Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
BARBOSA, W. Marxismo - História, Política e Método PDF
BARBOSA, W. Marxismo - História, Política e Método PDF
APRESENTAÇÃO
1 – BREVE BIOGRAFIA DE MARX
2 – CAPITALISMO E MARXISMO
2.1 – Capitalismo e crise
2.2 – Capitalismo e Experiências Pós – Revolucionárias
2.3 – Capitalismo e Conflito Social
2.4 – O Marxismo Reprimido
2.5 – Construir a Autonomia do Marxismo
3 – DIALÉTICA E HISTÓRIA
3.1 – Sociedade e Totalidade em Marx
3.2 – O Método Dialético
3.3 – A Concepção Materialista da História
3.3.1 – O Conceito de “Modo de Produção”
3.3.2 – Modo de Produção e Transformação Histórica
3.3.3 – Modo de Produção e Formação Social
3.3.4 – O Conceito de “Classe Social”
3.3.5 – O Conceito de “Ideologia”
3.3.6 – O Conceito Estado
3.3.7 – Práxis e Política
4 – CONCEPÇÃO MARXISTA DE POLÍTICA E DE ESTADO
4.1 – A Influência de Hegel
4.2 – O Estado no “Jovem Marx”
4.3 – A Concepção de Estado no Marx de 1848 – 1852
4.3.1 – Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte
4.3.2 – O Golpe do 18 Brumário e o Bonapartismo
4.3.3 – Estado e Representações de Classe no Bonapartismo
4.4 – A Origem do Estado: A Contribuição de Engels
4.5 – A Concepção de Estado em Lênin
4.5.1 – Lênin e o Estado
4.5.2 – Lênin e os Sovietes
3
4.6 – As Contribuições de Gramsci
4.7 – A Violência
5 – VERTENTES E INFLUÊNCIAS HISTORIOGRÁFICAS MARXISTAS
5.1 – Escola Annales e o Marxismo
5.1.1 – A Influência da Escola Annales na Historiografia Marxista
5.1.2 – Contradições na Relação Annales/Marxismo
5.2 – Historiografia Marxista Inglesa
5.2.1 – Vertentes da Historiografia Marxista Inglesa
5.2.2 – A História de Baixo para Cima
5.2.3 – Objeto de Investigação
5.3 – Historiografia Marxista Soviética
5.4 – Problemas e Perspectivas das Vertentes Historiográficas Marxistas
5.5 – O Horizonte Historiográfico Marxista
6 – ESTADO E AUTORITARISMO NO BRASIL: O QUE COMEMORAR?
6.1 – Sociedade e Estado Escravista Moderno no Brasil
6.2 – Sociedade e Estado Burguês no Brasil
6.3 – Estado e Rebeldia Popular
6.4 – A Necessária Desconstrução dos Mitos
BIBLIOGRAFIA
4
APRESENTAÇÃO
Karl Marx nasce em Treves, uma pequena cidade de 12.000 habitantes e de cultura
franco-germânica, capital da província alemã do Reno, em 5 de maio de 1818. Sua família
pertence à pequena burguesia judia próspera. Embora descendendo de uma longa linhagem de
rabinos (tanto do lado paterno quanto materno), não sofre uma forte doutrinação em favor do
judaísmo.
O pai de Marx, o advogado Hirschel Marx, adere intelectualmente a um racionalismo
tipicamente iluminista. Posteriormente, quando Treves passa a sofrer a dominação prussiana
de Frederico Guilherme III, que era anti-francês e anti-semita, converte-se ao protestantismo e
muda o seu nome para Heinrich Marx, possivelmente em decorrência de motivos materiais,
visto que convive com a ameaça de não poder exercer a sua profissão porque é vedado à
época acesso a cargos públicos aos judeus que habitam a província do Reno (Bottomore,
1988, P. 239).
Marx conduz seus estudos primários e secundários na cidade de Treves, quando esta
se encontra mergulhada sob a administração absolutista prussiana marcadamente
autoritária/burocrática e anti-industrial (para a região do Reno). A resistência à administração
prussiana, embora desorganizada, se estende para diversos setores, a exemplo do Ginásio do
Estado, no qual Marx estuda. Marx envolve-se com esta resistência.
Mesmo antes de seguirem estudos em nível universitário Marx já mantém leituras
clássicas. Por meio do pai conhece Lessing, Voltaire e Rousseau, e por meio do amigo e
futuro sogro, o barão Ludwig Von Westphalen, conhece Homero e Shakespeare. Nesta fase,
por meio de dissertações realizadas no Ginásio de Treves, já é possível identificar duas idéias
que marcariam profundamente o pensamento de Marx. A primeira é a idéia de que o homem
feliz é aquele que busca fazer todos os homens felizes, isto é, que trabalha em prol da
humanidade. A segunda é a idéia de que os homens não podem determinar, em grande
medida, o seu desenvolvimento, isto é, estão profundamente condicionados pelo estado social
da sua existência.
Em 1835, aos 17 anos Marx é enviado para a pequena cidade de Bonn, dando início
ao curso de direito na Faculdade de Direito da Universidade de Bonn, com a intenção de
6
estudar jurisprudência. O romantismo do ambiente, não raramente marcado por bebedeiras,
declarações amorosas e “duelos” compromete o desempenho acadêmico de Marx. No ano
seguinte é encaminhado por seu pai para a cidade de Berlim, com os seus 300 mil habitantes.
Na Universidade de Berlim Marx passa os quatro anos seguintes conduzindo seus estudos. A
adesão ao romantismo, na sua estadia em Bonn, é abandonada em favor do hegelianismo, na
sua estadia em Berlim, bem como os estudos de jurisprudência em favor dos estudos de
História e Filosofia.
Marx abandona a carreira de advogado e pretende conquistar uma cátedra
universitária. Além da satisfação intelectual Marx procura as condições econômicas
necessárias para viabilizar o seu casamento com Jenny Westphalen cujo noivado oficial
ocorre em 1837. Para tanto, depende do doutoramento. Conduz os estudos durante os anos de
1838,1839 e 1840. Ao final redige a tese de doutorado entitulada Diferença entre a Filosofia
da Natureza de Demócrito e de Epicuro em 1841. Marx louva o fato de Epicuro ter buscado
encontrar um lugar para a liberdade do homem em face da natureza, opondo-se ao
determinismo natural de Demócrito.
Segundo Giannotti, esta obra recupera uma problemática levantada por Hegel1 na
Fenomenologia do Espírito, na qual este autor considera o estoicismo e o ceticismo grego
como etapas do desenvolvimento do Espírito, momentos em que a consciência de si liberta-se
de seu vínculo com o mundo e se afirma soberana. O sábio estóico, recolhido em si mesmo, e
o filósofo cético, armando seu pensamento sobre a dúvida, estariam dando prova de intensa
liberdade individual, inovadora, mesmo no âmbito da Pólis grega (Marx, 1978, P. IX e X).
Marx, por meio de um diálogo filosófico crítico com Hegel, percorre outro caminho.
Busca identificar as diferentes funções desempenhadas pelo atomismo naqueles dois filósofos
racionalistas e conclui que o átomo em Demócrito (Séc. V-IV a.c.) representaria uma
categoria abstrata, isto é, que é apenas uma hipótese a exprimir uma dimensão empírica
(sensível) da natureza. Em Epicuro (Séc. IV-III a.c.), por sua vez, o átomo representaria uma
forma natural que a consciência assumia de si mesma. Com Epicuro, na interpretação de
Marx, a atomística transformaria-se em um princípio absoluto, rompendo a separação entre
espírito e matéria.
A defesa da tese de doutorado prevista de início para a Universidade de Berlim é
transferida para a Universidade de Iena e ocorre em 15 de abril de 1841. Isto porque as
1
Hegel (1770-1831) desenvolve um sistema filosófico no qual o Estado moderno é concebido como encarnação
dos ideais da moral mais objetivos e manifestação da razão no domínio da vida social. A sua filosofia se
convertia em uma espécie de ideologia oficial legitimadora do Estado prussiano (Marx, 1978, P. VIII e IX).
7
esperanças de uma maior abertura do regime absolutista prussiano alimentado pelos círculos
liberais se frustra com a ascensão de Frederico Guilherme IV ao poder em 1840, ano da morte
de Frederico Guilherme III, o que veio a refletir no ambiente acadêmico da Universidade de
Berlim. Marx recusa-se a se submeter e expor a este ambiente e a professores encarregados
das qualificações do doutorado, a exemplo do professor conservador Stahl.
O doutoramento de nada adiantou para Marx obter a cátedra universitária. No ano de
1841 frustra o empenho do seu amigo Bruno Bauer em ajuda-lo a obter a cátedra. No mesmo
ano Bruno Bauer perde seu emprego e é proibido de continuar lecionando na Universidade de
Bonn.
Marx integra-se no movimento intelectual denominado Esquerda ou Jovens
Hegelianos2. Este grupo busca submeter os textos sagrados e a propriedade privada à crítica,
conduz uma crítica radical do cristianismo e valoriza a luta política. Este grupo também
conduz, de um ponto de vista liberal, oposição a autocracia prussiana.
Marx dá início a uma fase de transição quanto às suas reflexões e ocupações no
âmbito do próprio movimento da Esquerda Hegeliana. Os problemas políticos e sociais
assumem progressivamente a centralidade no seu pensamento.
Problemas esses que nesta fase assumem uma abordagem pública por meio do
envolvimento de Marx com a imprensa.Marx tem consciência da importância da imprensa
2
Hegel compreendia o Estado, a religião e a filosofia como supremas manifestações de Deus, entendido como o
absoluto. A religião cristã se apresentava como a mais completa revelação da razão enquanto Espírito Universal.
Nesse processo de manifestação, Jesus desempenharia o papel de mediador entre a generalidade abstrata de
Deus-Pai e a individualidade concretíssima do espírito santo. Após a morte de Hegel em 1831, seus discípulos
estão divididos. Alguns, denominados direita hegeliana, prendem-se a elementos conservadores da filosofia de
Hegel,à apologia do Estado prussiano, a defesa da ordem constituída, outros, denominados esquerda hegeliana,
procuram aplicar o método historicista de Hegel a análises das questões sociais. A esquerda ou jovens
hegelianos dão início a uma revisão crítica do seu sistema filosófico.
