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ARTIGO

“SEMPRE QUANDO PASSA ALGUMA COISA,


DEIXA RASTRO”

UM BREVE ENSAIO
SOBRE PATRIMÔNIO
ARQUEOLÓGICO E
POVOS INDÍGENAS 1

Marcia Bezerra
Programa de Pós-Graduação em Antropologia/Universidade Federal do Pará/CNPq.
PPGA/IFCH/UFPA - Rua Augusto Corrêa, nº1 – Guamá – Belém – Pará – 66.075.900.
E-mail: marciabezerrac14@gmail.com
1- Uma versão deste texto foi apresentada durante o “I Fórum Internacional da Temática Indígena”,
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em junho de 2010
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abstract
resumo Abstract: In this essay I will briefly
Nesse ensaio discuto de forma bre- discuss some aspects regarding the
ve algumas questões que envolvem as relationships between the archaeolo-
relações entre os arqueólogos, o patri- gists, the archaeological heritage and
mônio arqueológico e os povos nati- the native people. Considering cases
vos. Considerando casos em Belize, from Belize, Honduras, México, Aus-
Honduras, México, Austrália e Brasil, tralia and Brazil, the main points dis-
os principais pontos de discussão são: cussed are: 1) the category of herita-
1) a categoria de patrimônio; 2) os sen- ge; 2) the senses of the archaeological
tidos das paisagens arqueológicas para landscapes for native communities
as comunidades nativas e 3) os desa- and 3) the challenges of constructing
fios na construção de um discurso si- a symmetrical discourse in Archaeo-
métrico na Arqueologia. logy.

Palavras-Chave: Patrimônio arqueo- Key-words: archaeological heritage


lógico – povos nativos - simetria. – native peoples - symmetry.

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IntroDução ras tradicionais”. A moção aponta a necessi-


dade de colaboração dos indígenas no de-
En cambio, en un espíritu de senvolvimento dos projetos de Arqueologia,
humildad, apertura epistémica y em todas as suas etapas, e a inclusão de
escucha, deberíamos decir: ¿qué “perspectivas alternativas de discurso”. As
podríamos aprender mutuamen- questões levantadas envolvem aspectos so-
te? ¿cómo comenzamos una ciais, culturais e políticos, provocando refle-
conversación acerca de las cosas xões que se situam nos domínios fluidos das
que sabes, y las cosas que sé? identidades étnicas, na interação entre teo-
(Shepherd&Haber, 2011:20) ria e prática arqueológica e na relação entre
a Arqueologia e a Antropologia no país.
As reflexões sobre as relações entre o Esse é um vasto campo de discussões
patrimônio arqueológico e os povos indí- que não será esgotado neste ensaio. Os pon-
genas não constituem um tema novo, mas tos aqui tratados enfatizam: 1) a categoria
o reconhecimento e a legitimação do dis- de patrimônio; 2) os sentidos das paisagens
curso indígena sobre o passado arqueoló- arqueológicas para as populações nativas e
gico faz parte da agenda recente da Arque- 3) os desafios na construção de um discurso
ologia no Brasil (Endere, Cali & Funari, simétrico, considerando casos em Belize,
2011; Green, Green & Goés Neves, 2003 e Honduras, México, Austrália e Brasil.
2011; Gomes, 2011; Heckenberger, 2008; O título deste ensaio “Sempre quan-
Moi & Morales, 2011; Silva 2002, entre ou- do passa alguma coisa, deixa rastro....” é um
tros). trecho retirado de conversa com uma mora-
Em 2007, foi dado um passo importante dora da Vila de Joanes, Ilha do Marajó, na
nessa direção. Durante o I Seminário Inter- Amazônia2, descendente de indígenas. Nes-
nacional de Gestão do Patrimônio Arqueoló- sa frase ela narra a sua percepção sobre os
gico Pan-Amazônico, realizado pelo Iphan, rastros do passado indígena [objetos e o sí-
em Manaus, o grupo constituído por arque- tio arqueológico)]da vila.
ólogos, antropólogos e intelectuais indíge-
nas do GT Preservação do Patrimônio Ar- DA IDEIA DE PATRIMÔNIO
queológico em Terras Indígenas1 encaminhou Um dos pontos centrais para essas dis-
uma moção que, entre outras questões, cha- cussões é a própria ideia de “patrimônio”
mou a atenção para o (Bezerra, 2011). Como afirma Gonçalves
“(...) conceito de ´terra indígena´ (2007:108) trata-se de “uma categoria, não
[considerado pelo GT] como terra indígena exótica, mas bastante familiar ao moderno
tanto aquelas terras administrativamente pensamento ocidental”. Contudo, ainda de
demarcadas pelo governo brasileiro (TIs), acordo com o autor, é preciso mapeá-la e
como as áreas consideradas tradicionais compreendê-la em seus próprios termos em
pelas populações indígenas, em especial contextos não-ocidentais. Nesse sentido,
seus locais de significância simbólica/ pensar as relações entre patrimônio arque-
sagrada/cultural (...)” ológico e povos indígenas é pensar em ou-
e propôs denominá-las apenas por “ter- tras epistemologias (Bezerra e Machado,
1-Membros do GT: Erika M. Robrahn-González (Relatora); 2-Entrevista concedida à autora no âmbito do projeto
Maria Clara Migliacio (Coordenadora da mesa); Fabíola “Os Significados do Patrimônio Arqueológico para os
Andrea Silva; Bonifácio José Baniwa; Afukaká Kuikuro; Moradores da Vila de Joanes, Ilha do Marajó”. UFPA/
Mutuá Mehinaku; e Michael J. Heckenberger. PPGA/CNPq, em abril de 2010.

