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ISBN-13: 978-1493626410
Ao meu avô Antonio, hoje no ocaso da vida, que me mostrou a porta para a
vida que não tem ocaso.
SUMÁRIO
PREFÁCIO 1
INTRODUÇÃO 3
1 O ambiente em que se desenvolveu a igreja 13 do século II
2 As marcas distintivas da igreja do século II 56
3 Os Pais Apostólicos 75
4 Os Apologistas 97
5 Irineu de Lião 134
CONCLUSÃO 179
REFERÊNCIAS 185
APÊNDICE 191
“Não me importa se hoje esperais frases bem feitas. É meu dever advertir-
vos, citando as Escrituras. Não tardeis a vos voltar para o Senhor, não o
postergueis de um dia para outro, pois que a ira dele virá quando não
esperardes. Deus sabe quanto estremeço em meu trono episcopal quando
ouço esse aviso. Não posso calar-me; sou
Não podendo tratar do assunto em todo o período patrístico, como era seu
desejo inicial, o autor se ateve aos pais da igreja do 2º século, os
forjadores iniciais da teologia cristã. Ele examinou catorze textos e
escritores classificados em três categorias: os pais apostólicos, os
apologistas e o bispo Irineu de Lião. Antes de analisar as contribuições
dessas autoridades, ele delineou em dois capítulos introdutórios o contexto
e as características distintivas da igreja pós-apostólica. Essa
contextualização revela por que motivos a preocupação com a doutrina da
perdição eterna foi alvo do interesse dos cristãos do 2º século.
Ora, os pais da igreja do século II ensinam por seu exemplo que uma das
formas de promover a perseverança na verdade é conscientizar os crentes,
mostrando-lhes qual é o salário terrível e duradouro da mentira. Eles se
esforçaram, assim, por manter vivas na lembrança de seus leitores e
ouvintes as advertências de Cristo sobre um fogo que nunca se apaga,
prestes a torturar os que negam a fé quando perseguidos ou se voltam para
os ensinos heréticos, envolvendo-se, inclusive, com suas práticas imorais e
profanas.
Em virtude da vastidão de sua obra literária, bem como pelo fato de ter
vivido na transição do século II para o III, este trabalho não analisará os
escritos de Tertuliano de Cartago. Porém, num breve apêndice será exposta
sua crítica ao aniquilacionismo, mostrando que o grande teólogo
cartaginês se alinhava à corrente principal do pensamento cristão antigo.
1
O AMBIENTE EM QUE SE DESENVOLVEU A IGREJA DO
SÉCULO II
O estudo das últimas décadas do século I deixa fora de dúvida que por
aquele tempo tanto o estado romano como a sociedade em geral olhavam
os cristãos com antipatia e desconfiança. Tácito deixa transparecer que nos
dias de Nero os crentes já eram considerados pelo povo “uma casta de
homens detestados por suas abominações”.9
Plínio revela em sua carta que sua rigidez no trato com os membros da
seita cristã estava surtindo efeito, pois percebia um reaquecimento
extraordinária abandono:
das práticas pagãs que, por causa da difusão
Oh, que perplexidade entre as razões de estado e a justiça! Ele nos declara
inocentes ao proibir que sejamos perseguidos, e ao mesmo tempo ordena
que sejamos punidos como criminosos. Que mistura de bondade e
crueldade, conivência e punição, tudo mesclado em um só ato! Infeliz
edito que tenta assim se evadir ao mesmo tempo em que se embaraça em
sua própria resposta ambígua. Se nos condena, por que dá ordens contra a
nossa perseguição? Se considera um mal nos perseguir, por que não nos
absolve? 15
Exemplos de excessos desse tipo são fornecidos por Justino de Roma num
caso que relata em sua Segunda Apologia. Ele conta a história de um casal
dissoluto em que um dos cônjuges, a mulher, converteu-se ao cristianismo,
permanecendo o homem na velha vida. A partir de então, não suportando
ela as práticas libertinas do marido e percebendo que ele se fazia surdo aos
seus constantes apelos de arrependimento, decidiu, depois de algum
tempo, apresentar às autoridades o que era denominado “libelo de
repúdio”, vindo a divorciar-se.
Urbico não respondeu nada. Dirigiu-se a Lúcio e lhe disse: “Parece-me que
também tu és cristão!”
Lúcio respondeu: “Com muita honra.” E sem mais, o prefeito deu ordem
para que ele também fosse conduzido ao suplício.19
É bom destacar que Justino não é uma fonte isolada de informações sobre
o rancor nutrido pelos judeus contra o cristianismo. Na verdade, suas
percepções encontram paralelo na carta da igreja de Esmirna sobre o
martírio de Policarpo. Nessa carta percebe-se o tom de animosidade do
autor contra os judeus, descritos como os que responderam mais
prontamente à ordem de juntar lenha para a pira onde o corpo de Policarpo
deveria arder. O autor ainda realça que essa prontidão dos judeus em atacar
os cristãos era costumeira (Carta da igreja de Esmirna à igreja em
Filomélio 13).
21JUSTINO MÁRTIR. Diálogo com Trifão 10:1. In: Justino de Roma,
Coleção Patrística, vol. 3, p. 125.
Num tom bastante otimista, Justino de Roma, em seu Díálogo com Trifão,
afirma que a perseguição promovida pelas autoridades romanas, pelos
líderes da sinagoga e pela sociedade em geral não levava os crentes à
apostasia, mas fazia com que o número de discípulos crescesse ainda mais
(110:4). Porém, é evidente que, em face de perigos tão grandes, o
abandono da fé era uma ameaça séria que a igreja tinha que enfrentar.
Ademais, a despeito do otimismo de Justino, a verdade é que vários eram
os casos de derrota, havendo crentes que blasfemavam o nome de Cristo
para salvar suas vidas.
A julgar com base nos dados fornecidos pela história, esse discurso surtia
eventualmente os efeitos esperados. São os mesmos cristãos de Gália que,
segundo Eusébio, narram o caso de certa cristã chamada Biblida que havia
renegado o Cristo com medo das feras. A história prossegue dizendo que
os algozes, não contentes com o sucesso em fazê-la apostatar, tentaram
forçá-la a testemunhar contra a igreja a prática dos mais terríveis crimes.
O que obtiveram, contudo, foi surpreendente:
Mas, nas torturas, ela sacudiu o torpor e por assim dizer acordou de um
profundo sono. A dor efêmera relembrou-lhe o tormento eterno na Geena e
fê-la replicar aos caluniadores: “Como eles comeriam criancinhas se nem
mesmo lhes é lícito beber o sangue dos irracionais? (cf. At 15.29). Em
seguida declarou-se cristã e foi agregada à fileira dos mártires.23
Falando sobre o mundo que a igreja teve que enfrentar logo após sua
emancipação do judaísmo, depois do ano 70 AD, Mark Noll afirma que o
universo moral no qual os cristãos estavam inseridos era um universo no
especialmente os imperadores qual os líderes políticos, romanos, se
dedicavam
25 GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. São Paulo:
Companhia das Letras e Círculo do Livro, 1989. p. 87.
frequentemente às práticas mais degeneradas, sendo que o povo em geral
se dispunha a imitar esses líderes.26
É bem possível que uma das fontes do imaginário cristão sobre o inferno
tenha sido a multiforme religião do Egito. Esta realçava como nenhuma
outra a existência dos tormentos para os maus na vida além túmulo. Para
os egípcios, esses tormentos atingiam, inclusive, os corpos dos
condenados, além de suas almas. Prisões, torturas e castigos com fogo
caracterizavam o inferno segundo a crença dos homens do Nilo. Conforme
seu entender, o lugar de suplício no além era infectado por terrível mau
cheiro e repleto de abismos escuros, rios de água fervente e monstros
cruéis.29
Foi inevitável, pois, que a numerosa igreja que se espalhava pelo norte da
África no século II tivesse seu imaginário sobre as penas futuras
enriquecido pelas crenças da antiga religião do Egito, o que se vê refletido
na chamada literatura apócrifa que tem o inferno como tema constante.30
29 LE GOFF, Jacques. The birth of purgatory. Chicago: University of
Chicago Press, 1984. p. 19-20.
