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Marx
O Estado e o direito em Marx
GUSTAVO GOMES*
2 O uso da expressão “marxista” no presente texto segue diversos outros autores que a utilizam para
identificar as diversas vertentes de contribuições teóricas, políticas e acadêmicas que têm no pensa-
mento de Marx sua principal referência e apoio, mas de forma a diferenciá-las das ideias e reflexões
“marxianas”, ou seja, aquelas elaboradas pelo próprio Karl Marx.
3 Essa interpretação possui grande influência em proeminentes teóricos marxistas do direito no Bra-
sil como Marcio Bilharinho Naves e Alysson Mascaro. Naves, por exemplo, condenou o que chamou
de “eterno retorno aos textos não marxistas de Marx”, pois os estudiosos que recorreram aos textos de
juventude do filósofo “julgaram ter descoberto uma teoria marxista do direito” quando, na verdade,
“só havia os ecos distantes da ideologia jurídica burguesa” (NAVES, 2014, p.10).
O Estado e o Direito em Marx
tam uma melhor interpretação das suas posições maduras sobre Estado, direito,
política, ditadura, democracia e legislação, entre outras.
Consideramos assim a apreensão do movimento intelectual realizado por
Marx como decisiva para a compreensão da teoria marxiana do direito, pois há
uma “unidade necessária” na passagem “das posições democrático-revolucio-
4 A afirmação dos elementos de continuidade na obra marxiana não ignora que várias das catego-
rias centrais desenvolvidas por Marx, como a de classes sociais, somente atinge sua plenitude após
as obras da juventude. Contudo, queremos enfatizar que, para a apreensão do significado dessas
categorias, é imprescindível observar o desenvolvimento intelectual das mesmas.
5 Uma consistente crítica a noção de “ruptura epistemológica”, elaborada por Althusser, pode ser
encontrada no artigo “A miséria da teoria ou um planetário de erros” no qual E. P. Thompson afirma
que o “absurdo de Althusser está no modo idealista de suas construções teóricas. Seu pensamento
é fruto do determinismo econômico fascinado pelo idealismo teorista. (...) Essa “ciência” é então
projetada de volta na obra de Marx – propõem-se que seus procedimentos eram da mesma ordem e
que, depois do milagre da “ruptura epistemológica” (uma concepção imaculada que não exigiu ne-
nhuma fecundação empírica vulgar) (...) a mão se estende sobre toda obra “imatura” de Marx, sobre
quase todas as obras de Engels, as passagens da obra madura de Marx que exemplificam a prática
do materialismo histórico, a correspondência entre Marx e Engels (que nos leva diretamente ao seu
laboratório e nos mostra seus procedimentos) e a maior parte do próprio Capital (“ilustrações”)
(THOMPSON, 2021, p. 35 e 36).
ESTADO, DIREITO E MARXISMO
Toda nossa exposição mostrou como a Dieta Renana rebaixa o poder executi-
vo, as autoridades administrativas, a existência do acusado, a ideia de Estado,
o próprio crime e a pena à condição de meios materiais do interesse privado.
(MARX, 2017, p. 122)
6 Michael Löwy percebeu esse elo comum à teoria política burguesa: “Sobre a infraestrutura da
propriedade privada e das leis do mercado capitalista constrói-se o mito do salvador supremo,
encarnação da virtude pública sobre a corrupção, do particularismo dos indivíduos, demiurgo da
história que rompe a cadeia do fatalismo; herói sobre-humano que liberta os homens e constitui o
novo Estado. Implícita ou explicitamente, esse mito aparece na maior parte das doutrinas políticas
da burguesia em desenvolvimento: para Maquiavel, ele é o “Príncipe”; para Hobbes, o “Soberano
Absoluto”; para Voltaire, o déspota “esclarecido”; para Rousseau, o “Legislador”; para Carlyle, o
“Herói”. E concluiu que o jovem Marx ainda nos seus primeiros escritos já superava a teoria bur-
guesa através de “uma crítica virulenta e radical que procuraríamos em vão em Hegel: denúncia dos
interesses particulares e dos proprietários privados (egoístas, covardes, estúpidos, etc), pessimismos
quanto à possibilidade de pô-los de acordo com o interesse geral do Estado” (LÖWY, 2012, p. 44).