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2011); outras percepções sobre o que o Es- representativa pelo Estado, ou seja, “patri-
tado – e os “especialistas do passado” (Can- mônio” é um conceito criado nos domínios
clini, 1994: 99), incluindo os arqueólogos - do Estado-nação e, como tal, constitui-se
denominam por “patrimônio”. em uma atribuição externa de identificação.
O patrimônio histórico e nacional é Ou seja, o paradoxo está no fato de que o
constituído pelo Decreto Lei 25/1937 (Iphan, conceito de patrimônio (sítios e objetos ar-
2006) e os sítios, objetos e coleções arqueo- queológicos) é fortemente alicerçado na
lógicas são protegidos pela Lei 3924/1961 materialidade e na sua duração no tempo.
(op.cit.). A existência de sítios arqueológi- Constitui, portanto, uma perspectiva histó-
cos é estabelecida por uma categoria de es- rica, que desconsidera a dinâmica e a lógica
pecialistas – os arqueólogos, que trabalhan- memorial de construção do passado pelos
do sob a licença do Estado1 atestam, ou não, indígenas. Assim, a ideia de patrimônio é,
estas ocorrências. Essas verificações se por essência, contrária aos processos de
orientam por critérios objetivos próprios de constituição das identidades étnicas (see
toda investigação científica, mas nem por Gnecco and Ayala, 2011). Por conseguinte,
isso imunes ao contexto em que se inserem. relacionar patrimônio arqueológico e povos
Se por um lado, a pesquisa arqueológica indígenas pode significar, na essência, uma
não pode renunciar ao empirismo, por ou- contradição.
tro, sua prática não pode abstrair de uma Não obstante essas reflexões, os proces-
perspectiva reflexiva crítica sobre a cons- sos de reivindicação de terras indígenas en-
trução do conhecimento arqueológico e o volvendo vestígios arqueológicos são cres-
seu impacto no cotidiano de comunidades centes. Eles se referem aos sítios
locais. arqueológicos como elementos identitários
A esse respeito, Pyburn (2005) em “Why e incorporados pelos coletivos indígenas,
Archaeology Must Be a Science” faz uma dis- ainda que os dados arqueológicos não indi-
cussão interessante sobre a ciência e os dis- quem as relações de ancestralidade. Nas lu-
cursos nativos. Para a autora, negar o as- tas pelos seus direitos o patrimônio arqueo-
pecto empirista da Arqueologia em favor do lógico é percebido como sinal diacrítico nos
repertório de crenças e valores de comuni- processos de auto representação. As evidên-
dades nativas é desconsiderar ambas as vi- cias arqueológicas têm constituído uma es-
sões/interpretações. Pyburn (2005: 231) pécie de substrato material do universo mí-
sustenta a ideia de que os dados arqueológi- tico, mobilizado também como recurso
cos podem combater o essencialismo e de político legítimo (Bezerra, no prelo).
que o empirismo não é sinônimo de impe- Em livro recém-lançado Gnecco e Ayala
rialismo. Pelo contrário, a possibilidade de (2011) reúnem intelectuais indígenas e não-
verificação de proposições científicas é fun- -indígenas para tratar das relações entre
damental para a reconstrução do passado e povos indígenas e arqueologia na América
para a legitimação de direitos humanos (Py- Latina. Os artigos apresentam estudos de
burn, 2005). Como, então, relacionar o dis- caso – quatro deles no Brasil (Endere, Cali
curso científico sobre um sítio arqueológico & Funari, 2011; Green, Green & Goés Neves,
e as narrativas indígenas sobre ele? Serão 2011; Gomes, 2001 e Moi & Morales, 2011)
essas duas esferas incompatíveis? – que apontam para a natureza intrincada
A categoria patrimônio não prescinde da dessas relações e para a urgente tarefa de
avaliação e da legitimação de sua natureza refletir criticamente sobre elas. As discus-