30 A menção notória do inferno na literatura apócrifa tinha propósitos
Esse universo criativo que emanava das religiões da Grécia e de Roma era
enriquecido ainda mais pelo zoroastrismo cujas crenças provocavam
constante reflexão acerca das penas futuras, influenciando também o
imaginário cristão.
Acerca das obras dos homens aqui na terra, um preciso acerto de contas
será realizado, redundando em punição para os ímpios e recompensas para
os bons. Ahriman, todos os espíritos maus e os homens perversos serão
lançados no inferno para serem punidos para sempre, enquanto o “reino do
bem” será estabelecido no céu e sobre a terra.35
Schaff destaca que, segundo o Talmude, a pior das punições do inferno era
a tortura com fogo, o qual era renovado todas as semanas, logo após o
sábado. Consoante a crença judaica de então, os israelitas maus não eram
torturados com fogo, sendo reservadas penas diferentes para eles. Já outras
pessoas, especialmente os idólatras, hipócritas, traidores e apóstatas, eram
condenados a ferver como a carne em uma panela.
Entre essas crenças, uma das mais destacadas era a que se formara ao
redor de Dionísio. Sua lenda dizia que Júpiter e Perséfone tiveram um
filho chamado Zagreus, que nasceu em forma de boi. Zagreus deveria
governar o mundo, mas foi morto e despedaçado pelos titãs. Então seu pai,
Júpiter, comeu seu coração e quando gerou Dionísio, também chamado
Baco, este era Zagreus renascido. Era assim que a lenda popularizava e
estimulava a crença na reencarnação.
influência dos
42TERTULIANO DE CARTAGO. Apologia XL:1. In: REEVE, W;
COLLIER, J. (Orgs.). The apology of Tetullian and the meditations of
the emperor Marcus Aurelius Antoninus, p. 114. Minha tradução.
cristãos, ter abandonado o culto dos antigos deuses.43
Além de serem hostilizados por causa das crenças nutridas pelas religiões
das cidades, os cristãos também sofriam diante de outra forma de adoração
sustentada pelo estado: o culto do imperador. Este, de fato, recebia maior
destaque entre as demais religiões oficialmente apoiadas pelas
autoridades.
A alma nada leva consigo ao chegar ao Hades, a não ser sua formação e
regime de vida, o que, de acordo com a tradição, é exatamente o que mais
valoriza ou prejudica o morto, a partir do início da viagem para o além.
Portanto, dizem que o mesmo gênio que acompanha cada um de nós ao
longo da vida é também quem conduz o morto a um determinado lugar. Os
que lá estão são submetidos a um julgamento e, proferida a sentença, são
levados ao Hades por um guia a quem foi ordenado conduzilos até lá. Após
receberem o que mereciam e terem permanecido lá o tempo necessário,
outro guia os reconduz para cá, através de muitos e demorados intervalos
de tempo.49
48PLATÃO. Fédon. In: FLORIDO, Janice (Org.). Platão. Coleção Os
Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 132.
Algumas almas, porém, relutam em partir para o seu destino fatal:
... aqueles que fizeram de seu ventre um deus e que usufruíram somente o
descomedimento sem pudor, sem jamais conter-se, penetram os corpos de
asnos e animais semelhantes... E as almas que se dedicaram à injustiça, à
tirania e às rapinagens animam os corpos dos lobos, dos gaviões, dos
falcões... E os mais ditosos são aqueles cujas almas vão para os lugares
mais agradáveis... suas almas penetram em corpos de animais mais
pacíficos e trabalhadores, como as abelhas, as formigas, ou então
regressarão para corpos de humanos a fim de serem homens de bem.52
49 Ibid., p. 178.
50 Ibid., p. 147.
51 Ibid., p. 178.
Quanto ao inferno e o destino final das almas, Celso diz que a doutrina
bíblica da perdição eterna com todos os seus horrores é a única coluna de
sustentação do cristianismo que, segundo ele, não tem nenhum
fundamento lógico. A ressurreição, no seu entender, não é uma crença
digna de seres racionais.
Justino de Roma, por exemplo, afirma em seu Diálogo com Trifão que o
Criador e Pai do Universo habita sempre nas regiões supracelestes e, ele
mesmo, “nunca apareceu, nem jamais conversou com ninguém” (Diálogo
56:1), sendo impossível que se circunscrevesse a uma pequena porção de
terra. Assim, Abraão, Isaque, Jacó e Moisés viram o Filho, mas nunca
aquele que é o Pai inefável (Diálogo 127:4).
60 Idem. Ibid.
61 Dois extremos se encontram em Justino e Tertuliano. O primeiro
“Platão, que falou tantas coisas sobre a monarquia de Deus e sobre a alma
do homem, afirmando que ela é imortal, depois também não se contradiz,
dizendo que as almas emigram para outros homens e que as almas de
alguns vão parar até em animais irracionais?” (TEÓFILO DE
ANTIOQUIA. Dos livros a Autólico 3:7. In: Padres Apologistas. Coleção
Patrística. São Paulo: Paulus, 1995. vol. 2, p. 277-278).
Por ora é preciso dizer que o ambiente ameaçador que cercava a igreja do
século II não pode ser visto como o único fator determinante dos
contornos e da ênfase que ela dava à doutrina da perdição eterna. Fatores
internos positivos e negativos também atuaram na formação do molde
dentro do qual se encaixou o pensamento teológico de então. Esses fatores,
notadamente distintivos da igreja do segundo século, serão objeto de
análise no capítulo a seguir.
2
AS MARCAS DISTINTIVAS DA IGREJA DO SÉCULO II
vol. 4, p. 300.
Muratoriano história do
como destino às almas das pessoas: o seio de Abraão, morada dos salvos
que ali desfrutam de refrigério e descanso; e o Hades, lugar dos perdidos
que são torturados pelo fogo em meio à sede insaciável.
Com efeito, o Novo Testamento fala que o juízo de Deus alcança as almas
dos perdidos logo depois da morte. De fato, Paulo realça que intensa
tribulação virá sobre as almas dos que praticam o mal (Rm 2.5-9).
Também conforme o ensino de Pedro, essas almas são mantidas em
castigo até o dia do juízo (2Pe 2.9). Então, com os corpos ressurretos, os
descrentes comparecerão diante do Senhor para serem julgados. Em
seguida, todos eles serão banidos da presença de Deus e sofrerão
penalidade de eterna destruição (2Ts 1.7-9). Esta consistirá de serem
lançados em corpo e alma no Geena (Mt 10.28), também chamado no
Apocalipse de “lago de fogo”, ou a “segunda morte” (Ap 20.10-15; 21.8).
Ainda que esse modelo de governo eclesiástico seja objeto de críticas por
parte de analistas modernos, o certo é que num tempo em que a
perseguição estatal gerava tanto mártires como apóstatas, e numa época
em que partidos judaizantes e gnósticos dividiam eventualmente as igrejas
locais, a figura do bispo monárquico revelou-se um poderoso fator
estimulante de perseverança e neutralizante de facções. Foi assim que,
através da centralização da autoridade episcopal, a igreja do século II
sobreviveu aos ataques tanto externos quanto internos, superando períodos
de terríveis convulsões.
Em seu Diálogo com Trifão, Justino de Roma faz três referências a esses
fenômenos: primeiro ele diz que o nome de Cristo não devia ser
blasfemado entre os judeus, pois sua magnificência podia ser constatada
através das obras e milagres que ainda se realizavam em seu nome (35.8);
em seguida, afirma em dois lugares (82:1 e 88:1) que entre os cristãos de
seus dias ainda existiam homens e mulheres que tinham carismas
proféticos e dons do Espírito de Deus.
