conversão de Dostoiévski[editar | editar código-fonte]
Dostoiévski em uniforme (1858)
Por conversão de Dostoiévski entende-se a mudança radical de convicções existenciais, religiosas, morais e políticas pelas quais ele passou no período entre a detenção e o retorno a São Petersburgo, conversão afirmada pelo próprio autor.[81] Segundo o próprio Dostoiévski, o momento exato da conversão foi durante as festividades de Páscoa do segundo ano que passara na Sibéria: após assistir a uma extremamente violenta, e para ele insuportável, festividade dos servos na prisão, Dostoiévski lembrou-se do caso do servo Marei (servo de seu pai), o qual teria ocorrido quando ele ainda era criança. Marei teria tratado Dostoiévski com extremo amor paternal, quando este, com oito anos, estava desesperado de medo por acreditar ter ouvido uivos de lobos na propriedade da família. Esta lembrança modificou o modo como ele vinha compreendendo os servos desde que chegou ao presídio - com muito rancor, por não ser aceito como um igual. Depois desta experiência e lembrança, como por um milagre, o rancor desapareceu.[82] Colocando de forma mais completa o significado da citada conversão, pode-se dizer que Dostoiévski começou com uma crença socialista ingênua de que poderia liderar os servos como um igual - crença que sustinha antes da condenação -, passou por uma posição de extrema repulsa em relação aos servos da prisão - causada pelo fato de os servos não o aceitarem como igual - e chegou, finalmente, a ter fé na moral dos servos (cristianismo ortodoxo), do povo russo, não mais, porém, como movimento político, mas como seres humanos capazes de infinito amor[83] e, como qualquer ser humano, do infinito mal.[84] Trata-se de amor cristão, o que mostra que a conversão também foi religiosa.[85] Carreira literária pós-exílio[editar | editar código-fonte] Regresso e contexto sociopolítico[editar | editar código-fonte] Alexandre II, czar da Rússia O reinício de Dostoiévski como escritor ocorre, de fato, antes mesmo de ser liberado do exército, isto é, logo após começar a receber seu ordenado como oficial (março de 1857) e de ser restituído de seus direitos civis - incluindo o direito de publicação (maio de 1857) -, quando então publicou seu único texto já completo na época, aquele escrito enquanto detido para investigação: O Pequeno Herói.[86] Entre 1857 e 1859 escreveu ainda dois contos cômicos: O Sonho do Tio e Aldeia de Stiepantchikov e Seus Habitantes, não obtendo nenhum deles sucesso.[87][88] No final de dezembro de 1859, regressou finalmente com sua família (a esposa e o enteado) a São Petersburgo.[89] O retorno não foi dos mais fáceis, tendo em vista que sua longa ausência não só o afastou dos antigos contatos de São Petersburgo, como também de toda a produção cultural russa, incluindo a literatura e o jornalismo, uma vez que o acesso aos livros era bem difícil durante o tempo em que cumpriu pena.[90] A situação política que encontrou em São Petersburgo não foi conflituosa: uma vez que os impulsos revolucionários dos literatos e de Dostoiévski tinham como principal finalidade a libertação dos servos da Rússia e na medida em que Alexandre II, czar que assumiu o trono em 1855,[91] estava determinado a libertá-los, tanto a Inteligência Russa como Dostoiévski estavam favoráveis ao czar.[92] No caso de Dostoiévski, também sabemos que sua conversão, a qual o impulsionou contrariamente ao socialismo, tornavam o czar e sua política ainda mais simpáticos (v. seção A conversão de Dostoiévski deste artigo). A abolição da servidão veio de direito em 16 de fevereiro de 1861,[93] entretanto a trégua não durou muito, uma vez que a forma da libertação não parecia favorecer muito os servos.[94] Na época do retorno de Dostoiévski a São Petersburgo, isto é, no início dos anos 1860, os escritores mais aclamados eram Tchernitchevski e Dobroliubov.[95] Ambos, assim como a maioria dos pensadores da época, acreditavam em uma ética utilitarista e tinham uma visão inocente da ciência e do racionalismo, assim como da possibilidade deles de desvendarem e responderem, por si mesmos, todas as questões humanas.[92] O reinício em São Petersburgo[editar | editar código-fonte] Mikhail Dostoiévski, irmão de Fiódor Dostoiévski, ca. 1864 A primeira obra publicada por Dostoiévski após seu retorno a São Petersburgo foi a autobiográfica e de enorme sucesso Recordações da Casa dos Mortos, baseada em suas experiências como prisioneiro,[6] [96] inaugurando este gênero literário russo.