Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
para um estudo
Sumário
Introdução. 1ª Parte: Princípios e propósitos
da ONU e da OMC. 2ª Parte: Kelsen e o ordena-
mento jurídico unitário. A) Monismo. B) Dualis-
mo. 3ª Parte: A ONU e a OMC num ordena-
mento jurídico unitário. Considerações finais.
Introdução
Presenciamos um contexto internacional
inteiramente novo, de polaridades indefini-
das, instabilidade amplamente reconheci-
da nos planos econômico, político e de va-
lores 1.
Com o fim da guerra-fria, a bipolari-
dade leste/oeste deu lugar à norte/sul;
forças centrípetas (globalizantes, multina-
cionalistas) e centrífugas (regionalizantes,
nacionalistas) coexistem, originando um
mundo dual, onde as fronteiras internacio-
nal/interno não são nítidas.
“Nous assistons à l’émergence d’un
monde dual. Au monde des Etats, sis-
tème de légalité, se mêle un monde dont
les actueurs sont des forces vives, por-
tées par des flux transnationaux et ani-
més du seul désir de l’efficacité. Ce se-
cond monde se distingue radicalement
du premier: il est sans frontières; il est
hors-la-loi”2 .
Vera Lúcia Viegas é bacharel em Direito pela
Faculdade de Direito da Universidade de São O fenômeno é tão complexo que as pró-
Paulo, pós-graduanda na mesma instituição, prias forças centrífugas podem estar a serviço
especialista em “Direito de Integração” pela Uni- das centrípetas, ou seja, por um processo de
versidade de Roma Tor Vergata e professora de regionalização, consegue-se uma inserção
Direito Romano no Centro Universitário FIEO. internacional.
Brasília a. 37 n. 146 abr./jun. 2000 119
Nesse cenário, aflora novo paradigma com os antigos (ao lado destes, dos Estados,
para as ciências sociais: fala-se, então, não da ONU, existem os novos: sociedades
mais em sociedade nacional, mas sim em transgovernamentais, empresas multina-
mundialização, internacionalização, trans- cionais, megamercados, OMC9...), é possível
nacionalismo, globalização, multilateralis- visualizar os contornos desse novo cenário10?
mo, sociedade global3... No presente trabalho, tem-se apenas a
As mudanças ocorrem numa velocida- intenção de elaborar um mero escorço de
de cada vez maior4: uma hipótese de relação/vinculação entre
“The world has changed more rapid- a ONU e a OMC.
ly in the past two years than any time Mesmo conscientes da extrema comple-
since 1945. It is difficult to keep one’s con- xidade da ordem internacional, conforme
ceptual footing within such fundamental ilustrou-se supra, faremos aqui um corte epis-
shifts in politics. Familiar concepts fail to temológico tal, delimitando nosso objeto de
fit a new reality.” estudo apenas à análise da ONU/OMC e
O Estado, há muito, deixou de ser o su- da unidade do ordenamento jurídico. Para tan-
jeito por excelência do Direito internacional. to, utilizaremo-nos do instrumental teórico
De uma “sociedade relacional” (“puro di- de Hans Kelsen.
reito de coordenação entre unidades justa- Optamos metodologicamente por esse
postas”, em que as relações entre os Esta- corte, para que de fato o desiderato do pre-
dos – entes soberanos – davam-se basica- sente trabalho se viabilize11. Trata-se ape-
mente por meio de tratados bilaterais), nas de mera hipótese de trabalho: não que-
passamos a uma “sociedade institucional” remos impô-la como a mais verossímil, nem
(“direito de sobreposição aplicável a uni- descartamos a existência de outras. Assim
dades conjuntas”)5. sendo, no início das “Considerações Fi-
Ao lado dos Estados, no cenário inter- nais” deste escorço, denunciaremos uma
nacional, assistimos a um aumento contí- outra possível hipótese, como se verá.
nuo das Organizações Internacionais, fenô- Nesse sentido, na “Primeira Parte” do
meno crescente, sobretudo após os dois gran- presente escorço, abordaremos – muito su-
des conflitos mundiais6. cintamente – os princípios/objetivos da
Principalmente depois da Segunda Guer- ONU e da OMC, bem como o caráter de uni-
ra Mundial, houve a intensificação das re- versalidade da primeira.
