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CONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS EM MATÉRIA DE DIREITOS

FUNDAMENTAIS: O CONTROLE POLÍTICO-SOCIAL E O CONTROLE JURÍDICO NO ESPAÇO

DEMOCRÁTICO

I. Introdução. II. Direitos fundamentais, políticas públicas e controle. III. Examinando algumas
críticas ao controle jurídico e jurisdicional das políticas públicas em matéria de direitos
fundamentais. III.1. Examinando a crítica da teoria da constituição. III.2. Examinando a crítica
filosófica. III.3. Examinando a crítica operacional. IV. Objetos e modalidades de controle. IV.1.
Controle da fixação de metas e prioridades e do resultado final esperado das políticas públicas;
IV.2. Controle da quantidade de recursos a ser investida; IV.3. Controle do atingimento ou não
das metas fixadas pelo Poder Público; IV.4. Controle da eficiência mínima na aplicação dos
recursos públicos; IV.5 Objetos controláveis e as críticas examinadas; IV.6. Modalidades de
controle: individual, coletivo e abstrato; V. Conclusões.

I. INTRODUÇÃO

Imagine-se um Estado hipotético Z. É ano de eleição e o cidadão


W está em uma biblioteca pública estudando. Ele reservou uma parte do tempo, no
entanto, para fazer algumas pesquisas na internet, tendo em conta as decisões eleitorais
que precisará tomar.

No último pleito, W votou na oposição e ficou vencido. Não se


podia dizer, porém, que o Governo tivesse sido ruim: as metas divulgadas no início do
mandato foram atingidas com alguma competência. O que mais o incomodava, na
verdade, era a campanha da oposição, embora ela contasse com seu voto histórico. Seu
discurso continha apenas promessas genéricas e grandiosas – sem qualquer indicação
de como, concretamente, elas poderiam ser alcançadas – e ataques pessoais igualmente
genéricos aos membros do Governo. Por isso W decidiu consultar os dados por si
próprio. Ele gostaria de algumas respostas: qual foi afinal a arrecadação do Estado Z
em cada um dos últimos anos? Em que o Governo dispendeu esse dinheiro? Qual o
resultado concretamente produzido por esses investimentos? W estimava que em cerca
de 2 (duas) a 3 (três) horas conseguiria obter essas informações: W não gostava de ser
manipulado. Uma última informação sobre o Estado Z: ele não é o Brasil.

1
Este pequeno estudo tem dois objetivos principais. Em primeiro
lugar, examinar algumas críticas formuladas à possibilidade de controle jurídico das
políticas públicas. E, em segundo, discutir a viabilidade de alguns mecanismos de
controle jurídico das políticas públicas direcionadas à promoção dos direitos
fundamentais que, em vez de esvaziarem ou substituirem o controle político-social na
matéria, sejam capazes de fomentá-lo1. Dois esclarecimentos iniciais parecem
importantes.

Em primeiro lugar, convém estabelecer uma convenção


terminológica. A expressão políticas públicas pode designar, de forma geral, a
“coordenação dos meios à disposição do Estado, harmonizando as atividades estatais
e privadas para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente
determinados”2. Nesse sentido, trata-se de conceito bastante abrangente que envolve
não apenas a prestação de serviços ou o desenvolvimento de atividades executivas
diretamente pelo Estado, como também sua atuação normativa, reguladora e de
fomento, nas mais diversas áreas. Com efeito, a combinação de um conjunto normativo
adequado, uma regulação eficiente, uma política de fomento bem estruturada e ações
concretas do Poder Público poderá conduzir os esforços públicos e as iniciativas
privadas para o atingimento dos fins considerados valiosos pela Constituição e pela
sociedade.

Do ponto de vista do estudo desses fenômenos, porém, é certo


que cada um deles descortina um mundo próprio de particularidades, dificultando um
exame teórico único e aprofundado de todas as possíveis atividades que integram as
chamadas políticas públicas. Assim, tendo em conta essa limitação, parece mais
produtivo estudar cada uma delas de forma isolada e razoavelmente autônoma, ainda
que sem desconsideração do todo do qual fazem parte. Exatamente nessa linha o
presente estudo pretende examinar apenas a última das atividades descritas acima, isto

1
O estudo não tem a pretensão de ser completo ou exaustivo seja no que diz respeito aos
mecanismos de controle possíveis – certamente há outros além dos identificados no texto –, seja
no exame dos mecanismos de controle efetivamente abordados.
2
Maria Paula Dallari Bucci, As políticas públicas e o direito administrativo, Revista Trimestral de
Direito Público 13:135/6, 1996.

2
é: as ações concretas, materiais, desenvolvidas ou levadas a cabo pelo próprio Poder
Público. Feita a nota terminológica e conceitual, cabe fazer uma segunda observação,
que, de certa forma, justifica o corte metodológico que se acaba de propor. As
diferenças entre o Estado Z referido acima e o Brasil ficarão mais evidentes.

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Planejamento


Tributário (IBPT)3, estima-se que a arrecadação tributária do Estado brasileiro,
incluindo União, Estados e Municípios, correspondeu, em 2005, a aproximadamente
R$ 733 bilhões. Em 2004 foram R$ 650,15 bilhões, e, em 2003, R$ 553,18 bilhões.
Tais valores resultam da opção política que vigora hoje no Brasil, por força da qual se
visualiza no Estado um agente capaz de redistribuir riqueza, impulsionar o
desenvolvimento e produzir melhores condições de vida para a população. Assim,
sobretudo por meio da tributação, retiram-se recursos das empresas e pessoas físicas
para concentrá-los no Estado, a fim de que este os administre tendo em vista os fins
públicos referidos.

Independentemente do juízo que cada cidadão possa e deva fazer


sobre essa opção política, não há dúvida de que o dispêndio de recursos pelo Estado
brasileiro é uma atividade de cada vez maior relevância para o país, tanto pelo volume
de recursos que desloca, como pela importância dos fins que busca realizar. Justifica-
se, portanto, que essa atividade, dentre todas as outras desempenhadas pelo Estado,
receba atenção específica. Há mais que isso, porém.

A despeito do que se acaba de registrar, e de certa forma


estranhamente, o fato é que há muito mais elaboração e debate jurídicos em torno, e.g.,
dos limites e condicionamentos jurídicos incidentes sobre as outras atividades estatais
mencionadas – legislativas4, regulatórias5 e de fomento6 –, do que sobre o que se

3
Fonte: http://www.ibpt.com.br/estudos/estudos.lst.php (acesso em 28.05.2006).
4
V., por todos, Alberto Xavier, Legalidade e tributação, Revista de Direito Público 47-48:329; Luís
Roberto Barroso, Apontamentos sobre o princípio da legalidade (delegação legislativas, poder
regulamentar e repartição constitucional das competências legislativas). In: Temas de Direito
Constitucional, Tomo I, 2001, p. 165 e ss.; e Gustavo Binenbojm, Uma teoria do direito
administrativo – Direitos fundamentais, democracia e constitucionalização, 2006.
5
V., também por todos, Carlos Ari Sundfeld (Coord.), Direito administrativo econômico, 2000,

3
descreveu aqui como políticas públicas. O interesse não é substancialmente maior
mesmo diante de políticas públicas vinculadas à realização ou à promoção dos direitos
fundamentais7. E é possível afirmar, sem medo da leviandade, que essa relativa
indiferença jurídica não decorre da ampla satisfação com a atuação estatal nesse
particular.

Com efeito, os dados existentes sobre o acesso da população a


bens que, na conformação atual do Estado brasileiro, devem ser prestados pelo Poder
Público – como educação de qualidade mínima e prestações de saúde, por exemplo –
são ilustrativos. Segundo o IBGE, 26% da população de 15 anos ou mais possui apenas
4 (quatro) anos de estudo completo8. De acordo com a Associação Brasileira de
Tecnologia Educacional, 75% das pessoas na faixa etária dos 15 aos 64 anos não
conseguem ler e escrever plenamente. O número inclui os analfabetos absolutos e os
considerados analfabetos funcionais, isto é, aqueles que identificam letras e palavras,
mas não conseguem utilizá-las no cotidiano e têm dificuldades para compreender e
interpretar textos. Segundo a pesquisa, apenas um em cada quatro brasileiros consegue
ler, escrever e utilizar essas habilidades para continuar aprendendo9.

Quanto à saúde, a precariedade do sistema público na maior


parte do país é bastante conhecida. Uma recente decisão, proferida pela 10ª Vara de

Alexandre Santos de Aragão, Agências reguladoras e a Evolução do Direito Administrativo


Econômico, 2002; e Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Direito regulatório, 2003.
6
V. Eros Roberto Grau, A ordem econômica na Constituição de 1988. Interpretação e crítica,
1990.
7
O tema vem sendo discutido pontualmente por alguns autores, mas ainda está longe de integrar
a “pauta” principal das discussões jurídicas brasileiras. V., sobre o tema, dentre outros, Celso
Antônio Bandeira de Mello, Controle judicial dos atos administrativos, Revista de Direito Público
65:27-38, 1983; Maria Paula Dallari Bucci, As políticas públicas e o direito administrativo, Revista
Trimestral de Direito Público 13:134-144, 1996; Fábio Konder Comparato, Ensaio sobre o juízo de
constitucionalidade de políticas públicas, Revista dos Tribunais 737:11-22, 1997; Andreas Krell,
Controle judicial dos serviços públicos básicos na base dos direitos fundamentais sociais. In: Ingo
Wolfgang Sarlet (Org.), A Constituição concretizada: construindo pontes entre o público e o
privado, p. 25-60, 2000; Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Políticas públicas. A responsabilidade
do administrador e do ministério público, 2000; Américo Bedê Freire Júnior, O controle judicial de
políticas públicas, 2005; e Eduardo Appio, Controle judicial das políticas públicas no Brasil, 2006.
8
Fonte: www.ibge.gov.br/ibgeteen/pesquisas/educacao.html (acesso em 20.05.2006).
9
Os dados estão na quinta edição do Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional (Inaf),
pesquisa lançada pelo Instituto Paulo Montenegro e pela Ação Educativa. Fonte: www.abt-
br.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=287&Itemid=2 (acesso em 20.05.2006).

4
Fazenda Pública do Rio de Janeiro, ilustra o quadro. Atendendo pedido do Ministério
Público, e diante da precariedade de hospital público municipal, determinou-se que as
pessoas que não pudessem ser atendidas pelo hospital deveriam ser encaminhadas a
instituições privadas de saúde, devidamente cadastradas, para que ali lhes fosse
fornecido o atendimento médico-hospitalar. A decisão condenou ainda o Município a
pagar às instituições privadas pela prestação de tais serviços à população10. O IBGE
estima que 40% da população brasileira encontra-se em situação de “insegurança
alimentar”, o que significa que não têm garantia de acesso à comida em quantidade,
qualidade e regularidade suficiente11.

Desperdício e ineficiência, precariedade de serviços


indispensáveis à promoção de direitos fundamentais básicos, e sua convivência com
vultosos gastos em rubricas como publicidade governamental e comunicação social não
são propriamente fenômenos pontuais e isolados na Administração Pública brasileira12.
A questão ganha ainda maior relevância tendo em conta a grandiosidade dos números
registrados acima em matéria de arrecadação tributária. Como afinal o Estado gasta tais
recursos, e que limites e condicionamentos deve observar ao fazê-lo, são perguntas que
exigem a atenção não apenas do cidadão, mas também do jurista.

II. DIREITOS FUNDAMENTAIS, POLÍTICAS PÚBLICAS E CONTROLE

O constitucionalismo contemporâneo, e o brasileiro em


particular, já consolidaram alguns axiomas teóricos que, gradativamente, vão se
incorporando à prática jurídica. Três deles podem ser enunciados da forma que se

10
Processo nº 2004.001.035455-0, 10ª Vara de Fazenda Pública da Comarca da Capital do Rio de
Janeiro, Juiz Ricardo Couto de Castro, DJ 15.03.05.
11
Fonte: www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=600&id_pagina=1
(acesso em 17.06.2006).
12
Em interessante decisão, o desembargador Francisco Wildo do TRF/5ª Região, concedeu
liminar, a pedido do Ministério Público Federal na Paraíba, e determinou que o governo do Estado
deveria empregar 17,6 % da verba destinada à publicidade para a regularização do fornecimento
de medicamentos gratuitos e indispensáveis ao tratamento de pacientes portadores de mal de
Parkinson (Processo n. 2004.82.00003315-0, em curso na 3ª Vara da Justiça Federal na Paraíba,
e agravo de instrumento nº 67336-PB). A decisão foi reconsiderada pelo próprio Desembargador a
pedido do Estado pouco depois.

5
segue.

A) As disposições constitucionais, tenham elas a natureza de


regra ou de princípio, são dotadas de normatividade, isto é: são normas jurídicas. Como
tais, pretendem produzir efeitos no mundo dos fatos e desfrutam da imperatividade
própria do Direito. Mais que isso, as normas constitucionais gozam de superioridade
hierárquica no âmbito do sistema jurídico.

B) Os direitos fundamentais têm um status diferenciado no


âmbito do sistema constitucional e, a fortiori, do sistema jurídico como um todo13.
Fala-se da centralidade dos direitos fundamentais, como conseqüência da centralidade
do homem e da sua dignidade. Isso significa, de forma simples, que, em última análise,
tanto o Estado como o Direito existem para proteger e promover os direitos
fundamentais, de modo que tais estruturas devem ser compreendidas e interpretadas
tendo em conta essa diretriz.

C) Os poderes públicos estão submetidos à Constituição14, como


uma decorrência direta da noção de Estado de Direito, por força da qual o exercício do
poder político encontra limites em normas jurídicas. À Constituição, é certo, não cabe
invadir os espaços próprios da deliberação majoritária, a ser levada a cabo pelas
maiorias democraticamente eleitas em cada momento histórico. Uma das funções de
um texto constitucional, porém, é justamente estabelecer vinculações mínimas aos

13
Essa afirmação tem dois fundamentos interligados mas distintos. Há aqui um fundamento
filosófico, que dá conta da centralidade axiológica do homem e de sua dignidade, e um
fundamento jurídico. Este, refletindo a centralidade filosófica do homem, organiza o sistema
jurídico em torno e em função dos direitos fundamentais e prevê ainda mecanismos que reforçam
esse status diferenciado, de que são exemplos a técnica das cláusulas pétreas (CF, art. 60, § 4º,
IV) e a existência de remédio específico de proteção daquilo que a Carta de 1988 chama de
“preceitos fundamentais” (CF, art. 102, § 1º), categoria na qual se encontram, por certo, os direitos
fundamentais.
14
Celso Antônio Bandeira de Mello, Controle judicial dos atos administrativos, Revista de Direito
Público 65:31, 1983: “Os poderes que a Administração desfruta justificam-se única e
exclusivamente como meios necessários ao cumprimento de certas finalidades legalmente
estabelecidas. Portanto, são deveres-poderes, antes que poderes-deveres. A idéia de dever é
que é predominante, enquanto a idéia de poder vem marcada por um destino ancilar, já que os
poderes são conferidos como simples instrumentos necessários ao cumprimento dos deveres”.
Também os agentes privados estão submetidos à Constituição, mas esse tema não será objeto de
exame neste estudo.