David Strauss (1808-1874) busca separar a figura histórica de Jesus de sua interpretação religiosa e
filosófica. O resultado é, de um lado, a retomada da luta pelo direito de submeter os textos sagrados à crítica
histórica e, de outro, a revolução da doutrina hegeliana provocando-lhe a crítica política. Seguindo o caminho
aberto, Bruno Bauer (1809-1872) procura separar o desenvolvimento do espírito do desenvolvimento do mundo,
transferindo para a consciência de si a tarefa de determinar o curso da História. Arnold Ruge (1802-1880) trouxe
a luta contra o pensamento conservador hegeliano para o terreno propriamente político frente ao endurecimento
do governo de Frederico Guilherme IV da Prússia. Moses Hess (1812-1875) e Max Stirner (1806-1856) refletem
acerca da propriedade e debatem aspectos do socialismo e anarquismo.
Ludwig Feuerbach (1804-1872), busca mudar os sinais do sistema elaborado por Hegel, de modo que,
ao invés de partir-se do espírito, partiria-se da natureza e do homem. Feuerbach privilegia o mundo sensível, a
sensibilidade e o coração, deslocados para o nível do intelecto. Tal concepção traduz-se em um programa
político: o princípio feminino, o coração, sede do materialismo francês, deveria aliar-se ao intelecto, princípio
masculino, sede do idealismo alemão. O programa político de Feuerbach não é assumido politicamente por seu
criador, ou seja, não é para o terreno da luta política. Ludwig Feuerbach recolhe-se no seu isolamento e declina-
se de imiscuir em política. Surpreende a muitos quando, ao final da sua vida, filia-se ao Partido Social-
Democrata Alemão (Marx, 1978, IX e X).
8
como veículo com capacidade de informar com objetividade e de criticar com
independência, uma necessidade inadiável em sociedades em que a censura, a corrupção, a
hipocrisia, o cinismo convertem-se em instituição. Todavia, Marx condena a liberdade da
imprensa como uma liberdade comercial, isto é, de converter a imprensa em uma “indústria”
movida pela lógica do mercado, do lucro e do poder. Dessa forma não seria possível informar
com objetividade e criticar com independência (Konder, 1968, p. 47-49).
No período de edição da Gazeta Renana3 Marx depara-se com os chamados
“interesses materiais”4. Na província alemã do Reno os camponeses continuam recolhendo
lenha nas florestas como se estas estivessem submetidas ao direito consuetudinário, enquanto,
de fato, encontram-se, agora, subordinadas a outro tipo de propriedade, de caráter privado e
alienável. Como resultado, e atendendo a apelos de proprietários, o Estado move processos
contra o “furto” de madeira realizado pelos camponeses. Conforme Giannotti, a investigação
que Marx inaugura por meio da análise da condenação dos camponeses pela Dieta Renana,
abria o caminho para a idéia de uma revolução social; e para que esta viesse modificar a
própria estrutura da sociedade como um todo (Marx, 1978, P. X e XI).
As publicações de Introdução a uma Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e
A Questão judaica, no primeiro e único número dos Anais Franco-Alemães5, traz em si uma
nova noção de crítica, o que conflitua Marx com a Esquerda Hegeliana. Para Marx, a crítica
da Filosofia do Direito de Hegel deveria partir da crítica do Estado real. Uma crítica
desalienada, porque recusaria mover-se exclusivamente no âmbito do discurso.
A crítica, movendo pensamento e prática política, poderia assumir concretude,
penetrando as massas populares e convertendo-as em força social capaz de mudar a sociedade.
Portanto, para Marx, toda crítica seria inócua enquanto não atingisse a raiz do próprio homem
enquanto ser concreto e a sociedade na qual este vive.
A noção de crítica de Marx, ancorada na unidade dialética estabelecida entre teoria e
práxis e na desconstrução/construção do Estado e das relações sociais sobre os quais este se
apoia, conduz Marx a identificar a luta de classes como o motor da História e o proletariado
como o ator fundamental da crítica e da subversão da estrutura da sociedade moderna (nela
incluída o próprio Estado). A noção de crítica de Marx completa-se com a contribuição de
3
Diário liberal radical, apoiado por industriais renanos e publicado na cidade de Colônia. Marx ocupa a função
de redator-chefe desse diário. 4Por interesses materiais, Marx concebe os interesses de classes que emergiam das
condições materiais, qual seja, o conjunto das condições econômicas acumuladas, a forma de apropriação e
distribuição dos excedentes e o estágio da consciência social.
5
Órgão da propaganda revolucionária e comunista, que se pretendia uma ponte entre o socialismo francês e o
hegelianismo radical, dirigido por Marx em Paris no ano de 1844.
9
6
Engels, para o qual a sociedade civil é o terreno no qual os homens se defrontam como
particulares e proprietários, mergulhados na alienação. Para Engels, a Economia Política de
Adam Smith e David Ricardo, enquanto ciência da sociedade civil, não poderia ser nada mais
do que o lugar da alienação visto que, por não ter posto em causa o postulado da propriedade
privada e por não ter anteposto ao privatismo da sociedade civil a universalidade do homem,
não conseguiria conduzir a crítica da sociedade moderna (Marx, 1978, P. XIII e XIV).
Marx incorpora a noção de crítica de Engels mas a ultrapassa, visto que reconhece
que a forma de trabalho do sistema capitalista, orientado para a acumulação privada e para o
mercado, mergulha o homem na alienação. O homem, sob relações de assalariamento,
produziria uma mercadoria para trocá-la por outra mercadoria. A apropriação de poucos em
detrimento de muitos se, por um lado, conduziria o homem à alienação, por outro, não poderia
impedir a recriação da necessidade das mercadorias que se encontrassem em outras mãos, de
forma que criaria um espaço e um ambiente de tensão nas relações sociais que projetaria a sua
solução para além da propriedade privada e do mercado. Nos Manuscritos Econômicos e
Filosóficos, elaborados na sua estadia em Paris (somente publicado em 1930), Marx identifica
um contraste entre a natureza alienada do trabalho no capitalismo e uma sociedade comunista
na qual os seres humanos desenvolveriam livremente sua natureza em produção cooperativa.
O pensamento de Marx apresenta-se maduro. Completa-se, portanto, o processo de
ruptura com a sua base de origem, inaugurada no âmbito da Esquerda Hegeliana. A própria
influência de Ludwig Feuerbach é superada. No período compreendido entre 1842 e 1847,
Marx converte-se em um intelectual e ativista político com uma concepção humanista do
comunismo (Bottomore, 1988, P. 239).
A prática intelectual e política (e, provavelmente, a sua etnia) rende a Marx
perseguição e exílio. Marx busca ter acesso à carreira universitária, mas é impedido pelo
governo prussiano; converte-se em editor da Gazeta Renana, mas teve o jornal fechado pelo
6
A divisão da sociedade em classes ou estamentos concorre decisivamente para a separação entre a sociedade
política ou Estado (organização dos que mandam) e uma sociedade civil (conjunto em nome do qual se governa).
Hegel atribui ao conceito sociedade civil uma significação econômica e jurídica, onde os indivíduos singulares se
opõem em função de seus interesses particulares. O Estado aparece como a verdade da sociedade civil, que não
é, graças ao jogo da astúcia da razão, mais do que seu próprio fenômeno, nele realizado. A sociedade civil é um
instante de uma processos que atinge seu ponto máximo na sua absorção pelo Estado (Althusser, 1979, P. 97).
Marx cria duas novas concepções de sociedade civil. A primeira identifica sociedade civil com a estrutura
econômica da sociedade. A sociedade civil seria o “mundo das necessidades, do trabalho, dos interesses
particulares, do direito privado” (Marx, 1987, P. 483) ou ainda que ela abarcaria “(...) todo o intercâmbio
material dos indivíduos, em uma determinada fase de desenvolvimento das forças produtivas” (Marx e Engels,
1974, P. 38). A Segunda identifica sociedade civil com o conjunto de partidos, jornais, clubes e associações. Para
Marx da “Crítica do Programa de Gotha”, “(...) o Estado deve ser um órgão subordinado à sociedade”. (Marx,
1946, P. 30).
10
governo; emigra para Paris em 1843 e passa a dirigir os Anais Franco-Alemães, mas tem o
periódico fechado e é expulso da capital francesa.
Radicado em Bruxelas, Marx dedica-se a um estudo intensivo de história e cria a
teoria que ficou conhecida como a concepção materialista da história. Por meio da obra A
Ideologia Alemã, escrita em parceria com Engels, chega a duas conclusões básicas: “que a
natureza dos indivíduos depende das condições materiais que determinam sua produção”; e
que na história da humanidade sucedem-se vários modos de produção, sendo o próprio
capitalismo um modo de produção de caráter transitório7.
Entre 1847 e 1852, Marx e Engels ingressam na Liga Comunista8; elaboram o
Manifesto Comunista, publicado em 1848; participam intensamente da “Primavera dos
Povos” - denominação dada às revoluções de 1848 - em Paris e em Colônia; e fundam em
Colônia a Nova Gazeta Renana sob uma orientação democrática radical contra a autocracia
prussiana. A vitória da contra-revolução reconduz Marx ao exílio em maio de 1849, agora em
Londres, de onde ele não mais sai. Marx elabora, no período imediatamente subsequente, às
obras As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850 e Dezoito Brumário de Luís
Bonaparte.
Marx reconhece na derrota da “Primavera dos Povos” a fragilidade da classe
operária, ainda pequena quantitativamente e dispersa geográfica e politicamente; o
esgotamento da trajetória revolucionária da burguesia, transformada definitivamente em
classe dominante e abertamente contra-revolucionária; e a vitalidade do capitalismo, que
promovia a industrialização em vários países (EUA, Alemanha, França, Itália, Bélgica) e dá
início ao novo expansionismo colonialista na África e Ásia. Esse reconhecimento desperta em
Marx a necessidade de conduzir estudos econômicos de maior fôlego acerca do capitalismo e
de criar uma organização internacional dos trabalhadores.