Eusébio de Cesaréia, em sua História eclesiástica (V:7:1-2), afirma que
Irineu de Lião falava sobre a igreja de seus dias quando disse que, por
mais de uma vez, estando os irmãos reunidos em oração ao redor de um
cadáver, “voltou o espírito do morto”, de forma que a vida foi novamente
concedida como resposta às orações dos santos (Contra as heresias
II:31,2). O bispo de Lião, na verdade, foi ainda mais amplo e preciso ao
enumerar os fenômenos que presenciara:
Por fim, um tal Marcião, natural do Ponto, está agora mesmo ensinando
seus seguidores a crer num Deus superior ao criador e, com a ajuda dos
demônios, fez com que muitos, pertencentes a todo tipo de homens,
proferissem blasfêmias e negassem o Deus Criador do universo,
admitindo, em troca, não sabemos que outro deus, ao qual, supondo maior,
se atribuem obras maiores do que àquele.76
75 IRINEU DE LIÃO, Contra as heresias I, 7:1,5; II, 29, Coleção
Patrística, vol. 4, p. 49, 51-52, 220-222. Irineu informa ainda que, para os
gnósticos, “a ressurreição dos mortos consiste no conhecimento do que
eles chamam de verdade” (Contra as heresias II, 31:2).
Sendo seu perigo tão intenso e tendo levado após si vários cristãos de
ânimo vacilante, o ensino gnóstico foi combatido ferozmente pelos pais da
igreja e uma das armas que usaram nessa batalha foi a pregação das
verdades sobre o destino miserável dos hereges e apóstatas.
Vê-se, desse modo, que, em face das seitas gnósticas, os primeiros pais da
igreja pronunciaram discursos e escreveram obras sobre o inferno tanto
para fazer frente à soteriologia mítica que pregavam como para afastar de
suas escolas os crentes que estavam sob os cuidados dos verdadeiros
pastores de Cristo.
Menos ameaçadora, mas seitas que proliferaram nos dias ebionismo. Seu
nome procedia da palavra hebraica( ןויבאebion), que significa “pobre”,
talvez uma designação dada a princípio a todos os cristãos, em virtude da
baixa condição social a que pertenciam em sua maioria.83 Quanto ao seu
surgimento, há indícios que permitem situá-lo entre os cristãos judeus que
fugiram para Pela ao tempo da invasão de Jerusalém.
também inquietante entre as
Justino alude aos ebionitas duas vezes no seu Diálogo com Trifão. Na
exposição que faz aos seus interlocutores judeus, ele esclarece o seguinte:
... aqueles de vossa raça que dizem crer em Cristo, mas a todo custo
pretendem obrigar aqueles de todas as nações que acreditaram nele a viver
conforme a lei de Moisés, ou que não se decidem a conviver com estes,
também eu não aceito esses como cristãos.85
3
OS PAIS APOSTÓLICOS
CLEMENTE DE ROMA
Clemente foi bispo de Roma por volta do final do século I e a ele são
atribuídas duas epístolas. A Primeira de Clemente foi escrita em cerca de
96 d.C e endereçada à igreja de Corinto que estava passando por uma fase
de divisão e rebelião contra seus líderes. Clemente admoesta os rebeldes
recordando, ao estilo dos estoicos, que a harmonia deriva do caráter do
próprio Deus que a estabeleceu no universo e que, portanto, deve ser
restaurada na igreja.
Nessa obra trata-se, entre outras coisas, de uma condenação eterna (3:8)
que consistirá, conforme as palavras de Jesus, do lançamento do ímpio, em
corpo e alma no inferno (Geena), onde o fogo nunca se apaga e o verme
nunca morre (3:2,13). A condição deplorável da alma lançada nessa
“fornalha” é irremediável, pois a partir do momento em que o homem
deixa este mundo, não poderá, no outro, confessar seus pecados ou se
arrepender deles (3:14-16).
A DIDAQUÊ
Seria de se esperar que, pelo menos nos capítulos relativos aos dois
caminhos e ao fim do mundo, a Didaquê tratasse amplamente da perdição
eterna dos ímpios. Porém, dado o especial interesse da obra em questões
práticas e litúrgicas, somente vagas alusões ao perigo que aguarda os
infiéis podem ser percebidas nessas seções, assim como ao longo de todo
esse antigo manual. Por exemplo: no capítulo 1 é dito que quem recebeu
recursos materiais sem precisar, terá que prestar contas e, evocando as
palavras de Jesus, o autor afirma que tal pessoa será posta na prisão e
interrogada sobre o que fez, sendo impedida de sair dali até ser devolvido
o último centavo. A linguagem, emprestada de Mateus 5.25-26,
evidentemente é figurada e não ficam claros os contornos exatos da
punição futura que o autor tinha em mente.
INÁCIO DE ANTIOQUIA
POLICARPO DE ESMIRNA
Tudo o que restou dos escritos de Policarpo foi uma carta dirigida aos
filipenses, na ocasião em que estes lhe pediram cópias das cartas de
Inácio. Nessa sua epístola, o bispo de Esmirna ensina, logo de início, que
Deus ressuscitou Jesus Cristo, livrando-o das dores do Hades (1:2).
Ainda que, por volta de 130, tenha escrito uma obra intitulada Exegeses
das palavras do Senhor, composta de cinco volumes, somente treze
fragmentos deles foram preservados em citações de Irineu e de Eusébio de
Cesaréia. Nesses fragmentos, absolutamente nada é dito sobre o destino
dos perversos ou acerca do modo como o homem pode evitar o castigo
futuro.
Seja como for, chama a atenção o fato de Papias revelar um apego notável
às crenças milenaristas, segundo as quais, após a ressurreição, Cristo
voltaria para estabelecer um reino terreno de paz e prosperidade que
duraria mil anos, em companhia dos fiéis. Sendo esse reino reservado para
os santos, deduz-se que os ímpios, de algum modo, ficariam fora dele.
Porém, esse é o ponto máximo a que se pode chegar com base nos raros
textos de Papias citados por Irineu e Eusébio.
A EPÍSTOLA DE BARNABÉ
É notável que a Epístola de Barnabé aponta para Cristo como aquele cuja
obra na cruz teve por propósito purificar o homem dos seus pecados e lhe
dar vida (5:1; 7:2). É ele somente quem liberta o pecador das trevas e
prepara para si um povo santo (14:6). Contudo, o livramento do castigo
depende do zelo diligente do cristão por aquilo que pode salvá-lo (4:1). Se
ele não odiar o erro do mundo presente não poderá ser amado no mundo
futuro.
O PASTOR DE HERMAS
A obra tem esse título porque o anjo que aparece a Hermas e lhe explica
suas visões surge trajado como um pastor, com peles de cabra, bornal e
cajado na mão (25:1). O livro é dividido em três partes principais: visões,
mandamentos e parábolas. Seu tema básico é a necessidade de
arrependimento95 que, segundo o ensino do “Pastor” das visões, pode
ocorrer apenas uma vez para perdoar pecados cometidos depois do
batismo (31:6-7).
95 O termo grego usado na obra é
ά
significado literal é arrependimento ou conversão. Seu sentido é
predominantemente moral. A tradução para o português que acolhe a ά
apenas um reflexo da conotação disciplinar que os bispos de fala latina,
A EPÍSTOLA A DIOGNETO
A Carta a Diogneto tem sua composição fixada por volta do ano 120, em
Atenas. Foi escrita em grego e dirigida a um inquiridor gentio chamado
Diogneto, sobre quem nada se sabe, embora haja conjecturas pouco
fundamentadas que o identifiquem com o próprio imperador Adriano
(117-138).
Mesmo sendo uma obra bastante breve, uma vez que seu propósito é
apresentar um resumo da fé cristã a um pagão culto supostamente
interessado em conhecê-la, a bela carta não deixa de mencionar a perdição
eterna. De fato, a certa altura, quando descreve o conteúdo dos discursos
de alguns filósofos, acrescenta que para alguns Deus é o fogo. A seguir,
acrescenta que esses supostos sábios chamam de Deus aquilo para onde
irão (8:2). Mais adiante (10.7-8), a menção do autor aos tormentos da vida
futura é bem enfática:
De fato, a pequena carta afirma que Deus enviou seu Filho ao mundo para
salvar e persuadir, sem violentar; para chamar e não para castigar, para
amar e não para julgar, ainda que um dia ele virá para castigar, para amar
e não para julgar, ainda que um dia ele virá 8).