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sões implicam a própria sobrevivência da turística,3 que ao privilegiar determinadas


disciplina nesses contextos. esculturas de pedra e a representação da
Segundo os autores, na arqueologia sul elite Maia, impede que os descendentes te-
americana outras formas de interpretação nham o sentido de “herança pessoal”. Py-
do passado, e suas conexões com o presen- burn (2004), por sua vez, questiona as tradi-
te, só passam a ser consideradas a partir das cionais interpretações dos Maia, em
demandas locais; muitas surgidas, nos últi- especial, aquelas que enfatizam uma visão
mos anos, em contextos de intenso conflito. sexista de mundo. A autora discute contex-
As disputas sociais, políticas, culturais e éti- tos nos quais as relações de gênero contra-
cas são agravadas por algumas situações. dizem os modelos usualmente aceitos, o
Dentre elas, destacam-se: as lutas por terri- que contribui para o fortalecimento do po-
tórios; o gerenciamento do patrimônio ar- der de seus descendentes. Nos dois casos, a
queológico e a repatriação de restos huma- interpretação arqueológica não nega as re-
nos. Essa última ainda pouco evidente no lações de ancestralidade, mas contraria a
Brasil. O caso mais recente é o da repatria- auto-representação que seus descendentes
ção dos restos humanos do Botocudo Qüa- têm com um dos elementos principais: os
ck, em Minas Gerais, em 2011 (Missagia de sítios e os monumentos arqueológicos.
Mattos, 2011). A experiência de Breglia (2008) em um
sítio Maia em Yucatán, México, indica uma
PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO E PO- situação distinta. A comunidade Maia local
VOS NATIVOS EM BELIZE, HONDURAS, não se considera descendente, seja por
MÉXICO, AUSTRÁLIA E BRASIL. questões biológicas, seja por filiação cultu-
Retomando Gonçalves (2007:108) é preci- ral. Os sítios arqueológicos existentes em
so compreender outras lógicas de constru- seu território são considerados como parte
ção da ideia de patrimônio. É nesse sentido, da paisagem natural e são valorizados não
que apresento casos como o dos descenden- como patrimônio arqueológico, mas como
tes Maia em Belize, Honduras e México (Py- “patrimônio ejidal”, uma herança do siste-
burn, 2004; Mortensen, 2006 e Breglia, 2008, ma estatal de distribuição de terras para po-
respectivamente), os Waanyi na Austrália, pulações Maia, em vigor nos anos 1930
(Smith, 2007) os Krenak (Missagia de Mattos, (Breglia, 2008: 91). Um dos pontos princi-
1996; Baeta & Missagia de Mattos, 2007), os pais da argumentação de Breglia é a assi-
Asurini (Silva, 2002), os Caxixó metria entre a noção de “patrimônio” na
(Morais&Oliveira, 2003) e os Palikur (Green, perspectiva dos arqueólogos e a sua concep-
Green & Goés Neves, 2003 e 2011), no Brasil, ção para as comunidades nativas. Segundo
entre outros. Na maioria deles, o que está em a autora, para essas comunidades a ideia de
questão é o reconhecimento e a legitimação “herança” está ligada a um conjunto de
de identidades, para os quais o patrimônio eventos, experiências, crenças e memória
arqueológico torna-se um recurso político de coletiva do presente (2008: 90). Desse modo,
todos os envolvidos: Estado, arqueólogos e sua herança “(...) lives on the surface of ev-
comunidades nativas (Smith 2007). eryday life, not buried under ancient ruins”
Entre os descendentes Maia em Copán (2008: 91.).
(Mortensen, 2006: 63; Mortensen & Bezerra,
3-A respeito do processo de construção da “Ruta Maya” e
2007) a questão do reconhecimento situa-se o impacto na constituição das identidades locais ver Joyce
no âmbito da política de exploração (2003).