As obras Esboços da Crítica da Economia Política (produzido entre 1857 e 1858,
mas somente publicado em 1941) e O Capital (o primeiro livro é editado em 1867; quanto
aos livros segundo e terceiro são concluídos por Engels após a morte de Marx) jogam novas
luzes sobre a dinâmica de expansão e de crise do capitalismo. A participação na fundação da
Primeira Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) em 1864, para o qual é eleito para
o seu Conselho Geral e onde convive com intensas disputas políticas contra a ala anarquista
liderada por Bakunin, confirma o seu compromisso com a construção de uma personalidade
7
O ideal burguês concebe o capitalismo como etapa final das transformações da sociedade humana, restando a
este apenas o seu próprio aperfeiçoamento. A ‘era das revoluções’, segundo essa concepção, não teria mais lugar
na história da humanidade.
11
política revolucionária, libertária e internacionalista dos trabalhadores. A elaboração da sua
última obra expressiva, A Guerra Civil em França, onde aborda a Comuna de Paris de 1871,
é acompanhada do progressivo esvaziamento da AIT.
Nos últimos dez anos de sua vida, Marx não produz nenhuma obra expressiva e não
consegue concluir O Capital. A saúde abalada, a perda da esposa e filhos, o esgotamento de
anos de trabalho intelectual extenuante, entre outros fatores, o impedem de conduzir esforços
continuados de sínteses ricas de elementos e que, de maneira tão evidente, haviam
caracterizado sua obra até então (Bottomore, 1988, P. 240). Marx morre na cidade de Londres
em 1883.
2 – CAPITALISMO E MARXISMO
As teses sobre as quais se apóia análise marxista sobre o sistema capitalista mantém a
sua atualidade. As relações sociais entre os homens no capitalismo são reguladas pelo valor de
troca antes do que pelo valor de uso das mercadorias e serviços que eles produzem. Em
síntese, as necessidades humanas encontram-se na dependência direta do poder de compra das
pessoas no mercado.
A satisfação das necessidades humanas apresenta-se como resultado secundário da
produção e do lucro mediado pelo sistema de trocas. É o capital e os bens, não o homem e a
vida, que encontram-se no centro da atividade econômica no sistema capitalista.
O processo de desenvolvimento do capitalismo acirra a dupla contradição presente na
sua base de reprodução. Primeiramente, a contradição estabelecida entre a crescente
produtividade do trabalho social, por um lado, e seu o uso repressivo e destrutivo, por outro.
Em segundo lugar, a contradição estabelecida entre o caráter social da produção e a
apropriação privada dos excedentes.
O capitalismo somente pode resolver essa contradição temporariamente, de forma a
aumentar o seu caráter repressivo e destrutivo por meio do desperdício, do luxo e da
destruição das forças produtivas. A corrida competitiva pelo armamento, pela produção e pelo
lucro proporcionam um elevado grau de concentração do poder econômico - via
centralização/concentração oligopolista e financeira do capital. A expansão econômica
agressiva para o exterior, os conflitos regionais criados e/ou incentivados e as disputas por
8
Organização de trabalhadores alemães emigrados e sediada em Londres.
12
influência continental entre os países de capitalismo central, tendem a formar ciclos
recorrentes de dependência, de guerras e de depressões.
A quinta tese sobre a qual se apóia a análise marxista sobre o sistema capitalista
insere a idéia da possibilidade da transformação social. Segundo Marx, o ciclo de reprodução
do capital carrega a possibilidade histórica de ser interrompido pelo mundo do trabalho em
aliança com outros
setores populares. Isto porque as classes do mundo do trabalho suportam o peso da
exploração econômica, o que as tende levar à perspectiva da transformação social, de forma a
assumir o controle do aparato produtivo e a desencadear a superação das contradições básicas
do sistema capitalista de produção. Por um lado, liquidando com o sistema social de produção
mas de controle e apropriação privados e, por outro, libertar o desenvolvimento das forças
produtivas e estabelecer a integração entre o desenvolvimento das forças produtivas e as
necessidades humanas.
Capitalismo e Crise
9
O conceito ‘departamento econômico’ é primeiramente formulado por Marx (1973, vol. II, 3 seção). Para
compreender a reprodução ampliada do capital em escala nacional, Marx opera uma separação da economia em
Departamento I, produtor de bens de produção e Departamento II, produtor de bens de consumo. Kalecki (1983,
p. 35-55) propôs um novo esquema, desmembrando o segundo departamento econômico (originalmente
15
A mobilização e adequado investimento da poupança social em atividades do
Departamento I, materializada em uma satisfatória ampliação da sua produção, pode acarretar
uma carência de recursos nos Departamentos II e III, formadores da sua demanda. Além disso, a
sua própria acumulação e dos seus agentes financeiros pode ser comprimida pela pressão de
custos que exerce sobre os demais. De uma forma, ou de outra, a crise e os seus sintomas tendem
a reaparecer. Em outras palavras, em uma economia de mercado a cada ‘gargalo’ superado em
um dado período outros se formam.
Na esfera da produção mais ampla (que engloba como etapas a da circulação e a da
produção imediata de mercadorias pelo capital), a crise econômica capitalista se expressa de
forma mais completa e complexa. É nesta esfera que a negação do trabalho vivo pelo morto
(capital) se manifesta na tendência ao crescimento proporcional do valor do capital constante em
relação ao capital variável, levando à queda da taxa média de lucro mesmo com um possível
aumento da taxa de mais-valia.
Para conservar/ampliar a taxa de mais-valia extraída e conservar/baixar custos de
produção, o capitalista recorre ao aumento de capital fixo. O crescimento do capital fixo em
relação ao trabalho - tecnologização da produção - é o principal meio para aumentar a
produtividade do trabalho, e o crescimento do capital fixo em relação ao produto - a capitalização
da produção - é o principal meio para reduzir os custos unitários de produção.
O crescimento do capital fixo por produto unitário é o elemento mais importante para se
obter economias de escala. As empresas sob economias de escala viabilizam o crescimento do
volume de matérias-primas processadas por trabalhador. Como resultado, tanto as matérias-
primas como a produção de mercadorias tendem a aumentar por unidade de trabalho.
Concomitantemente, o maior volume de capital fixo por produto unitário implica maior despesa
de depreciação do referido capital e maiores custos de materiais auxiliares (eletricidade,
combustível, instalações prediais etc) por produto unitário.
Conforme indicou Bottomore,
(...) para métodos mais avançados, a maior capitalização (capital adiantado por produto
unitário) implica maiores custos unitários não relativos a trabalho (capital constante
unitário C), enquanto a maior produtividade implica menores custos unitários com o
trabalho (capital variável unitário V). No salto, o custo unitário de produção C+V deve
declinar, de modo que o último deve mais do que compensar o primeiro. Sob condições
trabalhado por Marx) em Departamento II, produtor de bens de consumo corrente e Departamento III, produtor
de bens de consumo duráveis. Adotaremos o esquema desenvolvido por Kalecki.
16
técnicas determinadas, no momento em que os limites do conhecimento e da
tecnologia existentes forem alcançados, os aumentos subseqüentes no investimento por
produto unitário provocaria reduções cada vez menores nos custos unitários de produção
(Bottomore, 1988, p. 372).
O Marxismo Reprimido
A função do marxismo ortodoxo - superar o revisionismo e o utopismo - não é a liquidação, de uma vez por
todas, de falsas tendências, mas sim uma luta incessantemente renovada contra a influência corruptora de formas
do pensamento burguês sobre o pensamento do proletariado.
Manter o ‘alvo final’ ou a ‘essência’ do proletariado isentos das distorções do materialismo vulgar, significa a
compreensão da realidade, a atividade crítica prática, a superação da dualidade utópica do sujeito e do objeto, da
teoria e da práxis
A medida que a grande indústria se desenvolve, a criação de riqueza real depende menos do tempo de trabalho e
da quantidade de trabalho empregado e mais da potência dos instrumentos colocados em operação durante o
tempo de trabalho. Esses instrumentos e a sua poderosa eficácia não são proporcionais ao tempo de trabalho
imediato requerido pela produção; sua eficácia depende antes do nível científico adquirido e do progresso
tecnológico, ou seja, da aplicação da ciência a produção.. – O trabalho humano não mais aparece então encerrado
no processo de produção; é antes o homem que é ligado a esse processo apenas como supervisor e regulador. Ele
está fora do processo de produção, ao invés de ser o seu agente principal... Nessa transformação, a base da
produção e da riqueza não é mais o trabalho imediato realizado pelo homem, nem o seu tempo de trabalho, mas a
apropriação de sua produtividade universal (poder criador), isto é, de seu conhecimento e de seu domínio da
natureza através de sua existência social; em suma, do desenvolvimento do indivíduo social (das muitas
capacidades). O furto do tempo de trabalho de um outro homem, sobre o qual se funda ainda hoje a riqueza
social, aparece então como uma base bastante miserável, em comparação com a nova base criada pela grande
indústria. Tão logo o trabalho humano, em sua forma imediata, deixe de ser a grande fonte de riqueza, o tempo
de trabalho deixará de ser e de um modo necessário – a medida da riqueza; e o valor de troca deixará de ser a
medida do valor de uso. O sobre-trabalho da Massa (da população) cessará de ser a condição para o
desenvolvimento da riqueza social, e a situação privilegiada de alguns deixará de ser a condição para o
desenvolvimento das faculdades intelectuais universais do homem. Então, cai o modo de produção baseado sobre
o valor de troca
Identificar o método de análise de Marx nos impõe, de início, expor o seu conceito de
“sociedade”. Para Marx, a sociedade, articulada por meio de uma formação social concreta e
específica, seria produto do desenvolvimento individual e da ação recíproca dos homens,
tenham eles consciência disso ou não. Entretanto, não poderiam eleger a formação social em
que se encontram nem tampouco arbitrar livremente sobre suas forças produtivas. A formação
social e as forças produtivas seriam o resultado, respectivamente, das lutas sociais e da ação
sobre a natureza conduzidos por parte dos homens que os precederam.
A sociedade se conformaria em um todo complexo e interdependente, sujeita a
múltiplas determinações. A um determinado nível do desenvolvimento das forças produtivas,
corresponderia um determinado desenvolvimento da produção, do comércio e do consumo.