7 Marx publicou uma série de artigos no jornal Gazeta Renana nos quais analisava a proposta de lei
do parlamento, Dieta Renana, que coibia e proibia o uso costumeiro da lenha. Esses artigos propi-
ciaram, motivadas por um problema concreto, algumas das suas primeiras análises sobre a legislação,
o Estado e o direito (MARX, 2017).
ESTADO, DIREITO E MARXISMO
8 No entanto, como destacou Bensaïd, Marx ainda abordava essa contradição “em termos hegelia-
nos”, ou seja, “de um ponto de vista racionalista liberal” (BENSAÏD, 2017, p. 34).
O Estado e o Direito em Marx
O interesse geral, “mais elevado”, não é então saudado como uma preva-
lência do interesse da maioria sobre os da minoria o que justificaria a autori-
dade do Estado. Marx percebe que a noção de interesse geral é funcional para
deslocar os interesses comuns das atividades dos próprios membros da socie-
dade civil, transferindo-as e centralizando-as como atividades governamentais
exclusivas do Estado.
Desse modo, Marx critica a noção de interesse geral que fundamenta as
principais vertentes da teoria política contratualista liberal. Essa percepção
constitui também uma crítica aguda aos riscos que a centralização estatal, em
nome do interesse público, pode acarretar para a gestão comunitária dos inte-
resses comuns e da liberdade dos membros da sociedade.
9 Marx responde ao texto de Bruno Bauer sobre a questão judaica e contesta o argumento que os
judeus deveriam abdicar da sua religião para obterem o reconhecimento da sua cidadania estatal. Ao
contrário, Marx rejeita essa exigência e aprofunda sua crítica sobre os direitos humanos e a cidadania
dos Estados modernos (MARX, 2010).
O Estado e o Direito em Marx
Há, portanto, para Marx, uma nova dualidade entre a vida “egoísta na
sociedade burguesa” e “a vida na comunidade política”. Assim como havia uma
dualidade entre a “vida terrena” e a “vida celestial” no Antigo Regime, os ho-
mens continuavam condicionados a uma “vida dupla” nas sociedades capitalis-
tas, pois “a relação entre o Estado político e a sociedade burguesa é tão espiri-
tualista quanto a relação entre o céu e a terra” (MARX, 2010, p. 40, 45 e 53).
O Estado político surgido na modernidade, com as revoluções burguesas,
assentava sua legitimidade na presunção do tratamento igualitário dispensado
aos seus cidadãos. Marx rejeitou essa associação entre Estado e interesse públi-
co, como também criticou a noção de cidadania, de igualdade jurídica e dos
direitos humanos ao apontar seus limites evidentes.
10 Emir Sader explicita assim a subjetividade jurídica burguesa constituída a partir dos direitos
humanos: “A separação característica ao capitalismo, entre proprietários dos meios de produção e
vendedores da força de trabalho, requisita, como condição de sua existência, relações jurídicas que
tomem, a uns e a outros, como indivíduos livres e iguais, bem como solicitem politicamente rela-
ções entre produtores diretos e apropriadores de mais-valor, sob a forma dissimulada de cidadãos"
(SADER, 2014, p. 23).
ESTADO, DIREITO E MARXISMO
11 Ralph Miliband observa que a “emancipação política, pelo que ele entendia a consecução dos di-
reitos civis, ampliação do sufrágio, instituições representativas, restrições do governo monárquico, e
diminuição do poder estatal arbitrário em geral, não deveria ser de maneira nenhuma desdenhada.
(...) A ênfase do próprio Marx é significativa: ele realça um dos principais temas do marxismo, isto
é, que o de que a emancipação humana jamais pode ser conseguida apenas no reino político, mas
exige a transformação revolucionária da ordem econômica e social” (MILIBAND, 1979, p. 17).
No mesmo sentido, Carlos Nelson Coutinho afirmou que “caberia registrar, de passagem, contra
umas leituras apressadas, que, ao propor a “emancipação humana” ou comunismo, Marx não está
se opondo aos chamados “direitos dos homens” ou “emancipação política”, mas sugerindo que
eles devem ser dialeticamente conservados-superados através de uma forma de emancipação (de
cidadania) ainda mais radical” (COUTINHO, 2011, p. 62).
