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FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do Direito e Justiça na obra de Hans
Kelsen. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2006.

1ª parte

Parte I: Pressupostos

I. A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO KELSENIANO

1. O Positivismo Jurídico

Kelsen, apesar de ser classificado como positivista, possui posições fundamentais que não
podem ser confundidas com as do positivismo jurídico latu sensu1:

 Para os positivistas, o direito passa a ser visto como uma ordem normativa puramente
técnica. Ao cientista do direito não interessa criticar e discutir os valores que lhe
conformam o objeto de estudo. O positivismo apresenta uma postura abertamente
preventiva quanto a valores, o que acaba colaborando para o desgaste da dimensão
axiológica, na verdade inseparável do direito.
 Kelsen: Entende que a axiologia não é vã, mas apenas não deve ser tratada no âmbito
estrito da ciência do direito2.

Apesar dessas diferenciações, o positivismo jurídico foi importantíssimo para a


conformação da teoria jurídica kelseniana e, por isso, veremos suas principais características3.

Os princípios do positivismo jurídico decorrem logicamente do princípio fundamental do


positivismo filosófico [Comte, 1798-1857  ≠ do positivismo jurídico, não confundir!] = o
ÚNICO conhecimento verdadeiro é o científico [Opinião de Miranda Afonso]4.

Do arcabouço teórico do positivismo jurídico derivam [Miranda Afonso]:

1º A negação de validade a todo o jusnaturalismo


2º Negação da existência de valores objetivos para além daqueles encampados pelas
normas jurídicas vigentes
3º Negação de um critério absoluto (incontrastável, objetivamente verificável) de
justiça

Positivismo Jurídico [Sentidos]:

1
P. 18
2
p. 16.
3
P. 18.
4
P. 20

1
FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

 Método ou forma de estudo do direito: Sentido + antigo e + usual oriundo dos


romanos, glosadores de Bolonha, etc..

Direito visto de maneira dúplice: a) justiça; b) lei escrita. Daí se origina a distinção entre
direito natural [proveniente de uma esfera transcendente e hierarquicamente superior] e direito
positivo [direito posto, estabelecido por uma autoridade].

 Teoria ou doutrina sistematizada do direito: A partir de agora o autor irá se


preocupar com ESTE sentido, do qual KELSEN é o principal expoente5.

Segundo Bergbohm, o positivismo, em definição estrita, seria uma ciência do direito que
tem um único e exclusivo objetivo: estudar o direito positivo, ou seja, o conjunto de normas em
vigor [NÃO ESTUDA: fundamentos ou razões do direito]. É uma teoria científica do direito e não
apenas um pensamento jurídico rival do jusnaturalismo6.

 Elemento comum às várias doutrinas positivistas [Bobbio e García Maynez]:


NEGAÇÃO DO DIREITO NATURAL.
I. Esses autores entendem que isso
é mais importante do que buscar uma
teoria unitá ria para o movimento.

Distinções7 Direito Natural Direito Positivo


No Não-escrito Escrito
pensamento Imutável no espaço e no tempo Mutável no espaço e no tempo
jurídico
greco- Universal: vale Particular: vale apenas em
romano incondicionalmente em todos os determinados locais e sob certas
lugares. circunstâncias.
Funda-se na natureza das coisas Radica-se na potestas populus
[physis], na vontade divina ou na [BOBBIO]
razão humana abstrata, conforme
se trate do jusnaturalismo antigo,
cristão-medieval ou moderno.
[WELSEN]
Quanto ao Dado pela RAZÃO É reconhecido por meio de
modo de DECLARAÇÃO DE
conheciment VONTADE ALHEIA.
o do direito
A conduta regulada pelas normas A conduta regulada pelas normas
Problemática jusnaturalistas é boa ou má em si de direito positivo passa a ser tida
valorativa mesma. como boa ou má somente após a
incidência normativa.

5
p. 23
6
p. 23-24.
7
P. 26.
2
FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

Bobbio entende que, no atual estágio da ciência jurídica, o positivismo pode ser entendido
sob 3 formas8:

1ª. Metodologia: Estuda o direito de forma neutra, na qual não participam juízos de
valor, mas juízos de validade [não é a justiça que faz a norma válida, mas o
preenchimento de certas exigências formais  formalismo jurídico]9.

2ª. Teoria: A teoria positivista abarca 5 searas diversas:


 Definição de direito: o fenômeno jurídico tem sua especificidade na COAÇÃO.
 Fontes do direito: Lei
 Teoria da norma jurídica: Comando dirigido à conduta de alguém, donde decorre a
teoria imperativista do direito.
 Teoria do ordenamento jurídico: as normas jurídicas estão organizadas em um
sistema coerente (isto é, no qual inexistem antinomias, ou seja, contradições e
contrariedades entre as normas jurídicas), completo (não há lacunas reais, apenas
aparentes) e unitário (todas as normas jurídicas do sistema são unidades que podem
ser remetidas ao seu fundamento formal de validade, a norma fundamental).

 Teoria da interpretação: Prevalece o elemento declarativo sobre o produtivo ou


criativo. A interpretação, que para o positivismo jurídico é também integração e
construção do sistema, assume um nítido viés mecanicista.

3ª. Ideologia: Bifurca-se em 2 orientações opostas:


 Versão EXTREMADA do positivismo ético [ou teoria da obediência absoluta à
lei]: Raiz  Alemanha, séc. XIX, principalmente nos intérpretes de HEGEL. A lei
deve ser obedecida incondicionalmente devido ao simples fato de ser lei [Gesetz ist
Gesetz], não se admitindo qualquer crítica à justiça da norma jurídica.
 Versão MODERADA do positivismo ético [BOBBIO e KELSEN]: O ponto de
partida é idêntico aos extremados  o direito tem valor enquanto tal, não
importando seu conteúdo. São, porém, diversas as consequências, pois, no
moderado, a norma jurídica não tem validade sacramental, absoluta ou indiscutível,
sendo apenas um meio para resguardar a ordem social.

O autor deste livro entende que na atualidade há uma postura agressiva em relação ao
positivismo jurídico pelo fato dele ter, supostamente, preparado o caminho e legitimado os sistemas
autocráticos e totalitários do séc. XX, crítica que seria apenas parcialmente verdadeira, o que será
visto mais adiante na obra10.

2. O Dualismo Kantiano: Ser (Sein) e Dever-ser (Sollen)

A ciência do direito, como ciência normativa, ocupa-se de normas, expressões objetivas de


dever-ser que visam influenciar condutas no mundo dos fatos (ser). Segundo o modelo kelseniano a

8
P. 27 a 29
9
P. 27.
10
P. 30.

3
FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

ciência do direito descreve – lançando mão de proposições jurídicas – prescrições, ou seja, normas
jurídicas que são expressões objetivas de dever-ser.

Apesar da herança kantiana, Kelsen tem uma visão diferente das citadas categorias. Kant
entende que a distinção entre ser e dever-ser não é apenas lógico-formal, mas também fundamenta
a própria ética.

Quando Kelsen fala do dever-ser (Sollen), não o confunde com o dever (Pflicht) estrito da
moralidade. O dever-ser tem significado normativo (lógico-formal), sendo muito mais amplo que
o dever moral11.

Para Kelsen, toda a norma jurídica se apresenta sob a forma hipotético-condicional, e a


vinculação feita entre as duas proposições é realizada por um cópula (partícula de ligação) que não
se exprime pelo verbo ser, mas por um dever ser12.

Preposição hipotética da norma jurídica: “Se A é, deve ser B”.

O autor entende que o ser e o dever-ser em Kelsen não são duas esferas completamente
separadas, pois o dever-ser visa a atuar em um ser.

Exemplificando13:

 Quando um sinal de trânsito brilha há uma norma jurídica que confere a tal fato do
mundo do ser um sentido objetivo de dever-ser: “tu deves parar o automóvel”.
 Por outro lado, o dever-ser não deriva de um ser: o fato de existirem homicídios não
cria a norma “matar” ou “não-matar” alguém, pois a norma deriva do querer humano.
 O ser não deriva do dever-ser: da existência da norma “não matar” não decorre nenhum
dever para o mundo fático-natural, pois a simples edição da norma não impede que as
pessoas sejam mortas.

A norma busca o objetivo contrafactual e a sanção é elemento psicológico importante para


tanto.

Contudo, o dever-ser normativo jamais se materializa completamente no mundo do ser,


pois são esferas diversas. Se isso ocorresse não haveria necessidade do direito. Nesse sentido, todo
o direito é contrafactual.

3. A Separação Weberiana entre Ciência e Política

Elemento fundamental para a compreensão do positivismo kelsiano é o seu particular


posicionamento quanto às funções da ciência e da política. Para Kelsen e o positivismo jurídico em
geral, a ciência tem uma missão exclusivamente cognoscitiva, não possuindo competência para
impor a observância de certos valores sociais em detrimento de outros. Ao jurista cabe apenas

11
P. 32
12
p. 33.
13
P. 35.

4
FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

descrever os valores existente em dada sociedade, não julgá-los e qualificá-los como “justos” ou
“injustos”. A ciência não exerce a função de autoridade, própria do poder político constituído14.

Contudo, tal posicionamento não nasce na obra de Kelsen, mas sim corresponde a uma
reivindicação geral da ciência do primeiro quartel do século XX, que já não estava disposta a
justificar e a legitimar sistemas políticos como vinha fazendo até então. É com o sociólogo e
cientista político Max Weber que a separação entre ciência e política, entendidas como duas esferas
conceitual e funcionalmente diversas, ganha densidade15.

Weber entende que o político assume compromissos com as mais diversas ideologias, pois
tal lhe é natural e até mesmo necessário. Por outro lado, o único compromisso do cientista seria com
a busca da verdade16.

II. O NORMATIVISMO JURÍDICO DE HANS KELSEN

1. A Norma Fundamental e a Ciência Jurídica

Para Miranda Afonso, dois grandes propósitos norteiam a obra kelseniana17:

a) Construção de uma ciência do direito autônoma e independente


b) Extração das últimas consequências dos postulados positivistas

Um elemento que diferencia a doutrina de Kelsen do positivismo jurídico lato sensu é a sua
profunda fundamentação filosófica, como a ideia de norma fundamental como hipótese lógico-
transcendental e a distinção entre ser e dever-ser18.