Um determinado nível do desenvolvimento da produção, do comércio e do consumo,
corresponderia a um determinado desenvolvimento das formas de organização social –
organização da família, das classes sociais etc. Um determinado nível de desenvolvimento das
formas de organização social, corresponderia a um determinado Estado. Um determinado
desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção, corresponderia a
determinadas expressões ideológico-culturais (Marx e Engels, 1952, p. 414-424).
A sociedade, articulada por meio de uma formação social concreta e específica,
encontrar-se-ia em constante movimento. Portanto, qualquer formação social seria sempre
transitória e histórica.
Este conceito de “sociedade” é uma construção proporcionada pelo método dialético
e compõe a concepção materialista da história. A compreensão das sociedades de classes, por
exemplo, não pode ocorrer, portanto, abstraindo a gênese da sociedade, o modo como ela é
produzida e o modo como ela opera em função da sua própria gênese.
3.2 - O Método Dialético
32
(...) o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida,
ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação.
No primeiro método, a representação plena volatiliza-se em determinações abstratas, no segundo, as
determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento. Por isso é que Hegel caiu
na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que se sintetiza em si, se aprofunda em si, e se move
por si mesmo; enquanto que o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira
de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado. Mas este
não é de modo nenhum o processo da gênese do próprio concreto
10
Marx em diversas passagens utilizou o termo “lei” para retratar a dinâmica de um modo de produção ou uma
formação social concreta e específica, provavelmente influenciado pelo cientificismo do século XIX. Lei não no
sentido que o positivismo atribuía a essa palavra, ou seja, algo constante, necessário e determinado pela coisa em
si, que poderia ser reconhecido pelo homem através da observação direta dos fenômenos sociais e naturais. Para
33
(re)construído no pensamento. Para Marx, expressaria “o curso do pensamento abstrato que
se eleva do mais simples ao complexo” – e que corresponderia, efetivamente, ao próprio
processo histórico (Marx, 1982, p. 15). Encerrado esse momento retornar-se-ia ao real, mas
agora enquanto real reconstruído e conhecido.
O real se apresentaria enquanto um fluxo permanente de movimento e de
contradição. Movimento e contradição seriam dados objetivos do real, visto que emergiriam
das próprias bases sobre as quais historicamente se configuraria o real. Portanto,
independentemente da própria compreensão da idéia de movimento e de contradição (ou das
representações construídas no âmbito do pensamento, tendo em vista expressá-las), elas
percorreriam o pensamento e a prática do homem.
Movimento e contradição expressar-se-iam em um período ou etapa histórica
dominado por um modo de produção. Esse, por sua vez, se manifestaria por de formações
sociais concretas e específicas. O modo de produção, bem como as formações sociais
concretas e específicas, seriam estruturas sociais historicamente determinadas.
Marx concebe o real (a sociedade concreta em seu movimento e sob contradições)
como um processo histórico. Esse real estaria regido por dinâmicas históricas. Não dinâmicas
gerais, a-históricas que, emergidas de leis naturais, regeriam para todo o sempre o real, mas
dinâmicas específicas a cada período ou etapa histórica e que se expressariam por meio de
modos de produção e de formações sociais concretas e específicas. Essas dinâmicas regeriam
o movimento social, por um lado, como um processo, em grande medida, independente da
vontade, consciência e intenção dos homens; mas, por outro, capazes, ao mesmo tempo, de
determinar concretamente a vontade, a consciência e as intenções dos homens como agentes
sociais diferenciados.
Esgotado historicamente um modo de produção, novas dinâmicas se conformariam
ao longo do processo de surgimento de um novo modo de produção. Assim, por exemplo, as
dinâmicas que regulamentariam o comércio, a população, a moeda, no mundo medieval
ocidental, não poderiam ser transpostas para compreender o comércio, a população e a moeda,
no mundo capitalista ocidental. Categorias que encerram sentidos genéricos, como comércio,
por exemplo, deveriam, por sua vez, ser investigadas dentro da especificidade que assumiriam
em cada modo de produção.
o positivismo, as leis naturais e sociais seriam idênticas. Já para Marx, as “leis” ou dinâmicas sociais seriam
históricas e transitórias, expressando movimentos passíveis de transformação pela ação humana, não possuindo
um sentido de exatidão matemática, mas de coerência geral determinada pelo todo interdependente dos
elementos que compõe a sociedade.
34
Para Marx, o fundamental na pesquisa científica seria, portanto, descobrir as
dinâmicas que regeriam e modificariam os fenômenos estudados. Dinâmicas que atuariam nas
condições e interesses materiais, inclusive no âmbito do próprio pensamento. Assim, a crítica
do próprio pensamento, idéia, cultura, da sociedade moderna, somente poderia surgir do real,
do material que o determina e não do pensamento refletindo diretamente sobre si mesmo. É da
sua base material, o real, desvendado pela pesquisa, que o pensamento poderia auto-criticar-se
e desalienar-se. Assim, o pensamento, a idéia, a cultura, em princípio fora de ‘lugar’,
poderiam ser colocadas em seus devidos ‘lugares’.
Marx cuida de distinguir, ainda, o método da pesquisa do método de exposição. Para
Marx, “a pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de
evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode
expor adequadamente o movimento real” (Marx, 1988, p. 26).
Marx dá exemplo concreto desta prática científica no estudo da economia política.
Anteriormente à confecção da obra O Capital, Marx conduz estudos amplos e profundos
sobre a mercadoria, o valor, a mais-valia, a reprodução (simples e ampliada) do capital, o
dinheiro, entre outros temas, como podemos confirmar nos esquemas de estudo pessoal que
tomam a forma das obras Para a Crítica da Economia Política e Teorias da Mais-Valia.
Elas culminam, por meio do método dialético, na apreensão das dinâmicas que regem o
capitalismo e que podem proporcionar condições sociais capazes de modificá-lo.
A conquista do conhecimento do real e a sua exposição ordenada no plano do
pensamento, podem criar a ilusão de uma construção a priori, de esquemas dedutivos. Mera
ilusão, se pensarmos que uma obra, quando finalizada, nada mais é do que fruto de intensa
pesquisa e exposição articulada por meio de uma coerência discursiva interna.
Marx, conforme observamos, apresenta o seu método dialético dentro de uma
configuração racional, empírica e materialista. Movimenta suas pesquisas do particular para o
geral e vice-versa, busca apreender dinâmicas e formular conceitos por meio de estudos
comparados dos fenômenos sociais, esforça para demonstrar a coesão entre o que anda nas
‘cabeças’ e as bases materiais sobre as quais se localizam os ‘pés’ e coloca a temporalidade
dos fenômenos sociais no centro do seu pensamento.
11
O conceito de “consciência social” em Marx incorporaria as formas de expressão da subjetividade humana
(expressões literárias e filosóficas, romances, doutrinas religiosas, criações artísticas etc), bem como o nível de
consciência e conhecimento da relação homem/natureza e das relações sociais. Essas manifestações da
consciência social seriam ideológicas e mais ou menos racionais, humanistas e críticas, segundo o grau de
desenvolvimento da estrutura econômica, da experiência e de amadurecimento das classes sociais. Enfim, do
estágio de desenvolvimento da sociedade humana.
36
12
socialmente estabelecidas, formariam a estrutura (ou base) econômica da sociedade.
Sobre a estrutura “(...) se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem
determinadas formas de consciência social” (Marx, 1983, Volume 1, p. 301).
Marx concebe uma interação e uma interdependência profunda entre a estrutura,
responsável pela produção e reprodução da vida material, e a superestrutura, responsável pela
produção e reprodução da vida política e espiritual. A relação dialética que Marx estabelece
entre estrutura e superestrutura não exclui a ontologia. Neste ponto, Marx é categórico quando
afirma que “(...) não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o
seu ser social é que determina a sua consciência” (Marx, 1983, Volume 1, p. 301).
Dito de outra forma, Marx não reconhece nas leis, nas formas do Estado, nas
expressões subjetivas dos indivíduos, segmentos e classes sociais uma autonomia e
independência da estrutura, ou seja, das condições materiais de existência da sociedade. Para
Marx, a compreensão das superestruturas exige, necessariamente, um movimento de
investigação que parta da estrutura.
12
O conceito de “estrutura” pode receber diversos sentidos e dimensões na teoria e metodologia marxista. Pode
significar estrutura (base) econômica; superestrutura (estrutura fruto da materialização de instituições e formas
de consciência social); estrutura global e abstrata identificada com o conceito de “modo de produção”; estrutura
global identificada com uma formação social (ou sócio-econômica) específica e concreta. O fundamental é que o
conceito de “estrutura” remete sempre para um conjunto complexo de elementos interdependentes e estáveis (o
que não significa eterno) no tempo; a estrutura pode ser pensada em si própria ou em relação a outras estruturas.
37
burguês da naturalização das relações sociais, da sociedade burguesa e capitalista etc.
(...) abre, assim, uma época de revolução social. Quando se estudam essas revoluções, é preciso distinguir
sempre entre as mudanças materiais ocorridas nas condições econômicas de produção e que podem ser
apreciadas com a exatidão própria das ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou
filosóficas, numa palavra, as formas ideológicas em que os homens adquirem consciência desse conflito e lutam
para resolvê-lo
A distinção entre modo de produção e formação social não se apresenta clara para
diversos cientistas sociais marxistas - incluindo historiadores. Alguns cientistas sociais
marxistas reduzem o conceito de “modo de produção” a estrutura econômica. Reconhecem no
conceito de “superestrutura” (formas de consciência e instituições) uma dimensão que se
encontraria fora do conceito de “modo de produção”. Para esses cientistas sociais, modo de
produção (estrutura econômica) e superestrutura (formas de consciência e instituições) se
comporiam de forma interdependente em uma estrutura mais ampla denominada formação
social - conjugação, portanto, do modo de produção e da superestrutura em uma realidade
concreta e específica (Gorender, 1985, p. 1-35).
Na concepção de Marx, modo de produção englobaria de forma integrada a estrutura
(ou base) econômica e a superestrutura. O modo de produção seria o objeto teórico, genérico e
abrangente. Uma elaboração teórico-abstrata em nível do pensamento que se prestaria a
contribuir com os estudos de uma formação social (ou econômico-social) concreta e
específica. Enquanto conceito teórico-abstrato estaria em constante construção, visto que os
estudos sócio-históricos permitiriam a descoberta de novos elementos e relações no âmbito do
conceito de “modo de produção” (Vilar, 1988, p. 173 e 174).