O Estado e o Direito em Marx
12 Ralph Miliband destacou que as noções de dominação e conflito estão no cerne da teoria polí-
tica marxista, pois “dominação e conflito são inerentes a sociedades com classes”. A ordem social,
diante da instabilidade dos conflitos permanentes de uma sociedade de classes, seria mantida pela
violência, pois “em última instância a estabilidade não é uma questão de razão, mas de força”. Por
isso, segundo Miliband, Marx e Engels então “representaram a política como a articulação específi-
ca da luta de classes” e o direito como a “forma cristalizada que a política assume ao dar à necessária
sanção e legitimação a todas as formas de dominação” (MILIBAND, 1979, p. 22 a 24).
13 Pogrebinschi destacou que “sempre que Marx se refere à política, refere-se ao Estado moderno
que, por sua vez, é frequentemente qualificado por ele como “Estado político” (politishche Staat).
(...) A qualificação pelo adjetivo marca, portanto, um significado intencional: a política diz res-
peito ao Estado (de modo que é político aquilo que a ele se refere)” (POGREBINSCHI, 2009,
p. 30 e 31). No desenvolvimento deste capítulo ficará evidente que optamos por uma hipótese
um pouco distinta na qual o adjetivo “político” é empregado por Marx para designar o exercício
do poder coercitivo na dominação organizada de classes e, assim, a diferenciação com o Estado
“não-político”, ou seja, a sociedade civil.
O Estado e o Direito em Marx
(...) Estado enreda, controla, disciplina, vigia e tutela desde as mais abran-
gentes manifestações de vida da sociedade civil até os seus movimentos
mais insignificantes, desde os seus modos de existência mais universais até
a existência privada dos indivíduos, em que esse corpo de parasitas adqui-
re, em virtude de sua extraordinária centralização, um grau de onipresen-
ça, de onisciência, de acelerada capacidade de movimento e de reação (...)
(MARX, 2011, p. 76 e 77)
14 Umberto Cerroni observa essa contradição entre Estado e sociedade civil na teoria política mar-
xiana da seguinte forma: “Nas obras de juventude de Marx aflora com insistência um interessante
tema de teoria política que parece ir perdendo cada vez mais força, mas que se julga possível recu-
perar. Trata-se de um tema que Marx resume na contraposição à sociedade política abstrata de uma
sociedade política real” (CERRONI, 1976, p. 51).
ESTADO, DIREITO E MARXISMO
(...) assim que as funções deixarem de ser políticas: 1) não haverá nenhuma
função governamental; 2) a repartição das funções gerais se tornará uma ques-
tão técnica-administrativa, que não outorga nenhum domínio; 3) a eleição não
15 Mikhail Bakunin publicou o texto “Estatismo e anarquia” contra o qual Marx produziu um
resumo crítico no qual refutava as acusações contra ele, procurava se diferenciar da concepção de
Estado defendida por Lassalle e, também, explicar categorias importantes para tais diferenciações
como a de “ditadura do proletariado” (MARX, 2012, p. 105 a 119).
O Estado e o Direito em Marx
terá nada de seu atual caráter político. (...). Na propriedade coletiva, a cha-
mada vontade popular desaparece e dá lugar à vontade efetiva da cooperativa.
(MARX, 2012, p. 114)
16 Carlos Nelson Coutinho destaca que “na formulação de Marx e Engels, o comunismo não é o
oposto de democracia – como se compraz em afirmar até hoje o liberalismo, o qual, de resto, ao
longo de suas muitas metamorfoses, quase sempre se opôs à efetiva democracia –, mas sim a sua
completa realização” (COUTINHO, 2011, p. 69).
ESTADO, DIREITO E MARXISMO
17 Balibar afirma que “para a teoria marxista do Estado, em que se investe um ponto de vista de
classe diametralmente oposto ao da ideologia jurídica burguesa, toda a democracia é uma ditadura
de classe. A democracia burguesa é uma ditadura de classe, ditadura da minoria dos exploradores,
a democracia proletária é também uma ditadura de classe, da imensa maioria dos trabalhadores e
dos explorados” (BALIBAR, 1977, p. 51).