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Esta mesma discussão é apresentada por queológicas (Baeta & Missagia de Mattos
Smith (2207) ao tratar da relação entre a co- 2007.), não é provável que as pinturas te-
munidade Waanyi, em Queensland, na Aus- nham sido feitas por antepassados dos Kre-
tralia, e os sítios arqueológicos localizados nak, mas elas são incluídas em suas narra-
no Boodjamulla National Park. Entre os Wa- tivas pela atribuição de um caráter mágico;
anyi, a tarefa de preservar o território tem uma vez que acreditam que jamais poderão
um papel importante na organização social, ser apagadas. Para os Krenak, as pinturas
uma vez que há regras sobre quem tem o surgem espontaneamente e têm origem so-
poder de zelar por determinados sítios e lu- brenatural. Os locais de ocorrência desses
gares sagrados e quem pode falar sobre sítios são entendidos como lugares de en-
eventos relacionados a esses lugares (Smi- contro e comunicação com os Maret, seus
th, Morgan & van der Meer, 2003). Smith ancestrais míticos (2007: 50). Segundo as
(2004 e 2007) discute a transformação do autoras, as pinturas rupestres são um valio-
discurso da Arqueologia em “tecnologia do so marcador étnico para os jovens Krenak
governo” ao regular o gerenciamento do (2007: 55).
passado de forma arbitrária em nome da Entre os Asurini, no Pará, Silva (2002)
burocracia e das políticas ligados ao uso da assinala a atribuição mítica que o grupo dá
terra. No caso dos Waanyi, esse papel foi aos vestígios arqueológicos, mas ao mesmo
modificado, pois o grupo utilizou os arque- tempo, indica a sua inserção em práticas
ólogos para facilitar o processo de reconhe- cotidianas atuais. A autora verificou que os
cimento e legitimação de seu poder sobre a Asurini ainda guardam na memória técni-
gestão de seu território. cas de uso de instrumentos líticos. Muito
Para Smith (2007: 169), o conhecimento embora os dados arqueológicos não tenham
arqueológico não era essencial para as rei- constatado processo de continuidade histó-
vindicações do grupo, os pesquisadores fo- rica, os vestígios “(...) são elementos mate-
ram utilizados como parte do “recurso polí- riais que falam para eles sobre a sua ances-
tico” para alcançar outros grupos tralidade (...)” (2002: 184. Itálico no
não-nativos. O projeto Waanyi promoveu o original.)
fortalecimento das mulheres do grupo, que O trabalho desenvolvido por Green, Gre-
passaram a controlar o acesso e a divulga- en & Goés Neves (2003) entre os Palikur, no
ção de conhecimentos nativos sobre alguns Amapá, a partir de uma perspectiva da pes-
lugares considerados sagrados. Aqui a ideia quisa de ação participatória, permitiu aos
de “herança” liga-se também ao tempo pre- pesquisadores perceber o papel memorial
sente, ao seu “momento real” (Smith, 2007: das paisagens nas narrativas dos Palikur.
169). Os sítios arqueológicos não eram valoriza-
O caso dos Krenak analisado por Baeta e dos por sua natureza intrínseca, mas por
Missagia de Mattos (2007), envolve questões sua inserção nesta paisagem. Um caso pró-
semelhantes, mas com algumas particulari- ximo ao relatado por Breglia (2008).
dades. Os Krenak habitam uma área ponti- Os exemplos nos dão a medida da com-
lhada de sítios arqueológicos, em especial, plexidade das relações entre o patrimônio
abrigos com arte rupestre, que são conside- arqueológico e as comunidades nativas. Há
rados como locais estratégicos para refúgio um denominador comum que podemos
durante conflitos (Missagia de Mattos, reunir no trinômio reconhecimento, legiti-
1996:164). De acordo com as pesquisas ar- mação e representação, mas o uso do patri-

