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OMC/ONU e “ordem internacional” – notas

para um estudo

Vera Lúcia Viegas

Sumário
Introdução. 1ª Parte: Princípios e propósitos
da ONU e da OMC. 2ª Parte: Kelsen e o ordena-
mento jurídico unitário. A) Monismo. B) Dualis-
mo. 3ª Parte: A ONU e a OMC num ordena-
mento jurídico unitário. Considerações finais.

Introdução
Presenciamos um contexto internacional
inteiramente novo, de polaridades indefini-
das, instabilidade amplamente reconheci-
da nos planos econômico, político e de va-
lores 1.
Com o fim da guerra-fria, a bipolari-
dade leste/oeste deu lugar à norte/sul;
forças centrípetas (globalizantes, multina-
cionalistas) e centrífugas (regionalizantes,
nacionalistas) coexistem, originando um
mundo dual, onde as fronteiras internacio-
nal/interno não são nítidas.
“Nous assistons à l’émergence d’un
monde dual. Au monde des Etats, sis-
tème de légalité, se mêle un monde dont
les actueurs sont des forces vives, por-
tées par des flux transnationaux et ani-
més du seul désir de l’efficacité. Ce se-
cond monde se distingue radicalement
du premier: il est sans frontières; il est
hors-la-loi”2 .
Vera Lúcia Viegas é bacharel em Direito pela
Faculdade de Direito da Universidade de São O fenômeno é tão complexo que as pró-
Paulo, pós-graduanda na mesma instituição, prias forças centrífugas podem estar a serviço
especialista em “Direito de Integração” pela Uni- das centrípetas, ou seja, por um processo de
versidade de Roma Tor Vergata e professora de regionalização, consegue-se uma inserção
Direito Romano no Centro Universitário FIEO. internacional.
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Nesse cenário, aflora novo paradigma com os antigos (ao lado destes, dos Estados,
para as ciências sociais: fala-se, então, não da ONU, existem os novos: sociedades
mais em sociedade nacional, mas sim em transgovernamentais, empresas multina-
mundialização, internacionalização, trans- cionais, megamercados, OMC9...), é possível
nacionalismo, globalização, multilateralis- visualizar os contornos desse novo cenário10?
mo, sociedade global3... No presente trabalho, tem-se apenas a
As mudanças ocorrem numa velocida- intenção de elaborar um mero escorço de
de cada vez maior4: uma hipótese de relação/vinculação entre
“The world has changed more rapid- a ONU e a OMC.
ly in the past two years than any time Mesmo conscientes da extrema comple-
since 1945. It is difficult to keep one’s con- xidade da ordem internacional, conforme
ceptual footing within such fundamental ilustrou-se supra, faremos aqui um corte epis-
shifts in politics. Familiar concepts fail to temológico tal, delimitando nosso objeto de
fit a new reality.” estudo apenas à análise da ONU/OMC e
O Estado, há muito, deixou de ser o su- da unidade do ordenamento jurídico. Para tan-
jeito por excelência do Direito internacional. to, utilizaremo-nos do instrumental teórico
De uma “sociedade relacional” (“puro di- de Hans Kelsen.
reito de coordenação entre unidades justa- Optamos metodologicamente por esse
postas”, em que as relações entre os Esta- corte, para que de fato o desiderato do pre-
dos – entes soberanos – davam-se basica- sente trabalho se viabilize11. Trata-se ape-
mente por meio de tratados bilaterais), nas de mera hipótese de trabalho: não que-
passamos a uma “sociedade institucional” remos impô-la como a mais verossímil, nem
(“direito de sobreposição aplicável a uni- descartamos a existência de outras. Assim
dades conjuntas”)5. sendo, no início das “Considerações Fi-
Ao lado dos Estados, no cenário inter- nais” deste escorço, denunciaremos uma
nacional, assistimos a um aumento contí- outra possível hipótese, como se verá.
nuo das Organizações Internacionais, fenô- Nesse sentido, na “Primeira Parte” do
meno crescente, sobretudo após os dois gran- presente escorço, abordaremos – muito su-
des conflitos mundiais6. cintamente – os princípios/objetivos da
Principalmente depois da Segunda Guer- ONU e da OMC, bem como o caráter de uni-
ra Mundial, houve a intensificação das re- versalidade da primeira.
lações entre os Estados, já que esses se cons- Numa “Segunda Parte”, núcleo do pre-
cientizaram de que não são auto-suficien- sente trabalho, ofereceremos o instrumental
tes, significando o isolamento verdadeiro teórico de Hans Kelsen 12, exemplificando a
retrocesso e estando o crescimento “vin- necessidade da unidade do ordenamento ju-
culado ao mútuo esforço, à cooperação” 7. rídico com a análise das conseqüências da
Com o escopo de promover o progresso so- hipotética relação entre Direito interno e
cial e melhores condições de vida dentro de uma Direito internacional, se concebidos como
liberdade mais ampla, surge a ONU8. dois sistemas à parte. Ainda nessa segunda
A OMC está também ligada a esse contex- parte, para não ficarmos com uma visão
to, já que concretizou, no plano institucional, monocrática do assunto, e até mesmo para
o que se previa na Carta de Havana, de 1948, testar a sedimentação dos argumentos kel-
sendo que em Bretton Woods (de 1 a 22 de senianos em prol da unidade do Direito, tra-
julho de 1944) procurava-se uma “ordem” remos à colação a doutrina dualista, repre-
econômica do pós-guerra. sentada pelo seu maior expoente, Karl He-
Diante de todo o supra-aludido, por es- inrich Triepel13, procurando sempre ilustrar
tar emergindo uma “nova ordem” interna- os ataques mútuos (argumentações e respec-
cional, em que atores novos contracenam tivas objeções) entre as duas teorias.
