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Marcos Granconato

ii Eles falaram sobre o inferno


Eles Falaram Sobre o Inferno
Marcos Granconato
iii

Copyright © 2013 Marcos Granconato All rights reserved. ISBN:


1493626418

ISBN-13: 978-1493626410
Ao meu avô Antonio, hoje no ocaso da vida, que me mostrou a porta para a
vida que não tem ocaso.

SUMÁRIO
PREFÁCIO 1
INTRODUÇÃO 3
1 O ambiente em que se desenvolveu a igreja 13 do século II
2 As marcas distintivas da igreja do século II 56
3 Os Pais Apostólicos 75
4 Os Apologistas 97
5 Irineu de Lião 134
CONCLUSÃO 179
REFERÊNCIAS 185
APÊNDICE 191

“Não me importa se hoje esperais frases bem feitas. É meu dever advertir-
vos, citando as Escrituras. Não tardeis a vos voltar para o Senhor, não o
postergueis de um dia para outro, pois que a ira dele virá quando não
esperardes. Deus sabe quanto estremeço em meu trono episcopal quando
ouço esse aviso. Não posso calar-me; sou

forçado a pregá-lo. Repleto de temor, encho de também a vós.”


(Agostinho de Hipona)
PREFÁCIO
Recebi com muito prazer a solicitação do Pr. Marcos Mendes Granconato
no sentido de prefaciar este volume. O Pr. Marcos foi, durante alguns anos,
nosso aluno no Centro Presbiteriano de PósGraduação Andrew Jumper, um
departamento do Instituto Presbiteriano Mackenzie, em São Paulo. Ele
concluiu com brilhantismo o curso de Mestrado em Teologia, tendo se
graduado no final de 2009. Sua área de concentração foi aquela pela qual
sou responsável, ou seja, Teologia Histórica. Como parte dos requisitos do
curso, escreveu e defendeu com habilidade e competência o trabalho que
ora é publicado na forma deste livro.

O primeiro mérito do autor em sua pesquisa foi abordar uma doutrina


esquecida e subestimada por um grande número de cristãos nos dias
atuais. Numa época em que o pragmatismo e a mentalidade do marketing
religioso têm dominado muitas igrejas, considera-se desagradável e até
mesmo de mau gosto tratar de um tema difícil e impopular como esse – a
doutrina da perdição eterna. Todavia, o Pr. Marcos argumenta com razão
que esse tópico não só é respaldado pelas Escrituras, mas foi defendido
unanimemente pelos antigos pensadores cristãos conhecidos como “pais
da igreja”.

Não podendo tratar do assunto em todo o período patrístico, como era seu
desejo inicial, o autor se ateve aos pais da igreja do 2º século, os
forjadores iniciais da teologia cristã. Ele examinou catorze textos e
escritores classificados em três categorias: os pais apostólicos, os
apologistas e o bispo Irineu de Lião. Antes de analisar as contribuições
dessas autoridades, ele delineou em dois capítulos introdutórios o contexto
e as características distintivas da igreja pós-apostólica. Essa
contextualização revela por que motivos a preocupação com a doutrina da
perdição eterna foi alvo do interesse dos cristãos do 2º século.

O Pr. Marcos demonstra que os pais daquele período consideraram essa


doutrina uma parte essencial da mensagem cristã, utilizando-a como
instrumento eficaz para proteger e divulgar o cristianismo diante das
ameaças das perseguições, dos atrativos da sociedade pagã e dos desafios
das seitas heréticas. Em sua argumentação, ele utiliza uma grande
quantidade de fontes primárias e estudos acadêmicos sobre o tema,
insistindo na relevância e atualidade dessa doutrina menosprezada, porém
importante para a fé cristã.

O Pr. Marcos Granconato está de parabéns por essa valiosa contribuição


para o campo da teologia histórica. Faço votos do que este livro seja uma
significativa fonte de instrução e encorajamento para os cristãos
contemporâneos.

Dr. Alderi Souza de Matos, Th.D. Maio de 2010


INTRODUÇÃO

A escatologia cristã, quando considerada em seus aspectos básicos, não


apresenta grandes obscuridades. Na verdade, é possível fazer sua
exposição em poucas linhas, numa síntese que abrangeria as bênçãos da
salvação desde já alcançadas pelo crente, mas desfrutadas de modo mais
completo por sua alma, após a morte; a ida das almas dos incrédulos para
o inferno onde, em meio a terríveis suplícios, aguardam a sentença
definitiva do juízo do grande dia; a segunda vinda de Cristo; a ressurreição
dos mortos; o Juízo Final que redundará no envio dos ímpios, em corpo e
alma, para o lago que arde em fogo e enxofre; e, finalmente, o
estabelecimento de novo céu e nova terra, onde os santos viverão com
Deus em eterna bem-aventurança.

Porém, se de um lado o tronco principal desse ramo da teologia bíblica


está livre de conflitos, de outro, a tentativa de perscrutar cada componente
da síntese exposta acima revela certa variedade de possibilidades e
mistérios sobre os quais os teólogos de todas as épocas têm debatido na
busca de conceitos que melhor se ajustem à mensagem transmitida pelo
Senhor e seus apóstolos.

Nos dias atuais, um dos temas conectados à escatologia que tem


provocado certo calor no debate teológico é precisamente o que trata do
destino final dos ímpios. Teólogos de renome apresentam-se divididos. De
acordo com Vernon C. Grounds há pelos menos cinco posições comuns
entre os estudiosos modernos sobre o que acontece com o ser humano
depois da morte.1
Grounds destaca em primeiro lugar o agnosticismo, segundo o qual é
impossível obter qualquer certeza de que existe uma realidade chamada
inferno, pois, conforme esse entendimento, não se pode determinar o que
ocorre após a extinção da vida humana neste mundo.

Em seguida vem o aniquilacionismo que, em sua forma mais radical,


afirma que não há nenhuma dimensão além. De acordo com essa visão,
depois da morte o homem simplesmente apodrece.

A terceira concepção denomina-se universalismo e afirma que nenhum


membro da raça humana se perderá, uma vez que, conforme esse ensino,
não existe nenhum inferno eterno. Teólogos modernos como Karl Rahner,
John A. T. Robinson e John Hick são os mais destacados proponentes do
chamado “inclusivismo soteriológico”, a noção otimista que não deixa
espaço para a perdição eterna de ninguém. Esse entendimento é reforçado
também na atualidade pelos expoentes da teologia do processo e do teísmo
aberto.2

Outra visão teológica que se destaca no campo do destino dos mortos é o


condicionalismo, segundo o qual a imortalidade é uma dádiva de Deus
concedida a todos os homens, mas só poderão retê-la aqueles que
preencherem a condição de crer em Cristo. Para os condicionalistas, os
que rejeitam o Salvador e não se arrependem serão aniquilados, caindo na
inexistência completa.3 Assim, esse modelo defende a perenidade do
efeito do castigo e não da sua duração.
1GROUNDS, Vernon C. O estado final dos ímpios In: SHEDD, Russell;
PIERATT, Alan (Orgs.). Imortalidade. São Paulo: Vida Nova, 1992. p.
131-137.
2 Uma análise mais detalhada dessas diferentes concepções encontra-se
em FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemática: uma
análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo:
Vida Nova, 2007. p. 308-310 e 1058-1060. Ver ainda McGRATH, Alister E.
Teologia sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia
cristã. São Paulo: Shedd, 2005. p. 638-640.
Os proponentes dessa doutrina, também conhecida como “imortalidade
condicional”, geralmente aceitam a possibilidade de um período
indefinido de sofrimento no inferno, antes da total aniquilação do ímpio. A
noção de um inferno eterno e literal, porém, de acordo com essa
concepção, deve ser recusada, pois, conforme entendem seus defensores,
tal ideia não se harmoniza com o conceito de um Deus que administra a
justiça de forma justa e proporcional, nem tampouco com a esperança
cristã referente ao estabelecimento de uma realidade futura absolutamente
livre do mal em todas as suas formas. Ademais, dizem, a consciência da
existência do inferno arruinaria a alegria dos santos no céu, impedindo o
desfrute da felicidade plena.

As raízes da doutrina da imortalidade condicional são antigas, sendo


possível detectá-las de forma um tanto ofuscada já em Irineu de Lião.4
Porém, ela tem conquistado amplo espaço nos círculos teológicos atuais,
sendo seu mais destacado representante o famoso escritor e teólogo John
Stott, contra quem James I. Packer escreveu um artigo intitulado
Reconsiderando o aniquilacionismo evangélico: Uma análise do
pensamento de John Stott sobre a não existência do inferno,
disponibilizado em português no site Monergismo.5
3JOHNSON, A. F. Imortalidade condicional. In: ELWELL, Walter A.
(Org.). Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã. São Paulo:
Vida Nova, 1990. vol. 2, p. 319.
4 IRINEU DE LIÃO. Contra as heresias. II, 34:3; IV, 38:3. São Paulo:
Paulus, 1995. p. 240 e 506.
5 PACKER, James I. Reconsiderando o aniquilacionismo evangélico:

uma análise do pensamento de John Stott sobre a não existência do


inferno. Disponível em: <www.monergismo.com/textos/inferno>. Acesso
em: 10 ago. 2009.

Finalmente, há a ortodoxia cristã que aceita o inferno como uma realidade


bíblica, um lugar de sofrimento perene e consciente reservado para as
almas dos incrédulos. Ali, em meio a indizíveis tormentos, os espíritos dos
ímpios aguardam o dia da ressurreição, quando comparecerão diante do
trono de Cristo e, uma vez julgados e condenados, serão afinal lançados
em corpo e alma no lago de fogo, onde sofrerão suplícios inexprimíveis ao
longo da eternidade sem fim.

A notável extensão da controvérsia que hoje existe acerca do futuro dos


maus é fato que aponta não somente para a atualidade desse tema, mas
também para a sua relevância. Isso porque o assunto da existência ou não
de um castigo eterno não somente traz implicações para a concepção de
Deus e do homem, mas também produz desdobramentos práticos,
especialmente nos âmbitos pastoral e missionário, influenciando a
temática da pregação, definindo a forma de abordagem evangelística e
dando à proclamação cristã o tom correspondente de sua relevância e
urgência. De fato, quaisquer que sejam as conclusões acolhidas pela igreja
sobre esse assunto, sua adoção promoverá impactos profundos sobre a
mensagem e sobre as metas do povo de Deus, gerando a necessidade de
uma eventual redefinição do papel do cristianismo neste mundo.

Sendo, assim, óbvia a relevância e a atualidade da doutrina do castigo


eterno, esta obra pretende expor o pensamento dos teólogos do século II
sobre o assunto, destacando que o ensino sobre a perdição perene dos
ímpios, conforme adotado pela ortodoxia cristã, foi parte essencial da
mensagem anunciada pelos primeiros sucessores dos apóstolos. Neste
livro também será demonstrado que os pastores e mestres cristãos
daqueles dias comprovaram a utilidade e a eficácia do ensino bíblico sobre
o inferno tanto para a ação evangelística como pastoral, utilizando-o para
convidar os hereges e os pagãos à fé na verdade, bem como para
desencorajar nos crentes a prática do mal e a apostasia.

Em síntese, este livro pretende demonstrar a validade da seguinte


proposição: os pais da igreja do século II consideraram a doutrina da
perdição futura parte essencial da mensagem cristã e fizeram uso dela
como instrumento eficaz na proteção e divulgação do cristianismo
ameaçado pela perseguição, pelo fascínio do mundo e pelas atrações das
seitas heréticas.

É preciso esclarecer que a concentração da presente análise nos escritos do


século II não foi resultado de uma escolha casual. Conhecer o que
ensinaram os autores daquele período sobre a perdição eterna é
especialmente importante por duas razões. A primeira é hermenêutica; a
segunda, pastoral.

No tocante à razão hermenêutica, deve-se considerar que os escritores


cristãos do século II são os que se encontram cronologicamente mais
próximos dos apóstolos, sendo natural que detenham uma compreensão de
suas doutrinas menos sujeita a tendências filosóficas e culturais que, com
o tempo, foram se infiltrando na mentalidade da igreja, moldando até certo
ponto suas conclusões exegéticas.

Hamman está certo ao dizer que os que asseguravam a continuidade


recordações cristã no século II estavam impregnados de

apostólicas.6 Por isso, William Crockett, quando discute os meios mais


eficazes para descobrir o exato sentido do que os autores bíblicos
escreveram sobre o destino dos ímpios, aponta como uma das vias
essenciais o estudo dos pais da igreja do século II:

Uma forma de abordar essa questão é examinar o que os cristãos


acreditavam no fim do período de formação do Novo Testamento. Se os
cristãos do século II adotaram firmemente uma ou outra visão, deve-se
concluir que essa mesma visão teria sido possivelmente a assumida pelos
escritores do Novo Testamento, uma ou duas gerações antes.
6HAMMAN, A. A vida cotidiana dos primeiros cristãos (95-197). São
Paulo: Paulus, 1997. p. 5.

De fato, o testemunho que advém da primeira metade do segundo século é


muito consistente no tocante ao destino dos maus. Nos tempos dos Pais
Apostólicos, os cristãos acreditavam no inferno como um lugar de
sofrimento eterno e consciente.7

A partir desse ponto, Crockett dá provas de suas asseverações citando


trechos da Carta de Inácio aos Efésios, da Epístola a Diogneto, da
Segunda Epístola de Clemente e do Martírio de São Policarpo. Em
seguida, ele conclui:
Não há nenhuma dúvida de que no início do segundo século, os cristãos
acreditavam num inferno eterno, onde os condenados permaneciam
conscientes... Não muito depois de uma geração após a composição do
Evangelho de Mateus e do livro de Apocalipse, com suas sérias
advertências aos incrédulos, o que se encontra não é a noção de
aniquilação, mas sim de um inferno perene como a crença comum acerca
da punição dos maus.8

O autor supracitado destaca a importância dos escritores do período


subapostólico para a boa compreensão do Novo Testamento por razões
óbvias. De fato, um número menor de camadas históricas separa os
teólogos do século II da igreja do Novo Testamento e ainda que isso,
conforme se verá, não tenha garantido absoluta fidelidade aos ensinos dos
apóstolos, é possível colher nas obras dos mestres mais antigos, elementos
que se harmonizam melhor com o pensamento cristão original e puro.

Ora, ninguém pode negar a importância desse fator para o teólogo


moderno que, em seu trabalho exegético, tem real interesse em conhecer a
mente dos autores bíblicos e ouvir a sua voz livre das interferências que a
distância cronológica e cultural produz. Tendo, pois, os pais da igreja do
século II vivido em época tão próxima do período apostólico, é possível
considerá-los fontes preciosas de indícios dos reais significados
pretendidos pelos escritores neotestamentários em suas obras tidas como
canônicas.
7 CROCKETT, William. Four views on hell. Grand Rapids, Michigan:
Zondervan Publishing House, 1996. p. 65. Minha tradução.
8 Ibid., p. 67. Minha tradução.

Se há uma relevância hermenêutica na busca do ensino cristão do século


II, há também nisso uma relevância pastoral. O século II abrangeu anos
em que a igreja passou por terríveis convulsões. A perseguição promovida
pelo estado romano e inflamada pelo ódio popular; a multiplicação das
seitas que se diziam cristãs e arrastavam consigo os crentes menos
preparados, desafiando, com mestres ousados como Marcião, as doutrinas
principais da fé, colocam a igreja daqueles tempos entre as que, ao longo
da história, mais foram ameaçadas pela apostasia. Isso a transforma numa
fonte singular não só de motivação à firmeza para os cristãos de todas as
épocas, mas também de informação acerca das bases sobre as quais uma
igreja deve se manter a fim de não ser arrastada pelo erro dos hereges e
pela negação da fé diante do perigo.

Ora, os pais da igreja do século II ensinam por seu exemplo que uma das
formas de promover a perseverança na verdade é conscientizar os crentes,
mostrando-lhes qual é o salário terrível e duradouro da mentira. Eles se
esforçaram, assim, por manter vivas na lembrança de seus leitores e
ouvintes as advertências de Cristo sobre um fogo que nunca se apaga,
prestes a torturar os que negam a fé quando perseguidos ou se voltam para
os ensinos heréticos, envolvendo-se, inclusive, com suas práticas imorais e
profanas.

As razões supra mencionadas justificam a escolha do segundo século


como período cuja análise revela aspectos fidedignos e proveitosos do
pensamento cristão acerca do destino do homem sem Deus, conforme
consta da proposição enunciada acima. A referida proposição, porém, deve
ter sua veracidade demonstrada de forma sistemática e objetiva, o que se
fará através dos cinco capítulos que compõem a parte principal da presente
obra.

O primeiro capítulo descreverá o ambiente em que a igreja do século II se


desenvolveu, apontando as dificuldades que enfrentou advindas da
hostilidade do estado romano e do povo em geral e também assinalando o
ambiente moral da sociedade daqueles dias. A menção desses fatores é
importante porque atuavam como estímulos ao abandono da fé, incitando
os mestres da igreja a proclamar a realidade do juízo de Deus.

As diversas religiões e filosofias que se propagavam no século II também


são expostas no primeiro capítulo deste livro como elementos que
compunham o cenário social daqueles dias e que foram úteis para
familiarizar os homens com a noção da continuidade da vida, tornando
mais eficazes as palavras dos pastores da igreja que tentavam influenciar o
pensamento e a conduta de seus ouvintes ao falar sobre as penas e
recompensas que aguardam os homens no além.
O segundo capítulo apresenta uma descrição geral da igreja da época,
indicando a influência que o Novo Testamento exercia sobre ela,
destacando sua crença em sinais miraculosos, apontando o surgimento e a
função essencial do bispo monárquico e mencionando os principais
desvios doutrinários que se insinuavam em suas fileiras. Todas essas
informações são apresentadas em conexão com a doutrina da perdição
eterna, demonstrando o modo como cada um desses fatores serviu como
impulso positivo ou negativo para o anúncio do destino terrível que Deus
preparou para os descrentes.

Os capítulos 3 e 4 expõem e analisam a obra literária dos pais apostólicos


e dos apologistas, respectivamente. O exame dos escritos desses teólogos
revela sua crença unânime na existência do inferno e a utilidade
apologética, pastoral e evangelística que viam nesse ensino.

Evidentemente, a análise da doutrina da perdição eterna nos escritos dos


pais apostólicos e dos apologistas não pode ser feita à parte da observação
de suas noções de soteriologia. Por isso, os capítulos 3 e 4 da presente obra
dão especial destaque às lições daqueles teólogos relativas ao que pode
livrar o homem da ira vindoura, bem como ao modo como a obra de Cristo
se relaciona com esse livramento. Nessa questão, ficará demonstrado que
o anseio apologético e o zelo pastoral dos mestres cristãos do século II
estorvaram um pouco seu cuidado exegético, fazendo-os conceder um
espaço amplo demais para as boas obras e para a constância na igreja
como requisitos essenciais à salvação.

O teólogo de maior destaque do século II foi, sem dúvida, Irineu de Lião.


Ainda que, conforme será visto, seus escritos sejam inconclusivos em
alguns aspectos, neles é possível encontrar uma das fontes mais ricas do
pensamento cristão da época sobre o destino futuro do homem sem Deus.
Sem dúvida, Irineu desponta como exemplo máximo de teólogo que
considerou a doutrina do castigo no além parte essencial da mensagem
cristã, fazendo uso dela como instrumento eficaz para a propagação da fé e
para a proteção do cristianismo ameaçado pela perseguição, pelo fascínio
do mundo e pelos atrativos das seitas heréticas.

Nesse último aspecto, os escritos de Irineu assumem um caráter


notadamente apologético não somente com o objetivo de desencorajar a
apostasia, mas também para demonstrar quão distantes as propostas dos
falsos mestres sobre a vida pós morte se situavam da verdade exposta nos
evangelhos e, assim, impedir que noções contrárias ao ensino do Novo
Testamento e da boa tradição fossem absorvidas ou simplesmente
toleradas pela igreja. Dada a importância de Irineu como renomado
teólogo do século II todo o capítulo 5 é dedicado à análise de sua vasta
obra literária.

Em sua conclusão, este livro destaca a veracidade da tese proposta, realça


os pontos principais da pesquisa e apresenta uma breve reflexão sobre a
necessidade de uma nova ênfase sobre a doutrina das penas futuras para a
manutenção do salutar conceito ortodoxo do ser de Deus.

Em virtude da vastidão de sua obra literária, bem como pelo fato de ter
vivido na transição do século II para o III, este trabalho não analisará os
escritos de Tertuliano de Cartago. Porém, num breve apêndice será exposta
sua crítica ao aniquilacionismo, mostrando que o grande teólogo
cartaginês se alinhava à corrente principal do pensamento cristão antigo.

Para a realização dos fins propostos, o método usado na preparação desta


obra envolveu a análise integral das fontes primárias mencionadas nos
capítulos 3 a 5. O exame de fontes secundárias também foi empregado na
composição deste livro, uma vez que tais fontes são especialmente
proveitosas para a elaboração de uma avaliação abrangente e equilibrada
da obra dos teólogos estudados. A inegável aptidão de inúmeros escritores
modernos que se debruçam sobre a história do pensamento cristão faz de
seus escritos material obrigatório de pesquisa para quem pretende adquirir
uma visão precisa e equilibrada da teologia prénicena. A lista de
referências bibliográficas ao final mostra que um número expressivo
dessas obras foi consultado na composição deste livro.

1
O AMBIENTE EM QUE SE DESENVOLVEU A IGREJA DO
SÉCULO II

Elementos externos e internos moldaram até certo ponto a teologia da


igreja do século II. No tocante especificamente à doutrina das penas
infernais ou do destino definitivo do corpo e da alma dos perdidos, é
notável que as variadas formas de ameaça que se levantaram contra a fé
foram fatores determinantes dos contornos tomados por esse aspecto do
ensino cristão, bem como da considerável tônica que lhe foi dada.

De fato, o grau de ênfase conferido à época ao futuro dos ímpios teve


como causa a presença de perigos que chegavam a pôr em jogo a
existência do próprio cristianismo. Esses perigos levaram os mestres
eclesiásticos de então a realçar o lado terrível da mensagem de Cristo, ou
seja, a parte do evangelho que descreve uma realidade no além marcada
por dores e sofrimento. Os teólogos daquele período entenderam que uma
forma eficaz de proteger a igreja e até mesmo de propagar a fé era insistir
na proclamação de um destino amargo reservado para as almas dos
descrentes, especialmente aqueles que eram contados entre os
perseguidores da igreja, os idólatras, os falsos mestres e os apóstatas.

Entre os perigos que cercavam a igreja no século II, quatro merecem


destaque em virtude da magnitude de seu impacto sobre o pensamento
cristão: a hostilidade das autoridades romanas e do povo em geral; o
degradante ambiente moral da sociedade como um todo; as diferentes
religiões pagãs; e as diversas filosofias propostas pelos intelectuais da
época. Todos esses fatores influenciaram de alguma forma o ensino cristão
sobre o inferno e, por isso, devem ser objeto especial de análise.

A HOSTILIDADE DAS AUTORIDADES ROMANAS E DO POVO EM


GERAL

O estudo das últimas décadas do século I deixa fora de dúvida que por
aquele tempo tanto o estado romano como a sociedade em geral olhavam
os cristãos com antipatia e desconfiança. Tácito deixa transparecer que nos
dias de Nero os crentes já eram considerados pelo povo “uma casta de
homens detestados por suas abominações”.9

Os comentários que, desde então, circulavam e eram alimentados pelo


vulgo propagavam falsamente que os cristãos eram ateus e que, em suas
reuniões, praticavam incesto e canibalismo.10 Isso fez com que desde cedo
os magistrados punissem os cristãos sem que, contudo, houvesse clareza
quanto aos crimes de que eram acusados ou qualquer definição precisa
quanto ao modo como o processo contra os crentes deveria se desenvolver.
9 TÁCITO. Anais XV, 44. In: BETTENSON, H. Documentos da Igreja
Cristã. São Paulo: ASTE Simpósio, 1998. p. 27.
10 Justino de Roma acusa Crescêncio, o filósofo cínico que mais tarde o
denunciou e o levou à morte, de espalhar calúnias contra os cristãos com o
fim de agradar a multidão pervertida (Segunda Apologia 8:2). Isso mostra
que não somente a vulgo ignorante propagava boatos caluniosos contra a
igreja, mas também oponentes de destacada profundidade intelectual, o
que dava força e credibilidade maiores às acusações feitas contra os
crentes.

Essa situação começou a preocupar ainda mais as autoridades em face do


notável crescimento que o cristianismo experimentou nos dois primeiros
séculos de sua existência. Pierre Pierrard ensina que, especialmente
durante o século II, a igreja progrediu por toda parte. Ela se expandiu pelas
comunidades que se multiplicavam no interior da Ásia, na Síria, no delta e
no vale do Nilo e na Cirenaica (atual Líbia). A igreja também se alastrou
além das fronteiras do império, chegando, já nessa época, à Mesopotâmia.
Pierrard prossegue:

No Ocidente, da Ilíria à Espanha, implanta-se uma centena de igrejas: a


Itália central, o sul da Gália e a costa mediterrânea da Espanha são as
zonas mais favorecidas. A (grande) Bretanha e a Sicília conhecem a
Cristo; encontram-se cristãos nas cidadesfronteiras, face aos bárbaros, na
margem esquerda do Reno e na margem direita do Danúbio. O norte da
África abre-se amplamente para o Evangelho.11

Sob o ponto de vista meramente humano, existe o consenso de que essa


difusão sem paralelos da nova fé se deveu não somente à pregação e ao
testemunho de seus adeptos, mas também à sua completa independência
da poderosa estrutura estatal e à sua insistência num estrito código
moral.12 Sejam quais forem, porém, as causas do notável crescimento da
igreja nesse período, o fato é que tal fenômeno despertou a atenção das
autoridades que viram na nova fé uma ameaça para o status quo reinante,
conforme será demonstrado a seguir.
Foi nesse contexto de expansão da nova religião, considerada perigosa e
inimiga dos bons costumes, que Plínio, o considerada perigosa e inimiga
dos bons costumes, que Plínio, o 117) por volta do ano 112, a fim de obter
orientações acerca do modo como deveria conduzir os processos contra os
cristãos. Em sua carta, Plínio expôs como agia em seu tribunal,
condenando à morte os que se confessavam cristãos, torturando alguns
para obter deles confissões de crimes e investigando as práticas da nova
religião para descobrir se, de fato, eram ofensivas à razão, como afirmava
o vulgo.
11 PIERRARD, Pierre. História da igreja. São Paulo: Paulinas, 1982. p.
26.
12 POTTER, David. Emperors of Rome: The story of imperial Rome from

Julius Caesar to the last emperor. London: Quercus, 2007. p. 129.

Plínio revela em sua carta que sua rigidez no trato com os membros da
seita cristã estava surtindo efeito, pois percebia um reaquecimento
extraordinária abandono:
das práticas pagãs que, por causa da difusão

do cristianismo, tinham caído em quase total

Esta superstição contagiou não apenas as cidades, mas as aldeias e até as


estâncias rurais. Contudo, o mal ainda pode ser contido e vencido. Sem
dúvida, os templos que estavam quase desertos são novamente
frequentados; os ritos sagrados há muito negligenciados, celebram-se de
novo; onde, recentemente, quase não havia comprador, se fornecem
vítimas para sacrifícios. Esses indícios permitem esperar que, dando-lhes
oportunidade de se retratar, legiões de homens sejam suscetíveis de
emenda.13

Em resposta a Plínio, o imperador Trajano elogiou sua conduta e a


encorajou estabelecendo os limites de seu procedimento e delineando uma
nova política de perseguição fadada a permear as relações da igreja com o
estado ao longo de todo o século II. De acordo com essa política, não havia
como, no caso dos cristãos, estabelecer um curso específico de ação.
Assim, regra geral, o estado não deveria iniciar uma busca ou qualquer
espécie de caça aos cristãos, mas no caso de haver denúncia, o dever do
magistrado seria investigar e punir, se a acusação fosse confirmada.
Trajano ainda determinou que quem negasse as acusações deveria mostrar
que não era cristão mediante a adoração formal dos deuses. Fazendo isso,
o réu seria perdoado, mesmo que tivesse sido cristão no passado.14
13 PLÍNIO. Epistola X (ad Trajanem), XCVI. In: BETTENSON,
Documentos da Igreja Cristã, p. 29.
Tertuliano de Cartago, na sua Apologia, escrita em cerca de 197, indignou-
se diante da contradição que viu nessa política:

Oh, que perplexidade entre as razões de estado e a justiça! Ele nos declara
inocentes ao proibir que sejamos perseguidos, e ao mesmo tempo ordena
que sejamos punidos como criminosos. Que mistura de bondade e
crueldade, conivência e punição, tudo mesclado em um só ato! Infeliz
edito que tenta assim se evadir ao mesmo tempo em que se embaraça em
sua própria resposta ambígua. Se nos condena, por que dá ordens contra a
nossa perseguição? Se considera um mal nos perseguir, por que não nos
absolve? 15

Percebe-se que, na ótica do advogado do cristianismo, o absurdo da


política de Trajano estava no fato de deixar os cristãos em paz ao mesmo
tempo em que os punia. Ele, assim, aponta o absurdo de condenar alguém
contra quem nem mesmo buscas tinham sido ordenadas. Nesse sentido,
Tertuliano levanta perguntas incômodas: Seria certo executar um homem
que jamais deu motivos para que o poder público saísse em seu encalço?
Que estranhos criminosos eram esses que não deveriam jamais ser
procurados, mas sempre punidos se, por acaso, chegassem aos tribunais?
16
Eusébio de Cesaréia, por sua vez, em sua História
14 POTTER, Emperors of Rome, p. 129.
15 TERTULIANO DE CARTAGO. Apologia. Capítulo 2. In: REEVE, W.;

COLLIER, J. (Orgs.). The apology of Tertullian and the meditations of


the emperor Marcus Aurelius Antoninus. London: Griffith Farran & Co,
s/d.. p. 8. Minha tradução.
16 Na Apologia Tertuliano aponta ainda outros erros cometidos pelas
autoridades contra os cristãos. Dentre eles, os seguintes merecem
destaque: odiar algo sobre o que nada sabiam; opor-se não a uma espécie
de crime, mas simplesmente a um nome; proibir os cristãos de pronunciar
qualquer frase em sua defesa; aplicar a tortura para que os

Eclesiástica viu de forma positiva a decisão de Trajano, atribuindo a ela o


fim de um período em que a perseguição aos cristãos havia chegado ao
grau mais elevado.17 Porém, ele mesmo reconhece que a partir desse
tempo ciladas começaram a ser armadas contra a igreja, tanto pelo povo
como pelas autoridades regionais. Obviamente, sob a nova política
estabelecida pelo imperador, era muito fácil prejudicar os crentes. De fato,
em face das novas orientações de Roma, os cristãos do século II se viram
debaixo da constante ameaça de, sob qualquer pretexto e por qualquer
desafeto, serem denunciados às autoridades e, diante delas, serem forçados
a negar a fé sob pena de torturas e morte.

A principal falha da política de Trajano, como os apologistas do século II


demonstraram e a própria experiência confirmou, foi que os cristãos
passaram a ser condenados sem que fossem comprovadas as acusações de
crimes feitas contra eles. Ao chegarem denúncias acompanhadas de
calúnias que atribuíam aos crentes as práticas investigavam se tais mais
abomináveis, os magistrados não acusações eram verdadeiras, limitando-
se

apenas a averiguar se o acusado era cristão.18 Em caso positivo, a sentença


era a morte, sem haver prova alguma de que o réu era uma ameaça para a
sociedade. Em alguns casos, as denúncias sequer eram acompanhadas de
acusações de crimes, pois bastava ao juiz verificar se o réu era cristão para
condená-lo à pena máxima.

réus negassem o crime, enquanto em quaisquer outros casos a tortura era


aplicada para que o acusado confessasse o crime; e deixar vigorar uma lei
que não protegia valor algum e que fora criada com base em meras
opiniões.
17EUSÉBIO DE CESARÉIA. História eclesiástica III, 33:2. Coleção
Patrística. São Paulo: Paulus, 2008. vol. 15, p. 159.
18 Além disso, havia a produção de provas falsas. Eusébio revela que na
Gália, durante a perseguição promovida por Lúcio Vero (161-169), alguns
escravos que pertenciam a cristãos foram presos e torturados para que
falsamente acusassem seus senhores de festins de Tiestes (antropofagia),
de incestos de Édipo e de outras ações contrárias à natureza e aos bons
costumes (História eclesiástica V, 1:14). Justino faz a mesma denúncia no
capítulo 12 da sua Segunda Apologia: “De fato, buscando condenar à
morte alguns cristãos, fundados nas calúnias contra nós, arrastaram
também escravos, meninos e mulheres e, por

Exemplos de excessos desse tipo são fornecidos por Justino de Roma num
caso que relata em sua Segunda Apologia. Ele conta a história de um casal
dissoluto em que um dos cônjuges, a mulher, converteu-se ao cristianismo,
permanecendo o homem na velha vida. A partir de então, não suportando
ela as práticas libertinas do marido e percebendo que ele se fazia surdo aos
seus constantes apelos de arrependimento, decidiu, depois de algum
tempo, apresentar às autoridades o que era denominado “libelo de
repúdio”, vindo a divorciar-se.

Justino prossegue dizendo que o marido, movido por desejos de vingança,


levou aos magistrados a acusação de que sua mulher era cristã e, diante
dessa simples denúncia, ela foi obrigada a responder diante dos tribunais.
Ocorreu, porém, que a mulher solicitou aos magistrados uma autorização
para dispor dos seus bens antes de se defender da acusação que lhe fora
feita. O pedido foi deferido e o marido, irritado por não poder fazer nada
mais contra a mulher, voltou-se contra Ptolomeu, um dos mestres da igreja
de que sua ex-esposa fazia parte.

O ardil que usou mostra como os cristãos estavam expostos a ser


facilmente prejudicados por seus inimigos. Justino informa que o
centurião que prendera Ptolomeu era amigo do que antes fora marido, e
este pediu que ele lhe perguntasse apenas se era cristão. Ptolomeu
respondeu que sim e isso bastou para que fosse acorrentado e atormentado
por muito tempo no cárcere.

O desfecho da história realça ainda mais a gratuidade com que os cristãos


eram condenados à pena máxima:
meio de incríveis tormentos, os forçaram a repetir contra nós o que o povo
inventa...”.
Finalmente, quando Ptolomeu foi levado diante do tribunal de Urbico, a
única pergunta que lhe fizeram foi igualmente se era cristão. De novo,
consciente dos bens que devia à doutrina de Cristo, confessou o que é
ensinamento da divina virtude... Urbico ordenou que ele fosse condenado
ao suplício; mas certo Lúcio, que também era cristão, vendo um
julgamento ser realizado tão contra a razão, disse a Urbico: “Por que
motivo condenaste à morte um homem que ninguém provou ser adúltero,
ou fornicador, ou assassino, ou ladrão ou salteador, ou, por fim, réu de
algum crime, mas que apenas confessou levar o nome de cristão? Urbico,
não estás julgando de modo conveniente ao imperador Pio, nem ao filho de
César, nem ao sacro Senado.”

Urbico não respondeu nada. Dirigiu-se a Lúcio e lhe disse: “Parece-me que
também tu és cristão!”
Lúcio respondeu: “Com muita honra.” E sem mais, o prefeito deu ordem
para que ele também fosse conduzido ao suplício.19

Eusébio conta que a injustiça dessa prática gerou inconformismo não


somente entre os pais da igreja do século II, mas até mesmo em alguns
membros da aristocracia romana. Ele narra que por aquele tempo o
governador Serênio Graniano escreveu ao imperador Adriano, que sucedeu
Trajano, reinando de 117 a 138, dizendo não ser justo que os cristãos
fossem mortos sem nenhuma acusação ou julgamento, atendendo apenas
ao clamor popular. Segundo Eusébio, em face do apelo de Graniano, o
imperador escreveu a Minúcio Fundano, procônsul da Ásia, proibindo que
julgamentos fossem feitos sem acusação bem fundamentada. A carta de
Adriano, reproduzida por Eusébio, a certa altura diz o seguinte:

Se, pois, os provincianos podem manifestamente manter essa petição


contra os cristãos, pleiteando-a perante o tribunal, empreguem apenas este
trâmite, e não petições nem somente gritos. É preferível, se alguém quer
incriminar, que tu mesmo tomes conhecimento da causa.
19JUSTINO MÁRTIR. Segunda Apologia 2:11-18. In: Justino de Roma.
Coleção Patrística. São Paulo: Paulus, 1995. vol. 3, p. 93.
Se, portanto, alguém os acusar e provar que fazem algo contrário às leis,
decide conforme a gravidade da culpa. Mas, por Hércules! Se alguém a
alega por delação, condena esse procedimento criminoso e cuida de puni-
lo.20

A política injusta contra os cristãos que a rigor foi mantida, conforme se


depreende dos escritos de Tertuliano de fins do século II e início do III,
colocou a igreja sob o risco real de crueldades terríveis. Justino descreve a
que as autoridades submetiam os cristãos: “Decapitam-nos, pregam-nos
em cruzes, atiram-nos às feras, à prisão, ao fogo e nos submetem a todo
tipo de torturas” (Diálogo com Trifão 110:4).

Como se não bastasse a sangrenta hostilidade estatal e o ódio do povo em


geral, a igreja do século II teve ainda que lidar com a perseguição dos
primeiros inimigos do cristianismo: os judeus. Dos escritos da época se
depreende com facilidade que a sinagoga hostilizava a igreja, destacando-
se por suas campanhas contra os crentes.

É mais uma vez Justino de Roma quem destaca a oposição violenta


dirigida contra o cristianismo e procedente de fontes judaicas. Em sua
Primeira Apologia, ele informa que, durante a revolta da Judéia contra o
Império Romano, ocorrida de 132 a 135, o líder da rebelião, Simão bar
Koshba, ordenava que os cristãos fossem submetidos a terríveis torturas,
caso não negassem e blasfemassem o nome de Jesus Cristo (Primeira
Apologia 31:6).

Maiores detalhes acerca da animosidade dos judeus de seu tempo contra a


igreja, Justino fornece no Diálogo com Trifão. Nessa obra, a certa altura
ele pergunta aos seus interlocutores:
20 EUSÉBIO DE CESARÉIA, História eclesiástica IV, 9:2-3, Coleção

Há mais alguma coisa que reprovais em nós, amigos? Ou apenas o fato de


não vivermos conforme a vossa Lei, nem circuncidarmos o nosso corpo
como vossos antepassados, nem guardarmos os sábados como vós o
fazeis? Ou nossa vida e moral também é objeto de calúnia entre vós?
Quero dizer, por acaso também acreditais que devoramos homens e que,
depois do banquete, apagadas as luzes, nos entregamos a uniões ilícitas?
21

Em seguida, o filósofo da igreja se queixa dizendo que os judeus


maldiziam nas sinagogas os que criam em Cristo (16:4; 47:4); que os
mestres das sinagogas ensinavam seus pupilos a fazer isso (137:2) e que os
prosélitos blasfemavam o nome de Cristo, além de desejar matar e
atormentar os cristãos (122:2). Ademais, segundo Justino, quando tinham
oportunidade, os judeus tiravam a vida dos cristãos (133:6).

No Diálogo ainda é levantada a acusação de que os líderes religiosos de


Jerusalém, tão logo surgiu o cristianismo, enviaram homens por todo o
mundo a fim de espalharem que havia aparecido uma seita ímpia de
seguidores de Jesus. Esses homens, além de dizer essas coisas, passaram a
levantar as mesmas calúnias que os pagãos repetiam contra a igreja (17:1;
108:2).

É bom destacar que Justino não é uma fonte isolada de informações sobre
o rancor nutrido pelos judeus contra o cristianismo. Na verdade, suas
percepções encontram paralelo na carta da igreja de Esmirna sobre o
martírio de Policarpo. Nessa carta percebe-se o tom de animosidade do
autor contra os judeus, descritos como os que responderam mais
prontamente à ordem de juntar lenha para a pira onde o corpo de Policarpo
deveria arder. O autor ainda realça que essa prontidão dos judeus em atacar
os cristãos era costumeira (Carta da igreja de Esmirna à igreja em
Filomélio 13).
21JUSTINO MÁRTIR. Diálogo com Trifão 10:1. In: Justino de Roma,
Coleção Patrística, vol. 3, p. 125.

O prolífico escritor Irineu de Lião também menciona a antipatia dos


judeus para com a igreja e as compara às perseguições que Esaú
empreendeu contra Jacó por este ter recebido a bênção devida ao
primogênito (Contra as heresias IV, 21:3).

Num tom bastante otimista, Justino de Roma, em seu Díálogo com Trifão,
afirma que a perseguição promovida pelas autoridades romanas, pelos
líderes da sinagoga e pela sociedade em geral não levava os crentes à
apostasia, mas fazia com que o número de discípulos crescesse ainda mais
(110:4). Porém, é evidente que, em face de perigos tão grandes, o
abandono da fé era uma ameaça séria que a igreja tinha que enfrentar.
Ademais, a despeito do otimismo de Justino, a verdade é que vários eram
os casos de derrota, havendo crentes que blasfemavam o nome de Cristo
para salvar suas vidas.

É o que conta Eusébio ao comentar um relatório enviado pelas igrejas da


Gália, mais especificamente das cidades de Lião e Vienne, às igrejas da
Ásia, narrando detalhes da perseguição a que foram submetidas nos dias
do imperador Lúcio Vero (161-169). Nesse relatório, os cristãos da Gália
dizem, entre histórias tocantes de martírio, que vários irmãos não
suportavam a iminência das torturas e negavam a fé:

Houve, contudo, outros despreparados, não exercitados, ainda fracos e


incapazes de sustentar a tensão de um forte combate. Destes, mais ou
menos dez caíram. Causaram-nos grande dor e desmedida tristeza.
Quebrantaram também a coragem dos que não tinham sido presos e que,
apesar de apavorados, davam, porém, assistência aos mártires e não os
abandonavam.22

Vê-se, assim, que a rigidez da punição estatal, estimulada pelo ódio do


povo, era uma força que impulsionava alguns cristãos na direção da
apostasia e isso certamente moldou o discurso dos pais da igreja que
viveram na época. De fato, apelando para a doutrina das penas eternas,
eles tentaram reduzir o medo dos suplícios terrenos realçando a realidade
dos castigos futuros. Decerto, o fogo temporário dos algozes romanos não
era nada comparado ao fogo do inferno, descrito nos evangelhos como
chamas que nunca se apagam.
22 EUSÉBIO DE CESARÉIA, História eclesiástica V, 1:11, Coleção

A julgar com base nos dados fornecidos pela história, esse discurso surtia
eventualmente os efeitos esperados. São os mesmos cristãos de Gália que,
segundo Eusébio, narram o caso de certa cristã chamada Biblida que havia
renegado o Cristo com medo das feras. A história prossegue dizendo que
os algozes, não contentes com o sucesso em fazê-la apostatar, tentaram
forçá-la a testemunhar contra a igreja a prática dos mais terríveis crimes.
O que obtiveram, contudo, foi surpreendente:

Mas, nas torturas, ela sacudiu o torpor e por assim dizer acordou de um
profundo sono. A dor efêmera relembrou-lhe o tormento eterno na Geena e
fê-la replicar aos caluniadores: “Como eles comeriam criancinhas se nem
mesmo lhes é lícito beber o sangue dos irracionais? (cf. At 15.29). Em
seguida declarou-se cristã e foi agregada à fileira dos mártires.23

Certamente, episódios dessa natureza contribuíram para a formação da


avaliação que o historiador Adrian Hastings fez do cristianismo do século
II. Segundo ele, a firmeza dos crentes daquele tempo mesmo diante da
morte e as respostas que davam aos magistrados revelavam não só um
estrito e vigoroso monoteísmo, mas também um intenso
comprometimento moral, nutrido pela esperança inabalável na realidade
da vida futura.24 Era, sem dúvida, essa noção da existência de vida após a
morte, com recompensas e castigos, que funcionava eficazmente como
fator inibidor da apostasia.
23Ibid., V, 1:26. p. 226.
24HASTINGS, Adrian. A world history of Christianity. Grand Rapids,
Michigan: Eerdmans, 1999. p. 26.