O Estado e o Direito em Marx
político de transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária
do proletariado. (MARX, 2012, p. 43)
18 Pogrebinschi, neste sentido, desenvolve sua hipótese: “A ideia de ditadura do proletariado será
igualmente examinada de modo a esclarecer que não implica um prolongamento do Estado e
suas funções, mas sim uma etapa constante do processo de seu desvanecimento” (POGREBINS-
CHI, 2009, p. 38).
ESTADO, DIREITO E MARXISMO
19 Carlos Nelson Coutinho critica essa perspectiva “revisionista” do marxismo, pois “ao combina-
rem essa percepção do novo com o abandono das velhas determinações coercitivas e classistas do
fenômeno estatal (uma combinação estranha, como vimos, ao último Engels), Bernstein e Kautsky
chegaram, a partir de uma equivocada identificação entre liberalismo e democracia, a conceber o
que Engels chamou de “república democrática” como algo formado apenas por um conjunto de
regras jurídico-procedimentais socialmente “neutra”, o que faria dessa república um Estado acima
das classes” (COUTINHO, 2008, p. 29).
20 São muitos os autores que defendem atualmente a ideia, que supostamente estaria presente na
teoria política marxiana, da revolução como extinção imediata do Estado político: “Como espero
que fique esclarecido no próximo capítulo, a obra de maturidade de Marx é o principal testemunho
de que o Estado precisa ser extinto em sua inteireza com a revolução, não devendo o proletariado
utilizá-lo nem mesmo como meio para servir à organização da nova ordem social comunista. Dito
de outro modo, a revolução e o fim do Estado configuram um ato contínuo e único, não sendo
apropriado falar-se, portanto, em um Estado proletário.” (POGREBINSCHI, 2009, p. 65). Igual-
mente, Mascaro escreve que “Marx diz que a classe que controla o Estado não necessariamente lhe
dá o talhe estrutural nem o muda (...) Muitos dizem que, se o pobre pegar o Estado na mão, então o
Estado será a favor do pobre, ou, se os trabalhadores dominarem o Estado, então a sociedade será em
prol dos trabalhadores. Mas o que Marx ensina é que a sociedade continuaria a mesma, nós só mu-
daríamos seu administrador” (MASCARO, 2015, p. 19 e 20). Naves destaca a forma estatal como
O Estado e o Direito em Marx
inevitavelmente burguesa: “A rigor, o que Marx descura, no Manifesto, quando analisa a questão do
Estado depois da revolução, é a questão da forma, prendendo-se exclusivamente ao conteúdo clas-
sista do aparelho de Estado, de modo que ali não está colocada a questão que ele elucidará depois,
de que a própria forma do Estado tem uma natureza de classe, não sendo possível à classe operária
utilizar o Estado burguês para o exercício de seu domínio político” (NAVES, 2014, p. 26). Neste
capítulo, desenvolvemos hipótese contrária a essa perspectiva, ou seja, no sentido que a forma estatal
não possui uma natureza inata, mas, sim, está ligada ao exercício da violência e do domínio histórico
de uma classe sobre a outra, inclusive não necessariamente da burguesia.
21 Balibar destaca a impossibilidade de se eliminar imediatamente as contradições da sociedade de
classes: “imaginar um modo de produção socialista autônomo, distinto ao mesmo tempo do modo
de produção socialista e do comunismo, é, imaginar de maneira utópica que se pode passar imedia-
tamente do capitalismo para a sociedade sem classes, ou imaginar que podem existir classes sem luta
de classes, existir relações de classes sem antagonismos. E a raiz comum dessas utopias é geralmente a
confusão entre as relações de produção, no sentido marxista do termo, relações dos homens com os
meios materiais de produção no trabalho produtivo, com simples relações de propriedade jurídica, ou
ainda relações de distribuição dos rendimentos, de distribuição do produto social entre os indivíduos e
as classes, reguladas pelo direito” (BALIBAR, 1977, p. 129).