O conceito de “formação social” encerraria a realidade social concreta e específica.
Seria, portanto, um conceito menos abrangente e que nos remeteria a uma formação histórica
concreta e específica, a exemplo da formação social portuguesa do século XVI ou da
formação social capitalista brasileira do século XX.
O conceito de “modo de produção” seria, portanto, um instrumento operatório, tendo
em vista o estudo de uma formação social concreta e específica.
39
O termo classe social não é criado por Marx. Os enciclopedistas franceses e Adam
Smith se referiam a “estados” ou “ordens”, enquanto que Babeuf e os socialistas franceses
falam de classes de possuidores e laboriosas. A contribuição de Marx para a construção do
conceito de “classe social” surge, primeiramente, da identificação e localização social das
classes sociais a partir das relações de produção, ou seja, da forma de propriedade e das
relações que os homens estabeleceriam em torno dela, tendo em vista a geração e apropriação
dos excedentes sociais. As classes sociais seriam definidas, em primeira instância, sobre as
condições materiais em que se inseriam.
Marx define as classes sociais também em termos políticos. As classes sociais,
distribuídas em termos de dominantes e dominadas, se relacionariam de uma determinada
forma com o poder em cada período histórico. As classes sociais se expressariam por meio de
“partidos”, estabeleceriam alianças, conformariam regimes políticos etc. “A história de todas
as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”, diria
Marx (Marx e Engels, Volume 1, p. 21, 1983).
A partir das relações de produção e das lutas políticas que lhes seriam inerentes,
Marx identifica as classes em termos de classes sociais fundamentais, em torno das quais a
qualidade das relações de produção e dos conflitos seriam definidos, e classes sociais não
fundamentais, periféricas no âmbito das relações de produção e incapazes de definir um
projeto social alternativo às relações sociais dominantes e conduzir um bloco de alianças em
torno do mesmo. Portanto, as relações de produção e a identidade e consciência acumuladas
por meio da experiência política definiriam a posição e a função das classes sociais na
formação social concreta e específica.
Marx não reconhece a existência de classes sociais nas sociedades que não se apoiam
na propriedade privada (comunidades tribais dos celtas, germânicos, eslavos; povos pastores
do oriente; índios da América; sociedades despóticas orientais etc). As sociedades despóticas,
embora coexistindo com a desigualdade social, não assumiria a forma completa de
desigualdade social, na medida em que a unidade centralizadora – Estado – se ergueria sobre
as pequenas comunidades concentrando a propriedade, mas estabelecendo relações de
tributação/reciprocidade. Para Bourdé e Martin, se Marx e Engels tivessem possuído mais
informações históricas teriam dissociado “estados”, “ordens”, “castas” etc, de classes sociais
40
propriamente ditas nas formações pré-capitalista de produção (Bourdé e Martin, 1983, p.
159-164).
Como esboço de uma sociologia das classes a partir de Marx, é possível identificar
que:
a. a definição de uma classe social implica na referência a aspectos sociais, econômicos,
políticos e ideológicos;
b. seria pertinente considerar as classes em função da estrutura de classes e não
isoladamente;
c. as lutas de classes determinam, em grande medida, os conflitos e dinâmicas do nível
político e dos demais níveis da sociedade. Tais conflitos e dinâmicas não podem,
entretanto, ser interpretados como mero prolongamento das lutas de classes.
O Conceito de “Ideologia”
(...) se as lutas de classes tinham, naquela época, um caráter religioso, se os interesses, as necessidades, as
reivindicações das diferentes classes se dissimulavam sob a máscara da religião, isso nada altera a questão
(...) os padres receberam o monopólio da cultura intelectual e a própria cultura tomou um caráter essencialmente
teológico (...). Os dogmas da Igreja eram igualmente axiomas políticos e as passagens da Bíblia tinham força de
lei perante os tribunais (...). Consequentemente, todas as doutrinas revolucionárias, sociais e políticas, deviam
ser, ao mesmo tempo e principalmente, heresias teológicas
O conceito Estado
(...) da classe mais poderosa, economicamente dominante, que, por meio dele, torna-se igualmente a classe
politicamente dominante, adquirindo com isso novos meios de dominar e explorar a classe oprimida
Essa conclusão não impede que o próprio Engels a relativizasse por meio do estudo
de uma realidade concreta, a guerra civil na França e as lutas políticas subsequentes que
resultam no golpe do 18 Brumário e no bonapartismo. Engels reconhece que (Marx e Engels,
Volume 3, 1983, P. 137).
(...) ocorrem períodos nos quais as classes em luta se equilibram tão bem que o poder do Estado, como mediador
ostensivo, adquire, por momentos, uma certa margem de independência em relação a ambas (Marx e Engels,
Volume 3, 1983, P. 137).
Práxis e Política
(...) práxis é a identificação da mudança ambiental com a atividade humana, ela surge como autotransformação
ou como atividade que se modifica a si mesma ao modificar o ambiente. A terceira tese de Feuerbach oferece a
este respeito algumas indicações claras: é verdade que os homens são condicionados pelo ambiente e pela
educação, mas também é verdade que são justamente eles que modificam as próprias condições ambientais
Para Marx não existe na realidade uma natureza pura, isto é, não modificada pela
história humana. Não existe, também, um único campo de ação onde não se possa descobrir
dinâmicas. A práxis é ação/investigação, fundamentada no movimento histórico.
Marx define práxis como encontro entre razão e história, isto é, o lugar da construção
da humanidade como obra de uma vontade expressa racionalmente. Construção suscitada por
um pensamento historicamente determinado, acolhido pela grande maioria por responder às
necessidades manifestadas em um contexto (natural e social) marcado pela intervenção do
homem e que se transforma por isso em instrumento de ação. Nesta definição, o conceito de
“Práxis” se aproxima do conceito “teoria”, sendo a primeira uma prática racional-
transformadora e a segunda um pensamento historicizado e realístico.
Marx também define práxis como luta de classes, isto é, um instrumento motor da
história da humanidade. A concepção de práxis como ação do gênero humano indiferenciado
socialmente e transformador das condições naturais e sociais ao longo da história da
humanidade, conjuga-se também com a concepção de práxis como oriunda da humanidade
como sujeito histórico diferenciado por meio das classes sociais em suas relações conflitantes,
44
na qual ocorre uma ação de supressão por parte de uma delas das formas de organização
social que a outra instaura. Esses conflitos entre as classes se exprimem na tensão constante
que existe entre as forças produtivas, tendentes ao desenvolvimento e as relações de produção,
tendentes a conservação.
O conceito de “práxis” recebe outras abordagens no âmbito da tradição marxista.
Lukács define práxis como a eliminação da indiferença da forma em relação ao conteúdo.
Para o autor Marx teria desmistificado a lógica idealista da idéia, isto é, desenraizado
socialmente o idealismo, e demonstrado que as classes subalternas são os sujeitos da história,
em especial o proletariado. Assim, teria-se estabelecido no pensamento uma nova lógica da
totalidade, isto é, da unidade do objeto (realidade natural e social) que é posto e do sujeito
(proletariado) que o põe. É a totalidade não como idéia que se faz espírito, mas como
realidade do processo histórico (Bobbio, 1992, p. 989).
Para Lukács a Práxis em Marx seria o ato que realiza a unidade entre o sujeito e o
objeto, na medida em que traduz em nova estrutura social e econômica a consciência das
relações estabelecidas entre os homens. Nela coincidiriam as determinações do pensamento e
do desenvolvimento da história. Por isso, a Práxis seria a consciência da totalidade e sua
realização. Todavia, a consciência não precederia a ação, mas fundaria-se no ato. O
proletariado conheceria a própria situação enquanto luta contra o capitalismo e agiria
enquanto conhece a própria situação (Bobbio, 1992, p. 989).
Lukács faz, enfim, o uso de três temas: o pensamento socialmente determinado; a
realidade em sua dinâmica; e, o sujeito em sua ação. A Práxis seria o ato revolucionário que
realiza o sujeito (o proletariado) como conhecedor e agente ao mesmo tempo e que,
simultaneamente, fundamenta a identidade do pensamento e da história.
Korsch define práxis como sendo a própria teoria marxista. Para Korsch “o
marxismo é a teoria da transição da sociedade capitalista para a sociedade socialista e assume
aspectos diversos, como, por exemplo, a social-democracia e o leninismo, destinados a
sucederem-se um ao outro, segundo a evolução do movimento operário” (Bobbio, 1992, p.
989).
A teoria marxista não seria apenas uma expressão das condições atuais das relações
entre as classes sociais, mas também a alavanca de uma futura ação revolucionária. Deste
modo, a teoria é Práxis, isto é, luta social de classes. Se, por um lado, ela é um aspecto da
consciência social da situação vigente, até o ponto de se identificar com a consciência de
classe, por outro, é apenas uma teoria, não uma teoria positiva mas crítica, que resolve as
representações estáticas em processos dinâmicos e em conflitos sociais. “Os elementos nela
45
envolvidos, conquanto aparentemente neutros, assumem uma específica conotação de
classe; o Estado é o Estado burguês; o direito é o direito burguês” (Bobbio, 1992, p. 990).
Para korsch a teoria marxista seria Práxis, não só por estar intimamente relacionada
com os conflitos sociais, dos quais é expressão, mas também por elaborar os meios de uma
forma alternativa de sociedade.
Hegel, analisando o Estado moderno, concreto, na sua organização interna e nas suas
relações com a sociedade, o concebia como uma manifestação da Razão Absoluta ou Eterna.
Desta forma, se contrapunha à tradição iluminista fundada na “gênese lógica” do poder
político - contratualista - e à tradição de modelos ideais de Estado - a exemplo de Kant (Saes,
1994, p. 56).
Hegel restabelece a distinção entre Estado e sociedade civil formulada pelos
pensadores iluministas. Sociedade civil em Hegel decompõe-se em classes, enquanto homens
distribuídos em ramos da atividade econômica - agricultura, indústria, comércio, atividades
burocráticas. A classe industrial envolveria, por exemplo, proprietários e não proprietários ao
mesmo tempo. Hegel não identifica interesses comuns, coletivos conformados a partir da
posição que os homens ocupam em relação à propriedade dos meios de produção.