O DEGRADANTE AMBIENTE MORAL DO IMPÉRIO ROMANO

Além da ameaça política e social de derramamento de sangue, o ambiente


moral do Império Romano também preocupava os mestres da igreja do
século II, constituindo-se em outra fonte de apelos (esta pacífica e, talvez,
por isso mesmo, mais perigosa) para que o cristão, deixando de lado os
ensinos do Novo Testamento, se enveredasse pelos mais tortuosos
caminhos de depravação e miséria moral.

Segundo o historiador Edward Gibbon, se fosse preciso apontar o período


da história em que a condição da humanidade foi mais ditosa e próspera,
esse período seria, sem dúvida, o que se estende da morte de Domiciano
(96 AD) até a elevação de Cômodo ao trono imperial (180 AD), ou seja,
praticamente todo o século II.25
Essa avaliação, porém, só pode ser considerada verdadeira se as lentes da
pesquisa foram voltadas para o Império Romano em suas realizações
arquitetônicas, em suas conquistas territoriais, em seu acúmulo de riqueza
(especialmente entre os membros da corte), e em sua administração
pública que tinha sucesso em fazer reinar a paz e a segurança tanto nas
cidades, como nas estradas e até no mar. Se, contudo, as mesmas lentes
forem voltadas para os costumes tanto dos nobres como da plebe que vivia
sob a sombra de Roma, dificilmente poderá ser encontrada na história
outra época tão manchada por vícios e podridão moral.

Falando sobre o mundo que a igreja teve que enfrentar logo após sua
emancipação do judaísmo, depois do ano 70 AD, Mark Noll afirma que o
universo moral no qual os cristãos estavam inseridos era um universo no
especialmente os imperadores qual os líderes políticos, romanos, se
dedicavam
25 GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. São Paulo:
Companhia das Letras e Círculo do Livro, 1989. p. 87.
frequentemente às práticas mais degeneradas, sendo que o povo em geral
se dispunha a imitar esses líderes.26

O testemunho de Tertuliano de Cartago expõe os fracos padrões morais


dos imperadores. Em sua Apologia, ele defende o cristianismo da acusação
de corromper a tradição e os costumes do império dizendo que, na
verdade, eram as próprias autoridades civis que, com sua conduta
desregrada, com a permissividade de muitas de suas leis e com sua
tolerância e descaso em face da lassidão dos costumes, se insurgiam
contra o bem do estado (Apologia VI).

Ainda no capítulo VI de sua Apologia, Tertuliano insiste na acusação de


que os magistrados eram os verdadeiros agentes que atuavam contra a
tradição dos antepassados que fingiam proteger quando condenavam os
cristãos. A única tradição que, no dizer do apologista, as autoridades
romanas de fato defendiam, era justamente aquela na qual os antigos
haviam incidido em erro, a saber, a adoração dos deuses. Os bons
costumes de seus antepassados, porém, os romanos há muito haviam
sepultado.
Aliás, segundo Tertuliano, se os cristãos praticassem os atos terríveis de
que eram acusados por seus perseguidores, então eles, os crentes, não
seriam seus inimigos, mas sim companheiros e cúmplices no pecado
(Apologia IX). O fato, porém, é que, segundo o teólogo cartaginês, eram
exatamente os cristãos os cidadãos que, com sua conduta, protegiam o
império do absoluto caos moral e social (Apologia XXXIX).

É verdade que o século II conheceu imperadores virtuosos como Trajano,


Antonino Pio e Marco Aurélio, mas esses monarcas só puderam observar,
e não curar, a putrefação moral que aos poucos foi consumindo todas as
classes do Império. Além disso, toda a probidade daqueles imperadores
não poderia compensar os anos em que o trono imperial foi conspurcado,
por exemplo, pelo que Philip Schaff chamou de “as vergonhosas diversões
de Cômodo”, que reinou de 180 até 192, e que tinha centenas de
concubinas, bem como “uma feroz paixão por abater homens e animais na
arena”.27
26NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do cristianismo. São
Paulo: Cultura Cristã, 2000. p. 33.

Considerando ainda as camadas altas da pirâmide social, sua conduta


moral se mostrava também lastimável nas diversas formas de crueldade
praticadas pelos magistrados. Conforme visto acima, as autoridades
cristãos a terríveis submetiam súditos inocentes como os

brutalidades, deixando-se influenciar conscientemente por denúncias


falsas.

Exploração dos fracos, luxúria e práticas inomináveis de imoralidade eram


os traços que caracterizavam a vida dos nobres em seus palácios e
mansões. Ao mesmo tempo, o exército abandonava as virtudes do
patriotismo e tanto os generais e outros oficiais de alta patente como os
soldados rasos permitiam que a realização de suas funções fosse moldada
pela suspeita, pela inveja e pelo suborno.

A flagrante degradação detectada nas camadas altas da sociedade e


presente inclusive no exército era vista também nas classes média e baixa,
atingindo até as miseráveis vítimas da fome e das doenças. No século II, a
maior parte dos homens vivia sob a escravidão e a pobreza, condições que
favoreciam o desenvolvimento de um caráter rude. Ademais, as lutas entre
os gladiadores brutalizavam as pessoas e os mitos pagãos incentivavam
toda forma de sordidez.

Os contornos da depravação nas classes inferiores incluíam as práticas


mais repugnantes. Justino fala de “rebanhos de crianças” reunidos com a
finalidade de fazerem uso torpe de seus corpos (Primeira Apologia 27). No
mesmo lugar ele alude a multidões de andróginos e pervertidos espalhados
pelas províncias e menciona os que entregavam seus filhos e mulheres à
prostituição. O apologista destaca quão grave era essa situação ao
denunciar subsidiadas impostos. que tais práticas, tendo um cunho
religioso, eram
27SCHAFF, Philip. History of the Christian Church. 8 vols. Grand
Rapids: Eerdmans, 1987. vol. 2, p. 317. Minha tradução.
pelo próprio estado, com o dinheiro de taxas e

Assim, conforme avalia, as acusações de atos infames e vergonhosos que o


povo dirigia contra os cristãos eram coisas que os próprios acusadores
praticavam publicamente (Segunda Apologia 12.4; 14:1-2). Os judeus da
época podiam até se constituir em exceção quanto às piores vilezas, mas
Justino os reprova mesmo assim, dizendo que seus mestres ensinavam a
poligamia, permitindo que a lascívia fosse desafogada mediante a união
com quatro ou cinco mulheres (Diálogo com Trifão 134:1).

Irineu também denuncia o comportamento reprovável dos homens do seu


tempo. Ele aponta especialmente a conduta dos adeptos do gnosticismo
que, à época, se multiplicavam “igual a cogumelos” e, em suas diferentes
manifestações, abrangiam grandes multidões (Contra as heresias I, 29:1).
Segundo essa vertente filosófico-religiosa, existia na humanidade uma
classe de homens denominados “pneumáticos”. Estes eram os que
possuíam o conhecimento perfeito de Deus e tinham sido iniciados nos
mistérios de Acamot, uma das emanações do Pleroma, responsável pela
origem da matéria. Irineu informa que os gnósticos criam ser, eles
próprios, os pneumáticos e que, conforme ensinavam, essa condição
implicava na impossibilidade absoluta de se corromper, não importando
que obras praticassem:

... assim o elemento pneumático, que pretendem ser eles, está na


impossibilidade absoluta de se corromper, sejam quais forem as obras que
praticarem. Como o ouro lançado na lama não perde o brilho e conserva a
sua natureza sem que a lama o prejudique em nada, assim, dizem eles,
podem estar misturados com qualquer obra hílica [i.e., corruptível] que
não sofrerão dano nenhum, nem perderão sua substância pneumática.28

O resultado dessas invenções, conforme expõe o bispo de Lião, era a


participação em festejos idólatras e espetáculos sanguinários. Além disso,
Irineu acusa muitos gnósticos de seduzir mulheres secretamente e ainda
menciona outros, muito mais ousados, que separavam esposas de seus
maridos e se uniam publicamente a elas.

Indignado, Irineu acrescenta que, “além de cometer muitas outras ações


vergonhosas e ímpias”, os membros das seitas gnósticas tachavam os
cristãos de simplórios e ignorantes, pessoas que precisavam ser educadas
com ensinamentos inferiores ligados a boas obras e continência. Eles, em
contrapartida, se exaltavam a si mesmos com o nome de “perfeitos” e
entendiam que não precisavam de nenhuma instrução moral, pois tinham
em si a semente da eleição, e qualquer que fosse a sua conduta, como seres
incorruptíveis que eram, jamais se manchariam e, afinal, seriam
introduzidos no Pleroma, onde viveriam como esposas dos anjos.
Ramificações dessas seitas ensinavam ainda o amor livre, a poligamia e a
participação em festas pagãs (Contra as heresias I, 28:2).

Dentre as seitas gnósticas, talvez a dos seguidores de Carpócrates fosse a


que mais causasse indignação no bispo de Lião, dada a sua licenciosidade.
Carpócrates dizia que antes de chegar à salvação, as almas dos homens
deviam passar por todas as situações e praticar todas as ações possíveis
neste mundo. Se no período de uma vida não fosse possível experimentar
todas as coisas, a alma não seria liberta e migraria para outro corpo a fim
de completar as ações que faltavam até que nenhuma (Contra as heresias
I, 24:1-4). não restasse mais

O ideal, portanto, dos discípulos de Carpócrates era


realizar todas as ações possíveis, boas ou más, ou vivenciar o máximo de
situações que pudessem no espaço de uma vida, a fim de acelerar o
processo de salvação e livramento da matéria. De posse desses
pensamentos, os membros dessa seita praticavam as mais reprováveis
impiedades e injustiças. Irineu chega a dizer que não teria acreditado que
eles eram capazes de tão chocantes perversidades se ele mesmo não
tivesse verificado isso nos livros e ensinos dos próprios hereges (Contra
as heresias I, 25:5).
28 IRINEU DE LIÃO. Contra as heresias. I, 6:2, Coleção Patrística, vol.
4, p. 48.

Essa perversão de costumes que o século II testemunhou deu ao trabalho


dos pais da igreja que viveram na época um tom fortemente pastoral. Eles
se preocuparam em proteger o povo de Deus da degradação que cercava a
todos e que era acolhida pelas pessoas sem qualquer recato. Nesse seu
empenho por estimular a vida elevada em seus padrões de conduta, eles
destacaram a doutrina das penas eternas, lembrando sempre que oportuno
que o inferno não está reservado apenas aos covardes que abandonam a fé
diante das ameaças dos poderosos, mas também é o destino dos
pusilânimes que abandonam a virtude em face dos insistentes apelos e
zombarias dos maus.

AS DIVERSAS RELIGIÕES NO CENÁRIO DO SÉCULO II

Três foram as formas através das quais as religiões do século II


influenciaram a pregação da igreja da época acerca do inferno.
Primeiramente elas serviram como fonte de inspiração para ao imaginário
cristão. Em segundo lugar, elas representaram um desafio ao colocarem a
igreja diante de noções erradas acerca da vida pós-morte. Finalmente, as
diversas religiões representaram uma ameaça na medida em que sua
rejeição podia trazer castigos aplicados pelo estado. Nesse último aspecto,
conforme visto, os pais da igreja usaram a doutrina das penas eternas para
desestimular a apostasia que invariavelmente ocorria em face dos
suplícios aplicados pelos magistrados romanos.

Para entender como as religiões que subsistiam no século II foram fonte


de inspiração para o imaginário cristão é preciso lembrar que o ensino
sobre o inferno não teve origem com a pregação de Jesus. Outras religiões
que já existiam quando a mensagem dos apóstolos começou a ser
proclamada também falavam sobre um lugar de tormentos reservado para
as almas dos homens ímpios. Ao que parece, em parte com o objetivo de
apresentar informações que não constam nem mesmo nas Sagradas
Escrituras, o cristianismo assimilou certos elementos fantasiosos comuns
nessas concepções então reinantes.

É bem possível que uma das fontes do imaginário cristão sobre o inferno
tenha sido a multiforme religião do Egito. Esta realçava como nenhuma
outra a existência dos tormentos para os maus na vida além túmulo. Para
os egípcios, esses tormentos atingiam, inclusive, os corpos dos
condenados, além de suas almas. Prisões, torturas e castigos com fogo
caracterizavam o inferno segundo a crença dos homens do Nilo. Conforme
seu entender, o lugar de suplício no além era infectado por terrível mau
cheiro e repleto de abismos escuros, rios de água fervente e monstros
cruéis.29

Foi inevitável, pois, que a numerosa igreja que se espalhava pelo norte da
África no século II tivesse seu imaginário sobre as penas futuras
enriquecido pelas crenças da antiga religião do Egito, o que se vê refletido
na chamada literatura apócrifa que tem o inferno como tema constante.30
29 LE GOFF, Jacques. The birth of purgatory. Chicago: University of
Chicago Press, 1984. p. 19-20.
30 A menção notória do inferno na literatura apócrifa tinha propósitos

semelhantes aos dos pais da igreja, a saber: estimular os crentes a se


manter firmes diante da oposição sangrenta, bem como desencorajá-los a
seguir os falsos ensinos dos hereges, sob pena de perderem o galardão de
Deus e serem lançados nas chamas eternas. Além disso, a expectativa de
um fim do mundo próximo animava ainda mais os escritores cristãos

O Apocalipse de Pedro é exemplo notável disso, sendo, dentre os escritos


da época, o que fala mais pormenorizadamente sobre o assunto. Redigido
entre 125 e 150, em Alexandria, a obra teve certa aceitação na igreja
antiga. Clemente de Alexandria a considerou canônica, o Cânon
Muratoriano a incluiu, ainda que com restrições, e as igrejas da Palestina a
usaram em sua liturgia até o século V. No entanto, o Concílio de Cartago
(397) rejeitou a canonicidade do livro, dado o seu tom mitológico, sua
ampla e sádica criatividade e sua óbvia inautenticidade.

Depois de muito tempo desaparecido, o Apocalipse de Pedro foi


encontrado em 1910, numa tradução etíope. A análise contemporânea
revelou que a obra recebeu influências do judaísmo e da mitologia grega,
além de, com suas cenas vívidas sobre as almas no inferno, trazer à
lembrança a rica coloração com que o paganismo egípcio tratava o mesmo
tema.

Nas visões do autor, o inferno é descrito como um lugar de castigo


terrivelmente triste, onde os anjos que torturam os condenados usam
vestes escuras. Os blasfemadores são ali pendurados pela língua e um fogo
abaixo deles os atormenta. As mulheres adúlteras são suspensas pelos
cabelos sobre uma lama incandescente e seus amantes, suspensos pelos
pés, ficam com a cabeça caída sobre a lama, pronunciando tristes
lamentos. Pior sorte têm os carrascos e as mulheres que mataram seus
bebês indesejados:

Via os carrascos e os seus cúmplices, lançados num lugar estreito,


inundado por terríveis répteis. Eram castigados por esses animais e assim
se retorciam no seu tormento, tendo ainda sobre eles camadas de vermes
que pareciam ser nuvens escuras...

Muito perto dali, vi outro lugar fechado, em que escorria o pus e as


imundícies daqueles que eram castigados e formavam uma

do século II a produzir textos que tratavam de questões relativas ao


destino dos maus.
espécie de lago. As mulheres jaziam no meio dessa sujidade mergulhadas
até ao pescoço e diante delas estava um grande número de crianças
prematuras, que gritavam e delas partiam jatos de chamas que atingiam as
mulheres nos olhos. Eram as mulheres que conceberam fora do casamento
e mataram os seus filhos.31

Fábulas cristãs desse tipo, relativas ao inferno, não foram inspiradas


exclusivamente nas religiões do Egito. A cultura grecoromana também fez
suas contribuições.

No vasto Império Romano, desde cristianismo nascer até os séculos que


estabelecimento como religião oficial do império, ou seja, até o século IV,
as religiões da Grécia e de Roma se espalhavam em inúmeras variações,
abrangendo desde as mais elementares especulações místicas até as
formas mais grosseiras de superstição. Essas crenças serão expostas
adiante com melhores detalhes, quando forem analisadas como fontes de
erros que os pais da igreja se viram obrigados a corrigir. Nesta altura, é
preciso apenas apontá-las como fatores que contribuíram para a formação
do imaginário cristão. muito antes do precederam seu

Ora, o cenário religioso greco-romano do século II era marcado por noções


sobre a vida além-túmulo baseadas em criações poéticas repletas de mitos.
Tais concepções partiam do próprio sentido básico do termo grego
“Hades”. Ray Summers explica que essa palavra é derivada do infinitivo
idein, “ver”, acrescido do alfa privativo que torna o sentido negativo, ou
seja, “não ver”.

Assim, Hades se referia ao mundo invisível e os antigos escritores pagãos


usavam essa palavra para falar do lugar habitado pelos espíritos dos
mortos, tanto bons quanto maus (os romanos chamavam esse lugar de
Orcus). Summers prossegue explicando que os antigos dividiam o Hades
em duas partes: o Elísio, que era reservado aos justos; e o Tártaro,
habitado pelos ímpios.32
31Apocalipse de Pedro. Apud MINOIS, Georges. História dos infernos.
Lisboa: Editorial Teorema, 1997. p. 91.
Philip Schaff apresenta uma vívida descrição desse mundo, conforme a
concepção de Homero (Séc. VIII a.C.):

De acordo com Homero, o Hades é uma morada escura no interior da terra,


com uma entrada situada no extremo ocidental do oceano, onde os raios do
sol não penetram. Charon leva o morto ao longo do rio Acheron, e
Cérberus, o cachorro de três cabeças, guarda a entrada, impedindo a
passagem de todos. Ali, os espíritos permanecem em estado incorpóreo,
submersos numa vida sombria e ilusória. Uma vaga distinção era feita
entre duas regiões no Hades, o Elysium (também chamado de “Ilhas dos
Abençoados”), reservado para os bons, e o Tártaro, para os maus.33

Esse universo criativo que emanava das religiões da Grécia e de Roma era
enriquecido ainda mais pelo zoroastrismo cujas crenças provocavam
constante reflexão acerca das penas futuras, influenciando também o
imaginário cristão.

Originada na região onde hoje se situa o Irã, a religião de Zoroastro


superou outras tornando-se conhecida no ramificações, o culto de Mitra,
trazido ao império pelos soldados romanos já na primeira metade do
século I.34
crenças surgidas naquele território, ocidente através de uma de suas

Em sua cosmovisão, o zoroastrismo ensinava uma forma de dualismo,


segundo a qual um espírito de luz e bondade, Ormuzd, vivia em batalha
constante contra Ahriman e os exércitos dos maus espíritos que habitavam
nas trevas. A partir dessa ideia, presente na base desse sistema religioso,
desenvolviam-se nítidos contrastes entre o bem e o mal. Daí procediam
fortes concepções de mérito e culpa, de salvação e de perdição ou castigo
dos maus. De fato, conforme a religião de Zoroastro (570-500 a.C.), um
dia o bem triunfaria e o mal seria punido. Esse juízo, porém, não viria
somente sobre Ahriman e seus espíritos, mas atingiria também os homens
perversos.
32 SUMMERS, Ray. A vida no além. São Paulo: JUERP, 1979. p. 37.
33 SCHAFF, History of the Christian Church, vol. 2, p. 591-592. Minha
tradução.
34 HINSON, E. Glenn. The early church: origins to the dawn of the

Middle Ages. Nashville: Abingdon, 1996. p. 25.

Comentando esse aspecto do zoroastrismo, Ernst Heinrich Klotsche


esclarece:

Acerca das obras dos homens aqui na terra, um preciso acerto de contas
será realizado, redundando em punição para os ímpios e recompensas para
os bons. Ahriman, todos os espíritos maus e os homens perversos serão
lançados no inferno para serem punidos para sempre, enquanto o “reino do
bem” será estabelecido no céu e sobre a terra.35

Não é difícil perceber como noções desse gênero tornavam o ambiente


cultural propenso à reflexão, ao diálogo e à divulgação de doutrinas sobre
a vida após a morte, fornecendo um pano de fundo favorável ao
desenvolvimento de visões mais vívidas sobre a realidade no além.

Contribuindo também para a formação desse ambiente encontrava-se o


judaísmo. De posse das Escrituras do Antigo Testamento, os judeus
desenvolveram seus conceitos próprios sobre o destino dos mortos. Porém,
é sabido que os livros veterotestamentários guardam certa obscuridade
sobre esse assunto, pelo que os judeus, fundamentados especialmente no
Talmude, criam no Paraíso e no Gehenna como dois compartimentos
contíguos do Sheol, sendo o primeiro, destinado aos justos, sessenta vezes
maior que o mundo, e o segundo, reservado aos ímpios, sessenta vezes
maior que o Paraíso.36
35KLOTSCHE, E. H., The history of the Christian doctrine. Grand
Rapids, Michigan: Baker, 1979. p. 6. Minha tradução.

Schaff destaca que, segundo o Talmude, a pior das punições do inferno era
a tortura com fogo, o qual era renovado todas as semanas, logo após o
sábado. Consoante a crença judaica de então, os israelitas maus não eram
torturados com fogo, sendo reservadas penas diferentes para eles. Já outras
pessoas, especialmente os idólatras, hipócritas, traidores e apóstatas, eram
condenados a ferver como a carne em uma panela.

A escola de Shamai ensinara que esse sofrimento era para sempre.37 Já os


seguidores de Hillel haviam dito que tanto judeus como gentios, tendo se
entregue ao pecado, seriam punidos no Geena por doze meses, e depois
reduzidos a nada. Segundo essa escola, o castigo do Geena se aplicaria
também aos corpos dos ímpios, reduzindo-os a cinzas dispersas pelo
vento.38

É verdade que no século II os pais da igreja em particular não revelam em


seus escritos a tendência comum nas religiões de seu tempo de descrever
os contornos precisos do Hades ou a natureza específica dos castigos ali
aplicados, mas não há dúvida de que a popularização de certas fantasias
ajudou a tornar mais nítida na mente das pessoas a imagem terrível das
angústias eternas sempre que os pais pregavam ou escreviam sobre o
inferno, o que resultava na consideração séria de suas asseverações por
parte dos ouvintes e leitores de então.
36 Essa divisão tinha sido adotada pelo judaísmo havia séculos. Em face de
textos como Isaías 14.9,15, foi reconhecido, notadamente ao tempo do
período interbíblico, que o Sheol, mesmo sendo o destino de todas as
almas sem exceção, comportava dois lugares distintos, sendo um deles
chamado de Paraíso ou Seio de Abraão, e o outro, denominado Gehenna.
Este último era de grande angústia e desconforto, sendo reservado para os
inimigos de Javé e do seu povo. Quanto à doutrina da ressurreição seguida
de julgamentos, pode-se encontrar seus primórdios já nos escritos do
Velho Testamento pertencentes ao período do Exílio Babilônico e
posteriores (Ver Dn 12.2-3,13).
37 SCHAFF, History of the Christian Church, vol. 2, p. 596.
38 LE GOFF, The birth of purgatory, p. 40. O fato é que, conforme

esclarece Schaff, no Talmude o ensino sobre essa questão é dúbio, havendo


algumas passagens que falam da total aniquilação dos ímpios, e outras que
ensinam a eternidade das punições no além, como em Pesachim 54 que
diz: “O fogo do Geena nunca se extingue”. Ver SCHAFF, History of the
Christian Church, vol. 2, p. 597.

Se por um lado, a igreja assimilou alguns elementos acerca do inferno


presentes nas religiões ao redor, por outro, não resta dúvida de que
também repudiou veementemente diversos conceitos sobre a vida no além
flagrantemente anti-bíblicos, presentes tanto nas religiões pagãs como no
judaísmo daqueles dias. É nesse sentido que, como dito acima, o cenário
de crenças religiosas do século II serviu como um desafio para os pais,
uma vez que punham a igreja diante de ensinos sobre a vida no além que
tinham que ser corrigidos.

Observando o vasto mosaico de crenças variadas que caracterizaram o


período sob análise, os historiadores dão destaque às chamadas religiões
de mistério, originárias em sua maior parte no oriente, em regiões como a
Síria, a Anatólia e a Pérsia. Era dessa classe de cultos e doutrinas que
emanava grande parte das ideias acerca da vida após a morte que
precisavam ser combatidas pelos pais através da exposição das realidades
bíblicas tanto do céu como do inferno.

Para a melhor compreensão disso, porém, é preciso conhecer certos


pormenores dos mitos baseados em mistérios formados ao redor dos
deuses pagãos, detectando quão fortemente apelavam para os sentimentos
mais profundos da humanidade, realçando temas como o enigma da morte
e o destino da alma.

A pesquisa histórica revela que muitas cerimônias das religiões de


mistério eram secretas e seus adeptos juravam não revelar a forma como
eram realizados alguns de seus rituais. Acrescente-se a isso o fato de que
todas desapareceram alguns séculos depois do advento do cristianismo e
isso explica porque pouco se sabe acerca delas na atualidade. Seja como
for, é certo que todas essas religiões guardavam entre si algumas
semelhanças, às vezes até ensinando acerca de um deus salvador que
morreu e ressuscitou, o que provocava a indignação de homens como
Justino de Roma que viam nisso um artifício dos demônios para confundir
os homens e por em cheque a singularidade da fé cristã (Primeira
Apologia 54, 62).

Entre essas crenças, uma das mais destacadas era a que se formara ao
redor de Dionísio. Sua lenda dizia que Júpiter e Perséfone tiveram um
filho chamado Zagreus, que nasceu em forma de boi. Zagreus deveria
governar o mundo, mas foi morto e despedaçado pelos titãs. Então seu pai,
Júpiter, comeu seu coração e quando gerou Dionísio, também chamado
Baco, este era Zagreus renascido. Era assim que a lenda popularizava e
estimulava a crença na reencarnação.

Dionísio foi considerado o deus do vinho e de toda vida animal e vegetal.


Sua conexão com a figura de um touro também o vinculava a noções de
fecundidade. Por isso, em seus cultos os devotos se embriagavam,
entregando-se a orgias e danças frenéticas. Nesses cultos também comiam
a carne de um boi recém esquartejado, bebendo o sangue que ainda
jorrava, acreditando que, assim, poderiam participar da vida do deus que
adoravam.

As várias seitas ligadas ao nome de Orfeu também davam grande espaço


ao mito de Dionísio, mas concentravam-se na noção tão difundida no
mundo helenista de que a matéria é má e que a alma precisa se livrar de
algum modo do corpo, sua prisão e causa de contaminação.

Contrariando a doutrina cristã da ressurreição futura e ignorando a verdade


sobre o que acontece com a alma depois da morte, essas religiões
ensinavam que os homens estavam presos a um ciclo de nascimento,
morte e renascimento, reencarnando-se até conseguir a separação
definitiva entre o corpo e a alma, o que só aconteceria mediante a
iniciação em seus cultos. Somente depois de livrar-se desse ciclo de
reencarnações é que a alma poderia viver para sempre na perfeita
felicidade.

Uma ditosa imortalidade também era a aspiração dos iniciados nos


mistérios da Magna Mater. Sua lenda dizia que ela se apaixonara por um
pastor chamado Átis, nascido de uma virgem. Segundo algumas versões do
mito, Átis se suicidara, castrando a si mesmo, mas a Grande Mãe
conseguira sua ressurreição e ele se tornara imortal. Por isso, nos rituais
celebrados nos cultos de Magna Mater, os devotos se lançavam a danças
frenéticas e, no auge de seu êxtase, os homens se emasculavam,
acreditando que, dessa forma, poderiam participar da imortalidade de Átis.

A já mencionada adoração de Mitra também pode ser contada entre as


religiões de mistério do mundo greco-romano cujas doutrinas os pais da
igreja se viam obrigados de combater. Conforme visto, Mitra era um deus
do antigo Irã. Suas raízes se encontram numa antiga divindade da Índia
védica e na já mencionada religião de Zoroastro (ou Zaratustra).

Nos tempos do Império Romano, Mitra era adorado especialmente entre os


soldados. Ele era considerado um salvador escatológico que, a partir do
cadáver de um touro que matara, teria trazido vida ao mundo. Seu culto
abrangia sete graus de iniciação em mistérios e a salvação que anunciava
negava a ressurreição.
O mitraísmo via a vida como uma luta perpétua entre o bem e o mal, entre
a luz e as trevas, entre os deuses e os demônios. Enfatizava intensamente a
moralidade e, a fim de realçar sua importância, proclamava um dia de
julgamento final e definitivo para toda a humanidade, ocasião em que o
fogo consumiria todos os maus. Na verdade, os adoradores de Mitra criam
que, já a partir da morte, qualquer que tivesse praticado o mal seria
lançado pelos emissários de Ahriman nas profundezas do inferno a fim de
sofrer indescritíveis torturas, enquanto os bons seriam levados ao céu, para
o reino de Ormuzd.

A prática da taurobolia (o rito mais importante do mitraísmo), em que um


touro era morto e os adeptos se banhavam em seu sangue; os mistérios
eleusianos que celebravam o mito de Perséfone, resgatada por sua mãe das
regiões infernais; e o hermeticismo que pregava que a matéria era má e
prometia a redenção da alma39, formavam um conjunto de crenças que
atraíam muitos adeptos, uma vez que prometiam imortalidade a quem
fosse iniciado em seus mistérios.

Como se vê, as concepções sobre a vida além propostas pelas grotescas


religiões de mistério confrontavam em muitos aspectos a pregação dos
pais acerca do destino eterno dos homens e acerca da forma como o ser
humano podia ser salvo. Ademais, os pais da igreja do século II não viam
os ensinos dos deuses pagãos como meras invenções de poetas. Para eles,
os deuses eram demônios40 e suas doutrinas eram invenções de espíritos
malignos que se compraziam em ser temidos e adorados pelos homens.
Justino de Roma ousa dizer que, na antiguidade, esses demônios
manifestaram seus feitos aos homens. Segundo ele, as pessoas, levadas
pelo medo e pela ignorância, deram aos demônios nomes de deuses “e
chamaram cada um com o nome que cada demônio havia posto em si
mesmo” (Primeira Apologia 5:2).41
39A figura central do hermeticismo era Hermes Trismegistro, ou seja,
Hermes “três vezes maior”, identificado entre os romanos como Mercúrio.
40 Ver IRINEU DE LIÃO, Contra as heresias, III, 6:3. Uma concepção
diferente contemplava a hipótese dos deuses pagãos serem apenas criações
humanas. Nesse sentido, ver ARISTIDES DE ATENAS, Apologia 1-12. Já
Teófilo de Antioquia dizia que os nomes dos deuses eram apenas nomes de
homens mortos (Primeiro Livro a Autólico 9) e que o que foi dito sobre
eles não passava de tolices escritas por poetas e filósofos. Teófilo, no
entanto, admite que foram os demônios que inspiraram esses poetas
(Segundo Livro a Autólico 8).

Assim, considerando a origem dessas seitas e a fonte de suas doutrinas


sobre a vida no além, os teólogos do século II se viram forçados a cumprir
a missão urgente de expor o ensino bíblico. No tocante à doutrina sobre a
salvação futura, eles proclamaram sem reservas a verdade cristã sobre o
céu e o inferno, a fim de combater ideias que, no seu entender, eram de
origem demoníaca, especialmente noções reencarnacionistas, conceitos
contrários à doutrina da ressurreição e promessas de livramento das penas
futuras à parte da fé e obediência a Cristo. Dessa forma, as religiões de
mistério determinaram até certo ponto a maneira como o ensino acerca do
inferno foi ministrado aos cristãos e, na medida do possível, às
autoridades e ao povo em geral pelos pais da igreja do século II.

Outra classe de crenças, muitas vezes mesclada às próprias religiões de


mistério, também influenciou a pregação dos primeiros pais da igreja
sobre as penas futuras. Foram os cultos nutridos oficialmente por Roma
que incluíam tanto os deuses da capital como os ligados a outras cidades
do império, além do culto ao imperador. Essas religiões estimulavam a
pregação cristã sobre o inferno na medida em que representavam uma
ameaça violenta à firmeza dos crentes na fé. Cientes do seu perigo, os pais
da igreja falavam sobre o inferno para estimular os fiéis a permaneceram
leais a Cristo mesmo diante de oposição, perigos, torturas e morte.

Qual era a maneira como as religiões nutridas oficialmente pelo estado


representavam uma ameaça violenta para a igreja? Isso acontecia porque
muitas cidades acreditavam depender do favor de seus deuses antes
mesmo de serem conquistadas por Roma e, com a aprovação das
autoridades civis, mantinham zelosamente suas tradições cultuais, crendo
que a isso estavam vinculados seu progresso e felicidade.
41Justino também via nas religiões de mistério a tentativa dos demônios
de produzir uma espécie de arremedo das profecias do Antigo Testamento
acerca do advento de Cristo. Segundo ele, essas imitações tinham por
propósito fazer com que os homens considerassem o real cumprimento das
profecias bíblicas apenas mais uma fábula carente de qualquer
originalidade (Diálogo com Trifão 69-71).

Um dos desdobramentos naturais dessa crença era que aqueles que


desagradassem as divindades locais, deixando de servilas, poderiam trazer
miséria e infortúnio sobre toda a urbe. Tais pessoas seriam vistas como
inimigos da sociedade inteira, a causa de todas as suas catástrofes e
calamidades, sendo merecedoras dos castigos mais severos.

Ora, era de se esperar que, negando-se a adorar os deuses pagãos, muito


cedo a igreja fosse considerada pelo homem antigo a classe de pessoas que
provocava a ira divina sobre todos. De fato, qualquer que fosse o revés que
sobreviesse a determinado povo, desde o mais leve contratempo até a
desgraça mais alarmante, de pronto sua ocorrência era atribuída aos
crentes que, segundo maldosamente diziam, despertavam a fúria do
Olimpo. “Se o Tibre transborda e o Nilo não”, escreveu Tertuliano em sua
Apologia, entre os anos 197 e 200, “se o céu se aquieta e retém a chuva, ou
a terra treme; se ainda a fome e a peste se espalham pelo país, a palavra de
ordem é: ‘Lancem esses cristãos ao leão!’. Ora, tenham dó! Quanta gente
para um só leão!”42

Essa mentalidade estava tão fortemente enraizada na mente dos pagãos


que no século V é ainda possível encontrá-la entre os inimigos da fé. Prova
disso se vê na grande obra de Santo Agostinho (354-430), a Cidade de
Deus. Logo em seus primeiros capítulos, o grande bispo de Hipona explica
que se dispôs a escrevê-la porque, tendo Roma caído nas mãos dos
visigodos comandados por Alarico, em 410, os pagãos calamidade ao fato
do Império Romano, por atribuíram essa

influência dos
42TERTULIANO DE CARTAGO. Apologia XL:1. In: REEVE, W;
COLLIER, J. (Orgs.). The apology of Tetullian and the meditations of
the emperor Marcus Aurelius Antoninus, p. 114. Minha tradução.
cristãos, ter abandonado o culto dos antigos deuses.43

Além de serem hostilizados por causa das crenças nutridas pelas religiões
das cidades, os cristãos também sofriam diante de outra forma de adoração
sustentada pelo estado: o culto do imperador. Este, de fato, recebia maior
destaque entre as demais religiões oficialmente apoiadas pelas
autoridades.

O costume de elevar um governante ao nível de uma divindade é antigo e


tem suas raízes no oriente.44 Alexandre o Grande recebera essa honra nos
tempos do Império Grego e quando Augusto impôs seu reinado de paz a
toda a bacia do Mediterrâneo, muitos o aclamaram como a encarnação de
um deus, sendo erigidas estátuas em sua honra, além de cerimônias de
adoração à sua pessoa terem sido criadas. Foi assim que se instituiu o
culto ao imperador. Latourette explica que esse culto era visto como uma
forma de salvaguardar a lei, a ordem e a prosperidade em todos os
domínios de Roma. Negar-se a prestá-lo seria considerado um ato de
traição e anarquia.45

Conforme exposto acima, em face dessas religiões do estado e da


violência decorrente de sua rejeição, os mestres cristãos do século II
usaram a doutrina da perdição eterna para afastar os crentes do medo dos
castigos presentes, causa comum de apostasia, e fazê-los, assim,
perseverar, estimulados pelo medo das chamas do Hades. Aliás, os
próprios pais foram encorajados por esse pensamento. Recorde-se que, em
155, diante da ameaça do magistrado romano de ser queimado vivo caso
não prestasse adoração diante da estátua de César, Policarpo, bispo de
Esmirna, contrapôs a ameaça do “fogo do julgamento futuro e do suplício
eterno, reservado aos ímpios”.46
43 SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus: contra os pagãos. I:1. São
Paulo: Vozes, 1990. p. 28.
44 LATOURETTE, Kenneth Scott. Historia del cristianismo. 2 vols. El

Paso, Texas: Casa Bautista de Publicaciones, 1958. vol. 1, p. 55.


45 Ibid.

O CONTEXTO INTELECTUAL DOS PRIMEIROS PAIS DA IGREJA


O cenário intelectual em que viveram os teólogos antigos foi assinalado
predominantemente pelo helenismo. Sob o aspecto filosófico, o helenismo
se fez presente no período patrístico inicial através de três correntes de
pensamento: o platonismo, o epicurismo e o estoicismo.47

O platonismo, como a própria designação indica, teve origem com Platão


(† 347 a.C.) e ensinava a doutrina dos dois mundos: o sensível ou visível e
o inteligível ou das ideias. O primeiro é mutável e representa apenas um
reflexo do mundo inteligível que é transcendente, real, espiritual e ideal.

De acordo com as noções do médio-platonismo (Sécs. I a.C. – II AD),


Deus era concebido como absolutamente transcendente e impassível. Esse
Deus mantinha ligação com o mundo sensível através do Logos, a razão
universal.

Todo esse conjunto de concepções estimulava a ideia de que a matéria é


má e que a alma é uma centelha divina presa numa estrutura material.
Assim como o Logos habitava e controlava o universo, também a alma,
um logos em miniatura, habitava e controlava o corpo. Este era visto como
a casa, o túmulo ou a prisão da alma.

Quanto ao epicurismo, seu fundador foi o filósofo ateniense Epicuro de


Samos († c. 271 a.C.), cuja doutrina de natureza eminentemente prática
propunha que a felicidade do homem poderia ser encontrada numa vida de
paz, prazer e reflexão. Suas ênfases estavam na busca do conhecimento
através da experiência, na observância de preceitos morais, no desfrute de
prazeres corporais, no cultivo da serenidade mesmo em meio aos
sofrimentos (ataraxia) e no conceito materialista da realidade que,
segundo Epicuro, em sua totalidade se reduzia a átomos.
46 Martírio de São Policarpo Bispo de Esmirna. In: Padres apostólicos.
Coleção Patrística. São Paulo: Paulus, 2008. vol. 1, p. 155.
47 O neoplatonismo surgiu somente no século III e, assim, é evidente que

exerceu influência somente sobre os pais da igreja que viveram a partir


dessa época.
O estoicismo, por sua vez, teve origem com Zenão de Cício († 263 a.C.) e
talvez tenha sido o sistema filosófico que mais influenciou o pensamento
cristão. Sua doutrina do Logos o concebia como a razão impressa na
estrutura do universo e também como a fonte de energia de todas as
coisas. Sendo certo que há um Logos como razão universal, em tudo existe
ordem. A partir daí, os estoicos concluíam que o homem sábio é aquele
que ajusta sua vida à ordem natural que existe no universo, suprimindo
suas paixões, abandonando desregramentos e obedecendo à lei natural que
existe no mundo e que está impressa no ser de cada pessoa.

Como essas vertentes filosóficas concebiam a vida alémtúmulo? Segundo


Platão, a morte sempre é seguida de um julgamento que antecede seu
reingresso no mundo: “É uma opinião muito antiga que as almas, ao
deixarem este mundo, vão para o Hades, e que dali voltam para a Terra e
retornam à vida após haverem passado pela morte.”48 No Hades as almas
recebem o que merecem, de acordo com o modo como viveram:

A alma nada leva consigo ao chegar ao Hades, a não ser sua formação e
regime de vida, o que, de acordo com a tradição, é exatamente o que mais
valoriza ou prejudica o morto, a partir do início da viagem para o além.
Portanto, dizem que o mesmo gênio que acompanha cada um de nós ao
longo da vida é também quem conduz o morto a um determinado lugar. Os
que lá estão são submetidos a um julgamento e, proferida a sentença, são
levados ao Hades por um guia a quem foi ordenado conduzilos até lá. Após
receberem o que mereciam e terem permanecido lá o tempo necessário,
outro guia os reconduz para cá, através de muitos e demorados intervalos
de tempo.49
48PLATÃO. Fédon. In: FLORIDO, Janice (Org.). Platão. Coleção Os
Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 132.
Algumas almas, porém, relutam em partir para o seu destino fatal:

... se a alma se afasta do corpo maculada, impura, como se houvesse


estado sempre mesclada com ele, até o ponto de julgar servi-lo,
embriagada pelo corpo, até o ponto de crer que nada existe além do
físico... sai toda misturada com uma corporalidade que, por ela haver-se
habituado com o corpo, parece-lhe íntima e natural... Essas mesclas, meu
estimado Cebes, são um invólucro pesado, terrestre e visível, pelo receio
que possui do mundo invisível, do Hades, e fica se revirando, conforme
dizem, pelos cemitérios, em volta dos túmulos, onde foram vistos
fantasmas medonhos...50

Mesmo essas almas, contudo, segundo Platão, depois de resistirem e


sofrerem muito, são levadas à força por um gênio que as conduz ao Hades.
Ali, dependendo dos crimes que cometeram, causam horror nas demais
almas que fogem da sua presença. Então, a alma sozinha e abandonada fica
vagando até que recebe o que merece.51

Todas as almas, tendo provado delícias ou castigos no Hades, finalmente


retornam, assumindo inclusive corpos de animais:

... aqueles que fizeram de seu ventre um deus e que usufruíram somente o
descomedimento sem pudor, sem jamais conter-se, penetram os corpos de
asnos e animais semelhantes... E as almas que se dedicaram à injustiça, à
tirania e às rapinagens animam os corpos dos lobos, dos gaviões, dos
falcões... E os mais ditosos são aqueles cujas almas vão para os lugares
mais agradáveis... suas almas penetram em corpos de animais mais
pacíficos e trabalhadores, como as abelhas, as formigas, ou então
regressarão para corpos de humanos a fim de serem homens de bem.52
49 Ibid., p. 178.
50 Ibid., p. 147.
51 Ibid., p. 178.

O epicurismo, juntamente com o estoicismo e vários modelos filosóficos


originários do período clássico (séculos IV e V a.C.), contestou essa
concepção poética, mitológica e popular do inferno, presente nas religiões
de então e nos escritos de Platão.

Epicuro e a maioria dos filósofos e intelectuais que viveram nos séculos


que antecederam o advento do cristianismo optaram por soluções racionais
ao problema do mal e sua retribuição. Para eles, o homem devia olhar com
total ceticismo os ensinos filosóficos e religiosos que afirmavam a
existência de castigos para os ímpios no além.53
George Minois resume filósofos do período clássico: os conceitos da
maioria dos

... os pitagóricos... nunca falam de castigos. Sócrates relaciona o mal à


ignorância e sugere que isso é, pois, a sua própria punição nesta vida, mas
não prevê nenhum sistema de castigos na vida futura. Aristóteles... chega à
mesma conclusão: o inferno não existe no além e como poderia ele existir
se a morte do indivíduo é total, de corpo e alma? É aqui na terra que o
homem mau constrói a sua própria infelicidade, impedindo-se de alcançar
a perfeição do seu ser pelo desenvolver das virtudes; ignora a sua
verdadeira natureza e agarra-se a falsos bens que o degradam: reside aí o
seu “inferno”. E Deus não se ocupa com essas questões, nem desce à Terra
para julgar os homens.54
52 Ibid., p. 148.
53 O poeta e filósofo Lucrécio (100-55 a.C) revela quão vívidas ainda

estavam essas concepções poucas décadas antes do cristianismo surgir no


cenário mundial. Ele escreveu em sua De natura rerum: “Seguramente que
todos os castigos que a tradição coloca nas profundezas de Aqueronte,
todos eles, quaisquer que sejam, é na nossa vida que os encontramos”. E
ele conclui: “Enfim, é aqui na Terra que a vida dos estúpidos se torna num
verdadeiro inferno” (LUCRÉCIO, De natura rerum III:35. Citado por
MINOIS, História dos infernos, p. 50-51). Lucrécio, pessimista e
solitário, suicidou-se aos quarenta e cinco anos de idade.