Kelsen pergunta-se como é possível conhecer o fenômeno social chamado direito. É preciso
pensar num pressuposto lógico-transcendental capaz de fundamentar toda a ordem jurídica 19. Surge
a norma fundamental [Grundnorm]  NÃO é a Constituição, não é uma norma positiva20!!

A norma que confere a validade a todo o sistema é a norma fundamental, pressuposto


hipotético lógico-transcendental para que se possa conhecer cientificamente o direito21.

Por ser um pressuposto lógico, a norma fundamental só pode ser expressa em termos
condicionais: se reconhecemos uma ordem jurídica como válida e globalmente eficaz,
necessariamente devemos pressupor uma norma fundamental que lhe confira fundamento22.

14
P. 38.
15
P. 39.
16
P. 40.
17
P. 60.
18
P. 61
19
p. 64
20
p. 68
21
p. 65-66.
22
P. 69.

5
FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

Bobbio entende que a norma fundamental representa uma conveniente forma de clausura do
sistema jurídico-positivo que, se não se quer metafísico, não pode buscar seu fundamento de
validade em uma esfera transcendente.

Bobbio sustenta que a fundamentação da norma fundamental não seria problema jurídico,
mas sim metafísico:

“À pergunta ‘sobre o que ela se funda’ deve-se responder que ela não tem
fundamento, porque, se tivesse, não seria mais a norma fundamental, mas
haveria outra norma superior, da qual ela dependeria. Ficaria sempre aberto
o problema do fundamento da nova norma, e esse problema não poderia ser
resolvido senão remontando também a outra norma. (...)”

Ferraz Jr. entende que Bobbio se afasta de Kelsen nesse ponto, pois entende que a norma
fundamental deve se identificar com um ato de poder23.

Dessa forma, a norma fundamental deixa de ser norma e passa a integrar a esfera do ser: é
simples ato de poder. Contudo, um dever-ser (a ordem normativa) não pode derivar de um ser (ato
de poder). De um dever-ser subjetivo (simples fato de alguém querer certa conduta) não decorre
nenhum dever jurídico de obediência para os indivíduos. É preciso um dever-ser OBJETIVO para
que surja um dever jurídico à nossa conduta. Por isso, a norma fundamental deve ser pensada
(pressuposta) como condição lógico-transcendental24.

A questão deve ser repensada nos seguintes termos: a condição para se descrever o
fundamento de validade é a eficácia global do ordenamento que se pretende ver fundamentado.

A eficácia deriva do mundo do ser, contudo, isso não significa que a norma fundamental
[Grundnorm] [dever-ser primordial] derive da esfera factual ou nela encontre seu fundamento25.

A eficácia é apenas uma condição necessária à pressuposição da norma fundamental, que


por sua vez validará todo o ordenamento jurídico.

É preciso lembrar que ser válido não é o mesmo que ser eficaz, embora ser eficaz é condição
de ser válido. Miranda Afonso explica que a norma jurídica e o ordenamento jurídico serão
válidos SE eficazes e não porque eficazes26:

A eficácia aparece como condição de validade da norma jurídica e da


própria ordem jurídica. A eficácia é condição de validade, condição sine
qua non, mas não per quam. O fundamento de validade da ordem jurídica
estatal é a norma fundamental.

23
P. 71
24
P. 72.
25
P. 74
26
p. 75-76

6
FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

2. Ciência, método e objeto: A epistemologia kelsiana

Kelsen afasta-se do positivismo jurídico ao diferenciar ciências causais e ciências


normativas ao invés de utilizar a distinção geral entre ciências sociais e ciências naturais27.

Ciências causais Ciências normativas


Regidas pelo princípio da causalidade Regidas pelo princípio da imputação
Sociologia Ética, Direito
São normativas não porque criam
normas, mas sim porque as descrevem.
Objeto: norma jurídica
Conquanto a norma jurídica seja o objeto da ciência do direito, o jurista a descreve por
meio de proposições jurídicas, enunciados ou juízos descritivos formulados pela ciência jurídica e
que com as normas jurídicas jamais se confundem, pois as últimas são dados apresentados ao
cientista do direito, e não suas criações.

A norma jurídica é o sentido objetivo de um dever-ser, sendo voltada assim para a conduta
humana. Diferencia-se das demais normais (morais, religiosas, etc.) por conta da sanção. A sanção
é imanente da norma jurídica e socialmente organizada, ou seja, aplicada por um aparelho central
monopolizador da violência, isto é, o Estado28.

A norma jurídica expressa um sentido objetivo de dever-ser porque se funda em outra


norma jurídica [um dever-ser somente deriva de outro dever-ser] e não da simples vontade de
alguém [dever-ser subjetivo]29.

O direito somente se manifesta por meio das normas jurídicas que, ao seu turno, só podem
ser conhecidas lançando-se mão de uma operação lógica  NORMATIVISMO LÓGICO (nome
da teoria do direito de Kelsen).

As normas jurídicas cumprem na ciência do direito o papel de esquema de interpretação. É


graças a elas que se qualifica um ato (ex. morte de um homem por outro) como jurídico
(homicídio)30.

No normativismo kelseniano a criação do direito no plano epistemológico é diferente de sua


criação no plano ontológico, conforme preceitua Miranda Afonso, sendo certo, todavia, que a
ciência do direito tem a função unicamente descritiva, não criando ou julgando axiologicamente seu
objeto, quais sejam, as normas jurídico-positivas.

Quanto aos valores que conformam o conteúdo das normas jurídicas, o máximo que o
cientista do direito pode fazer é descrevê-los, nunca julgá-los. Ao jurista cabe apenas declarar que
certa conduta está de acordo ou não com o valor presenta na norma jurídica sob análise31.

27
p. 77-78
28
p. 79
29
p. 80
30
p. 80
31
p. 83.

7
FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

A Teoria Pura do Direito é uma epistemologia do direito, crítica ao conhecimento jurídico


que sustenta-se na filosofia transcendental de Kant e culmina com a fixação do método da ciência
jurídica [=a descrição rigorosa do ordenamento jurídico positivo]. Para Kelsen, o método é um
verdadeiro problema filosófico e não simples instrumento de investigação. Por isso, sustenta-se que
a Teoria Pura do Direito pode ser qualificada como verdadeira filosofia jurídica32.

A crítica da Teoria Pura do Direito à ciência jurídica será com base no concepção de ciência
do direito formulada pelo positivismo jurídico33.

3. O Sentido da Pureza Metodológica

Não é o direito que seria puro na concepção de Kelsen, mas sim sua teoria. A pureza seria
atributo da ciência que quer construir, pois Kelsen acreditava ser indispensável tal pureza à
construção de uma ciência do direito independente34.

Isso é explicado por conta do momento histórico vivenciado. Naquele tempo, as teorias
jurídicas pensavam o direito de forma não-autônoma, dissolvendo sua especificidade em outras
disciplinas (Sociologia, Filosofia, etc..). Atrelava-se à teoria jurídica a uma ideologia qualquer, o
que era repudiado por Kelsen35.

Kelsen enfrentou objetivar a criação de uma ciência jurídica pura e objetiva, inapta para
legitimar ou deslegitimar axiologicamente quaisquer sistemas jurídicos. As críticas nasceram
praticamente junto com a teoria pura, pois viam a ciência do direito como apenas mais um
instrumento para obtenção ou manutenção do poder.

O método positivista seria o único a garantir a autonomia da ciência jurídica36.

É para evitar que a ciência se torne mais um meio de dominação do que de libertação que
Kelsen adota o purismo exacerbado, fruto do seu maduro positivismo jurídico.

Para Bobbio, o método positivista é indiscutivelmente o único capaz de construir uma


verdadeira ciência do direito37:

A ciência tem por característica fundamental sua avaloratividade: a


distinção entre juízos de fato e juízos de valor e a rigorosa exclusão destes
últimos do campo científico. Com a ciência consiste na descrição avaliatória
da realidade, o método positivista é pura e simplesmente o método
científico, portanto é necessário adotá-lo se se quer fazer ciência jurídica ou
teoria do direito. Se não for adotada, não se fará ciência, mas filosofia ou
ideologia do direito.

A opção metodológica de Kelsen pressupõe ao menos 3 condições:


32
P. 84.
33
P. 85
34
p. 87.
35
P. 88
36
p. 89.
37
P. 91.

8
FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

1ª. Delimitação rigorosa do objeto de estudos:


 O objeto não pode ser comum a outras investigações científicas.

Cuidado: É possível estudarem o mesmo objeto material, já o objeto formal, ou seja, a


forma específica que cada ciência o estuda, deve ser única.

2ª. Ausência ABSOLUTA de juízos de valor38


 A ciência não resolve conflitos de interesse (tal como a política), apenas deve
descrever a realidade sobre a qual se debruça.
3ª. Neutralidade do cientista
 O sujeito (jurista) e objeto não se relacionam, pois, caso contrário, a ciência refletiria
suas opiniões pessoais.

Kelsen não reduziu o direito à ciência jurídica formal, pois ele reconhece a legitimidade das
investigações filosóficas (históricas, etc..), inclusive os conteúdos das normas jurídico-positivas e o
processo sociopolítico de criação das mesmas, temática inegavelmente metajurídica.

Kelnsen reconhece que o direito pode ser – e efetivamente é – criado com base em valores
morais, religiosos, costumeiros, culturais, etc.. O que não se admite no cientista do direito é que ele
assuma uma postura avaliativa. Quanto às decisões judiciais não é preciso que a teoria da
interpretação kelsiana não sustenta que o juiz, ao criar a norma jurídica individual (sentença), não
utiliza as mais diversas fontes. A única exigência que se lhe faz é que suas decisões localizam-se no
quadro geral das interpretações possíveis39.

4. O Formalismo da Teoria Pura do Direito

De acordo com a Teoria Pura do Direito40não faz sentido pensar cientificamente em um


ordenamento jurídico localizado no tempo e no espaço, já que seu propósito é buscar aquele quid
invariável e universal comum a todas as experiências sociais que podem ser chamadas de direito41.

Como o conteúdo dos diversos ordenamentos jurídicos é variável, restou a Kelsen explorar-
lhes a forma  É, portanto, uma teoria FORMAL.

Na TPD o direito é um sistema hierárquico e dinâmico no qual a norma jurídica vale devido
à sua localização na tessitura da pirâmide normativa [Stufenbau]. Seu conteúdo não tem qualquer
relevância quando se trata de arguir acerca de sua validade, isto é, sua existência específica.