lações entre os Estados, já que esses se cons- Numa “Segunda Parte”, núcleo do pre-
cientizaram de que não são auto-suficien- sente trabalho, ofereceremos o instrumental
tes, significando o isolamento verdadeiro teórico de Hans Kelsen 12, exemplificando a
retrocesso e estando o crescimento “vin- necessidade da unidade do ordenamento ju-
culado ao mútuo esforço, à cooperação” 7. rídico com a análise das conseqüências da
Com o escopo de promover o progresso so- hipotética relação entre Direito interno e
cial e melhores condições de vida dentro de uma Direito internacional, se concebidos como
liberdade mais ampla, surge a ONU8. dois sistemas à parte. Ainda nessa segunda
A OMC está também ligada a esse contex- parte, para não ficarmos com uma visão
to, já que concretizou, no plano institucional, monocrática do assunto, e até mesmo para
o que se previa na Carta de Havana, de 1948, testar a sedimentação dos argumentos kel-
sendo que em Bretton Woods (de 1 a 22 de senianos em prol da unidade do Direito, tra-
julho de 1944) procurava-se uma “ordem” remos à colação a doutrina dualista, repre-
econômica do pós-guerra. sentada pelo seu maior expoente, Karl He-
Diante de todo o supra-aludido, por es- inrich Triepel13, procurando sempre ilustrar
tar emergindo uma “nova ordem” interna- os ataques mútuos (argumentações e respec-
cional, em que atores novos contracenam tivas objeções) entre as duas teorias.
120 Revista de Informação Legislativa
Por fim, na “Terceira Parte”, procurare- cerão as obrigações assumidas em vir-
mos, na medida do possível, atar as duas tude da presente Carta.”
primeiras partes, mostrando como poderia A Carta da OMC14, em seus consideranda,
dar-se a relação ONU/OMC no pensamen- afirma que as partes objetivam:
to kelseniano, havendo um arremate geral “a elevação dos níveis de vida, o ple-
nas “Considerações Finais”. no emprego, a utilização ótima dos
recursos mundiais em conformidade
1ª Parte: Princípios e propósitos da com o objetivo de um desenvolvimen-
ONU e da OMC to sustentável.”
Ademais, reconhecem que:
A Carta das Nações Unidas consigna o “é necessário realizar esforços positi-
seguinte: vos para que os países em desenvol-
Capítulo I vimento, especialmente os de menor
Propósitos e Princípios desenvolvimento relativo, obtenham
“Artigo 1 uma parte do incremento do comércio
(...) internacional que corresponda às ne-
3. Conseguir uma cooperação interna-
cessidades de seu desenvolvimento
cional para resolver os problemas in-
econômico.
ternacionais de caráter econômico, so-
a desenvolver um sistema multilateral de
cial, cultural e humanitário, e para
comércio integrado, mais viável e dura-
promover e estimular o respeito aos
douro que compreenda o Acordo Ge-
direitos humanos e às liberdades fun-
ral sobre Tarifas Aduaneiras e Comér-
damentais para todos, sem distinção
cio, os resultados de esforços anterio-
de raça, sexo, língua ou religião.”
res de liberalização do comércio e os
“Artigo 2
(...) resultados integrais das Negociações
6. A Organização fará com que os Es- Comerciais Multialterais da Rodada
tados que não são Membros das Na- Uruguai.
ções Unidas ajam de acordo com es- a preservar os princípios fundamen-
ses Princípios em tudo quanto for ne- tais e a favorecer a consecução dos
cessário à manutenção da paz e da objetivos que informam este sistema
segurança internacionais.” multilateral de comércio.”
A Carta da ONU, em seus artigos 102 e Além disso, desejam contribuir para:
103, estipula : “a eliminação do tratamento discrimi-
“Artigo 102 natório nas relações comerciais inter-
1. Todo tratado e todo acordo interna- nacionais.”
cional, concluído por qualquer Mem- Art. XV, Outras Disposições:
bro das Nações Unidas depois da en- “6. O presente Acordo será registrado
trada em vigor da presente Carta, de acordo com o disposto no Artigo 102
deverão, dentro do mais breve prazo da Carta das Nações Unidas.”
possível, ser registrados e publicados Por fim, gostaríamos ainda de mencio-
pelo Secretariado.” nar os seguintes dispositivos:
“Artigo 103 Artigo II
No caso de conflito entre as obriga- Escopo da OMC
ções dos Membros das Nações Uni- “3. (...) Os Acordos Comerciais Pluri-
das em virtude da presente Carta e as laterais não criam obrigações nem di-
obrigações resultantes de qualquer reitos para os Membros que não os te-
outro acordo internacional, prevale- nham aceitado.”