De fato, que outra coisa poderia cobrir nossos pecados, senão a sua
justiça? Por meio de quem poderíamos ter sido justificados nós, injustos e
ímpios, a não ser unicamente pelo Filho de Deus? Oh doce troca, oh obra
insondável, oh inesperados benefícios! A injustiça de muitos é reparada
por um só justo, e a justiça de um só torna justos muitos outros. Ele antes
nos convenceu da impotência da nossa natureza para ter a vida; agora
mostra-nos o salvador capaz de salvar até mesmo o impossível.98
AVALIAÇÃO
Klotsche explica que, tendo contato direto com essa herança, os mestres
cristãos da época pouco se preocuparam em buscar o significado puro e
profundo da verdade nela expressa. Ele conclui apontando o resultado
disso:
Mesmo estando face a face com o testemunho oral e escrito dos apóstolos,
os pais apostólicos não captaram plenamente o seu significado e
frequentemente obscureceram muitos aspectos distintivos do evangelho;
por exemplo, a salvação somente pela graça. A fé e o perdão dos pecados
foram até certo ponto ofuscados, enquanto o evangelho passou a ser
apresentado como uma nova lei e as boas obras vistas como uma condição
para a salvação.100
99 OLSON, Roger. História da teologia cristã: 2.000 anos de tradição e
reformas. São Paulo: Vida, 1999. p. 51.
100 KLOTSCHE, The history of Christian doctrine, p. 22.
Já foi exposto que, no início do século II, vários rumores circulavam entre
os pagãos referentes às crenças e práticas cristãs. Em virtude da má
compreensão do que eram as festas de agape (ocasiões em que os crentes
participavam de uma refeição fraternal) e também do real sentido da
eucaristia, os cristãos eram acusados pelo povo de se envolverem em
orgias sexuais e de praticarem o canibalismo. Justo González expõe esse
quadro mais detalhadamente:
... a ágape ou festa do amor parece ter sido a base para a lenda segundo a
qual os encontros cristãos eram orgias, nas quais, depois de comerem e
beberem muito, as luzes eram apagadas e ocorriam as mais desordenadas
uniões sexuais. De modo similar, a afirmação de que Cristo estava
presente na refeição eucarística, provavelmente misturada a algumas das
histórias da natividade, foi a origem dos rumores de que os cristãos
cobriam uma criança com farinha de trigo e então, alegando que era um
pão, eles ordenavam que um neófito a cortasse. Quando o sangue da
criança começava a jorrar, os cristãos a comiam. O neófito, participante
involuntário naquele crime, era assim envolvido nele e forçado a ficar em
silêncio.102
Na sua obra Diálogo com Trifão (2:3-6), o próprio Justino conta como, a
princípio, frequentou as aulas de um estoico, seguindo depois,
sucessivamente, um peripatético e um pitagórico. Este último logo
também abandonou, trocando-o por um platônico. Seu desejo, conforme
confessa, era ver Deus. Foi a essa altura, isto é, por volta do ano 130, que
Justino se converteu ao cristianismo. Sua experiência é descrita por
Hamman:
O Diálogo com Trifão tem sua composição fixada por volta de 155 e não se
pode considerar o debate ali descrito como tendo, de fato, ocorrido.
Mesmo uma leitura superficial da obra, com suas longas e repetidas
citações literais do AT, com a apagada participação de Trifão e com as
convenientes e raras interrupções que faz aos extensos e monótonos
discursos de Justino, fazem notar que o encontro ali descrito está longe de
ser uma realidade histórica, constituindo-se o Diálogo, sem dúvida, numa
simples construção literária.
Portanto, rogamos por vós e por todos os que nos atacam para que,
convertendo-vos juntamente conosco, não blasfemeis Jesus Cristo que, por
suas obras e milagres que ainda hoje se realizam em seu nome, pela
excelência de sua doutrina e das profecias que a respeito dele foram feitas,
não merece nenhuma reprovação ou acusação. Pelo contrário, crendo nele,
possais salvar-vos em sua segunda vinda gloriosa e não sejais por ele
condenados ao fogo.110
O nome dado ao lugar do castigo é “inferno” e para ser lançado ali basta
viver iniquamente e não acreditar que essas coisas, ensinadas por Deus
através de Cristo, acontecerão (1 Apologia 19:8). Justino diz que essa
doutrina procede dos profetas (1 Apologia 43:2) e do próprio Cristo e não
deve causar espanto, uma vez que o próprio Platão diz algo semelhante:
Ele fala de Cristo como a razão em pessoa, que tomou forma e se fez
homem (1 Apologia 5:4). O Filho de Deus nasceu de uma virgem e
recebeu o nome de Jesus, que significa “salvador” (1 Apologia 33:7;
Diálogo 23:4). De fato, ele participou da carne e do sangue para a salvação
dos que crêem e para a destruição dos demônios (1 Apologia 66.2; 2
Apologia 5:4; Diálogo 13:1). Vindo ao mundo, Cristo ensinou as verdades
proclamadas pelos cristãos, com o fim de que essas verdades
transformassem e conduzissem o gênero humano (1 Apologia 23:2).
Cristo foi crucificado sob Pôncio Pilatos ( 1 Apologia 13:3; Diálogo 30:3).
Na verdade, os profetas do Antigo Testamento previram que ele sofreria
para lavar, com seu sangue, os que creriam nele (1 Apologia 32:7; Diálogo
14:1; 43:3; 44.4). Assim, foi pela salvação dos que nele crêem que se
dispôs a ser desprezado e sofrer (1 Apologia 63:16; 2 Apologia 13.4;
Diálogo 17:1). Mas depois de ter padecido, Cristo ressuscitou e subiu ao
Pai (1 Apologia 21:1; 50:12; Diálogo 53:5; 64:7; 85:1), reinando hoje não
somente no céu, mas também sobre as nações da terra, através da sua
doutrina pregada pelos apóstolos em todo o mundo (1 Apologia 42:4).
A força do reino de Cristo está em sua cruz, símbolo que se vê por toda
parte, seja no formato das velas dos navios, nos arados que sulcam a terra
e até na figura ereta do corpo humano, quando fica de braços abertos (1
Apologia 55.1-7; Diálogo 90:4-5). Aliás, foi à cruz de Cristo que Isaías se
referiu quando disse que “o governo está sobre os seus ombros” (Is 9.5),
uma vez que é pela cruz, posta sobre os ombros do Salvador, que ele reina
sobre tudo o que há (1 Apologia 35:2).114
Justino diz que é por amor a Cristo que alguém passa a desprezar os falsos
deuses (1 Apologia 25:1); é somente depois de crer nele que o homem se
afasta do mal e se torna religioso e justo (Diálogo 52:4); e é também
somente por meio do Filho que o pecador é capaz de seguir o Deus único
(1 Apologia 14.1; Diálogo 30:3; 34:8). A verdadeira circuncisão, entendida
como o livramento do erro e da maldade (Diálogo 41:4), é dada a quem o
conhece e guarda a sua lei (Diálogo 28:4). Crendo nele, o homem é ungido
e lavado com seu sangue (Diálogo 40:1; 54:1). Reconhecendo-o e sendo
iniciado em seus mistérios, o ser humano pode alcançar a felicidade
(Diálogo 8:2).
ARISTIDES DE ATENAS
Tendo sido escrita, conforme diz Eusébio, nos dias de Adriano, que reinou
de 117 a 138, a Apologia de Aristides foi preparada num ambiente em que
os cristãos enfrentavam ataques sangrentos, além de oposição sob a forma
de difamações e calúnias conforme acima descritas, o que pode explicar o
seu tom crítico e severo.
Sendo uma obra pouco extensa (apenas dezessete breves capítulos) que se
concentra mais nos erros da religião pagã do que na exposição da doutrina
cristã, a Apologia fala diretamente da futura punição dos ímpios somente
em suas últimas linhas:
Por isso, que os teus sábios insensatos parem de falar contra o Senhor.