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mônio arqueológico dá-se de maneira dis- vez que os consideram como parte da paisa-
tinta, sobretudo, no que diz respeito à noção gem natural, mas por terem herdado o ter-
de patrimônio e à relação de ancestralidade, ritório onde esses se localizam. Observa-se
que têm ligação direta com o papel da Ar- neste caso a dimensão política e econômica
queologia e as atitudes dos grupos nestes do patrimônio. Podemos encontrar um pa-
contextos. ralelo na relação dos Waanyi com o patri-
Nesses casos a noção de patrimônio é mônio arqueológico. Para eles, o conheci-
construída a partir da materialidade do pas- mento produzido pela Arqueologia, ou seja,
sado expressa nos sítios e monumentos o que institui para o Estado, o patrimônio
Maia de Honduras e Belize; da posse da ter- arqueológico, tem valor como instrumento
ra herdada no México; do gerenciamento político de alcance em relação a outros não-
das terras e lugares sagrados dos Waanyi, do -nativos.
aspecto sobrenatural entre os Krenak e os Neste sentido, Smith (2007: 169) argu-
Asurini e da relação com a paisagem entre menta que é necessário desconsiderar a ên-
os Palikur. Pode-se argumentar que todas fase que o discurso do patrimônio dá aos
estas lógicas de construção se remetem às lugares e objetos. Para ela, ao fazer isso,
origens e à propriedade da terra, mas há al- abrimos a possibilidade de que o patrimô-
guns aspectos a destacar. nio não seja apenas algo a ser cuidado para
Ao tratar do ativismo Maia surgido na as futuras gerações, mas que seja usado
década de 1950, o antropólogo e descenden- para fortalecer questões culturais e políticas
te Maia, Victor Montejo (2002: 130) afirma: hoje. Segundo a autora (idem), o patrimô-
“(...) we Maya can go to Tikal, to Palenque, nio deve ser considerado como o “ponto ou
or to other sacred sites in our communities o momento da negociação”.
and see, touch, and feel around us the pres- Entre os Krenak e os Asurini, apresenta-
ence and power of the ancestors”. Mais adi- -se outra realidade. Baeta e Missagia de
ante ele sublinha (op.cit.: 131) “(…) because Mattos (2007) e Silva (2002), respectiva-
of these links we consciously call ourselves mente, indicam que a relação de ancestrali-
Maya, and this makes our identity histori- dade entre os grupos e os sítios arqueológi-
cally powerful”. Montejo apresenta uma hie- cos em suas terras é improvável, mas as
rarquia de sentidos (ver, tocar e sentir), que suas narrativas incluem esses vestígios
demonstra a importância da materialidade como elementos memoriais e mágicos. Do
e da dimensão temporal nos processos de ponto de vista êmico, a ancestralidade exis-
auto representação Maia. te, pois acreditam que o local das pinturas
O mesmo ocorre entre os descendentes constitui um canal de comunicação com
Maia em Copán e em várias comunidades seus ancestrais míticos. A apropriação do
em Belize. A relação de ancestralidade e o patrimônio arqueológico pelos Krenak e pe-
direito à terra são indissociáveis, e o que los Asurini liga-se à noção de pertença, ou
está em jogo é a forma como a Arqueologia, seja, os vínculos estabelecidos estão anco-
o Turismo, os governos constroem as repre- rados no lugar.
sentações sobre os Maia. Para Bezerra de Meneses (2002: 188),
Em Yucatán a situação é oposta: as co- outros vínculos são reconhecidos quando a
munidades locais reclamam os direitos so- “linhagem” ou o “legado” “são pouco con-
bre o patrimônio não pela relação de ances- vincentes”. Segundo ele, a memória instau-
tralidade com os sítios arqueológicos, uma ra o sentido do tempo do homem, mas com