ESTADO, DIREITO E MARXISMO
22 Balibar assim enfatiza: “As formas de Estados burgueses são extremamente variadas, mas a sua
essência é uma: em última análise, todos esses Estados são, de uma maneira ou doutra, mas neces-
sariamente, uma ditadura da burguesia. A passagem do capitalismo ao comunismo não pode evi-
dentemente deixar de fornecer uma grande abundância e uma larga diversidade de formas políticas,
mas a sua essência será necessariamente uma: a ditadura do proletariado” (BALIBAR, 1977, p. 218).
O Estado e o Direito em Marx
legiadas” e enfatizou ainda que o fim da coerção estatal apenas ocorreria com o
término da própria dominação de classe (MARX, 2012, p. 113).
Marx foi explícito na defesa da manutenção da coerção estatal pelo prole-
tariado, organizado em classe dominante, enquanto persistir o modo de produ-
ção capitalista que mantém a divisão da sociedade em classes. O Estado aparece
então como meio de exercício da supremacia política, agora do proletariado,
para “arrancar pouco a pouco o capital da burguesia para centralizar todos os
instrumentos de produção nas mãos do Estado” (MARX, 2010, p. 57).
Ao final da seção II do Manifesto Comunista, Marx e Engels propunham
a centralização do crédito, da renda da terra, dos meios de comunicação e de
transporte nas mãos do Estado, além da adoção de impostos fortemente pro-
gressivos. Embora Engels, em posfácio, tenha ressalvado os cuidados frente a
ampliação desmedida do Estado, essas medidas apresentadas reforçavam as fun-
ções estatais no programa comunista.
O Estado político aparece então novamente estritamente vinculado ao seu
caráter instrumental de classe, porém não mais como instrumento da suprema-
cia burguesa, mas, sim, da proletária. O Estado político, na fase revolucionária,
poderia ser definido então como “o proletariado organizado em classe domi- 45
nante” (MARX; ENGELS, 2010, p. 57) ou mesmo “Estado operário” como
Marx chegou a se referir posteriormente (MARX, 2012, p. 115).
Portanto, as interpretações marxistas que negam a possibilidade da exis-
tência de um Estado político, como expressão do interesse do proletariado,
acabam por negar a teoria da transição, a categoria da ditadura do proletaria-
do e, na prática, esvaziam o significado da luta pelo poder político e da insti-
tuição do “Estado operário” como fatores do movimento contra a dominação
capitalista.23
Ignorar a relevância na teoria política marxiana da categoria da ditadu-
ra do proletariado como indispensável para compreensão da transição para o
comunismo corresponde a ocultar o papel que a luta de classes possui para
transformação histórica no materialismo dialético de Marx além de subestimar
23 Mascaro insiste que o “Estado não é ocasionalmente capitalista, e sim necessariamente capitalista.
Com o exemplo banal de que na Idade Média, que era feudal, não havia Estado, mas senhor feudal,
percebemos que não há um tipo de Estado para cada modo de produção. O Estado existe somente
na lógica do capitalismo” (MASCARO, 2015, p. 24). Consideramos, em sentido diferente neste
capítulo, a existência de outros tipos de Estado político como os Estados absolutistas feudais e os
Estados operários.
ESTADO, DIREITO E MARXISMO
24 Perry Anderson destaca como Marx e Engels trataram os Estados Absolutistas como um equi-
líbrio de poder entre a nobreza e a burguesia que acabou por se desenvolver em favor desta última
classe, desse modo, a identificação do Estado absolutista com o capitalismo tornou-se interpre-
tação plausível para muitos marxistas. Contudo, Anderson refuta essa hipótese e ressalta que
durante todo o início da época moderna “a classe dominante – econômica e politicamente – era,
portanto, a mesma da época medieval: a aristocracia feudal” (ANDERSON, 1995, p. 18). Com
isso, não apenas percebemos outras formas de Estado, além do capitalista, como também identifi-
camos os impactos nos Estado absolutistas da luta de classes com o crescimento econômico, social
e político da burguesia.