Com efeito, convém que venereis o Deus Criador e deis ouvido às suas
palavras incorruptíveis, a fim de que, escapando ao julgamento e aos
castigos, sejais declarados herdeiros da vida que não perece.118
TACIANO, O SÍRIO
Consta que por volta de 172, ou seja, após a morte de Justino, Taciano
voltou para a sua pátria e chefiou a promoção da heresia encratita (o termo
grego significa continente ou abstêmio), cujos ensinos, à semelhança dos
gnósticos, incluíam a existência de eões e princípios emissores, o desprezo
pela matéria, a consideração do matrimônio como verdadeira fornicação e
a abstinência total da carne e do vinho. Este último, na eucaristia, era
substituído pela água.121 Fontes antigas informam que essa heresia se
estendeu de Antioquia até a Mesopotâmia.122
120TACIANO, O SÍRIO. Discurso contra os gregos 29 e 35. In: Ibid., p.
96-97, 103.
vol. 2, p. 59.
123 Na verdade, nenhuma cópia completa do Diatessaron chegou aos dias
ATENÁGORAS DE ATENAS
Nos dois escritos do ateniense, mas, como seria de se esperar, muito mais
no tratado Sobre a ressurreição dos mortos, esse hábil apologista trata da
doutrina da perdição eterna.
A doutrina cristã acerca das penas a serem infligidas aos ímpios também
serve como base para Atenágoras na defesa contra as acusações de
antropofagia (Parte 3 da Súplica). A princípio, na refutação dessa calúnia o
apologista argumenta que os cristãos sequer se dispõem a ver os
espetáculos dos gladiadores, pois pensam que o ver matar está próximo do
próprio ato de matar. Segue então esclarecendo que eles consideram até o
aborto verdadeiro homicídio e crêem que as mulheres que o praticam terão
de dar contas a Deus (35). Depois mostra a irracionalidade da acusação de
antropofagia dirigida justamente contra quem crê na ressurreição: “Quem
crê na ressurreição quererá oferecer-se como sepultura dos corpos que hão
de ressuscitar?”126
Finalmente, declara mais uma vez que os cristãos acreditam que nada
ficará fora do exame de Deus e que o corpo que cooperou com os impulsos
e desejos irracionais da alma será punido juntamente com ela. Como, pois,
acreditar que pessoas que adotam a crença em tão temível julgamento
seriam capazes de matar e devorar seus semelhantes?
Antes, contudo, faz uma ressalva, prevenindo contra aqueles que vêem o
julgamento como a causa única da ressurreição. Segundo ele, essa
concepção está equivocada porque todos serão ressuscitados, mas nem
todos serão submetidos a julgamento, já que nem todos morrem após uma
vida de pecados (14).
Chamo de composto o homem com seu corpo e alma, e digo que esse
homem é o responsável por todas as suas ações e receberá o prêmio ou
castigo por elas. Ora, se um julgamento justo dará sobre o comportamento
a sentença das obras, nem a alma sozinha receberá a recompensa do que
realizou junto com o corpo, pois por si mesma ela é insensível aos pecados
que possam ser cometidos pelos prazeres, alimentos ou cuidados
corporais, nem o corpo sozinho, pois por si mesmo ele é incapaz de
discernir a lei e a justiça. Ao contrário, é o homem, composto de alma e
corpo, que recebe o julgamento de cada uma das obras por ele feitas.127
Para entrar nessa vida, portanto, o homem deve conhecer a Deus (seu
poder e sabedoria) e seguir a lei e a justiça (Sobre a ressurreição, 12). É
notável, ademais, que, ao longo de toda a abordagem sobre o julgamento
divino apresentada em seu tratado acerca da ressurreição, Atenágoras
conecta o resultado do referido julgamento ao comportamento humano. De
fato, a última frase do tratado é: “a cada um é medido o prêmio ou o
castigo por sua vida boa ou má”.129
Infelizmente, o apologista ateniense não trata em momento algum do
papel que a obra de Cristo ocupa no livramento do castigo. Aliás,
Atenágoras sequer menciona a obra de Cristo em seus escritos. Seu
objetivo, comum entre os padres apologistas, é provar a veracidade do
cristianismo especialmente a partir de argumentos procedentes da filosofia
grega. Isso, contudo, não o fez negligenciar o ensino sobre a realidade da
perdição, demonstrando que esse aspecto do ensino cristão se situava no
cerne de sua mensagem.
TEÓFILO DE ANTIOQUIA
Das obras que Teófilo escreveu, só restaram os três livros A Autólico, uma
defesa do cristianismo endereçada a um amigo, talvez um pagão culto e
influente, ainda que exista a possibilidade de se tratar de um
correspondente fictício.
A cura para isso é possível desde que o pecador se coloque nas mãos de
Deus: “Mas, se quiseres, podes curar-te. Coloca-te nas mãos do médico e
ele operará os olhos de tua alma e do teu coração. Quem é esse médico? É
Deus que cura e vivifica através do Verbo e da Sabedoria”.133
AVALIAÇÃO
Ao expor essa doutrina eles falaram de Deus como o Juiz a quem anjos e
homens deverão prestar contas, aqueceram o debate sobre a imortalidade
da alma e insistiram na miséria que aguarda aqueles que se distanciam do
Criador e do seu Verbo unigênito. Eles ainda defenderam unanimemente o
ensino acerca da ressurreição do corpo, alertando para o fato de que a
perdição eterna atinge o homem integral, o físico e o espírito que o
compõem.
5
IRINEU DE LIÃO
Não são conhecidos os motivos que levaram Irineu a deixar sua pátria e se
fixar na Gália. É certo, porém, que mesmo antes de ser bispo, ele se
destacou entre os cristãos de Lião, tendo sido, inclusive, enviado a Roma
por sua igreja, portando uma mensagem dirigida ao papa Eleutério, na qual
era solicitada sua intervenção em favor da paz na igreja lionesa, abalada
pela heresia montanista.
vol. 4, p. 475.
Irineu de Lião dividiu sua obra maior, Contra as heresias, em cinco livros,
dedicando-os a um amigo cuja identidade é hoje desconhecida. Ele expõe
no prólogo do Livro I que o objetivo geral de Contra as heresias é
informar e prevenir o referido amigo acerca das doutrinas de Ptolomeu e
Valentim, mestres gnósticos, bem como dar-lhe ferramentas para que
mostrasse o perigo da mentira a quem estivesse à sua volta e refutasse os
próprios hereges quando com eles se deparasse (I, Prólogo, 2).
Ocorreu que a mais nova dessas emissões, o éon chamado Sofia, entregou-
se ao desejo de conhecer a grandeza imperscrutável do Protopai e, sendo
impedida pelo poder que mantém os éões fora dos seus limites, caiu em
profunda angústia. Em meio a essa aflição, Sofia deu à luz uma substância
amorfa (I, 2:2-4). Essa substância recebeu o nome de Acamot e,
abandonada fora do Pleroma em meio a paixões contraditórias e muita
amargura, originou a matéria e todas as almas do mundo (I, 4:1-2). Assim,
ainda que existissem diversas variações em suas doutrinas, os gnósticos
criam fundamentalmente que a matéria é má, posto que fruto da
ignorância, tristeza e medo de um éon dominado pela agonia e pela
frustração.
Irineu explica que, segundo os mestres dessas fantasias, nada disso foi dito
explicitamente pelo Salvador porque nem todos seriam capazes de
assimilar semelhante gnose. Jesus, porém, teria falado dessas coisas de
forma velada em suas tão conhecidas parábolas e as próprias Escrituras,
conforme diziam, escondiam esses mistérios, podendo-se chegar a eles
através de interpretações que consideravam as mais adequadas e da
alegorese (I,3:1-6).
Os basilidianos diziam que para alguém ser salvo era preciso saber essas
coisas e, então, rejeitar o que foi crucificado, aceitando somente o Nous ou
o Cristo enviado pelo Pai inefável. Quem, por ignorância, confessasse o
crucificado permaneceria escravo dos criadores da matéria e jamais
chegaria ao Protopai. Basílides ensinava a salvação só da alma e afirmava
que os salvos pelo conhecimento de suas doutrinas eram bem poucos,
mantendo a proporção de um entre mil (I, 24:3-6).