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Por fim, na “Terceira Parte”, procurare- cerão as obrigações assumidas em vir-
mos, na medida do possível, atar as duas tude da presente Carta.”
primeiras partes, mostrando como poderia A Carta da OMC14, em seus consideranda,
dar-se a relação ONU/OMC no pensamen- afirma que as partes objetivam:
to kelseniano, havendo um arremate geral “a elevação dos níveis de vida, o ple-
nas “Considerações Finais”. no emprego, a utilização ótima dos
recursos mundiais em conformidade
1ª Parte: Princípios e propósitos da com o objetivo de um desenvolvimen-
ONU e da OMC to sustentável.”
Ademais, reconhecem que:
A Carta das Nações Unidas consigna o “é necessário realizar esforços positi-
seguinte: vos para que os países em desenvol-
Capítulo I vimento, especialmente os de menor
Propósitos e Princípios desenvolvimento relativo, obtenham
“Artigo 1 uma parte do incremento do comércio
(...) internacional que corresponda às ne-
3. Conseguir uma cooperação interna-
cessidades de seu desenvolvimento
cional para resolver os problemas in-
econômico.
ternacionais de caráter econômico, so-
a desenvolver um sistema multilateral de
cial, cultural e humanitário, e para
comércio integrado, mais viável e dura-
promover e estimular o respeito aos
douro que compreenda o Acordo Ge-
direitos humanos e às liberdades fun-
ral sobre Tarifas Aduaneiras e Comér-
damentais para todos, sem distinção
cio, os resultados de esforços anterio-
de raça, sexo, língua ou religião.”
res de liberalização do comércio e os
“Artigo 2
(...) resultados integrais das Negociações
6. A Organização fará com que os Es- Comerciais Multialterais da Rodada
tados que não são Membros das Na- Uruguai.
ções Unidas ajam de acordo com es- a preservar os princípios fundamen-
ses Princípios em tudo quanto for ne- tais e a favorecer a consecução dos
cessário à manutenção da paz e da objetivos que informam este sistema
segurança internacionais.” multilateral de comércio.”
A Carta da ONU, em seus artigos 102 e Além disso, desejam contribuir para:
103, estipula : “a eliminação do tratamento discrimi-
“Artigo 102 natório nas relações comerciais inter-
1. Todo tratado e todo acordo interna- nacionais.”
cional, concluído por qualquer Mem- Art. XV, Outras Disposições:
bro das Nações Unidas depois da en- “6. O presente Acordo será registrado
trada em vigor da presente Carta, de acordo com o disposto no Artigo 102
deverão, dentro do mais breve prazo da Carta das Nações Unidas.”
possível, ser registrados e publicados Por fim, gostaríamos ainda de mencio-
pelo Secretariado.” nar os seguintes dispositivos:
“Artigo 103 Artigo II
No caso de conflito entre as obriga- Escopo da OMC
ções dos Membros das Nações Uni- “3. (...) Os Acordos Comerciais Pluri-
das em virtude da presente Carta e as laterais não criam obrigações nem di-
obrigações resultantes de qualquer reitos para os Membros que não os te-
outro acordo internacional, prevale- nham aceitado.”
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2ª Parte: Kelsen e o ordenamento possa criar o Direito e se transformar em
jurídico unitário Estado de Direito, submetendo-se ao Direito.
Haveria aqui, para Kelsen, uma contra-
A) Monismo: Hans Kelsen dição nessa teoria ideológica, já que afirma
o Estado como pessoa jurídica e ao mesmo
Para entendermos como Kelsen trata da
tempo como “poder e, portanto, algo de es-
relação entre “direito interno”/“direito in-
sencialmente diverso do Direito, não pode
ternacional”, devemos inicialmente tecer
ser concebido juridicamente” 19.
algumas considerações acerca da metodo-
Kelsen identifica o Estado ao Direito, de-
logia utilizada por Kelsen e posteriormente
finindo-o como “uma ordem jurídica relati-
o seu entendimento sobre Direito e Estado15.
vamente centralizada”20 e não poderia ter
Metodologia feito diferentemente, já que a pureza de seu
método21 e a necessidade da unidade do
O tema da metodologia kelseniana é
conhecimento assim o obrigam.
abordado por Mario G. Losano16, que define
Assim, para Kelsen, o Estado é apenas
a pureza metodológica como “estudo do di-
“uma ordem jurídica relativamente cen-
reito em si e por si, sem influências de ou-
tralizada”, ou seja, dotada de órgãos fun-
tras disciplinas”, “ausência de juízos de
cionando segundo o princípio da divisão
valor nas ciências sociais”17.
do trabalho para a criação e aplicação das
Assim, Kelsen teria adotado as posições normas que a formam22. O Estado, como
weberianas da Deutsche Gesellschaft für Sozi- pessoa, é a personificação da ordem jurí-
ologie, que se havia proposto a discutir temas dica nacional23.
sociopolíticos sem a emissão de juízos de Isso posto, visto que a teoria pura de
valor. Desse modo, é banido qualquer juízo Kelsen está adstrita ao pressuposto meto-
de valor da atividade que tenha aspirações dológico da ausência de juízos de valor e
científicas, limitando-se a função ativa da da necessidade da unidade do conheci-
ciência à descrição objetiva da realidade. mento, passemos à análise da relação en-
Além da ausência de juízos de valor, ba- tre Direito interno e Direito internacional
seia-se também a pureza metodológica de na teoria kelseniana.
Kelsen na unidade sistemática da ciência, em
que cada ciência deve constituir um todo meto- Direito internacional é Direito?
dologicamente unitário; o objeto da ciência é Inicialmente, para analisarmos qualquer
determinado pelo seu método, ou seja, pelo relação possível entre o Direito interno e o
modo de observação e compreensão. O di- Direito internacional, devemos antes verifi-
reito positivo é o material empírico ao qual car se o Direito internacional é Direito no
Kelsen aplica essa metodologia. Além dis- mesmo sentido que o Direito estatal, ou
so, a ciência jurídica descreve o seu objeto – seja 24, se é igualmente ordem coercitiva da
o Direito – como uma unidade, cujo princí- conduta humana, se estatui atos coercivos
pio lógico [dessa unidade] é a ausência de como sanções. Kelsen conclui que sim, ao
contradição18. analisar a represália e a guerra como san-
ções do Direito internacional25.
Direito e Estado Define, então, Kelsen o Direito internacio-
Kelsen supera a dicotomia Direito/Es- nal como sendo uma primitive Rechtsord-
tado, denunciando a função ideológica de nung, por ser sim uma ordem coerciva, mas
tal dualismo. ainda em estágio de descentralização, pela
A doutrina tradicional do Estado e do inexistência de órgãos funcionando segun-
Direito necessita conceber o Estado como do o princípio da divisão do trabalho para
algo diferente do Direito para que o Estado a criação e aplicação das suas normas.

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Relação entre Direito internacional e premissa menor, acarretando na inexistên-
Direito interno cia de conflitos insolúveis entre o Direito
Uma vez analisado que o Direito inter- internacional e o Direito estadual. E se não
nacional pode ser compreendido como Di- há conflitos entre ambos, temos a unidade
reito no mesmo sentido que o Direito es- assegurada, e se há unidade, temos apenas
tadual, resta agora verificar a relação en- uma só norma fundamental: teoria monista.
tre ambos. Kelsen exemplifica a impossibilidade da
Conforme já visto, o pressuposto me- existência ao mesmo tempo de mais de um
todológico de Kelsen necessita da unida- ordenamento normativo mencionando o
de cognoscitiva de todo o Direito, ou seja, Direito e a Moral:
conceber o conjunto formado pelo Direito “quem considere o Direito como um
internacional e as ordens jurídicas nacio- sistema de normas válidas tem de
nais como um sistema unitário de normas. desatender a Moral, e quem considere
A concepção tradicional, dualista, con- a Moral como um sistema de normas
cebe o Direito internacional e o Direito de válidas tem de desatender o Direito
cada Estado como “sistemas de normas (...) não há qualquer ponto de vista do
diferentes, independentes um do outro, qual a Moral e o Direito possam ser
isolados um em face do outro, porque vistos simultaneamente como ordens
apoiados em duas normas fundamentais normativas válidas ‘Ninguém pode
diferentes”26 . servir a dois senhores, porque, ou
Ora, tal teoria, para Kelsen, é insusten- odiará a um e amará o outro, ou
tável, pois, se admitirmos a existência con- dedicar-se-á a um e desprezará o
comitante de dois sistemas diferentes 27 – outro’ Matheus VI, 24” 29.
um interno e outro internacional –, tere- Se houvesse conflitos insolúveis entre
mos dois sistemas distintos válidos ao Direito internacional e Direito estadual,
mesmo tempo, o que propicia a ocorrên- teríamos a construção dualista, mas se con-
cia de conflitos insolúveis entre ambos! cebêssemos o Direito estadual como um sis-
Para ilustrar a insustentabilidade da tema de normas válidas, não poderíamos
doutrina dualista, propomos a construção fazer o mesmo com o Direito internacional,
do seguinte silogismo: que ou [o Direito internacional] não seria
Direito, ou não seria uma ordem normativa
1) premissa maior: 2) premissa menor: vinculante que se encontra em vigor ao
há Direito interna- há conflitos insolú-
mesmo tempo em que o Direito estadual.
cional e há Direito veis entre ambos.
estadual. Logo, a concepção dualista que considera
o Direito internacional e o Direito estadual
Assim sendo, a conclusão não pode ser como ordens jurídicas com validade simul-
outra que não: tânea e independentes uma da outra nessa
sua validade – ou seja, possuem normas
3) Conclusão: teoria dualista. fundamentais diferentes –, que podem
entrar em conflito uma com a outra, é
Pois só concebendo o Direito internacio- insustentável.
nal como distinto do Direito estadual, ou Inexistência de conflito entre Direito
seja, como ordenamentos jurídicos aparta- internacional e Direito estadual
dos (teoria dualista: conclusão supra), é que Ao afirmar a insustentabilidade da teoria
pode haver conflitos entre ambos (premissa dualista, Kelsen defende o monismo, para o
menor supra). qual há apenas um e tão-somente um orde-
Porém, se afirmarmos que a teoria namento jurídico que pode ser considerado
dualista é insustentável28, cai por terra a como válido. Assim sendo, não há que se
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falar em conflito entre Direito internacional Se não os admitirmos de um modo esca-
e Direito estadual, já que se tem apenas um lonado, numa hierarquia, teremos os dois
ordenamento jurídico, cuja unidade é ordenamentos situados no mesmo nível,
assegurada pela norma fundamental, mas, para tanto, haverá necessariamente
pressuposta. um terceiro ordenamento que lhes seja
Kelsen, assim, defende que os “conflitos” superior (a ambos), determinando-lhes a
são apenas aparentes, verificando-se na criação, delimitando-os reciprocamente as
relação entre Direito interno e Direito respectivas esferas de validade e, assim,
internacional o mesmo que ocorre no âmbito coordenando-os.
interno com a chamada lei inconstitucional. Quanto ao processo de produção, a
norma superior pode fazê-lo diretamente,
Nesse sentido, também a chamada lei
determinando o próprio processo no qual a
inconstitucional é uma lei válida e assim
inferior é produzida, ou indiretamente,
permanece sem que se considere a Consti-
instituindo “uma instância que, dessa
tuição como anulada ou modificada. O
forma, é autorizada a produzir, como bem
mesmo ocorre com a chamada sentença
entenda, normas com validade para um
ilegal que permanece em vigor até ser
determinado domínio” 32. Fala-se aqui,
anulada por uma outra sentença: “a ´anti-
então, em delegação.
normalidade` de uma norma não significa Desse modo, podemos pensar em Direito
que haja qualquer conflito entre a norma internacional e Direito estadual monisti-
inferior e a norma superior, mas apenas camente concebidos ou como o Direito
traduz a anulabilidade da norma inferior internacional enquanto ordem jurídica
ou a punibilidade de um órgão respon- delegada pela ordem jurídica estadual e,
sável”30. Neste último caso, convém lembrar assim, incorporada nesta (primado da
que entre o “ilícito” (Unrecht) e o Direito não ordem jurídica estadual), ou como uma
existe qualquer contradição31. ordem jurídica total, delegante nas ordens
Ao impor ao Estado o dever de realizar jurídicas estaduais, supra-ordenada a estas
quaisquer atos ou estabelecer normas de e abrangendo-as (primado da ordem jurídica
determinado conteúdo, se o Estado praticar internacional).
ato oposto ou fixar normas de conteúdo
oposto, o Direito internacional ligará a esses Inevitabilidade da construção monista
pressupostos as suas sanções específicas, Os dualistas, considerando o Direito
as conseqüências do ilícito praticado pelo internacional e o Direito estadual como duas
Estado (represálias ou guerra). ordens jurídicas diferentes, devem respon-
Já que não há conflitos entre o Direito der à questão: o que constitui o fundamento
internacional e o interno, resta agora das normas do Direito internacional, ao
analisar as possíveis relações mútuas entre vincularem o Estado singular?
os dois sistemas. Respondem que o Direito internacional
vincula o Estado singular quando for tácita
Relações mútuas entre dois sistemas de normas ou expressamente reconhecido por este.
Se considerarmos o Direito internacional Assim, o fundamento de validade estaria no
e o Direito estadual como ordenamentos de direito estadual e teríamos o primado deste,
normas vinculantes, simultaneamente e não dualismo, mas monismo33.
válidas, devemos necessariamente abranger Aqui, a soberania do Estado é o fator
ambos em um e apenas um sistema descrití- decisivo para a admissão do primado da
vel em proposições não-contraditórias. ordem jurídica estadual. A soberania não é
Teremos a norma fundamental do ordena- um objeto real, objetivamente cognoscível,
mento superior também como o fundamento mas é uma pressuposição: “a pressuposição
de validade do ordenamento inferior. de uma ordem normativa como ordem
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suprema cuja validade não é dedutível de Destarte, enquanto as normas jurídicas
qualquer ordem superior.” E continua: “A estaduais (Direito interno) regem relações
questão de saber se um Estado é soberano é recíprocas entre os indivíduos (regulamen-
a questão de saber se pressupõe a ordem tação do direito privado) ou entre estes e o
jurídica estadual como suprema”34. próprio Estado que cria o Direito (direito
O Direito internacional, então, faria parte público), o Direito internacional público
do Direito estadual: constituiria o “Direito regula relações entre Estados, que são, assim,
estadual externo”, pois regularia as relações os sujeitos do Direito internacional38. Logo,
do Estado com outros Estados. Mas não o Direito internacional e o Direito interno
podemos definir o Direito internacional pelo são ramos distintos do Direito.
objeto que suas normas regulam. Também o O Direito internacional e o estadual
Direito internacional regula imediatamente possuem fontes diversas já que o Direito
conduta humana. O Direito internacional internacional não pode ser criado pela von-
só pode ser definido ou determinado pela tade de qualquer Estado particular; a fonte
forma como as suas normas são produzidas: do Direito internacional é a vontade comum
pelo costume dos Estados, por Tratados (Vereinbarung), vontade essa que também
entre Estados e por órgãos internacionais pode ocorrer de modo tácito, surgindo, nesse
que são instituídos por Tratados concluídos caso, o Direito internacional costumeiro.
entre Estados. A unidade de Direito inter- Assim, já que o Direito internacional e o
nacional e de Direito interno é obtida pelo Direito interno não se confundem, um
primado da ordem jurídica de cada Estado. Tratado internacional não cria, por si só,
Em suma: Para Kelsen, o Direito – ordem direito interno.
coercitiva da conduta humana – é o objeto A publicação pelo governo de um Estado
da ciência jurídica, que o descreve, com base de um Tratado internacional não atribui a
no princípio lógico da não-contradição, este validade interna. Apenas se pode falar em
como um sistema unitário. Assim sendo, não validade internacional dos Tratados 39 . É
pode haver mais de um ordenamento também errado dizer que sua publicação o
jurídico concomitantemente válido (cada torna obrigatório para os súditos do Estado,
ciência possui um e apenas um objeto), e pois a obrigatoriedade aqui decorre da
conseqüentemente não há conflito entre norma estatal criada, talvez, pelo simples
Direito internacional e Direito interno, mas meio de publicação do Tratado.
sim ambos fazem parte de um mesmo Essa doutrina assim exposta é a teoria
ordenamento jurídico, havendo duas pos- dualista das relações entre o Direito inter-
sibilidades: ou o primado do Direito inter- nacional e o direito interno, tendo sido apro-
nacional – sendo aqui o Direito interno vada na Alemanha, França e Itália, tendo
delegado daquele – ou o primado do Direito aqui por defensor Anzilotti.
estadual. Neste último caso, se admitirmos Encontra como adversários, além de
León Duguit, Krabbe e Hans Kelsen, também
o primado do Direito interno, teremos que
admiti-lo como o único Estado soberano e a doutrina e jurisprudência inglesas e anglo-
todos os demais Estados a ele subordinados. americanas, na afirmação de que interna-
tional law is a part of the law of the land 40.
B) Dualismo: Triepel Ao aludir à teoria de Kelsen, para o qual
Triepel , ao tratar das diferenças entre
35 é impossível haver dois sistemas jurídicos
Direito interno e Direito internacional, dis- com validade concomitante, um ao lado do
tingue-os quanto: outro, diz Triepel que a doutrina de Kelsen,
a) às relações sociais 36 que regem e de que todo o Direito é um sistema único, foi
b) às fontes do Direito (entendido aqui concebida, com propósito deliberado, “sem
por fonte a vontade de que deriva a regra atenção às realidades” ao considerar que
jurídica)37. tanto o direito inglês quanto o russo são
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partes de um só sistema jurídico e que tanto Para tanto, utilizar-nos-emos dos argu-
a validade das leis neerlandesas quanto a mentos já trazidos nas “Primeira” e “Segun-
das chinesas derivam de uma única e da” Partes. Senão, vejamos.
mesma norma originária, hipotética. Conforme tratado na “Primeira Parte”, o
E continua: artigo 102 da Carta da ONU exige que todo
“fundar a validade do direito sobre tratado e acordo internacional concluído
fatos psicológicos, por exemplo, sobre por membros das Nações Unidas deverá ser
o sentimento dos súditos de estarem registrado e publicado pelo Secretariado da
ligados, em consideração de quais- ONU.
quer motivos, pela vontade da comu- Conformando-se a esse dispositivo,
nidade, isto vale tanto quanto emitir a encontramos o artigo XV, § 6º, da Carta da
idéia de uma norma originária hipo- OMC, exigindo que o Acordo da OMC seja
tética, que, na verdade, é pura ficção” 41. registrado de acordo com o disposto no Artigo
Insiste, assim, Triepel na tese da distin- 102 da Carta das Nações Unidas.
ção entre Direito internacional e Direito Assim sendo, percebe-se que a própria
interno, posto que ambos possuem fontes Carta da OMC autovincula-a à ONU,
distintas: a fonte do Direito interno é a estabelecendo expressamente que deve-se
vontade de um só Estado e a fonte do Direito conformar a ela.
internacional é a vontade comum, de vários Desse modo, resta nítida e incontroversa
ou de numerosos Estados. Além disso, a vinculação da OMC à ONU.
ambos regem relações distintas: as relações Além disso, há outros argumentos que
entre Estados diferem das relações entre corroboram esse entendimento. Vejamos.
indivíduos, sendo o Estado mais que um Pela análise dos Propósitos e Princípios
simples “ponto de imputação”; o Estado “é da ONU e da OMC, verifica-se que há
personalidade independente, distinta da notória compatibilidade entre os mesmos 44,
soma dos indivíduos que a compõem”. Esta o que denuncia estarem ambas inseridas
idéia é jurídica, não apenas sociológica e num único e mesmo ordenamento.
ainda que fosse, não é justo, sob a pretensão Ainda que se diga que a OMC tem
da clareza metodológica, separar as noções preocupações eminentemente comerciais,
jurídicas das sociológicas: “não se pode enquanto a ONU visa apenas manter a paz
fazer a menor idéia do direito sem pensar entre os Estados, mesmo assim, há que se
nas relações sociais por ele regidas. As falar em compatibilidade entre ambas, posto
relações sociais são a matéria, o direito é a que é sabido e comezinho o papel do
sua forma. Regular as relações sociais, eis o comércio internacional para uma humani-
objeto e o fim de todo direito” 42. dade pacífica.
Em suma, para Triepel: Nesse sentido, alude Celso Lafer45:
“...o direito internacional e o direito “No âmbito desta significativa e
interno existem, um ao lado do outro, importante reflexão [de como criar
como sistemas jurídicos particulares, condições para uma humanidade
isto é, um e outro devem ser conside- pacífica] (...) cabe lembrar a impor-
rados como produzidos por vontades tância atribuída ao comércio interna-
jurídicas separadas, tendentes a reger cional como uma das condições para
relações diferentes”43. uma humanidade pacífica.”
Comprovada a vinculação da OMC à
ONU, e entendendo-se estar a OMC a serviço
3ª Parte: A ONU e a OMC num
da ONU (o comércio como um instrumento
ordenamento jurídico unitário para a consecução da paz), resta agora
Na presente parte, tentaremos compro- sabermos quem é hierarquicamente superior.
var a vinculação da OMC à ONU. Vejamos.
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Igualmente nítido e incontroverso é o analogamente – porém num grau de com-
caráter de universalidade da ONU, adstrito plexidade maior – para se entender a ordem
a suas raízes históricas. internacional (Direito internacional).
Essa universalidade está externada no Os contratualistas explicam o surgi-
Capítulo I, artigo 2º, § 6º, da Carta da ONU, mento do Estado a partir de um contrato
em que temos: social celebrado entre os indivíduos que
“6. A Organização fará com que os viviam em estado-de-natureza (estado de
Estados que não são Membros das guerra de todos contra todos, para Hobbes,
Nações Unidas ajam de acordo com e de mútua assistência, para Locke, porém
esses Princípios em tudo quanto for sem um órgão julgador dos conflitos indivi-
necessário à manutenção da paz e da duais).
segurança internacionais.”
Nesse sentido, na teoria das relações
Já na Carta da OMC, encontramos,
internacionais, os realistas de inspiração
expressamente, no artigo II:
hobbesiana entendem não existir uma
“3. (...) Os Acordos Comerciais
ordem internacional, justamente por não
Plurilaterais não criam obrigações
haver um soberano que a garanta 46.
nem direitos para os Membros que não
os tenham aceitado.” Com o surgimento do Estado, os indi-
Enquanto na Carta da ONU, temos: víduos passam a ser súditos deste. Não
“Artigo 103 podemos considerar, então, os Estados
No caso de conflito entre as obri- igualmente como sujeitos de direito, no
gações dos Membros das Nações mesmo sentido que os indivíduos o são? Não
Unidas em virtude da presente Carta seriam os Estados membros de uma Socie-
e as obrigações resultantes de qualquer dade Internacional? Não estariam os Esta-
outro acordo internacional, preva- dos, anteriormente à Segunda Guerra
lecerão as obrigações assumidas em Mundial, num estado de natureza, de guerra
virtude da presente Carta.” de todos contra todos? Não seria, então, a
Logo, esse último dispositivo, aliado ao Carta das Nações Unidas um pacto social?
caráter de universalidade da ONU, compro- Um “contrato social real”, celebrado entre
vam ser esta hierarquicamente superior à os Estados, retirando-os da barbárie47?
OMC, por estarem ambas inseridas no Do supra-aludido depreende-se que
mesmo ordenamento jurídico, sendo ambas uma outra hipótese de trabalho seria
subsistemas de um único ordenamento, no conceber a ordem internacional não como
entendimento kelseniano, conforme visto na necessariamente escalonada hierarqui-
“Segunda Parte”. camente, funcionando a Carta das Nações
Isso porque, de acordo com os pressu- Unidas analogamente como a Constituição
postos filosóficos da escola neokantiana, o de um Estado, mas entender essa mesma
Direito deve ser apreendido como um todo Carta como um “contrato social real”
único. Assim sendo, a OMC está vinculada
celebrado entre os Estados.
à ONU. Além disso, a OMC encontra-se em
Desse modo, conforme já dito na intro-
posição hierarquicamente inferior à ONU,
dução, não se pretende impor a hipótese
devendo-se conformar a esta, se entender-
kelseniana da ordem internacional unitária
mos a ordem internacional como escalonada
aqui tratada como modelo único: admitimos,
hierarquicamente.
sim, a existência de outras hipóteses, sendo
uma delas exatamente essa já aludida nos
Considerações finais parágrafos supra destas Considerações Finais.
O mesmo raciocínio que é desenvolvido Se considerarmos, porém, com um
para explicar o fenômeno do Estado nacio- instrumental kelseniano, o Direito como um
nal (Direito interno) pode ser aplicado sistema unitário, ao entendermos que a OMC
Brasília a. 37 n. 146 abr./jun. 2000 127
está vinculada à ONU, ou seja, ambas CASTEDO, Alberto Zelada (org.), Buenos Aires,
pertencem ao mesmo sistema – sistema esse, BID.INTAL/DP 302/85, publ. n. 316, 1989. p.
93-107).
repita-se, necessariamente unitário –, só há 4
NYE, Joseph. What New World Order? In: Foreign
três hipóteses de relação entre esses dois Affairs. Spring 1992. p. 82.
sistemas: 5
DUPUY, René-Jean. O direito internacional.
a) a ONU e a OMC estão subordinadas Tradução por Clotilde Cruz, Coimbra, Almedina,
hierarquicamente, estando a ONU acima da 1993. p. 29.
6
As Intergovernmental organizations são mais
OMC; numerosas do que os sujeitos originais do Direito
b) a ONU e a OMC estão subordinadas Internacional, os Estados: vide Yearbook of Inter-
hierarquicamente, estando a OMC acima da national Organizations – Brussels, apud SEYERSTED,
ONU, ou Finn, Applicable law in relations between intergo-
c) a ONU e a OMC estão no mesmo vernmental organizations and private parties. In:
Recueil des Cours, Académie de Droit International
patamar hierárquico. Para tanto, devemos (Haia), 1967 – 3, t. 122, publ. Leyde, A. W. Sijthoff,
necessariamente concebê-las como subsis- 1069 p. 427-616, p. 434.
temas de um único sistema – o ordenamento 7
BASSO, Maristela. O direito e as relações
jurídico é sempre unitário –, o que só é Internacionais no novo cenário mundial: o fenômeno
conseguido se admitirmos a existência de crescente das organizações internacionais. In:
Estudos Jurídicos. [s.l. : s.n.], v. 25, n. 65, setembro/
um todo maior, a ambas superior, que as dezembro 1992. p. 107-128, p. 109.
coordene, delimitando-lhes competência. Ainda sobre o após-guerra, vide, a propósito,
Optamos pela primeira hipótese, após CAMPOS, Roberto, Bretton Woods, FMI, Havana E
trazermos argumentos que denunciam uma GATT: a procura da ordem econômica do após-guerra.
superioridade hierárquica da ONU com In: A Reformulação do Ordenamento Institucional no
pós-guerra, Boletim de Diplomacia Econômica n.
relação à OMC. 19, fev./95 – MRE/SGIE/GETEC, p. 1-17. Mais
especificamente sobre o GATT, vide também O
GATT e a Rodada Uruguai. In: Boletim de Diplomacia
Econômica n. 18, MRS, agosto 1994. Numa obra mais
Notas recente, com caráter eminentemente prático, temos
1
Vide, a respeito, LAFER, Celso, FONSECA JR., COSTA, Ligia Maura, OMC – Manual Prático da
Gelson, Questões para a diplomacia no contexto inter- Rodada Uruguai, São Paulo, Saraiva, 1996.
nacional das polaridades indefinidas. In: FONSECA
8
A Carta das Nações Unidas foi assinada a 26
JR., Gelson, CASTRO, Sergio Henrique Nabuco de junho de 1945 e aprovada pelo Decreto-lei nº
(orgs.), 1995. p. 49. 7.935, de 4 de setembro de 1945 (vide RANGEL,
2
DUPUY, René-Jean. Le dédoublement du Vicente Marotta. Direito e relações internacionais.
monde. In: Revue Générale de Droit International 4. ed. São Paulo, RT, 1993. p. 28).
Public. Tome 100/1996/2, p. 313-321, p. 314.
9
A propósito, sobre novos paradigmas do pós-
3
IANNI, Octavio (1994) cfr. bibliografia anexa. guerra fria, vide HUNTINGTON, Samuel P.,
Sobre o fim do “Estado-Nação” e a repercussão Civilizações ou o quê? Paradigmas do mundo pós-
disso para a soberania e para o Direito Internacional, Guerra Fria. In: Política Externa. [s.l. : s.n.], v. 2, n. 4,
vide CASELLA, Paulo Borba, A Convenção n. 158 março 1994. p.169-178.
da OIT, as relações entre Direito interno e Direito 10
A expansão do sistema capitalista mundial, o
internacional, Revista Ltr., v. 60, n.7, julho de 1996. crescimento sem precedentes do comércio interna-
p. 900 a 909, em que o autor alerta para a existência cional e de investimentos e fluxos financeiros para
de um contexto integrado, exigindo um “nível de além de fronteiras nacionais deram origem a novos
cooperação econômica, harmonização jurídico- tipos de relações e atores transnacionais.
institucional e coordenação de políticas” (p. 909), 11
É notório, no campo das relações interna-
em que a soberania, nesse contexto integrado, deve cionais, o sincretismo de métodos, para melhor
ser tratada como conceito jurídico passível de limi- descrever esse fenômeno multifocal, que é a
tação, limitação essa que não implica sua anulação “sociedade internacional” (analisam-se concomitan-
(Pescatore fala num réamenagement das soberanias: temente os fenômenos sob a ótica histórica, cultural,
Droit de l’integracion, Leiden, 1972. p. 31, 34-35, sociológica, jurídica,...). Porém, num trabalho de
apud GONZALEZ, Manuel Perez. Derecho Comu- humilde envergadura, como o presente, é impres-
nitario y Derecho interno. In: Derecho de la Integración cindível a redução do campo de trabalho, que passa
Económica Regional: lecturas seleccionadas. Tomo 2, a ser condição mesma de sua viabilidade.