A sociedade civil seria o domínio das carências individuais e fins particulares, ou
seja, uma conjunção de necessidade natural e vontade arbitrária (Saes, 1994, p. 57 e 58). Para
Hegel, entretanto, a sociedade civil não existiria se não existisse o Estado que a construísse,
que a conformasse e que a integrasse. É o Estado que fundaria o povo; é o Estado que fundaria
a sociedade civil. O Estado incorporaria a sociedade civil; esta teria sentido, se realizaria e se
aniquilaria no Estado, expressão objetiva da Razão Eterna.
É possível duas conclusões quanto a este ponto. Primeiramente, os dois momentos -
Estado e sociedade civil - são distintos apenas enquanto conceitos, visto que eles são unidos e
inseparáveis na Razão. Em segundo lugar, é possível identificar uma concepção organicista e
ampliada de Estado, visto que o mesmo abarcaria toda e qualquer forma de organização
humana, ou seja, expressão das carências individuais e fins particulares.
O Estado em Hegel é ético. O Estado concretizaria uma concepção moral e
organizaria/dirigiria os homens em direção à plena realização da Razão Eterna - a conquista
da felicidade e da liberdade ao término do seu processo de auto-conhecimento.
É possível identificar contradições entre Hegel e os pensadores iluministas.
Rousseau, apegado à relação indivíduo e poder político nos termos do contrato social,
realçaria o princípio da “vontade geral” ou “soberania popular”, de maneira que o Estado
47
dissolver-se-ia na sociedade e a sociedade civil triunfaria sobre o Estado. Para liberais
ingleses, a exemplo Locke, o legislativo (parlamento) deveria estar acima do executivo
(monarca), sendo este subordinado àquele poder. Para Adam Smith, o Estado liberal não seria
ético, não educaria, deveria tão somente assegurar as liberdades e garantias individuais, o livre
jogo das forças do mercado e a soberania da nação frente às demais. Para Locke, o legislativo
(parlamento) deveria estar acima do executivo (monarca), sendo este subordinado àquele
poder. Para Hegel, o Estado fundaria o povo, portanto, a soberania seria do Estado; soberania
que criaria e expressaria ética, concretizadora da moral; o Estado, personificado no monarca,
teria neste a representação da soberania, cabendo a ele mesmo (monarca) a outorga da
constituição que fixaria os direitos e funções em geral e dele mesmo em particular.
Os vínculos de Hegel com o absolutismo prussiano não o situa completamente fora
do iluminismo. Podemos concebê-lo como um momento de transição entre a sociedade
ocidental - liberal e capitalista - e a sociedade oriental - absolutista e não capitalista -, como de
fato a Prússia o é, tanto em termos geográficos quanto históricos.
A superestimação do Estado em detrimento da sociedade civil é acompanhado,
contraditoriamente, pela defesa de reformas moderadas do Estado prussiano. A mais
importante certamente é a defesa da abertura do aparelho do Estado (burocracia civil, militar e
judiciária) para todos os homens. Hegel recusa o recrutamento dos membros do aparelho de
Estado a partir do nascimento e da personalidade natural. O preenchimento das funções do
Estado poderia ser exercido por qualquer indivíduo pertencente à classe universal dos
cidadãos, por meio da competência e exame público. Assim, Hegel “dissocia” o aparelho de
Estado da classe dominante, permitindo o Estado ser representado dentro de uma autonomia
completa ou relativa. Hegel propõe, ainda, a monarquia constitucional. Busca compatibilizar a
forma do Estado absolutista com a emergência do Estado burguês. A rigor, compatibilizar a
conservação do status quo da aristocracia com a ascensão burguesa (Saes, 1994, p. 56 e 57;
Gruppi, 1985, p. 24 e 25).
Para Hegel (Saes, 1994, p. 59).
(...) nega em termos práticos a existência de grupos sociais, de interesses de grupo social e de
conflitos entre os grupos sociais em função de tais interesses: e preconiza a ascendência do
interesse geral (pura forma sem conteúdo) sobre os interesses particulares
48
A resposta que Hegel dá para a relação entre o indivíduo e o poder político é
conservadora. Para Hegel a sociedade civil estaria absorvida na sociedade política e a ela seria
subordinada.
Minha pesquisa chegou à conclusão que as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser
compreendidas por si só, nem pela assim chamada evolução geral do espírito humano, mas têm suas raízes nas
relações materiais da existência - cujo conjunto Hegel inclui no termo de sociedade civil, seguindo o exemplo
dos ingleses e franceses do século XVIII - e que a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia
política.
Para Marx, seria por meio da sociedade civil - o conjunto das relações econômicas e
interesses privados -, fundadora do Estado, que se poderia compreender o surgimento do
Estado, o seu caráter de classe, a natureza de suas leis, as representações sobre as quais ele se
apoiaria, e assim por diante. E mais, o Estado, “criatura” da sociedade civil, constituiria-se
num instrumento voltado para a garantia das próprias bases sobre as quais se apoiaria a
sociedade civil. O Estado burguês, por exemplo, protegeria as relações capitalistas de
produção, de forma a assegurar a reprodução ampliada do capital, a acumulação privada do
produto social, a redistribuição do fundo público em benefício do grande capital, a exploração
da renda fundiária etc. Portanto, o Estado seria, ao mesmo tempo, parte integrante das
relações capitalistas de produção e instrumento de defesa das mesmas.
O “jovem Marx” contesta a dominação do Estado (burocracia) sobre a sociedade
civil e defendia a supressão do Estado moderno. Para o Marx de 1843-44, a extinção do
Estado (burocracia e mecanismos de representação política) seria a pré-condição da
verdadeira democracia, de maneira que cada homem poderia ser burocrata e representante de
si mesmo.
Em que pese esta perspectiva, que coloca Marx e Hegel em campos distintos quanto
às opções políticas e compromissos sociais, Marx não rompe completamente com Hegel no
49
tocante a sua concepção de Estado. Marx admitia que sociedade civil e sociedade política
seriam duas esferas sociais separadas.
Marx, embora não rompa com Hegel no tocante à concepção de Estado, o supera no
âmbito da referida concepção. Apoiando-se na crítica feuerbachiana da alienação, avança mais
do que Hegel e o submete à crítica, quando reconhece na referida separação a origem da
alienação política. A criação do Estado e a disposição da burocracia contra a sociedade civil
seria a gênese da dilaceração da essência humana. A expressão acabada desta relação seria a
criação da relação entre governantes (burocracia) e governados (sociedade civil expressa nos
burgueses, proletários etc.). A burocracia perseguiria a sociedade civil. Portanto, suprimir a
burocracia seria suprimir o próprio Estado.
O conceito de sociedade civil também conserva-se no universo filosófico e teórico de
Hegel. “O jovem Marx”, tal qual Rousseau e Hegel, não rompe com o formalismo. “Interesse
geral” versus “interesse particular” ainda é uma forma sem conteúdo, conforme demonstra a
afirmação de Marx de que a sociedade civil seria o campo do “interesse concreto do povo” em
contraposição ao “interesse particular” da burocracia. Marx ainda não concebia a sociedade
civil enquanto realidade conformada por classes sociais sob relações conflitantes, calcadas nos
interesses de classes.
Saes chama a atenção para o fato de que Marx, em A Questão Judaica, qualifica a
propriedade privada, a cultura e a ocupação como premissas ou pressupostos do Estado
político moderno. Mas indaga: Há uma relação entre base (econômica) e superestrutura
conforme é demonstrada no “prefácio”? Há uma relação entre Estado e propriedade, sendo o
primeiro guardião da segunda? Para Saes, as premissas, tanto os elementos materiais
(propriedade, ocupação) quanto os espirituais (religião, cultura) estariam apresentadas lado a
lado, separadas e sem estabelecer qualquer hierarquia de relação. As diferenças e
particularismos, persistindo no Estado moderno, levaria os homens em direção a uma solução
ilusória, de forma a acreditar em uma comunidade aparentemente universal - o Estado,
guardião do interesse geral da sociedade. Então, para Marx, (Saes, 1994, p. 65).
(...) a relação que se estabelece entre o Estado político e as suas premissas não é a relação entre os atos de
governo (política implementada pela burocracia) e os interesses dos proprietários dos meios de produção; é,
antes, a realimentação contínua da comunidade imaginária (Estado) pela subsistência de diferenças materiais e
espirituais entre os homens
Estado e sociedade civil não formam para “jovem Marx” uma unidade de contrários,
50
mas um círculo vicioso no qual a sociedade civil, alienada, permitiria o robustecimento do
Estado, ao mesmo tempo causa e efeito da alienação. No texto A Introdução à Crítica da
Filosofia do Direito de Hegel, a introdução da figura histórica do proletariado, em que pese o
amadurecimento da análise, ainda não permite superar o círculo vicioso. Em primeiro lugar, o
proletário é o homem destituído de propriedade, não uma classe social inserida numa
determinada relação de produção, a exemplo do operário fabril. Em segundo lugar, Marx
afirma que, eliminada a propriedade privada, se estaria suprimindo o Estado, mas, como Marx
não estabelece a relação que o Estado mantém com a sociedade, ou seja, seu guardião, de
forma a reconhecer nela apenas uma das várias premissas do Estado moderno, não haveria
porque acreditar que o mesmo desapareceria em se conservando as demais premissas. Em
terceiro lugar, ainda que se considere a supressão do Estado como um objetivo instrumental,
tendo em vista abrir caminho para que o proletariado suprimisse a propriedade privada,
haveria um problema: tal idéia pressuporia o Estado como guardião da propriedade privada,
mas esta ainda não havia sido elaborada por Marx. O que se depreende é que ele atribui tal
função à sociedade civil, que protegeria a propriedade privada. Em quarto lugar, o papel do
proletariado não fica claro, visto que ele próprio seria parte da sociedade civil e encontraria-se
alienado, não podendo ser o dirigente do processo por sua própria força. Poderia apenas
impulsionar a ação por meio da crítica da propriedade e do Estado moderno conduzido pelos
filósofos (Saes, 1994, p. 67).
Marx ainda se encontra submetido a uma contradição intelectual e política. A adesão
ao comunismo, em uma perspectiva proletária, conflitua com a concepção hegeliana de
Estado, que é uma concepção burguesa.
O poder executivo, com sua enorme organização burocrática e militar, com seu mecanismo complicado e
artificial, com um exército de meio milhão de funcionários ao lado de outro exército de meio milhão de soldados
- esse corpo parasitário medonho que envolve como um invólucro todo o organismo da sociedade francesa e
entope todos os seus foros - criou-se no período da monarquia absoluta, no fim do sistema feudal, aperfeiçoando
o centralismo estatal
Lênin e o Estado
Lênin desvirtua de certa forma a própria concepção marxista (e, ainda mais,
engelsiana) do Estado. Ele deixa na sombra o aspecto de mediação que existe no
Estado, o elemento da hegemonia, da direção (Gruppi, 1985, p. 61).
Lênin e os Sovietes
(...) vida estatal é concebida como uma contínua superação de equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre os
interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados; equilíbrio em que os interesses do
grupo dominante prevalecem até determinado ponto, excluindo o interesse econômico corporativo estreito
O fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que se deve levar em conta os interesses, as tendências dos
grupos sobre os quais a hegemonia será exercida (...). É indubitável que os sacrifícios e compromissos não se
relacionam com o essencial, pois a hegemonia é ético-política mas também econômica
Essa linha de raciocínio nos leva a incorporar duas novas discussões: a) A questão da
identificação/direção/sociedade civil versus Estado/dominação/sociedade política; e b) A
questão da formação do “bloco histórico”.
63
Na primeira discussão podemos partir das seguintes afirmações de Gramsci: 1)
“Podemos distinguir dois grandes níveis na superestrutura, o que pode ser designado como
‘sociedade civil‘, isto é, o conjunto de organismos chamados internos e privados, e da
‘sociedade política’, ou Estado, correspondendo respectivamente a função de hegemonia que
o grupo dirigente exerce sobre o conjunto do corpo social e da dominação direta ou comando,
que se expressa através do Estado e do poder jurídico” ( ); 2)“(...) a noção de Estado
comporta elementos que devem ser vinculados à sociedade civil (no sentido de
Estado=sociedade política+Sociedade civil, isto é, uma hegemonia couraçada de coerção”
(Gramsci apud Buci-Gluckmann, 1980, p. 98).
A distinção realizada por Gramsci entre sociedade civil, identificada como espaço de
construção da hegemonia, e sociedade política, como espaço de coerção - criando o par
dominação/direção, presente em toda obra de Gramsci -, aparece aqui como pura distinção
formal, realizada apenas a nível metodológico, uma vez que na realidade concreta tal distinção
não existe. Tanto é que na segunda assertiva passa a identificar sociedade política e sociedade
civil como partes constitutivas do Estado.
Na verdade, a concretude do Estado se dá pela manifestação da hegemonia -
identificada como poder de direção; e pela coerção. Para Gramsci, um grupo que pretende se
constituir enquanto grupo dirigente de uma sociedade, deve se constituir também, e
principalmente, como grupo dominante, ou seja, deve ser portador da ‘vontade coletiva’. No
entanto, o momento da coerção não deixa de existir.
A hegemonia se constrói no interior do bloco histórico. Este, mais do que uma
aliança de classes realizada num determinado momento histórico, representa a unificação de
grupos em torno de um projeto histórico e classista. O que garante a união desse bloco é a
criação e ampliação da hegemonia pela classe fundamental; assim, na análise contida na obra
A Questão Meridional Gramsci caracteriza a sociedade meridional como ‘um gigantesco
bloco agrário’, constituído pelos grandes proprietários, pelos grandes intelectuais, pelos
camponeses, pela média burguesia e pela intelectualidade média. A união desse grupo
disforme sob a direção dos grandes proprietários, ligados aos grandes industriais do norte,
ocorre por meio da ação dos intelectuais, responsáveis pela criação de uma cultura que leva à
submissão da massa camponesa, que apesar de revolta, é desorganizada. O grupo de
intelectuais é responsável pela criação e manutenção da hegemonia do grupo dirigente no que
ela tem de ideológico, de superestrutural.
É tal a importância da criação da hegemonia para a manutenção do bloco histórico,
que Gramsci afirma nesse mesmo texto que o bloco intelectual é “a armadura flexível e
64
resistente do bloco agrário”. Para a destruição desse bloco e a criação de um novo, torna-se
necessária a conquista dos intelectuais, enquanto grupo, para uma nova proposta de ordenação
social, para a criação de uma nova hegemonia.
O papel do intelectual na obra de Gramsci, tem uma importância fundamental. Aos
intelectuais cabe a tarefa da construção de uma nova cultura política que, difundida, se
tornaria senso comum. O intelectual para Gramsci não é uma figura passiva, alheia à
realidade, e neutra na emissão de seus pareceres. É, ao contrário, elemento dinâmico dentro da
formação social; é ele que por meio de sua colaboração teórica e da sua ligação direta com a
massa cria e repassa ideologia13 da classe que se encontra no poder. É o intelectual quem tem
a capacidade de realizar a ligação entre infra e superestrutura, tornando o bloco histórico mais
homogêneo e coeso, e em última instância, garantindo a hegemonia da classe que se encontra
na direção do bloco.
Se o desenvolvimento da ideologia e sua homogeneização dentro da sociedade são as
principais provas da hegemonia de um grupo dirigente, seu enfraquecimento e a utilização da
força, são os sinais de debilitação da hegemonia e da passagem da ditadura.
Quando a classe fundamental conquista a hegemonia, ela consegue o consenso e o
controle da sociedade civil: consegue construir um bloco histórico homogêneo. O
desenvolvimento do controle ideológico gera então o enfraquecimento da sociedade política e
da coerção. A sociedade civil passa a ter, digamos, predominância sobre a sociedade política.
Em uma situação em que a hegemonia não está totalmente desenvolvida, em que o grupo
social principal domina mas não dirige a sociedade, temos uma situação de ditadura, onde a
coerção será amplamente utilizada para a manutenção do aparelho de Estado.
A situação de hegemonia e ditadura não estão totalmente separadas, a não ser em
casos históricos específicos. A classe dirigente mesmo quando hegemônica, não dirige toda a
sociedade, mas somente as classes auxiliares e aliadas. A hegemonia jamais é total, e um
mesmo grupo pode ser ao mesmo tempo dirigente e dominante. Daí a presença e utilização do
aparato repressivo por parte do Estado, quando a situação o exige.
13
Em Gramsci o “conceito de ideologia está relacionado a uma concepção de um mundo implicitamente
manifesta na arte, no direito, na atividade econômica e em todas as manifestações da vida individual e coletiva.
Mais do que um sistema de ideais, ela também está relacionada com a capacidade de inspirar atitudes concretas e
proporcionar orientação para a ação. A ideologia está socialmente generalizada, pois o homem não pode agir sem
regras de conduta, sem orientações. Portanto, a ideologia torna-se o “terreno sobre o qual os homens se
movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc. É portanto na ideologia e pela ideologia que uma
classe pode exercer a hegemonia sobre as outras, isto é, pode assegurar a adesão e o consentimento das grandes
massas”. Dicionário do Pensamento Marxista. 2ª edição, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. 186p.
65
A concretização da hegemonia e a construção do bloco histórico, por meio da ação
da classe fundamental apoiada pelos intelectuais, se realiza fundamentalmente no partido.
Para Gramsci (1989, p. 102).
Na realidade de todos os Estados, o ‘chefe de Estado’, isto é, o elemento equilibrador dos diversos interesses em
luta contra o interesse predominante, mas não exclusivo num sentido absoluto, é exatamente o “partido político”;
ele porém, ao contrário do que se verifica, no direito constitucional tradicional, não reina nem governa
juridicamente: tem o poder de fato, exerce a hegemônica e, portanto, equilibradora de interesses diversos, na
‘sociedade civil’, mas de tal modo que está entrelaçada de fato com a sociedade política, que todos cidadãos
sentem que ele reina e governa
Missão educativa e formativa do Estado, cujo fim é sempre criar novos e mais elevados topos de civilização,
adequar a “civilização” e a moralidade das mais amplas massas populares às necessidades do desenvolvimento
66
continuado do aparelho econômico de produção, portanto elaborar também fisicamente novos tipos de
humanidade
Claus Offe parte do entendimento de que o Estado possui uma autonomia relativa em
relação aos interesses imediatos das classes dominantes nos momentos de acirramento das
lutas de classes, realizado Marx na obra o Dezoito Brumário de Luíz Bonaparte. Agrega a este
reconhecimento o papel da burocracia como agente organizador, racionalizador e
modernizador do capitalismo monopolista, realizado por Max Weber nos estudos sobre
burocracia.
Para Claus Offe a burocracia assume a função de mediador da luta de classes que se
desenvolve no processo de acumulação capitalista. Isto porque a contradição básica da
produção capitalista, qual seja, a crescente socialização da produção e a apropriação privada
dos excedentes, gera uma infinidade de crises políticas, econômicas e sociais que obriga ao
Estado construir mecanismos públicos e privados, externos e internos ao mercado, para detê-
los (Carnoy, 1986, p. 169).
As funções do Estado como administrador das freqüentes crises do capitalismo, sob
etapa monopolista, seriam ampliadas. E tal ampliação comprometeria uma relação simétrica
entre os interesses da classe dominante e a atuação do Estado, a exemplo da era do pacto
fordista sob o denominado “Welfare state”. Seria, portanto, difícil perceber até que ponto o
Estado representaria o interesse social do capital, qual seja, a reprodução do modo capitalista
de produção, na medida em que ele transformaria-se em administrador de uma sociedade de
interesses diversos e conflituosos e em árbitro dos conflitos e disputas das diferentes
expressões sociais e políticas do mundo do capital e das diferentes expressões sociais e
políticas do mundo do trabalho.
Joachim Hirsh parte do entendimento de que a sociedade capitalista seria
profundamente marcada pela concorrência entre o capital industrial, financeiro e comercial.
68
Tal processo constituiria frações políticas burguesas disputando a orientação do Estado
(Carnoy, 1986, p. 181).