O Estado e o Direito em Marx
25 “Nos sucedâneos da comunidade existentes até aqui, no Estado etc., a liberdade pessoal existia
apenas para os indivíduos desenvolvidos apenas nas condições da classe dominante e somente na
medida em que eram indivíduos desta classe. A comunidade aparente, em que se associaram até
agora os indivíduos, sempre se autonomizou em relação a eles e, ao mesmo tempo, porque era uma
associação de uma classe contra a outra, era, para a classe dominada, não apenas uma comunidade
totalmente ilusória, como também um novo entrave. Na comunidade real, os indivíduos obtêm
simultaneamente sua liberdade na e por meio de sua associação.” (MARX, 2007, p. 64)
26 Joachim Hirsch destaca duas correntes como as principais da teoria política marxista no século
XX: a teoria do marxismo ocidental e a teoria do marxismo soviético que “concebeu o Estado como
instrumento das classes dominantes e de suas frações” (HIRSCH, 2010, p. 21). Hirsch defende a pri-
meira vertente que englobaria o estruturalismo de Althusser, as contribuições de Gramsci e Poulant-
zas entre outras. Embora não seja objetivo possível de desenvolvimento neste capítulo, trabalhamos
com a hipótese de que mesmo no âmbito do denominado marxismo ocidental as multiplicidades
de interpretações ainda existentes no campo da teoria política marxista mantêm diferenças teóricas
fundamentais para a compreensão do fenômeno jurídico e para as possibilidades de sua superação.
ESTADO, DIREITO E MARXISMO
28 Bernard Edelman chega a afirmar, no seu livro A legalização da classe operária, que seu objetivo com
o mesmo era “demonstrar, na contramão de todos os lugares comuns dos marxistas, que as conquistas
da classe operária – jornada de trabalho, férias remuneradas, reforma da dispensa... – eram, na realidade,
derrotas políticas” (EDELMAN, 2016, p. 8). O direito para o autor seria o compromisso dos trabalha-
dores com a dominação burguesa e a abdicação da disputa pelo poder e pela revolução. Não nos parece
que Marx tenha assim pensado ou que uma teoria política marxista, que mantenha a revolução no seu
horizonte, deva desconsiderar as disputas de classes sobre as leis e sobre o Estado político.
29 E. P. Thompson, em seus estudos sobre legislação repressiva na Inglaterra do início do século
XVIII, publicado no livro Senhores e caçadores: a origem da lei negra, se contrapõe a vertente marxista
que “floresce na forma de um marxismo sofisticado, mas (em última instância) esquemático” ao
considerar a lei “por definição (...) uma parcela de uma superestrutura que se adapta por si às neces-
sidades de uma infra-estrutura de forças produtivas e relações de produção”. Desse modo, Thompson
se desloca para uma perspectiva teórica que aceita apenas “parte da crítica marxista-estrutural”, pois,
seus estudos, embora tenham confirmado “funções classistas e mistificadoras da lei”, rejeitaram tam-
bém “seu reducionismo inconfesso”, pois a “lei não foi apenas imposta de cima sobre os homens:
tem sido meio onde outros conflitos sociais têm se travado” (THOMPSON, 1987, p. 349 a 358).
ESTADO, DIREITO E MARXISMO
tórico. A centralidade que a luta de classes possui para toda filosofia marxiana
fica assim ressalvada de maneira que o direito e o Estado político não podem ser
analisados aprioristicamente e desvinculados do processo histórico.
Na análise concreta de diversos processos históricos, o direito e o Estado
político aparecem para Marx como objetos complexos, contraditórios e dinâ-
micos de disputa entre os interesses das classes dominantes e os das classes
dominadas. Nesse sentido, Marx retoma no capítulo 8 do Capital, a questão da
regulação legal da jornada de trabalho através de meticulosa pesquisa histórica,
descrição e análise do processo de instituição da lei das 10 horas inglesa, já men-
cionada nas páginas do Manifesto Comunista. Ao mesmo tempo em que rejeita
uma interpretação idealista do surgimento da lei das 10 horas na Inglaterra,
como suposto “produto das lucubrações parlamentares”, Marx volta a enfatizar
que sua “formulação, seu reconhecimento oficial e sua proclamação estatal fo-
ram o resultado de longas lutas de classes” (MARX, 2017, p. 354 e 355).
