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UM OUTRO OLHARi

Evgen Bavcar

Diante das interrogações que os problemas da visão, da cegueira e do


invisível levantam, uma resposta demasiadamente pessoal poderia ser preten-
siosa e pouco convincente. É refletindo sobre essas questões que lembro as
palavras de um amigo cego que, ainda criança, me disse: "Você sabe, a minha
situação seria insuportável se você e tantos outros iguais a mim não existis-
sem". No gueto onde vivíamos naquele tempo, a solidariedade se imporia para
cimentar a unidade de um grupo social etiquetado como "privado de visão fi-
sica". Quando penso nesta reflexão hoje, me soa ingênua, mas também muito
mais verdadeira do que aparece nessa formulação simples. Meu amigo sabia
que não estamos sós, e a primeira prova era a minha presença como interlocu-
tor, e em seguido aquela dos outros colegas da turma e a existência de tantos
outros que sabíamos que eram cegos, conforme as estimativas e classificações
das estatísticas. Talvez a frase "não estamos sós" designava inconscientemen-
te a presença muito mais largamente das pessoas que sofreram a nossa sorte e
também, simplesmente, a fortuna de cada indivíduo.
As figuras míticas vindas da nossa cultura greco-romana, como o Ci-
clope, Édipo, Ulisses, Tirésias, Argus, nos revelam a historia do olhar nas
suas formas mais primitivas. O Ciclope, por exemplo, arquétipo da visão
intuitiva a mais rudimentar, dotado de um olho só, vê de uma maneira uni-
dimensional. Para ele, ainda existe uma visão paradisíaca do mundo, e
mesmo ouvindo a voz de Ulisses, ele não pode se libertar desse apego ao
todo da natureza para começar a olhar de outra maneira. Por isso, no mo-
mento da castração simbólica, quando Ulisses o priva do seu único órgão

Evgen Bavcar é fotógrafo, escritor e filósofo esloveno naturalizado francês. Cego desde
os 12 anos, vem desenvolvendo um trabalho sobre o estatuto da imagem na conternpo-
raneidade. É doutor em Filosofia e Estética. Pesquisador do CNRS (França), desde 1976
e autor de inúmeros livros, dentre os quais Le voyeur absolu (1992).
Tradução de Francis Poulet, estudante de Antropologia em Lyon, França; revisão de Ma-
ria Carolina Vecchio e Freda Indursky.

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da visão, ele continua olhando em monocular e cai na armadilha do gran-
de espertalhão que conhecia a diferença entre forma e conteúdo, entre o
nome e a coisa. Mais precisamente, para o Ciclope, Ulisses e Ninguém são
um só e como seus irmãos entendem que ele não foi a VÍtima de ninguém,
eles não vão socorrê-lo. A sua visão continua sendo unidimensional e não
pode se opor à percepção binocular de Ulisses que vê, poder-se-ia dizer, o
nome e a coisa, em paralelo ou separadamente, conforme serve a seus pla-
nos estratégicos. Com Ulisses, aparece o olhar ligado ao saber: Ele vê o
que sabe e nada mais. Claro, é a mesma coisa com o Ciclope, mas sem saber
olhar, não há pensamento diferenciado e, consequentemente, ele deve olhar
sempre a mesma coisa, isto é, a unidade da natureza, o Um e indivisível na-
tural, que o leva ao seu trágico final. No desenvolvimento do "saber olhar"
rnítico, Ulisses representa o olhar normal, isto é, a visão comum, a visão na-
tural, considerada perfeita. Ulisses tendo vencido a batalha contra o Ciclo-
pe, o olhar monocular fica inadaptado quando o olho humano começa a pensar
o que vê e a fazer a diferença entre o significante e o significado, entre o ob-
jeto e o seu signo, a pessoa e o seu nome. De tal maneira que, em relação ao
Ciclope, Ulisses se situa no mesmo nível que a criança frente ao espelho, fren-
te ao objeto que vai fazer nascer nele o olhar diferenciado. Não é por acaso
que o olhar do Ciclope é representado na arte na forma de um espelho. Na
realidade, a figura de deste monstro infeliz repercute a nossa própria experiên-
cia diante do espelho que nos força a separar a imagem refletida do seu ob-
jeto real. Na realidade, somos todos ciclopes infelizes, tendo esquecido o
nosso destino trágico, certos e convencidos de que o olhar binocular de Ulisses
é a única resposta para a natureza. Isso significa que a nossa condição de
Homens acha com Ulisses a distância que nos permite pensar o mundo sem
recair na fatalidade rnítica. O sacrificio do olhar monocular do Ciclope é
necessário para pagar o privilégio de não olhar sempre a mesma coisa, sem
condições e sem esperança de também ver por nós mesmos. O olhar mono-
cular é o olhar da fatalidade que é, afinal de contas, cega porque se refere a
si mesma, se repetindo infinitamente como o fazem os espelhos. Nessa pers-
pectiva, Ulisses representa o olhar destacado do determinismo arcaico que,
no destino de Édipo, vai vestir uma outra forma, a cegueira.
O rei, não tendo reconhecido a sua mãe, fica cego para poder olhar
a mulher. Isto é, para superar o pecado original no qual ele cai sem sa-
ber. Assim, a sua resposta à Esfmge: "É o Homem" encontra todo o seu
valor. Binocular perfeito, Édipo não sabia que não podia sair da fatalida-
de mítica sem cair na consciência da sua condição de homem; e é aqui
que começa a-se preparar o nascimento do terceiro olho. Édipo, tendo
perdido a visão - a sua dupla visão - não pode mais navegar entre a vol-
ta para a fatalidade e a separação insuportável de um Ulisses que se con-

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tenta com a diferenciação visual entre o nome e a coisa. Privado dessa
capacidade, Édipo se dirige para uma terceira possibilidade, uma visão
que vai além do todo-mítico e o ver diferenciado de Ulisses para se dire-
cionar ao invisível. A frase de Kazantzakis talvez tenha sido escrita para
esses Ulisses satisfeitos com eles mesmos e com suas visões diferencia-
das: "Que pena dos nossos olhos de argila, porque não podem perceber
o invisível". Para Édipo, trata-se do sacrificio dessa argila para que o in-
visível - uma outra forma de existência - se tome o objeto do seu dese-
jo. Privado da visão binocular, ele acha um referente sintético no tercei-
ro olho, pois só esse pode ir em direção ao invisível. Infelizmente, o des-
tino de Edipo foi freqüentemente mal-entendido, pois os cristãos o con-
sideraram às vezes como "o monstro grego", sem admitir que ele repre-
sentava uma parte deles mesmos. É por isso que a tradição cristã o subs-
tituiu pela figura de Santa Luzia, que mexe mais no plano do imaginário
e, com a acentuação iconográfica da castração simbólica, tenta ocultar
ao mesmo tempo, a castração real e a noção do pecado original. Também
não podemos esquecer todas as grandes injustiças, os preconceitos e os
ultrajes que afetam aqueles que, no imaginário, fazem o papel de Édipo,
o grupo social etiquetado "os cegos", apesar do seu terceiro olho.
A arqueologia do olhar nos ensina que essa nova qualidade da visão
humana se expressa melhor ainda no olhar de Tirésias, arquétipo perfeito
do olhar desprendido dos fundamentos rníticos. Tirésias nos propõe, de certa
maneira, os olhares-limite, isto é as visões que nunca aceitam o mundo
como está e sim como poderia ser. A sua interpretação da frase do oráculo:
"É preciso se defender dos persas atrás de paredes de madeira", não se sa-
tisfaz com o significado contido no enunciado simples, mas procura ir além
de nomes como "paredes", "madeira", até criar a síntese num terceiro ter-
mo: "os navios". O resultado dessa visão é um processo criador que a libe-
ra do determinismo contido nas palavras "paredes" e "madeira". O olhar
de Tirésias, vai mais longe do que a visão dos simples mortais que vêem e
portanto entendem no primeiro sentido a reposta do oráculo: "tem que se
defender dos persas atrás de paredes de madeira".
Poderíamos adicionar também neste processo dos olhares que os ar-
quétipos míticos nos livram, o olhar de Argus, que consegue tão bem ver
sem ser visto. É claro que isto nos levaria longe demais na arqueologia
da visão. Portanto, é verdade que o mundo moderno, com suas inumerá-
veis cârneras, visíveis e invisíveis, começa a sonhar com o poder de Ar-
gus quando, às vezes, na sua cegueira generalizada perde a consciência
de poder ser visto. Poder olhar sem ser visto é o sonho de um mundo
policial que não se pensa mais ele mesmo, mas se acha absoluto nas suas
visões aparentemente ilimitadas. Na época do todo visual, que começa a

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nos fazer esquecer da importância do verbo e da narração, somos obri-
gados a nos interrogar sobre as fantasias de Argus para não nos esquecer
de que por mais perfeito que seja esse Argus que constitua a técnica da
ótica moderna, os olhos de argila, que nem sempre podem ir ver o invisí-
vel, são o seu suporte real.
Quanto mais o mundo visível se estende, mais cresce também, na mes-
ma lógica e nas mesmas proporções, o mundo invisível. Para que servem
todos os satélites de observação, Argus do espaço, se não sabemos mais
olhar além do nosso pequeno cotidiano visível? Até os cientistas mais sé-
rios sabem que a extensão da nossa visão é muito pequena quando compa-
rada com o que as máquinas podem captar do real. O astrofisico Peter von
Balmoos acha que até os cientistas que observam o céu estão numa posi-
ção de cegos, pois no universo conhecido comparado com um piano de 53
oitavas, eles só podem ver uma mera oitava com os seus próprios olhos.
Neste caso, não deveríamos confiar somente no olhar tecnológico da ciên-
cia, se nossa língua, nossa representação interior, não são capazes de se-
gui-lo. Portanto, como diz um provérbio russo, é melhor "acreditar no seu
próprio olho, mesmo se for vesgo".
No domínio da ciência moderna, seria desejável dar mais valor ao
nosso terceiro olho, aquele da representação interior, voltado para o in-
visível. Nosso mundo moderno se tomou uma evidente, pois aparente-
mente tudo é transparente e reconhecível. As câmaras que nos observam
desde o céu, mas também aquelas instaladas nos nossos lares terrestres,
são a expressão de um Argus tecnológico, que voltou seus inúmeros olhos
para o interior, isto é, para a auto-satisfação narcísica do olhar sobre si.
Nós nos observamos, tendo esquecido que esses olhares já são manipu-
lados e não nos permitem ver-nos como somos verdadeiramente. Sobre
esse assunto, poderíamos evocar o pessoal da televisão que é visto sem
poder ver; mas é assim para todo mundo: o fato de ser visto sem poder
olhar vira uma prática universalmente difundida. Ás vezes, eu penso que
o meu colega cego, na escola, dizia a verdade quando constatava que não
estávamos sós. Seria preciso definir de outra maneira a cegueira em re-
lação ao mundo dos videntes, que acreditam ver tudo, mas esqueceram
que passar por Édipo e Tirésias é o nosso destino comum. Plotin dizia:
"se os homens não tivessem alguma coisa de solar, eles não poderiam
perceber o sol". Nós provavelmente nos esquecemos disso, recusando aos
nossos olhos, que participam da essência das estrelas, o direito às origens
e o direito de olhar para o infinito".
Todavia, em todas as épocas da história do homem, existiu um infi-
nito,além do horizonte do nosso olhar físico. O infinito, como aspiração
para ir além do visível, sempre foi a nossa vontade de ver as coisas exte-

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riores pela nossa interioridade também, e de dar assim ao nosso olhar ex-
terior a capacidade de exceder as visões mais imediatas. No olhar huma-
no de hoje, se reflete a memória de todos aqueles que, antes de nós, que-
riam olhar com os seus próprios olhos e que nos deram como herança o
poder de continuar a missão deles nas dimensões temporais e nos espa-
ços do universo que são os nossos. É por isso que temos que levar a sério
essa missão transmitida por tantos olhares que, apesar de um apoio te c-
nológico fraco, descobriram novos mundos e realidades celestes inédi-
tas. Isto também significa que não devemos nos contentar com o céu es-
trelado por câmeras que nos observam, mas que sempre devemos tentar
olhar com os nossos próprios olhos, por mais frágeis que sejam. São os
cegos que recusam ver somente através do unidimensional do olhar e que
acreditam na necessidade mítica da passagem pela cegueira para acessar
a uma nova visão do mundo. Não posso imaginar nova visão que não te-
nha sua origem no ponto cego que dá ao olho humano a possibilidade de
distinguir entre a luz e as trevas.
Aceitar a cegueira é admitir o mundo dos objetos que manifestam a
sua materialidade através das sombras que lhes asseguram uma realidade
tangível, além da transparência absoluta do todo-visível. Não podemos virar
reféns da luz fugindo á fatalidade mítica que nos priva da alegre fusão com
a natureza, para poder tomar distância e entender o enigma da Esfinge. Por
isso, nunca quis considerar a cegueira no mero plano individual, isto é, no
gueto do grupo social do qual pertenço, mas sempre em um contexto mais
amplo da experiência universal. Para mim, os cegos representam o único
grupo que ousa olhar o sol bem nos olhos. Como as antigas vítimas propi-
ciatórias imoladas aos cultos solares, eles aceitam o sacrificio para que outro
sol se levante. Esses Narcisos sem espelhos e esses pintores privados de
imagens, para mim, nunca constituiriam uma categoria separada na qual a
humanidade teria querido os deixar, mas são seres humanos inteiros. E
encontro freqüentemente arquétipos da cegueira quando vago em minhas
galerias interiores' onde, às vezes, convidados insólitos me fazem compa-
nhia em meus olhares para o invisível. Essas silhuetas não me amedron-
tam como antes, quando a decisão de outrem, muito mais do que minha
própria experiência, faziam de mim um cego. Se me defino como icono-
clasta exterior e iconófilo interior, é para tentar reconciliar os dois modos
de visão possíveis, e sobretudo para revalorizar o olhar do terceiro olho.
Penso que, desde os gregos, esse foi esquecido ou escondido pelos progres-
sos de uma visão que pretende ver tudo sem saber nada e sem representar
o que ela viu. Comunicando ao outrem as imagens dos meus próprios al-
gures, faço de minha fotografia uma espécie de diálogo que lhe assegura
uma existência interativa. Pensando bem, me contento com o frágil vis-

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lumbre que ilumina os meus espelhos interiores e dão um sentido às ima-
gens dos sonhos. Porque esquecemos muito freqüentemente que os sonhos
também precisam de luz e de ícones a quem mandar as suas rezas notur-
nas. Por mais fracas que sejam, as imagens de sonhos sempre são a expres-
são de uma natureza outra que, na banal transparência do cotidiano, opõem
as frágeis visões iluminadas interiormente, isto é, por elas mesmas.
Podemos, com a mesma lógica que fez dizer a Plotin que o olho hu-
mano não poderia ver o sol se não tivesse ele mesmo alguma coisa solar,
afirmar que o dia que nos maravilha não nos daria uma mera imagem se o
nosso olho não estivesse preparado pelos sonhos noturnos. E se às vezes
somos forçados a observar o mundo de olhos fechados, é sobretudo para
conservar o caráter frágil dos sonhos que nos levam para os espelhos do
invisível.

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Texto retirado de: Fonseca, Tania Mara Galli; Kirst, Patrícia Gomes (orgs.).
Cartografias e Devires: a construção do presente. Porto Alegre. Ed. UFRGS, 2003.

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