Uma norma jurídica é válida se foi criada de uma maneira específica, segundo regras
determinadas e um método científico. O único direito válido é o direito positivo, aquele que foi
“posto”42.

38
P. 92
39
p. 93 [nota de rodapé]
40
Vou utilizar a sigla TPD para designá -la daqui para frente.
41
P. 97 e 98.
42
P. 99 [nota de rodapé]

9
FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

A norma fundamental se limita a indicar como as normas de tal ordem são criadas, ela
inclusive põe o princípio de sua criação. Ela é, portanto, o ponto de partida de um procedimento e
seu caráter é essencialmente formal e dinâmico. Somente a validade das normas de uma ordem
jurídica pode ser deduzida de sua norma fundamental, já que o conteúdo das mesmas é determinado
em cada caso por um ato particular, que não é ato de conhecimento, mas um ato de vontade:
procedimento legislativo, etc..43

O formalismo de Kelsen encontra sua expressão máxima na ideia de norma fundamental,


condição lógico-transcendental da ciência jurídica. Assim, é possível que a norma fundamental seja
fundamento de validade de um sistema nazista, liberal ou marxista44.

A TPD não é política jurídica e, portanto, a ela não interessa saber como o direito deve,
deveria ou deverá ser: a função do “jurista científico” é apenas a de descrever o valor posto na
realidade pela norma jurídica, se assumir qualquer posição axiológica perante o valor que descreve.

A única pretensão da TPD é conhecer seu objeto [razão pela qual o purifica
metodologicamente], o que não seria possível sem o formalismo. Ora, não se faz ciência de uma
ordem jurídica particular, estudando o conteúdo de suas normas, mas antes do direito positivo em
geral que, segundo Kelsen, só pode ser objeto de uma ciência formal exatamente porque essa não se
ocupa de conteúdos mutáveis e mutantes ao sabor das circunstâncias políticas, econômicas,
ideológicas, éticas, culturais, etc45.

5. Leituras Críticas da Teoria Pura do Direito

Kelsen operou no Direito o que Kant operara na Filosofia, ou seja, a separação das esferas
do ser e do dever ser.

Com isso, pode fundar a ciência do direito, que tem seu objeto formal próprio [a norma
jurídica positiva], seu método específico [o normológico, que descreve as normas jurídicas por
meio de proposições jurídicas] e seu axioma fundamental [a Grundnorm  a norma
fundamental]46.

Críticas:

1ª. O sistema seria muito intransigente no que se refere à bipartição epistemológica


entre Sein e Sollen, a qual subordinaria o direito a uma suposição meramente
pensada – e não elucidada - , afastando-se assim da realidade social. [Crítica de H.
Dupeyroux e D. Maury]

Resposta: O essencial na TPD é a problematização filosófica da ordem jurídica no tocante à


sua fundação última, importando muito mais que soluções perfeitas e dogmáticas.

43
idem
44
p. 100.
45
P. 101 - 102
46
p. 103

10
FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

2ª. Falha por não se ocupar dos valores que compõem o conteúdo de qualquer direito.

Resposta:

 O autor acredita não ser possível criticar uma teoria pelo que ela não é. E a TPD
certamente não é axiologia jurídica.

 Kelsen não nega a legitimidade do problema axiológico, mas apenas se limita a


verificar a impossibilidade de seu tratamento científico.

3ª. Discute a noção de ciência por meio da qual foi arquitetada a TPD, pois Kelsen
entendia não ser ciência jurídica aquela que se ocupava dos fins e conteúdos ético e
político das normas jurídicas47.

Resposta: É mais rica e terceira crítica contra a teoria de Kelsen.

Baptista Machado entende insuficiente a perspectiva lógico-objetivante, já que a aplicação


da norma jurídica ao caso concreto resulta sempre de uma combinação de subsunção lógica e
interpretação axiológica. Algumas noções e conceitos que utilizamos frequentemente no
pensamento jurídico não tem guarida numa TPD: fraude à lei, lacuna, abuso de direito, ordem
pública, etc..48

O autor deste livro coloca que conceitos do que seja ciência existem tantos quanto existem
cientistas. Tal relativismo conceitual não nos permite obter uma definição absoluta de ciência,
válida e sem restrições. Como toda a obra humana, os conceitos se desmancham no ar49.

Por conta disso, todos os conceitos de ciência são, pelo menos a princípio, válidos. Contudo,
isso não significa que eles possam ser utilizados indistintamente50.

Aceitar o conceito de ciência formulado por Kelsen configura-se como pressuposto


metodológico fundamental para nos aproximarmos de seus trabalhos acerca da justiça de valores51.

Bobbio entende que Kelsen se equivocou ao dizer que o direito é um ordenamento


coercitivo que regula o uso da força na comunidade jurídica. De acordo com Bobbio, a força não é o
objeto do direito, mas seu instrumento: “O objetivo de todo legislador não é organizar a força, mas
organizar a sociedade mediante a força52”.

Enfim, sempre existirão críticas à TPD e o objetivo desta obra não é apresentar todas. Por
fim, é bom lembrar que nem mesmo Kelsen considerou a TPD como algo irretocável e acabado. Ao
contrário, sustentou que sua contribuição pessoal para tal opção teórica terminara em 1960, com a

47
p. 105
48
p. 106.
49
P. 106 e 107.
50
P. 107.
51
P. 109
52
p. 109 e 110.

11
FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

publicação da segunda e definitiva edição de sua obra. Às gerações futuras caberia engrandecer seu
legado53.

2ª parte: “A concepção Kelseniana de Justiça”

(págs. 115 a 224)

Nesta parte do livro temos a análise do pensamento de Kelsen em relação à Justiça. Para
tanto, Andityas Soares comenta as impressões de Kelsen sobre vários autores e filósofos.

I – IMPOSSIBILIDADE DE UMA IDEIA ABSOLUTA DE JUSTIÇA

1. Relativismo e Absolutismo na Filosofia e na Política

A QUESTÃO DOS VALORES

- Para Kelsen, a ciência jurídica não pode prescrever valores, mas tão somente descrever seu
objeto, as normas jurídicas.

- Tais normas jurídicas não tem valores em si mesmas: uma norma jurídica é apenas válida
ou inválida, nunca valiosa ou desvaliosa.

- Apenas os fatos do “mundo do ser” (a realidade) são dotados de valor, os do “mundo do


dever-ser” nunca devem ser valorados (por isso as normas jurídicas não são valoradas).

- O que possui valor é o ato que cumpre ou descumpre a norma jurídica, não a norma em si.

Ex.: quando uma norma prevê uma conduta como devida, o fato do “mundo do ser” que a
cumpre (o fato de cumpri-la) é valorado positivamente – ou seja, quando cumprimos a norma que
estabelece conduta devida temos nosso comportamento valorado positivamente; enquanto que o
fato que a descumpre é valorado negativamente.

- Para Kelsen, os valores podem ser qualificados de 2 formas:

1) subjetivos ou objetivos;

2) relativos ou absolutos.

Objetivo: valor instituído por uma norma objetivamente válida.

Subjetivo: valor radicado na vontade de alguém, em um “querer psicológico”.

=> Ex.: quando temos um juízo segundo o qual uma conduta é boa somente porque ela é
desejada por muitas pessoas, o valor “bom” existe somente para as pessoas que desejam que aquela
conduta ocorra (esse é o valor subjetivo, que tem lastro na vontade humana – o valor é bom, porque
53
P. 110.

12
FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

eu quero a conduta). Mas, quando temos um juízo que considera uma conduta humana como “má”
porque tal conduta contraria uma norma jurídica objetivamente válida ou como “boa” porque a
obedece, tal valor vale para todas as pessoas que tem sua conduta avaliada, independentemente de
as pessoas desejarem ou não tal conduta (esse é o valor objetivo, a conduta é boa ou má,
independentemente de eu querer que se realize a conduta, pois o valor se baseia na norma).

Ainda: o valor objetivo não possui gradação, pois não há como cumprir ou descumprir
parcialmente uma norma (ou se cumpre a norma e o valor é positivo, ou se descumpre e o valor será
negativo). Já o valor subjetivo admite gradação de acordo com a vontade humana que lhe ofereça
suporte.

- Relativos/Absolutos:

Para Kelsen, os valores são sempre relativos, pois derivam de cultura humana, não de
autoridades transcendentes. O processo de atribuição de valor sempre admite contraposição, debates
e críticas. “Através de outros atos de vontade humana podem ser produzidas outras normas,
contrárias às primeiras, que constituam outros valores, opostos aos valores que estas constituem.”

A ideia de valor absoluto só se coaduna com teorias jusnaturalistas, que acreditam que a
autoridade que impôs a norma é inquestionável, é absoluta, supra-humana, portanto, a norma é
imutável e perfeita.

ABSOLUTISMO X RELATIVISMO – CONDIÇÕES E CRÍTICAS

- Kelsen relaciona as filosofias absolutas com regimes totalitários, ditatoriais; e relativismo


filosófico com regimes democráticos, mas afirma que tal relação não é necessária, há exceções, pois
a “formação teórica dos sistemas políticos se dá na mente humana, que tem diversas
peculiaridades, não se comportando em todas as ocasiões conforme o que nos parecia previsível”.

- Há ainda as interferências externas (históricas, sociais, econômicas, políticas) que não


permitem que a relação feita por Kelsen seja sempre verdade. A mente humana não é norteada
somente pela razão, mas, sobretudo, pela emoção, desta forma, as conclusões lógicas podem ser
desviadas de seu curso original.

- Kelsen, todavia, defende uma análise a partir de grandes pensadores e os respectivos


períodos históricos, não levando em consideração a mentalidade de todos os indivíduos. E no que
diz respeito ao aspecto histórico, a proposição feita por Kelsen prevalece, ou seja, os regimes
autocráticos sempre se valeram ideologicamente da afirmação de valores absolutos. “(...)
quase todos os representantes mais destacados de uma filosofia relativista eram politicamente
favoráveis à democracia, ao passo que os seguidores do absolutismo filosófico, os grandes
metafísicos, eram (...) contrários à democracia”.