Novamente persiste a ênfase marxiana na luta de classes para as determi-
nações também dos fenômenos jurídicos. Da sua elaboração no parlamento até
sua interpretação e execução pelos juízes, a lei é apresentada por Marx imersa
50 na luta entre as classes e suas frações, pois a “criação de uma jornada normal
de trabalho” é produto de “uma guerra civil entre as classes capitalista e traba-
lhadora” que se desenvolveu durante 400 anos (MARX, 2017, p. 343 e 370).
Além dessa centralidade conferida à luta de classes, destaca-se também ou-
tro elemento relevante para a compreensão da teoria política marxiana. Mesmo
submetido a uma relação de exploração pelos capitalistas, o proletariado teve
grande protagonismo na luta pela limitação da jornada de trabalho e, por con-
seguinte, também no processo de conformação da referida lei trabalhista, ao
ponto de Marx afirmar ser esta “sua própria obra” (MARX, 2017, p. 355).
A identificação realizada por Marx da lei das 10 horas como sendo uma
“obra” dos próprios trabalhadores, possui grandes implicações teóricas. A ação
do proletariado em defesa dos seus interesses aparece, para Marx, como ele-
mento determinante da instituição da lei limitadora da jornada de trabalho. A
lei, neste caso, não apenas reconhece direitos dos trabalhadores, mas é também
criada pela própria ação política destes trabalhadores.
Desse modo, atribuir ao interesse da burguesia a criação e conteúdo das leis
trabalhistas seria tão equivocado como atribuí-las exclusivamente aos interesses
do proletariado. As leis possuem assim as marcas das disputas entre as classes e
suas frações que determinam inclusive suas contradições e antinomias internas.
O Estado e o Direito em Marx
30 Poulantzas define então dessa forma o caráter maleável do Estado de acordo com a luta de clas-
ses: “Se as lutas detêm sempre o primado sobre os aparelhos, é porque o poder é uma relação entre
lutas e práticas (exploradores-explorados, dominantes-dominados), porque o Estado é em especial a
condensação de uma relação de forças, exatamente das lutas. (…) O Estado não é uma simples rela-
ção, mas a condensação material de uma relação de forças” (POULANTZAS, 1980, p. 173 a 175).
Em sentido semelhante, Joachim Hirsch explicita que o Estado capitalista “não é nem a expressão
de uma vontade geral, nem o mero instrumento de uma classe, mas a objetivação de uma relação
estrutural de classes e exploração” (HIRSCH, 2017, p. 32).
ESTADO, DIREITO E MARXISMO
A burguesia tinha a noção correta de que todas as armas que ela havia forjado
contra o feudalismo começavam a ser apontadas contra ela própria (...) Ela
compreendeu que todas as assim chamadas liberdades civis e todos os órgãos
progressistas atacavam e ameaçavam sua dominação classista a um só tempo
na base social e no topo político, ou seja, que haviam se tornado “socialistas”.
(MARX, 2011, p. 80)
Destaca-se que Marx chega a afirmar que as liberdades civis, como os di-
reitos de reunião, de associação, de livre expressão entre outros “haviam se tor-
nado socialistas”. Tal afirmação revela novamente a complexidade conferida ao
direito quando vinculada à luta de classes pela teoria política marxiana.
As liberdades civis não perderam sua natureza capitalista e ganharam uma
natureza socialista. O que Marx parece considerar é uma mudança na correla-
ção de forças social em favor do proletariado após a instalação da República,
modificando-se também a relação dessas classes com os direitos civis que de
“armas” da burguesia tornam-se ameaças a mesma. De forma similar, Marx
descreve as mudanças e disputas em torno da República francesa e seu regime
52 durante o período do governo provisório. Por isso, observa dois sentidos anta-
gônicos em disputa: a República Social e a República do capital.31
Um movimento que, originariamente, visava opor limites ao domínio da
aristocracia financeira, transformou-se, em seu percurso, com a entrada forte em
cena da classe proletária, que “por tê-la conquistado de armas na mão, (...) impri-
miu o seu selo e a proclamou como República Social” (MARX, 2011, p. 32 e 33).