Minois prossegue referindo-se também a Epicuro e destacando que,


segundo ele, os deuses, se existem, não se interessam pelas ações dos
homens e que, por isso, as pessoas não têm nada a temer depois da
morte.55

John Blanchard, em seu livro Whatever happened to hell? informa que


esse filósofo, escrevendo a um amigo, disse que o findar da vida não deve
causar preocupação, pois “enquanto existimos, a morte não está presente, e
quando a morte estiver presente, nós não existiremos mais”.56

Epicuro e seus discípulos defendiam o aniquilacionismo em virtude de sua


doutrina atomista. No epicurismo, toda a natureza é constituída de átomos
e isso inclui a alma. Logo, a alma é mortal, dissolvendo-se com os átomos
que a compõem. Não existe, portanto, razão alguma para se temer a outra
vida, posto que não há nada no além-túmulo.

Foi dentre os filósofos epicuristas que saíram dois oponentes implacáveis


do cristianismo no século II: o rigoroso crítico Celso e o satírico Luciano
de Samosata. Por volta do ano 178, Celso escreveu um discurso contra o
cristianismo que foi preservado de forma fragmentária na obra Contra
Celso, uma refutação que Orígenes (c. 185-253) produziu somente em
cerca de 248, ou seja, setenta anos depois que o epicurista fez circular sua
crítica.
54 MINOIS, História dos infernos, p. 49.
55 Ibid.
56 BLANCHARD, John. Whatever happened to hell? Darlington, UK:

Evangelical Press, 1993. p. 61. Minha Tradução. No mesmo lugar,


Blanchard mostra que também para Aristóteles a morte é o fim de todas as
coisas.

No discurso de Celso, o nascimento virginal é atacado por meio da


acusação de que Jesus nasceu como fruto das relações adúlteras entre
Maria e um soldado chamado Panthera. Ele também afirma que a
divindade de Jesus e a sua ressurreição não passam de fábulas engendradas
maldosamente pelos apóstolos, tidos por Celso como enganadores da pior
espécie. A própria ideia do interesse de Deus em salvar o homem é
ridicularizada pelo epicurista que, no estilo próprio de sua filosofia,
afirma que Deus não se importa mais com os homens do que com os
macacos e as borboletas.

Quanto ao inferno e o destino final das almas, Celso diz que a doutrina
bíblica da perdição eterna com todos os seus horrores é a única coluna de
sustentação do cristianismo que, segundo ele, não tem nenhum
fundamento lógico. A ressurreição, no seu entender, não é uma crença
digna de seres racionais.

O epicurista Luciano de Samosata (c. 120 - c. 200) é menos agressivo. Ele


se limita a rir da fé cristã, ridicularizando-a sem mostrar rancor. Para ele o
cristianismo é apenas mais uma das inúmeras tolices da humanidade.
Luciano vê a doutrina da imortalidade da alma como uma ilusão cultivada
pelos crentes. É essa ilusão que os faz desprezar a morte com tanto
entusiasmo.

Seguindo a mesma tendência filosófica comum a partir do século V a.C,


outra linha de pensamento, o estoicismo, também ensinava que o mal
existe somente na terra. Entre os estoicos, na verdade, embora alguns deles
aceitassem uma imortalidade limitada57, predominava a noção de que
nada há para se recear além desta vida porque, conforme disse Sêneca,
escritor romano estoico que viveu nos dias do Novo Testamento, não
existe nada depois da morte e a morte em si não é nada.58
57 SCHAFF, History of the Christian Church, vol. 2, p. 593.

Segundo essa corrente filosófica, o mal consiste em resistir à ordem que


existe no universo, ameaçando assim a paz social e o equilíbrio do
indivíduo. O homem deve evitar esse mal fazendo a opção por uma vida
austera. A escolha contrária trará grandes males e profunda infelicidade no
presente, sendo esse o “castigo” que o indivíduo deve temer. Eis aí,
portanto, a punição dos ímpios na concepção estoica. No entender desse
modelo de pensamento, não era a realidade do mundo futuro que deveria
determinar o modo de agir do homem, mas sim a busca da paz e da
felicidade presentes.

A concepção aniquilacionista ensinada pelos filósofos do período clássico


e especialmente pelo estoicismo encontrou guarida nos círculos romanos
mais elevados já em tempos bem próximos ao advento do cristianismo.
Philip Schaff, ao comentar uma declaração de Júlio César (100-44 a.C.) no
Senado, durante um debate sobre a punição de Catilina e seus cúmplices,
acusados de conspiração contra a República e o Senado romano, informa o
seguinte:

... Julio César declarou abertamente no Senado Romano que a morte


dissolve todos os males da mortalidade, sendo o limite da existência, além
do qual não existe mais nenhuma preocupação ou alegria, nenhuma
punição pelos pecados, nem qualquer recompensa pelas virtudes.59
Nos dois primeiros séculos do cristianismo essa era a visão que
predominava entre os romanos de alto nível social e intelectual. Schaff
acrescenta que o já citado Sêneca, Plínio, o Velho, o historiador Tácito e o
imperador estoico Marco Aurélio estão entre aqueles que viam a morte
como o fim absoluto da existência humana. O autor supracitado esclarece
que, evidentemente, havia pessoas comuns do povo que também
professavam a doutrina da morte como o fim de tudo, mas realça que esse
ceticismo era pequeno entre os que não pertenciam à nobreza,
prevalecendo entre o povo em geral a crença de que a vida, de algum
modo, continuava depois da morte.60
58 BLANCHARD, Whatever happened to hell?, p. 61.
59 SCHAFF, History of the Christian Church, vol. 2, p. 593. Minha
tradução.

Os primeiros pais da igreja se referiram aos modelos filosóficos comuns


em seu tempo de modo geralmente equilibrado61, recepcionando conceitos
úteis à promoção da fé cristã e repudiando elementos contrários a ela.

No tocante ao platonismo, os pais do século II acolheram brandamente sua


concepção de Deus como o Uno inefável que se relaciona com o mundo
por meio do Logos. A partir dessas noções, eles fizeram uma leitura do
Antigo Testamento que apontava o Verbo como o personagem exclusivo
que havia se manifestado aos profetas e demais personagens da história
bíblica.

Justino de Roma, por exemplo, afirma em seu Diálogo com Trifão que o
Criador e Pai do Universo habita sempre nas regiões supracelestes e, ele
mesmo, “nunca apareceu, nem jamais conversou com ninguém” (Diálogo
56:1), sendo impossível que se circunscrevesse a uma pequena porção de
terra. Assim, Abraão, Isaque, Jacó e Moisés viram o Filho, mas nunca
aquele que é o Pai inefável (Diálogo 127:4).
60 Idem. Ibid.
61 Dois extremos se encontram em Justino e Tertuliano. O primeiro

enxergava grande harmonia entre a filosofia pagã e o cristianismo


(Primeira apologia 20-22), chegando a afirmar que Sócrates e Platão
tinham sido cristãos (Primeira apologia 5:31; 46:2-3) ou discípulos de
Moisés (Primeira apologia 44,46,59-60). O segundo rejeitou totalmente a
intromissão da filosofia nas questões de fé, embora suas ideias reflitam o
estoicismo em alguns aspectos (Ver GONZALEZ, Justo L. Uma história
do pensamento cristão. 3 Vols. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. vol. 1, p.
170, 179).

Se no tocante à teontologia o cristianismo antigo absorveu elementos do


platonismo, o mesmo não ocorreu com a doutrina acerca da vida após a
morte. De fato, a metempsicose de Platão jamais teve espaço no ensino
dos teólogos da igreja do século II. Quanto à rejeição da doutrina da
reencarnação, Blanchard menciona como exemplo o bispo Irineu de Lião
que, em sua obra Contra as heresias, refutou severamente o ensino de que
a alma passa de um corpo para outro.62

Ao lado de Irineu, pode-se mencionar Teófilo de Antioquia que também


censurou a doutrina platônica que afirmava que, antes de libertar-se do
corpo, a alma passaria por transmigrações e, uma vez livre da sua prisão
material, mergulharia no Uno e se tornaria como Deus, impassível, ou
seja, sem qualquer sentimento ou emoção.63

A crítica dos pais à visão de Platão acerca da vida futura ocorre


obviamente porque, mesmo sendo certo que essa corrente filosófica se
assemelhe à doutrina cristã ao afirmar a imortalidade da alma, ela se situa
muito distante do ensino dos apóstolos acerca da vida após a morte.

De fato, para aqueles filósofos pagãos, a imortalidade era nada mais do


que uma existência sem fim da alma que, em algum momento, se livrava
definitivamente da prisão do corpo. Os teólogos cristãos do século II, por
sua vez, assim como os pais da igreja posteriores, estando comprometidos
com o ensino do Novo Testamento, proclamavam que o homem não está
destinado a uma existência perene na forma de um espectro que jamais se
desfaz. Antes, diziam, ainda que houvesse uma separação temporária entre
a alma e o corpo do indivíduo por ocasião da sua morte, a vida eterna
consistiria, afinal, da recomposição do próprio corpo, sendo esta uma
doutrina que se situava em absoluto contraste com a mentalidade helênica
como um todo.
62 BLANCHARD, Whatever happened to hell?, p. 87.
63 Para Teófilo, a doutrina de Platão, nesse aspecto, era contraditória:

“Platão, que falou tantas coisas sobre a monarquia de Deus e sobre a alma
do homem, afirmando que ela é imortal, depois também não se contradiz,
dizendo que as almas emigram para outros homens e que as almas de
alguns vão parar até em animais irracionais?” (TEÓFILO DE
ANTIOQUIA. Dos livros a Autólico 3:7. In: Padres Apologistas. Coleção
Patrística. São Paulo: Paulus, 1995. vol. 2, p. 277-278).

Ademais, o platonismo, em alguns de seus desdobramentos, representava


uma ameaça contra a doutrina das penas eternas e os teólogos do século II
perceberam esse perigo. Justino de Roma, por exemplo, em seu Diálogo
com Trifão, descreve parte do quadro intelectual presente em seus dias e
censura os muitos filósofos de orientação platônica que, conforme revela,
concluíram por rejeitar qualquer expectativa de castigo ou recompensa
vindos de Deus no além:

Mas a maioria dos filósofos nem sequer se propõe o problema se existe


um só Deus ou muitos, nem se cuidam de cada um de nós, pois acham que
tal conhecimento em nada contribui para a nossa felicidade. Além disso,
procuram persuadir-nos de que, se Deus cuida do universo em geral e dos
gêneros e espécies, ele não cuida de mim, nem de ti, nem das coisas
particulares; se cuidasse não estaríamos dia e noite suplicando a ele.
Todavia, não é difícil perceber o objetivo de suas teorias. Os que assim
pensam procuram a impunidade, a liberdade de falar, de agir, de fazer e
dizer o que quiserem, sem temer nenhum castigo ou esperar nenhuma
recompensa da parte de Deus. Com efeito, como poderiam esperar aqueles
que afirmam que eu e tu temos que voltar a viver vida igual à presente,
sem que tenhamos feito coisas melhores ou piores? Outros, supondo que a
alma é imortal e incorpórea, acham que nem mesmo praticando o mal
sofrerão algum castigo, pois o incorpóreo é impassível e, sendo a alma
imortal, não precisam de Deus para nada.64
64JUSTINO DE ROMA. Diálogo com Trifão 1:4-5. In: Justino de Roma,
Coleção Patrística, vol. 3, p. 110.
O platonismo, portanto, se penetrou no cristianismo através da doutrina
sobre Deus e o Logos, encontrou no ensino cristão acerca da vida futura
uma porta fechada.

O mesmo se pode dizer do estoicismo e das demais vertentes


aniquilacionistas. De fato, os teólogos do século II perceberam que todas
elas representavam uma ameaça de relativa grandeza para a igreja do
século II, posto que contrastavam o cristianismo em pontos cruciais,
negando a veracidade dos ensinos de Jesus e dos apóstolos, especialmente
no tocante às penas e recompensas futuras e à doutrina da ressurreição.
Preocupados com isso, os pais da igreja de então, no exercício de suas
funções apologéticas e pastorais, se entregaram à tarefa de combatê-las.65

Há um aspecto, porém, em que o epicurismo e o estoicismo influenciaram


indiretamente a doutrina cristã acerca da salvação. Se os epicuristas e os
estoicos não atraíram os teólogos com suas ideias aniquilacionistas,
certamente o fizeram com sua ênfase sobre a ética e a virtude.

Sutilmente, através de uma ênfase intensa na conduta eticamente elevada,


o estoicismo (mais do que o epicurismo) atraiu os mestres cristãos antigos
e contribuiu para a formação de um ambiente cultural favorável ao
abandono (ou, pelo menos, abrandamento), por parte da igreja, da ênfase
paulina na justificação pela graça e da salvação mediante a fé somente.

De fato, essa inclinação para uma soteriologia predominantemente ética,


para a salvação das penas futuras através da obediência, da contrição, da
perseverança e do cultivo das virtudes, domina o pensamento dos pais no
século II, como se verá mais detalhadamente adiante.
65Ver, por exemplo, Teófilo de Antioquia que, em seu Segundo livro a
Autólico, no capítulo 4, censura a afirmação dos estoicos de que, se Deus
existe, não se importa com ninguém. No mesmo lugar ele afirma que nisso
também se manifesta a “insensatez de Epicuro”.

Por ora é preciso dizer que o ambiente ameaçador que cercava a igreja do
século II não pode ser visto como o único fator determinante dos
contornos e da ênfase que ela dava à doutrina da perdição eterna. Fatores
internos positivos e negativos também atuaram na formação do molde
dentro do qual se encaixou o pensamento teológico de então. Esses fatores,
notadamente distintivos da igreja do segundo século, serão objeto de
análise no capítulo a seguir.

2
AS MARCAS DISTINTIVAS DA IGREJA DO SÉCULO II

Quatro marcas distinguiram a igreja do século II influenciando o modo


como lidava com o ensino bíblico sobre o inferno: a recepção dos escritos
do Novo Testamento; a figura do bispo monárquico como elemento
centralizador de autoridade; o testemunho de dons extraordinários; e a
presença de heresias perigosas em suas fileiras.

Esses fatores atuaram de formas diferentes, mas todos eles conduziram os


teólogos de então a falar sobre a vida após a morte, jamais deixando de
destacar, como expressão de genuíno zelo pastoral, que no fim de tudo há
uma bela cidade prometida por Cristo aos seus servos e também um
profundo e escuro abismo preparado por Deus para o diabo, para os anjos
rebeldes e para os homens maus.

A RECEPÇÃO DOS ESCRITOS DO NOVO TESTAMENTO

A última seção do capítulo anterior prova que a acusação comum,


reiterada em nossos dias, de que os pais da igreja, já a partir do século II,
se deixaram levar pelo ambiente intelectual de seu tempo até o ponto de
criar um cristianismo totalmente desfigurado e imerso em noções
helenistas deve ser repudiada com veemente disposição. Conforme visto,
os escritos dos pais do século II, mesmo aqueles que, como Justino, são
simpáticos à filosofia, revelam notável cautela na apreciação das ideias
procedentes dos platônicos, dos estoicos e de quaisquer outras escolas de
pensamento.

A referida cautela era, sem dúvida, decorrente de uma importante marca


distintiva dos teólogos e da igreja daqueles dias: o reconhecimento da
autoridade das Escrituras, em especial o Novo Testamento. Essa marca,
detectada mesmo através de uma leitura superficial dos escritos cristãos
da época, era responsável pelo lugar de primazia que a Bíblia ocupava no
desenvolvimento e exposição dos grandes temas perdição eterna, nenhuma
do cristianismo. No tocante à

outra fonte determinou mais intensamente os rumos da teologia antiga do


que os livros e epístolas do Novo Testamento.

Deve-se lembrar que no século II já reinava na igreja um consenso


relativamente definido acerca de quais livros cristãos deveriam ser
reputados como inspirados por Deus. Na verdade, os escritos do Novo
Testamento, por apontarem em diversas passagens a transitoriedade da
religião judaica, receberam aceitação crescente entre os cristãos logo após
a destruição de Jerusalém pelo general Tito, em 70 AD. Sabe-se que
naquela ocasião, o Templo foi incendiado e, consequentemente, tornou-se
impossível a prática do judaísmo, com suas cerimônias e sacrifícios.

Ora, esses fatos deram aos escritos apostólicos intensa credibilidade e


aceitação já no fim do século I. Aliás, mesmo os partidos judaizantes
então existentes dentro da igreja perderam sua força, ocorrendo, a partir
daí, uma relativa (mas não completa) “paulinização” do cristianismo e
uma receptividade notável de todo o Novo Testamento entre os teólogos da
época.

Essa receptividade é demonstrada por Merrill C. Tenney que destaca a


existência de alusões claras à Epístola aos Hebreus, a 1Coríntios, à Carta
aos Romanos e ao Evangelho de Mateus em 1Clemente, escrita em cerca
de 95 AD. Tenney prossegue alistando Inácio de Antioquia que revela
conhecer as epístolas de Paulo e que citou Mateus e, talvez, João. Ele
ainda destaca Policarpo, a Didaquê, a Epístola de Barnabé e o Pastor de
Hermas como provas de que os pais apostólicos tinham em alta conta tanto
os evangelhos como as cartas de Paulo, de Pedro e a Epístola de Tiago.66

Com os apologistas não é diferente. Justino Mártir, por exemplo, é pródigo


em citar inúmeras passagens do Novo Testamento em sua Primeira
Apologia, especialmente nos capítulos 15 a 17 dessa obra. Taciano, um dos
seus discípulos que, como se verá, se extraviou seguindo a heresia
encratita, compôs o Diatessaron, a primeira harmonia dos evangelhos.
O mesmo apreço pelos escritos apostólicos se encontra ainda no grande
Irineu de Lião que, saindo em defesa do verdadeiro cristianismo, viu-se
obrigado a combater as várias formas de gnosticismo que se
multiplicavam na Gália. Em sua obra Contra as heresias, contrapôs
àquelas doutrinas heréticas os ensinos do Senhor transmitidos aos seus
discípulos tanto através da tradição como por meio dos registros
neotestamentários (Contra as heresias III,1-15). Irineu também se
insurgiu contra Marcião e seus discípulos e, na obra supracitada, os acusou
de “recortar as Escrituras, rejeitando completamente algumas, mutilando o
Evangelho de Lucas e as cartas de Paulo e tendo por autênticas somente as
que mutilaram.”67

Deve-se reconhecer que a ameaça de um cânon mutilado pelos


movimentos heréticos, especialmente os marcionitas, foi um dos fatores
que incentivou os teólogos da época a definirem quais livros deveriam ser
considerados legítimos como fonte do ensino apostólico. Agindo nessa
direção, Irineu defendeu, em Contra as heresias, notadamente no terceiro
livro, a autoridade de todos os escritos do Novo Testamento, deixando de
mencionar somente Filemom e 3 João, estimulando, dessa forma, os
crentes de seu tempo a acolherem como sagrados a maioria dos livros que
mais tarde formariam oficialmente o cânon da igreja cristã.
66 TENNEY, Merrill C. O Novo Testamento: sua origem e análise. São
Paulo: Vida Nova, 1984. p. 433.
67 IRINEU DE LIÃO. Contra as heresias III,12:12, Coleção Patrística,

vol. 4, p. 300.

Aliás, é precisamente do fim do século II a mais antiga lista de obras que


delineia o conteúdo do Novo Testamento. Essa lista, descoberta em Roma,
foi publicada em 1740, por Lodovico Antonio Muratori, e recebeu o nome
de Cânon Muratoriano.68 Embora dela conste um conjunto de livros
cristãos não exatamente idêntico àquele hoje denominado Novo
Testamento, a interessante lista revela o apego dos pastores da época a
quase todos os escritos apostólicos atualmente considerados canônicos. De
fato, somente 1 e 2 Pedro, Tiago e Hebreus não figuram na lista de
Muratori.
Ora, como é sabido, o Novo Testamento está repleto de alusões ao castigo
eterno. Os evangelhos o apresentam como um dos aspectos dos
ensinamentos de Jesus, o que se vê especialmente em passagens como
Marcos 9.47-48, a que os pais do século II fazem constante alusão e que
fala vividamente de um lugar onde “não lhes morre o verme, nem o fogo
se apaga”. Cristo alude a esse lugar usando expressões como “Geena de
fogo” (Mt 5.22), “trevas exteriores, onde haverá choro e ranger de dentes”
(Mt 8.12; Lc 13.23-29) e “suplício eterno” (Mt 25.46).

A parábola do rico e Lázaro, ensinada por Jesus em Lucas 16.19-31,


também despertou o interesse dos cristãos antigos que, a partir dela,
puderam concluir que existem dois lugares que servem
68Breves detalhes sobre o conteúdo exato do Canon encontram-se em
NOLL, Momentos decisivos na cristianismo, p. 39-40.

Muratoriano história do

como destino às almas das pessoas: o seio de Abraão, morada dos salvos
que ali desfrutam de refrigério e descanso; e o Hades, lugar dos perdidos
que são torturados pelo fogo em meio à sede insaciável.

Com efeito, o Novo Testamento fala que o juízo de Deus alcança as almas
dos perdidos logo depois da morte. De fato, Paulo realça que intensa
tribulação virá sobre as almas dos que praticam o mal (Rm 2.5-9).
Também conforme o ensino de Pedro, essas almas são mantidas em
castigo até o dia do juízo (2Pe 2.9). Então, com os corpos ressurretos, os
descrentes comparecerão diante do Senhor para serem julgados. Em
seguida, todos eles serão banidos da presença de Deus e sofrerão
penalidade de eterna destruição (2Ts 1.7-9). Esta consistirá de serem
lançados em corpo e alma no Geena (Mt 10.28), também chamado no
Apocalipse de “lago de fogo”, ou a “segunda morte” (Ap 20.10-15; 21.8).

Sendo os pais da igreja do século II, conforme ficou demonstrado,


teólogos que recepcionavam os escritos do Novo Testamento como
fidedignos, não é de estranhar que as descrições do destino dos maus,
segundo os contornos bíblicos, tenham sido ensinadas por eles. A verdade
incontestável é que seus livros, cartas e escritos testificam que a literatura
neotestamentária ocupou lugar de preeminência entre eles, como fonte de
informações essencial para a formação do pensamento cristão sobre o
castigo dos ímpios.

A FIGURA DO BISPO MONÁRQUICO

A despeito do lugar central que as Escrituras ocuparam no pensamento


cristão do século II, é ponto pacífico que a igreja do período enfrentou
uma grave crise no campo da autoridade.

A morte de João, o último apóstolo, ocorrida no apagar das luzes do século


I e a relativa indefinição (ou a falta de uma definição oficial) do cânon do
Novo Testamento lançaram a igreja daqueles dias num vácuo de poder
eclesiástico, o que, em tempos de heresia e perseguição poderia tê-la
levado à ruína e extinção completa.

“Seu problema principal era na área de autoridade”, explica Joseph Kelly,


referindo-se à igreja do século II. Ele prossegue: “Como a vida da igreja se
tornou mais e mais complexa, os cristãos precisavam de algumas
autoridades a quem pudessem recorrer.”69

Na tentativa de preenchimento desse espaço, o cristianismo de então fez


surgir a figura do bispo monárquico, um personagem que exercia força
estabilizadora e orientadora na comunidade, além de operar como a coluna
sobre a qual era mantida a sua unidade.

Ainda que esse modelo de governo eclesiástico seja objeto de críticas por
parte de analistas modernos, o certo é que num tempo em que a
perseguição estatal gerava tanto mártires como apóstatas, e numa época
em que partidos judaizantes e gnósticos dividiam eventualmente as igrejas
locais, a figura do bispo monárquico revelou-se um poderoso fator
estimulante de perseverança e neutralizante de facções. Foi assim que,
através da centralização da autoridade episcopal, a igreja do século II
sobreviveu aos ataques tanto externos quanto internos, superando períodos
de terríveis convulsões.

De que forma esse traço da igreja impactou a pregação sobre a perdição


eterna? Na literatura cristã do século II, pode-se detectar a concepção de
que o indivíduo que rompesse a unidade da igreja ao insurgir-se contra o
bispo monárquico era merecedor da punição de Deus, assim como aqueles
que se rebelavam contra a autoridade das Escrituras e da tradição.
69KELLY, Joseph F. The world of the early Christians: Message of the
Fathers of the Church. 3 vols. Collegeville, Minnesota: The Liturgical
Press, 1997. vol. 1, p. 181. Minha tradução.

O primeiro exemplo disso encontra-se nas cartas de Inácio, às quais se


dará maior destaque no capítulo seguinte. Nelas predominam insistentes
admoestações no sentido dos cristãos se sujeitarem ao seu bispo. Inácio
afirma que quem assim não fizer e seguir um cismático, não poderá herdar
o Reino de Deus (Filadelfienses 3-4).

Irineu é outro exemplo importante. Conforme será visto, ele conecta os


pastores locais à doutrina ortodoxa, apontando-os como bispos que se
encontravam na linha direta de sucessão dos apóstolos. Enquanto para
Inácio, insurgir-se contra o bispo era militar contra a unidade da igreja;
para Irineu esse tipo de insurreição significava romper com o ensino
sagrado. Para ambos, esses pecados mereciam o severo castigo de Deus.

O TESTEMUNHO DE DONS E FEITOS EXTRAORDINÁRIOS

Um terceiro traço próprio da igreja subapostólica é que se tratava de uma


comunidade que, ao que parece, testemunhava a ocorrência de um
considerável número de milagres, feitos extraordinários e exercício de
dons especiais. De fato, é surpreendente que, ao contrário do que se possa
imaginar, há evidências de que no século II os crentes ficaram perplexos
diante de curas sobrenaturais, exorcismos, profecias e outras maravilhas.

Em seu Diálogo com Trifão, Justino de Roma faz três referências a esses
fenômenos: primeiro ele diz que o nome de Cristo não devia ser
blasfemado entre os judeus, pois sua magnificência podia ser constatada
através das obras e milagres que ainda se realizavam em seu nome (35.8);
em seguida, afirma em dois lugares (82:1 e 88:1) que entre os cristãos de
seus dias ainda existiam homens e mulheres que tinham carismas
proféticos e dons do Espírito de Deus.
Eusébio de Cesaréia, em sua História eclesiástica (V:7:1-2), afirma que
Irineu de Lião falava sobre a igreja de seus dias quando disse que, por
mais de uma vez, estando os irmãos reunidos em oração ao redor de um
cadáver, “voltou o espírito do morto”, de forma que a vida foi novamente
concedida como resposta às orações dos santos (Contra as heresias
II:31,2). O bispo de Lião, na verdade, foi ainda mais amplo e preciso ao
enumerar os fenômenos que presenciara:

Eis porque em seu nome os seus verdadeiros discípulos, depois de ter


recebido dele a graça, agem para o bem dos outros homens, conforme o
dom que cada um recebeu dele: alguns expulsam os demônios com tanta
certeza e verdade que, muitas vezes, os que foram libertos destes espíritos
maus creram e entraram na igreja; outros têm o conhecimento do futuro,
visões e oráculos proféticos; outros impõem as mãos sobre os doentes e
lhes restituem a saúde; e como dissemos, também alguns mortos
ressuscitaram e ficaram conosco por muitos anos. E que mais? Não é
possível dizer o número de carismas que, no mundo inteiro a Igreja
recebeu de Deus no nome de Jesus Cristo, crucificado sob Pôncio Pilatos,
e que os distribui todos os dias em prol dos homens, a ninguém enganando
e não exigindo dinheiro de ninguém: porque como de graça recebeu de
Deus, de graça distribuiu.70

Recordando essas palavras de Irineu, Eusébio afirma que, em sua própria


época, ou seja, no século IV, alguns crentes expulsavam demônios,
previam o futuro, tinham visões, pronunciavam palavras proféticas,
curavam doentes por imposição de mãos e até ressuscitavam mortos.
Eusébio faz menção desses fatos para defender a tese de que em seu tempo
ainda vigoravam os mesmos feitos extraordinários verificados na igreja
que sucedeu imediatamente o período apostólico (História Eclesiástica
V:7:5). Ele conclui esse assunto citando novamente o bispo de Lião:
70 IRINEU DE LIÃO, Contra as heresias II,32:4, Coleção Patrística, vol.
4, p. 235.

E em outra passagem, escreve o mesmo Irineu: “Conforme ouvimos, na


Igreja muitos irmãos são dotados de carismas proféticos e por ação do
Espírito falam todas as línguas; manifestam, quando de proveito, os
segredos dos homens e explicam os mistérios de Deus”. Estas as
referências sobre a permanência, até a época de que tratamos, dos
diferenciados carismas naqueles que eram dignos.71

Assim, o antigo historiador defende com vigor a continuidade dos dons de


sinais numa sequência ininterrupta, desde os dias dos apóstolos até o seu
tempo, dando destaque à experiência da igreja do século II.

É preciso realçar aqui que os prodígios e milagres que ocorriam na era


subapostólica forneciam o contexto adequado para o pronunciamento de
profecias e, nesse campo, muitas vezes ocorriam excessos. Hamman
informa que, tomados por crises extáticas, supostos profetas anunciavam
então o fim do mundo. Ele recorda, inclusive, que foi nessa época, mais
precisamente em 172, que surgiu na Frígia o visionário Montano,
pregando a chegada da consumação dos tempos. Os ensinos montanistas se
espalharam a partir do oriente, atingiram as margens do Danúbio e
chegaram até a África onde conquistaram como prosélito o próprio
Tertuliano de Cartago.

Hamman continua dizendo que a atração por profecias e os desvios


resultantes disso marcaram a igreja de então em vários lugares: na Síria
um profeta persuadiu muitos cristãos a irem ao encontro de Cristo no
deserto; nas margens do Mar Negro um bispo profetizou que o dia do
julgamento chegaria dentro de um ano, levando os irmãos a abandonarem
tudo ou venderem os seus bens.72
71EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. V, 7:6, Coleção
Patrística, vol. 15, p. 243. A citação feita por Eusébio é da obra Contra as
heresias, Livro V, 6:1.

Esses dados, porém, não devem conduzir a conclusões erradas. Não se


pode, por exemplo, auferir deles que a igreja antiga como um todo fazia
dos milagres e dos dons de sinais a tônica de sua mensagem e
funcionamento. A própria raridade com que os pais mencionam esses
fenômenos é prova disso. Contudo, eventual ou não, eivada de excessos ou
protegida pelo equilíbrio, a comprovação dramática e marcante da
intervenção de Deus na vida humana certamente mantinha acesa no
coração dos crentes de outrora a noção de que a realidade visível não é a
única existente; que o Deus justo e poderoso é também um Deus presente
que acompanha o drama diário dos homens, tendo, assim, conhecimento
para julgar e autoridade para livrar ou condenar. As provas de sua presença
e força ajudavam a manter na superfície de cada consciência a realidade
daquele diante de quem todos um dia haveriam de prestar contas.

O PERIGO DAS HERESIAS

O quarto e último traço da igreja do século II merecedor de destaque é o


fato de ela ter sido uma igreja que militava contra um vasto número de
heresias que se insinuavam dentro de suas próprias fronteiras. Eusébio de
Cesaréia se refere ao ambiente em que a igreja vivia no segundo século,
descrevendo-o como um contexto marcado pela constante ameaça de
seitas contra as quais os mestres cristãos se viam na necessidade premente
de lutar:

Nesta ocasião, porém, os hereges, a guisa de joio, corrompiam a pura


semente da doutrina apostólica. Por toda parte os pastores das igrejas
apartavam esses ferozes animais das ovelhas de Cristo, afastando-os
através de advertência e exortações aos irmãos, ou abertamente,
confrontando-os e lutando contra eles por meio de questões e refutações
orais, ou impugnando-lhes as opiniões através de provas cabais, em
memoriais.73
72HAMMAN, A vida cotidiana dos primeiros cristãos (95-197), p. 122-
123.

Sabe-se ainda que os mestres dessas heresias nutriam concepções distintas


acerca da perdição e buscavam prosélitos entre os cristãos filiados às
igrejas de tradição ortodoxa, afirmando ser, eles próprios, os verdadeiras
herdeiros dos apóstolos.

Em face dessas seitas, portanto, os pais da igreja falaram acerca do inferno


tanto para corrigir a visão distorcida que propagavam, como para
engendrar temor entre os crentes que se sentiam atraídos por propostas
doutrinárias reprováveis que se apresentavam sob roupagem cristã. Assim,
enquanto nutriam um objetivo apologético, esvaziando de autoridade as
doutrinas dos hereges, os mestres da igreja também alertavam os crentes
acerca da existência de um destino de dores para os seguidores das fábulas
engendradas por espíritos malignos e propagadas por aqueles que, segundo
seu entender, eram ministros do diabo.

Entre as heresias que se difundiam ao longo do século II, a que mais se


destacou foi, sem sombra de dúvidas, o gnosticismo. Presente de forma
embrionária já nos dias dos apóstolos, essa filosofia pseudo-cristã
desenvolveu-se no século seguinte num complexo emaranhado de ensinos
referentes à origem do mundo, à natureza de Deus, ao surgimento do mal e
aos meios de salvação.

Um dos mestres gnósticos de maior destaque no período subapostólico foi


Valentim. Sendo originário de Antioquia, ele foi para Roma por volta do
ano 140 e rapidamente conquistou o respeito da igreja como mestre
popular e líder carismático. Os historiadores Dale Irvin e Scott Sunquist
dizem que Valentim foi um dos mestres gnósticos mais ilustres, sendo
detentor de grande habilidade para juntar suas intuições especulativas com
doutrinas bíblicas e ensinos filosóficos platônicos, tudo no afã de dar
forma ao abrangente sistema herético que tanto preocupou os líderes
eclesiásticos daqueles dias.74
73EUSÉBIO DE CESARÉIA, História Eclesiástica IV:24, Coleção
Patrística, vol. 15, p. 211.

Os ensinos de Valentim, mesmo nas diversas variações que assumiram,


propunham basicamente a existência de uma realidade metafísica
denominada Pleroma, composta por uma invisível, eterna e completa da
qual eram oriundas entidade

inúmeras emanações ou éões. Estes, em meio a uma verdadeira saga


abrangente de paixões, virtudes e sofrimentos, originaram a realidade
sensível na qual os seres humanos estão inseridos.

Os gnósticos prometiam aos seus adeptos o acesso exclusivo ao


conhecimento (gnosis) salvífico das coisas que consideravam “mistérios”,
embora, na prática, suas fossem acessíveis a todos sendo, inclusive,
doutrinas
expostas detalhadamente e refutadas por Irineu de Lião, em sua obra
Contra as heresias.

Foi dito no capítulo anterior que esse intrincado modelo filosófico-


religioso ensinava que havia três classes de homens: os pneumáticos, os
psíquicos e os terrenos. Essa divisão da humanidade era aplicada,
inclusive, à compreensão do destino eterno das pessoas.

De acordo com o gnosticismo do século II, os pneumáticos eram os


perfeitos portadores da gnose e seriam finalmente recebidos no Pleroma.
Evidentemente, os gnósticos se apresentavam como os componentes dessa
classe privilegiada. Os psíquicos, por sua vez, eram, segundo eles, os que,
sendo ignorantes dos mistérios conhecidos pelos pneumáticos, tinham,
contudo, a possibilidade de escolher o bem. Nessa classe estavam os
cristãos comuns que, sob a tutela das igrejas a que pertenciam, tinham a
necessidade de aprender as virtudes e a opção de vivenciálas. Se assim
fizessem, repousariam num estado intermediário, porque nenhum psíquico
jamais poderia entrar no Pleroma. Se, porém, optassem pelo mal, teriam
seu destino com a terceira classe de homens, os terrenos.
74IRVIN, Dale T.; SUNQUIST, Scott W. História do movimento cristão
mundial: do cristianismo primitivo a 1453. 2 vols. São Paulo: Paulus,
2004. vol. 1, p. 39.

Nessa última classe se encontravam aqueles que tinham excessivo apego


ao mundo material, incapazes de qualquer percepção que fosse além dos
sentidos corporais. Seu destino, juntamente com os psíquicos que optaram
pela prática do mal, era o fim na mais completa deterioração e ruína.
Presos ao mundo físico, não podiam ter esperança, pois, segundo os
gnósticos, não havia salvação para a matéria. No final, toda ela seria
consumida pelo fogo e passaria para o nada.75

O gnosticismo tinha várias ramificações. Dentre elas, a de maior destaque,


sempre combatida pelos teólogos ortodoxos da época, é a que estava
associada ao nome de Marcião (c. 110-160). Justino, particularmente,
revela especial repugnância pelos ensinos desse herege, alistando-o entre
os “ateus, ímpios, injustos e iníquos” com quem os cristãos não tinham
nenhuma comunhão (Diálogo 35:5-6). Para Justino, Marcião propagava
suas doutrinas com o auxílio de demônios:

Por fim, um tal Marcião, natural do Ponto, está agora mesmo ensinando
seus seguidores a crer num Deus superior ao criador e, com a ajuda dos
demônios, fez com que muitos, pertencentes a todo tipo de homens,
proferissem blasfêmias e negassem o Deus Criador do universo,
admitindo, em troca, não sabemos que outro deus, ao qual, supondo maior,
se atribuem obras maiores do que àquele.76
75 IRINEU DE LIÃO, Contra as heresias I, 7:1,5; II, 29, Coleção
Patrística, vol. 4, p. 49, 51-52, 220-222. Irineu informa ainda que, para os
gnósticos, “a ressurreição dos mortos consiste no conhecimento do que
eles chamam de verdade” (Contra as heresias II, 31:2).

Tendo sido, a princípio, bispo de Sinope, no Ponto (região norte da atual


Turquia), Marcião foi expulso da igreja por estabelecer um contraste
radical entre o Antigo e o Novo Testamento. De acordo com sua teologia, o
Antigo Testamento deveria ser totalmente rejeitado e apenas alguns textos
do Novo Testamento deveriam ser tidos como sagrados e adotados pelos
cristãos. Irineu de Lião informa que esses textos neotestamentários que
Marcião acolhia eram algumas porções do Evangelho de Lucas e um
conjunto mutilado das cartas de Paulo. Irineu diz ainda que desses livros
do Novo Testamento recepcionados pelo ousado herege, ele eliminou tudo
o que se referia ao reconhecimento do Pai como criador, bem como as
passagens que citam ou fazem alusão às profecias do Velho Testamento
(Contra as heresias I, 27:2).

O cânon de Marcião era resultado de sua visão dualista. Ele ensinava a


existência de dois deuses, um bom e outro mau. O primeiro, o Deus
verdadeiro e Pai de Jesus Cristo, ficava num plano superior. Abaixo dele
estava Jeová, o Deus venerado pelos hebreus, um ser mau e vingativo,
desejoso de guerras, inconstante nos sentimentos, criador da matéria, autor
do mal e originador da Lei. Em outros dois planos abaixo de Jeová
estavam os anjos e a matéria.
Na visão marcionita, Cristo foi enviado pelo Pai e se manifestou como
homem para abolir a Lei e os profetas, bem como todas as obras do
perverso criador. O historiador Roque Frangiotti ensina que, de acordo
com Marcião, Cristo se revestiu de uma corporeidade apenas aparente,
pois se assumisse a matéria ficaria sob o poder do criador maligno e não
alcançaria seu alvo final que era libertar as almas de todos os homens do
plano material.77
76JUSTINO MÁRTIR. Primeira Apologia 26:5. In: Justino de Roma,
Coleção Patrística, vol. 3, p. 42.ver ainda Primeira Apologia 58:1-3.

Assim, além de ameaçar as crenças cristãs básicas, essa heresia ensinava a


forma mais crua de universalismo. Alderi Souza de Matos resume esse
aspecto do ensino de Marcião: “O Deus verdadeiro perdoa a todos e assim
toda a humanidade será salva. A salvação é do espírito, não do corpo.”78

Outras formas de gnosticismo presentes no século II estão ligadas aos


nomes de Simão, Ptolomeu, Secundo, Menandro, Saturnino, Basílides e
Cerinto. Segundo os escritores antigos, os seguidores dessas seitas não
somente tinham em comum os ensinamentos básicos
praticantes de artes
do gnosticismo, mas também eram mágicas e faziam uso de poções,

encantamentos e fórmulas de iniciação repletas de palavras estranhas


(termos hebraicos e nomes de seres imaginários) com o fim de
impressionar seus novos adeptos e cativar os pagãos em geral e os cristãos
despreparados.79

A literatura patrística do século II é também constante em afirmar que os


proponentes do gnosticismo muitas vezes faziam uso de linguagem cristã
ortodoxa com o fim de convencer os cristãos simples de que não havia
diferença alguma entre seus ensinos e o que eles aprendiam dos pastores
verdadeiramente cristãos em suas igrejas. Essa estratégia que, segundo
Irineu, era usada especialmente pelos valentinianos, dava resultados:
77 FRANGIOTTI. Roque. História das heresias (Séculos I-VII): conflitos
ideológicos dentro do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1995. p. 43.
78 MATOS, Alderi Souza de. Fundamentos da teologia histórica. São
Paulo: Mundo Cristão, 2008. p. 40. Sob a ótica de Irineu, porém, o
marcionismo ensinava que só se salvariam os que aprendessem suas
doutrinas. O bispo de Lião atribui também a Marcião o ensino de que, ao
descer ao inferno, Cristo livrou toda espécie de homens perversos que ali
se encontravam, mas não pôde salvar Abel, Enoque, Noé, Abraão e os
profetas porque eles, com medo de serem enganados pelo deus mau que
tanto conheciam, não foram ao encontro de Jesus, permanecendo suas
almas no Hades (Contra as heresias I, 27:3).
79Para uma enumeração mais completa das seitas gnósticas do século II,
suas doutrinas e práticas, bem como os nomes de seus principais
proponentes, ver Justino de Roma (Primeira Apologia 26, 56-58; Diálogo
com Trifão 35), Irineu de Lião (Contra as heresias I,11-13, 23-31) e
Eusébio de Cesaréia (História eclesiástica IV,7,11).

Eles fazem discursos ao povo com a finalidade de atingir os que


pertencem à Igreja, que eles chamam de gente comum ou gente de igreja, e
assim enganam e atraem os mais simples, simulando a nossa maneira de
falar, para que venham mais vezes a escutá-los. E se queixam de nós
porque, mesmo pensando como nós, nós nos recusamos sem motivo, a
estar em comunhão com eles: dizem as mesmas coisas que nós, professam
a mesma doutrina e, mesmo assim, os chamamos hereges! Mas quando, à
força de apresentar dificuldades, convencem alguém a abandonar a fé, e a
levar os ouvintes a não contradizê-los, então, separadamente, desvendam-
lhes o mistério inexprimível de seu Pleroma.80

O gnosticismo se afigurava, assim, como uma ameaça extremamente


preocupante para os pais da igreja. Seus mestres, além de propor uma
soteriologia anti-cristã, eram hábeis em confundir os crentes, levando-os a
crer, através do uso sutil de palavras e proposições ortodoxas, que suas
propostas se harmonizavam com a herança doutrinária dos apóstolos.
Apontando verdades que eram familiares aos crentes, os mestres desse
sistema herético as pronunciavam mantendo inúmeras reservas mentais,
de
verdadeiro, mas interiormente,
modo que afirmavam algo atribuíam aos seus termos

significados muito diferentes daqueles que pareciam transmitir. “Falam


como nós, mas pensam diferentemente de nós”, queixou-se Irineu ao falar
dos gnósticos no prólogo do primeiro livro de sua obra Contra as
heresias.81 Falando ainda sobre suas estratégias no Livro II, ele os
compara a caçadores astutos:
80IRINEU DE LIÃO, Contra as heresias III,15,2, Coleção Patrística,
vol. 4, p. 312.