Brasília a. 37 n. 146 abr./jun. 2000 121
2ª Parte: Kelsen e o ordenamento possa criar o Direito e se transformar em
jurídico unitário Estado de Direito, submetendo-se ao Direito.
Haveria aqui, para Kelsen, uma contra-
A) Monismo: Hans Kelsen dição nessa teoria ideológica, já que afirma
o Estado como pessoa jurídica e ao mesmo
Para entendermos como Kelsen trata da
tempo como “poder e, portanto, algo de es-
relação entre “direito interno”/“direito in-
sencialmente diverso do Direito, não pode
ternacional”, devemos inicialmente tecer
ser concebido juridicamente” 19.
algumas considerações acerca da metodo-
Kelsen identifica o Estado ao Direito, de-
logia utilizada por Kelsen e posteriormente
finindo-o como “uma ordem jurídica relati-
o seu entendimento sobre Direito e Estado15.
vamente centralizada”20 e não poderia ter
Metodologia feito diferentemente, já que a pureza de seu
método21 e a necessidade da unidade do
O tema da metodologia kelseniana é
conhecimento assim o obrigam.
abordado por Mario G. Losano16, que define
Assim, para Kelsen, o Estado é apenas
a pureza metodológica como “estudo do di-
“uma ordem jurídica relativamente cen-
reito em si e por si, sem influências de ou-
tralizada”, ou seja, dotada de órgãos fun-
tras disciplinas”, “ausência de juízos de
cionando segundo o princípio da divisão
valor nas ciências sociais”17.
do trabalho para a criação e aplicação das
Assim, Kelsen teria adotado as posições normas que a formam22. O Estado, como
weberianas da Deutsche Gesellschaft für Sozi- pessoa, é a personificação da ordem jurí-
ologie, que se havia proposto a discutir temas dica nacional23.
sociopolíticos sem a emissão de juízos de Isso posto, visto que a teoria pura de
valor. Desse modo, é banido qualquer juízo Kelsen está adstrita ao pressuposto meto-
de valor da atividade que tenha aspirações dológico da ausência de juízos de valor e
científicas, limitando-se a função ativa da da necessidade da unidade do conheci-
ciência à descrição objetiva da realidade. mento, passemos à análise da relação en-
Além da ausência de juízos de valor, ba- tre Direito interno e Direito internacional
seia-se também a pureza metodológica de na teoria kelseniana.
Kelsen na unidade sistemática da ciência, em
que cada ciência deve constituir um todo meto- Direito internacional é Direito?
dologicamente unitário; o objeto da ciência é Inicialmente, para analisarmos qualquer
determinado pelo seu método, ou seja, pelo relação possível entre o Direito interno e o
modo de observação e compreensão. O di- Direito internacional, devemos antes verifi-
reito positivo é o material empírico ao qual car se o Direito internacional é Direito no
Kelsen aplica essa metodologia. Além dis- mesmo sentido que o Direito estatal, ou
so, a ciência jurídica descreve o seu objeto – seja 24, se é igualmente ordem coercitiva da
o Direito – como uma unidade, cujo princí- conduta humana, se estatui atos coercivos
pio lógico [dessa unidade] é a ausência de como sanções. Kelsen conclui que sim, ao
contradição18. analisar a represália e a guerra como san-
ções do Direito internacional25.
Direito e Estado Define, então, Kelsen o Direito internacio-
Kelsen supera a dicotomia Direito/Es- nal como sendo uma primitive Rechtsord-
tado, denunciando a função ideológica de nung, por ser sim uma ordem coerciva, mas
tal dualismo. ainda em estágio de descentralização, pela
A doutrina tradicional do Estado e do inexistência de órgãos funcionando segun-
Direito necessita conceber o Estado como do o princípio da divisão do trabalho para
algo diferente do Direito para que o Estado a criação e aplicação das suas normas.