- O Jusnaturalismo, defendendo valores absolutos e refutando o relativismo filosófico,


sempre se coadunou com regimes sociais excludentes, opressores e autocráticos. Como exemplos

13
FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

temos Aristóteles, que confirmou a escravidão grega, tendo em vista o direito natural antigo; São
Tomás de Aquino e Santo Agostinho que defenderam sujeição do poder secular ao poder
espiritual, em virtude do direito natural medieval...

- A índole dos jusnaturalistas tende mais a conservar o status quo do que reformá-lo,
legitimando os sistemas sociais de vários momentos históricos.

- As duas exceções conhecidas são a Revolução Francesa – 1789 e a Revolução Americana


– 1776, quando o jusnaturalismo se curvou a mudanças, revoluções, erradicação do sistema político
autoritário.

- Atualmente, temos o neojusnaturalismo como doutrina que tende a fazer renascer ideias
do direito natural, defendendo que o direito deve ter um conteúdo necessário, imanente e
absolutamente justo. Surgida após a 2ª Guerra, foi muito criticada pelos positivistas.

O positivismo jurídico de Kelsen se contenta em descrever seu objeto; em contrapartida, o


jusnaturalismo – tanto o antigo quanto o novo – prescreve o direito absolutamente justo,
pretendendo dogmatizar valores absolutos que devem nortear todas as ordens jurídicas.

POSITIVISMO RELATIVISTA X TOTALITARISMO ABSOLUTISTA

Autores neojusnaturalistas acusam Kelsen e outros juspositivistas de justificar, com suas


teorias, os sistemas autocráticos e totalitários que proliferaram no século XX. Proliferaram críticas
aos positivistas, a partir do fim da 2ª Guerra Mundial, pois tais correntes teriam justificado os
regimes totalitaristas, uma vez que passaram a considerar como válidos quaisquer ordenamentos
jurídicos, desconsiderando a análise humanista que os norteavam ou lhes faltava, ignorando
qualquer análise no que tange à ética e justiça dos regimes políticos.

- As críticas dos neojusnaturalistas são direcionadas muito mais para a ideologia positivista
extremada do que para a versão moderada, pois esta última aceita o relativismo ético, se opondo ao
totalitarismo – que tem como uma de suas principais características a ausência de sistema de direito
e o domínio de um regime de arbitrariedades, ideias distantes do positivismo. Hannah Arendt,
inclusive, considera o totalitarismo como uma forma moderna de despotismo, um governo sem leis,
no qual o poder é exercido de forma unipessoal. “Nele não sobrevive qualquer direito, nem teoria
jurídica, seja positivista ou jusnaturalista (...)”.

- Para o positivismo ético moderado, o valor do direito é a ordem, que se contrapõe ao caos
social. Todavia, tal doutrina não enxerga o direito como sendo algo supremo, um bem em si mesmo,
que necessita sempre ser obedecido, mas tão somente um instrumento (um meio, uma “técnica de
organização social”) que serve para realizar o bem.

- A ordem não é suprema, absoluta e nem a lei é insuperável, como defendem os positivistas
éticos extremados. Se for preciso contestar a lei, em virtude de um valor superior em determinado

14
FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

momento histórico, será feito, sendo possível um movimento revolucionário para romper a ordem e
realizar o valor em questão.

- LEI como instrumento de transformação da ordem social...

- Lei deve ser respeitada pelos cidadãos e também pelo Estado: esse é um dos principais
argumentos, pelos positivistas ético moderados, para se contrapor aos regimes totalitários da 1ª
metade do séc. XX (curioso que esse também é um argumento utilizado pelos que acreditam que o
positivismo justificou os movimentos totalitários! Mas nesse caso, só o positivismo extremado se
encaixa em tal denúncia...). Segundo os positivistas moderados, os líderes dos regimes totalitários
não acreditavam que deveriam obedecer a certos limites, pois isto lhes tolheria o “destino
histórico”, desprezando, portanto, a prevalência da ordem e a imperatividade da norma.
Totalitaristas não aceitam ser caracterizados como ilegais por não se submeterem ao direito dos
homens; são contrários ao positivismo jurídico, que defende não existir qualquer ordem jurídica
natural.

- Por fim, temos que a teoria jurídica kelseniana não justifica ou defende tal ou qual
regime político. Sua teoria é formal, destituída de juízo de valor, serve para descrever e não
valorar, aprovar ou desaprovar.

- Kelsen reafirma que o reconhecimento da relatividade dos valores não implica sua
inexistência. E ainda, que não existe justiça absoluta.

2. Críticas às Normas de Justiça Tradicionais

A DEFINIÇÃO KELSENIANA DE JUSTIÇA

– Segundo Kelsen, o problema da Justiça pertence antes à Ética e à Filosofia, do que ao


Direito, não sendo objeto de estudo da ciência jurídica. As normas de justiça não são normas
jurídicas, mas sim, morais.

- O direito pode sim ser justo ou injusto, mas sua análise não é precípua tarefa do jurista.

- A Justiça é um atributo do indivíduo, uma virtude que se encontra na conduta social de


cada um.

(a conduta do indivíduo vai ser justa quando for compatível com a norma que a prescreve
como devida). A justiça se expressa por meio de normas morais que, por serem normas, são
sentidos objetivos do dever-ser.

- O que é avaliado é a realidade. A conduta é um fato da ordem do “ser” e a norma, do


“dever-ser”. Assim, a conduta (realidade) é confrontada com a norma (dever-ser) e o resultado é um
juízo valorativo positivo (a conduta está conforme a norma – valor de justiça positivo) ou negativo
(está contrário à norma).

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FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

- Se é a conduta humana que pode ser avaliada como justa ou injusta, e, estando esta
localizada no tempo e espaço, Kelsen conclui que inexiste um critério único e objetivamente
válido de justiça, negando, desta forma, a ideia de justiça absoluta – o que há são diferentes
teorias da justiça, mas nenhuma melhor ou pior que outra.

AS NORMAS DE JUSTIÇA E O DIREITO POSITIVO – para Kelsen, não é correto


avaliar uma norma (dever-ser) como justa ou injusta, visto que somente a realidade (o ato, a conduta
humana) pode ser avaliada.

- A Teoria Pura do Direito utiliza critérios de validade para descrever seu objeto, não juízos
de verdade ou de valor.

- A tarefa principal do positivismo jurídico é provar que a validade das normas de direito
positivo não depende da validade das normas de justiça. Reafirma Kelsen que é a existência do ato
que se coaduna ou não com a validade da norma de justiça.

- A norma deriva sempre de outra norma, nunca de um fato.

JUSTIÇA COMO CRITÉRIO DE DEFINIÇÃO DO DIREITO

A caracterização da norma como justa ou injusta, ao contrário de Kelsen e o positivismo


jurídico, é bastante utilizada pela doutrina do direito natural. Somente são válidos os ordenamentos
jurídicos positivos de acordo com o direito natural, que é, ao mesmo tempo, o critério de justiça e o
fundamento de validade do direito positivo. Os naturalistas consideram o direito natural válido já à
primeira vista, não prevalecendo a contradição entre duas ordens – a positiva e a ideal – uma vez
que o direito positivo é sempre válido quando for adequado ao direito natural, que é sempre justo.

- Só o direito justo é direito. O direito injusto não é direito, pois não segue o direito natural,
não devendo, portanto, ser obedecido.

- Para Kelsen, não interessa se a norma é justa ou injusta para ser declarada como jurídica,
mas importa saber se a sanção coercitiva que impõe por meio do Estado é eficaz, visto que esta é a
característica que determina o caráter jurídico da norma).

- Considerar uma norma como jurídica baseada no critério de justiça é demasiado subjetivo
do ponto de vista da ciência do direito. Kelsen dá exemplo: o que é considerado justo para um
sistema capitalista jamais o será por um sistema socialista.

OS TIPOS DE NORMAS DE JUSTIÇA

Kelsen divide as normas de justiça em 2 tipos:

a) Metafísico-religiosas: são originárias de instância superior. Pressupõe a crença, o dogma


e a fé. O homem deve acreditar na justiça absoluta que ela propõe, mas não pode entendê-la por
seus conhecimentos humanos experimentais.

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FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

b) Racionais: podem ser pensadas racionalmente, entendidas pelo ser humano, e positivadas
por atos humanos de vontade.

# AS NORMAS RACIONAIS:

(Kelsen expõe as normas de justiça do tipo racionais, para ao final, concluir que elas não
tem um elemento material comum, apenas são agrupadas por questão formal, entrando, muitas
vezes, em conflito. Conclui que são fórmulas vazias, que não trazem a solução para o problema da
justiça absoluta, apesar de o prometer). A seguir, as principais:

* O SUUM CUIQUE: “dar a cada um o que lhe é devido” - muito conhecida, mas é
criticada por ser uma regra de justiça formal, que não traz em si qualquer conteúdo. Tal fórmula
pressupõe uma ordem normativa positiva que estabeleça os parâmetros do que é ou não devido.

- São Tomás de Aquino, por ex., define justiça como vontade constante e perpétua de dar a
cada um o que lhe é devido segundo o direito (ius suum), acreditando que o direito positivo de sua
época era absolutamente válido, visto ser reflexo do direito natural, que emanava diretamente da
vontade do Criador.

* A REGRA DE OURO – “só é lícito fazer aos outros o que deseja para si próprio” –
apresenta vício insanável, pois não permite a aplicação da sanção aos transgressores, pois ninguém
deseja ser punido.

- Para que a regra de ouro possa regular a ordem social e real deve ser interpretada de outra
forma, pressupondo valores objetivos de “bem” e “mal”, passando a ser analisada do ponto de vista
de “como devemos ser tratados”, e não “como queremos ser tratados”. Mas, mesmo com tal esforço,
a regra de ouro também não traz qualquer conteúdo em si, devendo ser preenchida por uma ordem
normativa pressuposta, o que possibilita que qualquer ordem jurídica possa ser classificada como
justa, pois é ela que vai determinar os parâmetros para tanto.

* IMPERATIVO CATEGÓRICA KANTIANO – descreve ação boa em si mesma, em


sentido absoluto, que deve ser cumprida incondicionalmente, em qualquer situação,
independentemente do fim a ser alcançado. “Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa
valer-te sempre como princípio de uma legislação universal”.

- Não traz qual máxima eu devo ou não querer que se torne universal.

- Pelo imperativo categórico, não obtemos essa resposta. A regra kantiana não traz o
conteúdo da lei universal, da qual não se pode deduzir qualquer norma moral que prescreva
condutas.

- O imperativo categórico é fórmula vazia, pois “a questão decisiva para qualquer ética, a
questão de saber qual seja o conteúdo da lei universal com a qual a máxima deve conformar-se,
permanece por responder”.

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FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

* BONUM FACIENDUM ET MALUM VITANDUM – “fazer o bem e evitar o mal” –


regra de inspiração estóica. Tal regra é tão vazia quanto as outras. Deve ser pressuposto o que é o
bem e o que é o mal, o que deve ser feito em uma ordem jurídica positiva ou ordem divina de
justiça que traga os parâmetros.

(Um pouco sobre Estoicismo: “Uma vez que a Natureza é governada pela razão
divina, tudo tem um motivo para ser e nós não podemos mudar isso. Por conseguinte, nossa
atitude diante das adversidades e da própria morte deve ser de serena resignação. Assim, o
ideal do estoicismo é atingir a ataraxia ou apatia, ou seja, a indiferença em relação a todas
as emoções, o que se alcança pela prática da virtude. Os estóicos suportavam as
adversidades com calma e dignidade, mas também acreditavam que as circunstâncias da
vida de um homem podia se degradar a tal ponto (seja devido a uma tragédia pessoal, à
ruína e a subseqüente miséria, seja devido a uma doença dolorosa e terminal), que um
suicídio indolor se tornava a coisa mais racional a fazer.

http://educacao.uol.com.br/filosofia/estoicismo-indiferenca-renuncia-e-apatia-
estoica.jhtm)

* MEIO-TERMO DOURADO ARISTOTÉLICO (teoria de mesotes) – para Aristóteles, a


virtude é o hábito que realiza o bem, e o vício, hábito que realiza o mal. E é a vivência da virtude
que garante a perfeição do homem e sua felicidade.

- Aristóteles defende ser possível conhecer a justiça com exatidão, “como o geômetra
conhece o ponto médio de uma reta”. A justiça é uma virtude e a virtude é o termo médio entre 2
vícios – a falta e o excesso. Mas importa saber o que é justiça e injustiça, o que, segundo Kelsen, só
pode ser feito quando pressuposta uma ordem social positiva...

- Kelsen, então, afirma que os vícios e virtudes são considerados conforme a moral
tradicional da época em que Aristóteles viveu, não se servindo de critérios científicos.

- E ainda, que a visão de Aristóteles sobre justiça ser meio-termo entre 2 vícios é falha, pois
os excessos não são na verdade dois vícios – carência e abundância – mas sim um único vício:
injustiça, vista de prismas diversos – o do injusto e o do injustiçado.

* PRINCÍPIO DA RETRIBUIÇÃO – considerado como “a mais importante fonte


histórica de normas de justiça”. Cada um deve receber conforme seu mérito (o que a torna uma
fórmula também vazia, pois é preciso definir as noções de mérito e demérito). Deve haver sanção
(pena ou prêmio) frente às condutas perpetradas de acordo ou contra as normas postas.

* IGUALDADE SOCIALISTA E JUSTIÇA MARXISTA

- Marx critica a igualdade formal capitalista, que parte do pressuposto que todos são iguais,
quando na verdade não o são, e os remunera da mesma forma. Marx acredita que a concepção da
justiça serve para uma classe submeter a outra; para ele, ideologia é instrumento de submissão e o
direito serve para oprimir a classe trabalhadora, sendo a negação da justiça.

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FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

- Para Marx, deve haver a consideração de capacidade (dever) e necessidade (direito) na


ideia de realização da justiça (dar a cada um segundo suas capacidades e necessidades), fatores
que são desconsiderados pelos ordenamentos capitalistas, que dão ensejo a direito desigual.

- Kelsen, então, faz a seguinte crítica: a felicidade de todos os homens – ideal do socialismo
– seria impossível, porque não é viável a satisfação das necessidades de todos ao mesmo tempo,
pois existem necessidades que são contraditórias entre si e mutuamente excludentes.

- Enfim, o ideal de justiça comunista exige também uma ordem social reguladora, ao menos
para estabelecer quais são as necessidades e obrigações de cada cidadão. E isto não deixa de ser
autoritário, diferentemente do que prega a doutrina socialista.

# AS NORMAS METAFÍSICO-RELIGIOSAS:

PLATÃO é o representante típico dessa corrente.

Para conhecer a essência das virtudes, o homem deve se valer da dialética.

- Mas, segundo Kelsen, mesmo com a dialética, Platão não consegue explicar o conceito de
bem absoluto, que deve ser buscado, tendo ele admitido que a noção de bem absoluto está além de
qualquer conhecimento racional, só tendo sido alcançado por poucas pessoas.

- A ideia de justiça seria inalcançável para a maioria das pessoas, só podendo ser entendida
por poucos felizardos – os filósofos – que também, não podem compartilhá-la, pois “a linguagem
humana é imprestável para expressar a realidade superior das formas puras”. (é por isso que
Platão acredita que quem deve governar a pólis são só os filósofos, pois só eles detém a noção da
justiça). O direito positivo é justificado, então, de forma transcendente, tendo sua legitimidade em
um direito natural.

- Para Platão, só o justo é feliz, isso deve ser ensinado para que impere a ordem social, ainda
que não seja verdade. A justiça absoluta é aquela capaz de conceder a felicidade permanente, logo,
felicidade deve ser a ideia central de justiça. Mas, como a justiça total, absoluta é simplesmente
inexequível, devemos pressupor uma autoridade transcendente, para que desloque o problema da
justiça para o “além”, deixando esta de ser enfrentada pela ciência. Enquanto isso, no mundo real
em que vivemos, temos que conviver com várias “justiças relativas”, que garantem a paz e a
segurança, visto que aqui não é possível a justiça absoluta.

A NORMA DE JUSTIÇA DE CRISTO – segundo Kelsen, tal norma também não serve
para fundar a justiça absoluta, por causa de seu caráter acientífico e transcendente. É baseada em
dogma, fé, e não busca – e nem se preocupa com isso – solucionar as contradições que lhe
permeiam, estas são problemáticas apenas para a limitada razão humana, que não se compara aos
desígnios divinos.

A teoria em questão se funda no princípio do amor – amor ilimitado, incondicional; não o


amor praticado pelos homens, mas o amor divino. Para Kant, tal teoria não pode ser aplicada ao

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FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

mundo dos homens, por este ser imperfeito; os homens jamais poderiam entender o amor divino
(“amar o inimigo” por exemplo: aos humanos, tal hipótese é absurda...).

3. As Teorias da Justiça Naturalista e o fundamento de validade do Direito

JUSTIÇA – POSITIVISMO X JUSNATURALISMO

Para o Jusnaturalismo, o direito só é válido se refletir norma de justiça, o fundamento de


validade do direito positivo. Temos, assim, um sistema normativo estático (a norma fundamental
traz em si o conteúdo das normas).

Já para os positivistas (dentre eles, Kelsen), a validade do direito não é vinculada a qualquer
conteúdo; a norma fundamental hipotética é que seria o fundamento de validade do direito positivo.
Temos aqui, o sistema normativo dinâmico, segundo o qual, a norma fundamental do sistema não
traz o conteúdo das normas, mas somente o fundamento de validade delas.

O positivismo jurídico aposta no monismo, defendendo que só existe uma ordem jurídica,
um direito – o positivo.

Já os jusnaturalistas são dualistas, pois acreditam em duas ordens de justiça: a


relativamente justa, criada pelos homens (direito positivo); e a absolutamente justa, emanada de
autoridade supra-humana.

A RELATIVIDADE DA JUSTIÇA

Partindo da premissa científica de que não é possível comprovar a existência de autoridade


supra-humana, resta necessária a existência da justiça relativa, determinada em um dado tempo,
espaço e sociedade.

A questão da validade do direito não pode ser respondida por normas de justiça. Kelsen
afirma que, só após a configuração do princípio da imputação e da pressuposição da norma
fundamental é que o cientista do direito estaria apto a responder sobre a questão da validade do
direito.

O JUSNATURALISMO

- O Jusnaturalismo defende a existência de normas supra-humanas imutáveis e de


observância obrigatória. Seriam colocadas pela natureza ou por Deus, e se revelariam por meio das
leis naturais, que formam o conjunto da ordem natural. O ordenamento jusnatural seria
hierarquicamente superior à ordem jurídica positiva.

- Acreditam os jusnaturalistas que a natureza teria uma função a seguir: o bem, portanto, o
homem deve se comportar de acordo com a ordem natural, pois tudo o que ocorre conforme esta, é
bom.

- Kelsen não concorda com o postulado principal do jusnaturalismo: que as normas (dever-
ser) são deduzidas da natureza (ser). Para ele, o fundamento de validade de uma norma (dever-ser)
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FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

só pode ser a validade de uma outra norma (dever-ser), e não um fato (ser). Realidade e valor não
podem ser colocados em um mesmo plano, pois pertencem a domínios diferentes – o valor não deve
ser considerado como algo imanente à realidade (natureza).

- As leis naturais são descritivas, não podem ser violadas, pois apenas descrevem
fenômenos, fatos. Quando um fato deixa de atender o que está posto na lei natural, esta
simplesmente deixa de ser válida e tem que ser substituída por outra.

- Já as leis jurídicas e morais são prescritivas e é possível que sejam violadas sem deixar de
serem leis. Quando isso ocorre, significa que a conduta humana não foi de acordo com o padrão
exigido pela lei.

- A realidade natural é um fato, não tem valor ínsito em si; qualquer valoração que possa
nela existir vem da vontade humana. O que existe na natureza são relações de causalidade, causa e
efeito, sucessão de fatos. Ex.: uma flor não tem em si o valor do “belo” – essa avaliação é o ser
humano que faz.

CAUSALIDADE, IMPUTAÇÃO E MUNDO NORMATIVO

- O mundo normativo é guiado pelo princípio da imputação, segundo o qual, as condutas


humanas podem dar origem a uma ou outra consequência, que pode ser controlada pelo homem. A
um comportamento contrário às normas jurídicas, é imputada uma sanção (isso dá origem a uma
cadeia fechada de causalidade – a cada condição, é imputada uma única consequência). Já no
mundo natural, regido pelo princípio da causalidade, temos uma cadeia infinita de causas e efeitos,
controlando os fatos.

DIREITO NATURAL VARIÁVEL

- Reconhece que o direito natural é incapaz de formular regras de conduta absolutamente


válidas.

- Denominada corrente “neojusnaturalista”

- Existem vários direitos naturais, pois a natureza se transforma constantemente.

=> Kelsen critica:

- A natureza, independentemente de ser ou não variável, é um fato da ordem do ser, do qual


não se extrai norma.

- Tal teoria nega a essência do jusnaturalismo, a formulação de um conceito absoluto de


justiça, pelo que não poderia ser considerada jusnaturalista. Defender que existem vários direitos
naturais, inclusive uns contraditórios entre si é tese defendida pelos positivistas relativistas.

=> Para evitar tais comparações, os jusnaturalistas variáveis defendem a existência de 2


direitos naturais: direito natural superior, imutável e direito natural variável, dependente do
primeiro. Todavia, percebe-se que esse direito natural variável, por depender do superior e da
natureza imutável tem os mesmos problemas teóricos do outro.

21
FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

CONCLUSÕES acerca das teorias jusnaturalistas:

- A doutrina do direito natural é inútil, pois, dependendo da ideia de justiça da qual se parte,
resultados extremamente diversos são encontrados.

- Jusnaturalismo é forma vazia, que pode ser usada para afirmar ou negar qualquer ideia:
democracia, autocracia, totalitarismo, propriedade privada, propriedade coletiva...

- Goyard-Fabre é citado:

“Para fundar uma ordem do direito positivo, é, por conseguinte preciso afastar-se
de todas as figuras do direito natural, que, aliás, por seu próprio desenvolvimento, se
tornaram totalmente contraditórias, aptas a provar ou justificar qualquer coisa, isto é, para
não provar nem justificar nada. (...) nenhum dos teóricos do direito natural é
suficientemente consequente consigo mesmo para levar sua tese até o fim e recusar toda
validade ao direito positivo.”

3ª parte - Pág. 224/320

3.8 – O papel histórico eminentemente conservador do direito natural

Alguns autores jusnaturalistas defendem que o direito natural serve para melhorar e
completar o direito positivo. Ocorre que, em razão da relatividade do direito natural, tem-se que o
direito positivo não pode ser “melhorado” ou “piorado” pela ordem jusnaturalista.

Uma outra questão: “As doutrinas jusnaturalistas tiveram um papel revolucionário na


história das sociedades humanas ou foram, ao contrário, conservadoras”? A reposta é que a noção
de direito natural tem caráter predominantemente conservador (Kelsen, 1963:155). E isso é
facilmente notado, se observarmos a justificação da escravidão pelos autores clássicos, que apesar
de proclamarem que a igualdade é um dos traços essenciais dos homens, sustentam que na prática
uma nação, por força de guerra, certamente dominará e escravizará a outra. Um ótimo exemplo
dessa postura conservadora é encontrada nas palavras de Santo Paulo dirigida aos servos, quando
lhes ordena que obedeçam aos seus senhores.

Durante a Idade Média foi imensa a influência do pensamento de Santo Tomás de Aquino,
que pregava que “a justiça é dar a cada um o que lhe é devido de acordo com o direito” (teoria
tomista). Todavia, essa doutrina tomista é autoritária e conservadora. Entretanto, foi na Espanha do
séc. XIII que a escolástica de Santo Tomás gerou seus frutos mais perenes. A identificação entre
poder político e poder religioso é total, não havendo possibilidade de resistência por parte do
indivíduo quando se trata de adequar a sua conduta às normas jusnaturais.

Kelsen notou a quebra da tendência conservadora apenas nas revoluções ocorridas na França
e América do Norte no final do séc. XVIII. O direito natural foi utilizado como arma de combate

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FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

para derrubar o velho e instaurar o novo. Contudo, os jusnaturalistas, quase todos eles,
inegavelmente foram representantes, mantenedores e defensores do poder constituído.

3.9. As relações entre o direito natural e o direito positivo segundo o jusnaturalismo

A maioria dos teóricos jusnaturalistas sustenta que a ordem natural é hierarquicamente


superior à positiva. Eles sustentam que o direito natural é fundamento de validade material do
direito positivo. Sendo assim, o direito positivo somente deve ser seguido na medida em que refletir
a justiça e a ordem jusnatural. Do contrário, eles dizem que é lícita a desobediência e todo direito
positivo “antinatural” será tido por nulo desde a sua origem.

Entretanto, na prática, a grande maioria dos teóricos jusnaturalistas diminui ao máximo a


possibilidade de conflito com o direito positivo. O direito positivo, dessa maneira, passa a ser visto
como uma parte do direito natural. O direito positivo seria aquela parcela do direito natural que se
exteriorizou e que conta com a sanção jurídica para garantir o seu cumprimento.

Assim, segundo Aramburo, a função do direito positivo é fazer respeitar as prescrições do


direito natural.

No estoicismo romano a contraposição entre direito natural e direito positivo era bastante
conhecida. Para os estóicos existiam duas espécies de ordens jusnaturais:

- ordem natural perfeita: vigorou durante a “idade de ouro”, quando o homem era realmente
bom. Não havia necessidade de sanção, pois as ordens eram cumpridas espontaneamente.

- ordem natural imperfeita: com a depravação dos costumes surgiu o direito natural
imperfeito. O direito positivo surge nesse contexto de decadência. É nele que se radica a sanção,
elemento fundamental para a aplicação do direito natural imperfeito. Quando o cristianismo se
tornou uma religião de Estado a doutrina cristã assumiu a feição esteóica acima mencionada,
sustentando que o direito natural imperfeito existe porque a humanidade é imperfeita, e esta optou
pelo pecado.

Kelsen sustenta que mesmo o direito natural imperfeito deve ser obedecido porque é
expressão da vontade de Deus.

Na obra do autor Thomas Hobbes (autor de “Leviathan”) ele sustenta que não existe
qualquer conflito entre o direito natural e o direito positivo, sendo ambas as ordens normativas
correlatas. Ele diz que o direito natural contém o direito positivo de modo que este é visto como
parte essencial daquele: “é impossível um soberano editar normas de direito positivo contrárias à
ordem jusnatural”.

Na doutrina jusnaturalista há uma presunção quase que absoluta de que o direito positivo em
vigor está de acordo com a ordem jusnatural pressuposta.

No final deste tópico há a conclusão de que julgar o direito positivo tendo por base o direito
natural é, antes de tudo, uma tarefa interpretativa: e essa interpretação deve ser feita por autoridade

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FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

que criou e que mantém o direito positivo, sob pena de se instaurar um verdadeiro caos, no qual os
jurisdicionados somente cumprirão as normas que julguem justas e conformes ao direito natural.

3.10 – O problema da justiça absoluta e a autonomia moral juspositivista

O autor começa esse tópico dizendo que “reconhecer a necessidade humana de se visualizar
a justiça absoluta não é, de modo algum, um reconhecimento da validade do direito natural e da
inutilidade do direito positivo”. Ocorre que o homem tem a necessidade de se justificar lançando
mão de conceitos, ideias, teorias e valores absolutos.

Para Kelsen, não é missão específica da ciência do Direito tratar do problema da justiça.
Entretanto, isso não impede que essa realidade seja objeto de estudo de outras disciplinas como, por
exemplo, a Filosofia do Direito e a Política.

O problema da justiça absoluta não é resolúvel pela razão humana. O positivismo jurídico
admite unicamente uma moral relativista (nem a natureza, nem Deus, nem a razão jusracionalista
em nem qualquer outra entidade supra-humana pode decidir de antemão o que é justo ou injusto) -
apenas o homem tem esse poder (o homem é o senhor do seu próprio destino).

A Teoria Pura do Direito deixa ao indivíduo a tarefa de descobrir a justiça, que é sempre
relativa, sendo transferida ao homem, assim, a tarefa axiológica. Nesse sentido, o relativismo
axiológico Kelsiano apresenta um nível moral superior ao das éticas absolutas.

Conforme é aludido por Kelsen: “é o indivíduo que deverá assumir a responsabilidade de,
continuamente e por si só, responder a questão: o que é, aqui e agora, a justiça”.

A Teoria Pura do Direito se recusa a valorar o direito positivo, querendo apenas conhecer
cientificamente as suas estruturas. Essa teoria também se recusa a servir a quaisquer interesses
políticos.

Enfim, é possível afirmar que a metodologia utilizada por Kelsen envolve um teoria
axiológica que desconhece valores absolutos e sustenta que apenas por meio da aceitação de valores
relativos a ciência pode cumprir seu papel.

3.11. A função da norma fundamental no positivismo jurídico e das normas de


justiçano jusnaturalismo

É importante entender que a“Teoria Pura do Direito e todas as doutrinas jusnaturalistas têm
em comum um único aspecto: em ambas as correntes teóricas o fundamento de validade do direito é
exterior ao ordenamento jurídico-positivo”. No primeiro caso se trata da Grundnorm(na qual o
fundamento de validade do direito encontra-se no próprio direito, e não em ordens ou elementos
metajurídicos). No segundo caso, os fundamentos de validade são variados: Deus, a natureza, a
razão, etc.

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FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

O autor nos deixa claro que as falhas do sistema de valoração jusnaturalista são óbvias.Uma
norma fundamental não pode ser utilizada como critério de valoração de uma certa ordem jurídica e,
portanto, não está apta a representar o papel nefasto reservado a muitas normas de justiça
naturalistas: justificação ideológica, ética, jurídica e moral de ordens jurídicas que, em várias
oportunidades, se mostraram excludentes, conservadoras e perversas.

Segundo um autor chamado Martin, “a norma fundamental kelseniana é uma espécie de


direito natural”. Continua, aduzindo que o positivismo e o jusnaturalismo teriam em comum o fato
de necessitarem, ambos, pressupor algo que dê fundamento à ordem jurídico-positiva. E o autor
desse livro ora resumido diz que essa ideia Martin parece óbvia (o problema é que as normas de
justiça das diversas teorias jusnaturalistas têm função legitimadora e são valorativas; já a norma
fundamental kelseniana, serve de apoio para a construção de uma teoria que objetiva apenas
conhecer o direito positivo enquanto tal).

4. Absolutismo filosófico e legitimação de regimes políticos autocráticos

Kelsen demonstra em que sentido e com que extensão as ideias de absolutismo e relativismo
filosóficos se refletem na realidade política das sociedades humanas.