Como quem quer capturar um animal lhe apresenta o alimento costumeiro


para aliciá-lo e o agrada oferecendo-lhe a pouco e pouco a comida
preferida até que o apanhe, e uma vez que o capturou o amarra firmemente
e o leva pela força onde quer, assim agem os gnósticos. De mansinho,
partindo de noções familiares, fazem com que, a pouco e pouco se aceitem
as emissões de que já falamos e depois introduzem todas as outras
espécies de emissões extravagantes e inverossímeis.82

Sendo seu perigo tão intenso e tendo levado após si vários cristãos de
ânimo vacilante, o ensino gnóstico foi combatido ferozmente pelos pais da
igreja e uma das armas que usaram nessa batalha foi a pregação das
verdades sobre o destino miserável dos hereges e apóstatas.

Vê-se, desse modo, que, em face das seitas gnósticas, os primeiros pais da
igreja pronunciaram discursos e escreveram obras sobre o inferno tanto
para fazer frente à soteriologia mítica que pregavam como para afastar de
suas escolas os crentes que estavam sob os cuidados dos verdadeiros
pastores de Cristo.

Menos ameaçadora, mas seitas que proliferaram nos dias ebionismo. Seu
nome procedia da palavra hebraica‫( ןויבא‬ebion), que significa “pobre”,
talvez uma designação dada a princípio a todos os cristãos, em virtude da
baixa condição social a que pertenciam em sua maioria.83 Quanto ao seu
surgimento, há indícios que permitem situá-lo entre os cristãos judeus que
fugiram para Pela ao tempo da invasão de Jerusalém.
também inquietante entre as

dos primeiros pais, foi o As marcas características do ebionismo eram a


redução do cristianismo ao nível do judaísmo e a defesa da validade
perpétua e universal da Lei Mosaica. Ainda que apresentasse certas
variações, seu ramo principal cria que Jesus era o Messias prometido, mas
rejeitava sua divindade e nascimento virginal.
81 Ibid., I, Prólogo 2, p.30.
82 Ibid., II, 14:8, p. 166.
83 Eusébio de Cesaréia diz que o título lhes foi dado em virtude da pobreza
de seus conceitos sobre Cristo e também a fim de acentuar a carência de
sua capacidade intelectual (História eclesiástica III:27:1,6).

Na doutrina ebionita a circuncisão, a guarda do sábado e a observância da


totalidade da Lei eram indispensáveis para a salvação de todos os homens.
O personagem que mais odiavam era o apóstolo Paulo que, segundo seu
entender, tinha nascido no paganismo, abraçara o judaísmo por razões
escusas e depois tornara-se apóstata e herege, devendo todas as suas
epístolas ser rejeitadas. Sabe-se através de Eusébio que os ebionitas só
acolhiam o chamado Evangelho Segundo os Hebreus84e que, como os
cristãos, observavam também a guarda do domingo, em memória da
ressurreição de Cristo (História eclesiástica III, 27:4-5).

Justino alude aos ebionitas duas vezes no seu Diálogo com Trifão. Na
exposição que faz aos seus interlocutores judeus, ele esclarece o seguinte:

... aqueles de vossa raça que dizem crer em Cristo, mas a todo custo
pretendem obrigar aqueles de todas as nações que acreditaram nele a viver
conforme a lei de Moisés, ou que não se decidem a conviver com estes,
também eu não aceito esses como cristãos.85

Mais adiante, Justino observa: “Há alguns da vossa descendência que


confessam Jesus como o Cristo, mas afirmam que ele é homem nascido de
homem. Não estou de acordo com eles...”.86
84 Trata-se de uma versão reduzida do Evangelho de Mateus, escrita em
hebraico.
85 JUSTINO MÁRTIR. Diálogo com Trifão 47:3. In: Justino de Roma,

Coleção Patrística, vol. 3, p. 179.


86 Ibid., Diálogo 48:4, p. 180.

Não há indícios de que o ebionismo, tal como as seitas gnósticas, tenha


promovido a apostasia de um grande número de cristãos ortodoxos. Logo,
seria exagero dizer que essa seita judaicocristã tenha motivado os pais da
igreja da época a pregarem sobre o inferno preocupados com a grandeza de
sua ameaça. Também não se pode atribuir aos ebionitas conceitos errados
sobre a natureza das penas no além, já que não existem sinais de rejeição
por parte deles de ensinos como a existência do inferno ou da eternidade
das penas.

Porém, o problema principal que chamou a atenção dos primeiros pais da


igreja para o ebionismo foi a doutrina que ensinavam acerca do modo
como os homens poderiam se livrar do castigo final de Deus. Conforme
visto, segundo eles o livramento do inferno viria por meio da estrita
observância da lei mosaica e, no tocante a isso, os teólogos da igreja
manifestaram frontal oposição, ensinando que o evangelho consiste de
uma nova lei e que somente por meio da sujeição a esse sistema mais
recente e gracioso, cuja primeira exigência é a fé no Deus encarnado, os
ímpios arrependidos poderiam se livrar do fogo do Hades. Conforme será
visto, essa foi, de fato, a tônica da mensagem proclamada pelos pais
apostólicos.

3
OS PAIS APOSTÓLICOS

Nos capítulos anteriores ficou demonstrado que fatores externos e internos


foram determinantes da forma como os teólogos do século II abordaram a
doutrina da perdição eterna. A partir do presente capítulo, as lentes da
pesquisa deverão se voltar para os principais escritores e mestres cristãos
daquele período, realçando que, conforme proposto inicialmente, os pais
da igreja do período subapostólico consideraram a doutrina da perdição
futura parte essencial da mensagem cristã e fizeram uso dela como
instrumento eficaz na proteção e divulgação da fé ameaçada pela
perseguição, pelos atrativos do mundo e pelas propostas das seitas
heréticas.

O primeiro conjunto literário cristão que surgiu logo depois da


composição do Novo Testamento e que revela uma reflexão teológica
melhor elaborada, foi o formado pelos escritos dos pais apostólicos, assim
chamados porque acreditava-se que esses escritores tinham tido algum
contato com os apóstolos, o que, em alguns casos, parece ser verdade.

Os pais apostólicos são oito: Clemente de Roma, a Didaquê, Inácio de


Antioquia, Policarpo de Esmirna, Papias de Hierápolis, a Epístola de
Barnabé, o Pastor de Hermas, e a Epístola a Diogneto.87

CLEMENTE DE ROMA

Clemente foi bispo de Roma por volta do final do século I e a ele são
atribuídas duas epístolas. A Primeira de Clemente foi escrita em cerca de
96 d.C e endereçada à igreja de Corinto que estava passando por uma fase
de divisão e rebelião contra seus líderes. Clemente admoesta os rebeldes
recordando, ao estilo dos estoicos, que a harmonia deriva do caráter do
próprio Deus que a estabeleceu no universo e que, portanto, deve ser
restaurada na igreja.

A epístola abriga também alguns aspectos do pensamento cristão antigo


sobre as punições no além. Nela é mencionada uma condenação futura
(13:1) da qual o homem pode escapar através da fé (6:10) e nunca por suas
próprias obras (14:20-21).

Na Primeira de Clemente, a relação da obra de Cristo com o livramento


das penas futuras é mencionada de modo um tanto vago, em afirmações
que apontam o Filho como salvador e também como juiz de vivos e de
mortos. Numa determinada passagem Clemente afirma que pelo sangue do
Senhor há redenção para todo o que crê e tem esperança em Deus (6:10) e
em outra ensina que o sangue de Cristo, precioso aos olhos de Deus, uma
vez derramado para a salvação do homem, obteve a graça do
arrependimento para todo o mundo (4:5). Dessa forma, Clemente parece
dizer que o arrependimento que salva o homem do destino mau só é
aceitável a Deus porque Cristo realizou uma obra expiatória na cruz.
87O título “pais apostólicos”, conforme se vê, é aplicado tecnicamente
não somente a personagens, mas também a alguns documentos produzidos
por escritores obscuros ou desconhecidos daquele período. A expressão
designa estritamente os oito itens aqui alistados.

A Segunda Epístola de Clemente aos Coríntios não foi na verdade escrita


por Clemente. A obra data de c. 150 e foi composta em Corinto ou em
Roma com o propósito de exortar os crentes ao arrependimento, pois, ao
que parece, seus destinatários nutriam a crença de que os atos do corpo
não tinham implicações espirituais, o que gerava desvios de conduta.

Nessa obra trata-se, entre outras coisas, de uma condenação eterna (3:8)
que consistirá, conforme as palavras de Jesus, do lançamento do ímpio, em
corpo e alma no inferno (Geena), onde o fogo nunca se apaga e o verme
nunca morre (3:2,13). A condição deplorável da alma lançada nessa
“fornalha” é irremediável, pois a partir do momento em que o homem
deixa este mundo, não poderá, no outro, confessar seus pecados ou se
arrepender deles (3:14-16).

Diferente da Primeira Epístola de Clemente, a segunda carta atribuída


equivocamente a esse bispo de Roma, concede papel notável às obras na
conquista da salvação. Nela é enfatizada a importância das virtudes no
caráter do cristão, sendo também proclamado que sem essas virtudes
ninguém poderá ser salvo. Nesse sentido, o texto da carta diz
expressamente: “Pois, se fizermos a vontade de Cristo, encontraremos
descanso; do contrário, se desobedecermos aos seus mandamentos, nada
poderá nos livrar da punição eterna”.88

Ao que se vê, portanto, as Epístolas de Clemente apresentam harmonia no


que diz respeito à visão das penas eternas. Em ambas é apresentado um
lugar de real, perene e irremediável sofrimento, reservado para os
perdidos. Entre elas, contudo, é notável o contraste no que diz respeito ao
modo como o homem pode salvar-se. Esse contraste, por sua vez, não
aponta somente para o fato de terem sido compostas por autores
diferentes, mas é especialmente ilustrativo do deslocamento do foco
soteriológico ocorrido no século II que negligenciou a ênfase apostólica na
salvação somente pela fé (cf. Primeira de Clemente) em troca de uma
tônica predominantemente moral, que ensinava o livramento do castigo
por meio da obediência aos mandamentos de Cristo (cf. Segunda de
Clemente), realçando a importância de uma ética elevada, ao estilo dos
estoicos, como meio de salvação.
88The second epistle of Clement to the Corinthians 3:8. In: Archbishop
WAKE. The supressed gospels and epistles of the original New
Testament of Jesus the Christ. E-book produzido por David Widger,
2002. vol. 6, p. 54. Minha tradução.

Positivamente considerado, o referido contraste pode ser útil à


compreensão do modo como se desenvolveu o pensamento cristão a partir
do século II. Isso porque, com base nessas concepções opostas presentes
nas cartas em análise, talvez seja possível formar uma síntese que reflita a
soteriologia reinante nas décadas imediatamente posteriores à morte do
último apóstolo. Essa síntese teria os seguintes contornos: para que o
homem pudesse escapar das terríveis chamas do castigo foi necessário o
sacrifício de Cristo, graças ao qual o arrependimento do ímpio é agora
aceito. Tal arrependimento, porém, só é salvífico se for fruto da fé e se for
acompanhado de notável e perfeita obediência aos mandamentos
constantes do evangelho. Essa obediência, na verdade, tem papel central
na salvação, sendo impossível evitar os tormentos da vida futura sem ser
virtuoso na vida presente.

A DIDAQUÊ

Outro documento classificado entre os pais apostólicos é a Didaquê ou


Ensino dos Doze Apóstolos. Trata-se de um pequeno manual eclesiástico,
originado na Síria ou na Palestina, cuja compilação parece ter alcançado a
forma definitiva em cerca de 170. A Didaquê permaneceu esquecida por
muitos séculos e só foi redescoberta em 1873, em Istambul. Contém
dezesseis capítulos, divididos em três seções. Nesses capítulos é descrito o
caminho da vida em oposição ao caminho da morte, são apresentadas
orientações acerca de como identificar falsos profetas e são tratados temas
litúrgicos como o batismo e a ceia. No final há uma admoestação a que os
cristãos se mantenham preparados para a vinda do Senhor, a ressurreição
dos justos e o fim do mundo.

Seria de se esperar que, pelo menos nos capítulos relativos aos dois
caminhos e ao fim do mundo, a Didaquê tratasse amplamente da perdição
eterna dos ímpios. Porém, dado o especial interesse da obra em questões
práticas e litúrgicas, somente vagas alusões ao perigo que aguarda os
infiéis podem ser percebidas nessas seções, assim como ao longo de todo
esse antigo manual. Por exemplo: no capítulo 1 é dito que quem recebeu
recursos materiais sem precisar, terá que prestar contas e, evocando as
palavras de Jesus, o autor afirma que tal pessoa será posta na prisão e
interrogada sobre o que fez, sendo impedida de sair dali até ser devolvido
o último centavo. A linguagem, emprestada de Mateus 5.25-26,
evidentemente é figurada e não ficam claros os contornos exatos da
punição futura que o autor tinha em mente.

Também no capítulo 11 parece haver a menção indireta da punição pós


morte quando é dito que todo pecado será perdoado exceto o pecado de
colocar à prova um profeta que fala sob inspiração. Finalmente, o capítulo
16 faz ecoar um tom de ameaça pairando sobre o destino eterno dos
leitores, ao ensinar que de nada servirá todo o tempo que os cristãos
viveram na fé se, no último momento, não forem encontrados perfeitos.

Assim, conforme destaca George Minois, ainda que transpareça a crença


nas punições da vida no além, a Didaquê apresenta o assunto sem tratar de
pormenores e nada esclarece sobre a natureza exata dessas punições,89
nem sobre a sua duração, nem tampouco mostra a relação da obra
livramento delas, sugerindo apenas que o de Cristo com o destino feliz
está
89 MINOIS, História dos infernos, p. 90.

reservado exclusivamente àqueles que perseveram até o fim numa vida


humilde, obediente e virtuosa. Estes, pode-se concluir, se livrarão das
angústias a que conduz o “caminho da morte”.
A Didaquê, portanto, mostra que mesmo quando os mestres cristãos do
século II não tratavam amplamente acerca do inferno em seus escritos,
suas breves alusões a esse tema revelavam que a doutrina da perdição
eterna compunha o cerne da mensagem que pregavam e servia para
estimular a perseverança do povo de Deus.

INÁCIO DE ANTIOQUIA

Entre os pais apostólicos encontra-se também Inácio de Antioquia († c.


110). Inácio, durante a perseguição movida por Trajano, foi enviado a
Roma, condenado às feras. Ao longo do trajeto de Antioquia à capital do
império, o bispo escreveu sete cartas. De Esmirna escreveu aos efésios,
aos magnesianos, aos tralianos e aos romanos. Depois, estando já em
Trôade, escreveu às igrejas de Filadélfia, de Esmirna e, por último, uma
carta ao bispo dessa cidade, o grande Policarpo.

O tema dominante das cartas de Inácio é a unidade da igreja em torno de


seu bispo. Ele realça a importância da obediência e do respeito aos líderes
eclesiásticos como uma forma de preservar a união e haver proteção
contra a heresia.

Admoestando, assim, seus leitores à unidade, Inácio revela


ocasionalmente seu pensamento sobre o destino dos maus, provando que
esse tema era componente essencial de sua teologia, um instrumento
eficaz no trabalho pastoral consistente de refrear a obstinação, a rebeldia e
a apostasia.

As primeiras menções que Inácio faz das penas eternas se encontram em


sua carta aos Efésios. Ali ele alude à “ira futura” que deve ser temida
(Efésios 11:1) e ao “fogo inextinguível”, destino de todo aquele que
corrompe a fé em Deus através do ensino de má doutrina.90 As chamas do
castigo, segundo ensina, não torturarão somente os mestres da heresia,
mas também aqueles que os escutam (Efésios 16.2). Esse último alerta, o
bispo de Antioquia refaz quando escreve aos crentes de Filadélfia
(Filadelfienses 3.3). É indiscutível aqui a utilização da doutrina sobre o
castigo pós morte como ferramenta para inibir o desvio dos crentes.
A análise das sete cartas de Inácio revela uma teologia segundo a qual
somente estando em Cristo o homem pode entrar na verdadeira vida
(Tralianos 9.2). A fé nele é o caminho que eleva a Deus (Efésios 9.1;
Tralianos 2.1; Esmirnenses 6.1). No entanto, é preciso que o crente se
mantenha na força dessa fé até o fim (Efésios 14.2; Magnésios 1:2). Do
contrário, o príncipe deste mundo o levará para longe da vida feliz que o
espera no futuro (Efésios 17.1).

Ao estilo dos escritores cristãos do período, Inácio evita realçar a


suficiência da fé como requisito que assegura o livramento do castigo de
Deus. O zelo pastoral que tentava engendrar temor e perseverança na
igreja movia o bispo a falar do fogo inextinguível como um perigo não
superado nem mesmo por quem se declarava cristão, insistindo que, à
parte da perseverança, ninguém escaparia do suplício sem fim.

POLICARPO DE ESMIRNA

Policarpo († 155) foi bispo da elogiável igreja de Esmirna. Ele se destaca


na história eclesiástica como discípulo do próprio apóstolo João e mestre
do grande Irineu de Lião. Ainda que pouco se saiba sobre sua vida,
detalhes importantes acerca da sua morte sobreviveram através da carta da
igreja de Esmirna endereçada à igreja de Filomélio. Nessa carta é relatada
a coragem do velho bispo, então com 86 anos, diante da fogueira que,
enfim, o consumiu.
90As más doutrinas a que Inácio faz alusão em suas cartas são o
docetismo e as práticas judaicas.

Tudo o que restou dos escritos de Policarpo foi uma carta dirigida aos
filipenses, na ocasião em que estes lhe pediram cópias das cartas de
Inácio. Nessa sua epístola, o bispo de Esmirna ensina, logo de início, que
Deus ressuscitou Jesus Cristo, livrando-o das dores do Hades (1:2).

Aqui pode-se facilmente detectar o embrião de uma doutrina que, segundo


Héber Carlos de Campos, desenvolveu-se ao longo dos séculos, foi
incluída em versões posteriores no Credo Apostólico (a partir do século
IV), figurou no Credo de Atanásio (séculos V ou VI) e tornou-se afirmação
credal comum nos diversos documentos da igreja, especialmente a partir
do século VII: a doutrina de que, entre seu sepultamento e ressurreição,
Cristo desceu a um lugar chamado Hades a fim de completar ali sua obra
de salvação.91 Essa doutrina, segundo o parecer de J. N. D. Kelly, já era
corrente desde os primeiros tempos da era subapostólica. Kelly reforça
esse argumento dizendo que Inácio faz clara referência a ela no capítulo 9
da sua Epístola aos Magnésios.92

Na obra em análise, Policarpo não expõe os contornos exatos do seu


pensamento sobre a descida de Cristo ao Hades. Mais adiante, porém,
deixa transparecer seu entendimento acerca de como o homem pode livrar-
se das mesmas penas que, segundo ele, o Senhor provou quando desceu ao
inferno. Na concepção do bispo de Esmirna, para que o homem escape
daquele castigo é preciso que imite a perseverança dos mártires (9:1) e a
prática do bem, especificamente o dar esmolas, gesto que “liberta da
morte” (10:2).
91CAMPOS, Héber Carlos de. Descendit ad inferna: uma análise da
expressão “Desceu ao Hades” no cristianismo histórico. Fides Reformata.
Volume IV, número 1 (jan./jun.1999). São Paulo: Editora Mackenzie,
1999. p.103-128.
92 KELLY, J. N. D. Primitivos credos cristianos. Salamanca: Ediciones
Secretariado Trinitário, 1980. p. 448. O texto de Inácio diz expressamente:
“Como podemos viver sem aquele que até os profetas, seus discípulos em
espírito, esperavam como Mestre? Foi precisamente aquele que
justamente esperavam, quem ao chegar, os ressuscitou dos mortos.”
(Magnésios 9:2).

Informações adicionais sobre o ensino de Policarpo acerca da doutrina da


perdição dos ímpios estão presentes na carta da igreja de Esmirna à igreja
de Filomélio, escrito que narra o martírio do bispo. A epístola reflete a
concepção de que a perseverança é fator crucial à salvação ao dizer que os
mártires de Esmirna desprezaram o fogo dos torturadores porque tinham
diante dos olhos o alvo de escapar do fogo eterno que nunca se extingue
(2:3). O escrito não negligencia, contudo, a verdade de que é pela graça e
pelo dom de Deus, mediante Jesus Cristo, que o homem é introduzido no
reino eterno (20:2).
Mais adiante, ao narrar o diálogo entre Policarpo e o procônsul que
ameaçava queimá-lo vivo, a carta de Esmirna reproduz a resposta de velho
bispo: “Tu me ameaças com um fogo que queima por um momento, e
pouco depois se apaga, porque ignoras o fogo do julgamento futuro e do
suplício eterno, reservado aos ímpios”.93

Policarpo fornece, assim, mais um testemunho da crença dos primeiros


teólogos cristãos num tormento futuro, real e eterno, preparado para os
ímpios, tormento que o homem só pode evitar por meio da fé em Cristo,
desde que persevere nessa mesma fé e na prática do bem. O bispo de
Esmirna acrescenta a isso a noção de que Cristo conheceu os tormentos
dos quais agora pode livrar o homem, mas silencia sobre a razão
específica da descida do Senhor ao Hades. O que afirma, contudo, é
suficiente para demonstrar que um inferno real fazia parte da mensagem
que anunciava quando tinha por propósito propagar a fé e instilar coragem
em seus irmãos.
93Martírio de São Policarpo Bispo de Esmirna 11:2. In: Padres
apostólicos, Coleção Patrística, vol. 1, p. 155.
PAPIAS DE HIERÁPOLIS

Pequena ou mesmo nenhuma contribuição para a doutrina das penas


futuras provém de Papias (c. 70 – c. 140), bispo de Hierápolis, na Frígia.
Papias foi amigo de Inácio e de Policarpo. Segundo informações de Irineu
de Lião, ele foi discípulo do apóstolo João (Contra as heresias V, 33:4).
Eusébio discorda, dizendo que ele teve como mentor outro João,
conhecido como “o presbítero” (História eclesiástica III, 39:1-17).

Ainda que, por volta de 130, tenha escrito uma obra intitulada Exegeses
das palavras do Senhor, composta de cinco volumes, somente treze
fragmentos deles foram preservados em citações de Irineu e de Eusébio de
Cesaréia. Nesses fragmentos, absolutamente nada é dito sobre o destino
dos perversos ou acerca do modo como o homem pode evitar o castigo
futuro.

Seja como for, chama a atenção o fato de Papias revelar um apego notável
às crenças milenaristas, segundo as quais, após a ressurreição, Cristo
voltaria para estabelecer um reino terreno de paz e prosperidade que
duraria mil anos, em companhia dos fiéis. Sendo esse reino reservado para
os santos, deduz-se que os ímpios, de algum modo, ficariam fora dele.
Porém, esse é o ponto máximo a que se pode chegar com base nos raros
textos de Papias citados por Irineu e Eusébio.

É verdade que a simpatia de que desfruta o bispo de Hierápolis entre os


escritores antigos pode conduzir à sugestão de que sua doutrina sobre o
inferno em nada diferia dos teólogos ortodoxos de então. Conforme dito
acima, ele foi amigo de Inácio e de Policarpo, Irineu o cita com aprovação,
ligando-o ao apóstolo João e Eusébio se refere a ele como alguém que
exerceu grande influência entre os escritores cristãos do seu tempo
(História eclesiástica III, 39:13).

Ora, talvez Papias jamais ocupasse lugar de tanto destaque ou tivesse a


acolhida de homens como Inácio e Policarpo se fosse oposto a eles em
questões cruciais como o destino das almas dos ímpios e o seu castigo
após a ressurreição. Além disso, conforme ensina W. G. T. Shedd, a
opinião reinante na igreja daqueles dias era a de que haveria uma punição
sem fim para os ímpios.94 Porém, seria ousado demais construir
meramente a partir desses fatos a dedução de que em sua obra exegética,
hoje perdida, Papias ensinasse a realidade do inferno, nos exatos termos da
ortodoxia da igreja subapostólica.

A EPÍSTOLA DE BARNABÉ

A Epístola de Barnabé é uma obra de teologia dogmática e moral que


claramente visa mostrar as distinções existentes entre as práticas
cerimoniais judaicas e a “nova lei” do cristianismo. No século II sua
autoria foi atribuída a Barnabé, o companheiro de Paulo em sua primeira
viagem missionária (At 13.1-3). Porém, evidências internas situam sua
composição por volta de 135, tendo como provável autor um catequista
cristão da igreja de Alexandria que permaneceu no anonimato.

Adotando uma hermenêutica que busca o sentido alegórico nas prescrições


do Antigo Testamento, a Epístola de Barnabé rejeita o cerimonialismo
judaico, definindo o evangelho como “a lei nova de nosso Senhor Jesus
Cristo” (2:6). A partir daí, pode-se esperar na carta pouco espaço para a
doutrina paulina da justificação pela fé somente, bem como uma ênfase
exagerada num livramento do juízo futuro obtido através da cautela e da
vigilância. Segundo o autor, tais atitudes impedem que os cristãos caiam
no erro e, dessa forma, o maligno os atire “como pedra de funda, para
longe da nossa vida [eterna]” (2:10).
94SHEDD, W. G. T. The doctrine of the endless punishment. Edimburg:
The Banner of Truth Trust, 1990. p. 01.

A obra fala claramente de um juízo futuro imparcial em que cada um


receberá segundo o que fez (4:12). Aqueles que viveram na impiedade ou,
na linguagem do autor, optaram por andar no “caminho da treva”, irão
para a “morte eterna nos tormentos” (20:1), recebendo, assim, justa
retribuição (21:1), quando “perecerão com o Maligno” (21:3).

O crente deve, pois, lembrar continuamente do dia desse julgamento e


trabalhar com as mãos para ser resgatado dos seus pecados (19:10). Deve
praticar o que o Senhor quer (21:6), esforçando-se em boas obras (19:1) e
passar por dolorosas tribulações e sofrimentos para se apossar do reino
celeste (7:11), livrando-se do castigo. Sua perseverança na fidelidade deve
ser completa. De nada lhe servirá o tempo vivido na piedade se nos
últimos dias abandonar a fé (4:9).

É notável que a Epístola de Barnabé aponta para Cristo como aquele cuja
obra na cruz teve por propósito purificar o homem dos seus pecados e lhe
dar vida (5:1; 7:2). É ele somente quem liberta o pecador das trevas e
prepara para si um povo santo (14:6). Contudo, o livramento do castigo
depende do zelo diligente do cristão por aquilo que pode salvá-lo (4:1). Se
ele não odiar o erro do mundo presente não poderá ser amado no mundo
futuro.

Finalmente, além da pureza, do sofrimento e da perseverança, a Epístola


de Barnabé destaca também o batismo como forma de remissão de
pecados (11:1). Para ser bem aventurado o homem deve, portanto, não só
lançar sua esperança na cruz e viver em obediência à “lei nova”, mas
também descer com sua carga de pecados às águas para delas subir pronto
para frutificar e, afinal, viver eternamente (11:11).
Assim, na Epístola de Barnabé percebe-se o delineamento ainda mais
nítido de uma soteriologia predominantemente ética que propunha a boa
conduta como requisito fundamental para que o cristão se livrasse das
chamas do castigo. Seu texto reflete o tom ameaçador que caracterizou a
literatura cristã daqueles dias e que tinha como alvo manter os crentes no
caminho do bem.

O PASTOR DE HERMAS

A existência de um destino infeliz do qual o crente se livra por meio da fé


acompanhada de inflexível zelo também é admitida em O Pastor de
Hermas. Essa obra foi escrita em grego por volta de 150, por Hermas,
irmão de Pio, bispo de Roma de 142 a 155.

Desfrutando de grande apreço entre teólogos antigos de renome, como


Irineu de Lião, Clemente de Alexandria, Tertuliano, Orígenes, Atanásio e
Jerônimo, O Pastor de Hermas chegou a ser considerado por alguns um
livro inspirado por Deus. Eusébio de Cesaréia, porém, o deixou fora de sua
lista de livros canônicos, o Cânon de Atanásio (367) também não o
recepcionou e, no século V, o papa Gelásio (492-496) o incluiu
definitivamente entre os apócrifos.

A obra tem esse título porque o anjo que aparece a Hermas e lhe explica
suas visões surge trajado como um pastor, com peles de cabra, bornal e
cajado na mão (25:1). O livro é dividido em três partes principais: visões,
mandamentos e parábolas. Seu tema básico é a necessidade de
arrependimento95 que, segundo o ensino do “Pastor” das visões, pode
ocorrer apenas uma vez para perdoar pecados cometidos depois do
batismo (31:6-7).
95 O termo grego usado na obra é
ά
significado literal é arrependimento ou conversão. Seu sentido é
predominantemente moral. A tradução para o português que acolhe a ά
apenas um reflexo da conotação disciplinar que os bispos de fala latina,

Seria de se esperar que o rigorismo presente em O Pastor de Hermas


tornasse a obra repleta de alusões às torturas da vida no além.
Surpreendentemente, porém, não é isso o que ocorre. Quando fala sobre o
destino dos ímpios, a obra geralmente se limita a dizer que eles “perderão
sua própria vida” (6:8), a vida lhes será tirada (17:9), não viverão (60:2), a
falta de arrependimento lhes trará morte (72:6), eles próprios se
condenarão à morte (77:3), morrerão para sempre (95:2), a morte será seu
destino (96:2) e eles não viverão em Deus (110:1).

Pouquíssimas vezes há alusão clara à natureza específica das penas


aplicadas ao pecador após a morte. É dito que quem escutar e observar os
ensinos do livro receberá do Senhor tudo o que ele prometeu, mas quem
não o fizer, receberá “o contrário” (25:7). Esse modo vago de se referir ao
castigo futuro se repete na Quarta Parábola, onde se diz a princípio que “o
mundo que está para vir será verão para os justos e inverno para os
pecadores” (53:2).

É, porém, nessa mesma Quarta Parábola que se encontra a menção mais


clara e direta ao que parece ser o inferno:

Entretanto, naquele mundo, os pagãos e os pecadores, as árvores secas que


viste, serão encontrados secos e mortos, e serão queimados, como madeira
morta, patenteando-se assim que durante a vida deles sua conduta foi má.
De fato, os pecadores serão queimados, porque pecaram e não fizeram
penitência [i.e., não se arrependeram]; os pagãos serão queimados porque
não

a princípio deram ao termo. Esse entendimento da suposta revelação de


Hermas fez com que, até o fim do século V, os cristãos arrependidos só
pudessem ser reconciliados uma vez na vida (Ver ROUILLARD, Philippe.
História da penitência: das origens aos nossos dias. São Paulo: Paulus,
1999. p. 25).
conheceram o seu Criador.96

Desse texto, porém, não se pode deduzir um sofrimento consciente. Aliás,


nem mesmo a perenidade do castigo pode ser inferida da citação acima. É
verdade que Hermas fala que a morte de quem blasfema implica perdição
eterna (62:4), mas não fica claro se a expressão se refere à perenidade do
castigo ou dos efeitos dele, ou seja, uma morte infinda, uma espécie de
aniquilação.
O Pastor de Hermas cita também as pessoas destinadas ao fogo na famosa
visão da torre. Nessa que é a Terceira Visão, uma mulher idosa,
identificada como a igreja, aparece a Hermas e lhe mostra uma torre
edificada com pedras sobre as águas (10:4). A torre, na verdade, estava
com sua construção em andamento e, dentre as pedras que eram trazidas,
umas eram aceitas e outras rejeitadas. Algumas pedras rejeitadas eram
lançadas longe da torre, caíam no fogo e queimavam (10:9).

Explicando a visão, a senhora idosa esclarece que a torre é ela mesma, a


igreja, e que as pedras são homens. Quanto às pedras que caíam no fogo,
são aqueles que se afastam para sempre do Deus vivo e jamais se
arrependem. Estes nunca poderão fazer parte da torre. Mais uma vez o
livro, mesmo quando usa a figura do fogo, se apresenta vago na questão da
natureza das penas aplicadas aos perdidos, sendo impossível conhecer o
exato pensamento do autor sobre o inferno.

Essa obscuridade, contudo, não existe no tocante ao modo como o homem


pode se ver livre de um destino infeliz. O Pastor de Hermas é enfático ao
mostrar que o meio de salvação é o arrependimento acompanhado
virtualmente de jejum, simplicidade e continência. Só por esse caminho as
pessoas são inscritas no livro da vida com os santos (3:2), têm seus
pecados perdoados (6:5) e alcançam a salvação (72:1,6; 91:2; 112:3),
sendo essa a principal mensagem do “Pastor”, também chamado de “anjo
do arrependimento” (77:1; 78:1).
96O Pastor de Hermas 53:4. In: Padres apostólicos, Coleção Patrística,
vol. 1, p. 221.

O arrependimento, segundo Hermas, só é ineficaz contra a blasfêmia


(62:3). Na verdade para os que blasfemam, arrepender-se é sequer possível
(96:3). Todos os demais pecados podem ser perdoados, mas o livro faz a
ressalva de que o arrependimento não produz perdão imediato. O penitente
deverá passar por provas, humilhações e muitas tribulações antes que o
Senhor lhe conceda a cura (66:4).

É curioso notar que no Pastor de Hermas o arrependimento é apresentado


também como último recurso para os homens que, nesta vida, não
puderam fazer parte da torre que simboliza a igreja. Por meio dele essas
pessoas poderão ser postas num “lugar muito menor” onde passarão por
terríveis provações, havendo aqui talvez, um embrião da doutrina do
purgatório (15:5-6).

Dentre as expressões de arrependimento, a principal é o batismo. De fato,


no livro o batismo é considerado tão crucial à salvação que, de acordo com
as visões de Hermas, mesmo os santos de outras épocas, mortos antes
dessa ordenança ser estabelecida, tiveram que ser batizados pelos
apóstolos. Segundo o livro, estes, depois da morte, desceram ao lugar onde
estavam as almas daqueles justos para ministrar-lhes o rito (93:5-6).

Considere-se ainda que, na visão da torre, o edifício é construído sobre as


águas. A interpretação disso é que a vida do cristão foi salva pela água
(11:5). Mais adiante, o autor ouve do anjo trajado como pastor que para
receber vida é preciso que o homem saia da água; que antes disso está
morto; que só quando recebe o “selo”, que consiste de descer à água, o
pecador retoma a vida. Sem esse selo não há como entrar no Reino de
Deus (93:2-4).

O livro também realça a cada página o valor da obediência aos


mandamentos e a prática das virtudes cristãs como condição para obter
vida eterna. Em contraste com isso, porém, é curioso notar que o “Pastor”
não menciona a obra de Cristo na cruz nenhuma vez. Aliás, quando fala
sobre o papel de Cristo na salvação, o Pastor de Hermas se limita a
afirmar que o Filho de Deus é a porta pela qual é possível entrar no reino
celeste (89:1-3) e que é preciso receber o seu nome santo para ser salvo
(89:4, 8). Porém, há a ressalva de que ser simples portador do nome do
Filho de Deus é algo vão, caso isso não seja acompanhado de temperança,
força, paciência, simplicidade, inocência, castidade e outras virtudes
(90:1-3; 92:1-2).

O Pastor de Hermas , como se vê, acolhe o ensino cristão acerca do


castigo de Deus reservado aos maus. Se detalhes mais específicos sobre
essa doutrina não constam do livro, a razão disso está no propósito claro
do autor de manter-se centrado no tema central da obra, ou seja, a
necessidade de arrependimento. Esse tema, contudo, sequer faria sentido
se o escritor não recepcionasse a crença de que há um castigo reservado
aos ímpios.
Assim, mesmo numa forma pouco desenvolvida, pode-se delinear nesse
escrito do século II o ensino de que existe um destino horrível para os
homens que desprezam o perdão de Deus. Na verdade, a expectativa clara
do autor de O pastor de Hermas era que essa verdade consolidasse a
fidelidade dos cristãos aos ensinos do evangelho e atraísse os descrentes
ao arrependimento.

A EPÍSTOLA A DIOGNETO

Se o Pastor de Hermas choca a mente protestante com seu notável


afastamento da soteriologia paulina, tão enfática da justificação pela fé
somente, o mesmo não ocorre com a Carta a Diogneto. Algumas vezes
contada entre os padres apologistas, outras considerada parte do grupo de
escritos denominado “padres apostólicos”, esse documento é considerado
uma das mais belas obras literárias produzidas pela igreja antiga. Sua
autoria é atribuída com certa hesitação a Quadrato, um dos primeiros
apologistas cristãos que, segundo a tradição, foi discípulo dos apóstolos.

A Carta a Diogneto tem sua composição fixada por volta do ano 120, em
Atenas. Foi escrita em grego e dirigida a um inquiridor gentio chamado
Diogneto, sobre quem nada se sabe, embora haja conjecturas pouco
fundamentadas que o identifiquem com o próprio imperador Adriano
(117-138).

Mesmo sendo uma obra bastante breve, uma vez que seu propósito é
apresentar um resumo da fé cristã a um pagão culto supostamente
interessado em conhecê-la, a bela carta não deixa de mencionar a perdição
eterna. De fato, a certa altura, quando descreve o conteúdo dos discursos
de alguns filósofos, acrescenta que para alguns Deus é o fogo. A seguir,
acrescenta que esses supostos sábios chamam de Deus aquilo para onde
irão (8:2). Mais adiante (10.7-8), a menção do autor aos tormentos da vida
futura é bem enfática:

Condenarás o engano e o erro do mundo, quando realmente conheceres a


vida do céu, quando desprezares esta vida que aqui parece morte e temeres
a morte verdadeira, reservada àqueles que estão condenados ao fogo
eterno, que atormentará até o fim aqueles que lhe forem entregues. Se
conheceres esse fogo, ficarás admirado, e chamarás de felizes aqueles que,
pela justiça, suportaram o fogo passageiro.97

Ensinando tão claramente a doutrina do castigo de Deus sobre os ímpios, a


Carta a Diogneto não negligencia a tarefa de apontar também o caminho
para o livramento desse amargo destino. O que surpreende, porém, nesse
aspecto é que, destoando dos demais pais apostólicos com sua ênfase
exagerada no suposto lugar do esforço humano na salvação, essa
magnífica epístola em nada lembra a soteriologia moral tão comum nos
escritos cristãos do período. Antes, atribui unicamente à obra de Cristo a
possibilidade do homem ser salvo do terrível castigo perene.
97Carta a Diogneto. In: Padres apologistas, Coleção Patrística, vol. 2, p.
28.

De fato, a pequena carta afirma que Deus enviou seu Filho ao mundo para
salvar e persuadir, sem violentar; para chamar e não para castigar, para
amar e não para julgar, ainda que um dia ele virá para castigar, para amar
e não para julgar, ainda que um dia ele virá 8).

A Carta a Diogneto dá singular destaque à misericórdia de Cristo na


salvação do homem, ensinando que foi movido por compaixão que ele
tomou sobre si os pecados dos outros. Também foi a misericórdia a causa
de Deus ter enviado seu Filho como resgate (9:2).

Refletindo sobre essa dádiva graciosa, o autor acrescenta em 9:3-6:

De fato, que outra coisa poderia cobrir nossos pecados, senão a sua
justiça? Por meio de quem poderíamos ter sido justificados nós, injustos e
ímpios, a não ser unicamente pelo Filho de Deus? Oh doce troca, oh obra
insondável, oh inesperados benefícios! A injustiça de muitos é reparada
por um só justo, e a justiça de um só torna justos muitos outros. Ele antes
nos convenceu da impotência da nossa natureza para ter a vida; agora
mostra-nos o salvador capaz de salvar até mesmo o impossível.98

Como se vê, a carta apresenta um raro exemplo de soteriologia


predominantemente paulina entre os pais apostólicos, com ênfase na
exclusividade e suficiência da obra de Cristo para a justificação do ímpio.
Na Carta a Diogneto é ensinado que o homem, de sua parte, deve tão
somente confiar na bondade do Salvador e considerá-lo seu sustentador e
mestre (9:6). Amando-o herdará o reino do céu. Conhecendo-o, será
preenchido por uma alegria que antes sequer imaginou que existisse e,
então, passará a imitar a bondade de quem o libertou (10:2-4). Nenhuma
menção é feita ao esforço humano ou à sujeição a uma “lei nova” como
forma de ser resgatado do fogo do tormento eterno. Decididamente, a
Carta a Diogneto se situa entre os pais apostólicos como uma das obras
que mais refletem o ensino neotestamentário acerca do livramento da ira
vindoura.
98 Ibid., p. 27.

Fica claro, assim, que no documento em análise o autor apresenta a


mensagem cristã em sua essência com o fim de propagá-la entre leitores
pagãos e é significativo que, ao fazê-lo, menciona o perigo do castigo
futuro, confirmando a tese enunciada na presente obra.

AVALIAÇÃO

A título de avaliação, pode-se dizer positivamente que a ênfase dos pais


apostólicos sobre a perseverança e a prática do bem como fatores que
podem livrar o homem do inferno foi motivada por genuína preocupação
pastoral. Em dias em que a fé transmitida pelos apóstolos era ameaçada
pela heresia, numa época em que a perseguição tinha a força de gerar
apóstatas e o baixo padrão moral da sociedade pagã se constituía num
constante convite ao abandono da verdade, era natural que os mestres
cristãos de então tentassem refrear a apostasia, mostrando que a fé em
Cristo, isto é, a genuína fé que salva do suplício eterno, é também uma fé
que persevera na verdade, na comunhão e na pureza.

De posse dessa percepção, Olson sai em defesa dos pais apostólicos,


explicando que suas mensagens tão preocupadas com a conduta em
detrimento da salvação como uma dádiva gratuita tinham como causa a
sua preocupação em refrear o antinomismo que se propagava entre os
cristãos99, certamente como resultado do contexto em que viviam.
É, de fato, difícil discordar desse julgamento. Porém, não se pode fechar
os olhos para o fato de que a ênfase que os pais apostólicos deram aos
fatores tanto morais quanto litúrgicos que acompanham a fé foi além do
necessário e acabou redundando no obscurecimento da doutrina paulina da
salvação pela fé somente. O efeito disso foi claro: o caminho para o
livramento da ira vindoura ficou reduzido à observância de uma nova lei
(cf. Epístola de Barnabé), em detrimento da pura mensagem do evangelho.

E. H. Klotsche mostra que o desvio da soteriologia puramente evangélica


foi agravado ainda pelo fato de a igreja dos dois primeiros séculos ter a
posse completa de uma dúplice herança apostólica: o testemunho oral
acerca de Cristo, sobre o qual a igreja foi estabelecida a princípio; e os
escritos apostólicos que formariam o conjunto de livros infalíveis sobre os
quais a igreja se desenvolveria nos séculos seguintes.

Klotsche explica que, tendo contato direto com essa herança, os mestres
cristãos da época pouco se preocuparam em buscar o significado puro e
profundo da verdade nela expressa. Ele conclui apontando o resultado
disso:

Mesmo estando face a face com o testemunho oral e escrito dos apóstolos,
os pais apostólicos não captaram plenamente o seu significado e
frequentemente obscureceram muitos aspectos distintivos do evangelho;
por exemplo, a salvação somente pela graça. A fé e o perdão dos pecados
foram até certo ponto ofuscados, enquanto o evangelho passou a ser
apresentado como uma nova lei e as boas obras vistas como uma condição
para a salvação.100
99 OLSON, Roger. História da teologia cristã: 2.000 anos de tradição e
reformas. São Paulo: Vida, 1999. p. 51.
100 KLOTSCHE, The history of Christian doctrine, p. 22.

Em que pese o lamentável descuido exegético que revelaram


especialmente no trato com textos bíblicos de conteúdo soteriológico, os
pais apostólicos devem ser reconhecidos por sua coragem na luta contra as
perversões da sã doutrina em vários aspectos, entre eles os falsos ensinos
da época sobre o destino do homem depois da morte.
De fato, fazendo frente a tendências estranhas à fé cristã, eles afirmaram
que a alma sobrevive à morte e que, sem os benefícios advindos da obra de
Cristo, ela está condenada à eterna danação. Afirmaram ainda (se bem que
com menor frequência) a ressurreição da carne, mostrando com isso que
também o corpo dos ímpios estará sujeito ao suplício eterno. Realmente,
conforme frisa William Crockett, é clara a evidência presente na literatura
da época de que os pais apostólicos pregavam a punição eterna e
consciente dos maus.101

Assim, se foram falhos na transmissão do evangelho puro com sua


mensagem de salvação gratuita, os pais apostólicos ao menos apontaram o
perigo que espreita aquele que está separado de Cristo, fazendo os homens
se preocuparem com seu destino eterno e, dessa forma, protegendo a igreja
do materialismo filosófico, da apostasia e do caos moral.