Contudo, a evolução da luta de classes levou à alteração no Estado político
e ao fim dos anseios por uma República Social. Após a derrota do proletariado
na grande insurreição de junho de 1848, a República que surge não é mais
aquela aberta às acomodações entre as classes como a percebida durante o go-
verno provisório. A ideia de uma República Social foi enterrada junto com as
centenas de mortos dos insurgentes de junho. Destaca-se, como Marx observa,
que o caráter da República francesa acompanhava a oscilação da luta de classes.
A República burguesa torna-se então a forma de coesão das diferentes
frações da classe capitalista para garantir a dominação sobre a maioria prole-
31 Marx observa que, após a deposição de Luís Filipe, a República francesa acomodava, de forma
instável, as diversas classes que lutaram juntas contra o antigo regime. O caráter da República
era então provisório e indefinido, oscilando entre as aspirações do proletariado e da burguesia
(MARX, 2011, p. 29 e 41).
O Estado e o Direito em Marx
tária, pois nela “eles haviam descoberto a forma de Estado em que poderiam
governar conjuntamente” (MARX, 2011, p. 48). Surgida dessa correlação
de forças desfavorável ao proletariado, a República do Capital constituía-se
como uma forma de coesão entre as distintas frações da classe burguesa e
“representava o despotismo irrestrito de uma classe sobre as outras classes”
(MARX, 2011, p. 36).
Nessa forma de Estado, da “República do Capital”, verificava-se um cres-
cimento da burocracia estatal e, com isso, também uma maior autonomia em
relação as diversas frações da burguesia, desempenhando um papel coesionador
dos interesses comuns dos capitalistas. Marx observa que a centralização estatal
herdada da monarquia absoluta torna-se indispensável também nos Estados
capitalistas modernos no qual o trabalho do poder estatal é “dividido e centra-
lizado como numa fábrica” (MARX, 2011, p. 140).
O desenvolvimento dessa burocracia é também analisado por Marx inse-
rido nas disputas entre as classes desde a monarquia absoluta, passando pela
república parlamentar até o momento posterior do golpe de Luís Bonaparte,
quando a “máquina estatal consolidou-se de tal forma face à sociedade civil que
como líder lhe basta o chefe da Sociedade 10 de dezembro”. Marx então con- 53
clui que, neste momento, “o Estado se tornou completamente independente”
(MARX, 2011, p. 141).
Essa análise realizada por Marx no 18 Brumário foi fundamental para a
teoria política marxista posterior desenvolver a noção de autonomia relativa do
Estado. A categoria é usualmente associada a uma hipótese na qual o desenvol-
vimento do moderno Estado político burguês, com sua burocracia e atividades
crescentes, se adequou de tal forma à dominação capitalista que se confundiu
com a mesma. Desse modo, o Estado político tornou-se, na era contemporâ-
nea, inevitavelmente um Estado capitalista impermeável à disputa de classes,
ou seja, independentemente da classe no exercício do poder político, a natureza
burguesa do Estado político não se alteraria.32
32 Naves define assim a autonomia relativa do Estado: “Marx, no entanto, nas “obras históricas”,
e, particularmente, em o 18 Brumário de Luís Bonaparte, opera uma retificação fundamental em
seu modo de conceber essa questão, introduzindo o conceito - em uma terminologia que ele não
utiliza de autonomia relativa do Estado. Com isso, ele mostra que a burguesia pode deixar de
exercer o domínio direto do Estado sem que este perca sua natureza de Estado da classe burguesa,
porque a dominação de classe já está garantida, independentemente de ele ser ocupado ou não
pela classe dominante, em virtude dessa forma mesma, isto é, o Estado é um aparelho que “inscre-
ve a dominação de classe na sua própria organização interna” (NAVES, 2014, p. 33).
ESTADO, DIREITO E MARXISMO
33 Balibar destaca assim a relação entre Estado e a luta de classes: “(…) a luta de classes se dá não
só entre o aparelho de Estado e as classes exploradas, mas também, em parte, no próprio aparelho
de Estado. O aparelho de Estado é apanhado na luta de classes de que é produto” (BALIBAR,
1977, p. 80).
O Estado e o Direito em Marx
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Referências bibliográficas: