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A (In)(Corpo)r(Acção) Precoce dum jogar de

Qualidade como Necessidade


(ECO)ANTROPOSOCIALTOTAL
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal, que «primeiro se
estranha e depois se entranha» e … logo, logo, ganha-se!

Jorge Miguel Gonçalves Maciel

Porto, 2008
A (In)(Corpo)r(Acção) Precoce dum jogar de
Qualidade como Necessidade
(ECO)ANTROPOSOCIALTOTAL
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal, que «primeiro se estranha
e depois se entranha» e … logo, logo, ganha-se!

Monografia realizada no âmbito da disciplina


de Seminário do 5º ano da licenciatura em
Desporto e Educação Física, na opção de
Futebol, da Faculdade de Desporto da
Universidade do Porto

Orientador: Professor Vítor Frade


Autor: Jorge Miguel Gonçalves Maciel

Porto, 2008
Maciel, J. (2008). A(In)(Corpo)r(Acção) Precoce dum jogar de Qualidade como
Necessidade (ECO)ANTROPOSOCIALTOTAL - Futebol um Fenómeno
AntropoSocialTotal, que «primeiro se estranha e depois se entranha» e … logo,
logo, ganha-se! Porto: J. Maciel. Dissertação de Licenciatura apresentada à
Faculdade de Desporto da Universidade do Porto.

PALAVRAS-CHAVE: CORPO; FENÓMENO ANTROPOSOCIALTOTAL;


INCORPORACÇÃO; PERIODIZAÇÃO à LA LONG; PRECOCIDADE.

II
Dedicatória

Dedico esta dissertação à minha AVÓ, que de uma forma


ESPECIAL, me acompanhou ao longo destes cinco anos de estudo.
Muito do que fiz, foi para te honrar e te deixar orgulhosa.
Penso que consegui, pela tua ajuda OBRIGADO!

Giló no melhor e no pior serás sempre um exemplo de Vida para


mim. Esta dissertação também é tua e também dedicada a ti.
OBRIGADO PELOS MUITOS E BONS MOMENTOS!

III
“A principal esperança das nações reside na educação da sua juventude.”
(Erasmo, cit. por Goleman, 2003, pp. 283)

“Porém, será que temos ideias claras quanto ao lugar da ciência na totalidade
da vida humana – o que deverá exactamente fazer e por que fins se deve
pautar? Este último aspecto é crucial, pois, a menos que a ciência seja
orientada por uma motivação consciente ética, em especial pela compaixão, os
seus efeitos podem não ser benéficos. Na realidade, podem provocar grandes
danos.” (Dalai-Lama, 2006, pp. 17)

“Pontos de vista, conceitos ou ideias que não se ajustavam à estrutura da


ciência clássica não foram levados a sério e, de um modo geral, foram
desprezados, quando não ridicularizados. Em consequência dessa
avassaladora ênfase dada à ciência reducionista, nossa cultura tornou-se
progressivamente fragmentada e desenvolveu-se uma tecnologia, instituições e
estilos de vida profundamente doentios.” (Capra, 2005, pp. 226)

“O reconhecimento de que é necessária uma profunda mudança de percepção


e de pensamento para garantir a nossa sobrevivência ainda não atingiu a
maioria dos líderes das nossas corporações, nem os administradores e os
professores das nossas grandes universidades.” (Capra, 1996, pp. 24)

“Quando lhe contaram que tinha sido publicado um livro intitulado Cem Autores
contra Einstein, exclamou: «Porquê cem? Se estivesse errado, bastaria um.»”
(Hawking, 2002, pp. 26, referindo-se a Albert Einstein)
Agradecimentos

Fazendo minhas as palavras de J. Bento (2004, pp. 27) “sei que a memória
dos homens raramente vai além da missa do sétimo dia. A memória e a
gratidão. E não obstantes as duas qualidades são elevadas à categoria de
virtudes no contexto da cultura ocidental. A tal ponto que a falta de gratidão é, a
par da traição, porventura o maior dos pecados mortais.
Ora é precisamente para me pôr a salvo da tentação de incorrer em tal
infâmia que me apresso a agradecer” a todos aqueles que colaboraram e
contribuíram para a feitura desta Ecodissertação, que como tal, também lhes
pertence. Assim agradeço:

A realização e orientação desta Monografia, àquele que não aceita que haja
alguém mais “maluco” por Futebol do que ele, “um cérebro científico como é o
do professor Vítor Frade”, como um dia referiu José Mourinho (in Record Dez
de 25 de Fevereiro de 2006).
É para mim, um enorme orgulho poder ter sido orientado por alguém que é,
um dos mais conceituados pensadores do Jogo e do treino a nível
internacional, como se pode ler no jornal “A Bola” do dia 10 de Novembro de
2007, no qual é igualmente reconhecido por Carlos Queiroz, como o símbolo
máximo da qualidade do trabalho desenvolvido na Faculdade de Desporto da
Universidade do Porto, que “só não é suficientemente e devidamente
reconhecida em Portugal.”
Professor, as ideias são suas, limitei-me a colocá-las no papel imbuído pelo
contágio apaixonante com que fala de Futebol e com que acompanhou a
“feitura” deste documento. OBRIGADO!!! E OBRIGADO por me ter tirado, ou
levado a tirar muitas das palas que me estorvavam a compreensão do Jogo.
Motivo pelo qual me revejo, na história de Tamarit (2007) que vindo de
Espanha para a nossa Faculdade, reconheceu a existência de duas correntes
de entendimento do Jogo e do treino, uma semelhante à que se verifica em
todo o lado, e outra “opuesta a la existente en las Metodologias de
Entrenamiento impartidas en todas las Faculdades” da qual me tornei um

V
aficionado esclarecido, “poco a poco fui creyendo en sus ideas, hasta
convertirme en un fiel seguidor a sus teorias.” (Tamarit, 2007, pp. 20/21). Estes
anos têm sido fascinantes.

À minha FAMÍLIA, de modo especial aos meus PAIS. Não sei se os genes
que herdei são bons ou maus, também não sei se sou “Talento” ou não, sei
apenas que sou fruto de um processo de construção e de exponenciação que
fez de mim o que com orgulho sou, e no qual o “nicho ecológico” que me
proporcionaram foi determinante. Por tudo o que temos vivenciado juntos, e
pelo processo de Especificidade Precoce de preparação para Vida que me
proporcionaram, MUITO OBRIGADO. Vocês sabem.

Aos meus entrevistados: Professor Doutor Manuel Sobrinho Simões,


Professor Doutor Leandro Massada, Professora Luísa Estriga, Professor
Doutor Paulo Cunha e Silva e Professora Marisa Gomes, o vosso contributo
foi um acrescento qualitativo muito relevante. Obrigado por acederem ao
pedido e obrigado pelo conteúdo das conversas que tivemos. Foram óptimos
momentos.

A todos os que acompanharam a feitura desta dissertação, de modo especial,


ao Tiago Moreira, aos meus colegas de estágio, Henrique e Daniel, que
aguentaram comigo nos bons e maus momentos, ao longo deste ano.
Obrigado.

VI
Índices

Índice Geral

DEDICATÓRIA III

AGRADECIMENTOS V

ÍNDICE GERAL VII

ÍNDICE DE FIGURAS XII

ÍNDICE DE QUADROS XIII

RESUMO XV

ABSTRACT XVII

RÉSUMÉ XIX

1 – INTRODUÇÃO (MOTIVAÇÕES, ACTUALIDADE, OBJECTIVOS E


ESTRUTURA): 1

2 - ABORDAGEM ETNOMETODOLÓGICA UM IMPERATIVO PARA O


DECIFRAR DE UM FENÓMENO ANTROPOSOCIALTOTAL 11

3- FUTEBOL UM UNIVERSO DE RELAÇÕES: 19


3.1- Desporto um Fenómeno Social Total: 19

3.2- Futebol, um «epifenómeno» que é um Fenómeno Social Mais Total: 22

3.2.1 - Futebol um Fenómeno com relações e ralações com as instâncias Sociais:


Política, Religiosa, Económica e muito mais … 29

3.2.1.1- Futebol e Política ou Política e Futebol?! Como queiram, a relação é biunívoca. 30

3.2.1.2- Futebol e Religião, espaços de Heróis e Deuses. 42

3.2.1.2- Futebol e Economia, os riscos de abanar definitivamente «a árvore das patacas».


48

3.3- Futebol a sua omnipresença, e os efeitos e enfeitos da Globalização: 51

3.3.1 - Futebolização, um «pau de dois bicos» ou talvez não?! 54

3.3.2 - Futebol Feminino, um dos enfeitos da Globalização do Fenómeno: 57

3.4 – «Mostra-me como jogas dir-te-ei quem és», Futebol e as suas Idiossincrasias: 59

VII
Índices

3.5 - «Pressa» e «Homogeneização», emergências que são urgências num Futebol


agrilhoado pelos males sociais. 74

3.5.1 – O Futebol carece de passagens de nível: «Pare, Olhe e Escute». A importância de


«cozinhar» Talentos em «Banho – Maria»?! 75

3.5.2 – Homogeneização no Futebol?! O Futebol como a fast food. 85

3.6 – Do eclipse do Futebol de Rua, ao regresso retrocedente ás origens passando pelo


«encanto enganoso», e pela necessidade de um Útero Artificial. 89

3.6.1 – O Eclipse da Melhor Escola de Futebol do Mundo, o Futebol de Rua: 90

3.6.2 – O regresso retrocedente às Origens elitistas e a ameaça da Lógica Maquínica: 91

3.6.3 – O «Encanto que pode ser Enganoso»: 96

3.6.3 – A necessidade de Úteros Artificiais: 98

4 - FUTEBOL UM FENÓMENO ANTROPOSOCIALTOTAL: 103


4.1 – Antropo?! «Pertinente parece-nos!» 103

4.2 – A necessidade da COMPLEXIDADE, para a compreensão de um fenómeno Humano:


104

4.3 - Futebol «uma dimensão das duas faces que a moeda (da Vida) tem»: 107

4.4 – Futebol e o encontro com a Humanidade: 111

4.5 – Homem e Futebol a “Inteireza Inquebrantável” como um traço comum: 113

4.6 - Homem e Futebol Realidades Plurais, a importância do Culto da Diferença e da


expressão plural da Antropodiversidade: 122

4.7 – Em torno da complexidade dos Sistemas Vivos no Futebol, em busca de algumas


Categorias Antropológicas: 133

4.7.1 – A necessidade de um novo entendimento de Categorização, para fazer «Ciência»


de categoria: 133

4.7.1.1 – Para sistemas complexos, uma abordagem em complexidade: Futebol e Homem


são como as cebolas, se os picarmos em pedacinhos, fazem-nos chorar! 137

4.7.1.2 – Bem-vindos ao CAOS! O desejo de compreender o «incomensurável». 145

4.7.1.2.1 – Rotatividade uma imprescindibilidade exclusiva do Rendimento Superior?! Ou


mais do que isso?! Que implicações no processo? 148

4.7.1.2.1 – A fatalidade de não reconhecer as Fractalidades do Jogo e do jogar. 154

4.7.1.2.2 – A «ATRACÇÃO» vital, que pode revelar-se fatal. 160

4.7.1.3 - Para a perpetuação da Paixão, e não extinção do Talento urge um Futebol na


«Fronteira do Caos». 165

VIII
Índices

4.7.1.4 – A necessidade de Dissipação, um “Doping” numa Cultura que desde muito cedo
deve ser de Risco. 168

4.7.1.5 – EcoAutoOrganização, o emergir de jogares e Talentos AutoHeteroSustentáveis.


171

4.7.1.6 – Porque o Futebol não é «ping-pong», a CRIATIVIDADE carece de ser


contextualizada por um jogar! 178

4.7.1.6.1 – TreinarRecuperar fundamental para criar. A necessidade de atender ao


Princípio Metodológico da Alternância Horizontal em Especificidade 182

4.7.1.6.2 – Criatividade, com TRÊS ou mais, ainda é melhor?! 186

4.7.1.6.3 – A expressão Criativa no Jogo, elevação do Futebol à categoria de Arte. 189

4.7.2 – Futebol, uma expressão Cultural AnarcoGregária. 199

4.7.3.1 – Futebol, um Jogo Táctico, um lugar de Inteligência(S). 205

4.7.3.2 – INTELIGÊNCIA como Categoria Antropológica. 210

4.7.3.2.1 – Inteligência ou INTELIGÊNCIAS, do entendimento Plural, à INTELIGÊNCIA DE


JOGO. 212

4.7.3.2.2 – Inteligência Emocional, a “fusão” de Intenções! 213

4.7.3.2.2 – Inteligência Social, determinante num Fenómeno Gregário. 217

4.7.3.2.2 – Inteligência Cinestésico – Corporal, as primeiras «achegas» à hipótese do


Futebol requisitar Inteligência(S) específica e Específica(S). 219

5- O APARENTE PARADOXO, UM FENÓMENO ANTROPOSOCIALTOTAL


QUE É SIMULTANEAMENTE UM FENÓMENO APARENTEMENTE
CONTRANATURA: 223
5.1 – “Levanta-te e anda” o Bipedismo, como faceta evolutiva determinante, as suas
vantagens e desvantagens: 224

5.2- Pubalgia e afins, os condicionalismos Antropológicos da zona média do corpo. 229