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a ´pertença´ está em cena o conteúdo espa- A interpretação do passado é uma cons-


cial da existência. trução do presente (Tilley, 1989), mas ela
Isto se aplica aos inúmeros processos de parte de vestígios materiais que se preserva-
reivindicação de terras indígenas no Brasil. ram e estão no presente. Não se trata apenas
O caso dos Caxixó, em Minas Gerais, é bem da construção e das hermenêuticas da pai-
representativo. Santos e Oliveira (2003: 24) sagem arqueológica, mas de sua existência
ao se referirem à inserção dos sítios arque- material no presente e de sua natureza me-
ológicos como elementos identitários incor- morial, evocatória do passado.
porados pelos Caxixó, ainda que os dados Esse entendimento não pode isentar a
arqueológicos não indiquem a ancestralida- Arqueologia de seguir determinados pa-
de, afirmam: “(...) [os] sítios arqueológicos, drões na condução de suas investigações, e
cujo vínculo com o passado Caxixó deve ser da preservação das materialidades do pas-
considerado a partir dos lugares que ocu- sado, sob o risco de desqualificar o próprio
pam no discurso nativo, e não como decor- discurso indígena. Não deve haver um em-
rência de uma qualidade intrínseca”. bate entre a perspectiva científica e a pers-
As evidências arqueológicas constituem pectiva nativa sobre um sítio arqueológico.
uma espécie de substrato material do uni- Suas lógicas de construção devem ser con-
verso mítico dos Caxixó, dos Krenak e dos textualizadas e consideradas, não numa di-
Asurini. Como dito anteriormente, a noção mensão hierárquica, mas sim relacional.
de patrimônio ainda presente no discurso
do Estado está fortemente alicerçada na A CONSTRUÇÃO MÚTUA DO CONHECI-
materialidade e sua duração no tempo, em MENTO
uma perspectiva histórica, mas o valor que O trabalho desenvolvido por Green, Gre-
esses grupos, assim como tantos outros, en e Goés Neves (2003) entre os Palikur, no
atribuem ao patrimônio arqueológico refe- Amapá, serve como bom exemplo dessa
re-se ao passado memorial e não histórico. construção mútua do conhecimento. Se-
Para Santos e Oliveira (op.cit.: 49) os ves- gundo os autores a abordagem participativa
tígios arqueológicos “(...) seriam assim um adotada transformou o patrimônio arqueo-
dos caminhos para o conhecimento dessa lógico situado no território Palikur de
ancestralidade mítica que é por definição “ikiska anavi wayk”, ou “as coisas deixadas
desconhecida, posto que atropelada pelo ad- no solo” em “ivegboha amekenegben gi-
vento da história”. Mais uma vez, verifica-se dukwankis”, ou “lendo os caminhos dos an-
que a ideia de patrimônio para as partes en- cestrais” (Green, Green & Goés Neves: 376).
volvidas nesses processos, deve ser pensada O confronto – e não a acomodação – entre
de forma crítica. as distintas visões/interpretações dos envol-
Retomo Smith (2007:169) e sua reflexão vidos produziu, de acordo com Green, Gre-
sobre o patrimônio, não como “tecnologia en e Goés Neves (op.cit.: 369), um conheci-
de governo”, mas como o “momento real da mento qualitativamente diferente.
negociação”. Neste contexto, o papel da Ar- Montejo ao tratar dos Maia (2002: 124)
queologia não é o de comprovar ou negar os propõe que essa construção se dê por um
discursos nativos, mas de oferecer a possi- “processo de etnocriticismo” que deve ser
bilidade de que os dados arqueológicos se- colocado, segundo ele, “(...) at the juncture
jam acessíveis para que os próprios indíge- of epistemic roads, Mayan truths and Wes-
nas possam manejá-los (Pyburn, 2005: 230). tern truths”. Essa lógica de construção diz