144 FRANGIOTTI, História das heresias (Séculos I-VII), p. 36.
Irineu alude a essa doutrina ao escrever sobre o propósito pelo qual Cristo
virá outra vez:
No Livro I de Contra as heresias, Irineu não faz muitas alusões diretas aos
castigos futuros preparados para os maus, nem tampouco expõe com
detalhes essa doutrina, já que o propósito principal da primeira parte da
sua grande obra é descrever os falsos ensinos que se propagavam em seu
tempo. Mesmo assim, conforme visto, é evidente já na primeira parte de
Contra as heresias, que o entendimento de que existe uma punição real
para os ímpios fazia parte do cerne da mensagem anunciada pelo bispo de
Lião, dando, inclusive, sentido mais límpido à sua teologia.
É assim que, ao falar sobre as coisas criadas por Deus, inclui entre elas um
fogo que é eterno, preparado pelo Pai para o diabo e seus anjos (II, 7:3).
Em seguida Irineu descreve esse castigo como a queda num abismo de
perdição e fala que nele estão prestes a cair os que ouvem raciocínios vãos
(II, 8:3). Insistindo também na singularidade do Deus das Escrituras,
Irineu afirma que os gnósticos, com sua linguagem aparentemente cristã,
são mais blasfemos que os próprios pagãos, pois atribuem mentira ao Deus
que se revelou ao profeta Isaías como o único Deus (Is 46.9). Ao
blasfemarem dessa forma e ao inventarem um deus acima do Criador, eles
o fizeram para a própria condenação (II, 9:2).
Irineu ensina que o dia daquele terrível juízo é chamado, à luz de Isaías
61.2, de “dia da retribuição”, porque nele o Senhor retribuirá a cada um
segundo as suas obras. O bispo de Lião entende que, de acordo com a
passagem de Isaías, esse dia seguirá o “ano aceitável do Senhor”,
expressão que corresponde ao tempo presente em que os homens são
graciosamente chamados e salvos (II, 22:2). A presente era, portanto,
precede imediatamente o julgamento que implicará na ruína dos maus,
para quem está preparado o fogo eterno, conforme o próprio Deus diz
expressamente e como todas as Escrituras demonstram (II, 28:7).
Insurgindo-se contra essa heresia, Irineu lembra que o Senhor Jesus Cristo
ensinou a evitar não somente as práticas do mal, mas também o desejo
delas e que, segundo a doutrina do Mestre, até mesmo chamar alguém de
tolo sujeita o ofensor ao fogo do inferno. Ele acrescenta que os justos
brilharão como sol no reino do Pai, mas os injustos que, conforme explica,
são aqueles que não praticam obras de justiça, serão enviados para o fogo
eterno onde o seu verme nunca morrerá e o fogo jamais se apagará
(II,32:1).
Ele conclui a partir daí que a lógica falsa do ensino carpocratiano acabava
ironicamente por apontar para a verdade de que seus proponentes estavam
perdidos. De fato, segundo Irineu, uma vez que lhes faltavam as práticas
da justiça, iriam sem dúvida para o castigo do fogo (II, 32:2). Tem-se
assim, novamente, um vislumbre do lugar que as boas obras ocupam na
soteriologia do bispo de Lião.
O bispo de Lião afirma que Platão foi o primeiro a adotar essa doutrina.
Ele recorda que o filósofo ateniense tentou explicar a falta de memória das
almas dizendo que há um demônio que preside a entrada delas nesta vida e
que esse demônio as faz beber a taça do esquecimento antes que ingressem
nos corpos. Irineu zomba dessa explicação:
O Pai de todas as coisas concede a duração pelos séculos dos séculos aos
que são salvos, porque não é nem de nós nem de nossa natureza que vem a
vida, mas ela é concedida segundo a graça de Deus. Portanto, quem
guardar o dom da vida dando graças àquele que lha deu receberá também a
longevidade pelos séculos dos séculos, mas quem a recusar com ingratidão
para com o Criador por tê-lo criado, não reconhecendo aquele que lha deu,
priva-se por sua conta da duração pelos séculos dos séculos. Por isso o
Senhor dizia aos que lhe são ingratos: “Se não fostes fiéis no pouco, quem
lhes confiará o muito?”, deixando entender que todos os que são ingratos
na curta vida temporal com aquele que lha concedeu, não merecem receber
dele a longevidade nos séculos dos séculos.151
No tocante à perdição eterna, o livro III diz, logo no início, que todos os
hereges condenam a si mesmos, pois se opõem à própria salvação quando
resistem tanto ao Filho quanto ao Pai (III, 1:2). O fogo do inferno foi
preparado por Deus para o diabo e seus anjos (III, 3:3), mas o Salvador,
quando vier como Juiz, julgará os deformadores da verdade e os que
desprezam seu Pai e sua vinda, enviando-os para esse mesmo fogo eterno
(III, 4:2). Aliás, ele já veio uma vez e manifestou-se para que aqueles que
deviam ser condenados conhecessem o seu Juiz (III, 9:1).
Assim, é certo que os incrédulos deste século não terão parte na herança da
incorruptibilidade no século futuro (III, 7:1-2) e serão confundidos por
Cristo no momento da retribuição (III, 18:5). A razão pela qual serão
castigados é a recusa do dom da adoção, o desprezo pela encarnação do
Verbo de Deus, a ingratidão pela obra do Filho e a perseverança na prática
do mal (III, 19:1; 23:3).
Esse castigo de Deus não detrata sua bondade nem sua sabedoria. Na
verdade, sua aplicação manifesta a justiça do Senhor que condena
exatamente quem deve ser condenado. Sequer pode ser dito que tal
condenação é cruel, pois é precedida e prevenida pela bondade (III, 25:3).
Para Irineu, uma vez que o homem é livre para decidir como viver, ele e
somente ele é o responsável por sua própria e justa condenação:
Não é, portanto, diverso aquele que cria a palha daquele que cria o trigo,
mas único e idêntico, e será ele o juiz, isto é, o que os separará. Contudo, o
trigo e a palha são seres sem alma nem inteligência e o que são é por sua
própria natureza que o são; o homem, porém, é racional e por isso
semelhante a Deus; criado livre e senhor dos seus atos é para si mesmo a
causa de ser ora palha ora trigo. Por isso será justamente condenado,
porque, racional que é, abandonou a reta razão e, vivendo como os
irracionais, contrariou a justiça de Deus...153
O dia do juízo selará essa condenação que terá como base o fato de terem
escutado a voz do Filho de Deus, mas terem se mantido deliberadamente
rebeldes, não se sujeitando á sua sabedoria (IV, 27:1,4). Esse dia será
inaugurado quando o Senhor vier pela segunda vez, no final dos tempos,
trazendo maior terror sobre a terra do que aquele que trouxe sobre Sodoma
e Gomorra, matando os ímpios com o sopro dos seus lábios e separando o
trigo da palha que será queimada em fogo inextinguível (IV, 33:1,11; 36:3-
4).
154 Ibid., IV, 26:2, p. 450.
Assim, segundo ele, não se deve duvidar que Deus fará a carne morta
participar novamente da vida. Isso, porém, só ocorrerá ao tempo da
consumação final. Antes disso, as almas dos justos são levadas ao Paraíso,
exatamente o mesmo lugar de onde foi expulso Adão depois de ter pecado.
Ali, elas aguardam a redenção de seus corpos (V, 5:1). Irineu fornece
maiores detalhes sobre isso no fim do Livro V:
Tendo o Senhor ido entre as sombras da morte, onde estavam as almas dos
mortos, e ressuscitando depois corporalmente, e depois de ressuscitado,
sendo levado ao céu, indicou que o mesmo aconteceria com seus
discípulos, pois era para eles que o Senhor fez tudo isso: as almas deles
irão a um lugar invisível estabelecido por Deus e aí ficarão até a
ressurreição, è espera dela; depois reassumirão seus corpos numa
ressurreição perfeita, isto é, nos seus corpos, da mesma forma que o
Senhor ressuscitou, e irão à presença de Deus.155
Irineu destaca que a carne e o sangue, conforme ensina Paulo, não podem
herdar o Reino de Deus (1Co 15.50). Por isso, somente os corpos dos que
receberam o Espírito Santo e o conservaram pela fé e pela vida casta
poderão, na ressurreição, tomar posse da herança divina (V,9:1-4). Estes,
como “árvores humanas”, ao receberem o enxerto do Espírito não
perderam sua natureza de carne, mas mudaram a qualidade dos frutos que
produziam, isto é, as suas obras, podendo agora ser chamados de homens
espirituais (V, 10:2).
Quanto aos demais, os que rejeitaram o Espírito de Deus e optaram por ser
somente “carne e sangue”, estes são semelhantes à oliveira silvestre. Não
tendo recebido o enxerto do Espírito, não podem produzir o fruto bom e,
portanto, não têm qualquer utilidade para o proprietário. O destino desses
homens é o mesmo da árvore infrutífera: eles serão cortados e lançados no
fogo (V, 10:2).
O caráter de Deus é a base para o juízo a que Satanás e seus servos estão
destinados. Sendo justo e santo, o verdadeiro Pai se importa com o que os
homens fazem, aprovando-os ou reprovando-os, aplicando também a eles,
em seguida, o que é segundo os méritos de cada um. Repousa, pois, sobre a
natureza santa do Senhor a causa do advento futuro de Cristo que
reaparecerá como juiz. Ele ordenará que o joio seja amarrado em feixes e
queimado no fogo inextinguível, separará os cabritos das ovelhas e os
enviará para o fogo eterno, trazendo, assim, ruína para os que
espontaneamente o negaram quando havia neles liberdade e condições
para crer (V, 27:1).
A causa do castigo, Irineu refere mais uma vez, está no homem. É ele que,
por sua própria vontade, se afasta de Deus. E a separação de Deus produz
morte, trevas e privação de seus bens. Sendo eterno o desfrute dos bens de
Deus, também eterna é a privação deles. Por isso o Pai não pode ofertar o
seu Reino àqueles que se privaram de tudo o mais que ele lhes ofertou (V,
27:2; 28:1).
Deus concluiu no sexto dia toda a obra que fizera e no sétimo dia
descansou... Esta é a descrição do passado, tal como aconteceu, e ao
mesmo tempo uma profecia para o futuro: com efeito, se “um dia do
Senhor é como mil anos”, se a criação foi acabada em seis dias, está claro
que a consumação das coisas acontecerá no sexto milênio.157
156Irineu atribui esse ensino a Justino, mas não é possível encontrá-lo nas
obras desse autor acessíveis na atualidade.
Antes, porém, aparecerá a besta, realizando em si a recapitulação de toda a
heresia e mal perpetrados durante os seis mil anos de história humana (V,
28:2). É por isso que seu número é seiscentos e sessenta e seis: o número
seiscentos demonstra que ela recapitulará a apostasia que existiu nos
seiscentos anos da vida de Noé, antes do dilúvio; já o número sessenta e
seis evoca a estátua de Nabucodonozor que tinha sessenta côvados de
altura e seis de largura, por causa da qual os justos foram lançados na
fornalha, prefigurando o que aconteceria com os santos no final dos
tempos.
O bispo de Lião propõe que, depois que o Anticristo tiver reinado três anos
e meio e tiver se assentado no templo de Jerusalém, o Senhor Jesus voltará
e o lançará no lago de fogo com todos os seus seguidores (V, 30:4). Então
os ressuscitados, receberão a herança do Reino justos, agora
numa criação renovada (V, 33:3). Alguns dentre os santos, porém, aqueles
que o Senhor julgar dignos, uma vez ressuscitados serão levados
diretamente para o céu (V, 31:2).
O Reino que então será inaugurado será terreno e literal. Nele, conforme
testemunham os profetas do Antigo Testamento, e conforme o apóstolo
João testificava ter ouvido da própria boca do Senhor, a terra produzirá
abundantemente toda espécie de alimentos, os animais viverão em
harmonia entre si e se submeterão completamente aos homens (V, 33:3-4).
Trata-se, assim, do sétimo milênio, correspondente ao sétimo dia que foi
santificado quando Deus descansou da obra da criação (V, 33:2; 36:3).
A propriedade da terra que Deus lhe tinha prometido e que não recebeu
durante toda a sua estada aqui na terra, é necessário que a receba com a
sua posteridade, isto é, os que temem a Deus e crêem nele, na ressurreição
dos justos... Ora, Deus prometeu a herança da terra a Abraão e sua
posteridade; mas, se nem Abraão nem a sua posteridade, que são os
justificados pela fé, recebem agora a herança na terra, eles a receberão na
ressurreição dos justos, porque Deus é verídico e estável em todas as
coisas. É por isso que o Senhor dizia: “Bem-aventurados os mansos porque
herdarão a terra”.158
Deus (1).
Irineu afirma taxativamente que nenhum homem que rejeite esse Deus
trino poderá escapar do seu julgamento. Nem mesmo os anjos que se
afastaram dele se livrarão naquele dia, pois é possível evitar a grandeza de
sua bondade, mas não se pode fugir da força do seu poder (9).
Irineu entende que em Isaías 53.8, na parte que diz “por juízo opressor foi
arrebatado” (ARA), o profeta fala da remoção desse julgamento e não da
remoção do Servo sofredor. Segundo ele, essa “remoção” terá aspectos
diferentes, redundando em salvação para alguns e em tormentos para
outros.
160 IRINEU DE LIÃO. The demonstration of apostolic preaching.
Capítulo 56. Traduzido para o inglês por J. Armitage Robinson. Londres:
Society for Promoting Christian Knowledge, 1920. p. 119. Minha
tradução.
Esse Deus impassível e tão distinto das criaturas pode ser conhecido por
todos porque a razão inerente à natureza humana testemunha a existência
de um único Criador. A todos também foi dada uma fina intuição da sua
majestade e poder (Contra as heresias II, 6:1).
Em toda a sua obra, Irineu insiste que os que negam essas verdades são
contados entre os piores blasfemadores e, por isso, jamais poderão escapar
do fogo preparado para os inimigos de Deus. Aliás, conforme visto acima,
é forte a ênfase presente nos escritos de Irineu sobre o castigo reservado
aos hereges que negam o Deus das Escrituras.
Cristo se fez carne em Jesus de Nazaré. Ao encarnar-se, seu corpo não foi
um arranjo “psíquico” visível e palpável, mas a mesma carne plasmada da
terra por Deus para Adão (Contra as heresias I, 9:3: III, 9:1; 11:3; V,1:2;
Demonstração 6, 51). O Filho de Deus tinha, assim, uma humanidade
perfeita (Contra as heresias V, 2:1; Demonstração 51-53). Por isso,
sujeitou-se à lei dada aos homens e também foi capaz de santificá-los
(Contra as heresias II, 22:4).
Foi o próprio Deus que enviou Cristo para a salvação dos perdidos (Contra
as heresias II, 10:2). Então, o Verbo encarnado habitou entre os homens e
sofreu em seu lugar (Contra as heresias I, 9:2;10:1; III, 9:3; V, 18:3;
Demonstração 3). Diferente dos éões que originaram a matéria, Cristo
padeceu sem correr qualquer risco de corromper-se e esse seu
padecimento serviu para levar os que haviam se afastado do Pai ao
conhecimento e à proximidade dele (Contra as heresias III, 4:2;
Demonstração 86).
Tendo cumprido sua obra, o Senhor subiu aos céus e voltará um dia não só
para julgar, mas também para reinar para sempre sobre a casa de Jacó, no
trono de Davi (Contra as heresias III, 10:2; 16:8; Demonstração 62),
sendo esse o tempo em que restaurará todas as coisas (Contra as heresias
III, 12:3; Demonstração 57, 61).
Com base na pregação de Pedro em Atos 2.22-27, Irineu afirma que, após
a morte, Cristo experimentou por algum tempo as angústias do inferno.
Porém, foi liberto pela ressurreição, pois não era possível que ficasse
retido ali (Contra as heresias III, 12:2), especialmente levando-se em
conta que em suas mãos estão as chaves da morte e do inferno (Contra as
heresias IV, 20:11).
Segundo o bispo de Lião, Cristo foi até onde estavam as almas dos mortos
e depois ressuscitou para apontar o que acontece com seus discípulos, pois
a alma destes também, depois da morte, vai para um lugar estabelecido
por Deus, onde aguarda a ressurreição do corpo (Contra as heresias V,
32:2).
Uma segunda razão, porém, é ainda apontada pelo bispo de Lião para
justificar a descida de Cristo às “regiões inferiores”. Segundo Irineu,
Cristo foi ao Hades para levar as boas novas da sua vinda e a remissão dos
pecados aos que creram nele e o esperaram antes do seu primeiro advento.
Estes seriam os patriarcas, os profetas e todos os justos do Antigo
Testamento que anunciaram a vinda do Senhor e viveram em retidão
(Contra as heresias IV, 33:1; Demonstração 78).
É difícil para alguns cristãos aceitar o fato de que Jesus realmente foi até o
inferno. Contudo, ele não desceu ao compartimento do inferno onde há
fogo e enxofre. Antes da ressurreição de Cristo, o inferno tinha dois
compartimentos. De um lado estava o lugar de tormento – o fogo; do
outro, o Paraíso. Jesus desceu ao lado do inferno onde se situava o Paraíso,
removeu dali os espíritos de todos os justos que já haviam morrido e os
levou com ele “acima de todos os céus”.162
Vê-se que, no tocante ao que aconteceu com o Salvador entre sua morte e
ressurreição, o ensino de Irineu foi acolhido substancialmente pela igreja,
consolidando-se ao longo dos séculos, moldando permanentemente o
pensamento cristão e demonstrando, assim, a envergadura desse teólogo
do período subapostólico.
Já foi dito que, para o bispo de Lião, as boas obras são essenciais para a
salvação, pois Deus não suporta nada mau ou injusto (Contra as heresias
IV, 18:6; 36:6; Demonstração 98). É preciso, porém, destacar que, segundo
seu entender, a prática do bem está intrinsecamente associada à guarda da
lei de Deus, em especial os Dez Mandamentos.
Ora, esse fato confere alto grau de credibilidade aos moldes hermenêuticos
que o bispo de Lião utilizou ao interpretar os textos neotestamentários que
falam sobre a perdição eterna. A rigor, pode-se deduzir a partir de Irineu
que os primeiros intérpretes do cristianismo criam na existência de um
inferno real e, ainda que, sob a ótica do bispo de Lião, houvesse certa
obscuridade no tocante à duração das penas infernais, é certo que sua
ameaça era considerada real, podendo e devendo ser usada como um
poderoso elemento inibidor de desvios dentro da igreja e como um veículo
notadamente eficaz de propagação da fé entre os pagãos.
Irineu deve ser reconhecido também pelo fato de, dentro dos limites da
ortodoxia cristã, ter demonstrado grande originalidade, especialmente na
área soteriológica. Franco Pierini, destacando a grande capacidade de
elaboração teológica do bispo de Lião, chama a atenção para o fato de, em
sua luta contra a falsa gnose, Irineu ter proposto a noção de livramento das
penas futuras baseada na “pedagogia divina”, isto é, no fato de Deus levar
o homem a conviver eternamente com ele somente após ensiná-lo a
obedecer livremente a sua vontade e também depois de acostumálo a andar
em sua presença.164
Ainda que essa noção, por valorizar demais a liberdade humana e o papel
do bom proceder na salvação das pessoas, ofusque um pouco o brilho de
Irineu, especialmente aos olhos da teologia reformada, a posição de honra
atribuída pelos historiadores cristãos ao bispo de Lião deve permanecer
intocável. Isso porque entre os escritores de sua época ninguém foi capaz
de superá-lo como defensor da fé diante da heresia e, no que diz respeito
aos objetivos desta obra, nenhum outro personagem forneceu provas tão
contundentes de que os pais da igreja do século II consideraram a doutrina
da perdição futura parte essencial da mensagem cristã e fizeram uso dela
como instrumento eficaz na proteção e divulgação do cristianismo.
164PIERINI, Franco. A Idade Antiga: curso de história da igreja. 4 vols.
São Paulo, Paulus, 1998. vol. 1, p. 80-81.
CONCLUSÃO
É bom lembrar ainda que a ênfase no ensino acerca do inferno não visava
somente a defesa, mas também o ataque. Era assim que os apologistas, por
exemplo, se dirigiam às autoridades públicas com um discurso ameaçador,
falando dos juízos futuros de Deus enquanto defendiam a fé, e usando o
mesmo discurso para gerar temor e arrependimento nos pagãos que
perseguiam cruelmente o povo de Deus.
É claro que isso não se constituía num anseio alegre dos cristãos. Nesse
sentido, John McGuchin recorda as palavras de Justino de que o castigo
divino sobre os ímpios não vinha imediatamente por causa do amor
paciente de Deus pelo gênero humano (Primeira Apologia 28).166 Ora, os
constantes alertas dos pais da igreja de então mostram que esse amor de
Deus pelos perdidos estava presente também em seu povo. Porém, tais
sentimentos não criavam expectativas infundadas, de modo que
permanecia nos discursos da época o anúncio das penas futuras como parte
integrante e fundamental da mensagem cristã.
Essa vívida crença nas penas infernais, ensinada e utilizada pelos pais da
igreja do século II, perdurou na igreja por muito tempo. O historiador
inglês Richard Bauckham escreveu:
Até o século dezenove quase todos ensinaram a realidade do tormento os
teólogos cristãos eterno no inferno.
O corpo será totalmente tomado pelo tormento até o máximo e cada parte
dele será completamente envolvida pelo sofrimento. Os maus estarão
mergulhados numa dor extenuante, cada junta, cada nervo deles serão
invadidos por um suplício inexprimível. Eles serão torturados até a ponta
dos seus dedos. Todo o seu corpo estará repleto da ira de Deus. Seus
corações, suas entranhas e suas cabeças; seus olhos e suas línguas; suas
mãos e seus pés estarão completamente cobertos com a fúria da ira de
Deus.168
O advento do Iluminismo, porém, com sua cosmovisão racionalista,
afastou da mente humana e até do próprio cristianismo a noção de
realidade do fogo eterno. De fato, teólogos liberais trabalharam
ativamente para destruir nesse particular a herança apostólica protegida
pelos primeiros pais da igreja e, ao fazê-lo, não desfiguraram somente a
soteriologia ou a escatologia cristã, mas afetaram também o próprio
conceito de Deus, pois, a inexistência do castigo, conforme lembra
Justino, implica que Deus também não existe ou, se existe, não se importa
com os assuntos dos homens (Segunda Apologia 9:1).
167 BAUCKHAM, Richard J. Universalism: A historical survey.
Themelius 4.2 (jan. 1979):48. Citado por PETERSON, Robert A. Hell on
trial: The Case for Eternal Punishment. Phillipsburg, New Jersey: P&R
Publishing, 1995. p. 97.
168EDWARDS, Jonathan. Citado por GERSTNER, John H. Jonathan
Edwards on heaven and hell. Morgan, PA: Soli Deo Gloria Publications,
1998. p. 56, nota 37.
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO DE HIPONA. A cidade de Deus: contra os pagãos. São
Paulo: Vozes, 1990.
CADOUX, Cecil John. The early church and the world: a history of the
Christian attitude to pagan society and the state down to the time of
Constantinus. Edinburgh, UK: T. & T. Clark, 1955.
APÊNDICE
TERTULIANO DE CARTAGO E SUA CRÍTICA AO
ANIQUILACIONISMO
Acaso a alma espera sempre pelo corpo para sofrer ou se alegrar? Não se
basta, ao contrário, para experimentar alegria ou dor? Quantas vezes o
corpo está intacto e só ela se atormenta pela ira, pela revolta, pelo tédio...
Também, portanto, lá no além poderá sofrer e alegrar-se sem a carne, se
mesmo com a carne intacta sabe sofrer, se quer, e se alegrar, se quer. Se
isso lhe é possível em vida, quanto mais, por decreto de Deus, depois da
morte!172
morte.
por Eduardo Pimenta. Porto: Lello & Irmão Editores, 1964. p. 333.
SOBRE O AUTOR
Marcos Granconato é pastor da Igreja Batista Redenção, em São Paulo.
Formou-se em Teologia pelo Seminário Bíblico Palavra da Vida e em
Direito pela Universidade São Francisco de Bragança Paulista. Obteve o
título de mestre em Teologia Histórica (Th..M)