6
agentes políticos, sobretudo no que diz respeito à promoção dos direitos fundamentais.

As três assertivas que se acaba de enunciar são amplamente


consensuais – ao menos em tese – e podem ser assumidas como ponto de partida para
outros desenvolvimentos, como o que se pretende passar a discutir. Isso porque, o
controle das políticas públicas dirigidas aos direitos fundamentais é uma decorrência
direta e lógica desses três elementos teóricos. Aprofunde-se a questão.

Como se sabe, a promoção e a proteção dos direitos


fundamentais exigem omissões e ações estatais. Na realidade, cada direito pode ensejar
obrigações negativas ou de omissão – como, e.g., o dever de respeito – e positivas ou
de ação, como os deveres de proteger o direito ofendido15, de garantí-lo e de promovê-
lo16. O Estado respeitará a liberdade de expressão, e.g., na medida em que não procure
cerceá-la ou submetê-la de alguma forma. A omissão, nesse caso, será fundamental.
Essa mesma liberdade, no entanto, poderá ser violada por outros agentes e sua garantia,
nesse caso, exigirá um conjunto de estruturas estatais – fique-se apenas com a menção
ao Judiciário – cuja existência depende de ações públicas. A fruição de direitos como o
acesso a educação formal, a prestações de saúde ou a condições habitacionais envolve
diretamente sua promoção, isto é: ações. O ponto é demasiado conhecido e não há
necessidade de discorrer sobre ele17, salvo por um aspecto fundamental: as ações
estatais capazes de realizar os direitos fundamentais pressupõem decisões acerca do
dispêndio de recursos públicos.

As atividades legislativa e jurisdicional envolvem, por natural, a


aplicação da Constituição e o cumprimento de suas normas. O legislador cuida de
disciplinar os temas mais variados de acordo com os princípios constitucionais. Ao

15
Sobre os deveres de proteção v., por todos, Daniel Sarmento, Direitos fundamentais e relações
privadas, 2004, p. 160 e ss..
16
Essas quatro ações – respeitar, garantir, proteger e promover –, embora possam assumir
significados diversos em função do direito examinado, são freqüentemente utilizadas sobretudo
por tratados internacionais de direitos humanos.
17
V., sobre o assunto, Cass R. Sunstein, The cost of rights, 1999; e Flávio Galdino, Introdução à
teoria dos custos dos direitos. Direitos não nascem em árvores, 2005.

7
magistrado, por seu turno, cabe aplicar a Constituição, direta ou indiretamente, já que a
incidência de qualquer norma jurídica será precedida do exame de sua própria
constitucionalidade e deve se dar da maneira que melhor realize os fins constitucionais.
Ocorre que as decisões judiciais produzem, como regra, efeitos apenas pontuais, entre
as partes18, e a legislação depende de atos de execução para tornar-se realidade.

Nesse contexto, compete à Administração Pública efetivar os


comandos gerais contidos na ordem jurídica e, em particular, garantir e promover os
direitos fundamentais em caráter geral19. Para isso será necessário implementar ações e
programas dos mais diferentes tipos e garantir a prestação de determinados serviços.
Em suma: será preciso implementar o que se descreveu acima como políticas
públicas20. É fácil perceber que apenas por meio das políticas públicas o Estado poderá,
de forma sistemática e abrangente, realizar os fins previstos na Constituição (e muitas
vezes detalhados pelo legislador), sobretudo no que diz respeito aos direitos
fundamentais cuja fruição direta dependa de ações21.

Estabelecida essa premissa – isto é: políticas públicas são


indispensáveis para a garantia e a promoção de direitos fundamentais22 –, o fato é que
toda e qualquer ação estatal envolve gasto de dinheiro público e os recursos públicos
são limitados. Essas são evidências fáticas e não teses jurídicas. A rigor, a simples

18
As exceções a essa regra, ainda que em intensidades diversas, se verificam no âmbito da ação
civil pública e do controle abstrato de constitucionalidade.
19
V. Miguel Seabra Fagundes, O Controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário
(atualizada por Gustavo Binenbojm), 2006, p. 3: “A função legislativa liga-se aos fenômenos de
formação do Direito, ao passo que as outras duas se prendem à fase de sua realização. Legislar
(editar o direito positivo), administrar (aplicar a lei de ofício) e julgar (aplicar a lei
contenciosamente) são três fases da atividade estatal, que se completam e que a esgotam em
extensão”.
20
Retome-se a nota terminológica inicial. Além de ações diretas levadas a cabo pelo Poder
Público, a garantia e a promoção dos direitos fundamentais freqüentemente demandarão também
a edição de normas, a regulação e o fomento.
21
Victor Abramovich y Christian Courtis, Apuntes sobre la Exigibilidad Judicial de los Derechos
Sociales. Ingo Wolfgang Sarlet (Org.), Direitos fundamentais sociais: estudos de direito
constitucional, internacional e comparado, 2003, p. 142 e ss..
22
Como registrado incidentalmente no texto, a proteção de quaisquer direitos fundamentais que
tenham sido violados depende também de políticas públicas, que envolvem a existência e a
estruturação de órgãos e entidades como Poder Judiciário, Defensoria Pública, Polícia, etc.. Esse
aspecto da questão não será examinado neste estudo.

8
existência dos órgãos estatais – do Executivo, do Legislativo e do Judiciário – envolve
dispêndio permanente de recursos públicos, ao menos com a manutenção das
instalações físicas e a remuneração dos titulares dos poderes e dos servidores
públicos23, afora outros custos. As políticas públicas, igualmente, envolvem gastos. E
como não há recursos ilimitados, será preciso priorizar e escolher em que o dinheiro
público disponível será investido. Além da definição genérica de em que gastar, é
preciso ainda decidir como gastar, tendo em conta os objetivos específicos que se
deseje alcançar. Essas escolhas, portanto, recebem a influência direta das opções
constitucionais acerca dos fins que devem ser perseguidos em caráter prioritário. Dito
de outra forma, as escolhas em matéria de gastos públicos não constituem um tema
integralmente reservado à deliberação política; ao contrário, o ponto recebe importante
incidência de normas jurídicas de estatura constitucional.

Visualize-se novamente a relação existente entre os vários


elementos que se acaba de expor: (i) a Constituição estabelece como um de seus fins
essenciais a garantia e a promoção dos direitos fundamentais; (ii) as políticas públicas
constituem o meio pelo qual os fins constitucionais podem ser realizados de forma
sistemática e abrangente; (iii) as políticas públicas envolvem gasto de dinheiro público;
(iv) os recursos públicos são limitados e é preciso fazer escolhas; logo, em certa
medida, (v) a Constituição vincula as escolhas em matéria de políticas públicas e o
gasto dos recursos públicos.

Dito de outro modo, a definição do conjunto de gastos do Estado


é exatamente o momento no qual a realização dos fins constitucionais poderá e deverá
ocorrer. Dependendo das escolhas formuladas em concreto pelo Poder Público, a cada
ano, esses fins poderão ser mais ou menos atingidos, de forma mais ou menos eficiente
e poderão mesmo não chegar sequer a avançar minimamente. Ou seja: a relação lógica
entre os axiomas da moderna teoria constitucional – enunciados acima – e a noção de
controle jurídico e jurisdicional das políticas públicas parece bastante simples. Basta
notar que a impossibilidade de controle em tais hipóteses acabaria por esvaziar a

23
Flávio Galdino, O custo dos direitos. In: Ricardo Lobo Torres (org.). Legitimação dos direitos
humanos, 2002, p. 139-222.

9
normatividade de boa parte dos comandos constitucionais relacionados com os direitos
fundamentais, cuja garantia e promoção dependem, em larga escala, das políticas
públicas.

Nada obstante a aparente simplicidade do que se acaba de


registrar, a questão do gasto de recursos públicos – que envolve, no mínimo, a
definição do quanto gastar, com que finalidade gastar, em que gastar e como gastar –
pode ser substancialmente mais complexa. A Constituição em geral não aponta de
forma específica que políticas públicas devem ser implementadas em cada caso24.
Assim, a questão acaba sendo remetida para a interpretação constitucional de forma
ampla, isto é: aquela levada a cabo pelos agentes públicos em geral e pela sociedade
como um todo, tendo em conta sua compreensão política, ideológica ou filosófica do
que significa o texto constitucional25. Nesse contexto, diferentes e contundentes críticas
são dirigidas à idéia de controle jurídico – e, portanto, jurisdicional – das políticas
públicas, que merecem um exame específico. Esse é o objeto do tópico seguinte.

III. EXAMINANDO ALGUMAS CRÍTICAS AO CONTROLE JURÍDICO E JURISDICIONAL


DAS POLÍTICAS PÚBLICAS EM MATÉRIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Não seria viável fazer aqui um inventário completo das críticas


já formuladas sobre a possibilidade de controle jurídico e jurisdicional das políticas
públicas. É possível, no entanto, sistematizar algumas delas em três grupos, que serão
examinados a seguir26. O primeiro grupo congrega argumentos em geral associados ao
debate sobre a teoria da Constituição, seu papel e alcance. O segundo, procura veicular
óbices de natureza predominantemente filosófica, ao passo que o terceiro grupo reúne

24
Há hipóteses em que a Constituição define as políticas públicas a implementar, como é o caso,
e.g., da educação pública fundamental e média. Ainda assim, algumas questões permanecem em
aberto para as instâncias políticas (como o em que gastar exatamente e como fazê-lo). A
discussão sobre o controle continua pertinente aqui.
25
V. Peter Häberle, Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição, 1997.
26
Lembre-se que o presente estudo ocupa-se apenas das políticas públicas relacionadas com a
garantia e a promoção dos direitos fundamentais, de modo que a descrição das críticas e o exame
que se fará delas na seqüência levam em conta esse pressuposto.

10
críticas que podem ser descritas como operacionais.

Todas essas críticas, como se verá, estão longe de serem


inconsistentes e não podem ser afastadas apenas bradando-se um discurso emocionado
e retórico sobre a importância dos direitos fundamentais e da dignidade humana. É
preciso examiná-las com seriedade e honestidade intelectuais.

III.1. Examinando a crítica da teoria da Constituição

O primeiro conjunto de críticas identificado aqui decorre de


desenvolvimentos da teoria da Constituição. Sua idéia central pode ser descrita nos
seguintes termos: por que o Direito e o Judiciário, a pretexto de interpretação do texto
constitucional, deveriam, ou mesmo poderiam, imiscuir-se com um tema como este –
políticas públicas –, tipicamente reservado à deliberação política majoritária?

Com efeito, mesmo a dogmática dos princípios constitucionais


reconhece que a estrutura dos princípios é composta de duas partes, que se
convencionou denominar de núcleo e área não nuclear. E se é verdade que o núcleo do
princípio funciona como uma regra, impondo efeitos determinados, também é verdade
que em sua área não nuclear27 os princípios indicam um sentido geral e demarcam um
espaço dentro do qual as maiorias políticas poderão legitimamente fazer suas escolhas.
Ademais, a definição e a execução das políticas públicas já estão submetidas ao
controle político-social dos grupos de oposição e da população em geral, que manifesta
sua opinião sobre o assunto ao menos nas eleições. A invasão pelo Direito, e pela
Constituição em particular, do espaço próprio do pluralismo político produziria –
alega-se – um grave desequilíbrio em prejuízo da democracia.

Não há dúvida de que definir quanto se deve gastar de recursos


públicos, com que finalidade, em que e como são decisões próprias da esfera de

27
Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais – O princípio da
dignidade da pessoa humana, 2002, p. 103 e ss..

11
deliberação democrática, e não do magistrado. A própria Constituição o reconhece ao
dispor sobre as competências do Executivo e do Legislativo no que diz respeito à
elaboração do orçamento, a sua execução e controle. Assim, é certo, a invasão dessa
seara pelo Direito poderia produzir um desequilíbrio equivocado, que sufocaria o
funcionamento regular e o desenvolvimento da democracia. Nada obstante, há três
outras assertivas, que também são certas, e que devem ser consideradas nesse mesmo
contexto.

Em primeiro lugar, tornou-se corrente a afirmação de que o gozo


minimamente adequado dos direitos fundamentais, ou de pelo menos alguns deles, é
indispensável para o funcionamento regular da democracia e, especificamente, para a
existência do próprio controle social das políticas públicas. Isto é: ainda que não se
quisesse reconhecer um valor autônomo a tais direitos e à sua proteção, ao menos será
preciso assumir dois axiomas para que as pessoas possam participar do procedimento
de deliberação28: reconhecer que todos os indivíduos são livres e iguais29. Sem o
respeito a um conjunto básico de direitos fundamentais, os indivíduos simplesmente
não têm condições de exercer sua liberdade, de participar conscientemente do processo
político democrático e do diálogo no espaço público30. Em outras palavras: o sistema
de diálogo democrático não tem como funcionar adequadadamente se os indivíduos

28
RAWLS, John. Uma teoria da justiça, 1993, p. 221. V. também pp. 81 e 222. Mais
especificamente, vale conferir os seguintes trechos de seu Liberalismo político, 1992, pp. 32 e 33:
“En especial, el primer principio, que abarca los derechos y libertades iguales para todos, bien
puede ir precedido de un principio que anteceda a su formulación, el cual exija que las
necesidades básicas de los ciudadanos sean satisfechas, cuando menos en la medida en que su
satisfacción es necesaria para que los ciudadanos entiendan y puedan ejercer fructíferamente
esos derechos y esas libertades. Ciertamente, tal principio precedente debe adoptarse al aplicar el
primer principio.”.
29
AARNIO, Aulis. Reason and Authority, 1997, p. 217 e ss.; e ALEXY, Robert. Derechos,
razonamiento jurídico y discurso racional, Revista Isonomia 1:48 e 49, 1994.
30
HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia entre facticidade e validade, vol. I, 2003, p. 154 e ss.;
MAIA, Antônio Cavalcanti. Direitos humanos e a teoria do discurso do direito e da democracia”. In:
TORRES, Ricardo Lobo e MELLO, Celso Albuquerque (organizadores). Arquivos de direitos
humanos, vol. II, 2000, p. 58 e ss.; NASCIMENTO, Rogério Soares do. “A Ética do discurso como
justificação dos direitos fundamentais na obra de Jürgen Habermas”. In: TORRES, Ricardo Lobo
(organizador), Legitimação dos direitos humanos, pp. 451 a 498, 2002; BINENBOJM, Gustavo. A
nova jurisdição constitucional brasileira, 2001, p. 47 e ss.; e SOUZA NETO, Cláudio Pereira de.
“Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do
princípio democrático”. In: TORRES, Ricardo Lobo e MELLO, Celso de Albuquerque
(organizadores). Arquivos de direitos humanos, vol. IV, 2002.