Para Joachim Hirsh o Estado reproduziria em si mesmo esta concorrência e conflito, o
que o impediria de representar os interesses gerais do capital. Todavia, a existência do Estado
burguês dependeria da reprodução da acumulação do capital – que é a reprodução expansiva
do valor, das relações capitalistas de produção e do domínio político e ideológico da classe
burguesa. A acumulação do capital, por sua vez, não seria possível sem o Estado burguês –
que é o direito (leis, instituições etc) e o burocratismo (aparato burocrático civil e militar,
modus operandi etc).
Nicos Poulantzas parte do entendimento de que o Estado, como ademais todas as
instituições sociais, seria um produto da luta de classes. Portanto, a forma e a estrutura do
Estado no capitalismo seriam construídos pela luta das classes presentes na sociedade
capitalista e pelo papel que o Estado desempenharia nessa luta.
Para Nicos Poulantzas a luta de classes nasceria das relações de produção e se
prolongaria para dentro de todas as instituições. Do que se conclui que ocorreria uma disputa
entre as diversas frações burguesas tendo em vista assegurar o domínio político, bem como
um grau de interferência da classe operária na moldagem do Estado.
Pietro Ingrão, que também reconhece o Estado como produto e modelador da luta de
classes, o concebe como campo político onde as camadas populares atuariam e onde poderiam
obter conquistas que alterasse o sentido e o conteúdo do desenvolvimento capitalista. A
democracia nas sociedades capitalistas, para ele uma conquista operária por meio das suas
lutas, seria o regime político que melhor adequaria às conquistas progressivas e à própria
redefinição continuada do desenvolvimento capitalista (Carnoy, 1986, p. 208).
4.8 - A violência
Marx e Engels acentuam em suas análises a gênese do Estado, o seu caráter de classe,
a sua determinação material e a sua historicidade. Para Marx e Engels o Estado desaparecia
com o fim da “pré-história da humanidade”, isto é, como o fim da história humana
caracterizada pela propriedade privada e pela desigualdade social.
Os demais teóricos marxistas acentuam o Estado como espaço de luta de classes.
Determinados teóricos chegam mesmo a recusar a abordagem do Estado como um aparelho
repressivo da classe burguesa.
É possível reconhecer que na abordagem marxista atual predomina o entendimento de
que o Estado no capitalismo seria dominado pela burguesia; de que ele seria voltado para a
reprodução das relações capitalistas de produção; e de que ele concorreria para a criação de
um aparelhamento político e econômico voltado para a acumulação do capital. É possível
70
reconhecer, ainda, o entendimento de que o Estado, na medida em que seria espaço da luta
de classes, poderia ter suplantado a sua natureza burguesa.
71
A sacrossanta quantificação não é ela prisioneira do estado das fontes e não arrisca privilegiar as realidades
sociais que emergem (...) à custa de outras, também essenciais, que continuam dissimuladas (...)? A sucessão dos
estudos seriais (...) não arrisca atomizar a realidade histórica, originar um eclodir das perspectivas e proibir
finalmente o recurso ao conceito unificante de modo de produção? O lugar concedido às profundezas mentais,
que adquirem por vezes o estatuto de infra-estruturas determinantes entre os novos historiadores, não vem
misturar os princípios de explicação marxista e não faz perder de vista a primazia das relações de produção?
Finalmente, as novas ciências não fazem figura de armas de guerra contra o marxismo, como uma certa étno-
história, que, à força de insistir no inconsciente coletivo, na sociabilidade e outros comportamentos perenes dos
grupos humanos, desvaloriza a explicação pelas relações de classes, quando não brande as relações de
parentescos contra as relações de produção?
Objetos de investigação
Para um historiador marxista, dois cominhos parecem-me excluídos: 1º a repetição de princípios teóricos a
serviço de construções esqueléticas quanto ao conteúdo; 2º uma prática da história que, isolada em hesitações em
torno de inovações técnicas, continua, de fato, fiel ao empirismo menos criador
(...) o problema das mentalidades não é apenas o de descobrir que as pessoas são diferentes, e como são
diferentes, e fazer os leitores sentirem a diferença (...). Devemos encarar tais crenças não apenas como reação
emocional, mas como parte de um sistema coerente de crenças sobre a sociedade, sobre o papel daqueles que
acreditam e o papel daqueles em relação aos quais tais crenças são mantidas
(...) encarar a mentalidade como um problema não de empatia histórica ou de arqueologia, ou, se preferirem, de
psicologia social, mas da descoberta da coesão lógica interna de sistemas de pensamento e comportamento que
se adequam ao modo pelo qual pessoas vivem em sociedade em sua classe particular e em sua situação particular
de classes, contra aqueles de cima, ou, se preferirem, de baixo
Tudo pensar historicamente, eis aí o marxismo. Que seja ou não, após isso tudo, um “historicismo”, trata-se
(como para o humanismo) de querela de palavras. Tenho desconfiança somente das negações apaixonadas. É
importante saber, parece, que o objeto de O Capital não era a Inglaterra. Naturalmente, pois era o capital. Mas a
pré-história do capital denomina-se Portugal, Espanha, Holanda. A história se pensa no espaço, como no tempo
85
6 - ESTADO E AUTORITARISMO NO BRASIL: O QUE
COMEMORAR?
Na colônia, só podem integrar as Câmaras Municipais os “homens bons”; e estão excluídos dessa categoria os
homens livres que desempenhem “ofícios mecânicos”. No processo eleitoral imperial, vigoram restrições
censitárias (por exemplo, quanto ao nível de renda) que inviabilizam a participação eleitoral dos homens livres
pobres
14
No Estado de função estrita ocorre uma identidade direta entre a classe dominante e o Estado. Este se constitui
em um aparelho essencialmente coercitivo. A forma de dominação assume, basicamente, uma dimensão extra-
econômica.
87
conseqüência, os funcionários do Estado concebem como natural a submissão de homens
considerados como coisas à vontade dos seus proprietários, bem como tendem a naturalizar
naqueles essa condição.
15
No Estado de função universal não ocorre uma identidade direta entre a classe dominante e o Estado. Este
tende a se constituir num aparelho coercitivo recoberto de hegemonia. A forma de dominação assume,
basicamente, uma dimensão econômica.
89
políticas, a fraude, etc, como método herdado do Império e ampliado com a República; a
diplomação dos eleitos como pré-condição para a ocupação da função parlamentar; o
impedimento de organização partidária do mundo do trabalho, entre outras formas. No plano
social, a intensa repressão aos movimentos sociais camponeses, aos operários e a segmentos
das camadas médias, a exemplo, respectivamente, de Canudos, dos sindicatos anarquistas e do
tenentismo, também atestam esse compromisso.
O compromisso na defesa dos interesses dominantes se prolonga, ainda, para esferas
microestruturais. São exemplos dessa realidade a reposição de expressões ideológico-culturais
patriarcal-cristãs herdadas do passado colonial e imperial, a exclusão das mulheres do
mercado de trabalho e da participação política e o preconceito racial.
A revolução de 1930, fruto de uma conjuntura de crise internacional e nacional que
abala os interesses do imperialismo e da oligarquia e que ameaça a reprodução da sociedade
brasileira, proporciona um espaço de intervenção política autônoma dos setores vinculados a
uma perspectiva industrializante. Após a queda dos setores burgueses vinculados à
agroexportação e à importação, tem início uma longa fase em que predomina um
compromisso de classe básico vinculado à industrialização substituidora de importações e ao
intervencionismo Estatal - planificando, financiando e investindo diretamente nessa direção.
Esse compromisso envolvia, sobretudo, a burocracia civil e militar, setores médios da
sociedade e industriais.
Os regimes formados ao longo desse compromisso são. É estabelecido um regime
político provisório e pouco institucionalizado entre 1931 e 1934. Este é suplantado por um
regime democrático representativo pluripartidário instável entre 1934 e 1937. Esse regime é
derrubado por um golpe civil-militar em 1937, sendo instituído o regime do Estado Novo
entre 1937 e 1945. Como podemos confirmar, trata-se de um período de intenso conflito
social entre as frações da classe dominante e destas em relação aos trabalhadores urbanos e
rurais organizados. A instabilidade dos dois primeiros regimes políticos do pós-1930 e a
ditadura varguista evidenciam, ainda, a carência de legitimidade do Estado de função
universalista.
Um novo regime democrático, mas ainda de participação política formal restringida,
vigora entre 1946 e 1964. A rearticulação dos interesses envolvendo a classe dominante local
e os interesses norte-americanos e europeus, abalados pela crise do capitalismo internacional
nos anos 30, pela Segunda Guerra Mundial e pela reconstrução européia, tem lugar
intensamente a partir do Programa de Metas do governo J.K.. A rearticulação assume, entre
outras formas, a constituição do tripé da industrialização brasileira (capital privado nacional,
90
capital privado estrangeiro e capital estatal), a multinacionalização da economia nacional e
o padrão de endividamento externo (Oliveira,1984, p. 76-92). Essa rearticulação se, por um
lado, evidencia a falta de disposição da classe dominante local em conduzir a luta anti-
imperialista e edificar um projeto nacional independente e autônomo, por outro, não a coloca
inteiramente identificada com os interesses do capital internacional.
A ampliação da participação de membros do mundo do trabalho na política
institucional, por meio da extensão dos direitos políticos às mulheres, é ‘compensado’ de
diversas formas. Podemos destacar a conservação da exclusão dos analfabetos do processo
político formal, o controle das entidades sindicais e sua redução à condição de células do
Estado e a política ideológica de massas, amplamente viabilizada por meio dos novos e
disseminados veículos de comunicação de massa.
Grande importância ocupa o denominado ‘pacto populista’, uma estratégia de
incorporação controlada dos trabalhadores urbanos e rurais no processo político por parte da
burocracia civil e partidos políticos burgueses, de forma a mobilizá-los contra resistências
corporativas e imediatistas do grande capital e impedi-los de trilhar um caminho de
organização independente e autônomo de classe. Segundo Oliveira, (1993, p. 88).
O pacto populista era a forma de hegemonia burguesa, uma hegemonia que se afirmara sem liquidar com o seu
antigo contendor, a oligarquia agrária cafeicultora; uma hegemonia que se afirmara dirigindo poderosamente a
ação e a intervenção do Estado sustentáculo e mola de sua expansão; uma hegemonia que se afirmara utilizando
o Estado para vigiar o proletariado urbano sem necessariamente ser repressor ostensivo (...)