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respeito às relações entre arqueólogos e po- discussões sobre as relações entre arqueo-
pulações indígenas, mas também entre os logia e povos nativos constituem um corolá-
arqueólogos e suas “arqueologias”. Aqui se rio dessa sobreposição de categorias amal-
impõe uma reflexão sobre a prática da dis- gamadas ao espírito colonialista. As críticas
ciplina, o que sugere uma espécie de “etno- a essa estrutura binária, reducionista e co-
grafia do fazer arqueológico” (Castañeda, lonizante tem mobilizado representantes de
2008). diversas etnias e pesquisadores na luta pe-
Cabral (2011: 10) ao discutir a ideia de los direitos culturais (Gnecco & Ayala, 2011;
reversibilidade a partir de Wagner (2010)4 Silverman&Ruggles, 2007).
propõe que “Levar a sério a ideia de reversi- As áreas de confluência entre arqueólo-
bilidade na arqueologia, ou seja: que os [in- gos e o(s) passado(s) de povos indígenas são
dígenas] também são arqueólogos, abre a cada vez mais numerosas (Bezerra, no pre-
possibilidade do choque cultural tornar-se lo). Os ruídos nessas relações permanecem.
produtivo para os dois lados”. Então, voltan- A dissonância entre arqueólogos e povos
do ao trecho em epígrafe, “(...)¿qué podría- indígenas, no entanto, revela outras episte-
mos aprender mutuamente? ¿cómo comen- mologias da cultura material, do patrimô-
zamos una conversación acerca de las cosas nio, do passado e da própria arqueologia. A
que sabes, y las cosas que sé?” consonância não deve ser procurada na di-
(Shepherd&Haber, 2011: 20). luição dos discursos em favor de uma hibri-
Gnecco e Ayala (2011) ao criticarem o dização; mas nas vozes críticas de arqueólo-
discurso multiculturalista apontam a inter- gos e intelectuais indígenas (ver em Gnecco
culturalidade como caminho para o início & Ayala, 2011) que advogam a agência si-
desse diálogo. Nesse sentido, configura-se métrica não apenas sobre o patrimônio ar-
um “inter-discurso” (Bezerra, 2008) que po- queológico, mas sobre a própria ideia de
tencializa a construção simétrica não como Arqueologia (Bezerra, no prelo; Cabral,
retórica, mas como práxis da/na Arqueolo- 2011; Shepherd&Haber, 2011).
gia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tratar das relações entre patrimônio ar-
queológico e as populações indígenas impli-
ca, a priori, a consideração da natureza on-
tológica de cada um desses dois conceitos.
Ambos são uma invenção ocidental surgida
em contextos enviesados por ideologias do-
minantes. Se o estudo do “outro” na Antro-
pologia legitimou a consolidação da oposi-
ção ocidental/não ocidental; na Arqueologia
ele se estendeu a sua ancestralidade. Se a
Antropologia criou e exotizou o “outro”; a
Arqueologia, por sua vez, criou e exotizou o
passado do “outro”. Nessa perspectiva, as

4-Wagner, R. – A Invenção da Cultura. São Paulo:


Cosac&Naif, 2010.

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 24 - N.1:74-85 - 2012

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