12
não dispõem de condições básicas de existência digna 31.

Essa constatação teórica ganha especial significado em países


subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como o Brasil, nos quais uma quantidade
significativa da população habilitada formalmente a participar do processo democrático
vive em situação de pobreza extrema. Alguns dados ajudam a visualizar o quadro.
Segundo informação disponível no site do Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome – MDS, em março de 2006, mais de 8,6 milhões de famílias,
receberam o benefício do Bolsa Família32, que se destina a famílias que tenham renda
per capita mensal de até R$ 100,00. A informação oficial dá conta, porém, que o
programa atinge apenas cerca de 60% a 85% das famílias pobres (variando em função
do Estado examinado)33. É possível imaginar então, de acordo com a avaliação oficial,
que haja ao menos 11 milhões de famílias cujos membros vivem com até R$ 100,00
mensais. Imagine-se que em cada uma dessas famílias haja 3 (três) indivíduos
habilitados para participar do processo democrático: 33 milhões de pessoas vivendo em
situação de pobreza extrema. Note-se que não foram incluídas na estatística as famílias
cuja renda per capita ultrapassa R$ 100,00, mas que não atinge, e.g., R$ 350,00.

O ponto não é novo, nem especialmente complexo. Em


condições de pobreza extrema ou miserabilidade, e na ausência de níveis básicos de
educação e informação, a autonomia do indivíduo para avaliar, refletir e participar
conscientemente do processo democrático estará amplamente prejudicada. Nesse
ambiente, o controle social de que falavam os críticos do controle jurídico apresenta
graves dificuldades de funcionamento. Há mais, porém.

31
Sobre o tema das relações entre democracia e direitos fundamentais, v. Landelino Lavilla.
“Constitucionalidad y legalidad. Jurisdiccion constitucional y poder legislativo”. In: Division de
poderes e interpretacion – Hacia una teoria de la praxia constitucional, PINA, Antonio Lopes
(organizador), 1997, pp. 58 a 72; QUADRA, Tomás de la; PERGOLA, Antonio La; GIL, Antonio
Hernández; RODRÍGUEZ-ZAPATA, Jorge Gustavo; ZAGREBELSKY; Francisco P. Bonifacio,
Erhardo Denninger e Conrado Hesse, Metodos y criterios de interpretacion de la constitucion. In:
Antonio Lopes Pina (organizador). Division de poderes e interpretacion – Hacia una teoria de la
praxia constitucional, 1997, p. 134; e Francisco Fernández Segado, La teoría jurídica de los
derechos fundamentales en la Constitución Española de 1978 y en su interpretación por el
Tribunal Constitucional, Revista de Informação Legislativa 121:77, 1994,: “(...) los derechos son,
simultáneamente, la conditio sine qua non del Estado constitucional democrático.”
32
Fonte: www.mds.gov.br/ascom/bolsafamilia/bf_poruf_part.pdf (acesso 2005.2006).

13
Na ausência de controle social, a gestão das políticas públicas no
ambiente das deliberações majoritárias tende a ser marcada pela corrupção, pela
ineficiência e pelo clientelismo34, este último em suas variadas manifestações: seja nas
relações entre Executivo e parlamentares – freqüentemente norteada pela troca de
favores35 –, seja nas relações entre os agentes públicos e a população. Nesse contexto,
manipulado em suas necessidades básicas36, o povo acaba por perder a autonomia
crítica em face de seus representantes. É fácil perceber que corrupção, ineficiência e
clientelismo minam a capacidade das políticas públicas de atingirem sua finalidade:
garantir e promover os direitos fundamentais. Os recursos públicos são gastos, mas o
status geral dos direitos fundamentais na sociedade sofre pouca melhora – ou apenas
melhoras transitórias – e, a fortiori¸ as condições da população de participar
adequadamente do processo democrático permanecem inalteradas. O ciclo então se
renova: sem controle social, persistem a corrupção, a ineficiência e o clientelismo.
Mais recursos públicos são desperdiçados e muito pouco se produz em favor da
promoção dos direitos fundamentais. Esse, portanto, é o primeiro registro importante a
ser feito sobre o tema aqui em discussão.

Em segundo lugar, a discussão sobre onde estabelecer a


fronteira entre o direito constitucional e a política, apesar de poder e dever ser travada
também no plano teórico, depende substancialmente das opções constitucionais
concretas que cada país haja formulado. A deliberação majoritária que deu origem, no
Brasil, à Carta de 1988, pode ter decidido conferir um espaço mais amplo ao direito, e
impor maiores condicionamentos jurídicos aos poderes públicos, do que, e.g., a
Constituição da Noruega ou do Chile.

33
Fonte: www.mds.gov.br/ascom/bolsafamilia/bf_atendimento_uf.pdf (acesso 20.05.2006).
34
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001, p. 740: “Clientelismo: prática eleitoreira de
certos políticos que consiste em privilegiar uma clientela (“conjunto de indivíduos dependentes”)
em troca de votos; troca de favores entre quem detém o poder e quem vota”.
35
O contingenciamento prévio, por parte do Poder Executivo, e posterior liberação de verbas de
interesse dos parlamentares, tendo em conta seu nicho de atuação política, é um exemplo dessa
espécie de relacionamento.
36
Em geral por meio de políticas de assistencialismo populista que geram uma dependência
permanente entre o eleitor e o agente público.

14
E embora as decisões veiculadas nas Constituições possam ser
legitimamente criticadas e interpretadas de forma mais restrita ou abrangente em
função da arcabouço teórico empregado pelo intérprete, elas certamente não podem ser
ignoradas. Seria no mínimo irônico que o teórico do direito, a pretexto de defender o
espaço democrático, ignorasse a deliberação majoritária concretizada na Constituição,
para substituí-la por sua própria convicção sobre a matéria.

Em terceiro lugar, e esse é o terceiro registro sobre este ponto, é


importante não transformar o debate em tela em uma falsa escolha entre dois extremos.
Não existem apenas duas opções radicais: a colonização total da política pelo direito
ou, no caso do objeto deste estudo, a absoluta ausência de controle jurídico em matéria
de políticas públicas. Existem possibilidades intermediárias de controle aguardando
desenvolvimento: o tema será retomado adiante.

Registradas essas três questões, é possível esboçar algumas


conclusões a respeito dessa primeira crítica. A primeira delas é a de que, no contexto de
países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento como o Brasil, seu papel é limitado.
Com efeito, em muitas circunstâncias, o debate em torno do controle de políticas
públicas está relacionado de forma direta com a garantia e promoção daqueles direitos
elementares reconhecidos como necessários ao próprio funcionamento da deliberação
democrática. Ou seja: a discussão brasileira se desenvolve, no mais das vezes, em um
momento prévio, de construção das condições indispensáveis para a existência afinal
de um debate público e democrático, de modo que a crítica referida faz aqui pouco
sentido. Junte-se a isso, no caso brasileiro, que a Carta de 1988 decidiu juridicizar
variados temas nesse ambiente; a inconveniência que algum teórico visualize nessa
opção não altera o fato da sua existência.

Em todo o caso – e essa é uma segunda conclusão importante –,


deve-se reconhecer um papel específico e relevante à crítica que se acaba de examinar:
o de conter o que se poderia denominar de “messianismo” jurídico. Exatamente por
força do ambiente político e social dos países em desenvolvimento (de que o Brasil é

15
um exemplo), a frustração e a impaciência com o ritmo e os frutos do processo
democrático ordinário podem conduzir ao desprezo – ainda que velado – por esse
processo, capaz de alimentar a tentação de malversar o direito para transformá-lo em
instrumento de afirmação da concepção política do intérprete. O lembrete de que o
direito constitucional e a política majoritária são fenômenos diversos, ainda que
próximos, é da maior importância nesse contexto.

III.2. Examinando a crítica filosófica

Um segundo grupo de críticas sobre esse mesmo tema examina a


questão sob uma perspectiva predominantemente filosófica. Trata-se do seguinte: não
seria paternalista e presunçoso imaginar que os juristas, e os juízes, tomariam melhores
decisões em matéria de políticas públicas que os agentes públicos encarregados dessa
função? Note-se que não se cuida aqui apenas da questão da legitimidade democrática
dos magistrados, mas de sua legitimidade essencial. Seriam os juristas mais sábios,
teriam um acesso diferenciado ao conhecimento do que é bom ou adequado nesse
particular? Seriam mais éticos ou mais comprometidos com o interesse público? Essa
espécie de pressuposição – associada, inevitavelmente, à idéia de uma aristocracia
governante ou dos “reis-filosóficos” – não violaria o fundamento básico dos Estados
republicanos, por força do qual, no âmbito da sociedade política, se entende que a
opinião de todos tem o mesmo valor? 37 A crítica que se acaba de resumir merece três
comentários principais que, de certo modo, a reduzem a sua verdadeira dimensão.

Os historiadores e filósofos em geral identificam a era


contemporânea como a “pós-modernidade”. Alguns dos traços filosóficos dessa era – e
que de certa forma a contrapõe ao período anterior, da modernidade – são o ceticismo e
o relativismo, sobretudo o moral38. Essa concepção filosófica39 acaba por ter

37
Tratando em alguns momentos dessa espécie de objeção ao controle judicial de políticas
públicas, para criticá-la, veja-se Lenio Luiz Streck, O papel da jurisdição constitucional na
realização dos direitos sociais-fundamentais. Ingo Wolfgang Sarlet (Org.), Direitos fundamentais
sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado, 2003, p. 169 e ss..
38
A modernidade alimentava-se, como se sabe, de ideiais universais, e.g., de liberdade, de

16
conseqüências da maior relevância para o tema aqui em discussão. Um dos corolários
imediatos do relativismo, de forma simples, é a impossibilidade de descrever algo
como certo ou errado. A rigor, uma vez que não há consensos morais, a posição de
qualquer pessoa é apenas uma opinião relativa em essência, cujo fundamento de
autoridade é o próprio indivíduo e não uma verdade independente dele e a ele superior.

Como seria natural, o homem pós-moderno passou a ter grande


dificuldade de julgar ações ou escolhas com fundamento em padrões morais clássicos
de bom/mal, certo/errado, ou mesmo de avaliar comparativamente opções como
melhores ou piores. Nessa espécie de ambiente, qualquer concepção teórica que
dependa, logicamente, de algum tipo de avaliação moral, acaba por causar certo
desconforto íntimo. Boa parte do apelo e do impacto da crítica descrita acima se
alimenta, na realidade, dessa concepção filosófica que a subjaz.

Não cabe aqui discutir a fragilidade, do ponto de vista filosófico,


do relativismo geral. Basta, para os fins deste estudo, registrar sua inconsistência
existencial, tendo em conta a incoerência com a realidade que procura capturar40. A
experiência indica que as sociedades – e as pessoas – prosseguem, em boa medida,
guiando-se pelos padrões morais clássicos de certo/errado e do bem/mal41. O discurso
do relativismo moral absoluto não resiste ao confronto, no tempo, e.g., com a barbárie,

igualdade, de justiça, de progresso científico. O projeto da modernidade, porém, acabou por se ver
frustrado: a ciência não trouxe a prosperidade e a paz esperadas, e as guerras foram a marca do
período. Sobre o tema, v. L. Chevitarese, As ´razões´da pós-modernidade. In: Análogos. Anais da
I SAF-PUC/RJ, 2001: “Na medida em que as expectativas criadas [pela modernidade] não se
puderam realizar efetivamente, surgiram a frustração, o relativismo e o niilismo (...) esse
desencanto vem acompanhado da rejeição a tudo que é tipo como opressivo, da desconfiança a
todo discurso que pretenda dizer ‘o que são as coisas’, ‘o que devemos fazer’, ‘como sentir’.”; e
Antonio Carlos de Almeida Diniz, O direito entre o moderno e o pós-moderno: perspectivas e
desafios. In: Antonio Cavalcanti Maia e outros (org.), Perspectivas atuais da filosofia do direito,
2005, p. 301 a 320.
39
Não cabe aqui investigar o fundamento filosófico do relativismo, que é mais complexo e decorre
da crise metafísica do homem contemporâneo, por força da qual ele se encontra sem referenciais
absolutos, só percebendo sua própria existência.
40
Como se sabe, um dos conceitos filosóficos mais elementares de verdade é, exatamente, a
propriedade de estar conforme os fatos e a realidade ou, dito de outro modo, a relação de
identidade entre o enunciado e o fenômeno. Assim, se a concepção do fenômeno é desmentida
pela realidade, a concepção não pode ser considerada verdadeira. V., por todos, The Cambridge
Dictionary of Philosophy, 1995, verbete “truth”.
41
Ainda que o conteúdo desses conceitos possa variar significativamente.

17
com a violência, com a miséria, ou com a injustiça extrema, que prosseguem como
eventos socialmente marginais. Nesses ambientes, a convicção acerca de padrões ou
consensos morais parece irresistível. Mesmo longe de situações-limite a discussão ética
– pessoal, profissional e política42 – tornou-se um tema fundamental para a sociedade
contemporânea, sobretudo ocidental. Do ponto de vista jurídico, boa parte da discussão
sobre os princípios envolve exatamente a incorporação, pelo Direito, de elementos
valorativos (como a dignidade humana, a justiça social, a solidariedade, a moralidade
administrativa, a boa-fé, etc.).

Veja-se: se o relativismo moral generalizado não é consistente, é


possível concluir que há espaços em que podem haver padrões ou consensos morais:
decisões certas em oposição a erradas, boas em oposição a más. Nessa espécie de
ambiente, o fundamento da posição de um indivíduo sobre determinada matéria não
consistirá apenas na sua própria opinião pessoal e relativa, mas poderá ser confrontado
com esses padrões. Não se trata, portanto, de conferir maior valor à opinião do juiz ou
do jurista por razões subjetivas, isto é: porque se cuida de um juiz ou de um jurista.
Trata-se de conferir maior valor a uma opinião porque, em determinado contexto, e
independentemente de seu emissor, nem todas as opiniões são equivalentes,
indiferentes ou igualmente relativas; existem parâmetros morais aplicáveis que
permitem afirmar que determinadas posições são certas e outras erradas e, como parece
natural, as posição certas têm valor superior às erradas43.

