta a priori, não importando os cami-
do empírico sensorial à especulação meta- nhos e percursos por tortuosos que sejam,

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por retos e “corretos” que sejam, seguidos. essa operação da literatura na América
Trata-se de uma rallye sotérica: parta-se Latina.
de qualquer ponto, percorra-se qualquer Toda a literatura hispano-americana do
caminho ou vereda, chegue-se ao ponto de primeiro pós-guerra até nossos dias deita
encontro verdadeiro e único. Quem chega raízes no surrealismo (com a possível ex-
está salvo. É uma farsa rabelaisiana do ceção de Borges). Ora, a fragilidade
silogismo, uma paródia da lógica, um pensamental de André Breton e sua pobre
teorema lúdico para a maior glória de Deus consciência ou inconsciência de linguagem
e da Igreja (ou do PC e de Stálin, ou do transformaram a chamada escrita automá-
nazismo e Hitler). Pode-se brincar no meio tica no ponto central e nevrálgico do
do caminho, pode-se até farrear, mas o surrealismo, a escrita automática que pri-
deboche pode contaminar de corrupção a vilegia um paratatismo de segmentos, mas
verdade final. O êxtase orgasmático de não paratatismo frasal (a lógica do discur-
Santa Teresa, de Bernini, é a perfeição; a so permanece, o alogicismo ficando por
obscuridade retorcida de Gôngora oculta a conta do inesperado dos termos componen-
libidinosidade; Quevedo, Gregório de tes, coisa que Gertrude Stein já havia feito
Matos e Bocage desbocam e destabocam – e bem feito – Dinner is west). Em suma, tal
e são condenados. O mesmo se observa no como no barroco, o surrealismo privilegia
lado PC de João Cabral – o lado que lhe a metáfora do significado – donde suas li-
trouxe fama: pelo ar, a pé ou fluvialmen- gações perigosas. A escrita automática é
te, o ponto final é obrigatório: é o homem um ectoplasma freudiano, um produto tar-
do humanismo comuno-stalinista-pres- dio derivado da stream of consciousness,
tista. E ainda há quem piche o happy end de William James, a qual, aliada à durée
hollywoodiano. bergsoniana, colaborou na produção do
Ou seja, o discurso que pressupõe a solilóquio de Molly Bloom e na melhor
grande verdade apriorística é sempre jus- produção de Virgínia Woolf (Jacob’s
tificativo, nunca investigativo. Assim o Room, Mrs Dalloway, The Waves). A mais
discurso barroco da Contra-Reforma, as- gloriosa aparição da escrita automática está
sim o discurso político-ideológico do po- no Finnegans Wake.
der. Nesses casos, a curva é o caminho A grande novidade da literatura em pro-
mais curto, quando não a curvatura… da sa hispano-americana dos anos 60 e 70 – a
espinha. O desvio é sempre um bom cami- do famoso boom – reside justamente na
nho, com certas cautelas. E as veredas. conjunção da metáfora do significado com
Mas as veredas de Guimarães Rosa são a metáfora do significante, ou seja, em ter-
investigativas. Rosa desmonta a super- mos semióticos, rumo à iconização do ver-
gramática do poder do pecado: se não há bal (em especial, Rayuela, de Cortázar, e
o “Diabo, na rua, no meio do redemu- Tres Tristes Tigres, de Cabrera Infante).
nho…”; se “Ele não existe, e não apare- Mas Guimarães Rosa os antecedeu nesse
ceu nem respondeu – que é um falso ima- processo e lhes é superior. João Miramar,
ginado”; se o Diabo não há, se o Coisa Macunaíma (em parte), Grande Sertão,
Ruim não existe, também pode inexistir o Poesia Concreta, Galáxias, Catatau,
Coisa Boa, Deus. Rosa, aí, nega a Igreja, Frasca, Panteros e Um Copo de Cólera
a Contra-Reforma, a Igreja, a Inquisição, assinalam os passos do inovador percurso
o Partido Comunista e todos os sistemas da prosa narrativa brasileira deste século, a
iníquos de poder. Uma das grandezas do única da América Latina que desau-
Grande Sertão é a coerência estrutural tomatizou a escrita neste quase findo e fi-
entre a negação da metagramática ideoló- nado século. Quantidade pouca, originali-
gica e o fluir do discurso-fala-escrita. Rosa dade muita.
nega a metáfora do signifié, do barroco e O surrealismo não “pegou” por aqui
do surrealismo e deriva para a metáfora porque o país é surrealista, disse eu há mais
do significante. Foi o primeiro a realizar de duas décadas. E acho que bem o disse.

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