No capítulo a seguir será demonstrado que os mesmos erros e acertos


praticados pelos pais apostólicos na exposição da doutrina da salvação
podem ser verificados nos pais apologistas, o que revela que no século II
houve o domínio de uma tendência teológica preocupada com a realidade
das penas futuras, mas pouco cautelosa na busca do elevado sentido da
salvação como dádiva gratuita de Deus.
101
CROCKETT, Four views on hell, p. 66. 4
OS APOLOGISTAS

O século II viu o surgimento de uma classe de teólogos que, em face dos


boatos populares levantados contra os cristãos, e diante de críticas
intelectuais dirigidas à nova fé, viram-se desafiados a defender a igreja e a
sã doutrina, pelo que, dada a natureza dessa tarefa, tornaram-se conhecidos
como apologistas.

Já foi exposto que, no início do século II, vários rumores circulavam entre
os pagãos referentes às crenças e práticas cristãs. Em virtude da má
compreensão do que eram as festas de agape (ocasiões em que os crentes
participavam de uma refeição fraternal) e também do real sentido da
eucaristia, os cristãos eram acusados pelo povo de se envolverem em
orgias sexuais e de praticarem o canibalismo. Justo González expõe esse
quadro mais detalhadamente:

... a ágape ou festa do amor parece ter sido a base para a lenda segundo a
qual os encontros cristãos eram orgias, nas quais, depois de comerem e
beberem muito, as luzes eram apagadas e ocorriam as mais desordenadas
uniões sexuais. De modo similar, a afirmação de que Cristo estava
presente na refeição eucarística, provavelmente misturada a algumas das
histórias da natividade, foi a origem dos rumores de que os cristãos
cobriam uma criança com farinha de trigo e então, alegando que era um
pão, eles ordenavam que um neófito a cortasse. Quando o sangue da
criança começava a jorrar, os cristãos a comiam. O neófito, participante
involuntário naquele crime, era assim envolvido nele e forçado a ficar em
silêncio.102

O perigo principal decorrente desses boatos era o impulso que davam à


perseguição. Por meio deles era inflamado o ódio das pessoas contra a
igreja e esse ódio se revelava em denúncias. Conforme visto
anteriormente, no século II, a política de perseguição adotada pelo
imperador Trajano contra a igreja, política que vigorou até o século III,
impedia que o estado saísse em busca de cristãos, mas estabelecia que, se
houvesse denúncia, os magistrados deveriam investigar e punir. Assim,
bastava que alguém simplesmente fosse acusado de ser cristão para que as
autoridades, constatando a veracidade da acusação, sentenciassem o crente
à morte.103

O ódio do povo também se expressava em manifestações furiosas por


parte das multidões nos processos públicos em que os cristãos eram
julgados. Essas manifestações influenciavam a sentença dos magistrados
que, invariavelmente, condenavam o acusado à morte.104

Era, portanto, necessário calar os rumores populares que tantos males


traziam à igreja e os apologistas tomaram sobre si essa tarefa, geralmente
destinando seus escritos às autoridades romanas, mas também nutrindo a
expectativa de que fossem lidos pelo maior número possível de pessoas.
102 GONZÁLEZ, Uma história do pensamento cristão, vol. 1, p. 96.
103 O bispo Inácio de Antioquia, contado entre os já citados pais

apostólicos, é um exemplo de destaque de alguém que foi vítima dessa


política de perseguição.
104 O julgamento do bispo Policarpo, descrito na carta da igreja de

Esmirna endereçada à igreja de Filomélio, ilustra a influência da multidão


sobre o desfecho do processo. Ver Martírio de São Policarpo, bispo de
Esmirna. In: Padres apostólicos, Coleção Patrística, vol. 1, p. 147-157.

Além dos boatos grosseiros criados pela imaginação do vulgo, o


cristianismo do século II também teve que lidar com objeções sérias
dirigidas contra aspectos essenciais da fé levantadas por mentes pensantes.
Assim, os apologistas se viram ainda diante de ataques intelectuais bem
elaborados, orientados contra o cristianismo por oponentes capazes que
punham em cheque especialmente os ensinos cristãos sobre a natureza de
Deus e a realidade ou a possibilidade da ressurreição.

O debate sobre a natureza de Deus, em particular, esbarrava na questão da


divindade de César que os cristãos não estavam dispostos a reconhecer.
Assim, em seus desdobramentos, a teontologia cristã terminava por
colocar a igreja sob o estigma da subversão, o que também incitava a
perseguição.

Desafiados pela difícil realidade que os circundava, os apologistas


empreenderam uma árdua tarefa de defesa do cristianismo. O resultado
dos seus esforços foi uma exposição sofisticada do cristianismo dirigida às
classes mais distintas da época. Assim, apesar de não terem se debruçado
sobre cada elemento que compõe o corpo doutrinário da igreja, pode-se
dizer que com eles teve origem a teologia cristã propriamente dita, ou
seja, a teologia como um sistema bem elaborado, resultante da reflexão
sobre Deus e sua revelação (especialmente o Logos).

Justino Mártir, Aristides de Atenas, Taciano, o Sírio, Atenágoras de Atenas


e Teófilo de Antioquia estão entre os apologistas de maior destaque. Em
sua defesa da fé cristã e no afã de chamar seus oponentes ao
arrependimento, esses teólogos mencionaram eventualmente suas crenças
acerca do destino dos incrédulos, destacando a realidade das penas futuras
e apresentando-a como parte essencial da mensagem cristã. JUSTINO
MÁRTIR

Justino Mártir († c. 165) é, sem sombra de dúvidas, o mais eminente


apologista do século II. Ele nasceu em Flávia Neápolis (antiga cidade
bíblica de Siquém, atual Naplusa), por volta do ano 100, no seio de uma
família de colonos abastados e, como filósofo, peregrinou por inúmeras
escolas de pensamento antes de se converter ao cristianismo, considerado
por ele a verdadeira filosofia.

Na sua obra Diálogo com Trifão (2:3-6), o próprio Justino conta como, a
princípio, frequentou as aulas de um estoico, seguindo depois,
sucessivamente, um peripatético e um pitagórico. Este último logo
também abandonou, trocando-o por um platônico. Seu desejo, conforme
confessa, era ver Deus. Foi a essa altura, isto é, por volta do ano 130, que
Justino se converteu ao cristianismo. Sua experiência é descrita por
Hamman:

Retirando-se à solidão, Justino passeava pela areia, à beira-mar, para


meditar sobre a visão de Deus, sem conseguir apaziguar sua inquietação,
quando encontrou um ancião misterioso que dissipou suas ilusões. Este
mostrou-lhe que a alma humana não podia atingir a Deus com seus
próprios recursos; somente o cristianismo era a filosofia verdadeira, que
apresentava conclusão para todas as verdades parciais... 105

Justino nunca deixou o manto dos filósofos e também jamais abandonou o


pensamento de Platão, especialmente o conceito do Logos como a ponte
entre Deus e o mundo. Ele fundou duas escolas cristãs: uma em Éfeso e,
em seguida, outra em Roma.

Nessa última cidade, Justino se indispôs contra o filósofo cínico


Crescêncio, a quem chamou de “amigo da desordem e da ostentação”
(Segunda Apologia 8:1) e o atacou asperamente, dizendo que não merecia
o nome de filósofo um homem que, sem saber nada sobre os cristãos, os
caluniava como se fossem ateus e ímpios (Segunda Apologia 8:2). Justino
informa que travou um debate rígido com Crescêncio, ocasião em que lhe
propôs algumas perguntas relativas aos seus ataques contra os cristãos e o
convenceu de que não sabia absolutamente nada acerca das coisas que
dizia (Segunda Apologia 8:4).
105 HAMMAN, A. Os padres da igreja. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 29.

A amarga inimizade entre Justino e Crescêncio levou este último a


denunciá-lo. Justino previra essa armadilha: “Eu mesmo espero ser vítima
das ciladas de algum desses demônios aludidos e ser cravado no cepo, ou
pelo menos das ciladas de Crescente”.106 Tendo-se confessado cristão
diante das autoridades, foi condenado a ser flagelado e depois sofrer a
pena de morte. Seis dos seus discípulos o acompanharam no martírio.
Todos foram decapitados.

Dos inúmeros escritos desse apologista somente três não se perderam:


suas duas apologias e o Diálogo com Trifão. A Primeira Apologia foi
escrita por volta de 155 e dirigida ao imperador Antonino Pio (138-161) e
a seu filho adotivo, Lúcio Vero. O propósito da obra é, obviamente, a
defesa dos cristãos contra as falsas acusações que lhes eram dirigidas.
Nela Justino pede que as autoridades investiguem antes de punir, posto
que os crentes, quando denunciados, eram condenados sem terem
cometido crime algum, com base apenas na confissão de que eram cristãos
(2-4, 24). O objetivo da obra também abrange a exposição da verdade,
incluindo a demonstração de que as doutrinas cristãs têm diversos pontos
em comum com os ensinamentos dos poetas e filósofos pagãos (20-23).

Na Primeira Apologia Justino alude inúmeras vezes à doutrina cristã das


penas futuras. Ele o faz especialmente com o fim de desmantelar as
acusações de má conduta de que os crentes eram vítimas. Justino
argumenta que os homens que crêem que terão de dar contas de suas obras,
estando convictos de que a conduta iníqua receberá justa e eterna punição,
jamais praticariam os crimes de que os cristãos eram acusados (12:1-3).
Como praticariam orgias e assassinatos aqueles que crêem num Deus que
tudo vê e que, no fim de tudo, dará a cada um segundo as suas obras?
106JUSTINO MÁRTIR. Segunda Apologia 8.1. In: Justino de Roma,
Coleção Patrística, vol. 3, p. 98.
O ensino bíblico acerca das penas futuras é também exposto por Justino
para assegurar aos governantes romanos que os cristãos,
independentemente do tratamento que recebiam, continuariam a ser bons
súditos do império. Qualquer que fosse a atitude das autoridades para com
os crentes, eles continuariam pagando impostos, obedecendo às justas leis
e orando a Deus em prol do estado. Esse comportamento, conforme alega,
não seria alterado caso os governantes não acolhessem a petição que
Justino lhes dirigia, pois tal conduta era motivada pela persuasão de que
cada um sofrerá a pena conforme o mérito individual e essa pena será o
fogo eterno (17:4).

O castigo além é ainda mencionado por Justino para mostrar que a


doutrina cristã tem pontos em comum com a cultura greco-romana. Assim
como os sacerdotes pagãos e os filósofos estoicos, em harmonia com as
Escrituras, ensinaram a conflagração universal; assim como Platão,
ecoando o ensino bíblico, diz que Deus fez e ordenou todas as coisas; da
mesma forma, pensadores e poetas não cristãos, mostram afinidade com o
cristianismo ao ensinarem que há vida após a morte, sendo nessa vida
futura que a alma dos iníquos será castigada (20:1-5).

A menção da perene punição na Primeira Apologia de Justino serve


também para descrever o destino de Satanás e seus anjos. O apologista
acredita que os deuses pagãos são, na verdade, demônios perversos que
apareceram outrora aos homens, apresentando-se com nomes que haviam
dado a si mesmos (5:1). É por obra desses espíritos malignos que os
homens praticam torpezas (25:3) e apregoam mentiras (26:4; 54:1-3).
Justino adverte que esses demônios, juntamente com os homens que os
seguem, serão enviados ao fogo para serem castigados pela eternidade sem
fim (8:4; 28:1; 52:3).

Finalmente, Justino de Roma fala do castigo na Primeira Apologia para


incutir temor nos seus leitores. Em tom ameaçador, o apologista adverte as
autoridades romanas nos seguintes termos:

E se também vós ledes como inimigos estas nossas palavras, além de


matar-nos, como já dissemos antes, nada podeis fazer. A nós, isso nenhum
dano causará; a vós, porém, e a todos os que injustamente nos odeiam e
castigo de fogo eterno.107 não se convertem, trazer-vos-á

E, concluindo a Primeira advertência escrevendo:


Apologia, reitera a mesma

Não decreteis, porém, pena de morte, como contra inimigos, contra


aqueles que nenhum crime cometem. De fato vos avisamos de antemão
que, se vos obstinais em vossa iniquidade, não escapareis do futuro
julgamento de Deus. De nossa parte, exclamaremos: “Aconteça o que Deus
quiser”.108

Quanto à Segunda Apologia de Justino, é possível que seja apenas um


apêndice ou ampliação da primeira, cujo propósito final, segundo o
próprio autor, é levar todos os seus leitores à conversão (15:1-2).

Com composição datada entre 155 e 160, a obra reflete as mesmas


preocupações com as sentenças injustas prolatadas contra os cristãos pelos
magistrados romanos e repete temas teológicos como a obra de Cristo, as
atividades dos demônios entre os pagãos e o destino dos perdidos. Este
último aspecto do ensino cristão aparece logo no início:
107JUSTINO MÁRTIR. Primeira Apologia 45:6. In: Ibid., p. 61. 108 Ibid.,
68.1-2, p. 84.

O fato é que em todas as partes há gente disposta a nos levar à morte.


Exceto os que estão persuadidos de que os iníquos e intemperantes serão
castigados com o fogo eterno e que os virtuosos e que viveram de modo
semelhante a Cristo, viverão impassíveis com Deus, isto é, exceto os que
são cristãos, todo aquele que é repreendido pelo pai, vizinho, filho, amigo,
marido ou mulher por causa de uma falta, se volta contra nós, por sua
obstinação no mal, por seu amor ao prazer e por sua impotência para
seguir o que é bom...109

A partir desse ponto, a menção dos tormentos futuros é frequente na


Segunda Apologia. O tema aparece incidentalmente na já citada narrativa
que Justino faz sobre uma mulher que se converteu ao cristianismo e
passou a anunciar a fé ao marido, homem ímpio e devasso. Segundo o
apologista, na mensagem que pregava a mulher falava do castigo do fogo
eterno, preparado para os que não vivem em castidade e segundo os
ditames da reta razão (1:2).

A Segunda Apologia, assim como a primeira, coloca o fogo inextinguível


também como o destino dos demônios, pois são eles os responsáveis pela
oposição que sempre se levanta contra aqueles os responsáveis pela
oposição que sempre se levanta contra aqueles 4).

Finalmente, na obra em análise fica claro que, para Justino, a existência de


um lugar de suplício reservado para anjos e homens maus é fundamental
para a manutenção de uma teontologia saudável. De fato, Justino entende
que quem nega a existência do fogo eterno, deve também dizer que Deus
não existe ou, se existe, não se importa com o modo como os homens
vivem (9:1). Nesse aspecto torna-se ainda mais nítido o fato de que o
grande apologista via o ensino sobre as penas sem fim como parte
essencial da mensagem cristã.
109 JUSTINO MÁRTIR. Segunda Apologia 1:2. In: Ibid., p. 91.

Dentre as obras de Justino que sobreviveram até os dias atuais, o Diálogo


com Trifão é a mais extensa. Corresponde a duas vezes o tamanho das duas
apologias juntas. Basicamente, trata-se da exposição dos fundamentos do
cristianismo constantes do Antigo Testamento, feita a um judeu chamado
Trifão e seus amigos. No Diálogo, Justino faz uma leitura cristocêntrica da
lei, dos salmos e dos profetas, tentando provar que o entendimento correto
das escrituras judaicas, conduz o homem a reconhecer Jesus de Nazaré
como o Cristo prometido, levando-o finalmente a acolher o cristianismo
como a mais pura expressão da religião de Deus.

O tema central do Diálogo é, assim, a velha controvérsia entre o judaísmo


e o cristianismo, ao longo da qual o filósofo cristão mostra as falácias da
hermenêutica judaica, a derrogação da antiga lei para dar lugar à Nova
Aliança, e a consequente inutilidade do rito da circuncisão e da guarda do
sábado (19:1-6), apontando como alternativa única e superior para tudo
isso a interpretação que vê Cristo como o verdadeiro agente de Deus na
história de Israel, o qual agora, como autor de um Novo Pacto (11:2),
estende a sua salvação a todas as nações e é poderoso para circuncidar o
coração dos homens, obras claramente vistas na igreja cristã (24.1-2;
28:4).

O Diálogo com Trifão tem sua composição fixada por volta de 155 e não se
pode considerar o debate ali descrito como tendo, de fato, ocorrido.
Mesmo uma leitura superficial da obra, com suas longas e repetidas
citações literais do AT, com a apagada participação de Trifão e com as
convenientes e raras interrupções que faz aos extensos e monótonos
discursos de Justino, fazem notar que o encontro ali descrito está longe de
ser uma realidade histórica, constituindo-se o Diálogo, sem dúvida, numa
simples construção literária.

Em que pese a extensão da obra, são poucas as alusões ao inferno nela


presentes quando comparadas com as que se encontram nas duas
apologias. Sua primeira menção ocorre quando Justino fala das
concepções sobre a alma expostas pelo ancião cristão que lhe indicou o
caminho da fé.

Conforme narra Justino, o referido ancião rejeitava a doutrina platônica


que definia a alma como incriada e imortal. Segundo ele, sendo criada, a
alma é também passível de morte. Nem todas as almas, contudo, morrem,
pois isso seria um benefício para os maus, ensinava o ancião. Em sua
concepção, o que ocorre é que as almas dos justos permanecem num lugar
bom e as almas dos injustos em outro lugar, aguardando o julgamento.
Enfim, aquelas que são dignas de Deus, jamais morrerão, mas as más
serão castigadas enquanto Deus quiser que elas vivam. De fato, um dia
Deus determinará o fim do castigo e, então, as almas dos perversos
deixarão de existir (5:3; 6:1-2).

Não há harmonia entre esse ensino do ancião anônimo e o entendimento


expresso do próprio Justino. Como se verá a seguir, o filósofo cristão dizia
que as penas reservadas para os ímpios são eternas. Porém, não há dúvida
que as palavras atribuídas ao ancião revelam que na igreja do século II
havia certo espaço ocupado pela visão aniquilacionista, ainda que, como
prova a análise dos escritos da época, de modo algum fosse esse o
entendimento dominante naqueles dias.
No Diálogo com Trifão, Justino também fala do fogo do castigo futuro
com o propósito de persuadir seus interlocutores a crer em Cristo, dando
mostras que essa doutrina era proclamada também com o objetivo de
propagar a fé, gerando novos adeptos. Ele diz, num apelo dócil, mas
ameaçador:

Portanto, rogamos por vós e por todos os que nos atacam para que,
convertendo-vos juntamente conosco, não blasfemeis Jesus Cristo que, por
suas obras e milagres que ainda hoje se realizam em seu nome, pela
excelência de sua doutrina e das profecias que a respeito dele foram feitas,
não merece nenhuma reprovação ou acusação. Pelo contrário, crendo nele,
possais salvar-vos em sua segunda vinda gloriosa e não sejais por ele
condenados ao fogo.110

Além do claro apelo à conversão, pode-se detectar na citação acima a forte


conexão entre a segunda vinda de Cristo e a punição dos maus. Esse ensino
é enfático em Justino. Mais adiante na mesma obra, ele explica que depois
da parusia, a morte não existirá mais, sendo também nessa ocasião que
alguns serão mandados ao fogo para serem castigados sem cessar (45:4;
76:5).

Outro propósito de Justino Mártir ao falar sobre inferno no Diálogo com


Trifão é apontar o destino dos que ensinam a mentira, mais
especificamente as práticas judaicas. O filósofo cristão, em seu debate
com o judeu relutante afirma que os que crêem em Cristo e observam as
determinações da lei mosaica, tais como a circuncisão e a guarda do
sábado, poderão salvar-se, desde que não ensinem que os demais homens
devem se submeter às mesmas práticas para obterem o favor de Deus
(47:1-3).

No fim do Diálogo, Justino toma emprestados os termos dos evangelhos e


diz que os transgressores das ordens de Deus serão devorados por um
verme e por um fogo constante. Eles receberão imortalidade em meio a
esse sofrimento e se tornarão um espetáculo para todos (130:2; 140:3).

A análise conjunta da obra de Justino Mártir mostra que para ele a


obtenção da vida eterna depende basicamente das obras do ser humano (1
Apologia 65:1; 2 Apologia 11:6; Diálogo 45:4). De fato, esse apologista
destaca continuamente o valor salvífico do bom proceder, sendo que a
plena descrição dessa conduta encontra-se nos ensinos de Cristo (1
Apologia 15-17), o autor de uma nova e perfeita lei que deve ser guardada
por aqueles que anelam entrar na herança de Deus (Diálogo 11:2; 12:3).
110 JUSTINO MÁRTIR. Diálogo com Trifão 35:8. In: Ibid., p. 162.

Justino é enfático ao dizer que o destino eterno de cada um depende do


mérito de suas ações (1 Apologia 12:1). Ele chega a afirmar que os
mártires dos seus dias, quando interrogados se eram ou não cristãos,
tinham sempre diante de si a possibilidade de negar a fé e, dessa forma,
serem libertos das cadeias impostas pelas autoridades. Contudo, negar a fé
e viver na mentira, os privaria dos bens celestes que, segundo ele, só
podiam ser obtidos por aqueles que, por meio de suas obras, demonstraram
ter seguido a Deus e desejaram a comunhão com ele (1 Apologia 8:2).

O apologista repisa o ensino de que só poderão participar da feliz


convivência com Deus e do seu reino os homens que por seus atos
provarem ser dignos disso, vivendo santa e piedosamente perto de Deus (1
Apologia 10:2; 21:6; 43:2). Os demais, por não trabalharem pela própria
salvação e não se converterem, são presas fáceis de demônios que os
enganam e confundem (1 Apologia 14:1), fazendo com que, desse modo,
caminhem para o castigo (1 Apologia 12:1; 21:6).

O nome dado ao lugar do castigo é “inferno” e para ser lançado ali basta
viver iniquamente e não acreditar que essas coisas, ensinadas por Deus
através de Cristo, acontecerão (1 Apologia 19:8). Justino diz que essa
doutrina procede dos profetas (1 Apologia 43:2) e do próprio Cristo e não
deve causar espanto, uma vez que o próprio Platão diz algo semelhante:

Platão também disse que Minos e Radamante castigarão os iníquos que se


apresentam diante deles. Nós afirmamos que isso acontecerá, mas através
de Cristo, e que o castigo que receberão em seus corpos unidos às suas
almas será eterno, e não só por um período de mil anos, como ele disse.111

A citação supra serve também ao objetivo de demonstrar que Justino


acolhia a crença na perenidade das penas (o que se depreende também de
outras citações acima). Estas serão aplicadas ao homem integral (corpo e
alma), logo após a ressurreição que seguirá a segunda vinda do Senhor (1
Apologia 52:3-9; Diálogo 39:6; 117:3; 120:5).
111 Ibid., 8:4, p. 24.

Não é, contudo, somente depois que os ímpios se levantarem de sua


sepultura que o castigo divino lhes sobrevirá. Para o notável apologista, o
juízo de Deus advém aos maus logo depois da morte, pois a alma conserva
a consciência mesmo quando não estiver mais unida ao corpo (1 Apologia
18:3) e, desde então, é castigada (1 Apologia 20:4).112 Ao falar sobre isso,
Justino mais uma vez ensina que tamanha desgraça só pode ser evitada se
o homem escolher o que é grato a Deus. Se agir assim, receberá finalmente
a incorruptibilidade e a impassibilidade, como prêmios da boa opção que
fez (1 Apologia 10:2-3).

O que acaba de ser dito conduz à observação de que, na soteriologia


marcantemente moral de Justino, o livre-arbítrio, como seria de se esperar,
é conceito absolutamente necessário a fim de que a doutrina das penas e
recompensas futuras faça sentido (2 Apologia 6:5; Diálogo 102:4). De
fato, esse apologista entende que se o gênero humano não tem o poder de
fugir, por livre determinação, do que é abominável e, espontaneamente,
escolher a virtude, então não pode ser responsabilizado por qualquer coisa
que faça, recebendo afinal o que lhe é devido (1 Apologia 43:3).

Fica claro que Justino, como os teólogos do século II em geral, não


conhece a doutrina do pecado original, nem o conceito da transmissão da
culpa de Adão, concebendo a culpa do pecado somente em termos
subjetivos. Para ele, cada ser humano é o responsável livre e direto por sua
condição de pecador (Diálogo 124:4). De fato, segundo Justino, é por sua
própria culpa que cada indivíduo comparecerá diante de Deus (Diálogo
140:4) e, assim, cada um perecerá por seu próprio pecado ou se salvará por
sua própria justiça (Diálogo 140:3), estando no poder do homem optar
pela obediência e, então, livrar-se do castigo.
112 Curiosamente, Justino entende que mesmo a alma dos justos não está
livre de perigos depois da morte. Porém, tais perigos não procedem do
castigo de Deus e sim do ataque de potestades malignas. Ele explica que
foi por ter caído sob o poder de tais entidades que a alma de Samuel foi
forçada a atender a convocação da pitonisa no episódio descrito em
1Samuel 28. Foi também para nos ensinar a fugir desse perigo que Cristo
confiou seu espírito às mãos do Pai quando morreu (Diálogo com Trifão
105:3-6).

Justino explica que Deus não criou o homem semelhante às outras


criaturas que nada podem fazer por livre determinação. Se assim fosse, o
ser humano não seria digno de recompensa caso fosse bom, pois não teria
escolhido o bem por si mesmo. Também não seria punido justamente se
fosse mau, pois não o seria de livre vontade. Por isso, Deus fez o homem
capaz de escolher e, sobre essas bases, quem escolhe o bem tem digna
recompensa; já quem escolhe o mal, recebe justo castigo (1 Apologia 43:1-
8; 44:5; 2 Apologia 6:6-9; Diálogo 88:5).113

Assim, a livre escolha do homem e o consequente procedimento moral que


ele adota estão na raiz da soteriologia de Justino Mártir. Essa livre escolha
implica arrependimento (Diálogo 26:1; 141:2) e Deus, por sua presciência,
conhece os que assim se salvarão. Esse é o motivo pelo qual não pune
imediatamente os maus (1 Apologia 28:2; 44:11; 45:1; Diálogo 39:2;
138:3). O batismo completa o quadro soteriológico de Justino, pois é o
banho que traz a remissão dos pecados e a regeneração (1 Apologia 66.1),
além de ser por esse ato que o pecador recebe e circuncisão espiritual,
livrando-se da impiedade (Diálogo 43:2; 92:4).
113 Há nos escritos de Justino uma única sugestão de que a salvação
depende, em última análise, da graça seletiva de Deus. Encontra-se no
Diálogo com Trifão 32:2. Ali, Justino afirma que expõe as Escrituras
proféticas “esperando que alguém de vós possa encontrar-se no número
dos que foram reservados, pela graça do Senhor dos exércitos, para a
eterna salvação”. No quadro geral, porém, o filósofo repudia a visão de
que a perdição decorre da predeterminação divina. Segundo ele, Deus
somente anteviu quem não se arrependeria e, assim, seria castigado. Ainda
que pareça contraditório, Justino afirma que essa presciência não impede
que todos que queiram se voltem para Deus e, então, alcancem
misericórdia (Diálogo 141:2).
Mesmo acolhendo a noção de que o homem é salvo por optar pelo
caminho da virtude, Justino realça aspectos cruciais do evangelho em seus
escritos. Na verdade, o papel de Cristo no livramento da eterna calamidade
transparece de forma notável tanto nas apologias como no Diálogo.

Ele fala de Cristo como a razão em pessoa, que tomou forma e se fez
homem (1 Apologia 5:4). O Filho de Deus nasceu de uma virgem e
recebeu o nome de Jesus, que significa “salvador” (1 Apologia 33:7;
Diálogo 23:4). De fato, ele participou da carne e do sangue para a salvação
dos que crêem e para a destruição dos demônios (1 Apologia 66.2; 2
Apologia 5:4; Diálogo 13:1). Vindo ao mundo, Cristo ensinou as verdades
proclamadas pelos cristãos, com o fim de que essas verdades
transformassem e conduzissem o gênero humano (1 Apologia 23:2).

Cristo foi crucificado sob Pôncio Pilatos ( 1 Apologia 13:3; Diálogo 30:3).
Na verdade, os profetas do Antigo Testamento previram que ele sofreria
para lavar, com seu sangue, os que creriam nele (1 Apologia 32:7; Diálogo
14:1; 43:3; 44.4). Assim, foi pela salvação dos que nele crêem que se
dispôs a ser desprezado e sofrer (1 Apologia 63:16; 2 Apologia 13.4;
Diálogo 17:1). Mas depois de ter padecido, Cristo ressuscitou e subiu ao
Pai (1 Apologia 21:1; 50:12; Diálogo 53:5; 64:7; 85:1), reinando hoje não
somente no céu, mas também sobre as nações da terra, através da sua
doutrina pregada pelos apóstolos em todo o mundo (1 Apologia 42:4).

A força do reino de Cristo está em sua cruz, símbolo que se vê por toda
parte, seja no formato das velas dos navios, nos arados que sulcam a terra
e até na figura ereta do corpo humano, quando fica de braços abertos (1
Apologia 55.1-7; Diálogo 90:4-5). Aliás, foi à cruz de Cristo que Isaías se
referiu quando disse que “o governo está sobre os seus ombros” (Is 9.5),
uma vez que é pela cruz, posta sobre os ombros do Salvador, que ele reina
sobre tudo o que há (1 Apologia 35:2).114

Justino diz que é por amor a Cristo que alguém passa a desprezar os falsos
deuses (1 Apologia 25:1); é somente depois de crer nele que o homem se
afasta do mal e se torna religioso e justo (Diálogo 52:4); e é também
somente por meio do Filho que o pecador é capaz de seguir o Deus único
(1 Apologia 14.1; Diálogo 30:3; 34:8). A verdadeira circuncisão, entendida
como o livramento do erro e da maldade (Diálogo 41:4), é dada a quem o
conhece e guarda a sua lei (Diálogo 28:4). Crendo nele, o homem é ungido
e lavado com seu sangue (Diálogo 40:1; 54:1). Reconhecendo-o e sendo
iniciado em seus mistérios, o ser humano pode alcançar a felicidade
(Diálogo 8:2).

Um aspecto que se destaca na visão desse apologista acerca do


relacionamento entre Cristo e os homens é sua doutrina sobre a “semente
do Verbo”. Justino ensina que todo homem tem algo do Logos que é Cristo
(1 Apologia 46:2). Trata-se do Logos spermatikós, a semente do Verbo,
presente em todos, a qual possibilita um vislumbre da verdade por parte de
qualquer ser humano (1 Apologia 44:10; 2 Apologia 7:1).

Isso explicava porque os estoicos tinham uma ética moderada e filósofos


como Sócrates e Heráclito anunciaram o bem e fugiram dos vícios, sendo,
na realidade, uma espécie de cristãos que viveram antes de Cristo (1
Apologia 46:3; 2 Apologia 7.1-2; 10:8). Tudo o que de bom foi ensinado
por eles decorreu de sua participação parcial no Verbo seminal e, portanto,
pertence aos cristãos (2 Apologia 13:4). Tais filósofos, porém, só puderam
ver a realidade obscuramente (2 Apologia 13:5). A plenitude do Logos
somente os cristãos do presente possuem, pois são eles que amam e
adoram o Cristo (2 Apologia 13:4) e vivem de acordo com o conhecimento
e a contemplação total dele (2 Apologia 7:4; 10:1).
114 Ainda que creia no governo presente de Cristo sobre tudo, Justino
abraça a crença milenarista, segundo a qual o Senhor um dia voltará para
estabelecer um reino terreno de mil anos em Jerusalém (Diálogo 34:2;
80:5; 81:4).

O aspecto positivo da doutrina do Logos spermatikos é predominante nos


escritos de Justino. Cecil John Cadoux, porém, chama a atenção para o
fato de que esse ensino tem também um lado negativo, uma vez que torna
inatacável o veredicto de Deus que considera o homem culpado.115 Se o
Logos atua e sempre atuou entre os pagãos, apontando-lhes não somente
verdades especulativas, mas também caminhos de excelência moral,
ninguém que não tenha respondido positivamente aos seus estímulos pode
se insurgir contra a sentença divina que condena o ímpio ao fogo do
inferno.

Conforme visto, os ensinos de Justino de Roma sobre a vida futura são


abundantes e claros em toda sua obra literária. Sendo um teólogo
renomado e um dos maiores expoentes da doutrina cristã no século II,
Justino provê uma evidência notável de que os pais da igreja da época
consideraram a doutrina da perdição futura parte essencial da mensagem
cristã, fazendo uso dela como instrumento eficaz na proteção e divulgação
do cristianismo ameaçado pela perseguição, pelos atrativos do mundo e
pelos ensinos dos falsos mestres.

ARISTIDES DE ATENAS

Outro apologista de destaque é Aristides de Atenas. Pouco se sabe sobre


ele, mas é certo que atuou antes de Justino. A única fonte antiga que o
menciona é Eusébio116 que, em sua História Eclesiástica, lhe reserva
umas poucas linhas, fazendo alusão a uma apologia que escreveu:
“Aristides, igualmente fiel de nossa religião, deixou como Quadrato, em
prol da fé, uma apologia dirigida a Adriano. Sua obra, de igual maneira foi
conservada até o presente em poder de grande número.”117
115 CADOUX, Cecil John. The early church and the world: a history of
the Christian attitude to pagan society and the state down to the time of
Constantinus. Edinburh, UK: T. & T. Clark, 1955. p. 211.
116 Jerônimo também faz alusão a ele, mas baseia-se em Eusébio.

Tendo sido escrita, conforme diz Eusébio, nos dias de Adriano, que reinou
de 117 a 138, a Apologia de Aristides foi preparada num ambiente em que
os cristãos enfrentavam ataques sangrentos, além de oposição sob a forma
de difamações e calúnias conforme acima descritas, o que pode explicar o
seu tom crítico e severo.

Sendo uma obra pouco extensa (apenas dezessete breves capítulos) que se
concentra mais nos erros da religião pagã do que na exposição da doutrina
cristã, a Apologia fala diretamente da futura punição dos ímpios somente
em suas últimas linhas:

Por isso, que os teus sábios insensatos parem de falar contra o Senhor.
Com efeito, convém que venereis o Deus Criador e deis ouvido às suas
palavras incorruptíveis, a fim de que, escapando ao julgamento e aos
castigos, sejais declarados herdeiros da vida que não perece.118

Aristides, um pouco antes, aludira à necessidade de salvarse no mundo


futuro (16:1), o que, segundo ele, só podem esperar os que têm os
mandamentos de Jesus gravados no coração e os guardam (15:3). Estes,
sendo cristãos, observam as estipulações da lei de Deus e vivem vida justa
e pura (15:4-7), trilhando, assim, “o caminho da verdade, que conduz
todos os que por ele caminham ao reino eterno, prometido por Cristo na
vida futura”.119

A obra sacrificial de Cristo é descrita rapidamente nessa Apologia. Diz-se


que o Filho de Deus desceu dos céus para a salvação dos homens e
encarnou-se “para afastá-los do erro do politeísmo”, tendo depois morrido
na cruz, ressuscitado e subido aos céus (15:1). Nada é dito diretamente
acerca da conexão entre essa obra e o livramento do inferno.
117 EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica 4,3:3, Coleção
Patrística, vol. 15, p. 173.
118 ARISTIDES DE ATENAS. Apologia segundo os fragmentos gregos

17:1. In: Padres Apologistas, Coleção Patrística, vol. 2, p. 53.


119 Ibid., 15:9, p. 52.

É mui vago, portanto, esse aspecto do pensamento de Aristides. Mesmo


assim, é evidente que acolhe o ensino da perdição dos ímpios, incluindo-o
em sua mensagem e utilizando-o tanto para defender como para propagar a
fé cristã.

A crítica protestante, porém, ainda que reconheça o lado positivo de seu


pensamento e intenções, fará pesar contra Aristides o fato dele se alinhar
aos teólogos do século II também na ênfase que dá à observância dos
preceitos morais contidos nas Escrituras como requisito para o livramento
da infelicidade no além.

TACIANO, O SÍRIO

Um desenvolvimento amplo e distinto do ensino acerca da vida pós-morte


pode ser encontrado em Taciano, o Sírio (c. 120 – c.180), brilhante
discípulo de Justino que frequentou sua escola em Roma. À semelhança de
seu mestre, Taciano também conheceu diversas filosofias. Segundo seu
testemunho próprio, examinou várias religiões e iniciou-se nos
mistérios120, convertendo-se, finalmente, ao cristianismo, talvez em
Roma.

Consta que por volta de 172, ou seja, após a morte de Justino, Taciano
voltou para a sua pátria e chefiou a promoção da heresia encratita (o termo
grego significa continente ou abstêmio), cujos ensinos, à semelhança dos
gnósticos, incluíam a existência de eões e princípios emissores, o desprezo
pela matéria, a consideração do matrimônio como verdadeira fornicação e
a abstinência total da carne e do vinho. Este último, na eucaristia, era
substituído pela água.121 Fontes antigas informam que essa heresia se
estendeu de Antioquia até a Mesopotâmia.122
120TACIANO, O SÍRIO. Discurso contra os gregos 29 e 35. In: Ibid., p.
96-97, 103.

Taciano escreveu várias obras, mas somente duas foram conservadas: o


Diatessaron. Lit. “através dos quatro”), uma harmonia dos quatro
evangelhos que os fundia num único livro123; e o Discurso contra os
gregos, uma severa crítica contra a filosofia e , uma severa crítica contra a
filosofia e 180), que tinha por propósito mostrar a superioridade do
cristianismo.

É no Discurso que Taciano expõe seus pensamentos sobre o futuro dos


ímpios. Logo no início do Capítulo 6 dessa obra ele explica que os cristãos
crêem que depois da consumação do universo, ou seja, quando os tempos
chegarem ao fim, haverá a ressurreição dos corpos, isto é, a reintegração
de todos os homens com vistas ao julgamento.
Antes da ressurreição de todos, contudo, o destino que Taciano traça para a
alma do ímpio é interessante. Segundo ele, a alma humana não é imortal,
mas mortal, podendo se tornar imortal somente se adquirir o
conhecimento de Deus. Desse modo, quando alguém que rejeita esse
conhecimento morre, sua alma se dissolve juntamente com o corpo,
ressuscitando também com ele na consumação dos tempos a fim de
receber o castigo.
121 SCHAFF, History of the christian church, vol. 2, p. 494-495.
122 FRANGIOTTI, Roque. In: Padres apologistas, Coleção Patrística,

vol. 2, p. 59.
123 Na verdade, nenhuma cópia completa do Diatessaron chegou aos dias

atuais, pois, como Taciano tornou-se herege, Teodoreto de Ciro, no século


V, destruiu todas os exemplares dessa obra que esteve ao seu alcance.
Pode-se, porém, conhecer algumas porções do texto através de citações
feitas por alguns pais sírios, como Efraim. Ademais, em 1933 foi
encontrado em Dura-Europos, antiga fortaleza romana próxima ao Rio
Eufrates, um pequeno fragmento de pergaminho contendo parte do
Diatessaron. Trata-se do manuscrito uncial n.° 0212, datado do início do
século III. O texto desse fragmento está em grego, mas não se sabe se essa
foi a língua em que o documento foi composto originalmente, havendo a
possibilidade de ter sido escrito em siríaco. Ver PAROSCHI, Wilson.
Crítica textual do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1993. p. 72-
73.

Assim, na concepção de Taciano, ao tempo em que o corpo do ímpio se


desfaz na sepultura, sua alma também se desfaz ali. Já a alma daquele que
conhece a verdade não se desfaz, por mais que seu corpo se deteriore (Cap.
13). Ambos, porém, tanto justos quanto ímpios, ressuscitarão para uma
vida imortal, por ocasião do julgamento. Os primeiros só terão
necessidade de ter o corpo ressuscitado, pois sua alma jamais morreu; os
últimos serão ressuscitados em corpo e alma, posto que ambos igualmente
se dissolveram. Aqueles receberão vida eterna; estes a pena juntamente
com a imortalidade (Cap. 14).124 É o que Taciano chama de “a morte na
imortalidade” (Caps. 13 e 14) ou, usando a linguagem bíblica, o ser
“entregue como pasto do fogo eterno” (Cap. 17).
No Discurso contra os gregos é possível detectar os meios através dos
quais Taciano entende ser possível escapar de um destino tão sombrio. Na
visão desse intrigante apologista, os seres humanos podem participar da
porção de Deus, ou seja, a natureza do bem e, assim, possuir a
imortalidade bem aventurada, fazendo uso correto da liberdade de escolha.
Ele explica que o próprio Verbo fez os homens de tal forma que, exercendo
o livre-arbítrio, possam obedecer a vontade do Pai, unir-se com ele (Cap.
15) e, então, participar da “porção de Deus” (Cap. 7). Sendo as pessoas,
portanto, capazes de recusar a maldade (Cap. 11), é justo o castigo que há
de vir sobre os que não optaram pela prática do bem.

Taciano deixa transparecer no Discurso que na raiz da boa escolha está a


aspiração pelo conhecimento de Deus (Cap. 12). De fato, o conhecimento
de Deus está no cerne da soteriologia de Taciano, sendo o requisito básico
para que a alma não morra e se dissolva com o corpo (Cap. 13). Esse
conhecimento que livra da condenação só pode ser encontrado na doutrina
cristã.
124 No mesmo capítulo, Taciano explica que esse castigo também está
reservado aos demônios.

Quanto à obra de Cristo e seu papel no livramento do ímpio, Taciano é


praticamente omisso. Nada diz sobre a cruz e a ressurreição do Senhor,
nem mesmo nos parágrafos dedicados à defesa da ressurreição universal.
Nesse aspecto, seu ensino está restrito a afirmações vagas que afirmam a
necessidade de obediência ao Verbo e de dar-lhe ocasião para estar
próximo (Cap. 30). Afinal de contas, é o poder do Verbo que imortaliza a
alma dos que conhecem a Deus e o obedecem (Cap. 16).

Taciano, conforme visto, propõe uma forma distinta de imortalidade


condicional para a alma. Nos desdobramentos finais de sua doutrina,
porém, ele adota o ensino da perenidade das penas, seguindo
acertadamente, nesse aspecto, a corrente teológica principal da época.

Negativamente, entretanto, ao refletir a influência de Justino, seu antigo


mestre, Taciano atribui ao livre arbítrio um grau de importância para a
salvação que acaba por distanciá-lo do ensino paulino. Nesse sentido, o
pensamento desse apologista revelou mais uma vez o otimismo humanista
que maculou a teologia do século II.

ATENÁGORAS DE ATENAS

Outro teólogo que merece destaque entre os apologistas é Atenágoras de


Atenas. Ainda que seja considerado um escritor mais hábil e moderado do
que Taciano, tudo o que se sabe sobre ele é que era ateniense e filósofo.
Detalhes acerca do local e data de seu nascimento, conversão e condições
da sua morte em cerca de 180, não foram registrados nem mesmo por
Eusébio de Cesaréia.

Atenágoras escreveu duas obras: a Súplica em favor dos cristãos,


endereçada ao imperador Marco Aurélio (161-180) e seu filho Lúcio
Aurélio Cômodo; e Sobre a ressurreição dos mortos. Em ambas é possível
detectar, da mesma forma que em Justino e em absoluto contraste com
Taciano, uma real simpatia pela filosofia e cultura gregas, bem como a boa
cultura e habilidade retórica de Atenágoras.

Nos dois escritos do ateniense, mas, como seria de se esperar, muito mais
no tratado Sobre a ressurreição dos mortos, esse hábil apologista trata da
doutrina da perdição eterna.

A Súplica em favor dos cristãos é basicamente uma resposta às acusações


de ateísmo, incesto e antropofagia dirigida contra a igreja. Conforme
exposto acima, essas acusações procedentes do povo em geral exerciam
forte influência sobre as decisões das autoridades acerca do que fazer aos
crentes. Daí a necessidade premente de mostrar o quanto eram infundadas.
Foi o que fez Atenágoras, compondo sua petição por volta do ano 177.