[97] A obra chegou a ser considerada por Liev Tolstói como o melhor livro de toda a literatura moderna.[98] Ela foi publicada no revista O Mundo Russo (Russkii Mir): seus dois primeiros capítulos foram publicados em 1860 e republicados no início de 1861, seguidos de três capítulos publicados semanalmente, quando a publicação foi então interrompida e nunca mais retomada.[99] Muito tempo depois, em 1922, foi encontrado e publicado um capítulo esquecido das Recordações da Casa dos Mortos, o qual tinha sido escrito para reverter uma censura governamental feita à obra, porém, uma vez que a obra acabou publicada sem este capítulo, ele ficou esquecido nos arquivos do governo.[100] Este capítulo esquecido continha, pela primeira vez nos escritos de Dostoiévski, aquilo que seria um dos temas de suas grandes obras: a liberdade humana como bem supremo, contraposta, por exemplo, a uma suposta supressão total das necessidades vitais do ser humano pela utopia socialista.[101] Em 8 de julho de 1860, Mikhail, irmão de Dostoiévski, foi autorizado a publicar a revista literária Tempo (Vremia), da qual seria editor juntamente com Dostoiévski, a qual foi muito bem sucedida.[102] A posição política defendida pelos editores de Tempo era a fusão mediadora de ocidentalismo e eslavofilia,[103] podendo por isso ser entendida como a principal referência de um novo movimento no cenário literário russo, o Pochvennichestvo, cujos principais membros, além do próprio Dostoiévski, eram Strakhov e Grigoriev.[104] O movimento potchvennitchestvo acreditava que a questão mais emergencial a ser tratada pelos escritores era a síntese cultural pacífica entre os "bem educados" e a massa russa, entre ocidentalismo e eslavofilia, e não uma revolução violenta guiada por intelectuais educados na cultura europeia, a qual teria como finalidade impor ao povo russo um ideal de vida iluminista.[105] Na revista Tempo, além de suas próprias ficções, Dostoiévski também publicava traduções, resenhas, comentários e alguns estudos,[106] incluindo, por exemplo, um estudo sobre Edgar Allan Poe.[107] Desde a autorização para a publicação de Tempo, enquanto Mikhail terminava os preparos burocráticos para publicação da revista, Dostoiévski escrevia seu primeiro romance pós- Sibéria, o romance em folhetim Humilhados e Ofendidos, o qual também foi agraciado com grande sucesso.[6] O romance começou a ser publicado desde o primeiro volume de Tempo, em janeiro de 1861, continuando por vários dos seus números.[102] Esse romance, segundo Joseph Frank, teria inaugurado um estilo melodramático que Dostoiévski usaria mais tarde em suas grandes obras.[108] Segundo Frank, portanto, nesta época Dostoiévski fundou o estilo[108] e o tema[101] de suas grandes obras: a dramatização da contraposição entre liberdade e racionalidade. Neste período, Dostoiévski também começou a frequentar o círculo literário que se encontrava na casa de Miliukov, ex-membro do círculo Palm-Durov.[109] Em 7 de junho de 1862, partiu Dostoiévski para sua primeira viagem pela Europa (Alemanha, Bélgica, França e Inglaterra).[110] Nesta viagem, ele jogou roleta pela primeira vez, adquirindo um vício que o acompanharia por quase toda a vida, apesar de praticado apenas durante viagens.[111] Também foi nesta viagem que Dostoiévski visitou o Palácio de Cristal, símbolo dos avanços tecnológicos europeus, o qual seria usado pelo autor em alguns de seus textos posteriores.[112] Já no final de 1862, após seu retorno da Europa, Dostoiévski publicou Uma História Desagradável e depois, como a última importante obra publicada na revista Tempo, publicou Notas de Inverno sobre Impressões de Verão,[113] que retratava e comentava sua viagem à Europa do ano anterior.[114] Em maio de 1863, a autorização de funcionamento da revista foi cancelada pelo governo, sob falsa acusação de apoio à revolta polonesa.[115] Então, em abril de 1864, Dostoiévski e seu irmão Mikhail iniciaram a edição de uma segunda revista literária, a Época (Epokha), seguindo a mesma orientação política e editorial que sua antecessora.[116] Na Época, Dostoiévski publicaria suas Notas do Subterrâneo, dando início às suas grandes obras.[117]