128 Revista de Informação Legislativa
12
Nascido a 11-10-1881, em Praga. Autor de seja, a personificação do próprio ordenamento
diversas obras sobre Direito Internacional; entre elas, jurídico [o Direito é, para Kelsen, ordem normativa
destacam-se Das Problem der Souveranität und die da conduta humana, sistema de normas que regulam
Theorie des Volkrrechts (O problema da Soberania e o comportamento humano. Cf. Kelsen, 1984. p. 21].
a Teoria do Direito Internacional), 1920; Unrecht 22
Kelsen, 1984. p. 385.
und Unrechtsfolge im Völkerrecht, 1932 (O ato anti- 23
Kelsen, 1984. p. 394.
jurídico e a conseqüência do mesmo no Direito In- 24
Se liga a determinados fatos estabelecidos
ternacional Público); Die Technik des Völkerrechts como pressupostos, atos de coerção, determinados
und die Organization des Friedens, Wien, 1934 (A como conseqüências, pelo ordenamento jurídico.
técnica do Direito Internacional e a Organização da 25
Kelsen, 1984. p. 429.
Paz); Peace Through Law , 1944; Principles of 26
Kelsen, 1984. p. 437.
International Law, NY, 1952. 27
O que propicia a diferença entre os sistemas é
13
Nascido a 12-2-1868, em Leipzig. Autor de justamente a existência de normas fundamentais
Völkrrecht und Landesrecht (Direito Internacional e distintas para ambos.
Direito Estatal), 1899. 28
E Kelsen o faz, peremptoriamente [cf. Kelsen,
14
Sobre a criação da OMC, vide MACIEL, George 1984. p. 437]. Para Kelsen, é impossível haver
Álvares. A dimensão multilateral – o papel do GATT conflitos insolúveis entre dois sistemas porque, para
na expansão da economia – a rodada Uruguai e a tanto, devem existir dois ordenamentos distintos,
criação da OMC em 1994. In: Boletim de Diplomacia vigendo concomitantemente, o que é um absurdo,
Econômica. n. 19, MRE/SGIE/GETEC, fev. 95, p. pela perda da unidade do Direito. Além do que,
130-146. Sobre o GATT propriamente dito e a não pode haver dois ordenamentos distintos
Rodada Uruguai, vide BAPTISTA, Luiz Olavo. regulando as mesmas condutas humanas, incidindo
Temas inacabados na rodada Uruguai. In: O futuro sobre as mesmas pessoas, pois quem define a
do comércio internacional: de Marrakesh a Cingapura, “pessoa” – que se distingue do indivíduo
MARCOVITCH, Jacques (coord.). São Paulo, biologicamente concebido, pertencente ao mundo
Edusp, 1996. p. 39-105. do “ser” – é o próprio ordenamento jurídico, já que
15
Isso porque Kelsen sustenta o monismo com pessoa é apenas um centro de imputação normativa,
a necessidade da unidade sistemática da ciência, e se os ordenamentos são diferentes, teremos normas
unidade essa que é pressuposto da própria ciência diferentes incidindo, logo, nunca teremos a mesma
– e a superação da dicotomia Direito/Estado por “pessoa”.
Kelsen é relevantíssima quando o autor rebate o
29
Kelsen, 1984. p. 438-439.
argumento dos dualistas de que o Direito
30
Kelsen, 1984. p. 440.
31
O “ilícito” é apenas um pressuposto ao qual
internacional distingue-se do direito interno por
o ordenamento jurídico liga como conseqüência uma
regular relações entre os Estados. Como veremos,
sanção. No Direito estadual, a norma que aparen-
para Kelsen, o Estado é apenas um centro de
temente está em contradição com o ordenamento
imputação normativa, a personificação do próprio
jurídico permanece válida até ser anulada por um
ordenamento jurídico, e todo o direito regula apenas
processo previsto pelo próprio ordenamento
e tão-somente condutas humanas (somente essas
jurídico, se o ordenamento jurídico o prever, ou tal
podem ser objeto de regulamentação jurídica).
norma é pressuposto ao qual o ordenamento
16
Na introdução à edição italiana de “O
jurídico liga conseqüências específicas, v. g., uma
problema da justiça” (cf. KELSEN, Hans, Das
sanção. Em ambos os casos, não existe contradição.
Problem der Gerechtigkeit, Wien, Franz Deuticke, 32
Kelsen, 1984. p. 442.
1960. Tradução por João Baptista Machado, 2. ed., 33
Para Kelsen, no discurso da teoria dualista,
São Paulo, Martins Fontes, 1996). há sempre um pseudodualismo pela existência
17
Kelsen, 1996. p. 9. sempre de subordinação, já que há ponto de contato
18
A ausência de contradição é justamente o entre o Direito internacional e o interno (“dois
postulado negativo da teoria do conhecimento. Cf., círculos que não estão sobrepostos, mas apenas se
a respeito, Kelsen, 1984. p. 438. tangenciam”).
19
O Estado, para a teoria tradicional, é uma 34
“Dizer que o Estado é soberano não significa
pessoa jurídica, mas ao mesmo tempo antecede a outra coisa senão que a fixação da primeira
existência do Direito cronologicamente, criando-o e Constituição histórica se pressupõe como facto
a ele se submetendo, e, assim, legitimando, gerador de Direito sem que a esse propósito se faça
tornando-se Estado de Direito. Cf. Kelsen, 1984. referência a uma norma do Direito internacional
p. 384. que institua este facto como facto produtor de
20
Kelsen, 1984. p. 385. Direito”, Kelsen, 1984. p. 445 e 446.
21
Isso porque um conhecimento do Estado isento 35
Karl Heinrich Triepel, nascido em Leipzig, aos
de elementos ideológicos apreende a sua essência 12 de fevereiro de 1868, autor de Völkrrecht und
apenas como uma ordem de conduta humana, ou Landesrecht, publicado em 1899.
Brasília a. 37 n. 146 abr./jun. 2000 129
36
“...as regras do direito internacional têm objeto 46
WIGHT, Martin, International Theory – the three
regularmente inacessível a qualquer direito interno; traditions, editado por Gabriele Wight and Brian
este não pode ordenar a mesma coisa que o direito Porter, Leicester University Press, London for the
internacional”. Triepel, 1966. p. 30. Royal Institute of International Affairs, London,
37
Triepel, 1966. p. 14. 1994 (mais especificamente, Cap. 3, Theory of
38
Kelsen rebate esse argumento, condenando a international society, p. 30-48). Vide também, a
concepção do Estado como ente diverso, autônomo propósito, BATTAGLIA DE SUSCO, Elvira M., Una
e independente de seus órgãos e súditos, podendo aproximacion a la hipotesis Hobbesiana del estado
ser obrigado independentemente destes! Além do de naturaleza aplicada al area de las relaciones
que, o conteúdo de um ordenamento, de uma norma internacionales. Rev. Occidental: estudios latino-
ou de uma obrigação deve ser um comportamento americanos, 9 (1), 1991. p. 77-101.
humano. Se uma sociedade está obrigada, por um 47
Uma outra hipótese de concepção de ordem
ordenamento, a ter um determinado comporta- internacional e de relações entre os Estados seria a
mento, isso significa que a tal comportamento está fornecida por MARTINS, Luciano. Ordem interna-
obrigado um ser humano, cuja competência é cional, interdependência assimétrica e recursos de
determinada pelo ordenamento ou societário poder. In: Política Externa. v. 1, n. 3, Dezembro 1992.
delegado do ordenamento jurídico. O ordenamento p. 62-85, para o qual há uma interdependência entre
jurídico da sociedade é um ordenamento parcial os Estados, que é, porém, assimétrica, por haver
ou inferior, sendo a pessoa jurídica a unidade grandes discrepâncias entre os Estados. Mas, pelo
personificada de um ordenamento, cujo conteúdo fato de existir essa interdependência, o Estado mais
é o comportamento de seres humanos. Que forte não aniquila o menos forte, sob pena de, ao
conteúdo pode ter uma norma de Direito interna- eliminar o parceiro, encerrar o próprio “jogo”.
cional que obriga o “Estado” mas não os seus
súditos ou autoridade? [cf. Kelsen, 1920. p. 235].
39
Isso porque, conforme visto, os sujeitos do
Direito internacional e do Direito interno não se
confundem: enquanto o Direito interno regula Bibliografia
relações dos indivíduos entre si ou destes com o ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. A ONU
Estado, o Direito internacional tem por sujeitos e a Nova Ordem Mundial. In: Estudos Avan-
apenas os Estados.
çados. [s.l. : s.n.], 9 (25), 1995. p. 161-167.
40
A esta última frase responde Triepel afirmando
BAPTISTA, Luiz Olavo. Temas inacabados na
que não se trata de uma impugnação à sua teoria
Rodada Uruguai. In: O futuro do comércio
dualista já que, mesmo havendo disposições do
tipo “as regras do direito internacional geralmente internacional: de Marrakesh a Cingapura.
reconhecidas serão consideradas como obrigatórias Jacques Marcovitch (coord.). São Paulo :
em direito alemão” (nova Constituição do império Edusp, 1996. p. 39-50.
alemão, art. 4º), isso não colide com a doutrina BASSO, Maristela. O Direito e as relações interna-
dualista de separação entre direito internacional e cionais no novo cenário mundial: o fenômeno
direito interno porque é “a Constituição do Estado, crescente das organizações internacionais. In:
portanto uma fonte do direito interno, o manancial Estudos Jurídicos. [s.l. : s.n.], v. 25, n. 65, setem-
donde afinal provém para o interior do Estado a bro/dezembro 1992. p. 107-128.
força obrigatória do tratado” (Triepel, 1966. p. 27); BATTAGLIA DE SUSCO, Elvira M. Una aproxi-
logo, não é o Direito internacional que está sendo macion a la hipotesis Hobbesiana del esta-
aplicado no âmbito interno do Estado. do de naturaleza aplicada al area de las
41
Triepel, 1966. p. 21. A teoria pura do direito é relaciones internacionales. Rev. Occidental:
criticada pelas teorias sociológicas, que lhe estudios latinoamericanos. [s.l. : s.n.], 9 (1),
reprovam o formalismo, alegando que o direito é 1991. p. 77 – 101.
um fenômeno social. Kelsen esclarece que se trata CAMPOS, Roberto. Bretton Woods, FMI, BIRD,
de uma teoria pura do direito e não teoria do direito Havana e GATT: a procura da ordem econô-
puro, ou seja, de um direito desligado da realidade mica do após-guerra. In: Boletim de Diplomacia
[cf. Kelsen, 1996. p. 16].
Econômica. [s.l. : s.n.], n. 19, fev./95 – MRE/
42
Triepel, 1966. p. 22.
SGIE/GETEC, p. 1-17.
43
Triepel, 1966. p. 43.
CASELLA, Paulo Borba. A convenção n. 158 da
44
Para a visualização da nitidez dessa compa-
OIT, as relações entre direito interno e direito
tibilidade, vide, a propósito, o artigo 1º do Capítulo
I da Carta da ONU e os consideranda da OMC. internacional. In: Revista Ltr.[s.l.: s.n.], v. 60, n.
45
LAFER, Celso, O sistema de solução de 7, julho de 1996. p. 900 – 909.
controvérsias da Organização Mundial do Comércio, COSTA, Ligia Maura. OMC – Manual Prático da
FIESP/CIESP, IRS, CNI, 1996. Rodada Uruguai. São Paulo : Saraiva, 1996.

130 Revista de Informação Legislativa


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