A primeira alusão ao castigo dos maus que se encontra na Súplica ocorre


na Parte 1 (4-29), a maior seção da obra e aquela em que o autor defende
os cristãos da acusação de ateísmo:

Ora, se não acreditássemos que Deus preside ao gênero humano,


poderíamos levar uma vida tão pura? ... Mas como estamos persuadidos de
que teremos de dar contas de toda a nossa vida presente a Deus, que fez a
nós e ao mundo, escolhemos a vida moderada, caritativa e desprezada,
pois pensamos que não podemos sofrer mal tão grande aqui, mesmo
quando nos tirem a vida... Platão disse que Minos e Radamante julgariam
e castigariam os maus. Nós, porém, dizemos que nem o próprio Minos ou
Radamante ou o pai deles escapará do julgamento de Deus.125
125 ATENÁGORAS DE ATENAS. Petição em favor dos cristãos 12. In:
Ibid., p. 133.

Da mesma forma, quando repudia as acusações de imoralidade, incesto e


orgias (Parte 2 da Súplica), Atenágoras argumenta ser isso impossível
entre os cristãos que, aliás, evitam cometer esses pecados até mesmo em
pensamento, pois sabem que Deus vigia o coração e que há uma vida além
desta, na qual a alma daqueles que praticam o mal cairão nas mãos do
grande juiz para serem castigadas no fogo (31).

A doutrina cristã acerca das penas a serem infligidas aos ímpios também
serve como base para Atenágoras na defesa contra as acusações de
antropofagia (Parte 3 da Súplica). A princípio, na refutação dessa calúnia o
apologista argumenta que os cristãos sequer se dispõem a ver os
espetáculos dos gladiadores, pois pensam que o ver matar está próximo do
próprio ato de matar. Segue então esclarecendo que eles consideram até o
aborto verdadeiro homicídio e crêem que as mulheres que o praticam terão
de dar contas a Deus (35). Depois mostra a irracionalidade da acusação de
antropofagia dirigida justamente contra quem crê na ressurreição: “Quem
crê na ressurreição quererá oferecer-se como sepultura dos corpos que hão
de ressuscitar?”126

Finalmente, declara mais uma vez que os cristãos acreditam que nada
ficará fora do exame de Deus e que o corpo que cooperou com os impulsos
e desejos irracionais da alma será punido juntamente com ela. Como, pois,
acreditar que pessoas que adotam a crença em tão temível julgamento
seriam capazes de matar e devorar seus semelhantes?

Assim, a cada etapa da petição dirigida ao imperador, Atenágoras faz uso


da doutrina da perdição eterna, conforme entendida pelos cristãos, como
prova de sua inocência. Por força do próprio objetivo da obra, porém, o
apologista não se aprofunda na exposição desse tema, limitando-se apenas
a apontá-lo como um dos itens da fé cristã.
126 Ibid., 36, p. 164.

Seria de se esperar uma exposição melhor elaborada sobre o assunto no


tratado Sobre a ressurreição dos mortos que Atenágoras se propôs a
escrever já quando compôs a Súplica (37). A obra, porém, gira mais em
torno do argumento básico de que o homem, em sua totalidade que
abrange corpo e alma, foi criado para viver eternamente (12-13),
demonstrando, a partir daí, que a ressurreição é a única forma como esse
propósito pode ser atingido. Nela o corpo se une novamente à alma,
restabelecendo a unidade que constitui o homem completo, e por meio
dela o ser humano finalmente entra na vida que não fenece.

O tratado se divide em duas partes principais. Na primeira (Capítulos 1-


11) são oferecidas respostas às objeções tradicionais contra a ressurreição;
na segunda (Capítulos 12-25) demonstra-se a necessidade dela. É nessa
segunda parte, nos Capítulos 18 a 23, que Atenágoras fala das punições da
vida além túmulo ou, mais especificamente, do castigo devido ao ímpio
depois da ressurreição.

Antes, contudo, faz uma ressalva, prevenindo contra aqueles que vêem o
julgamento como a causa única da ressurreição. Segundo ele, essa
concepção está equivocada porque todos serão ressuscitados, mas nem
todos serão submetidos a julgamento, já que nem todos morrem após uma
vida de pecados (14).

Atenágoras tem em mente nesse ponto as crianças muito pequenas,


aquelas que morrem em tenra idade, sem terem praticado qualquer ato
bom ou mau. Estas não serão julgadas por ocasião da ressurreição, uma
vez que não haverá matéria para julgamento. Daí se conclui de antemão
que, para Atenágoras, assim como para a vasta maioria dos teólogos do
século II, são as obras dos homens que constituem a base sobre a qual será
decidido seu destino eterno.

Atenágoras concentra sua discussão na necessidade do julgamento de Deus


e a demonstra partindo da doutrina da providência. Ele explica que, como
criador, Deus estende seu cuidado sobre tudo, dando a cada criatura aquilo
de que precisa. Dentre essas criaturas, o homem se destaca como
necessitado, mortal e racional. Como necessitado, precisa de alimento;
como mortal, precisa de sucessão (para a permanência da espécie); e como
racional, precisa de julgamento.

O apologista prossegue ensinando que o alimento e a sucessão se referem


ao homem como ser composto, ou seja, o homem com seu corpo e alma.
Ele não oferece as razões dessa asseveração, mas daí conclui que o mesmo
é verdade no tocante ao julgamento, sendo certo que este deverá alcançar
tanto o corpo quanto a alma, o que só poderá ocorrer na ressurreição. Essa
sequência de argumentação é clara no Capítulo 18 do tratado Sobre a
ressurreição dos mortos:

Chamo de composto o homem com seu corpo e alma, e digo que esse
homem é o responsável por todas as suas ações e receberá o prêmio ou
castigo por elas. Ora, se um julgamento justo dará sobre o comportamento
a sentença das obras, nem a alma sozinha receberá a recompensa do que
realizou junto com o corpo, pois por si mesma ela é insensível aos pecados
que possam ser cometidos pelos prazeres, alimentos ou cuidados
corporais, nem o corpo sozinho, pois por si mesmo ele é incapaz de
discernir a lei e a justiça. Ao contrário, é o homem, composto de alma e
corpo, que recebe o julgamento de cada uma das obras por ele feitas.127

Atenágoras prossegue expondo quão injusto seria premiar ou punir


somente um dos elementos de que o homem é composto, visto que ambos
estão envolvidos de algum modo em todos os seus atos.

Considerando separadamente cada elemento, ele reconhece que entre a


morte e a ressurreição, a alma sobrevive ao corpo (25), mas não esclarece
se nesse estado intermediário ela se mantém consciente e sensível a dores
ou prazeres decorrentes da aplicação da justiça divina. Contudo, a partir da
linha geral do seu pensamento, pode-se concluir que, para Atenágoras, no
estado intermediário a alma não recebe qualquer punição ou recompensa,
permanecendo talvez num estado de torpor, pois, conforme exposto, ele
entende que não seria justo premiá-la ou castigá-la à parte do corpo.
127ATENÁGORAS DE ATENAS. Sobre a ressurreição dos mortos 18. In:
Padres apologistas, Coleção Patrística, vol. 2, p. 192-193.

O apologista ateniense conclui aduzindo que o fim conveniente à natureza


humana é conviver com a “contemplação do Doador e a glória e júbilo
daquilo que foi por ele decretado”.128 Se a vasta multidão dos homens não
atinge esse fim, isso não o invalida, pois sua legitimidade deve ser medida
pelo que é dado ao indivíduo, não pelo que a maioria não consegue obter.

Na obra de Atenágoras de Atenas, nada é esclarecido sobre a natureza


exata das penas a serem infligidas aos ímpios. Porém, que a punição
decorre da má conduta é evidente em seus escritos, sendo a vida virtuosa o
caminho pelo qual o homem pode chegar a Deus.

De fato, no capítulo 12 da Suplica em favor dos cristãos, afirma que o


grande juiz recompensará no além a vida mansa, caridosa e modesta. Os
cristãos, portanto, explica na mesma obra, vivem assim para fugir desse
temível julgamento.

Como seria de se esperar de uma soteriologia marcantemente moral, para


entrar na bem-aventurança é preciso perseverar, permanecendo com Deus,
sem cair como os demais. Do contrário, o fogo estará à espera dos que não
se mantiveram acima das próprias paixões (Súplica, 31). Por isso, os
crentes devem ser cuidadosos até quando trocam entre si o beijo fraterno,
pois se houver uma pequena mancha em sua mente, isso bastará para
colocá-los fora da vida eterna (Súplica, 32).
128 Ibid., 25, p. 202.

Para entrar nessa vida, portanto, o homem deve conhecer a Deus (seu
poder e sabedoria) e seguir a lei e a justiça (Sobre a ressurreição, 12). É
notável, ademais, que, ao longo de toda a abordagem sobre o julgamento
divino apresentada em seu tratado acerca da ressurreição, Atenágoras
conecta o resultado do referido julgamento ao comportamento humano. De
fato, a última frase do tratado é: “a cada um é medido o prêmio ou o
castigo por sua vida boa ou má”.129
Infelizmente, o apologista ateniense não trata em momento algum do
papel que a obra de Cristo ocupa no livramento do castigo. Aliás,
Atenágoras sequer menciona a obra de Cristo em seus escritos. Seu
objetivo, comum entre os padres apologistas, é provar a veracidade do
cristianismo especialmente a partir de argumentos procedentes da filosofia
grega. Isso, contudo, não o fez negligenciar o ensino sobre a realidade da
perdição, demonstrando que esse aspecto do ensino cristão se situava no
cerne de sua mensagem.

TEÓFILO DE ANTIOQUIA

O último apologista de renome do século II é Teófilo de Antioquia. Seus


dados biográficos são muito escassos. Eusébio, no livro IV de sua História
Eclesiástica, informa apenas que ele foi o sexto bispo de Antioquia depois
dos apóstolos (IV:20) e que foi um escritor prolífico (IV:24).130

É do próprio Teófilo, em seus livros A Autólico, a informação de que sua


terra de origem se situava perto dos rios Tigre e Eufrates (2:24). Também a
partir desses livros é possível perceber que era homem de boa cultura.
Vindo do paganismo, sua conversão ocorreu quando era adulto, lendo os
profetas das Sagradas Escrituras, conforme testemunho dele próprio (A
Autólico 1:14).
129 Ibid., 25, p. 202.
130 Jerônimo, em De viris illustribus (Cap. 25), também fornece essa
informação, destacando que Teófilo escreveu, inclusive, um livro Contra
Marcião, nos dias do imperador Marco Aurélio. Ver FRANGIOTTI,
Roque. In: Ibid., p. 206.

Das obras que Teófilo escreveu, só restaram os três livros A Autólico, uma
defesa do cristianismo endereçada a um amigo, talvez um pagão culto e
influente, ainda que exista a possibilidade de se tratar de um
correspondente fictício.

No primeiro livro, Teófilo explica como Deus pode ser conhecido.


Segundo ele, somente as almas puras podem vislumbrálo. Assim, àqueles
que cometem faltas como adultério, pederastia, furto, exploração, cólera,
inveja ou soberba é negada a contemplação de Deus (1:2). Na verdade,
Deus se ira contra tais pessoas, sendo ele próprio o juiz e o algoz dos
ímpios (1:3). De fato, um dia o Senhor haverá de lançá-los nos tormentos
eternos de que falaram os profetas do Antigo Testamento:

Se queres, lê tu também com interesse as escrituras dos profetas e elas te


guiarão com mais clareza para escapares dos castigos eternos e alcançares
os bens eternos de Deus. De fato, ele, que nos deu a boca para falar, que
formou o ouvido para ouvir e fez os olhos para ver, examinará tudo e
julgará com justiça, dando a cada um segundo os próprios méritos. Para
aqueles que, segundo suas forças, buscam a incorruptibilidade através das
boas obras, ele dará a vida eterna, a alegria, a paz, o descanso e uma
multidão de bens... mas aos incrédulos, aos zombadores e aos que
desobedecem à verdade... existirá a ira e a indignação, a tribulação e a
angústia, e, por fim, o fogo eterno se apoderará deles.131

No segundo livro A Autólico, Teófilo estabelece como alvo apontar o


absurdo e as contradições das crenças pagãs, mostrando a superioridade
dos escritos bíblicos. Discorrendo sobre esses assuntos, alerta acerca do
perigo das heresias que, segundo ele, é um dos motivos pelas quais os
homens são levados à perdição (2:14).
131TEÓFILO DE ANTIOQUIA. Dos livros a Autólico 1:14. In: Ibid., p.
226-227.

Sobre essa perdição, ou seja, o castigo eterno, o apologista dissera no


primeiro livro (1:14) que outros autores, além dos profetas bíblicos,
também falaram, baseando-se nas Escrituras Sagradas. No segundo livro A
Autólico, Teófilo especifica esses autores, citando com aprovação as suas
palavras sobre a punição dos maus.

Inicialmente ele cita a “Sibila”. Esse termo não é necessariamente um


nome próprio, mas a designação geral de profetisas antigas. A expressão
decorre de uma sacerdotisa de Apolo de grande reputação chamada
Sibbylla. Teófilo não é preciso na identificação de quem cita, dizendo
apenas que ela “foi profetiza entre os gregos e demais nações” (2:36).
Na citação de Teófilo, a Sibila insta com os homens para que reverenciem
o único Deus verdadeiro, criador e sustentador de tudo, e ameaça os
pagãos dizendo que os que sacrificam aos demônios, isto é, aos deuses
falsos, receberão o justo pagamento por essa má escolha (2:36).

A Sibila citada por Teófilo prossegue mostrando a insensatez da idolatria


que eleva gatos e insetos à posição de deuses e adora animais que roubam
comida e são comidos por carunchos. Sobre aqueles, portanto, que
trocaram o Deus que habita no céu por serpentes, cães, aves, répteis e
estátuas virá “uma chama de fogo abrasador”. Tais pessoas serão
queimadas no ardor desse fogo para sempre (2:36).

Comentando brevemente a citação, Teófilo acrescenta que não somente os


idólatras, mas os praticantes de qualquer outra forma de mal também
serão punidos. Ele enaltece as palavras da Sibila e conclui: “É evidente
que isso é verdadeiro, proveitoso, justo e digno de ser amado por todos os
homens. Também é evidente que aqueles que praticam o mal serão
necessariamente castigados, conforme mereçam as suas ações”.132

É ao término do segundo livro A Autólico que Teófilo multiplica os nomes


de autores pagãos que falam do castigo que há de sobrevir aos perversos.
Ele faz breves citações de poetas como Ésquilo, Eurípedes, Dioniso,
Simônides e Sófocles, provando que a doutrina das penas futuras não é
estranha nem mesmo entre os sábios pagãos que, segundo Teófilo, tiraram
suas corretas conclusões sobre esse assunto da lei e dos profetas do Antigo
Testamento (2:37-38).

É evidente que com esses argumentos o propósito do apologista é criar nos


seus leitores uma disposição favorável à recepção da doutrina cristã,
inclusive no tocante às punições sem fim. Daí seu empenho em mostrar
que a Sibila, os filósofos, os poetas pagãos e os profetas bíblicos formam
um só coro quando falam sobre a justiça, o julgamento e o castigo. De
acordo com Teófilo, todos eles entendiam que o julgamento alcança o
homem mesmo depois da morte e, para os maus, culmina com o
lançamento da alma nas regiões do Hades (2:38).

Dos três livros A Autólico, o terceiro é o que refuta as acusações de


antropofagia e imoralidade dirigidas contra os cristãos (3:4-15). Nesse
livro, Teófilo também se empenha em mostrar a antiguidade do
cristianismo, conectando-o às Escrituras, cuja história e composição,
segundo alega, antecede em muito a vida e a obra dos filósofos pagãos.

Teófilo defende, assim, a antiguidade da doutrina cristã, refutando a


acusação de que a fé da igreja era pura inovação de charlatães (3:4,16-30).
Não há, porém, no terceiro livro A Autólico nenhuma menção da doutrina
da perdição eterna, nem tampouco há ali qualquer alusão ao modo como o
homem pode ser salvo ou acerca da obra de Cristo e sua importância para
a redenção do ser humano.

De fato, é nos dois primeiros livros que se encontram informações sobre a


maneira como, na visão desse apologista, o ímpio pode se livrar dos
castigos que o esperam na vida futura. Conforme exposto acima, na
concepção de Teófilo, para que o homem seja salvo, é preciso que, com os
olhos da alma, seja capaz de ver Deus. Essa visão, porém, não é possível
para aqueles que vivem no pecado, pois as impiedades projetam trevas
sobre tais pessoas, de modo que sua visão fica obscurecida (1:3).

A cura para isso é possível desde que o pecador se coloque nas mãos de
Deus: “Mas, se quiseres, podes curar-te. Coloca-te nas mãos do médico e
ele operará os olhos de tua alma e do teu coração. Quem é esse médico? É
Deus que cura e vivifica através do Verbo e da Sabedoria”.133

A fé, portanto, é elemento que se destaca na soteriologia de Teófilo. Ele


suplica no primeiro livro: “Eu te peço, submete-te também a ele, para que,
não crendo agora, forçosamente tenhas que crer mais tarde em tormentos
eternos”.134

Segundo parece, porém, para Teófilo, esse lançar-se “nas mãos do


médico”, linguagem que propõe seguramente um passo de fé, deve ser
seguido de algo mais:

Ó homem, se compreenderes isso, e viveres de maneira pura, piedosa e


justa, poderás ver a Deus. Antes de tudo, porém, entrem em teu coração a
fé e o temor de Deus, e então compreenderás isso. Quando depuseres a
mortalidade e te revestires da incorruptibilidade, verás a Deus de maneira
digna. Com efeito, Deus ressuscitará a tua carne, imortal, juntamente com
tua alma. Então, tornado imortal, verás o imortal, contanto que agora
tenhas fé nele. Então reconhecerás que falaste injustamente contra ele.135
133 Ibid., 1:7, p. 220.

Assim, Teófilo, como se vê, afasta-se da doutrina da salvação pela fé


somente e realça o valor das boas obras na salvação, seguindo a tendência
teológica de seu tempo. Aliás, ele afirma categoricamente no segundo
livro que o homem deve praticar a justiça se quiser escapar dos castigos
eternos e se tornar digno da vida que Deus dá (2:34). Ainda que apenas de
passagem, o apologista coloca entre esses atos de justiça o rito do batismo
(o que chama de “banho de regeneração”), através do qual os que abraçam
a verdade renascem e recebem o favor de Deus (2:16).

Para melhor compreender a soteriologia de Teófilo, especialmente o lugar


que concede às boas obras, é importante conhecer sua concepção acerca da
imortalidade do homem. Comentando os relatos de Gênesis sobre a
criação, ele afirma que o ser humano foi criado como ser intermédio, nem
mortal nem imortal, mas capaz tanto de morrer como de viver para sempre
(2:24). Se ele guardasse o mandamento de Deus receberia o galardão da
imortalidade e chegaria a ser deus; se, por outro lado, como livre e senhor
dos seus atos, decidisse desobedecer, atrairia para si a morte.

Teófilo conclui que, da mesma forma como pela desobediência de outrora,


o ser humano tornou-se mortal, assim também, se obedecer agora a
vontade de Deus, poderá viver eternamente. “De fato”, explica, “Deus nos
deu a Lei e os mandamentos santos, e todo aquele que os cumpre pode
salvar-se e, tendo alcançado a ressurreição, herdar a
incorruptibilidade”.136

Concentrando-se no papel do homem, não é de estranhar que Teófilo


silencie sobre a cruz e sua importância para livrar os perdidos do fogo
eterno. De fato, esse apologista sequer menciona a obra vicária de Cristo e
muito menos comenta seu significado salvífico. No livro terceiro, onde se
esforça por expor a história bíblica com precisão e rigor cronológico
(3:16-29)137, e onde seria de se esperar a menção dos eventos mais
importantes da fé cristã, ou seja, a morte e ressurreição do Senhor, bem
como sua importância para a redenção da humanidade, Teófilo nada diz
sobre esses episódios.
135 Ibid., 1:7, p. 220-221. Grifo pessoal.

Considerando que o propósito de Teófilo em sua cronologia era comprovar


a antiguidade da doutrina cristã em relação à filosofia grega, é
compreensível que não inclua ali as datas do nascimento, morte e
ressurreição de Cristo, eventos recentes quando comparados com os
principais personagens da cultura grega. Porém, a ausência de qualquer
alusão a esses fatos se estende sobre toda a obra analisada, o que é uma
infeliz constatação, pois trata-se de um silêncio que priva o leitor da
mensagem central do cristianismo. Ao que se vê, no caminho para Deus
descrito por ele, a cruz é um ponto distante, na verdade imperceptível na
paisagem.

Entretanto, a disposição de apresentar o cristianismo sem falar da cruz,


mas realçando a existência do inferno, revela o espaço que esse aspecto do
ensino bíblico ocupava no pensamento de Teófilo e corrobora a proposição
defendida neste livro.

AVALIAÇÃO

Ao fazer uma avaliação dos apologistas, o cristão moderno deve ser


cauteloso a fim de não julgá-los com rigor excessivo. Se aqueles teólogos,
conforme visto, não expuseram a fé cristã de modo completo e
satisfatório, deve-se lembrar que diante deles se apresentaram desafios
bem definidos, de forma que se viram impelidos a dar respostas a questões
específicas, ligadas à unidade de Deus, ao Logos, à virtude e à
imortalidade. Reinhold Seeberg explica:
137 Christopher HALL faz alusão à teoria que atribui a Teófilo de
Antioquia o surgimento da abordagem hermenêutica antioquena, distinta
por sua ênfase no sentido normal do texto, livre dos excessos próprios dos
alegoristas. (HALL, Christopher. Lendo as Escrituras com os Pais da
Igreja. Viçosa, MG: Ultimato, 2007. p. 178).
Foi feita uma seleção de doutrinas adequada ao propósito que se tinha em
vista e se adaptou o material às concepções que os destinatários desses
documentos tinham de tais doutrinas. Em circunstâncias assim, é evidente
que não encontraremos nesses escritos uma apresentação exaustiva da
crença dos autores...138

O modo seletivo, portanto, como os apologistas expõem a doutrina cristã


não se deve à limitação do seu pensamento ou ao desconhecimento do
corpo doutrinário como um todo, mas sim à natureza particular dos
desafios que enfrentaram.

Essa seletividade, conforme visto, deixou quase totalmente de lado a


pessoa de Cristo e sua obra vicária. Porém, é fato que os apologistas
viveram num estabelecimento de novos mundo e sobre o homem, a
correção de concepções equivocadas acerca desses temas e a difusão de
uma nova mentalidade como fatores preparatórios para a apresentação do
evangelho em sua forma mais completa, o que incluiria a ênfase na
manjedoura, na cruz e no túmulo vazio.
tempo em que era urgente o

pressupostos sobre Deus, sobre o

A disposição mais indulgente em face da falta de abrangência doutrinária


dos apologistas, porém, não poderá desconsiderar a visão obscurecida que
eles demonstram de um determinado aspecto do evangelho: como os pais
apostólicos, o lugar que dão às boas obras na salvação representa um
notável afastamento do ensino paulino da justificação pela fé somente.
138 SEEBERG, Reinhold. Manual de história de las doctrinas. 2 vols.
Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1963. vol. 1, p. 119. Minha
tradução.

De fato, os apologistas contribuíram para que reinasse na soteriologia do


século II a noção de que Cristo, por sua morte e ressurreição, apenas
possibilitou que o homem fosse salvo por suas próprias obras e esforços
pessoais. Juntamente com os pais apostólicos, eles ensinaram que a cruz
abriu o caminho através do qual o servo, se for obediente e zeloso, pode
chegar ao céu, livrando-se das chamas eternas.
Se, porém, os apologistas mostraram uma soteriologia defeituosa nos
mesmos aspectos em que falharam os pais apostólicos, deve-se
reconhecer, por outro lado, que, também como estes, ressaltaram a
existência de um castigo terrível preparado para a alma e o corpo dos
inimigos de Cristo, mantendose nesse particular, fiéis aos ensinos do Novo
Testamento.

Ao expor essa doutrina eles falaram de Deus como o Juiz a quem anjos e
homens deverão prestar contas, aqueceram o debate sobre a imortalidade
da alma e insistiram na miséria que aguarda aqueles que se distanciam do
Criador e do seu Verbo unigênito. Eles ainda defenderam unanimemente o
ensino acerca da ressurreição do corpo, alertando para o fato de que a
perdição eterna atinge o homem integral, o físico e o espírito que o
compõem.

Desse modo, a obscuridade que se manifestou eventualmente em alguns


aspectos da mensagem dos apologistas (como o significado da obra de
Cristo) não marcou tão profundamente seu ensino acerca da vida após a
morte. De fato, enquanto protegiam a fé cristã dos ataques da filosofia
pagã e de calúnias grosseiras, acabavam por proteger também seus leitores
da falsa e perigosa tranquilidade que advém da ignorância acerca da eterna
justiça de Deus.

A tônica do trabalho dos apologistas não estava na defesa da fé ortodoxa


dos perigos advindos das heresias que naqueles dias se multiplicavam por
toda parte, propagando doutrinas pseudocristãs. Essa tarefa tão importante
coube especialmente a um teólogo que se destacou entre todos os mestres
cristãos do século II. É sobre o pensamento desse teólogo, o notável Irineu
de Lião, que versará o capítulo seguinte, apontando particularmente sua
compreensão sobre o destino final dos ímpios como elemento essencial da
mensagem cristã.

5
IRINEU DE LIÃO

A primeira igreja cristã da Gália, atual França, foi implantada em Lião, no


século II, por cristãos vindos do oriente.139 Seu primeiro bispo chamava-
se Fotino e era originário da Ásia. Em 177, aos noventa anos de idade,
Fotino morreu como mártir, em virtude de maus tratos que sofreu na
prisão. Após sua morte, sucedeu-o Irineu, natural da Frigia, nascido
provavelmente na cidade de Esmirna.

Não são conhecidos os motivos que levaram Irineu a deixar sua pátria e se
fixar na Gália. É certo, porém, que mesmo antes de ser bispo, ele se
destacou entre os cristãos de Lião, tendo sido, inclusive, enviado a Roma
por sua igreja, portando uma mensagem dirigida ao papa Eleutério, na qual
era solicitada sua intervenção em favor da paz na igreja lionesa, abalada
pela heresia montanista.

Em 190, ocupando já a função de bispo, Irineu procurou novamente o líder


eclesiástico de Roma, então o papa Vítor, desta vez para tentar conciliar a
igreja romana com a da Ásia na questão relativa à celebração da data da
Páscoa.140 Sabe-se que pouco mais de uma década depois, talvez em 202,
Irineu foi martirizado, não havendo, porém, detalhes acerca do seu
suplício.
139 PIERRARD, História da igreja, p. 26.

Como chefe da igreja na Gália, o bispo de Lião se destacou pelos esforços


que empreendeu na evangelização da população camponesa daquele país e
por sua ardente e apaixonada dedicação à defesa da fé contra as heresias,
em especial as diversas formas de gnosticismo que no seu tempo
ameaçavam a igreja. Nesse combate ele afirmou com vigor:

A verdadeira gnose é a doutrina dos apóstolos, é a antiga difusão da Igreja


em todo o mundo, é o caráter distintivo do Corpo de Cristo que consiste na
sucessão dos bispos, aos quais foi confiada a Igreja em qualquer lugar que
esteja; é a conservação fiel das Escrituras que chegou até nós, a explicação
integral dela, sem acréscimos ou subtrações, a leitura isenta de fraude e
em plena conformidade com as Escrituras, harmoniosa, isenta de perigos
ou de explicação correta,

blasfêmias e, mais importante, é o dom da caridade, mais precioso do que


a gnose, mais glorioso que a profecia, superior a todos os outros
carismas.141
No afã de demonstrar a veracidade dessas asseverações e a falácia dos
ensinos gnósticos, Irineu se envolveu em longos debates com os mestres
da heresia e escreveu, entre os anos 180 e 198, suas obras de maior
destaque, preservadas integralmente: Adversus haereses (Contra as
heresias), escrita originalmente em grego, cujo título original era
Exposição e refutação da falsamente chamada gnose; e uma síntese
didática desse livro, a Demonstração da pregação apostólica, descoberta
somente em 1904, numa versão armênia.
140 A igreja romana abandonara a prática, cara aos orientais, de celebrar a
Páscoa no dia tradicional e passara a comemorá-la no domingo seguinte.
141 IRINEU DE LIÃO, Contra as heresias, IV, 33:8, Coleção Patrística,

vol. 4, p. 475.

O pensamento de Irineu expresso nessas obras é especialmente importante


porque o bispo de Lião, tendo nascido em Esmirna por volta do ano 140,
foi discípulo do bispo daquela cidade, o famoso Policarpo, martirizado em
156 (Contra as heresias III, 3:4). Policarpo, por sua vez, tinha sido
discípulo do próprio apóstolo João. Ademais, Irineu afirma ter
conhecimento do testemunho de alguns anciãos que viram não somente
João, mas também outros apóstolos (Contra as heresias II, 22:5). Isso tudo
coloca o bispo de Lião numa relação quase direta com os tempos e os
ensinos apostólicos e faz com que a sua abordagem dos diversos temas
bíblicos recebam crédito especial como expressão do entendimento
original da igreja sobre as palavras e escritos daqueles que lançaram seus
alicerces doutrinários.

Acrescente-se ao elemento cronológico o fato de Irineu ter sido um


ardoroso defensor da noção salutar de que os apóstolos de Cristo foram os
únicos expoentes fidedignos do cristianismo. Conforme recorda Ernest
Thompson, o bispo de Lião era rigoroso na defesa da ideia de que somente
podiam ser genuinamente cristãs as igrejas que acolhiam os apóstolos, a
tradição dos apóstolos e os bispos que estavam na linha de sucessão dos
apóstolos.142
consideradas escritos dos
Portanto, para conhecer de forma segura as concepções verdadeiramente
cristãs sobre a perdição eterna conforme ensinadas nas primeiras décadas
da igreja pós-apostólica, Irineu é fonte confiável e essencial. Daí a
necessidade da análise completa de sua obra literária por parte de quem
pretende adquirir visão mais precisa desse aspecto da teologia do século
II.
142THOMPSON, Ernest Trice. Through the ages: a history of the
Christian church. The Covenant Life Curriculum. Richmond, Virginia: The
CLC Press, 1965. p. 67.

AS DISTORÇÕES DO GNOSTICISMO SOBRE O DESTINO FINAL

Irineu de Lião dividiu sua obra maior, Contra as heresias, em cinco livros,
dedicando-os a um amigo cuja identidade é hoje desconhecida. Ele expõe
no prólogo do Livro I que o objetivo geral de Contra as heresias é
informar e prevenir o referido amigo acerca das doutrinas de Ptolomeu e
Valentim, mestres gnósticos, bem como dar-lhe ferramentas para que
mostrasse o perigo da mentira a quem estivesse à sua volta e refutasse os
próprios hereges quando com eles se deparasse (I, Prólogo, 2).

O conteúdo do Livro I, portanto, é uma exposição vasta e detalhada das


complexas bases dos sistemas gnósticos bem como de suas variações. Ali,
Irineu informa de início que os gnósticos criam na existência de um éon
perfeito e eterno, também chamado Protopai que, após uma infinidade de
séculos em repouso, teve a ideia de realizar uma emissão que fosse o
princípio de todas as coisas. A partir dessa semente emitida pelo Protopai,
foram gerados outros éões que, por sua vez, também fizeram emissões (I,
1:1-3).

Ocorreu que a mais nova dessas emissões, o éon chamado Sofia, entregou-
se ao desejo de conhecer a grandeza imperscrutável do Protopai e, sendo
impedida pelo poder que mantém os éões fora dos seus limites, caiu em
profunda angústia. Em meio a essa aflição, Sofia deu à luz uma substância
amorfa (I, 2:2-4). Essa substância recebeu o nome de Acamot e,
abandonada fora do Pleroma em meio a paixões contraditórias e muita
amargura, originou a matéria e todas as almas do mundo (I, 4:1-2). Assim,
ainda que existissem diversas variações em suas doutrinas, os gnósticos
criam fundamentalmente que a matéria é má, posto que fruto da
ignorância, tristeza e medo de um éon dominado pela agonia e pela
frustração.

Acamot também formou o Pai, chamado ainda de Demiurgo, aquele que


moldou todas as coisas e que se tornou Deus dos seres que vivem fora do
Pleroma, tanto celestes como terrestres (I, 5:1-2). Esse Demiurgo criou o
céu, fez aparecer a terra e plasmou o homem. Ele se julgava detentor de
todo poder, sem saber que realizava tudo por obra de Acamot, sua mãe. Na
verdade, o Demiurgo sempre esteve abaixo de Acamot e esta, por sua vez,
encontrava-se abaixo e fora do Pleroma. No entanto, ele pensava ser o
único Deus e se revelou aos profetas do Antigo Testamento dizendo que
não havia nenhum outro além dele (I, 5:3-4).

A razão da ignorância do Demiurgo estava no fato dele ter sido formado


de uma substância que os gnósticos denominavam “psíquica”, inferior a
que chamavam de “pneumática”. Aliás, segundo eles, o diabo e os
demônios são espíritos do mal, mas foram feitos de substância pneumática
e, por isso, compreendem as coisas que estão acima do próprio Demiurgo,
enquanto ele permanece na ignorância (I, 5:4).

Em seu universo repleto de emissões diretas ou indiretas do Protopai, os


discípulos de Valentim ensinavam que Cristo e o Espírito Santo eram éões
semelhantes aos outros. Acerca de Cristo em particular, os gnósticos
faziam distinção entre ele, o Unigênito e Jesus (I, 9:2). De fato, ensinavam
que o éon chamado Unigênito emitiu Cristo e o Espírito Santo. Cristo
ensinou todos os demais éões acerca da grandeza do Protopai a fim de
evitar que algum deles caísse no mesmo erro de Sofia. O Espírito, por sua
vez, ensinoulhes a gratidão e os introduziu num repouso perfeito.

Gratos e alegres por esses benefícios, todos os éões trouxeram o que


tinham de mais excelente e compuseram em conjunto uma emissão de
beleza perfeita em honra ao Protopai. Esse fruto perfeito é Jesus, também
chamado Salvador ou Logos, cujo corpo era formado de substância etérea
organizada de tal forma que era possível vê-lo e tocá-lo (I, 6:1). Com ele
foram também criados os anjos que são da sua mesma natureza (I, 2:5-6).
Esse Jesus, quando falava do Pai, não tinha em mente o Demiurgo inferior
que criou o mundo, mas sim o Protopai, perfeito e eterno, fonte de todas as
emissões posteriores (I, 19:1).

Irineu explica que, segundo os mestres dessas fantasias, nada disso foi dito
explicitamente pelo Salvador porque nem todos seriam capazes de
assimilar semelhante gnose. Jesus, porém, teria falado dessas coisas de
forma velada em suas tão conhecidas parábolas e as próprias Escrituras,
conforme diziam, escondiam esses mistérios, podendo-se chegar a eles
através de interpretações que consideravam as mais adequadas e da
alegorese (I,3:1-6).

Os gnósticos também diziam que Jesus transmitiu esses ensinos a um


grupo reduzido de discípulos e ordenou que eles revelassem essas
doutrinas somente aos que julgassem dignos (I, 25:5; 30:14). A seita dos
cainitas, que recebeu esse nome por enaltecer Caim, dizendo que ele
procedia da potência suprema, ensinava que Judas Iscariotes foi o único
discípulo de Cristo que compreendeu a verdade acerca dos mistérios que o
Mestre dizia. Os cainitas tentavam confirmar isso apresentando uma obra
produzida pela própria seita e que intitulavam “Evangelho de Judas” (I,
31:1).

No Livro I de Contras as heresias, o bispo de Lião retoma constantemente


o ensino dos gnósticos de que existem três elementos ou substâncias que,
separadamente, formam todas as coisas: o elemento hílico ou material, o
psíquico e o pneumático. Segundo eles, a salvação do homem consiste de
ser introduzido no Pleroma acima do Demiurgo e de Acamot, sua mãe, e
isso depende absolutamente do elemento de que cada um é formado (I,
6:1).

O elemento material, isto é, o corpo, perecerá sem qualquer esperança,


sendo totalmente aniquilado com todo o universo físico moldado pelo
Demiurgo (I, 17:2). Esse fim será integral para os homens chamados
terrenos, isto é, aqueles que desprezam a gnose perfeita. Os detentores do
elemento psíquico, por sua vez, jamais poderão entrar no Pleroma, mas
será possível viverem eternamente no plano inferior em que se encontra o
Demiurgo, desde que acolham os ensinamentos de Jesus, nutrindo uma fé
simples e a boa conduta (I, 7:1).
Para os gnósticos, os cristãos comuns eram os homens psíquicos e, por
isso, precisavam se preocupar tanto com a conduta moral. Aliás, eles
diziam que o Salvador veio exatamente para ajudar o homem psíquico a
salvar-se da corrupção, dando-lhe ensinamentos que, se observados, o
conduziriam àquele lugar intermediário em que se encontra o Demiurgo (I,
6:1).

Finalmente, os gnósticos destacavam os pneumáticos. Estes possuíam o


conhecimento perfeito dos mistérios de Acamot, eram o sal e a luz do
mundo, e se salvariam não pela fé ou pelas obras, mas por serem
pneumáticos por natureza. Os gnósticos diziam ser eles próprios
anteriormente, afirmavam esses homens e, conforme exposto

que, por terem tal natureza, era impossível que se corrompessem,


quaisquer que fossem as obras que praticassem (I, 6:1-2). Segundo seus
ensinos, Acamot havia plantado neles uma semente espiritual que os
capacitava a conhecer os mistérios da gnose e isso faria com que um dia
eles chegassem à perfeição (I, 6:4). Quando isso acontecesse, seriam
colocados dentro do Pleroma e dados em casamento aos anjos para serem
suas esposas (I, 7:1,5).

Mesmo partindo de pressupostos básicos comuns, inúmeras eram as


variações do gnosticismo descritas pelo bispo de Lião. Especialmente no
tocante à doutrina da salvação do homem, Irineu afirma no Livro I de
Contra as heresias, que não havia nenhum grau de unanimidade entre os
mestres gnósticos (I, 21:1).

Segundo a maioria deles, o batismo era necessário para os que tinham a


gnose perfeita, pois por meio desse rito ocorria a regeneração que os
introduziria afinal no Pleroma (I, 21:2). No que diz respeito a esse assunto,
porém, entre os gnósticos não havia consenso. Alguns grupos batizavam
invocando o Pai desconhecido; outros usavam palavras hebraicas para
causar admiração e medo nos iniciados; outros ainda faziam invocações
sobre os candidatos, dizendo que aquelas cerimônias consistiam de bodas
espirituais semelhantes às das emanações celestes; e havia os que,
pronunciando fórmulas misteriosas, derramavam uma mistura de água e
óleo sobre os novos adeptos dizendo que a salvação era obtida por quem
fosse assim ungido (I, 21:3-4). Irineu menciona também os gnósticos
seguidores de um samaritano chamado Menandro, cujos discípulos
acreditavam que, ao receberem o batismo, recebiam também a
ressurreição e se tornavam para sempre jovens e imortais (I, 23:5).

Adotando uma antropologia tricotomista, os gnósticos criam que a


salvação não era do corpo e nem da alma, mas somente do espírito, ou
seja, era absolutamente pneumática (I,21:4).143 Por isso, algumas facções
do gnosticismo se propunham a redimir os moribundos derramando óleo
com água ou água com unguento sobre a cabeça deles. Segundo seu
entender, isso tornaria impossível que, em sua jornada rumo ao Pleroma, o
homem salvo fosse visto ou detido pelos principados e potestades,
podendo, assim, subir livremente, em espírito, até o seu destino, deixando
o corpo neste mundo e a alma nas mãos do Demiurgo (I, 21:5).

A despeito, contudo, da importância que certas cerimônias tinham para as


diferentes seitas gnósticas, em todas a base singular para a redenção
perfeita era o conhecimento do Protopai inefável. Na lógica gnóstica, a
condição humana presente foi resultado da ignorância de emanações
degradadas. Logo, somente a gnose podia abolir os efeitos daquela
ignorância e salvar o homem (I, 21:4). Era na oferta dessa gnose aos
iniciados que, segundo Frangiotti, residia a fortíssima atração das seitas
gnósticas.144
143À visão tricotomista dos gnósticos Irineu contrapõe o ensino de que o
homem é alma e corpo (II,13:3). Ele ensina ainda que as almas possuem a
forma do corpo, sendo adaptadas ao seu receptáculo (II,19:6).

Porém, os mestres heréticos não estavam de acordo quanto aos contornos


específicos desse conhecimento. Os simonianos, por exemplo, criam na
salvação por meio do conhecimento de Simão, o mago mencionado em
Atos 8.9-11. Os sacerdotes dessa seita adoravam uma estátua daquele
personagem e ensinavam que ele era o próprio Pai eterno, ou seja, a
potência mais sublime, de quem se originaram os anjos (I, 23:1-4).
Marcião, o herege que negava o Velho Testamento e mutilava o Novo para
ensinar a existência de um Deus superior àquele que criou o mundo, dizia
que o conhecimento que salva era somente o que dizia respeito à sua
própria doutrina (I, 27:3). Já os adeptos da seita de Saturnino de Antioquia
criam que esse conhecimento eram os ensinos de Cristo cujo propósito era
destruir o Deus dos judeus. Somente os que tinham a fagulha de vida
depositada neles pela Potência divina acolheriam seus ensinos misteriosos.
Então, quando morressem, essa fagulha retornaria ao que lhe deu origem,
enquanto tudo o mais que os compõe se dissolveria (I, 24:1-2).

Um conjunto diferente de conhecimentos salvíficos foi proposto por


Basílides de Alexandria. Ele disse que os anjos fizeram o mundo e que o
chefe deles é aquele que se apresenta como o Deus dos judeus. O Pai
ingênito e inefável, querendo então libertar um povo do poder dos
criadores do mundo, enviou Nous, o seu primogênito, também chamado
Cristo. Esse Cristo, porém, não sofreu a paixão. O que ocorreu foi que
Simão de Cirene, ao ser obrigado a carregar a cruz transformação o
aspecto de aspecto de Simão, passando a zombar dos seus algozes. Sendo
incorpóreo, ele se transfigurou como quis e subiu ao Pai ingênito. no lugar
de Cristo, recebeu por Jesus, enquanto Jesus recebeu o

Os basilidianos diziam que para alguém ser salvo era preciso saber essas
coisas e, então, rejeitar o que foi crucificado, aceitando somente o Nous ou
o Cristo enviado pelo Pai inefável. Quem, por ignorância, confessasse o
crucificado permaneceria escravo dos criadores da matéria e jamais
chegaria ao Protopai. Basílides ensinava a salvação só da alma e afirmava
que os salvos pelo conhecimento de suas doutrinas eram bem poucos,
mantendo a proporção de um entre mil (I, 24:3-6).
144 FRANGIOTTI, História das heresias (Séculos I-VII), p. 36.

Finalmente, entre os gnósticos havia os que criam na salvação procedente


do conhecimento adquirido pelas ações. Os já mencionados carpocratianos
(Capítulo 2 supra) são exemplos disso. Além deles existiam os que criam
que a cada pecado assistia um anjo. Os iniciados, portanto, deviam ter
coragem de praticar qualquer ato e, então, lançar sobre esse anjo as
impurezas que porventura acompanhassem esses atos, dizendo: “Ó anjo,
eu cumpro a tua obra! Ó potência, eu pratico a tua ação!”. A gnose perfeita
consistia de fazer essas coisas (I, 31:2).

A análise desses modelos heréticos mostra que nenhum deles recepcionava


a doutrina cristã da perdição eterna. A rigor, os gnósticos não aceitavam a
existência do Hades como um lugar de castigo. Independentemente de suas
variações, quase todos criam na salvação perfeita de uma minoria
detentora da gnose e num estado intermediário para os ignorantes tangidos
pela bondade. Os demais não seriam castigados por tormentos eternos. Sua
pena seria a completa aniquilação.

Rejeitando com veemência ainda maior a doutrina cristã da perdição


eterna, havia vertentes gnósticas universalistas, como era o caso dos
carpocratianos. Ensinando que a alma se salva através do conhecimento
experimental de todas as ações possíveis nesta vida, eles criam que,
passando sucessivamente de um corpo para outro, cedo ou tarde todas as
almas chegariam à salvação (I, 25:4).