Há uma relação importante entre absolutismo/relativismo filosóficos e as duas principais


formas de exercício do poder: democrática e autocrática. Porém, a vinculação entre essas ideias não
é necessária, apenas provável. Em se tratando de sociedades humanas, é difícil pensar em relações
que sejam absolutamente necessárias, uma vez que tal tipo de subordinação é característica do
mundo natural, regido por leis fatais e inquestionáveis.

Para Kelsen, desde o início do pensamento filosófico há a tentativa de relacioná-lo com a


política. Para o autor, absolutismo e relativismo filosóficos refletir-se-iam nas concepções políticas
autoritárias e democráticas, respectivamente.

Na política, o termo “absolutismo” designa de forma geral os governos autocráticos em que


todo o poder estatal concentra-se em um único individuo ou grupo e o vínculo entre governantes e
governados se dá em razão de sua desigualdade intrínseca. Ao absolutismo político (autocracia) –
em todas as suas formas – corresponde o absolutismo filosófico. A concepção oposta ao
absolutismo filosófico é o relativismo, que se reflete nos regimes democráticos (no qual há uma
suposição de igualdade – pelo menos formal – entre os cidadãos).

Para o absolutismo filosófico, a possibilidade de discussão e de crítica dos valores que


devem reger uma certa sociedade é nula. A consequência dessas ideias no campo político é a
irresistível imposição de uma autocracia.Consequentemente, os sujeitos não têm autonomia: são
regidos por leis heterônomas imanentes à realidade objetiva, derivadas de uma autoridade absoluta
e, portanto, metafísica. Os grandes metafísicos são favoráveis à autocracia enquanto os
representantes da filosofia relativa defendem a via democrática.

Na antiguidade clássica, os atomistas como Demóscrito e Leucipo rejeitavam o


conservadorismo, preferindo a democracia e a liberdade à monarquia e à escravidão. Os sofistas

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FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

também preferiam a democracia. Sócrates também foi um defensor da democracia e um relativista,


já que “sabia que nada sabia”.

Por outro lado, Platão afirmava que só ao filósofo caberia o governo da sociedade porque
somente ele teria acesso a estas verdades supremas. O Estado platônico apresenta-se como
autocrático, sendo que o filósofo grego entendia ser a democracia uma forma degenerada de
governo na qual os pobres governavam em detrimento da sabedoria.

Para Aristóteles, a monarquia hereditária é superior à democracia.

O absolutismo filosófico, especialmente o de matriz hegeliana, afirma a objetividade do


Estado, que encarnaria em si um valor hierarquicamente superior e oponível ao indivíduo
(RecasénsSiches denomina de transpersonalismo essa visão de mundo na qual o Estado vem antes
do cidadão). No transpersonalismo o Estado é visto como entidade em si e para si, portadora de uma
verdade absoluta e, por isso mesmo, incontrastável.

Nos regimes autocráticos, a visão contrária à oficial não é algo digno de ser considerado. A
democracia é um estorvo para os que se julgam portadores do bem e dos valores absolutos,
impostos à coletividade, ainda que seja pela via da força.

Além da radical restrição que impõe à liberdade individual, o absolutismo político


(autocracia), tem outros dois traços característicos:

- é mentiroso e

- em longo prazo, inoperante, pois não cumpre as promessas que faz. Isso acontece porque
as aristocracias se julgam portadoras de uma verdade universal que, efetivamente, não corresponde
aos anseios da sociedade, que é complexa e em constante mutação. O destino do absolutismo
político é, portanto, o fracasso histórico.

Enfim, o homem deve aceitar a relatividade axiológica e tentar construir a sociedade da


melhor forma possível, assumindo a intransferível responsabilidade de ser livre. E isto só pode ser
feito se conferirmos à palavra “liberdade” o elevado sentido de uma autonomia não apenas política,
mas principalmente intelectual.

II – O RELATIVISMO DA JUSTIÇA EM HANS KELSEN

1. A Justiça e a autonomia moral do Positivismo Relativista

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FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

III.
IV. Com o avanço da ciência contemporânea o jusnaturalismo perdeu força e
fôlego. A preocupação com a justiça passou a ser vista como uma questão puramente
metafísica e, portanto, desprovida de sentido, conforme asseverou Carnap. O objetivo da era
moderna era: libertar a Filosofia dos chamados metaproblemas, entre os quais estão os
problemas éticos e morais, até então tratados pelos filósofos.
V. Em fins do século XIX e início do século XX, a ciência jurídica, salvo algumas
exceções, já havia renunciado a tentar conhecer o conteúdo universal da ideia de justiça,
passando a identifica-lo ora como convencionalismo social e ora com o poder que o mais forte
exerce sobre o mais fraco. O pensamento jurídico engendrou o amplo movimento denominado
positivismo jurídico, que encontra raízes históricas e ideológicas no coativismo jurídico de
Von Jhering, no utilitarismo de Bentham e no positivismo analítico de Austin.
VI. Ao lado do positivismo jurídico, observa-se o nascimento da escola sociológica
do direito. Para os realistas, assim como para os positivistas, o problema da justiça não tem
nenhum sentido. A diferença é que, para os positivistas, a falta de sentido deriva da
impossibilidade lógico-científica de conhecer objetivamente a justiça. Já a escola sociológica
entende que o problema da justiça é insolúvel porque, não sendo o direito mais do que o
resultado de fatos sociais, não há qualquer exigência intrínseca e necessária de se crer na
existência de um elemento metafísico como a justiça.
VII. Como representante máximo do positivismo jurídico, seu ápice e o início de sua
decadência, Hans Kelsen também renuncia expressamente uma definição científica de justiça.
Segundo Kelsen, algo que pretenda científico deve ser detentor de uma validade universal, ou
seja, deve valer para todos, sempre e em qualquer parte. E tal não ocorre com o conceito de
justiça.
VIII. Só existem duas certezas quanto à definição de justiça:
IX. - a justiça é um valor superior que deve ser observado para a felicidade da
espécie humana.
X. - tudo o mais é controverso, inclusive os métodos idôneos para se alcançar a
solução justa em um conflito concreto.
XI. Continuando sua análise, Kelsen identifica a justiça como virtude individual
apenas em um segundo momento do pensamento social. Antes de enxergar em si mesmo a
justiça, o homem a percebe na realidade social, ou seja, em uma determinada ordem jurídica.
A sociedade justa vem antes do homem justo.
XII. Kelsen chega à seguinte conclusão: se a ordem justa é aquela que proporciona
felicidade a todos os seus membros, a justiça é algo impossível, pois não se pode garantir a
felicidade completa e irrestrita. Em alguns casos (não muito raros) a felicidade de uns implica
a infelicidade de outros.
XIII. Schopenhauer sustenta que a infelicidade abrange pobres e ricos. Abrange os
pobres em razão da insuficiência das condições básicas para manutenção de uma vida digna.
E os ricos são infelizes devido à construção de uma existência artificiosa. Por isso, para ele a
infelicidade é inalcançável.

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FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

XIV. Reconhecido esse problema gerado em razão da “infelicidade”, Kelsen passa a


solucioná-lo. Primeiramente, alega que a felicidade garantida por uma ordem social deve ser
objetivo-coletiva, e não subjetivo-individual. E para cumprir tal meta, a noção de justiça deve
sofrer transformação: “justo não é garantir tudo a todos, mas dar aos homens o que lhes é
devido em sociedade segundo o direito vigente”. Kelsen adverte-nos que o juízo do que é justo
ou injusto, segundo uma escala de valores, só é válido para o sujeito que julga, sendo, neste
sentido, relativo. Entretanto, Kelsen reconhece que não podem haver seis bilhões de
formulações de justiça no mundo.
XV. Kelsen nega veementemente a ideia de uma justiça absoluta, “pois do contrário
o problema da justiça seria transferido para o campo da metefísica, terreno onde a fé
representa a palavra final”. Para a ciência, o saber vem antes da fé. O saber é o início e o fim
do sujeito cognoscente.
XVI. O positivismo jurídico, ao contrário do jusnaturalismo, não pretende se basear
em valores e fundamentos absolutos. Kelsen lança mão da relatividade filosófica porque não
admite valores absolutos. De acordo com os preceitos do relativismo axiológico, existem várias
ordens morais e todas são igualmente válidas de antemão. É o indivíduo quem deve decidir
qual delas é a melhor, qual irá reger a sua vida e por qual lutará. Entretanto, o positivismo
relativista imputa toda a responsabilidade moral ao indivíduo. Segundo Kelsen, nós somos os
únicos responsáveis pelos nossos destinos. No jusnaturalismo tal possibilidade é negada ao
indivíduo porque a escolha é posta nas mãos de Deus, da natureza ou da razão abstrata (aos
jurisdicionados cabe apenas seguir os mandamentos criados pelos entes transcendentes).

É por não poupar o indivíduo de responsabilidades decisivas que as pessoas resistem com
tanto ardor a uma filosofia relativista. A maioria das pessoas não estápronta para assumir
consequências de seus próprios atos. É preciso que alguém lhes diga o que é a justiça e como devem
efetivamente se comportar na sociedade. A resposta incondicional e obrigatória que tais autoridades
fornecem apazigua, acalma e dilui a consciência daqueles que abdicaram da direção de suas
próprias vidas.

Seguindo o caminho aberto por Kelsen, Hart declara que apesar de os homens se
comportarem segundo um dado ordenamento jurídico, desse fato não nasce o dever de concordar
acriticamente com seus conteúdos. Entretanto, é esse acriticismo que se tem verificado no
transcorrer do desenvolvimento de nossas sociedades.

2. Conteúdo da norma jurídica de justiça, ciência e valores: para além de Kelsen ou com
Kelsen?

Miranda Afonso, ao dissertar sobre a concepção de ciência na doutrina de Kelsen, levanta


uma importante indagação: “se, como queria Kelsen, a ciência servisse unicamente para a
observância e para a descrição da realidade, ela não teria qualquer papel ativo no mundo”.
Continuando, Miranda Afonso diz que “o objetivo de Kelsen – construir uma ciência jurídica
independente das determinações do poder político –é louvável, mas os resultados que traz consigo
talvez sejam mais desastrosos que o mal combatido”.

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FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

Ocorre que a biotecnologia e a indústria pesada de armamentos e equipamentos bélicos


apenas engatinhavam na época em que Kelsen começou a teorizar acerca de seu sistema positivista.
Mas hoje dispomos de armas capazes de destruir várias vezes o planeta e também somos capazes de
criar cópias genéticas de nós mesmos. Entretanto, ao desenvolvimento científico não se seguiu um
correspondente desenvolvimento ético. Urge, portanto, repensar o fundamento e os limites da
ciência para além do seu aspecto formal, o que, na ciência jurídica, significa discutir o espinhoso
problema axiológico.

Segundo Miranda Afonso, é por meio da perspectiva crítica que o papel da ciência do direito
deve ser repensado, sendo inevitável o problema do enfrentamento dos valores. Miranda Afonso
não acredita que, pelo fato de um valor não estar objetivado em uma norma, será tido como
subjetivo, ou seja, variável ao infinito. Entretanto, o autor dessa obra discorda da posição de
Miranda Afonso, sustentando que os valores não são unívocos – a dignidade da pessoa humana não
é idêntica no Oriente e no Ocidente. Ademais, afirmar a subjetividade de um valor não é uma forma
de negar-lhe relevância.

O problema não se encontra nos valores subjetivos, mas ao contrário, nos objetivos. Quais
valores merecem ser objetivados? É óbvio que tais questões ultrapassam o âmbito estrito do
positivismo kelseniano... Entretanto, o que Kelsen ensinou muito bem é que somente o direito
consegue impor o respeito a um valor tão importante como o da dignidade da pessoa humana.

Segundo RecasénsSiches, “a principal tarefa da axiologia jurídica é determinar quais são os


valores supremos”. Entre eles o da dignidade da pessoa humana ocupa lugar privilegiado. Contudo,
de nada adianta afirmar que a dignidade humana é um valor valioso. Deve-se garantir sua
efetividade. E unicamente o Direito pode cumprir tal desideratum.

Segundo Hart, a justiça apresenta duas faces: uma formal e outra material.

- formal: tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, na medida de sua


desigualdade.

- material: qualifica as igualdades e desigualdades como relevantes e irrelevantes

Sendo assim, o autor desta obra acredita que cabe ao direito não apenas garantir a
aplicabilidade das normas positivas, mas também a dura missão de pensar nos critérios de justiça,
ou seja, na sua parte material e conflitiva.

Ao lidar com conteúdos, a ciência do direito corre o risco inevitável de privilegiar uma
orientação política ou um valor em detrimento de outros, postura que pode afetar sua autonomia na
busca pela verdade, conforme adverte Kelsen. A ciência jurídica terá que fazer opções e correrá o
risco de se equivocar, de ser subornada, coagida ou enganada pela “górgona do poder”. Todavia,
parafraseando Kelsen – “acreditamos que esse risco faz parte da honra do Direito. Deixar de corrê-
lo constitui posição cômoda e descompromissada com os problemas e misérias deste mundo, no
qual a maioria da população ainda é escrava da fome, da violência e do egoísmo”.

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FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

O grande problema da Teoria Pura do Direito não é o de legitimar sistemas jurídicos


autocráticos, mas, sim, sua total incapacidade de deslegitimá-los em face de princípios como o da
dignidade da pessoa humana.

É preciso superar o radicalismo kelseniano no que se relaciona à neutralidade científica. A


ciência não pode se enclausurar em si mesma e desconhecer o mundo no qual atua porque é
instrumento para satisfação de necessidades humanas. A forma de se utilizar a ciência é que pode
ser danosa, não a ciência em si. O próprio Kelsen acreditava que a Teoria Pura do Direito não
estava completa e que deveria continuar a ser trabalhada (não por ele, que como ser humano
imperfeito atingiu os seus limites, mas sim pelos outros que viriam –e vieram – depois).

Kelsen nos ensinr que a definição de direito não depende de nossas simpatias individuais ou
de qualquer critério subjetivo, sob pena de se legitimar e deslegitimar sistemas jurídicos ao alvedrio
da política do momento. Ao mesmo tempo, Kelsen nos faz entender que não há razão para deixar ao
direito vigente a tarefa de definir a justiça:é o indivíduo quem deve fazê-lo. O poder político e a
ciência do direito não podem livrá-lo desse fardo.

Mais adiante, o autor desta obra continua suas lições, sustentando que “dizer que um
conjunto de normas é jurídico não significa afirmar que deva ser obedecido incondicionalmente,
sacrificando-se para tanto quaisquer valores”. O cidadão, com base em sua autonomia moral, pode-
se recusar a cumprir uma norma válida, suportando é claro, as consequências de sua decisão. Para
descumprir o direito não é preciso reconhecer a sua “injustiça”. Ao contrário, é necessário que o
indivíduo saiba perfeitamente que está desobservando uma norma jurídica válida e assim estar
preparado para o que possa advir de tal prática.

O direito justo é um direito indiscutível, imune a críticas. Todavia, não existem valores
imutáveis e absolutos. O que se requer do homem é a compreensão de que há uma responsabilidade
moral – imputável a cada indivíduo e não a entidades transcendentes como Deus ou a natureza – de
se julgar os valores da ordem vigente segundo um padrão de justiça que garanta, pelo menos, a
dignidade da pessoa humana.

Não se trata de pregar a desobediência. O que está em jogo é algo bem mais profundo:
questiona-se sobre a capacidade de o indivíduo entender que nem sempre o direito deve ter a última
palavra no que se relaciona a questões morais e de justiça. O direito não pode nos obrigar a julgar
uma certa situação como justa ou injusta. Ao direito, como observa Kant, “é possível coagir
unicamente a conduta dos indivíduos, nunca sua vontade e consciência moral”. Alegar que uma
norma tida como imoral é jurídica e por isso deve ser cumprida constitui argumentação suficiente
no tribunal dos homens, mas não no de nossas consciências. Antes de sermos jurisdicionados,
somos cidadãos. E antes de cidadãos, homens.

3. A tolerância, a democracia e a dignidade da pessoa humana.

Kelsen, na sua conformação final de sua noção de justiça, invoca o princípio da tolerância.
Essa “tolerância” se relaciona à problemática da convivência de crenças diversas (religiosas,
políticas e filosóficas). Entretanto, essa expressão ganhou um significado hoje muito mais amplo, ao

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FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

se referir às minorias étnicas, linguísticas, raciais, sexuais, etc.O princípio da tolerância possibilita a
convivência pacífica dos sujeitos na sociedade.

Kelsen, adiante, conclui que a busca por uma norma abstrata absoluta é irracional. Ele deduz
então uma moral relativista que privilegia o princípio da tolerância e o pluralismo, ou seja, a
exigência de compreendermos e aceitarmos a opinião alheia mesmo que dela não compartilhemos.

Dessa maneira, muitas das críticas dirigidas a Kelsen perdem o sentido. Ao consagrar o
princípio da tolerância, Kelsen demonstrou que não comungava do credo autocrático e totalitário.
Para Kelsen cidadão, a tolerância e a democracia devem preencher o conteúdo do ordenamento
jurídico ideal.

A mais valiosa lição que Kelsen nos legou ao final de seus estudos sobre a justiça é aquela
segundo a qual “cada ser humano deve pensar e escolher sua norma de justiça”.

De acordo com Kelsen, a justiça se identifica com a liberdade. Ora, a democracia é a atual
forma mediante a qual a liberdade realiza concretamente seus intentos. E a ordem jurídica
democrática deve impedir ações antijurídicas que tentem subvertê-la.

Kelsen sempre se preocupou com a justiça: ele apenas localiza a justiça em um campo
independente do da ciência jurídica pura. Como visto, para a teoria kelseniana, os valores somente
se tornam objetivos e, portanto, hierarquizáveis, quando encampados por uma norma válida. Kelsen
sustenta que a ciência necessita de um ambiente específico onde estejam garantidos o debate e o
diálogo racional (que são elementos característicos das democracias).

Por fim, a ciência não pode se desenvolver em uma realidade na qual inexiste liberdade
política e de pensamento. Quando o Estado toma a verdade em suas mãos, acaba por negar o traço
fundamental da ciência, qual seja, o criticismo. E foi exatamente par manter viva a crítica que Hans
Kelsen ousou purificar o direito. Cumpre-nos hoje honrar o seu legado. Cabe-nos buscar a
reconciliação possível entre o direito, a justiça e o princípio da dignidade da pessoa humana.

CONCLUSÃO

A postura de Kelsen quanto à ideia de justiça é eminentemente crítica. Kelsen conclui que as
mais variadas teorias e normas de justiça não passam de fórmulas vazias.

Kelsen nega qualquer possibilidade de um conceito geral de justiça, pois entende que esse é
um problema com o qual a ciência do direito não deve se ocupar.

Podemos tecer as seguintes conclusões em relação ao pensamento kelseniano sobre a justiça:

- os valores são sempre relativos;

- um valor só será objetivo quando corresponder ao conteúdo de uma norma válida;

- existe correspondência histórica e teórica entre o absolutismo e o relativismo na Filosofia e


na Política;
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FILOSOFIA DO DIREITO E JUSTIÇA EM KELSEN

- o relativismo na política assume a forma de democracia; o absolutismo corresponde à


autocracia;

- não há um critério único para se definir a justiça;

- existem diversas normas de justiça e a ciência pura não pode nos dizer qual é a melhor;

- todas as definições de justiça apresentam caráter relativo e subjetivo;

- o direito não depende de qualquer ordem transcendente de justiça para ser reconhecido como
tal;

- as normas de direito positivo nada garantem em termos de justiça e de moralidade: suas


normas podem apresentar conteúdo moral, imoral ou amoral;

- de acordo com o positivismo jurídico, o indivíduo é quem deve responder à questão relativa
à justiça, e não o Estado ou a natureza;

- o único ambiente adequado ao exercício da autonomia moral no trato com a justiça é o


democrático (no qual prevalece o princípio da tolerância);

- para a criação de formulações relativas de justiça deve-se ter em mente não apenas os
costumes e os valores de certa época, mas também, uma série de pressupostos axiológicos que
fazem parte da herança espiritual da humanidade e não podem ser negados (a ideia da dignidade da
pessoa humana, por exemplo);

- tais pressupostos axiológicos devem ser utilizados de forma a afastar quaisquer ideias
absolutas de justiça (já que essas ideias são perfeitas para a legitimação de sistemas sociais
autocráticos).

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