Raciocínio semelhante ao que se acaba de descrever aplica-se


igualmente a outra seara: a dos conhecimentos técnicos e científicos. Ao longo da

42
Recentemente, como se sabe, ao apreciar liminar solicitada na ADC nº 12, o STF entendeu
válida resolução do Conselho Nacional de Justiça que veda práticas de nepotismo no âmbito do
Judiciário. Um dos fundamentos da decisão foi, exatamente, a incompatibilidade de tais práticas
com o princípio da moralidade administrativa.
43
Uma questão mais complexa é a que procura investigar de onde se extraem esses padrões
morais. Desde os tempos mais remotos da história da humanidade, e em certa medida até hoje, a
resposta para essa questão foi encontrada na metafísica: um Ser moral e transcendente – a
divindade – teria estabelecido esses padrões e os incutido de alguma forma no homem. Mais
recentemente, outras elaborações têm sido desenvolvidas. John Rawls (em sua obra “Teoria da
Justiça”), como se sabe, procurou oferecer uma resposta racional a essa pergunta, por meio do
seu “estado original” no qual, por força do véu da ignorância, as pessoas não teriam como ser
egoístas e poderiam fazer escolhas moralmente adequadas.

18
história o homem acumulou conhecimentos sobre temas que podem autorizar a
afirmação, com razoável certeza, de que há meios melhores e piores para alcançar-se
determinado fim. Eventualmente, será possível afirmar que determinados meios são
realmente imprestáveis para a realização de objetivos específicos. Também aqui, nem
todas as opiniões são equivalentes ou têm a mesma valia. Há parâmetros que permitem
concluir que determinadas possibilidades ou opiniões são adequadas e outras não, ou
ainda que algumas concepções são realmente melhores que outras, não por conta de
quem as emite, mas por seu próprio conteúdo.

Diante do que se acaba de expor, já é possível chegar a uma


primeira conclusão. A crítica filosófica que se resumiu acima, embora continue muito
relevante, como se verá mais à frente, não é pertinente em todo e qualquer ambiente.
Ficam excluídos de sua incidência aqueles casos nos quais se esteja lidando com
padrões e consensos morais ou com conhecimentos técnicos ou científicos
consolidados. Restam os espaços, amplos e importantes, não há dúvida, das opções
políticas, relativas e contingentes. Esta era a primeira observação a fazer sobre o
ponto.

A segunda nota sobre o tema é uma decorrência direta da


primeira. O debate sobre o controle das políticas públicas em matéria de direitos
fundamentais envolve em alguma medida padrões morais ou questões técnicas? Em
outras palavras, o registro que se acaba de fazer é meramente teórico ou tem alguma
aplicação prática para a discussão que se trava aqui? A resposta à pergunta é
afirmativa. Além dos aspectos puramente jurídicos, o debate sobre o controle de
políticas públicas em matéria de direitos fundamentais pode envolver, de um lado,
questões morais e eventualmente também questões técnicas e, de outro, questões
puramente políticas e contingentes. O que se expôs acima será relevante apenas nesse
primeiro ambiente – ocupado pelas questões morais e técnicas –, mas não no segundo,
no qual se encontram as questões políticas. Tais distinções são importantes no que toca
às possibilidades de controle jurídico e jurisdicional. Aprofunde-se o tema.

O controle das políticas públicas em matéria de direitos

19
fundamentais – seja esse controle político-social ou jurídico – envolve ao menos duas
questões morais. Em primeiro lugar, a discussão sobre o tema assume como padrão
moral – e também jurídico, não há dúvida – a centralidade do homem e de seus direitos
no contexto do Estado e do Direito. Assim, opções em matéria de políticas públicas que
claramente violem essa diretriz, funcionalizando o indivíduo, serão moralmente
erradas. Em tais casos, o controle jurisdicional terá sua legitimidade incrementada na
medida em que seja possível agregar aos fundamentos jurídicos também o fundamento
moral, a fim de qualificar a opção do Poder Público como moralmente errada.

É certo que “opções que claramente violem” esse pressuposto


moral – e o advérbio claramente desempenha um papel importante na oração – não são
tão freqüentes em Estados democráticos. A realização da dignidade humana e dos
direitos fundamentais não constitui uma operação simplista; ela envolve aspectos
individuais e coletivos44, presentes e futuros45, exige o equilíbrio entre necessidades
diversas e a coordenação de efeitos mediatos e imediatos das diferentes ações46. No
normal das circunstâncias, não é dificil sustentar razoavelmente que, de alguma forma,
direta ou indireta, determinada política respeita o pressuposto da centralidade do
homem e de seus direitos. Eventualmente, porém, alguma opção política não
conseguirá justificar-se racionalmente à luz desse elemento moral e, então, a

44
Alguns debates envolvendo, e.g., a proteção do consumidor podem exigir essa espécie de
perspectiva simultânea, individual – coletiva. A proteção específica de consumidores isolados e
historicamente localizados pode causar prejuízos para a coletividade dos consumidores. Um
exemplo desse fenômeno, de fácil visualização, envolve os contratos de seguro: a cobertura de
eventos não previstos como sinistros produz o aumento da sinistralidade que poderá justificar um
incremento global do prêmio da carteira.
45
Um exemplo dessa espécie de dificuldade é observado nas discussões, que começam a se
desenvolver no Brasil, envolvendo o conflito entre o direito à moradia (em geral de desabrigados
ou de famílias extremamente carentes) e a proteção ambiental de áreas de preservação ecológica.
A forma de equilibrar aspectos presentes do atendimento a direitos fundamentais – como é o caso
da moradia – e futuros – de que muitas vezes se ocupa a proteção ambiental – pode ser bastante
complexa.
46
Uma das maiores dificuldades nesse particular – efeitos imediatos e mediatos de políticas
públicas em matéria de direitos fundamentais – será a forma como o Poder Público presta
assistência aos desamparados. Dependendo da forma como são organizados e executados os
programas assistenciais, embora indispensáveis para evitar um grau de miserabilidade inaceitável,
esses programas poderão ensejar, a médio prazo, efeitos colaterais indesejáveis, como, e.g., a
destruição da autonomia individual, da motivação para o aprimoramento pessoal e para o trabalho
e a deterioração da responsabilidade pessoal do indivíduo assistido, afora o risco da formação, do
ponto de vista político, de um vínculo clientelista entre assistido e autoridade pública responsável
pela concessão desses benefícios.

20
legitimidade do controle jurídico será reforçada por esse fundamento.

Na maior parte dos casos, sempre que haja conexão racional


possível entre as opções políticas e esse axioma moral, a questão se desenvolverá em
ambiente diverso – o ambiente político – sobre o qual se tratará adiante. É bem de ver
que mesmo nesse ambiente, tendo em conta determinado fim pretendido, pode ser
viável afirmar que há escolhas erradas ou piores que outras, não mais com fundamento
moral e sim, como referido acima, com base na experiência histórica e em
conhecimentos técnicos ou científicos acumulados.

A discussão sobre as políticas públicas em matéria de direitos


fundamentais envolve ainda uma segunda questão moral. Não se trata mais de um juízo
acerca do conteúdo da política pública escolhida, e sim – independentemente da
escolha feita – da lisura na utilização dos recursos públicos. Assim, a segunda questão
moral, com fundamento na qual é possível fazer julgamentos de certo/errado, envolve a
correção com que a política pública que se decidiu adotar é de fato implementada.
Também aqui, esse elemento moral já foi amplamente incorporado pelo direito positivo
brasileiro. Os desvios de recursos e de finalidade, a corrupção e o desperdício ou a
ineficiência são, além de injurídicos, moralmente reprováveis. A crítica filosófica
examinada torna-se pouco relevante nesse ambiente, no qual não há propriamente
espaços de discricionariedade política admitida pelo direito, isto é: nos quais diversas
opções podem ser formuladas, todas igualmente válidas, e sim espaços moralmente
vinculados.

A conclusão do exame levado a cabo acerca da crítica filosófica


pode ser resumida nos seguintes termos. O controle jurisdicional das políticas públicas
pode ter três fundamentos distintos e legítimos. Em primeiro lugar, como todo controle
jurisdicional, seu fundamento pode ser unicamente a norma jurídica, fruto da
deliberação democrática. Assim, se uma política pública, ou qualquer decisão nessa
matéria, é determinada de forma específica pela Constituição ou por leis válidas, a ação
administrativa correspondente poderá ser objeto de controle jurisdicional como parte
do natural ofício do magistrado de aplicar a lei.

21
A hipótese mais complexa, porém, e mais freqüente, coloca-se
quando não se pode extrair de forma direta da norma jurídica respostas às questões
relevantes em matéria de políticas públicas (isto é: quanto investir, em que investir,
com que propósito investir, etc.). Nessa hipótese, cabe sobretudo ao Executivo e ao
Legislativo elaborar as respostas para tais perguntas. Mesmo aqui, embora se trate do
espaço próprio das deliberações majoritárias, poderá haver controle jurisdicional,
conquanto seja possível – a despeito do caráter genérico dos parâmetros jurídicos –
formular um juízo consistente de certo/errado em face das decisões dos poderes
públicos. Como referido acima, esse juízo pode ter fundamentos morais ou técnico-
científicos.

Inexistente qualquer desses três fundamentos – jurídico, moral


ou técnico-científico – incide perfeitamente a crítica examinada neste ponto. Não
haverá fundamento algum, legítimo, com base no qual o juíz possa fazer a sua opinião
prevalecer sobre a dos agente públicos democraticamente eleitos. Se o juiz não pode
recorrer a um fundamento normativo claro – que traz em si a legitimidade democrática
própria associada a sua elaboração – e se sua decisão não se reconduz a um imperativo
moral ou técnico, sua opinião, na realidade, é apenas isso: uma opinião, sem qualquer
valor intrínseco especial. E entre opiniões equivalentes, terá maior valor aquela que
conta com o apoio da maioria, ainda que indiretamente.

III.3. Examinando a crítica operacional

A terceira crítica, por seu turno, tem um viés mais operacional


e pode ser assim resumida. Ainda que superadas as críticas anteriores, o fato é que nem
o jurista, e muito menos o juiz, dispõem de elementos ou condições de avaliar,
sobretudo em demandas individuais, a realidade da ação estatal como um todo.
Preocupado com a solução dos casos concretos – o que se poderia denominar de micro-
justiça –, o juiz fatalmente ignora outras necessidades relevantes e a imposição
inexorável de gerenciar recursos limitados para o atendimento de demandas ilimitadas:

22
a macro-justiça. Ou seja: ainda que fosse legítimo o controle jurisdicional das políticas
públicas, o jurista não disporia do instrumental técnico ou de informação para levá-lo a
cabo sem desencadear amplas distorções no sistema de políticas públicas globalmente
considerado47.

Há ainda mais do que isso. Os indivíduos que vão ao Judiciário


postular algum bem ou serviço em matéria de direitos fundamentais nem sempre serão
representantes das classes menos favorecidas da sociedade. As necessidades destes,
como regra, não chegam aos Tribunais e nem são ouvidas pelos juízes. Nesse contexto,
o que se pode verificar é um deslocamento de recursos das políticas públicas gerais –
que, em tese, deveriam beneficiar os mais necessitados de forma direta – para as
demandas específicas daqueles que detém informação e capacidade de organização.

A crítica que se acaba de enunciar não pode ser refutada de


maneira simplista e não convém ignorá-la. Com efeito, o juiz não detém informações
completas sobre as múltiplas necessidades que os recursos públicos devem acudir ou
mesmo sobre os reflexos não antecipados que uma determinada decisão pode
desencadear. Ele não tem o tempo necessário para fazer uma investigação completa
sobre o assunto, nem os meios para tanto. Nem lhe cabe afinal levar a cabo um
planejamento global da atuação dos poderes públicos.

Tendo em conta o que se acaba de registrar, a pergunta que se


coloca passa a ser a seguinte: mas qual a conseqüência dessa crítica operacional para o
controle jurídico e jurisdicional das políticas públicas? Ela o inviabilizaria? Ela o
restringiria de algum modo? A resposta a essas questões dependerá, e variará, em
função de dois elementos: o objeto a ser juridicamente controlado e a modalidade de
controle que se pretenda implementar48. Esse último tema – objetos e modalidades de

47
Richard A. Posner, Economic analysis of law, 1992; Gustavo Amaral, Direito, escassez e
escolha – em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões
trágicas, 2001; e Flávio Galdino, Introdução à teoria dos custos dos direitos. Direitos não nascem
em árvores, 2005.
48
Victor Abramovich y Christian Courtis, Apuntes sobre la Exigibilidad Judicial de los Derechos
Sociales. Ingo Wolfgang Sarlet (Org.), Direitos fundamentais sociais: estudos de direito
constitucional, internacional e comparado, 2003, p. 159 e ss..

23
controle –, por sua importância, não apenas no que diz respeito a este última crítica,
mas também quanto às duas primeiras, será examinado no próximo tópico.

IV. OBJETOS E MODALIDADES DE CONTROLE

A expressão “controle jurisdicional de políticas públicas” não


descreve um fenômeno único ou um conjunto uniforme de situações. É viável imaginar
diversas possibilidades e combinações nesse particular, sendo que cada uma dessas
variações poderá produzir um impacto diverso sobre os argumentos utilizados pelas
críticas descritas nos tópicos anteriores. Algumas formas de controle podem ensejar –
se empregadas amplamente – maior intervenção do Judiciário na esfera própria dos
outros Poderes, ao passo que outras serão mais deferentes para com o espaço de
deliberação majoritária. Seja como for, e como já referido, o controle de políticas
públicas em matéria de direitos fundamentais poderá variar em função, ao menos, de
dois elementos diversos.

O primeiro elemento vem a ser o objeto específico a ser


controlado. Trata-se de saber que conduta ou bem49 será exigido, de quem e sob que
fundamento. O segundo elemento, por seu turno, envolve o ambiente processual no
qual a discussão será posta e, conseqüentemente, os efeitos objetivos e subjetivos de
eventuais decisões proferidas, o que se pode denominar aqui, por convenção, de
modalidade de controle.

Quando se trata de políticas públicas em matéria de direitos


fundamentais – nos termos em que o conceito foi delimitado para este estudo –, que
objetos podem ser alvo de controle jurisdicional? Em outros termos, o que é exigível
nessa matéria e, portanto, pode ser sindicado judicialmente? É possível cogitar de 5
(cinco) objetos distintos (sem prejuízo de outros), ainda que interligados, que podem
ser agrupados em dois grupos.

49
A rigor, a pretensão será sempre de uma conduta, ainda que a conduta seja a de entregar o
bem.

24
No primeiro bloco, será possível controlar, em abstrato, (i) a
fixação de metas e prioridades por parte do Poder Público em matéria de direitos
fundamentais; em concreto, será possível cogitar do controle (ii) do resultado final
esperado das políticas públicas em determinado setor. No segundo grupo, é possível
controlar ainda três outros objetos: (iii) a quantidade de recursos a ser investida, em
termos absolutos ou relativos, em políticas públicas vinculadas à realização de direitos
fundamentais; (iv) o atingimento ou não das metas fixadas pelo próprio Poder
Público; e (v) a eficiência mínima na aplicação dos recursos públicos destinados a
determinada finalidade. Como é fácil perceber, os dois primeiros objetos de controle se
ocupam do conteúdo das políticas públicas em si, ao passo que os três últimos
pretendem controlar aspectos do processo de decisão e execução das políticas públicas
levado a cabo pelo Poder Público. Examine-se rapidamente cada um deles.

IV.1. Controle da fixação de metas e prioridades e do resultado final esperado das


políticas públicas

O primeiro objeto referido acima envolve o controle da fixação


de metas, a cargo do Executivo e do Legislativo no âmbito do orçamento e da execução
orçamentária50, em matéria de políticas públicas para a realização de direitos
fundamentais. O segundo objeto, por sua vez, diz respeito ao controle do resultado
final esperado das políticas públicas associadas a determinada matéria. A rigor, essa
segunda forma de controle jurídico só existirá se as metas de que trata a primeira não
houverem sido incluídas no orçamento ou não tiverem sido alcançadas, já que o
conteúdo final das duas formas de controle é o mesmo. Explica-se melhor.

As duas espécies de controle que se acaba de identificar


assumem como pressuposto que há resultados esperados – e exigíveis – das políticas

50
O orçamento, no Brasil, como se sabe, é apenas autorizativo, sendo freqüente a transferência
de recursos entre rubricas e o contingenciamento. O controle, portanto, não poderá se restringir
apenas à fixação abstrata das metas no orçamento – sob pena de ser inócuo –, mas deverá
também afetar a inclusão daquela meta, de fato, no plano de execução orçamentária.

25
públicas em matéria de direitos fundamentais. Tais políticas, portanto, não constituem
um fim em si mesmo e, mais que isso, a escolha dos fins que elas devem alcançar não
está inteiramente à disposição dos Poderes Executivo e Legislativo. Na realidade, as
políticas públicas deverão necessariamente produzir como resultado o oferecimento, à
população, de determinados bens ou serviços, que vão dar conteúdo, então, ao que se
referiu acima como “resultado esperado das políticas públicas”. Dois exemplos
ajustam a esclarecer o ponto.

Parece não haver dúvida de que as políticas públicas em matéria


de educação, dentre outros objetivos que possam ter, terão, necessariamente, de
oferecer ensino fundamental gratuito a todas as crianças em idade própria, bem como
aos adultos que, por desventura, não tenham tido oportunidade de receber essa espécie
de instrução. Tais bens constituem, sob a ótica dos indivíduos, direitos subjetivos,
como se sabe. Se é assim, os Poderes Públicos estarão obrigados, em primeiro lugar, a
incluir em suas previsões orçamentárias rubricas capazes de atender essa necessidade,
isto é: metas relacionadas com o oferecimento desses serviços. E se se trata de um
dever jurídico, sua inobservância poderá ser objeto de controle jurisdicional. Trata-se
aqui, portanto, do primeiro objeto de controle descrito: o das metas a serem fixadas
pelo Poder Público.

Imagine-se, porém, que, a despeito do que se acaba de registrar,


em determinada localidade do país os bens em questão não são oferecidos à população:
não há escola pública (ou qualquer equivalente) destinada a crianças e adolescentes,
nem há serviço específico dirigido aos adultos. Esse é o espaço de operação da segunda
forma de controle identificada acima. O controle jurídico nessa hipótese representa
exatamente a possibilidade de exigir diretamente tais bens: o resultado final esperado
pelas políticas públicas em matéria de direitos fundamentais. Nesse caso, portanto,
poderia o juiz determinar de forma específica o oferecimento de tais serviços à
população.

Veja-se ainda um exemplo envolvendo o direito fundamental a


prestações de saúde. Imagine-se que os indivíduos têm direito subjetivo ao

26
fornecimento gratuito de medicamentos necessários ao tratamento da tuberculose e ao
controle da hipertensão, sobretudo se por eles não possam pagar. Do ponto de vista do
Poder Público, portanto, o fornecimento de tais medicamentos constitui uma meta
necessária de suas políticas públicas para o setor. Sua não inclusão no orçamento ou no
plano de execução orçamentária poderá ensejar controle específico. Em um segundo
momento, suponha-se que os remédios não são de fato oferecidos à população. O
controle do resultado final consistiria na possibilidade de o juiz determinar ao Poder
Público o oferecimento obrigatório dos medicamentos referidos.

Ao incidir sobre o resultado final esperado das políticas públicas


– seja previamente, no momento do estabelecimento das metas, seja posteriormente,
quando verificado o não cumprimento dessas metas – esses controles ensejam ao
menos uma reflexão importante. Eles exigem sempre, previamente, a definição de que
determinado bem ou serviço constitui, de um lado, um direito subjetivo e, de outro,
pelo mesmo fundamento, um resultado necessário das políticas públicas. Há casos em
que essa definição será bastante simples. No caso da educação, como se sabe, os
incisos I, VI, VII e os §§ 1º e 2º do art. 208 da Constituição são explícitos ao descrever
como direitos os serviços referidos acima. O tema da saúde, entretanto, já envolve
maiores complicações. Toda e qualquer prestação de saúde disponível no mercado
daria origem a uma providência exigível? A despeito da redação dos arts. 196 e 198, II,
ambos da Carta de 1988, essa conclusão não parece viável em um mundo de recursos
limitados.

Ou seja: para levar-se a efeito tais controles, será preciso definir


qual é o resultado esperado e necessário das políticas públicas relativamente aos
diferentes direitos fundamentais. Essa definição envolverá uma certa delicadeza para
que, a pretexto de interpretar a Constituição, o aplicador não tente impor sua
concepção pessoal na matéria. Excessos nesse particular terão repercussões graves
sobre os temas discutidos pelas críticas de que se tratou logo no início deste trabalho, a
saber: (i) o equilíbrio entre a Constituição e o espaço democrático; (ii) a legitimidade
do magistrado nesse particular; e (iii) a distorção das relações entre micro e macro
justiças. Em outras palavras, o tema envolve a extensão ou a abrangência daquilo que

27
se vai definir como resultado final esperado51, já que, para além de determinados
limites, essa possibilidade de controle poderá ser um alvo justo das críticas referidas no
tópico anterior. O ponto será retomado adiante quando se tratar dos ambientes
processuais nos quais as diferentes espécies de controle podem se desenvolver (o que
se denominou acima de modalidade de controle).

Examine-se agora, ainda que brevemente, os três outros objetos


de controle, que já não cuidam do conteúdo propriamente das políticas públicas. O
objetivo último dessas espécies de controle é, também, influenciar o resultado final a
ser alcançado por meio das políticas públicas e aproximar a ação estatal daquilo que
deseja a Constituição: o meio empregado para tanto, porém, é indireto e de certa forma
menos invasivo do espaço de escolha do Legislativo e do Executivo. Confira-se.

IV.2. Controle da quantidade de recursos a ser investida

O terceiro objeto controlável a que se vai fazer referência – o


primeiro deste segundo grupo – é a quantidade de recursos a ser investida na promoção
dos direitos fundamentais. Como é corrente, a própria Constituição estabelece
percentuais mínimos de recursos que devem ser investidos em educação e saúde pelos
entes federativos (CF, arts. 198, § 2º e 20252), além de vincular as receitas das

51
Em outro estudo (A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da
pessoa humana, 2001) sustentamos a possibilidade de controle jurídico de ao menos quatro
conjuntos de bens – saúde básica (saneamento, atendimento materno-infantil, ações de medicina
preventiva e prevenção epidemiológica), educação fundamental, assistência aos desamparados e
acesso à justiça – por considerar, o que continuamos a entender, que eles correspondem ao
resultado final esperado das políticas públicas determinadas pelo próprio texto constitucional.
52
CF/88: “Art. 198, § 2º dispõe que “§ 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da
aplicação de percentuais calculados sobre: I – no caso da União, na forma definida nos termos da
lei complementar prevista no § 3º; II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da
arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e
159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos
Municípios; III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos
impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I,
alínea b e § 3º ” (...) Art. 212: “A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita
resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e
desenvolvimento do ensino”;

28
contribuições sociais ao custeio da seguridade social53.

É possível, todavia, cogitar da construção teórica de outros


parâmetros nessa matéria, além dos objetivamente já fixados pela Constituição. Com
efeito, é plausível imaginar relações de prioridade exigíveis entre diferentes tipos de
gastos do Poder Pùblico e em função dessas relações desenvolver controles. Pode ser
juridicamente consistente, por exemplo, sustentar que os gastos com publicidade
governamental não poderão ser superiores aos investimentos com saúde ou educação,
uma vez que necessidades importantes de tais áreas sofram com carência de recursos,
ou que os gastos públicos com eventos culturais (e.g., shows) não possam ultrapassar
ou representar mais do que determinada fração daqueles com educação fundamental e
média, etc.54.

A elaboração de parâmetros diversos dos já previstos


constitucionalmente exigirá, por certo, um esforço de justificação importante. No caso
dos percentuais já fixados pelo texto constitucional, o controle é imediato e não enseja
maiores questionamentos. No caso de percentuais ou proporções construídas pela
doutrina ou pela jurisprudência, o grau de crítica a que essa possibilidade de controle
estará sujeita dependerá da consistência jurídica com que foi fundadamenta55. Nada

53
CF/88: “Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e
indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: (...)”.No site
do Ministério da Previdência e Assistência Social (www.mpas.gov.br) é possível ter acesso a uma
lista completa das contribuições com as alíquotas e as bases de cálculo aplicáveis. V. sobre o
tema, Marcelo Guerra Martins. Impostos e contribuições federais, 2004.
54
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ajuizou ação por improbidade administrativa
em face de autoridades municipais do Município de Campos dos Goytacazes por conta do
excesso de gastos públicos em eventos culturais. A Prefeitura organizou mais de 150 eventos
musicais em menos de dois anos gerando, em média, três shows por fim de semana. Além das
acusações de superfaturamento em tais contratações, alega-se que os gastos milionários nessas
áreas não se repetem em outras áreas de atuação obrigatória do poder público, violando a
razoabilidade. Não se tem notícia de que haja sido proferida decisão nessa demanda (processo nº
2003.014.016724-4, 4ª Vara Cível da Comarca de Campos dos Goytacazes).
55
Maximo La Torre, Theories of Legal Argumentation and Concepts of Law. An Approximation,
Ratio Juris 4:382, 2002: “It is today the judge that is put forward as the new centre of the legal
system, no longer the legislative power, like it or not. And in the judge’s view central importance
inevitably attaches to the procedure by which the decision is arrived at. Here, the law is not
enough, other criteria of choice have to be resorted to.”; e Aulis Aarnio, Lo racional como
razonable, 1991, p. 29: “Como se ha mencionado, el decisor ya no puede apoyarse en una mera
autoridad formal. En una sociedad moderna, la gente exige no sólo decisiones dotadas de
autoridad sino que pide razones. Esto vale también para la administración de justicia. La

29
obstante, uma vez que seja possível concluir que tais relações proporcionais entre os
valores a serem investidos pelo Poder Público são exigíveis, sua observância poderá ser
objeto de controle jurídico.

Uma questão relevante nesse contexto envolve os pedidos que


podem ser formulados de forma específica à autoridade judicial. Em primeiro lugar,
nem sempre será fácil obter informações sobre o destino real dos recursos públicos56.
Nessas circunstâncias, será necessário formular pedidos cautelares, de natureza
preparatória, solicitando, e.g., a prestação de contas ou a exibição de documentos ou
por meio da qual se possa obter dados sobre o tema.

Ultrapassada essa eventual fase preliminar, passam-se aos


pedidos principais. Certamente é possível cogitar da responsabilização pessoal do
administrador pelo descumprimento dos parâmetros referidos acima (ao menos por
improbidade, sem prejuízo de outras sanções). Há outros pedidos viáveis, como, e.g.,
que se determine o investimento obrigatório dos recursos inicialmente alocados em
outras rubricas em políticas vinculadas aos direitos fundamentais, se isso ainda for
factível do ponto de vista do estágio da execução orçamentária. Também não seria
implausível o pedido de inclusão, no orçamento do ano seguinte, da diferença de
recursos que deveria ter sido gasta em direitos fundamentais e não o foi57.

responsabilidad del juez se ha convertido cada vez más en la responsabilidad de justificar sus
decisiones. La base para el uso del poder por parte del juez reside en la aceptabilidad de sus
decisiones y no en la posición formal de poder que pueda tener. En este sentido, la
responsabilidad de ofrecer justificación es, específicamente, una responsabilidad de maximizar el
control público de la decisión. Así pues, la presentación de la justificación es siempre también un
medio para asegurar, sobre una base racional, la existencia de la certeza jurídica en la sociedad.”
56
Sobre a questão da dificuldade de acesso a informações na matéria, v. Ana Paula de Barcellos,
Ana Paula de Barcellos, Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas
públicas, Revista de Direito Administrativo 240:83 e ss., 2005.
57
Essa já era a cogitação de Luís Roberto Barroso no final da década de 80, v. Luís Roberto
Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2006 (primeira edição de 1990),
p. 144, n. 59: “Não se deve desconsiderar, para um futuro aprofundamento do tema, a viabilidade
de uma decisão judicial condenando o Estado a fazer constar do orçamento do exercício
subseqüente a previsão da despesa necessária ao cumprimento de uma obrigação de fazer
judicialmente imposta. Complexidades geradas por certas regras clássicas, de natureza
constitucional e processual, exigem, no entanto, mas cuidadoso exame da questão”. É certo que
os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal deverão ser respeitados e, provavelmente, o termo
do mandato do Chefe do Executivo responsável pela ação/omissão inconstitucional. Parece
problemático que o novo governante eleito tenha sua liberdade de conformação limitada por ações
ou omissões inválidas praticadas por seu antecessor. De todo modo, este é um tema que exige

30
IV.3. Controle do atingimento ou não das metas fixadas pelo Poder Público

O quarto objeto possível de controle envolve a verificação


acerca do atingimento, ou não, das metas estabelecidas pelo próprio Poder Público para
suas políticas públicas. Naturalmente, essa espécie de controle jurisdicional só se
justificará caso o Poder Público não haja, como lhe caberia fazer, tornado públicas as
informações a esse respeito. Infelizmente, o tema é relevante, já que nem sempre o
dever de publicidade é observado em toda sua extensão pelas autoridades públicas
competentes58. Aprofunde-se a questão.

A Constituição de 1988 dispõe que o Presidente da República


deve remeter ao Congresso Nacional plano de governo, do qual deveriam constar as
metas que o Executivo visualiza para sua ação administrativa. Cabe-lhe também
prestar, anualmente, as contas do exercício anterior59. Mais que isso, a Carta prevê que
cada um dos três Poderes deve manter sistema de controle interno com a finalidade de
avaliar o cumprimento das metas que tenham sido estabelecidas60. Ainda que o texto

reflexão mais aprofundada.


58
V. STF, RHD 22, Rel. Min. Celso de Mello, j. 19 set. 1991: “A Carta Federal, ao proclamar os
direitos e deveres individuais e coletivos, enunciou preceitos básicos, cuja compreensão é
essencial a caracterização da ordem democrática como um regime do poder visível. O modelo
político-jurídico, plasmado na nova ordem constitucional, rejeita o poder que oculta e o poder que
se oculta.”; e STF, DJU 09 dez. 2003, MS 24.725-8, Rel. Min. Celso de Mello: “Assiste, aos
cidadãos e aos meios de comunicação social (‘mass media’), a prerrogativa de fiscalizar e de
controlar a destinação, a utilização e a prestação de contas relativas a verbas públicas. (...) Não
custa rememorar que os estatutos do poder, numa República fundada em bases democráticas,
não podem privilegiar o mistério, eis que a legitimidade político-jurídica da ordem democrática,
impregnada de necessário substrato ético, somente é compatível com um regime do poder visível,
definido, na lição de BOBBIO, como ‘um modelo ideal do governo público em público’. Ao
dessacralizar o segredo, a nova Constituição do Brasil restaurou o velho dogma republicano e
expôs o Estado, em plenitude, ao princípio democrático da publicidade, cuja incidência – sobre
repudiar qualquer compromisso com o mistério – atua como fator de legitimação das decisões e
dos atos governamentais”.
59
CF/88: “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...) XI – remeter
mensagem e plano de governo ao Congresso Nacional por ocasião da abertura da sessão
legislativa, expondo a situação do País e solicitando as providências que julgar necessárias; (...)
XXIV – prestar, anualmente, ao Congresso Nacional, dentro de sessenta dias após a abertura da
sessão legislativa, as contas referentes ao exercício anterior;”
60
CF/88: “Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada,
sistema de controle interno com a finalidade de: I – avaliar o cumprimento das metas previstas no
plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União;”

31
constitucional nada houvesse falado sobre o ponto, a fixação de metas é uma exigência
elementar de qualquer processo administrativo. E o controle do atingimento de metas
vem a ser um corolário natural de sua própria fixação.

O objeto a ser controlado aqui não é propriamente o conteúdo


das metas: elas terão sido definidas pelas instâncias majoritárias61. Também não se
cuida aqui de punir o administrador que não atingiu as metas por ele mesmo fixadas. É
certo que muitos eventos imprevistos e imprevisíveis podem ocorrer ao longo da
execução orçamentária, de modo que as metas previstas originariamente podem ter de
sofrer adaptações. O controle que se pretende aqui é instrumental e, a rigor, seu
objetivo central é obter informação e divulgá-la, de modo a fomentar o debate público e
o controle social do tema. Trata-se de um pedido de prestação de contas, cabendo ao
Poder Público explicitar o cumprimento da meta que havia estabelecido ou justificar
suas opções. Apenas isso. Antes de prosseguir, há uma observação importante a fazer.

Embora o objeto a ser controlado envolva a comparação entre as


metas inicialmente fixadas pelo Poder Público e o resultado final de suas políticas,
pode haver um problema prévio: a ausência de metas concretas a partir das quais algum
controle possa se desenvolver. Nada obstante o que prevê a Constituição brasileira
acerca do plano de governo, esse documento contém tradicionalmente apenas uma peça
retórica de propaganda política, da qual como regra não é possível extrair qualquer
meta tangível62 no que diz respeito às políticas que o Governo pretende implementar. O
mesmo se diga acerca dos planos plurianuais e até mesmo das leis orçamentárias63.

61
Repita-se que os controles discutidos neste estudo não excluem outros aqui não abordados,
nem se está a sustentar que não seria possível controlar o conteúdo das metas. O que se deseja
enfatizar neste passo é a possibilidade de um controle puramente instrumental nesse particular.
62
Embora não seja o caso de desenvolver o ponto aqui, vale registrar que metas tangíveis
correspondem à descrição de uma realidade concreta, “palpável” e observável. Assim, investir
uma quantidade “x” de recursos em determinada área não corresponde ainda a uma meta
tangível. Metas tangíveis seriam, e.g., na área de saúde, a contratação de “z” médicos, a
contrução de “y” hospitais e seu aparelhamento, o fornecimento de “z” doses do medicamento tal,
etc.. É claro que a fixação das metas terá de levar em conta os recursos estimados para
investimento.
63
Esse foi um dos problemas apontados pelo relatório da auditoria realizada pela Secretaria de
Macroavaliação Governamental (SEMAG) do TCU acerca do Plano Plurianual 2004/2007
(Processo nº 015271/2003-4), verbis: “49. Há que se registrar, nesse contexto, a generalidade e
imprecisão da grande parte dos desafios de governo, que podem ser ligados aos objetivos de

32
Como regra, tais documentos descrevem fins e metas de forma tão genérica e
dissociada de parâmetros concretos que será simplesmente inviável, depois, controlar,
sob qualquer perspectiva, seu eventual cumprimento ou descumprimento.

Esse aspecto da questão é especialmente relevante. Não se trata


apenas do desrespeito às normas constitucionais que tratam do plano de governo ou do
controle interno. Uma vez que o debate político se alimenta apenas de generalidades,
chavões e frases de efeito, o controle social – tanto no momento das eleições, quanto
durante os mandatos – tem grande dificuldade de se desenvolver. Em um Estado
democrático, o natural seria que os candidatos apresentassem propostas concretas de
metas para aquilo que identificam ser os problemas do país e os meios factíveis de
realizá-las, oferecendo ao eleitor dados que pudessem ser avaliados racionalmente, e
não apenas slogans e jingles emocionais.

Seria também natural – em um Estado republicano no qual a


publicidade e a responsabilidade política são disposições constitucionais – que cada
governo eleito divulgasse suas metas concretas por setor e, periodicamente, prestasse
contas do que foi feito, do que não pôde ser feito e das razões para tanto, sobretudo em
um sistema, como o brasileiro, que admite a reeleição dos Chefes do Executivo64.
Caberia, é claro, à oposição formular as críticas pertinentes e à população avaliar
concretamente e formular seus próprios juízos. É fácil perceber que, na ausência de
elementos minimamente objetivos, a matéria prima do debate público acaba por ser
formada por acusações pessoais, promessas infactíveis, manipulações de dados e
propaganda.

diversos programas, levando-se em consideração que não se encontram associados a referências


objetivas que possam ser mensuradas, e sim a enunciados genéricos, do tipo: ‘valorizar’,
‘implementar’, ‘promover’, ‘melhorar’, ‘garantir’, etc. Em outros casos, fala-se em ‘reduzir’ ou
‘aumentar’, mas não se apresentam as situações-objetivo no horizonte de tempo”. Sobre o tema,
v. Renata Ribeiro Baptista, TCU – Proc. 015271/2003-4 – Controle do Plano Plurianual 2004/2007
pelo Tribunal de Contas da União, 2006, mimeo.
64
Boa parte dos argumentos que levaram à consagração da regra da reeleição dizem respeito à
possibilidade de a população avaliar o governo e decidir se deseja ou não mantê-lo. Se os
elementos concretos a serem avaliados não são divulgados, a legitimidade da regra resta
amplamente prejudicada.

33
Feita a digressão, retorne-se ao ponto. Uma vez que seja possível
identificar metas envolvendo políticas públicas em matéria de direitos fundamentais, o
objeto a ser controlado aqui em discussão diz respeito apenas à realização, ou não, de
tais metas. Que espécie de pedido poderia ser formulado perante a autoridade judiciária
nesse contexto? Caso não se tenha informação acerca do cumprimento ou não da meta
previamente estabelecida, será o caso de solicitar a prestação de contas por parte do
Poder Público. Na hipótese de as informações sobre esse ponto existirem, mas não
existir qualquer dado sobre as razões que justificaram o abandono pelo Poder Público
daquela meta (e não sejam elas notórias), é possível cogitar de pedido nesse sentido, a
fim de que tais razões sejam divulgadas publicamente.

Lembre-se que o propósito dessa espécie de controle não é


interferir com a formulação ou com a execução da política pública ou punir o agente
público. Trata-se apenas de racionalizar a gestão das políticas públicas em matéria de
direitos fundamentais e incrementar o grau de responsabilidade política e social
(accountability), de modo a fornecer subsídios mais consistentes para o debate e o
controle sociais.

IV.4. Controle da eficiência mínima na aplicação dos recursos públicos

Um quinto objeto de controle jurisdicional possível é a


eficiência mínima na utilização dos recursos públicos investidos ou destinados a
políticas públicas relacionadas com direitos fundamentais. Independentemente da
eventual dificuldade de desdobrar a expressão em todas as suas conseqüências65, a
eficiência é, não há dúvida, um dever jurídico imposto ao Poder Público pelo próprio
texto constitucional66. Isso significa, como parece natural, que sua verificação pode ser
exigida judicialmente. Explica-se melhor com um exemplo.

65
V., dentre outros trabalhos sobre o assunto, Emerson Gabardo, Princípio constitucional da
eficiência administrativa, 2002.
66
CF/88, art. 37, caput, e art. 70.

34
Anualmente, no orçamento e, ao fim, na execução orçamentária,
o Poder Público destina determinada quantidade de recursos para o custeio de políticas
relacionadas, e.g., com educação, saúde e moradia. O objeto de controle de que se
cogita neste tópico não é a quantidade de recursos a ser investida – de que se tratou
acima – ou mesmo as prioridades eleitas para o investimento. Todas essas decisões, sob
a perspectiva desse controle, estariam a cargo do Executivo e do Legislativo, cada qual
no âmbito de suas competências. O controle aqui sugerido tem como objeto apenas o
que se fez, afinal, com os recursos destinados pelo Poder Público a determinada área.

Imagine-se que um Município hipotético X declara, em seu


relatório de execução orçamentária, haver investido R$ 1.000.000,00 (um milhão de
reais) em saúde no ano de 2005. As questões que surgem aqui são duas. Em primeiro
lugar: o que se fez especificamente com os R$ 1.000.000,00? Que resultado se
produziu com tais recursos? Em segundo lugar, e tendo em conta essa informação, será
o momento de apurar se existe uma relação de eficiência mínima entre os recursos
investidos e o resultado produzido (seja ele qual for). Teria havido desperdício,
ineficiência ou desvio? O resultado produzido concretamente pelo investimento de tais
recursos custa razoavelmente 1 milhão de reais?

Repita-se que esse controle não se ocupa do quanto deveria ou


não ter sido investido em determinada área ou mesmo de quais deveriam ter sido as
prioridades de investimento nesse particular. Deixando, por ora, a cargo dos Poderes
Públicos majoritários a definição desses elementos, o que se procura verificar é a
existência – ou não – de uma relação de eficiência mínima entre o que se investiu e o
resultado específico desse investimento. Há duas observações a fazer sobre a questão.

O controle da eficiência eventualmente poderá exigir o recurso a


parâmetros externos, obtidos junto ao mercado, para que seja possível aferir qual o
custo real, ainda que aproximado, dos bens e serviços produzidos afinal pelo Poder
Público. Suponha-se que, com o R$ 1.000.000,00 referido acima, o Município X afirme
ter construído a escola Y e incrementado a qualidade da merenda escolar das cinco
escolas já existentes na região, atendendo a um total de 800 crianças. Pois bem: quanto

35
deveria custar, em geral, uma edificação do porte da escola Y e, quanto custa, também
em média, a melhoria introduzida na merenda escolar? O juiz, por certo, não terá essa
informação, mas poderá obtê-la por meio do auxílio de peritos ou experts. A situação
não é diversa de tantas outras que cabe ao Judiciário conhecer e decidir. Esta a primeira
observação relevante.

A segunda observação envolve a noção de eficiência, embora


não seja o caso aqui de examinar o tema com maior profundidade. A doutrina
especializada visualiza na eficiência um dever geral de a Administração otimizar o
emprego dos meios disponíveis para, com eles, obter os melhores resultados possíveis
relevantes para o interesse público67. É certo que os meios disponíveis não se resumem
a recursos financeiros: eles envolvem tempo, urgência, recursos humanos, dentre outros
ativos relevantes. Nada obstante, a economicidade – isto é: a relação custo/benefício
sob uma perspectiva financeira – será sempre um aspecto importantíssimo a ser
examinado no contexto da eficiência. O tema é da maior atualidade e dispensa maiores
comentários68.

Ainda sobre a noção de eficiência, também é certo que a


avaliação acerca do que é – ou, mais precisamente, do que foi – eficiente ou não muitas
vezes produzirá zonas de certeza negativa, zonas de certeza positiva e também as
chamadas “zonas de penumbra”69. Dito de outro modo, algumas opções dos Poderes
Públicos poderão facilmente ser descritas como ineficientes (zona de certeza negativa),
outras como eficientes (zona de certeza positiva), ao passo que em relação a outras
haverá dúvida fundada sobre seu status, sobretudo tendo em conta – e esse é também
um aspecto importante – as circunstâncias que cercavam e pressionavam o
administrador (e eventualmente também o Legislador) no momento em que tomou a

67
Não se vai aqui tratar da distinção, já corrente hoje, entre interesse público primário e
secundário. Sobre o assunto, veja-se Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito
administrativo, 2003, p. 57 e ss.. Fica apenas o registro de que o dever de eficiência se dirige,
primordialmente, à realização do interesse público primário.
68
Lembre-se mais uma vez que não se está excluindo aqui a possibilidade de controle de
eficiência em termos mais abrangentes.
69
Gustavo Binenbojm, Uma teoria do direito administrativo – Direitos fundamentais, democracia e
constitucionalização, 2006, p. 211 e ss..

36
decisão que agora o Poder Judiciário examina.

A possibilidade de controle da eficiência mínima das políticas


públicas, antes de outros desenvolvimentos maiores e mais aprofundados, envolverá
sobretudo o aspecto da economicidade, de modo a verificar o emprego adequado dos
recursos no contexto das políticas públicas direcionadas (ou supostamente
direcionadas) à realização dos direitos fundamentais. Esse controle, é claro, tem por
objetivo principal eliminar as zonas de certeza negativa na matéria. Isto é: impedir –
ou, no mais das vezes apenas punir, já que impedir em caráter preventivo nem sempre
será viável – condutas claramente ineficientes ou mesmo a malversação criminosa do
dinheiro público.

Trate-se agora, também aqui, dos pedidos a serem formulados.


No âmbito dessa espécie de controle poderá ser necessário, como já referido, veicular
pedidos de natureza cautelar preparatória. Isso porque, caso não haja informação
disponível sobre o tema, é possível cogitar de pedidos relacionados com a obtenção de
informação acerca dos recursos investidos e do destino desses recursos. Em uma fase
seguinte, demonstrada, por desventura, a existência de condutas ineficientes, será o
caso de aplicar as sanções cabíveis aos responsáveis70.

IV.5 Objetos controláveis e as críticas examinadas

Antes de examinar o tema das modalidades de controle – objeto


do subtópico seguinte – será útil fazer algumas observações sobre a forma como cada
um dos objetos controláveis referidos acima se relaciona com as críticas descritas
inicialmente.

Os dois primeiros objetos, examinados em conjunto no item


IV.1., são, no plano abstrato, o conteúdo das metas a serem fixadas pelos Poderes

70
A Lei nº 8.666/93 prevê sanções que, em tese, poderiam ser aplicáveis, bem como a Lei nº
8.429/92 (Lei de Improbidade), dentre outras.

37
Públicos e, em concreto, a existência ou não, de fato, do resultado final esperado das
políticas públicas. Como referido, essa espécie de controle exigirá a definição, do
ponto de vista teórico, das metas consideradas juridicamente obrigatórias e, na mesma
linha, do resultado final esperado das políticas públicas vinculadas à realização dos
direitos fundamentais. Isto é: o controle jurisdicional desses dois objetos interfere com
o próprio conteúdo das políticas públicas representando, portanto, a maior “invasão” no
espaço próprio dos demais Poderes. Por isso mesmo, as críticas examinadas no início
deste estudo incidirão com maior intensidade nesse ambiente. Há algumas outras
questões a considerar nesse particular.

Como já mencionado anteriormente, as críticas referidas terão


maior ou menor relevância na hipótese dependendo do conteúdo que se venha a atribuir
às metas ou ao resultado final esperado das políticas públicas em questão. No que diz
respeito às duas primeiras críticas – derivadas dos debates da teoria da Constituição e
da discussão filosófica –, se esse conteúdo encontrar respaldo consistente no próprio
texto constitucional e constituir-se de bens considerados essenciais para a dignidade
humana e para o próprio funcionamento do regime democrático, elas perderão boa
parte de seu fundamento.

Nessas circunstâncias, o argumento democrático-majoritário,


fundamento central da primeira crítica, não poderá contrapor-se com sucesso a essa
espécie de controle, uma vez que o parâmetro com base no qual as metas e o resultado
final das políticas públicas serão controlados corresponde a condições básicas para a
própria deliberação democrática. A idéia igualitarista e relativista, que dá suporte
especial à crítica filosófica, também não tem condições de confrontar um parâmetro
diretamente vinculado a uma opção valorativa boa, a rigor assim reconhecida pela
comunidade no texto constitucional: a dignidade humana e sua centralidade no sistema
jurídico e estatal.

Quanto à crítica operacional – a terceira das críticas examinadas


– há duas notas a fazer. Em primeiro lugar, não existirá “macro-justiça” sem “micro-
justiça” ou justiça individual. A “macro-justiça” – assim como a clássica noção de

38
interesse público71 – não existe como um conceito etéreo, desvinculado da realidade e
das pessoas concretamente consideradas. Assim, se determinados bens são
considerados indispensáveis para a dignidade humana em uma dada sociedade, a
atribuição de tais bens às pessoas – as múltiplas “micro-justiças” – formarão
necessariamente um dos conteúdos obrigatórios da “macro-justiça”, de tal modo que, se
esta última não incluir tais prestações em seu bojo, haverá uma injuridicidade em sua
concepção. A segunda nota a fazer, na verdade, envolve as modalidades de controle –
se individual, coletiva ou abstrata – tema que será examinado de forma específica
adiante.

Um último registro ainda sobre esses dois objetos de controle. A


jurisprudência brasileira está familiarizada com o que se descreveu como “controle do
resultado final das políticas públicas”. São freqüentes as decisões que condenam o
Poder Público, e.g., a custear medicamentos e tratamentos médicos não disponíveis na
rede pública de saúde72. Tais decisões, por natural, assumem que o oferecimento de tais
bens constitui um resultado necessário das políticas públicas em matéria de saúde – um
dever jurídico – de modo que, seu não oferecimento, constituiria um ilícito a ser sanado
pelo Judiciário.

Ora, se o oferecimento de tais bens à população é um dever


jurídico, o Poder Público estaria igualmente obrigado a fornecê-los em cartér geral. E
se ele não o faz, seria perfeitamente possível impor-lhe o cumprimento desse dever

71
Sobre o tema, veja-se, por todos, Daniel Sarmento (Org.), Interesses públicos versus interesses
privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público, 2005.
72
STJ, DJU 07 out. 2002, RMS 13452/MG, Rel. Min. Garcia Vieira: “Constitucional e
Administrativo. Mandado de Segurança. Objetivo: reconhecimento do direito de obtenção de
medicamentos indispensáveis ao tratamento de retardo mental, Hemiatropia, epilepsia,
tricotilomania e transtorno orgânico da personalidade. Denegação da ordem. Recurso ordinário.
Direito à saúde assegurado na constituição federal (art. 6º e 196 da CF). Provimento do recurso e
concessão da segurança”; STJ, DJU 04 set. 2000, RMS 11183/PR, Rel. Min. José Delgado:
“Constitucional. Recurso ordinário. Mandado de segurança objetivando o fornecimento de
medicamento (riluzol/rilutek) por ente público à pessoa portadora de doença grave: esclerose
lateral amiotrófica - ELA. Proteção de direitos fundamentais. Direito à vida (art. 5º, caput, CF/88) e
direito à saúde (arts. 6º e 196, CF/88)”; STJ, DJU 09 fev. 2004, MS 8740/DF, Rel. Min. João Otávio
de Noronha: “Administrativo. Mandado de segurança. Doença congênita grave. Mielomeningocele
infantil. Necessidade de tratamento por meio de aparelho terapêutico não fabricado no país. Dever
do estado. Direito fundamental à vida e à saúde”; e STJ, DJU 23 ago. 2004, REsp 625329/RJ, Rel.
Min. Luiz Fux: “Recurso especial. SUS. Fornecimento de medicamento. Paciente com bócio difuso
tóxico com hipertiroidismo. Direito à vida e à saúde. Dever do Estado”.

39
jurídico no contexto do seu planejamento, por meio do controle jurídico de suas metas.
Mais que isso, o controle das metas em abstrato, e não do resultado em concreto, traria
a vantagem adicional de beneficiar de forma equivalente todos os indivíduos que
precisem do tal medicamento ou do tratamento médico, e não apenas aqueles que
recorreram ao Judiciário. Pela memsa razão, no entanto, se se entender inviável, do
ponto de vista teórico, exigir a inclusão de determinado bem como uma meta pública
em caráter abstrato, dúvida semelhante deverá existir acerca da sua exigibilidade em
concreto73.

Trate-se, agora, do controle da quantidade de recursos a ser


investida. Como referido, já existem alguns parâmetros normativos objetivos na
matéria – contidos no próprio texto constitucional – e, quanto a eles, o controle não se
sujeita a maiores questionamentos. Ademais, a interferência que essa espécie de
controle produz no espaço de escolhas dos poderes majoritários é substancialmente
menor, já que não se ingressa no debate acerca das políticas específicas a serem
desenvolvidas em cada caso. Sob as rubricas gerais, e.g., educação, saúde ou mesmo
direitos fundamentais, o Poder Público estará livre para destinar, às políticas que
entender mais adequadas, os recursos mínimos a serem investidos nesse setores.

As duas primeiras críticas, portanto, não assumem maior vulto


nesse contexto. A construção de novos parâmetros, é certo, poderá ensejar alguma
discussão, dependendo de sua consistência dogmática. Nada obstante, parece certo que
em muitos casos será perfeitamente plausível sustentar relações necessárias de
proporcionalidade entre diferentes despesas públicas. Quanto à crítica operacional, sua
pertinência é relativa, já que a discussão envolve a alocação de recursos em caráter
geral e abstrato, previamente, portanto, à definição das micro e macro-justiças. Nesse
contexto, tanto a definição da macro-justiça, pelos Poderes Públicos, como a realização
eventual da micro-justiça, pelo magistrado, terão de considerar esse elemento, isto é: a
quantidade de recursos disponíveis e destinada para cada finalidade.

73
Esse tema, dentre outros, será examinado com profundidade na dissertação de mestrado de
Eduardo Mendonça, em elaboração no âmbito do programa de Pós-Graduação da Faculdade de
Direito da UERJ. É esperar.

40
A próxima modalidade de controle envolve a verificação do
cumprimento das metas fixadas pelo próprio poder público. Como se referiu acima,
muitas vezes a dificuldade será prévia: a ausência de metas, mas não cabe aprofundar
esse aspecto da questão aqui. Existindo as metas, a obrigação de prestar contas acerca
de seu cumprimento, bem como das razões para o seu eventual descumprimento, não
sofre, a rigor, qualquer repercussão das críticas acima. Note-se que não se estará, aqui,
tomando qualquer decisão propriamente dita, de modo que não há que se discutir sobre
a ampliação do espaço da Constituição – em detrimento do espaço da deliberação
democrática – ou da legitimidade do Judiciário para interferir em políticas públicas.
Também não são relevantes as dificuldades operacionais a que se fez referência acima.

Na verdade, é possível descrever o controle que incide sobre


essa espécie de objeto como “neutro” do ponto de vista das críticas descritas. Por isso
mesmo, seu proveito é muito mais mediato que imediato: cuida-se, como registrado, de
fornecer subsídios para o controle social. A crítica que se poderia formular é outra.
Uma grande quantidade de ações judiciais veiculando essa espécie de pedido acabaria
por exigir uma quantidade considerável de trabalho do Poder Público (na preparação
das informações a serem apresentadas), dispersando suas energias e deslocando-o do
foco principal de sua atuação. Ademais, poder-se-ia argumentar, os Tribunais de
Contas são órgãos cujo papel é levar a cabo essa espécie de controle. Mobilizar duas
estruturas estatais – os Tribunais de Contas e o Judiciário – para o mesmo propósito
seria pouco adequado e eficiente. Examine-se cada uma das observações.

De fato, um grande volume de demandas na linha do que se


acaba de descrever poderá desencadear uma quantidade de trabalho considerável e
imprevisto. Não convém esquecer, porém, que esse quadro poderia ser evitado uma vez
que o Poder Público houvesse prestado contas adequada e publicamente acerca de suas
decisões, na linha do que lhe impõe a Constituição. O recurso ao Judiciário justifica-se
diante da omissão do Poder Público nesse particular. É possível especular ainda que,
diante de um conjunto de demandas dessa natureza, e para evitá-las, os agente públicos
acabem por ser induzidos a prestar contas em caráter geral. O objetivo dessa espécie de

41
controle terá então sido alcançado: fornecer elementos concretos para o debate e o
controle sociais. Não faria sentido, em face da omissão do Poder Público, bloquear-se a
intervenção judicial pelo fato de suas eventuais decisões gerarem “trabalho” para as
autoridades públicas. De todo modo, como se verá adiante, esse “trabalho” poderá ser
bastante reduzido em função do ambiente processual no qual o controle venha a se
desenvolver.

Quanto ao Tribunal de Contas, há alguns registros a fazer. Os


Tribunais de Contas não são instâncias judiciais e suas decisões não são finais,
podendo sempre ser revistas pelo Poder Judiciário. Nada obstante isso, seria pouco
racional, de fato, que duas estruturas estatais estivessem, ao mesmo tempo, se
ocupando da mesma atividade. A questão, porém, não se coloca exatamente nesses
termos. Em primeiro lugar, embora admita outros parâmetros – a saber: legitimidade e
economicidade (CF, art. 70, caput) –, o controle desempenhado pelos Tribunais de
Contas concentra-se na verificação da legalidade estrita das contas públicas.

Em segundo lugar, os Tribunais de Contas sofrem com uma


vicissitude que decorre de sua própria estrutura. Embora em muitas ocasiões seus
corpos técnicos levem a cabo investigações acuradas, seus conselheiros – cuja
nomeação, como se sabe, e ao menos até agora, tem caráter marcadamente político –
nem sempre estão dispostos a deliberar a favor ou contra determinado governo. Em
terceiro lugar, não é incomum que as investigações dos Tribunais de Contas sejam
particularmente demoradas, ultimando-se após o término dos mandatos dos agentes
responsáveis pelas decisões examinadas. Essa circunstância acaba por impedir que as
eventuais informações obtidas subsidiem o controle social de que se tratou acima. Seja
como for, parece razoável sustentar que, existindo investigação específica e tempestiva
em curso junto ao Tribunal de Contas competente, o controle judicial deverá aguardar
seu término. Sem prejuízo, é claro, de as eventuais conclusões da Corte de Contas
serem submetidas ao escrutínio judicial.

Por fim, algumas observações sobre o quinto objeto controlável:


a eficiência mínima das políticas públicas, entendida aqui como economicidade. A

42
primeira observação diz respeito aos próprios contornos do objeto em questão. Como
referido, não se cuida de avaliar a propriedade ou a adequação da política escolhida
pelo Poder Público em face de outras possíveis ou hipotéticas. Embora a noção mais
geral de eficiência admita, por certo, essa espécie de controle, não é dele que se cuida
aqui. Como referido, por eficiência mínima se quer significar apenas o aspecto
financeiro da questão, isto é: a relação de economicidade entre os recursos destinados à
política e o custo médio de mercado das ações levadas a cabo no contexto dessa
iniciativa estatal.

Note-se, portanto, que, na mesma linha do objeto anterior, não se


estará a interferir em qualquer decisão acerca do conteúdo das políticas públicas.
Ademais, os deveres de economicidade e eficiência decorrem do próprio texto
constitucional, constituindo, nessa linha, obrigações jurídicas impostas aos agentes
públicos em geral. Assim, as duas primeiras críticas discutidas neste estudo não têm
relevância nesse ambiente. A crítica operacional igualmente não é pertinente, já que
não se estará modificando nem o planejamento nem a execução dos planos concebidos
pelo Poder Público.

Uma última nota. Nem a Constituição nem a legislação prevêem


percentuais em abstrato a partir dos quais – tomando o valor de mercado dos bens e
serviços em discussão como parâmetros74 – haveria ineficiência mínima. Outras
figuras, que operam com uma espécie similar de raciocínio – como a noção de
superfaturamento prevista na Lei nº 8.666/93, art. 25, § 2º75, vários conceitos gerais
utilizados pela Lei de Improbidade (Lei nº 8.429/9276) e a idéia de onerosidade
excessiva, regulada pelo art. 478 e ss. do Novo Código Civil – igualmente não são
acompanhadas de parâmetros objetivos em abstrato. Essa circunstância, por natural,

74
Será preciso levar em conta, na avaliação desses dados, as particularidades do regime
contratual da Administração Pública.
75
Lei nº 8.666/93, art. 25, § 2º: “Na hipótese deste artigo e em qualquer dos casos de dispensa, se
comprovado superfaturamento, respondem solidariamente pelo dano causado à Fazenda Pública
o fornecedor ou o prestador de serviços e o agente público responsável, sem prejuízo de outras
sanções legais cabíveis”.
76
Veja-se, por exemplo, o art. 11 da Lei nº 8.429/92: “Constitui ato de improbidade administrativa
que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os
deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:”

43
não impede que tais conceitos sejam integrados e aplicados pelo magistrado à luz dos
casos concretos. O mesmo, portanto, poderá se passar com a noção de eficiência
mínima aqui em discussão.