Observando o quanto os mestres gnósticos discrepavam entre si, o bispo


de Lião enalteceu a igreja cuja fé era uma só em todo o mundo e que, por
toda parte, anunciava a vinda do Filho de Deus em carne, sua morte,
ressurreição e ascensão, vivendo no aguardo de seu retorno glorioso
(I,10:1-2).

É nesse ponto, exatamente ao mencionar o retorno glorioso do Senhor, que


Irineu introduz o ensino distintivo de sua teologia: a doutrina da
recapitulação, segundo a qual Cristo, como o segundo Adão, provê uma
nova cabeça para a humanidade caída, restaurando, por meio da sua
obediência e obra remidora, a comunhão do homem com Deus, perdida
desde a queda do primeiro Adão.145

Irineu alude a essa doutrina ao escrever sobre o propósito pelo qual Cristo
virá outra vez:

... para recapitular todas as coisas e ressuscitar toda carne do gênero


humano; a fim de que... execute o justo juízo de todos: enviando para o
fogo eterno os espíritos do mal, os anjos prevaricadores e apóstatas, assim
como os homens ímpios, injustos, iníquos e blasfemadores.146

É significativo que na primeira menção que Irineu faz da doutrina da


recapitulação, ele a associe às atividades escatológicas de Cristo de
ressuscitar os mortos e punir o mal. Isso significa que, no seu entender,
Cristo recapitula todas as coisas não somente ao prover em si mesmo uma
nova cabeça para humanidade, mas também ao renová-la, destruindo a
morte e trazendo eterno castigo sobre os perversos.

É assim que a realidade do inferno se conecta ao eixo central do


pensamento teológico de Irineu: sem o juízo eterno sobre os anjos
apóstatas e os homens ímpios, não há como sustentar a tese fundamental
de que a obra primordial de Cristo consiste de recapitular todas as coisas.
145 A palavra “recapitulação” é tradução do grego

condensar em um sumário, e em Efésios 1.10, onde o sentido é reunir


novamente tudo o que foi desfeito pelo pecado, restabelecendo nova
harmonia através de Cristo.
146 IRINEU DE LIÃO, Contra as heresias, I, 10:1, Coleção Patrística,
vol. 4, p. 62

Além de se ajustar ao cerne de sua teologia, a doutrina da perdição eterna


também é usada por Irineu para mostrar a gravidade do pecado da heresia,
o que ele faz destacando a severidade da pena que está reservada aos que
caem nessa forma de iniquidade. Irineu afirma de maneira incisiva que os
hereges ressuscitarão contra a sua vontade, testemunhando o poder
daquele que devolve a vida, mas não sendo incluídos entre os justos por
causa da sua incredulidade (I, 22:1). Em vez disso, eles certamente
receberão de Deus o justo pagamento pelas suas ações (I, 25:3).

No Livro I de Contra as heresias, Irineu não faz muitas alusões diretas aos
castigos futuros preparados para os maus, nem tampouco expõe com
detalhes essa doutrina, já que o propósito principal da primeira parte da
sua grande obra é descrever os falsos ensinos que se propagavam em seu
tempo. Mesmo assim, conforme visto, é evidente já na primeira parte de
Contra as heresias, que o entendimento de que existe uma punição real
para os ímpios fazia parte do cerne da mensagem anunciada pelo bispo de
Lião, dando, inclusive, sentido mais límpido à sua teologia.

ASPECTOS GERAIS DA DOUTRINA DO FUTURO CASTIGO DE DEUS

É no Livro II de Contra as Heresias que o bispo de Lião deixa transparecer


com frequência maior suas concepções acerca da vida pós-morte
acompanhada das respectivas bênçãos e punições. Nesse livro, Irineu trata
de refutar os pontos mais importantes da teoria gnóstica, tanto através do
raciocínio lógico como por meio da acusação de que seus dogmas não
passam de uma imitação rasa das fábulas de antigos comediógrafos como
Aristófanes e Homero (II, 14:1-9; 21:2). Ele também combate os falsos
mestres por meio do ensino da fé ortodoxa e, nesse aspecto, contrapondo
as doutrinas heréticas à verdade cristã, eventualmente é levado a
mencionar o ensino bíblico referente aos juízos do Senhor.

É assim que, ao falar sobre as coisas criadas por Deus, inclui entre elas um
fogo que é eterno, preparado pelo Pai para o diabo e seus anjos (II, 7:3).
Em seguida Irineu descreve esse castigo como a queda num abismo de
perdição e fala que nele estão prestes a cair os que ouvem raciocínios vãos
(II, 8:3). Insistindo também na singularidade do Deus das Escrituras,
Irineu afirma que os gnósticos, com sua linguagem aparentemente cristã,
são mais blasfemos que os próprios pagãos, pois atribuem mentira ao Deus
que se revelou ao profeta Isaías como o único Deus (Is 46.9). Ao
blasfemarem dessa forma e ao inventarem um deus acima do Criador, eles
o fizeram para a própria condenação (II, 9:2).

No Livro II, Irineu ressalta o pronunciamento de falsidades como uma das


causas do castigo de Deus. Ele evoca Mateus 12.36 dizendo que todos os
que disseram “coisas ociosas” aos homens, ensinando-lhes fábulas como
as que os gnósticos propunham, comparecerão em juízo diante do único
Pai para prestar contas das vaidades e mentiras que pronunciaram (II,
19:2). Por isso, o melhor é conhecer somente Cristo, o Filho de Deus,
crucificado pelos pecadores, do que se envolver em questões sutis e cheias
de palavras vazias e, assim, cair na negação de Deus (II, 26:1).

Irineu ensina que o dia daquele terrível juízo é chamado, à luz de Isaías
61.2, de “dia da retribuição”, porque nele o Senhor retribuirá a cada um
segundo as suas obras. O bispo de Lião entende que, de acordo com a
passagem de Isaías, esse dia seguirá o “ano aceitável do Senhor”,
expressão que corresponde ao tempo presente em que os homens são
graciosamente chamados e salvos (II, 22:2). A presente era, portanto,
precede imediatamente o julgamento que implicará na ruína dos maus,
para quem está preparado o fogo eterno, conforme o próprio Deus diz
expressamente e como todas as Escrituras demonstram (II, 28:7).

No Livro II de Contra as heresias, além de deixar transparecer de forma


esparsa os elementos que compõem sua concepção acerca do destino dos
ímpios, Irineu também se insurge diretamente contra a doutrina gnóstica
da consumação final com suas recompensas e castigos. Esse aspecto do
ensino gnóstico, segundo aponta o bispo de Lião, é contraditório,
especialmente no tocante às bases para a retribuição. Ele inicia sua crítica
expondo os desvios de seus oponentes:

Dizem que quando da consumação final, sua Mãe voltará ao Pleroma e


receberá como esposo o Salvador e que eles, que se definem pneumáticos,
depois de se terem despido das almas e tornado espíritos de pura
inteligência, serão esposas dos anjos pneumáticos.147

Irineu prossegue mostrando que, com base num tricotomismo rigoroso, os


gnósticos criam que quando os espíritos dos pneumáticos, ou seja, deles
próprios, entrassem no Pleroma, seus corpos, por serem de natureza
terrena, permaneceriam nas regiões inferiores, sendo afinal totalmente
destruídos pelo fogo que consumirá toda a matéria. Suas almas, por sua
vez, repousariam num lugar intermediário, já que, segundo eles, as almas
em si, até mesmo as que pertencem aos homens pneumáticos, são de
natureza psíquica. Ora, sob esse ponto de vista, o fator determinante do
destino das almas seria sua simples natureza e não sua fé e justiça.

É exatamente nesse ponto que Irineu vê insanável contradição, uma


abertamente que
vez que os gnósticos também afirmavam as almas dos justos entrariam no
lugar

intermediário de repouso por causa de suas obras, enquanto as almas dos


ímpios permaneceriam no fogo. Ele aponta a incoerência nos seguintes
termos:
147 IRINEU DE LIÃO, Contra as heresias, II, 29:1, Coleção Patrística,
vol. 4, p. 220.

Se todas as almas vão ao lugar de repouso por causa da sua natureza e


todas pertencem ao Intermediário pelo simples fato de que são almas,
visto que são todas da mesma natureza, a fé é supérflua, como é supérflua
a vida do Salvador. Se, porém, elas vão aí por causa da sua justiça, já não é
pelo fato de serem almas, mas por serem justas.148

Irineu prossegue dizendo que, além de contraditórias, as duas alternativas


tinham implicações com as quais os hereges teriam dificuldade em lidar.
Em primeiro lugar, se as almas são salvas pela simples natureza que têm,
então todas se salvarão e não há que se falar num destino ruim para as
almas dos ímpios! Por outro lado, se o ingresso das almas no lugar de
repouso decorre da sua justiça e não da sua natureza, então o corpo
também pode ser salvo, pois é participante e colaborador da justiça da
alma. Não haveria, pois, motivo algum para que os gnósticos reputassem o
corpo como definitivamente mau e destinado à destruição completa. Sua
natureza material não poderia servir como base para essa ideia, já que não
seria a natureza e sim a conduta que determinaria o tipo de retribuição no
além.

O bispo de Lião realiza o desfecho do seu pensamento contrapondo à visão


herética a doutrina cristã da consumação final, com especial destaque para
o ensino sobre a ressurreição física, indicando-o como corolário
necessário à realidade de que os corpos também participam da justiça
acolhida pela alma:

Que as obras de justiça se cumprem nos corpos é evidente. Portanto, ou


todas as almas entrarão no lugar do Intermediário e nunca haverá o juízo;
ou os corpos que colaboraram na justiça ocuparão eles também o lugar de
descanso junto com as almas que participaram da mesma forma nesta
justiça, visto que ela é capaz de transferir para este lugar tudo o que
participou dela, e a doutrina da ressurreição dos corpos aparecerá com
toda a sua força e verdade. Esta é a doutrina em que nós cremos: Deus
ressuscitará os nossos corpos mortais que guardaram a justiça e os tornará
incorruptíveis e imortais. Deus é maior do que a natureza e tem em sua
mão o querer, porque é bom, o poder, porque é poderoso, e o levar a
cumprimento, porque é rico e perfeito.149
148 Ibid.

A atenção dada a esse argumento de Irineu é proveitosa não somente


porque expõe a fragilidade da soteriologia gnóstica, ou simplesmente
porque se constitui numa poderosa apologia da ressurreição. As razões do
grande defensor da tradição apostólica são importantes também porque
tornam patentes um aspecto essencial do seu pensamento acerca do modo
como o homem pode se livrar das penas eternas. De fato, não resta dúvida
de que na soteriologia irineana a justiça expressa em boas obras ocupa
lugar fundamental.

Isso é perceptível também na censura que faz aos carpocratianos no


mesmo Livro II de Contra as heresias. Conforme acima exposto, essa
corrente gnóstica cria que, para livrar sua alma mais depressa dos
sucessivos retornos a diferentes corpos, os homens deveriam praticar todas
as ações possíveis, inclusive as más.

Insurgindo-se contra essa heresia, Irineu lembra que o Senhor Jesus Cristo
ensinou a evitar não somente as práticas do mal, mas também o desejo
delas e que, segundo a doutrina do Mestre, até mesmo chamar alguém de
tolo sujeita o ofensor ao fogo do inferno. Ele acrescenta que os justos
brilharão como sol no reino do Pai, mas os injustos que, conforme explica,
são aqueles que não praticam obras de justiça, serão enviados para o fogo
eterno onde o seu verme nunca morrerá e o fogo jamais se apagará
(II,32:1).

Irineu diz ainda que os carpocratianos, ensinando que é preciso praticar


todas as obras possíveis nesta vida a fim de serem salvos do ciclo da
matéria, se empenhavam, contudo, em praticar somente as más, jamais
sendo vistos a se esforçar na realização de atos de virtude. Assim, sua
própria doutrina os condenava, posto que se entregavam somente a
prazeres, luxúria e vícios torpes, faltando-lhes as boas ações.

Ele conclui a partir daí que a lógica falsa do ensino carpocratiano acabava
ironicamente por apontar para a verdade de que seus proponentes estavam
perdidos. De fato, segundo Irineu, uma vez que lhes faltavam as práticas
da justiça, iriam sem dúvida para o castigo do fogo (II, 32:2). Tem-se
assim, novamente, um vislumbre do lugar que as boas obras ocupam na
soteriologia do bispo de Lião.

A heresia de Carpócrates também dá ensejo a que Irineu apresente seus


argumentos contra a doutrina da transmigração das almas, tão comum na
mentalidade helenista. Também nesse embate, Irineu torna patentes os
contornos do seu pensamento sobre o destino dos ímpios.
O ponto em que Irineu concentra seus ataques contra essa doutrina é a
ausência de lembrança das vidas passadas (II, 33:1). O bispo de Lião faz as
seguintes indagações: Se as almas já estiveram em outros corpos, por que
não se lembram de suas experiências anteriores? E se, como Carpócrates
ensinava, as almas retornam precisamente com o fim de praticar os atos
que não praticaram na outra existência, que sentido há no esquecimento do
que já fizeram? Não seria de se esperar que se lembrassem de tudo, a fim
de que não repetissem as ações já feitas em vidas anteriores? Ademais,
quando o homem adormece e sonha, é sabido que a alma é capaz de se
lembrar do que viu por alguns instantes, em imaginação, durante o sono.
Por que razão, então, ela se esqueceria do que viu por longo tempo em
vidas passadas, e não em imaginação, mas na experiência real?

O bispo de Lião afirma que Platão foi o primeiro a adotar essa doutrina.
Ele recorda que o filósofo ateniense tentou explicar a falta de memória das
almas dizendo que há um demônio que preside a entrada delas nesta vida e
que esse demônio as faz beber a taça do esquecimento antes que ingressem
nos corpos. Irineu zomba dessa explicação:

Se beber a taça do esquecimento pode tirar a lembrança de tudo o que foi


feito, como é que tu, Platão, sabes isso, visto que a tua alma está
presentemente num corpo e que, antes de entrar nele o demônio lhe fez
beber a taça do esquecimento? Se lembras o demônio, a bebida e a entrada,
deves também lembrar tudo o resto; se o ignoras é porque nem o demônio
é verdadeiro, nem tudo o resto desta exótica teoria da bebida do
esquecimento.150

Irineu conclui dizendo que, na verdade, as almas nunca estiveram em


outros corpos, mas que os seres humanos as recebem por ação de Deus,
assim como recebem o corpo (II, 33:5). A partir daí, o bispo de Lião
descreve o destino do homem integral afirmando que todos os inscritos na
vida ressurgirão com seus corpos. Da mesma forma, os que se afastaram
da bondade divina também se levantarão para receber, em corpo e alma, o
castigo que lhes é devido. Aliás, a partir da parábola do rico e Lázaro,
Irineu demonstra não só que as almas se recordam de suas ações quando
deixam os corpos, mas também que cada uma delas recebe o que merece
mesmo antes do dia do juízo (II, 34:1).
As últimas páginas do Livro II de Contra as heresias trazem afirmações
que dão margem à hipótese de Irineu ser um expoente do
aniquilacionismo. O leitor começa a ter essa impressão quando se depara
com a afirmação de que, como todas as coisas criadas, as almas e os
espíritos perduram pelo tempo que Deus quer. Nesse aspecto Irineu
compara a almas aos astros do céu que também foram criados e duram
muito tempo, estando sua existência sujeita à vontade de Deus (34:2-3).

Evidentemente, essas afirmações são por demais reticentes e não é


possível considerá-las manifestações expressas da crença na cessação da
existência do indivíduo. Porém, Irineu prossegue e o que diz parece se
alinhar substancialmente com o ensino aniquilacionista posterior,
conforme apresentado por alguns proponentes atuais da imortalidade
condicional:

O Pai de todas as coisas concede a duração pelos séculos dos séculos aos
que são salvos, porque não é nem de nós nem de nossa natureza que vem a
vida, mas ela é concedida segundo a graça de Deus. Portanto, quem
guardar o dom da vida dando graças àquele que lha deu receberá também a
longevidade pelos séculos dos séculos, mas quem a recusar com ingratidão
para com o Criador por tê-lo criado, não reconhecendo aquele que lha deu,
priva-se por sua conta da duração pelos séculos dos séculos. Por isso o
Senhor dizia aos que lhe são ingratos: “Se não fostes fiéis no pouco, quem
lhes confiará o muito?”, deixando entender que todos os que são ingratos
na curta vida temporal com aquele que lha concedeu, não merecem receber
dele a longevidade nos séculos dos séculos.151

Conforme destaca Schaff, Irineu é visto como um teólogo inconsistente


nesse ponto de sua doutrina, oscilando entre a visão ortodoxa e o modelo
aniquilacionista.152 Seja como for, é ponto pacífico que o bispo de Lião,
como os aniquilacionistas atuais, nega a imortalidade intrínseca da alma,
reconhecendo que sua vida depende de Deus. É também ponto pacífico,
conforme visto acima, que ele considera certa a realidade do fogo eterno
como punição para os ímpios. Finalmente, é inegável que no trecho
supracitado Irineu recusa a noção de longevidade dada aos ímpios pelos
séculos dos séculos.
Alguém poderia propor que a única maneira de harmonizar esses conceitos
seja dizer que para o bispo de Lião há uma punição preparada para os
maus; que estes viverão sob essa punição pelo tempo que o Senhor
determinar, havendo um momento estabelecido por Deus em que,
finalmente, deixarão de existir; e que o efeito desse castigo, ou seja, a total
destruição, bem como o seu instrumento, isto é, o fogo, durarão
eternamente.
151 Ibid., II, 34:3, p. 240.
152 SCHAFF, History of the christian church, vol 2, p. 609.

Outros trechos de Contra as heresias, porém, onde a perenidade do


sofrimento dos maus é expressamente ensinada (e.g. II, 32:1), não
permitem que essa síntese seja acolhida pacificamente, prevalecendo
como mais adequado o parecer de Schaff, segundo o qual existe notável
oscilação por parte de Irineu nesse campo da doutrina cristã.

A SALVAÇÃO DE ADÃO DAS PENAS INFERNAIS

No terceiro livro de Contra as heresias, Irineu manifesta o propósito de


apresentar provas para os seus argumentos extraídas das Sagradas
Escrituras (III, Prólogo). É nesse livro também que Irineu destaca a
tradição como uma poderosa arma contra os hereges, uma vez que liga os
ensinos da igreja diretamente à herança doutrinária dos apóstolos e às
lições do próprio Cristo (III, 1-5).

No tocante à perdição eterna, o livro III diz, logo no início, que todos os
hereges condenam a si mesmos, pois se opõem à própria salvação quando
resistem tanto ao Filho quanto ao Pai (III, 1:2). O fogo do inferno foi
preparado por Deus para o diabo e seus anjos (III, 3:3), mas o Salvador,
quando vier como Juiz, julgará os deformadores da verdade e os que
desprezam seu Pai e sua vinda, enviando-os para esse mesmo fogo eterno
(III, 4:2). Aliás, ele já veio uma vez e manifestou-se para que aqueles que
deviam ser condenados conhecessem o seu Juiz (III, 9:1).

Assim, é certo que os incrédulos deste século não terão parte na herança da
incorruptibilidade no século futuro (III, 7:1-2) e serão confundidos por
Cristo no momento da retribuição (III, 18:5). A razão pela qual serão
castigados é a recusa do dom da adoção, o desprezo pela encarnação do
Verbo de Deus, a ingratidão pela obra do Filho e a perseverança na prática
do mal (III, 19:1; 23:3).

Esse castigo de Deus não detrata sua bondade nem sua sabedoria. Na
verdade, sua aplicação manifesta a justiça do Senhor que condena
exatamente quem deve ser condenado. Sequer pode ser dito que tal
condenação é cruel, pois é precedida e prevenida pela bondade (III, 25:3).

O Livro III de Contra as heresias conclusão discutindo se Adão, em


virtude condenado à perdição eterna (III, 23). Os hereges, seguindo o
apóstata Taciano, negavam que Adão tivesse sido redimido (III, 23:8).
Irineu, porém, tem como inconcebível a ideia de que o Senhor que veio
buscar a ovelha perdida e recapitular a humanidade, deixasse de fora desse
propósito a obra que ele plasmou com suas próprias mãos. Ademais, para
o bispo de Lião, se o que Deus criou para a vida fosse perdido sem
esperança de recuperação, a vitória da serpente seria completa sobre a
vontade de Deus (III, 23:1).
aproxima-se da sua

da sua queda, foi

Irineu prossegue argumentando que não fazia sentido que o primeiro


homem a ser vencido pelo inimigo e colocado sob escravidão tivesse seus
filhos libertos dessa mesma escravidão enquanto ele próprio permanecesse
sem livramento (III, 23:2).

Além disso, as Escrituras, no entender de Irineu, mostram que Adão se


arrependeu, uma vez que, tomado pelo temor se escondeu, julgando-se
indigno de estar na presença de Deus. Seu arrependimento também foi
demonstrado quando escolheu folhas de figueira para se cobrir, pois havia
muitas outras espécies de folhas muito menos incômodas para o seu corpo.
O fato de ter escolhido uma que arranhava sua pele indica que desejava
reprimir o ímpeto da carne agora inclinada à incontinência e demonstra
que se reconhecia merecedor daquilo que trazia insatisfação e incômodo
(III, 23:5).
Irineu conclui, assim, que os que negam a salvação de Adão são excluídos
da vida, pois não aceitam que a ovelha perdida foi encontrada, fazem-se
hereges e apóstatas e se revelam advogados da serpente e da morte (III,
23:8).

A LIBERDADE HUMANA COMO FUNDAMENTO PARA A


RESPONSABILIDADE DOS ÍMPIOS

Em Contra as heresias, o Livro IV é o mais extenso. Nesse livro, o bispo


de Lião prova a unidade dos dois testamentos, com o fim de desmantelar a
doutrina herética, proposta especialmente por Marcião, que fazia distinção
entre o Deus Criador e o Pai de Jesus Cristo. Para tanto, Irineu alude às
profecias do Velho Testamento que se cumpriram no Novo e ao ensino de
Jesus que sempre identificou o Pai ao Deus revelado na lei e nos profetas.

A primeira alusão ao inferno constante do Livro IV encontra-se em 2:4.


Nesse trecho, Irineu diz que a parábola do rico e Lázaro foi contada por
Cristo para ensinar que ninguém deve passar a vida nos deleites seculares,
esquecendo-se de Deus, sob pena de cair nos mesmos castigos que
sobrevieram ao rico.

Irineu também fala do fim do mundo, ocasião em que o trigo será


recolhido em celeiros e a palha lançada ao fogo. Ele recorda a profecia de
Malaquias 4.1, segundo a qual o dia do Senhor será como uma fornalha
acesa e os pecadores como restolho. Irineu ensina que o batismo com fogo,
mencionado por João Batista (Mt 3.11-12) é o castigo que o Senhor Jesus,
no dia mencionado por Malaquias, aplicará aos praticantes da iniquidade.

Para Irineu, uma vez que o homem é livre para decidir como viver, ele e
somente ele é o responsável por sua própria e justa condenação:

Não é, portanto, diverso aquele que cria a palha daquele que cria o trigo,
mas único e idêntico, e será ele o juiz, isto é, o que os separará. Contudo, o
trigo e a palha são seres sem alma nem inteligência e o que são é por sua
própria natureza que o são; o homem, porém, é racional e por isso
semelhante a Deus; criado livre e senhor dos seus atos é para si mesmo a
causa de ser ora palha ora trigo. Por isso será justamente condenado,
porque, racional que é, abandonou a reta razão e, vivendo como os
irracionais, contrariou a justiça de Deus...153

Ademais, o Pai manifestou o Filho a todos a fim de acolher no refrigério


eterno os que cressem nele. Assim, será com plena justiça que ele fechará
nas trevas todos os que livremente escolheram a incredulidade, posto que
viram da mesma forma que os cristão viram, mas não creram como eles
(IV, 6:5).

Vê-se que, para Irineu, a universalidade da revelação de Deus e a liberdade


humana são fatores cruciais para que a condenação do incrédulo seja justa.
Ele entende que Cristo se manifestou a todos na criação antes mesmo de
encarnar-se e que Deus sempre respeitou o livre-arbítrio do homem,
limitando-se a exortá-lo ao bem. Esses dois fatos se constituem no
fundamento de um castigo válido e lícito (IV, 6:7; 15:2).

No capítulo 37 do Livro IV de Contra as heresias, Irineu estende sua


argumentação que aponta a liberdade humana como a base para a justiça
do castigo dos ímpios. Ali ele explica que Deus fez o homem livre desde o
início, de modo que ele é um ser capaz de fazer a vontade do seu Criador
sem ser coagido. Além disso, Deus não faz violência a ninguém, mas
concede às pessoas o poder de escolha para que, ao optar pelo bem, o
homem receba com justiça o bem e, ao desobedecer voluntariamente,
também com justiça receba o castigo (IV, 37:1).
153 Ibid., IV, 4:3, p. 375-376.

Irineu prossegue rejeitando qualquer conexão, seja do bem ou do mal, com


a natureza humana. Ele argumenta que, se alguns fossem bons e outros
maus por natureza, os justos não seriam louváveis, nem os ímpios
condenáveis, pois teriam sido feitos assim. O fato, conforme conclui, é
que todos são da mesma natureza, estando no homem o poder de possuir e
operar o que é reto, bem como rejeitar e negligenciar o conselho do Pai.
Esse poder da vontade humana, segundo entende, dá sentido a todas as
admoestações bíblicas dirigidas ao homem, instando com ele para que
escolha o bem e não o mal (IV, 37:2-3).
Na teologia do bispo de Lião, a liberdade de que o homem desfruta não se
limita às ações, mas também à fé. O ser humano, desse modo, tem poder
para, no uso de seu livre-arbítrio, crer no Filho e se livrar da ira vindoura,
ou manter-se incrédulo e ficar fora das suas asas de proteção (IV, 37:4-5).

Todos, assim, são capazes não só de praticar a justiça, mas também de


crer, bastando que exercitem sua vontade nessa direção. Ademais, o
próprio Deus estimula e exorta o homem a assim proceder, pelo que, se há
desobediência e incredulidade em alguém, a causa está em quem se rebela
e não em quem chama e, por isso, o castigo que vem sobre aquele é justo
(IV, 39:3).

De fato, o ingrato que despreza voluntariamente o Criador que dele se


aproximou e lhe ensinou, se rebela também contra o Verbo de Deus e, por
isso, deve ser punido. (IV, 11:2). O castigo é a ruína definitiva, a exclusão
da vida, a escuridão, a privação de todos os bens que estão em Deus, o
fogo eterno preparado também para o diabo e seus anjos (IV, 11:4; 39:4;
40:1-2).

Ao se apresentar como fogo nos dias de Moisés, Deus se referia a esse


castigo, posto que essas manifestações apontavam para as chamas que
sobreviriam da parte de Deus aos transgressores da sua lei (IV, 20:8). A
visão de João em Patmos, em que Cristo se manifesta com os pés
semelhantes ao cobre abrasado (Ap 1.12-16) também apontam, segundo
Irineu, para o grande incêndio que acontecerá no fim da história (IV,
20:11).

Alvos especiais do fogo do inferno são aqueles que se afastam da


“sucessão principal”, ou seja, os hereges que se separam da tradição
doutrinária que, em linha ininterrupta, foi transmitida à igreja verdadeira
desde os tempos dos apóstolos (IV, 26:2). Irineu diz que os que se afastam
da unidade mantida na igreja serão afinal interrogados por Cristo acerca
das suas invenções (IV, 33:3) e seu destino será o mesmo dos inimigos de
Deus mencionados nas Sagradas Escrituras:

Todos eles se afastaram da verdade e os hereges que oferecem sobre o altar


de Deus um fogo estranho, isto é, doutrinas estranhas, serão queimados
pelo fogo celeste como Nadab e Abiú. Os que se insurgem contra a verdade
e excitam os outros contra a Igreja de Deus, tragados pelos abismos da
terra, terão sua morada nos infernos como Coré, Datã e Abiram e todos os
que estavam com eles. Os que rompem e dividem a unidade da Igreja
receberão de Deus o mesmo castigo de Jeroboão.154

Também os injustos, idólatras, fornicadores, efeminados, homossexuais,


avarentos e maldizentes serão objeto da ira de Deus que se vingará deles,
dando-lhes a pena de perdição num fogo que é eterno, pois o Deus que
absolve para sempre também condena para sempre (IV, 27:4; 28:1-3).

O dia do juízo selará essa condenação que terá como base o fato de terem
escutado a voz do Filho de Deus, mas terem se mantido deliberadamente
rebeldes, não se sujeitando á sua sabedoria (IV, 27:1,4). Esse dia será
inaugurado quando o Senhor vier pela segunda vez, no final dos tempos,
trazendo maior terror sobre a terra do que aquele que trouxe sobre Sodoma
e Gomorra, matando os ímpios com o sopro dos seus lábios e separando o
trigo da palha que será queimada em fogo inextinguível (IV, 33:1,11; 36:3-
4).
154 Ibid., IV, 26:2, p. 450.

O Livro IV de Contra as heresias termina falando precisamente do dia em


que o Senhor separará as ovelhas dos cabritos, enviando para a fornalha
acesa os que deliberadamente fugiram da sua luz e recebendo os que,
livres e donos dos seus atos, decidiram submeter-se a Deus, fugindo assim
do seu justo juízo (IV, 39-41).

Assim, do começo ao fim, o Livro IV de Contra as heresias fala do castigo


dos perversos, realçando que é o mau exercício da livre vontade a causa
principal da sua perdição, bem como o fator que justifica os atos punitivos
de Deus.

A HABITAÇÃO DO ESPÍRITO COMO REQUISITO ESSENCIAL PARA


A POSSE DO REINO FUTURO

O último volume que compõe Contra as heresias, ou seja, o Livro V,


também tem como tema dominante a identidade do Deus Criador com o
Pai de Jesus Cristo. Porém, esse tomo se distingue por sua forte apologia
da doutrina da ressurreição, claramente contrária às concepções gnósticas.

Irineu argumenta que a ressurreição do corpo é mais crível do que a sua


criação, pois é mais fácil reconstituir o que já existe do que, a partir do
nada, fazer surgir ossos, veias, nervos e os demais elementos que
compõem o organismo humano (V, 3:2).

Assim, segundo ele, não se deve duvidar que Deus fará a carne morta
participar novamente da vida. Isso, porém, só ocorrerá ao tempo da
consumação final. Antes disso, as almas dos justos são levadas ao Paraíso,
exatamente o mesmo lugar de onde foi expulso Adão depois de ter pecado.
Ali, elas aguardam a redenção de seus corpos (V, 5:1). Irineu fornece
maiores detalhes sobre isso no fim do Livro V:

Tendo o Senhor ido entre as sombras da morte, onde estavam as almas dos
mortos, e ressuscitando depois corporalmente, e depois de ressuscitado,
sendo levado ao céu, indicou que o mesmo aconteceria com seus
discípulos, pois era para eles que o Senhor fez tudo isso: as almas deles
irão a um lugar invisível estabelecido por Deus e aí ficarão até a
ressurreição, è espera dela; depois reassumirão seus corpos numa
ressurreição perfeita, isto é, nos seus corpos, da mesma forma que o
Senhor ressuscitou, e irão à presença de Deus.155

Irineu destaca que a carne e o sangue, conforme ensina Paulo, não podem
herdar o Reino de Deus (1Co 15.50). Por isso, somente os corpos dos que
receberam o Espírito Santo e o conservaram pela fé e pela vida casta
poderão, na ressurreição, tomar posse da herança divina (V,9:1-4). Estes,
como “árvores humanas”, ao receberem o enxerto do Espírito não
perderam sua natureza de carne, mas mudaram a qualidade dos frutos que
produziam, isto é, as suas obras, podendo agora ser chamados de homens
espirituais (V, 10:2).

Quanto aos demais, os que rejeitaram o Espírito de Deus e optaram por ser
somente “carne e sangue”, estes são semelhantes à oliveira silvestre. Não
tendo recebido o enxerto do Espírito, não podem produzir o fruto bom e,
portanto, não têm qualquer utilidade para o proprietário. O destino desses
homens é o mesmo da árvore infrutífera: eles serão cortados e lançados no
fogo (V, 10:2).

Irineu enfatiza, assim, no Livro V, a necessidade da habitação do Espírito


de Deus no homem para que ele frutifique e não prove o juízo devido aos
que são carnais. Para o mestre de Lião, sem receber o Espírito Santo
ninguém pode herdar o Reino dos céus (V, 11:1). A carne privada do
Espírito só produz obras más e seu fim é a perdição. Para livrar-se disso,
portanto, é necessário que, pela fé, o homem receba o Espírito em seus
membros, conservando-o pelo zelo da vida santa (V, 9:3). O bispo explica
que, dessa forma, nos mesmos membros com os quais o ser humano se
perdeu, praticando as obras da corrupção, ele agora é vivificado,
praticando as obras do Espírito (V, 11:2).

O mestre de Lião vê nisso tudo a conclusão de um processo que eleva o


homem a Deus e que foi iniciado no Éden. Num encadeamento de atos, o
Criador deu ao homem, por meio do primeiro Adão, um corpo modelado
da terra. A seguir, concedeu-lhe uma alma. Agora, concluindo sua obra,
por meio do segundo Adão que é Cristo, lhe dá o Espírito, pelo qual pode
viver eternamente com Deus, cumprindo o propósito pelo qual foi criado
(V, 12:2).

Os homens privados do Espírito também se levantarão da sepultura


quando ouvirem a voz do Filho do Homem, mas sua ressurreição será para
condenação (V, 13:1). Em sua vinda visível, o Verbo lhes aplicará a
sentença que merecem, fazendo o fogo arder sobre eles (V, 18:3), pois
assim como a salvação é do homem todo, isto é, corpo e alma, o castigo
também atingirá o homem integral (V, 20:1).

Entre as pessoas que não têm o Espírito estão os blasfemadores como


Marcião e Valentim. À espera deles está o juízo de Deus que preparou o
fogo eterno para toda a apostasia. Aliás, a causa pela qual blasfemam tão
ousadamente e de forma jamais vista anteriormente está no fato de
Satanás, após a vinda do Senhor, ter tomado ciência da magnitude da sua
condenação. Irineu explica que, pelas palavras de Cristo e dos apóstolos, o
diabo ficou sabendo do fogo eterno preparado para ele e para todos os que
perseveram na apostasia. É por isso que, por meio dos mestres gnósticos,
ele agora blasfema de forma tão atrevida contra o Deus verdadeiro, rejeita
os seus juízos e inventa um Pai diferente que aprova os desvios dos
homens (V, 26:2).156

O caráter de Deus é a base para o juízo a que Satanás e seus servos estão
destinados. Sendo justo e santo, o verdadeiro Pai se importa com o que os
homens fazem, aprovando-os ou reprovando-os, aplicando também a eles,
em seguida, o que é segundo os méritos de cada um. Repousa, pois, sobre a
natureza santa do Senhor a causa do advento futuro de Cristo que
reaparecerá como juiz. Ele ordenará que o joio seja amarrado em feixes e
queimado no fogo inextinguível, separará os cabritos das ovelhas e os
enviará para o fogo eterno, trazendo, assim, ruína para os que
espontaneamente o negaram quando havia neles liberdade e condições
para crer (V, 27:1).

A causa do castigo, Irineu refere mais uma vez, está no homem. É ele que,
por sua própria vontade, se afasta de Deus. E a separação de Deus produz
morte, trevas e privação de seus bens. Sendo eterno o desfrute dos bens de
Deus, também eterna é a privação deles. Por isso o Pai não pode ofertar o
seu Reino àqueles que se privaram de tudo o mais que ele lhes ofertou (V,
27:2; 28:1).

A ênfase que o Livro V de Contra as heresias dá à doutrina da


ressurreição, com os galardões e castigos que a seguirão, conduzem o
autor a expor com curiosos detalhes suas concepções escatológicas. Ele
acredita que o fim da presente era acontecerá em seis mil anos contados a
partir da criação do mundo:

Deus concluiu no sexto dia toda a obra que fizera e no sétimo dia
descansou... Esta é a descrição do passado, tal como aconteceu, e ao
mesmo tempo uma profecia para o futuro: com efeito, se “um dia do
Senhor é como mil anos”, se a criação foi acabada em seis dias, está claro
que a consumação das coisas acontecerá no sexto milênio.157
156Irineu atribui esse ensino a Justino, mas não é possível encontrá-lo nas
obras desse autor acessíveis na atualidade.
Antes, porém, aparecerá a besta, realizando em si a recapitulação de toda a
heresia e mal perpetrados durante os seis mil anos de história humana (V,
28:2). É por isso que seu número é seiscentos e sessenta e seis: o número
seiscentos demonstra que ela recapitulará a apostasia que existiu nos
seiscentos anos da vida de Noé, antes do dilúvio; já o número sessenta e
seis evoca a estátua de Nabucodonozor que tinha sessenta côvados de
altura e seis de largura, por causa da qual os justos foram lançados na
fornalha, prefigurando o que aconteceria com os santos no final dos
tempos.

Dessa forma, o número da besta, conforme entende Irineu, reúne a heresia


desde antes do dilúvio até o fim da história. Segundo ele, o Anticristo fará
reviver toda a apostasia e, por isso, a terra será novamente alvo do dilúvio.
Desta vez, porém, o dilúvio será de fogo (V, 29:1-2; 30:1).

O bispo de Lião propõe que, depois que o Anticristo tiver reinado três anos
e meio e tiver se assentado no templo de Jerusalém, o Senhor Jesus voltará
e o lançará no lago de fogo com todos os seus seguidores (V, 30:4). Então
os ressuscitados, receberão a herança do Reino justos, agora

numa criação renovada (V, 33:3). Alguns dentre os santos, porém, aqueles
que o Senhor julgar dignos, uma vez ressuscitados serão levados
diretamente para o céu (V, 31:2).

O Reino que então será inaugurado será terreno e literal. Nele, conforme
testemunham os profetas do Antigo Testamento, e conforme o apóstolo
João testificava ter ouvido da própria boca do Senhor, a terra produzirá
abundantemente toda espécie de alimentos, os animais viverão em
harmonia entre si e se submeterão completamente aos homens (V, 33:3-4).
Trata-se, assim, do sétimo milênio, correspondente ao sétimo dia que foi
santificado quando Deus descansou da obra da criação (V, 33:2; 36:3).

Irineu é enfático em seu milenarismo e insiste na necessidade do


estabelecimento desse Reino, ligando-o às promessas de Deus a Abraão:

A propriedade da terra que Deus lhe tinha prometido e que não recebeu
durante toda a sua estada aqui na terra, é necessário que a receba com a
sua posteridade, isto é, os que temem a Deus e crêem nele, na ressurreição
dos justos... Ora, Deus prometeu a herança da terra a Abraão e sua
posteridade; mas, se nem Abraão nem a sua posteridade, que são os
justificados pela fé, recebem agora a herança na terra, eles a receberão na
ressurreição dos justos, porque Deus é verídico e estável em todas as
coisas. É por isso que o Senhor dizia: “Bem-aventurados os mansos porque
herdarão a terra”.158

O sétimo milênio, conforme expõe Irineu, será o prenúncio da


incorruptibilidade e nele os justos se acostumarão paulatinamente a
possuir Deus, crescendo, amadurecendo e sendo capacitados aos poucos a
participar da sua glória (V, 32:1; 35:1-2; 36:3). Tendo terminado esse
tempo prometido, o homem, pronto para a incorruptibilidade, receberá um
novo céu e uma nova terra, onde habitará nutrindo um relacionamento
jamais mantido antes com Deus. Nessa nova realidade, porém, existirão
diferentes moradas: uns serão elevados aos céus, outros permanecerão no
Paraíso e outros ainda morarão na Nova Jerusalém, tudo de conformidade
com os méritos de cada um (V, 36:1-2).

Depois do sétimo milênio será realizado também o juízo de todos os


homens. Então, os mortos comparecerão diante de um grande trono
branco, pois a morte e o inferno restituirão os que agora estão neles. Após
o julgamento, aqueles que não tiverem seus nomes escritos no livro da
vida serão lançados no lago de fogo. Irineu insiste que nada disso pode ser
interpretado alegoricamente, mas tudo deve ser crido como certo e real (V,
32:1; 35:2).159 Assim, ele conclui Contra as heresias, sua obra mais
notável, levando o leitor a refletir sobre a realidade das penas e da
felicidade eternas, após realçar que só habitarão com Deus no mundo
porvir aqueles em quem seu Espírito habitou no mundo presente.
158Ibid., V, 32:2, p. 604-605.
159Ainda que defenda um literalismo radical na interpretação de textos
escatológicos, Irineu, em sua Demonstração da pregação apostólica,
apresenta uma exegese mista quando comenta a harmonia que haverá entre
os

A FÉ NO DEUS TRINO E A REMOÇÃO DO JULGAMENTO


Em algum momento após a conclusão de Contra as heresias, Irineu
compôs a breve Demonstração da pregação apostólica, escrita a pedido de
um cristão chamado Marciano, personagem desconhecido, que ansiava por
entender melhor os pontos centrais da fé (Demonstração 1). Esse opúsculo
é, na verdade, um manual que apresenta de modo sintético as doutrinas
essenciais do cristianismo e resume num tom menos apaixonado as
verdades expostas amplamente nos cinco livros de Contra as heresias,
produzidos pouco tempo antes (Demonstração 99).

A Demonstração da pregação apostólica era conhecida dos historiadores


somente através do testemunho de Eusébio (História eclesiástica V: 26).
Porém, a obra desaparecida foi encontrada em 1904, numa versão armênia.
Em 1907 foi feita uma tradução para o alemão na qual a Demonstração foi
dividida em cem pequenos capítulos. Em 1920, J. Armitage Robinson
traduziu o texto armênio para o inglês, mantendo as divisões dos capítulos.
A presente análise recorreu a essa tradução inglesa.

Logo nas primeiras linhas da Demonstração, Irineu realça a exclusividade


do cristianismo, apontando-o como o único sistema de doutrinas capaz de
conduzir o homem à vida eterna no reino dos céus. Outros caminhos levam
à morte, separando o homem de

diferentes animais no reino vindouro de Cristo. Ele explica no capítulo 61


da Demonstração que essa profecia é também um símbolo da paz que
agora permeia o convívio dos homens que, outrora inimigos por razões de
raça e outras disposições, hoje estão unidos na igreja sob um mesmo
Nome.

Deus (1).

O ensino que leva à vida, porém, não é meramente teórico. O bispo de


Lião afirma que o homem é composto de alma e corpo e que suas
necessidades devem ser providas nesses dois campos. A partir daí ele
explica que de nada valeria conhecer a verdade na alma e ter o corpo
manchado pela prática do mal. Da mesma forma, seria inútil manter o
corpo puro se a verdade não habitar na alma. É, portanto, somente pela
união tanto da alma como do corpo ao bem que o homem pode ver Deus
face a face (2). A vida sem fim de que desfruta o homem nessa condição
recebe seu selo no batismo, ocasião em que o homem renasce para Deus,
passando a ser filho de um Pai eterno (3).

O batismo, contudo, não pode ser ministrado sem que o aspirante


reconheça três pontos fundamentais: a existência de um só Deus, o Pai
invisível, Criador de tudo; a encarnação do Verbo de Deus na pessoa de
Jesus Cristo, que recapitula em si todas as coisas, restaurando a comunhão
entre o homem e Deus; e a obra do Espírito Santo que conduz os justos
pelo caminho da retidão e que nos últimos tempos foi derramado sobre a
humanidade em toda a terra, renovando o homem diante de Deus (5-6).

Irineu afirma taxativamente que nenhum homem que rejeite esse Deus
trino poderá escapar do seu julgamento. Nem mesmo os anjos que se
afastaram dele se livrarão naquele dia, pois é possível evitar a grandeza de
sua bondade, mas não se pode fugir da força do seu poder (9).

Tendo fixado os pontos principais da fé ortodoxa, o bispo

Tendo fixado os pontos principais da fé ortodoxa, o bispo 11), passando


pela Queda do homem (12-17), pelo dilúvio (18-19), pela formação da
linhagem escolhida, desde Sem até Jacó (20-25), e pelos eventos do Êxodo
(26-29).

É somente quando trata do significado das mensagens proféticas que


Irineu menciona novamente a realidade da perdição eterna. Conectando as
profecias do Velho Testamento a Cristo, ele explica que o Filho de Deus
recapitulou a humanidade perdida em Adão, restabelecendo a paz do
homem com Deus (30-37). Como resultado, ele livra de ir para o inferno
todos os que crêem nele (39) e os ressuscitará dentre os mortos, dando-
lhes, em seguida, uma herança em seu reino, desde que permaneçam em
santidade e em paciente perseverança (41-42). Os demais, inclusive os reis
que perseguem o nome do Senhor e os anjos e apóstatas que desprezaram a
verdade, serão julgados sem esperança de perdão (48, 56, 85).

Nesse julgamento, os que viveram antes do primeiro advento de Cristo e


morreram sem conhecê-lo terão mais chance de salvação do que aqueles
que o rejeitaram após a encarnação:
... pois eles dirão no julgamento: “Quão melhor seria se tivéssemos sido
lançados ao fogo antes do nascimento do Filho de Deus, do que agora,
depois de ele ter nascido, não ter crido nele.” Por que para aqueles que
morreram antes de Cristo ter aparecido, existe esperança de que, no
julgamento da ressurreição, obtenham salvação, desde que tenham sido
pessoas que temeram a Deus, morreram na justiça e tiveram nelas o
Espírito de Deus, como é o caso dos profetas, dos patriarcas e dos homens
justos. Mas para aqueles que, depois da manifestação de Cristo, não
creram nele, haverá uma fúria sem perdão no julgamento.160

Irineu entende que em Isaías 53.8, na parte que diz “por juízo opressor foi
arrebatado” (ARA), o profeta fala da remoção desse julgamento e não da
remoção do Servo sofredor. Segundo ele, essa “remoção” terá aspectos
diferentes, redundando em salvação para alguns e em tormentos para
outros.
160 IRINEU DE LIÃO. The demonstration of apostolic preaching.
Capítulo 56. Traduzido para o inglês por J. Armitage Robinson. Londres:
Society for Promoting Christian Knowledge, 1920. p. 119. Minha
tradução.

O bispo de Lião prossegue explicando que haverá a remoção do


julgamento para a pessoa e a remoção do julgamento da pessoa. Aqueles
para quem o julgamento será removido serão lançados na perdição; mas
aqueles de quem o julgamento será removido, serão salvos. Os primeiros,
por causa da incredulidade, removem o julgamento atraindo-o para si e,
assim, serão destruídos em meio aos tormentos. Já os que pertencem ao
segundo grupo, tendo crido em Cristo, removem o julgamento de sobre si
e se livrarão das chamas que consumirão os descrentes no fim do mundo
(69).

Desse modo, na síntese de seu pensamento consubstanciada na


Demonstração da pregação apostólica, Irineu delineia os contornos
nítidos do castigo reservado aos ímpios, realçando especialmente o lado
escatológico do juízo divino e fornecendo uma concepção de futuro em
que se mesclam desespero e glória.
DADOS COMPLEMENTARES E AVALIAÇÃO

Nos elementos principais que a compõem, a teologia de Irineu se


manifesta em seus eminentemente apologéticos. Sua escritos com
propósitos

teontologia, por exemplo, apresenta-se como uma resposta sólida aos


intrincados modelos gnósticos que faziam distinção entre o Pai e o
Criador, este sujeito às mais vis paixões. A tais conceitos, o bispo de Lião
contrapôs a figura de um Deus único, supremo Criador, com poder infinito
e singular (Contra as heresias I, 9:2; II, 1:1-5; III, 1:2; IV, 1-10, 19;
Demonstração 5). Sendo autor de tudo o que existe, ele está acima dos
sentimentos e paixões humanos, é simples e sem diversidade de membros
e nele todos os atributos subsistem em grau infinito (Contra as heresias II,
13:3).

Esse Deus impassível e tão distinto das criaturas pode ser conhecido por
todos porque a razão inerente à natureza humana testemunha a existência
de um único Criador. A todos também foi dada uma fina intuição da sua
majestade e poder (Contra as heresias II, 6:1).

O Deus cujo conhecimento é assim acessível não é distinto do Deus de


Jesus Cristo. Antes, é o próprio Pai por ele pregado, o qual se manifesta a
todos os que ouvem a revelação viabilizada pelo Filho (Contra as heresias
II, 30:9; IV, 6:3-5; 20; Demonstração 45-46).

Em toda a sua obra, Irineu insiste que os que negam essas verdades são
contados entre os piores blasfemadores e, por isso, jamais poderão escapar
do fogo preparado para os inimigos de Deus. Aliás, conforme visto acima,
é forte a ênfase presente nos escritos de Irineu sobre o castigo reservado
aos hereges que negam o Deus das Escrituras.

A cristologia de Irineu também veio à luz como uma reação ao ensino


herético e, a partir dela, é possível vislumbrar outros aspectos da sua visão
sobre o inferno e, especialmente sobre as bênçãos que descrevem a
salvação dada a quem se livra do triste destino dos maus.
De fato, contra a noção gnóstica de que Cristo, o Unigênito e o Salvador
eram entidades distintas, o bispo de Lião apresentou Cristo como o mesmo
Verbo de Deus. Ele, o Verbo, o Unigênito, o Salvador e Jesus são uma
única e mesma pessoa (Contra as heresias I, 9:3; 10:1; III, 1:2). Por meio
dele, todas as coisas foram feitas (Contra as heresias II, 2:4-5; 11:1).

Cristo se fez carne em Jesus de Nazaré. Ao encarnar-se, seu corpo não foi
um arranjo “psíquico” visível e palpável, mas a mesma carne plasmada da
terra por Deus para Adão (Contra as heresias I, 9:3: III, 9:1; 11:3; V,1:2;
Demonstração 6, 51). O Filho de Deus tinha, assim, uma humanidade
perfeita (Contra as heresias V, 2:1; Demonstração 51-53). Por isso,
sujeitou-se à lei dada aos homens e também foi capaz de santificá-los
(Contra as heresias II, 22:4).

Foi o próprio Deus que enviou Cristo para a salvação dos perdidos (Contra
as heresias II, 10:2). Então, o Verbo encarnado habitou entre os homens e
sofreu em seu lugar (Contra as heresias I, 9:2;10:1; III, 9:3; V, 18:3;
Demonstração 3). Diferente dos éões que originaram a matéria, Cristo
padeceu sem correr qualquer risco de corromper-se e esse seu
padecimento serviu para levar os que haviam se afastado do Pai ao
conhecimento e à proximidade dele (Contra as heresias III, 4:2;
Demonstração 86).

Assim, a paixão de Cristo trouxe à humanidade o conhecimento de Deus,


destruiu a morte, eliminou o erro, aniquilou a corrupção e a ignorância,
trouxe liberdade, revelou a vida e a verdade, concedendo, afinal, a
incorruptibilidade (Contra as heresias II, 20:3; V, 1-2; Demonstração 53,
69).

Tendo cumprido sua obra, o Senhor subiu aos céus e voltará um dia não só
para julgar, mas também para reinar para sempre sobre a casa de Jacó, no
trono de Davi (Contra as heresias III, 10:2; 16:8; Demonstração 62),
sendo esse o tempo em que restaurará todas as coisas (Contra as heresias
III, 12:3; Demonstração 57, 61).

O Unigênito é, portanto, a fonte singular da eterna felicidade. Somente ele


revela o Pai aos anjos e aos homens que deseja abençoar com sua salvação
(Contra as heresias II, 30:9). Essa salvação consiste especificamente da
doação de vida eterna (Contra as heresias II, 11:1), pois quem dela
desfruta verá a Deus e essa visão torna os homens imortais (Contra as
heresias IV, 20:6-7).

Com base na pregação de Pedro em Atos 2.22-27, Irineu afirma que, após
a morte, Cristo experimentou por algum tempo as angústias do inferno.
Porém, foi liberto pela ressurreição, pois não era possível que ficasse
retido ali (Contra as heresias III, 12:2), especialmente levando-se em
conta que em suas mãos estão as chaves da morte e do inferno (Contra as
heresias IV, 20:11).

Segundo o bispo de Lião, Cristo foi até onde estavam as almas dos mortos
e depois ressuscitou para apontar o que acontece com seus discípulos, pois
a alma destes também, depois da morte, vai para um lugar estabelecido
por Deus, onde aguarda a ressurreição do corpo (Contra as heresias V,
32:2).

Uma segunda razão, porém, é ainda apontada pelo bispo de Lião para
justificar a descida de Cristo às “regiões inferiores”. Segundo Irineu,
Cristo foi ao Hades para levar as boas novas da sua vinda e a remissão dos
pecados aos que creram nele e o esperaram antes do seu primeiro advento.
Estes seriam os patriarcas, os profetas e todos os justos do Antigo
Testamento que anunciaram a vinda do Senhor e viveram em retidão
(Contra as heresias IV, 33:1; Demonstração 78).

A descida do Senhor ao Hades era necessária nesse caso porque os homens


não são justificados por si mesmos, mas pela vinda do Senhor, desde que
olhem para a sua luz. Deve-se, porém, saber que o benefício de ser salvo
estando já no Hades não será dado aos homens que nasceram depois do
primeiro advento do Senhor, posto que essas pessoas já o conheceram e
dele receberam muito mais do que os antigos. Por isso, os homens da
presente era devem agora fugir de qualquer coisa que desagrade o Filho de
Deus, sob pena de serem excluídos do seu Reino (Contra as heresias IV,
27:2).

Nesse aspecto, vale destacar, Irineu se situa na raiz da tradição católica


romana ostentada pelos teólogos escolásticos. Héber Carlos de Campos
descreve essa concepção tão difundida na Idade Média:
No limbus patrum, os santos do Antigo Testamento esperavam a sua
redenção ser consumada por Jesus Cristo, o que se deu em seu descensus
ao Hades. Ali Jesus concedeu às almas dos santos do Antigo Testamento
que haviam morrido os benefícios do seu sacrifício expiatório, pois eles
estavam esperando o anúncio final da sua salvação. Essa ideia católica
desenvolveu-se principalmente na Idade Média, quando se tornou popular.

Os teólogos escolásticos também ensinaram que, ao mesmo tempo em que


uma descida temporal e espacial ocorreu somente no limbus patrum,
outros efeitos dessa descida estenderam-se a outras regiões do Hades, tais
como a manifestação da glória de Cristo sobre o diabo e os condenados e o
cumprimento da esperança para os do Purgatório.161

Dentro do protestantismo também é possível encontrar harmonia entre


essa concepção de Irineu e alguns expoentes modernos. Nesse sentido, o
ensino do evangelista e escritor batista Oliver Greene é ilustrativo, posto
que em vários pontos evoca a doutrina de Irineu acerca da descida de
Cristo ao Hades:

É difícil para alguns cristãos aceitar o fato de que Jesus realmente foi até o
inferno. Contudo, ele não desceu ao compartimento do inferno onde há
fogo e enxofre. Antes da ressurreição de Cristo, o inferno tinha dois
compartimentos. De um lado estava o lugar de tormento – o fogo; do
outro, o Paraíso. Jesus desceu ao lado do inferno onde se situava o Paraíso,
removeu dali os espíritos de todos os justos que já haviam morrido e os
levou com ele “acima de todos os céus”.162

Vê-se que, no tocante ao que aconteceu com o Salvador entre sua morte e
ressurreição, o ensino de Irineu foi acolhido substancialmente pela igreja,
consolidando-se ao longo dos séculos, moldando permanentemente o
pensamento cristão e demonstrando, assim, a envergadura desse teólogo
do período subapostólico.

Dados complementares da doutrina da perdição eterna conforme


concebida por Irineu podem ser detectados também a 161 CAMPOS,
Descendit ad inferna, Fides Reformata, vol. IV, n. 1, p. 103-128. 162
GREENE, Oliver B. Hell. Greenville, South Carolina: The Gospel Hour,
1972. p. 20-21. Minha tradução.
partir da análise de suas noções gerais de soteriologia.

Já foi dito que, para o bispo de Lião, as boas obras são essenciais para a
salvação, pois Deus não suporta nada mau ou injusto (Contra as heresias
IV, 18:6; 36:6; Demonstração 98). É preciso, porém, destacar que, segundo
seu entender, a prática do bem está intrinsecamente associada à guarda da
lei de Deus, em especial os Dez Mandamentos.

De fato, para Irineu só receberão o prêmio da vida incorruptível os que


guardaram os preceitos de Deus e perseveraram no seu amor, servindo-o e
seguindo-o sempre (Contra as heresias I, 10:1; III, 5:3; IV, 14:1; 17:1).
Isso porque até mesmo os preceitos da lei natural justificam o homem e
foram observados pelos que temiam a Deus, mesmo antes de ser entregue
a Lei de Moisés (Contra as heresias IV, 13:1). Esta, por sua vez, foi dada
com propósito salvífico, exceto a circuncisão e a observância do sábado,
posto que Abraão foi justificado antes mesmo de serem-lhe exigidas essas
práticas e as mesmas foram abolidas com o advento da Nova Aliança, uma
vez que não passavam de sinais da liberdade que haveria de vir (Contra as
heresias IV, 16:2,5; 18:2).

Assim, todos que quiserem se salvar devem observar o Decálogo (Contra


as heresias IV, 15:1), denominado por Irineu como o “anzol salvador” que
prende os homens que o mordem, impedindo-os de se afastar de Deus
(Contra as heresias IV, 15:2). Por isso, os Dez Mandamentos são
proclamados a todos sem distinção e suas determinações, aperfeiçoadas
por Cristo, jamais foram abolidas (Contra as heresias IV, 13:1; 16:5).

No ensino de Irineu, porém, é também enfatizado que a obediência aos


preceitos morais da lei só tem efeito salvífico se oferecida pelo homem na
condição de filho e não de escravo (Contra as heresias IV, 13:2). É nesse
ponto que a fé assume lugar preeminente em sua soteriologia, pois a
condição de filho, conforme esclarece, só pode ser obtida pelo homem que
crê em Cristo (Contra as heresias II, 22:4; III, 6:2; IV, 2:4-7; 6:5; 13:1).

Não há, portanto, justificação à parte da fé em Jesus (Contra as heresias


III, 10:2; IV, 5:5; 13.1; 33:15; Demonstração 35, 38, 46-47, 51). Aliás,
nem mesmo os santos que morreram antes do tempo da encarnação do
Verbo foram salvos à parte de sua providência, posto que, além de
praticarem a justiça, ansiaram por sua primeira vinda e, por isso, serão
recebidos em seu Reino (Contra as heresias IV, 22:2; 31:1).

A verdade que deve ser crida acerca do Salvador, ou seja, a verdade


imaculada, conforme apresentada nas Escrituras, só pode ser encontrada
agora na igreja (Contra as heresias V, 20:2) que, diferente das seitas
heréticas, mesmo espalhada pelo mundo, nutre uma única e mesma fé
(Contra as heresias I, 10:1-2; II, 9:1; III, 12:7; V, Prólogo; 20:1;
Demonstração 98).

A igreja é, pois, o celeiro no qual os apóstolos depositaram a doutrina


santa, mantida pela tradição. Nela qualquer pessoa pode encontrar a bebida
da vida e o caminho de acesso à salvação. Qualquer outro caminho deve
ser evitado por quem deseja fugir do fogo eterno que virá sobre os
deformadores da verdade (Contra as heresias III, 4:1).

Os adeptos das seitas gnósticas que rejeitam a pregação da igreja poderão


salvar-se, desde que se voltem para a sã doutrina, humilhem-se e
obtenham o perdão de Deus para as suas blasfêmias (Contra as heresias II,
11:2; III, 14:4). Só assim obterão a verdadeira gnose da salvação que
consiste de reconhecer somente um Deus e o seu Filho (Contra as heresias
III, 10:3). De fato, a perfeição que arrogam para si só poderá ser alcançada
neste e no outro mundo se eles amarem o Criador e seu Verbo com
inteireza de coração (Contra as heresias IV, 12:2; 28:3).

No pensamento cristão, a soteriologia aparece sempre entrelaçada com a


cristologia. Em Irineu, essa fusão desponta de forma especial quando o
notável bispo expõe sua teoria da recapitulação. Já foi demonstrada acima
a conexão direta entre essa teoria e a necessidade do castigo de Deus.
Deve-se ressaltar agora o aspecto desse conceito que o define como parte
de uma filosofia de história segundo a qual há um plano divino traçado
para livrar a humanidade da ruína perene.

Antes de tudo, é preciso observar que, nos escritos de Irineu, o verbo


“recapitular” tem o significado dominante de reunir para renovar. É nesse
sentido que esse verbo aparece ligado ao que Irineu chama de “economia”
(Contra as heresias III, 16:6; 18:2), ou seja, ao modo soberano como
Deus, ao longo da história, administra a implementação do seu plano de
resgatar o ser humano e as coisas criadas.163

A recapitulação assim definida manifesta-se como componente do plano


salvífico de Deus precisamente quando ele apresenta uma filosofia cristã
de história baseada em quatro alianças: uma feita com Adão, outra com
Noé, a aliança da Lei e a aliança do evangelho. É nessa última que a
recapitulação acontece. De fato, por meio dela, Deus recapitula todas as
outras e renova o homem elevando-o ao céu (Contra as heresias III, 11:8).
Dessa forma, o Senhor cumpre o propósito supremo de sua criação que é
levar a humanidade a habitar para sempre consigo mesmo (Contra as
heresias V, 35:2; 36:1).

Sendo o personagem central do evangelho, é por meio de Cristo que ocorre


a recapitulação de todos os pactos anteriores (eis a conexão entre a
cristologia e a soteriologia). Na verdade, a mensagem do evangelho o
apresenta recapitulando em si o próprio homem (Contra as heresias III,
16:6: IV, 6:2; V, 20:2; DemonstraçãoDemonstração 32), de forma que o
que havia se perdido em Adão fosse recuperado em Cristo (Contra as
heresias III, 18:1; 21:9-22:4; V, 1:2; 14:1; Demonstração 33-34, 37), a
saber, a vida eterna e a comunhão com Deus (Demonstração 6, 31).
163 É bom recordar, contudo, que Irineu fala também da recapitulação
escatológica do mal. Segundo ele, o Anticristo, quando vier, recapitulará
em si toda a apostasia e todas as heresias do demônio, ou seja, vai reunilas
e renová-las em seu sistema religioso enganador. Ao final, porém, ele será
lançado no lago de fogo (Contra as Heresias V, 25:1, 5; 28:2). Segundo
Irineu, um prenúncio dessa recapitulação de todas as mentiras já podia ser
vislumbrado nos ensinos de Valentim (Contra as heresias IV, Prólogo:2).

Para Irineu, isso ocorreu já por ocasião da encarnação (Contra as heresias


IV, 38:1). Assim, Cristo não redimiu o ser humano somente ao morrer por
ele, mas também ao se fazer carne. É dessa maneira que o bispo de Lião
introduz em sua teologia o conceito de encarnação salvífica.
Irineu explica que a recapitulação feita por Cristo era necessária porque
era impossível que o homem, vencido e decaído pela desobediência,
reformasse a si mesmo, se libertasse do pecado e fosse, finalmente, salvo.
Assim, desde o momento em que assumiu a carne humana, Cristo
substituiu o homem, passando a realizar o que estava fora do seu alcance
(Contra as heresias III, 18:2), destruindo o pecado, abolindo a morte e
vivificando o ser humano (Contra as heresias III, 18:7; V, 21;1).

Finalmente, é preciso destacar que Cristo não recapitulou o ser humano


somente no sentido de renová-lo. Ele também o fez tornando-se, em lugar
de Adão, a nova cabeça que reúne sob seu governo uma humanidade
também nova, formada por todos os que o confessam como Senhor
ressurreto (Contra as heresias III, 18:1-2; V, 1:2; 23:2). É por isso que, no
tocante ao homem, o conceito irineano de recapitulação, isto é, reunir para
renovar, atinge seu sentido pleno: Cristo, por sua obra, renovou a
humanidade e a reuniu sob si mesmo ao fazer-se sua nova cabeça. Por
meio dele, os que fazem parte dessa nova humanidade livramse do fogo
eterno preparado para os demais e, um dia, cumprindo o alvo supremo da
história, habitarão com Deus.

Qualquer avaliação do ensino de Irineu acerca do destino derradeiro dos


seres humanos deve apontar positivamente para a sua inegável conexão
com a entendida por seus primeiros preocupou-se como ninguém em
preservar e defender as tradições cristãs transmitidas pelos bispos que,
numa linha ininterrupta, formavam uma cadeia de legatários cujo elo
inicial se encontrava nos próprios apóstolos de Cristo.
doutrina apostólica, conforme

intérpretes. Isso porque Irineu

Ora, esse fato confere alto grau de credibilidade aos moldes hermenêuticos
que o bispo de Lião utilizou ao interpretar os textos neotestamentários que
falam sobre a perdição eterna. A rigor, pode-se deduzir a partir de Irineu
que os primeiros intérpretes do cristianismo criam na existência de um
inferno real e, ainda que, sob a ótica do bispo de Lião, houvesse certa
obscuridade no tocante à duração das penas infernais, é certo que sua
ameaça era considerada real, podendo e devendo ser usada como um
poderoso elemento inibidor de desvios dentro da igreja e como um veículo
notadamente eficaz de propagação da fé entre os pagãos.

Irineu deve ser reconhecido também pelo fato de, dentro dos limites da
ortodoxia cristã, ter demonstrado grande originalidade, especialmente na
área soteriológica. Franco Pierini, destacando a grande capacidade de
elaboração teológica do bispo de Lião, chama a atenção para o fato de, em
sua luta contra a falsa gnose, Irineu ter proposto a noção de livramento das
penas futuras baseada na “pedagogia divina”, isto é, no fato de Deus levar
o homem a conviver eternamente com ele somente após ensiná-lo a
obedecer livremente a sua vontade e também depois de acostumálo a andar
em sua presença.164

Ainda que essa noção, por valorizar demais a liberdade humana e o papel
do bom proceder na salvação das pessoas, ofusque um pouco o brilho de
Irineu, especialmente aos olhos da teologia reformada, a posição de honra
atribuída pelos historiadores cristãos ao bispo de Lião deve permanecer
intocável. Isso porque entre os escritores de sua época ninguém foi capaz
de superá-lo como defensor da fé diante da heresia e, no que diz respeito
aos objetivos desta obra, nenhum outro personagem forneceu provas tão
contundentes de que os pais da igreja do século II consideraram a doutrina
da perdição futura parte essencial da mensagem cristã e fizeram uso dela
como instrumento eficaz na proteção e divulgação do cristianismo.
164PIERINI, Franco. A Idade Antiga: curso de história da igreja. 4 vols.
São Paulo, Paulus, 1998. vol. 1, p. 80-81.
CONCLUSÃO

Os primeiros escritos cristãos produzidos imediatamente após o tempo dos


apóstolos, foram marcados por uma manifesta preocupação com o aspecto
vivencial da fé, tanto no que diz respeito ao crente enquanto indivíduo,
como no tocante ao seu compromisso com a comunidade cristã e a verdade
protegida em seu seio.

A ênfase dada pelos primeiros mestres da igreja à necessidade de


obediência e fidelidade por parte dos crentes em geral apresentou-se
mesclada com elementos que propósito estimular essas virtudes.
motivadores da firmeza e do viver

Um desses piedoso que tinham por

elementos se mostrou poderoso em seus resultados foi o ensino acerca do


destino das almas dos ímpios após a morte.

De fato, nos escritos dos primeiros cristãos, a realidade da danação dos


ímpios era fator que dava sentido não só ao apelo para o arrependimento e
admoestações dirigidas mantivessem no “caminho da vida”, como dizia a
Didaquê, sem se desviar do que a Epístola de Barnabé chamou de “a lei
nova”. conversão a Cristo, mas também às

aos já convertidos, a fim de que se

Cecil Cadoux diz que, analisando o pensamento cristão do século II, há


dois pontos relacionados à doutrina da perdição eterna que merecem
destaque.165 O primeiro é a menção contínua de promessas de recompensa
e ameaças de castigo na pregação da igreja. A razão disso, segundo
Cadoux, se encontrava no perigo que a igreja enfrentava de perder a
própria pureza moral. Isso explica as repetidas referências que os autores
do período faziam ao destino que Cristo daria aos homens, segundo as
obras de cada um.

É bom lembrar ainda que a ênfase no ensino acerca do inferno não visava
somente a defesa, mas também o ataque. Era assim que os apologistas, por
exemplo, se dirigiam às autoridades públicas com um discurso ameaçador,
falando dos juízos futuros de Deus enquanto defendiam a fé, e usando o
mesmo discurso para gerar temor e arrependimento nos pagãos que
perseguiam cruelmente o povo de Deus.

O segundo ponto destacado por Cecil Cadoux é o senso de urgência que


permeava a pregação dos pais da igreja no século II. Para eles, o tempo
durante o qual poderia haver arrependimento era extremamente limitado.
Ainda que não se falasse sobre o momento exato do fim, era tido como
certo que o julgamento de Deus não tardaria e, então, não haveria mais
oportunidade de arrependimento.
Ora, o conjunto dessas constatações expostas acima deixa fora de dúvida a
validade da proposição enunciada na introdução deste livro, a saber: os
pais da igreja do século II consideraram a doutrina da perdição futura
parte essencial da mensagem cristã e fizeram uso dela como instrumento
eficaz na proteção e divulgação do cristianismo ameaçado pela
perseguição, pelos atrativos do mundo e pelos desafios das seitas
heréticas.
165 CADOUX, Cecil John. The early church and the world: a history of
the Christian attitude to pagan society and the state down to the time of
Constantinus. Edinburh, UK: T. & T. Clark, 1955. p. 224-228.

De fato, a análise dos escritos da época, conforme visto, revela que no


cristianismo do período pós-apostólico não predominavam as ideias
aniquilacionistas, nem tampouco as noções universalistas tão presentes na
mentalidade cristã atual. Antes, reinava na igreja daqueles dias a crença na
existência de um fogo eterno e a expectativa de que muitos se perderiam
para sempre. A verdade é que, para aqueles cristãos, a promessa de castigo
presente nas páginas do Novo Testamento não era somente uma ameaça,
mas uma verdadeira profecia que fatalmente teria cumprimento, seja para
a alma por ocasião da morte do perverso, seja para o homem integral, no
grande dia do juízo.

É claro que isso não se constituía num anseio alegre dos cristãos. Nesse
sentido, John McGuchin recorda as palavras de Justino de que o castigo
divino sobre os ímpios não vinha imediatamente por causa do amor
paciente de Deus pelo gênero humano (Primeira Apologia 28).166 Ora, os
constantes alertas dos pais da igreja de então mostram que esse amor de
Deus pelos perdidos estava presente também em seu povo. Porém, tais
sentimentos não criavam expectativas infundadas, de modo que
permanecia nos discursos da época o anúncio das penas futuras como parte
integrante e fundamental da mensagem cristã.

Essa vívida crença nas penas infernais, ensinada e utilizada pelos pais da
igreja do século II, perdurou na igreja por muito tempo. O historiador
inglês Richard Bauckham escreveu:
Até o século dezenove quase todos ensinaram a realidade do tormento os
teólogos cristãos eterno no inferno.

Eventualmente, fora da corrente teológica principal, surgiram alguns que


acreditaram que os ímpios seriam finalmente aniquilados... Outros ainda
defenderam a salvação universal, estando entre eles alguns dos teólogos
mais importantes da igreja antiga. Ainda assim, a punição eterna foi
firmemente declarada nos credos e confissões oficiais das igrejas. De fato,
essa doutrina deve ter sido tão indispensável como parte da fé cristã
universal quanto as doutrinas da Trindade e da encarnação. A partir de
1800, porém, essa realidade entrou num processo de total mudança, e
nenhuma doutrina cristã tradicional tem sido tão largamente abandonada
como a da punição eterna.167
166McGUCKIN, John Anthony. The Westminster handbook to patristic
theology. Louisville, London: Westminster John Knox Press, 2004. p. 161.

Há exatidão nas palavras de Bauckham. No puritanismo do século XVIII,


por exemplo, um período de notável rigor doutrinário e profundo apego ao
ensino bíblico, a pregação sobre as penas futuras era veemente e realizava
a mesma função operada ao tempo dos primeiros teólogos da igreja,
servindo tanto para proteger como para propagar o cristianismo.

John H. Gerstner chama a atenção para esse aspecto da pregação de


Jonathan Edwards e cita trechos de vários de seus sermões, entre esses, um
baseado em Mateus 10.28:

O corpo será totalmente tomado pelo tormento até o máximo e cada parte
dele será completamente envolvida pelo sofrimento. Os maus estarão
mergulhados numa dor extenuante, cada junta, cada nervo deles serão
invadidos por um suplício inexprimível. Eles serão torturados até a ponta
dos seus dedos. Todo o seu corpo estará repleto da ira de Deus. Seus
corações, suas entranhas e suas cabeças; seus olhos e suas línguas; suas
mãos e seus pés estarão completamente cobertos com a fúria da ira de
Deus.168
O advento do Iluminismo, porém, com sua cosmovisão racionalista,
afastou da mente humana e até do próprio cristianismo a noção de
realidade do fogo eterno. De fato, teólogos liberais trabalharam
ativamente para destruir nesse particular a herança apostólica protegida
pelos primeiros pais da igreja e, ao fazê-lo, não desfiguraram somente a
soteriologia ou a escatologia cristã, mas afetaram também o próprio
conceito de Deus, pois, a inexistência do castigo, conforme lembra
Justino, implica que Deus também não existe ou, se existe, não se importa
com os assuntos dos homens (Segunda Apologia 9:1).
167 BAUCKHAM, Richard J. Universalism: A historical survey.
Themelius 4.2 (jan. 1979):48. Citado por PETERSON, Robert A. Hell on
trial: The Case for Eternal Punishment. Phillipsburg, New Jersey: P&R
Publishing, 1995. p. 97.
168EDWARDS, Jonathan. Citado por GERSTNER, John H. Jonathan
Edwards on heaven and hell. Morgan, PA: Soli Deo Gloria Publications,
1998. p. 56, nota 37.

E mais: a inexistência do inferno e da ressurreição dos maus para juízo


torna sem sentido a obra de Cristo, fazendo dele um Salvador imaginário,
cuja obra no Calvário não serviu para livrar o homem de mal algum. Uma
cruz vazia de significado é tudo o que resta para o cristianismo, caso a
mensagem da perdição eterna seja vazia de verdade.

Os pais da igreja do século II captaram essas implicações da negação das


penas infernais. Por isso, eles deram a esse aspecto sombrio do evangelho
um lugar central na mensagem que proclamavam. É verdade que seu
destaque sobre essa doutrina foi também incentivado pelos perigos que
cercavam a igreja, além de fatores que ela abrigava em seu interior.
Porém, isso só revelou a relevância prática da verdade acerca do inferno,
dando ocasião para que os pais da igreja de então demonstrassem o seu
valor pastoral e evangelístico ao usá-la como ferramenta de proteção da
igreja e propagação da fé.

Assim, se é verdadeira a constatação de que a igreja moderna precisa


resgatar a relevância de sua mensagem salvadora ao mundo presente; se é
real o fato de que as fileiras do cristianismo precisam voltar a ser
formadas por homens verdadeiramente arrependidos e não apenas por
cristãos nominais; se é mesmo necessário refrear a apostasia e a vida
desregrada dos que se apresentam como seguidores de Jesus; se é, enfim,
urgente apresentar ao mundo um Deus digno de temor e reverência, em
vez da figura débil e fraca que somente se curva diante da vontade
humana, conforme as propostas de muitos púlpitos atuais, é fundamental
que a doutrina da perdição eterna ocupe o mesmo lugar na pregação
contemporânea que ocupou nos escritos dos teólogos do século II.

O resgate dessa ênfase implicará no retorno da mensagem genuinamente


cristã, completa em todos os seus aspectos. Ora, somente essa mensagem
perfeita será capaz de gerar homens genuinamente cristãos, completos em
todos os seus traços. Finalmente, só a proclamação
transformará líderes eclesiásticos
completos em todas as suas funções.
dessa mensagem ousada em verdadeiros pastores,

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APÊNDICE
TERTULIANO DE CARTAGO E SUA CRÍTICA AO
ANIQUILACIONISMO

A concepção de que a morte se constitui no limite da existência humana,


além do qual nenhuma punição existe para os maus nem tampouco
qualquer alegria para os justos não nasceu como resultado da cosmovisão
racionalista do homem moderno. Os antigos filósofos estoicos já acolhiam
essa ideia e muitas pessoas do povo em geral a esposavam. A visão
aniquilacionista radical e crua, porém, era mais comum entre os membros
da aristocracia romana, classe na qual persistiu durante séculos, sendo
possível detectá-la tanto em Júlio César (100-44 a.C) como no imperador
Marco Aurélio que reinou de 161 a 180 A.D.

Além da filosofia pagã, o judaísmo antigo foi também um sistema de


doutrinas em que era possível encontrar certas variações de inclinação
aniquilacionista. Certamente, essas tendências eram menos radicais do que
as expostas pelos filósofos estoicos, aceitando um período de sofrimento
para os ímpios logo após a morte e antes da completa destruição.

Já nos dias de Jesus, entre as diferentes visões relacionadas à vida além-


túmulo, é possível encontrar rabinos que ensinavam a cessação dos
tormentos do inferno, com a aniquilação completa dos ímpios. Segundo
Schaff, para alguns desses rabinos, o conceito de Geena era diferente
daquele adotado pelos cristãos, sendo um lugar de breve punição para
judeus (especificamente doze meses, segundo o Rabino Akiba), de punição
prolongada (mas não perene) para os que cometeram pecados um pouco
mais graves, e de castigo seguido de aniquilação para os piores pecadores,
especialmente os gentios.169

Entre os cristãos que viveram ao tempo da igreja antiga, Taciano, o Sírio


(c. 120 – c. 180), acreditava numa forma moderada de aniquilação da
alma, segundo a qual a alma do ímpio se dissolvia com o corpo, sendo
restaurada no dia da ressurreição para então ser punida eternamente
(Discurso contra os gregos 13-17). Eusébio informa que no século III
havia um grupo na Arábia que adotava uma crença semelhante. Ele
acrescenta que, tendo sido convocado um concílio para debater a questão,
Orígenes de Alexandria (c. 185
– c. 254) compareceu e conseguiu convencer de erro os seguidores dessa
doutrina, alterando sua forma de pensar (História eclesiástica 6:37).

A despeito das propostas de que importantes teólogos do século II, como


Justino e Irineu, ensinaram a doutrina da aniquilação dos ímpios, essas
afirmações carecem de bases mais sólidas, uma vez que os escritos desses
mestres cristãos são repletos de menções do destino dos maus como uma
condição perene. De fato, o que domina o pensamento da igreja nos
primeiros séculos da era cristã é que a alma dos que são alcançados pelo
juízo de Deus sobrevive aos castigos. Também prevalece no século II a
noção de que após a ressurreição, os maus serão terrivelmente castigados
em corpo e alma, provando tormentos sem fim.
169SCHAFF, Philip. History of the christian church. 8 vols. Grand
Rapids: Eerdmans, 1987. vol. 2, p. 607, nota 1.

Um dos maiores defensores dessa doutrina da eternidade das penas foi


Tertuliano de Cartago († c. 220), um advogado que, tendo se convertido
em Roma por volta do ano 195, tornou-se zeloso catequista da igreja no
norte da África.
Sendo um homem de forte personalidade, de inteligência penetrante e de
inclinação para o rigorismo exacerbado, Tertuliano saiu em defesa dos
cristãos e da fé com uma habilidade e força notórias.170 Seus escritos dão
mostras de seu gênio, destacando-se entre eles a Apologia, a Prescrição
contra os hereges, Contra Marcião, Contra Praxéias (onde, pela primeira
vez, é usada a palavra “Trindade”) e O testemunho da alma.

Essas obras de Tertuliano formaram o primeiro corpo de literatura cristã


latina realmente importante da história eclesiástica. Nelas, o catequista
lidou com uma série de dificuldades que os ensinos proclamados pela
igreja naturalmente levantavam. Em especial, a condição da alma entre a
morte e a ressurreição, isto é, a doutrina acerca do “estado intermediário”,
por estar envolta num certo grau de mistério, foi discutida amplamente por
Tertuliano que enfrentou os ataques dirigidos contra a fé cristã nesse
assunto em particular.

Um desses ataques se relacionava ao suposto absurdo ensinado pelos


cristãos de que, após a morte, sofrimento ou deleite podem ser aplicados à
alma, um ser desprovido de corpo físico. Como conceber essa noção,
considerando que tanto a dor como o prazer, na experiência comum, estão
intrinsecamente ligados aos sentidos corporais? Segundo o entendimento
dos inimigos intelectuais do cristianismo, seria mais racional adotar uma
concepção radicalmente aniquilacionista, vendo já no momento da morte o
fim completo da existência humana.
170 Foi também essa inclinação para a disciplina severa que o levou, em
207, a romper com a igreja e a abraçar a heresia de Montano. O
movimento montanista era uma seita de profetas e profetisas da Frigia
(atual Turquia) que enfatizava a doutrina e os dons do Espírito Santo
(presumia possuir as grandes revelações do Parácleto), bem como um forte
rigor ascético.

Na tentativa de evitar o aparente paradoxo que consiste da atribuição de


sensações físicas a um ente espiritual, a igreja prénicena viu surgir em
alguns círculos a doutrina do sono da alma (psicopaniquia), segundo a qual
o espírito humano aguarda em estado de inconsciência o dia da
ressurreição do corpo e do Juízo Final.171
Foi assim que Tertuliano de Cartago se viu diante de dois desvios que o
preocuparam. Ele então combateu tanto o aniquilacionismo como a
psicopaniquismo, afirmando basicamente que para a alma sofrer não é
necessário o corpo:

Acaso a alma espera sempre pelo corpo para sofrer ou se alegrar? Não se
basta, ao contrário, para experimentar alegria ou dor? Quantas vezes o
corpo está intacto e só ela se atormenta pela ira, pela revolta, pelo tédio...
Também, portanto, lá no além poderá sofrer e alegrar-se sem a carne, se
mesmo com a carne intacta sabe sofrer, se quer, e se alegrar, se quer. Se
isso lhe é possível em vida, quanto mais, por decreto de Deus, depois da
morte!172

O ataque específico de Tertuliano ao ensino aniquilacionista está


consubstanciado na obra Sobre a ressurreição da carne, escrita por volta
de 208 com o propósito de fazer frente aos gnósticos que negavam a
realidade da ressurreição, afirmando que esta se referia apenas à
continuação da existência da alma após a
171 Os anabatistas do século XVI revitalizaram essa doutrina, mas os
reformadores se opuseram a considerada heterodoxa pelos ela, pelo que foi
definitivamente principais ramos do cristianismo,

pertencendo hoje apenas aos credos de movimentos sectários como os


Adventistas do Sétimo-Dia e as Testemunhas de Jeová.
172 TERTULIANO DE CARTAGO. O testemunho da alma. In: GOMES,
Cirilo Folch. Antologia dos santos padres. São Paulo: Paulinas, 1979. p.
169.

morte.

Em resposta a essa forma equivocada de interpretação, Tertuliano


estabeleceu uma distinção entre a ressurreição do corpo e a imortalidade
da alma. Na sequência de sua argumentação, ele citou Mateus 10.28: “Não
tenham medo dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Antes,
tenham medo daquele que pode destruir tanto a alma como o corpo no
inferno.” Então, atento para o fato de o vocabulário adotado pelo autor
bíblico poder conduzir à crença na aniquilação final dos ímpios,
adicionou:

Se, contudo, alguém quiser supor ferozmente que a destruição da alma e


do corpo no inferno implica aniquilação das duas substâncias, e não se
refere ao tratamento penal a elas aplicado (como se elas fossem
consumidas, mas não punidas), façamo-lo recordar que o fogo do inferno é
eterno – expressamente proclamado como um castigo sem fim; e o
levemos a admitir que é exatamente em virtude desse fato que esse
“matar” contínuo é mais terrível do que o mero assassinato humano, que é
somente temporal.173

Da citação acima pode-se depreender duas razões pelas quais Tertuliano


adotava a crença ortodoxa acerca do castigo eterno. Robert Petersen as
aponta chamando a atenção primeiramente para o fato de que, no entender
de Tertuliano, aniquilação não é punição, mas sim uma alternativa para o
castigo do tormento eterno. Em segundo lugar, segundo aduz, Tertuliano
via a punição dos ímpios como um castigo sem fim com base em dados da
própria Escritura, o que o levava a ensinar que o verbo “destruir”, em
Mateus 10.28, tinha o sentido figurado de um “matar contínuo”, jamais
podendo ser entendido como a extinção total do ser.174
173Idem. Sobre a ressurreição do corpo 35. In: ROBERTS, Alexander;
DONALDSON, James (Orgs.). The ante-nicene fathers. 10 Volumes.
Grand Rapids: Eerdmans, 1973. vol..3, p. 570. Minha tradução.

Mais adiante, no mesmo tratado Sobre a ressurreição da carne, Tertuliano


expõe quão absurda é a crença na aniquilação, afirmando não haver
nenhum sentido na hipótese do corpo ressuscitar, sendo novamente refeito,
com o objetivo final de ser, então, aniquilado. Ele afirma que seria um
incrível paradoxo que uma substância fosse restituída e reanimada com a
simples finalidade de ser destruída novamente.175

Alinha-se, assim o grande teólogo africano, à corrente principal do


cristianismo, defendendo a eternidade das penas e referindo-se ao
aniquilacionismo como uma forma de ausência de castigo e como um
ensino antibíblico e absurdo.
Ernest Renan, falando especificamente sobre o cristianismo do fim do
século II, explica que muitos cristãos acreditavam que as penas dos
condenados não acabariam e que essas penas dariam maior realce à alegria
dos justos; outros pensavam que elas acabariam ou seriam mitigadas.176
Tertuliano, sem dúvida, se encontra entre os crentes do primeiro grupo.

Seu entendimento sobre o destino dos homens abrange bênçãos e punições


perenes, o que se verifica claramente em seus escritos. De fato, são da sua
Apologia as seguintes palavras: “Os adoradores de Deus estarão com ele
para sempre, revestidos com a substância da própria eternidade; mas os
profanos e todos os que não são inteiramente devotados a Deus serão
lançados na punição do fogo que é eterno”.177
174 PETERSON, Robert A. Hell on trial: The case for eternal punishment.
Phillipsburg, New Jersey: P&R Publishing, 1995. p. 99.
175 TERTULIANO DE CARTAGO. Sobre a ressurreição do corpo 35. In:

ROBERTS, The ante-nicene Fathers, vol., 3, p. 571


176 RENAN, Ernest. Marcos Aurélio e o fim do mundo antigo. Traduzido

por Eduardo Pimenta. Porto: Lello & Irmão Editores, 1964. p. 333.

Assim, é correta a avaliação de Le Goff que, ao resumir o pensamento de


Tertuliano acerca do destino das almas disse que sua visão é
essencialmente dualista, ou seja, para o teólogo cartaginês há somente dois
futuros contrastantes para o homem: a punição, descrita em palavras como
tormento, agonia e tortura; e a recompensa, a que se refere usando o termo
“refrigério”. Nos dois casos, o destino é eterno.178
177TERTULIANO DE CARTAGO. Apologia XVIII. In: Tertullian’s
apology on behalf of the Christians. REEVE, W. (Org.). Londres:
Griffith Farran & Co, s/d. p. 55. Minha tradução.
178LE GOFF, Jacques. The birth of purgatory. Chicago: University of
Chicago Press, 1984. p. 47.

SOBRE O AUTOR
Marcos Granconato é pastor da Igreja Batista Redenção, em São Paulo.
Formou-se em Teologia pelo Seminário Bíblico Palavra da Vida e em
Direito pela Universidade São Francisco de Bragança Paulista. Obteve o
título de mestre em Teologia Histórica (Th..M)

no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. Leciona em


vários seminários e atua como conferencista, ministrando palestras sobre
Teologia Sistemática, Teologia Bíblica e História da Igreja.

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