Antes de tratar das modalidades de controle, cabe concluir este


tópico. Os dois primeiros objetos controláveis são aqueles que interferem de forma
direta com o conteúdo propriamente dito das políticas públicas. Sobretudo a espécie de
controle que lida com o resultado esperado dessas políticas, será ela, sem dúvida, a que
produz resultados mais rápidos e visíveis, no que diz respeito à proteção e à promoção
dos direitos fundamentais. Sem prejuízo dessas opções, as demais possibilidades de
controle, embora toquem o problema apenas de forma indireta, não devem ser
desprezadas. A capacidade que elas podem ter, a médio prazo, de fomentar um debate
político e social sério acerca do tema, na medida em que projetem dados concretos no
espaço público, não deve ser subestimada. Ademais, os deveres instrumentais impostos
ao Poder Público – o dever de investir determinada quantidade de recursos em
educação, o dever de prestar contas e o dever de eficiência mínima – são igualmente
jurídicos. Nada justifica que eles sejam ignorados ou que o Poder Judiciário não possa,
provocado, exercer sobre eles escrutínio.

IV.6. Modalidades de controle: individual, coletivo e abstrato

Em alguns momentos da exposição fez-se breve referência à


possibilidade de alguns dos controles descritos acima serem levados a cabo no âmbito
de ações individuais, coletivas ou mesmo no contexto do controle abstrato de
constitucionalidade de leis ou de atos do Poder Público. Cabe agora sistematizar a
questão. O ponto é especialmente importante por várias razões. É certo que decisões
proferidas no âmbito de processos coletivos – como, e.g., ações civis públicas – ou no
contexto das ações abstratas, de controle objetivo de constitucionalidade, produzem
efeitos muito mais abrangentes, atingindo a generalidade das pessoas no país ou em
determinada região. Efeito similar terá, do ponto de vista prático, decisões proferida em
sede de mandado de segurança contra ato ou omissão do Chefe do Executivo. Os

44
efeitos que tais decisões produzem terão algumas conseqüências.

Na hipótese de tais decisões interferirem diretamente com


deliberações dos demais Poderes acerca de políticas públicas, é certo que incidirão com
especial intensidade as duas primeiras críticas discutidas neste estudo (a saber: a
formulada pelas teorias da Constituição e a filosófica). Por outro lado, a discussão
coletiva ou abstrata traz diversas vantagens, tanto sob a ótica das críticas estudadas,
quanto do ponto de vista do sistema jurídico. Em primeiro lugar, a maior visibilidade
que o debate coletivo ou abstrato confere aos argumentos das críticas filosófica e da
teoria da Constituição deve ser encarada como um elemento positivo. Freqüentemente,
diante do drama individual do autor, é dificil levar a cabo uma reflexão equilibrada
sobre a questão.

Em segundo lugar, será mais fácil lidar com os argumentos da


crítica operacional nesse contexto do que seria no âmbito de ações individuais. Com
efeito, a discussão coletiva ou abstrata exige naturalmente um exame do contexto geral
das políticas públicas discutidas (a “macro-justiça”) – o que em geral não ocorre no
contexto de ações individuais –, e torna mais provável esse exame, já que os
legitimados ativos (Ministério Público e associações) terão melhores condições de
trazer tais elementos aos autos e discuti-los. Por fim, a discussão em sede coletiva ou
abstrata favorece a isonomia, evitando as distorções que os processos individuais
podem gerar na distribuição de bens dentro da sociedade, já que a solução produzida
será aplicável em caráter geral. Por isso mesmo, aliás, e como já se referiu, uma ação
coletiva ou abstrata é capaz não apenas de evitar um sem número de demandas
individuais, livrando o Judiciário de uma sobrecarga adicional, mas também os
próprios Poderes Públicos de responderem a uma quantidade significativa de ações
individuais.

Veja-se que as observações que se acaba de fazer – salvo no que


diz respeito à isonomia – são pertinentes apenas nas hipóteses em que as críticas
discutidas no início deste estudo sejam aplicáveis. Feitos esses registros prévios, será o
caso de relacionar brevemente cada um dos objetos controláveis já examinados com as

45
modalidades de controle aqui referidas.

O controle do resultado esperado das políticas públicas sempre


poderá se dar no âmbito de ações individuais: esta é, aliás, a modalidade de controle de
políticas públicas mais usual, atualmente, no Brasil. É bem de ver, no entanto, que
controle equivalente poderá ser levado a cabo no âmbito de ações coletivas. Assim,
e.g., a ausência de vaga no ensino fundamental em escola pública, pela inexistência de
estabelecimento de ensino na região, enseja ações individuais e coletivas, sendo que
nestas se poderá discutir os deveres de instalar o estabelecimento de ensino e de
resolver o problema emergencial dos titulares do direito de acesso à educação
fundamental gratuita, até que a escola esteja disponível. O mesmo raciocínio se aplica a
prestações de saúde que sejam consideradas juridicamente exigíveis. O indivíduo não
atendido pode, por certo, postular seu atendimento, mas também se pode discutir a
questão em caráter geral – com maior proveito, aliás – de modo a assegurar o
oferecimento do bem a todos os indivíduos que dele necessitem.

Como é fácil perceber, o controle coletivo do resultado esperado


das políticas públicas favorece uma solução geral, além de permitir uma discussão
mais concreta sobre os recursos disponíveis e o planejamento estatal como um todo. No
que diz respeito ao controle abstrato, após a regulamentação da ADPF (Lei nº
9.882/99), é possível sustentar, ao menos em tese, que a omissão inconstitucional do
Poder Público (a rigor, de qualquer nível da Federação), capaz de violar preceito
fundamental, poderá também ser objeto de controle por meio dessa ação abstrata de
competência originária do STF.

Quanto ao controle da fixação de metas por parte do Poder


Público, parece difícil visualizar a discussão do tema no âmbito de ações individuais,
tendo em conta a atual situação dogmática do processo civil relativamente à
legitimação ativa77. As ações coletivas poderão ser uma sede adequada para essa

77
Em sentido diverso do defendido pela teoria processual clássica sobre a matéria, v. Celso
Antonio Bandeira de Mello, Controle judicial dos atos administrativos, Revista de Direito Público
65:29/30, 1983: “Não cabe imaginar que normas postas em benefício da coletividade, mas que
proporcionam proveito individual não estejam a tutelar também e com igual proteção aqueles que

46
discussão. Do ponto de vista abstrato, se a lei orçamentária não inclui em seu bojo meta
que seria obrigatória por conta do texto constitucional, parece possível atacá-la por
meio de ação direta de inconstitucionalidade78 ou, se se entender que se trata de lei de
efeitos concretos, por meio de argüição de descumprimento de preceito fundamental79.

Que dizer do controle que tem como objeto a quantidade de


recursos a ser investida pelo Poder Público? Também aqui, parece certo que a
viabilidade de ações individuais seria questionada com base na falta de legitimidade
ativa dos indivíduos para discutirem o tema. As ações coletivas poderão com
tranqüilidade tratar do assunto, já que se cuida de típico direito difuso. Do ponto de
vista do controle abstrato, igualmente, uma vez que a destinação de determinada
quantidade de recursos para fim específico consubstancia uma regra constitucional, sua
inobservância gera invalidade que deve poder ser sanada ou por meio de ADIn (ou
representação por inconstitucionalidade) ou por meio de ADPF (assumindo que a
questão envolverá preceito fundamental).

Tanto o controle do atingimento ou não das metas fixadas pelo


Poder Público como o da eficiência mínima na aplicação dos recursos públicos terão
como espaço próprio de discussão as ações coletivas. As ações individuais, como já
referido, esbarram na dificuldade quanto à legitimação ativa. A inadequação das ações

delas sacariam os benefícios previstos. Não cabe supor que o fato de uma regra ser editada tendo
como alvo um interesse da coletividade, ao ser desatendida não esteja desatendendo, com a
mesma intensidade, os interesses concretos e específicos daqueles indivíduos que fazem parte
daquela mesma coletividade. (...) De outra parte, negar proteção jurisdicional nos casos em que o
pleito se assenta em hipóteses excedentes da noção restrita de direito subjetivo corresponderia a
assumir posição antinômica aos vetores interpretativos que são impostos pela lógida do Estado de
Direito. É forçoso, pois, reconhecer que em todos os casos em que a violação da ordem jurídica
pela Administração acarretar um prejuízo pessoal para o administrado – esteja ele colocado em
situação relacional concreta ou em situação genérica, objetiva – há violação a um direito seu,
assistindo-lhe, de conseguinte, obter proteção jurisdicional para ele. (negrito no original).”
78
A ADIn seria cabível apenas em face de leis orçamentárias federais e estaduais, já que não
cabe ADIn em face de leis municipais. Estas poderiam ser discutidas em abstrato em face das
Constituições dos Estados-membros, dependendo de seu teor.
79
A tradicional jurisprudência do STF entendia incabível ADIn contra lei orçamentária por
visualizar nela lei de efeitos concretos (DJU 03 abr. 1998, QO na ADIn 1640-DF, Rel. Min. Sydney
Sanches). No julgamento da ADIn 2.925-DF (DJU 19 dez. 2003, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie, Rel. p/
acórdão Min. Marco Aurélio), porém, vários Ministros registraram a conveniência de modificar esse
entendimento, tanto assim que a ADIn foi conhecida. Parece, no entanto, que o tema ainda se
encontra em discussão na Corte.

47
abstratas nesse caso parece decorrer da circunstância de que tais espécies de controle
não discutem a validade de deliberações vigentes, isto é: deliberações do Poder Público
que se encontram produzindo efeitos e continuarão a produzi-los no futuro. Ao
contrário, examinam-se aqui deliberações passadas e pontuais, cuja eficácia a rigor já
se esgotou. Não se cuida aqui, portanto, da tutela da ordem jurídica em vigor – objeto
típico das ações abstratas –, mas do controle específico de atos passados do Poder
Público. Ademais, tais controles podem exigir um volume considerável de instrução
probatória, a fim de verificar em concreto, e.g., se as metas foram ou não atingidas,
qual o custo médio dos bens contratados pelo Estado, etc. Embora já se admita alguma
instrução no âmbito de ações abstratas80, essa não parece ser a sede própria para
discutir a verificação ou não de fatos controversos alegados pelas partes.

Seja como for, o que se pode concluir quanto a este ponto é que,
sem prejuízo das ações individuais, que constituem um espaço importante de exercício
da cidadania no âmbito de um Estado de Direito, as ações coletivas e as ações abstratas,
quando cabíveis, constituem um meio valioso para a discussão jurídica acerca das
políticas públicas.

V. CONCLUSÕES

Parece próprio, a guiza de conclusão, compendiar as principais


idéias desenvolvidas neste estudo. Lembre-se que o trabalho perseguia dois objetivos,
autônomos porém interligados: (i) examinar algumas críticas formuladas à
possibilidade de controle jurídico das políticas públicas e (ii) iniciar a discussão acerca
de alguns mecanismos de controle jurídico das políticas públicas direcionadas à
promoção dos direitos fundamentais que, ao invés de esvaziarem ou substituirem o
controle político-social na matéria, fossem capazes de fomentá-lo.

Tendo em conta o primeiro objetivo, foram examinadas três

80
V. Lei nº 9.868/99, art. 9º e Lei nº 9.882/99, art. 6º.

48
críticas freqüentemente formuladas à possibilidade de controle jurídico e jurisdicional
das políticas públicas: (a) a crítica formulada pela teoria da Constituição – que
questiona a validade de a interpretação constitucional invadir espaços próprios da
política majoritária; (b) a crítica filosófica – que discute a legitimidade essencial (não
apenas democrática) do magistrado para impor suas deliberações sobre aquelas
formuladas pelos representantes das maiorias; e (c) a crítica operacional, que se opõe
ao controle por entender que o Judiciário não é capaz de compreender o contexto global
das políticas públicas, nem de lidar com ele, e, ao pretender interferir nesse universo,
acaba gerando distorções.

As duas primeiras críticas têm sua importância relativizada na


medida em que: (i) a discussão envolva direitos que constituem pressupostos para o
funcionamento da deliberação majoritária e sem os quais o controle social das políticas
públicas dissipa-se no ciclo corrupção – ineficiência – clientelismo; e (ii) o controle
jurisdicional das políticas públicas tenha por fundamento elementos normativos
específicos, padrões ou consensos morais ou conhecimentos técnico-científicos
consolidados. A terceira crítica é mais complexa. Os diferentes objetos e modalidades
de controle podem, no entanto, neutralizar em boa medida sua pertinência.

Considerando o tema políticas públicas promotoras de direitos


fundamentais, propôs-se neste estudo cinco objetos que podem sofrer controle jurídico
e jurisdicional (sem prejuízo de outros). São eles (i) a fixação de metas e prioridades
por parte do Poder Público em matéria de direitos fundamentais; (ii) o resultado final
esperado das políticas públicas; (iii) a quantidade de recursos a ser investida em
políticas públicas vinculadas à realização de direitos fundamentais, em termos
absolutos ou relativos; (iv) o atingimento ou não das metas fixadas pelo próprio Poder
Público; e (v) a eficiência mínima (entendida como economicidade) na aplicação dos
recursos públicos destinados a determinada finalidade.

Discutiu-se em relação a cada um desses objetos suas relações


com as três críticas referidas (e ainda com outras) e os pedidos que poderiam ser
formulados em demandas veiculando tais pretensões. Como é fácil perceber, os dois

49
primeiros objetos de controle se ocupam do conteúdo das políticas públicas em si, ao
passo que os três últimos pretendem controlar aspectos do processo de decisão e
execução das políticas públicas levado a cabo pelo Poder Público. Por fim, tratou-se
brevemente das modalidades de controle, isto é, do ambiente processual – individual,
coletivo ou abstrato – no qual as diferentes discussões descritas poderiam ter lugar,
bem como suas vantagens e conveniências, considerando os cinco objetos de controle.

Retorne-se agora à biblioteca pública do Estado “Z”. O cidadão


“W”, a essa altura, já se foi: ele obteve os dados que buscava e está adequadamente
informado para tomar suas decisões. A biblioteca já encerrou o expediente. O Estado
“Z” ainda não é aqui: mas um dia pode ser.

50

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