5.3 – As bases anatómicas da Hominização, «atando-nos» de pés mas não de mãos, a


emancipação das Mãos, os dois novos Cérebros: 234

5.4 – O Futebol requisitando uma funcionalidade ancestral, daí um Fenómeno


aparentemente ContraNatura: 238

5.4 – Futebol um Fenómeno «ao lado da natura»: 246

6 – EM BUSCA DA EXEQUIBILIDADE DO TRINÓMIO MAIS FUTEBOL, MAIS


CRIANÇA, MAIS EDUCAÇÃO: 253
6.1- A Brincar a Brincar é que o Talento começa a despoletar: 253

6.2 – Futebol e o seu valor Formativo: 258

IX
Índices

6.3 – Treino como Processo de EnsinoAprendizagem e o Treinador como Formador: 261

6.4 – Quanto mais e mais cedo melhor, desde que seja Futebol?! 267

6.5 – Especificidade Precoce e a Qualidade dos Ingredientes que podem Nutrir o Útero
Artificial: 285

6.5.1 – A Bola como Companhia, o Primado na Relação com Bola: 285

6.5.2 – Jogo(S) Reduzir Sem Empobrecer, para Enriquecer o Talento e o Prazer: 295

6.5.3 – Um Talento Humano é um Competidor, a Resiliência como parte da Qualidade: 309

6.5.4 – Formando Talentos e não «atletas guerreiros», a importância de separar por


níveis: 324

6.5.5 – A Variabilidade dentro da Qualidade: 334

6.5.6 – Observar Qualidade para Criar Talentos de Qualidade: 349

7 – O FUTEBOL COMO A COCA-COLA, «PRIMEIRO ESTRANHA-SE


DEPOIS ENTRANHA-SE»! A IMPORTÂNCIA DA INCORPORACÇÃO
PRECOCE DO JOGO NA EXPONENCIAÇÃO DE TALENTOS: 365
7.1 – Talento uma realidade em Potencial, a importância da sua Exponenciação: 365

7.2 – A Plasticidade Cultural de uma realidade Plástica, o Corpo: 383

7.3 – Cartografar o Jogo no Corpo: 393


7.3.1 - Mapas que nos orientam para um Jogar Melhor: 393

7.3.2 – Da Paisagem de Jogo, à possibilidade da Bola ser um prologamento do Corpo:


399

7.4 – Somatização Precoce do Saber - Fazer: 404

7.4.1- A importância dos Hábitos num Futebol que tem de ser como o Inferno, «cheio de
boas intenções»! 404

7.4.2 - Old Traford é o «Teatro dos Sonhos» no Mundo do Futebol um «Teatro de


Emoções» Somaticamente MARCADAS. 413

7.4.3 – A necessidade de desenvolver a Inteligência Intuitiva. 417

7.4.4 – Atender à NeuroQuímica do Prazer para aceder a um Futebol Prazenteiro. 422

7.4.5 – PréRepresentar o jogar através da operacionalização de Jogos Cognitivos. 427

7.5.1- Para além do SABER – FAZER: 429

7.5.2. - Futebol um local de «ALDRABÕES», Conscientes!? 433

7.5.3. – Descoberta Guiada como uma dimensão da fenomenotécnica do treinar: 436

7.5.4.1 - Periodização Táctica e Neurociências de encontro à necessidade de uma


concepção FENOMENOLÓGICA da Consciência no Futebol: 441

X
Índices

7.5.4.2 - Consciência um conceito Subjectivo e Plural, num Fenómeno Plural: 447

7.5.5. – A necessidade de um Futebol Sentido, e a necessidade de dar sentido aos


Sentimentos desse Futebol: 452

7.6 – Acção Corporalizada, a Inteligência de Jogo como um Saber Corpóreo


(InCorporAcção): 456

7.6.1 – Um novo entendimento do agir a «PercepAcção»: 456

7.6.2 – Acção Corporalizada (InCorporAcção): 464

7.6.3 – Inteligência Corpórea, um processo de delegação que necessita de uma


Articulação de Sentido: 469

7.6.4 - Inteligência de Jogo, de jogo e Entendimento de Jogo: 473

7.7 – InCoporAcção/Somatização, o «ENTRANHAR» prevalecente da Inteligência de


Jogo: 477

8. EVIDÊNCIAS CONCLUSIVAS: 481

9 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 513

10 – ANEXOS I
Anexo 1: Entrevista a Manuel Sobrinho Simões I

Anexo 2: Entrevista a Leandro Massada XVII

Anexo 3: Entrevista a Luísa Estriga XLI

Anexo 4: Entrevista a Paulo Cunha e Silva LVII

Anexo 5: Entrevista a Marisa Gomes LXXVII

Anexo 6: Após conversa com Guardiola – “Esboço de uma ideia de jogo” CI

Anexo 7: “Viva a brincadeira”. Por Carlos Neto, in Notícias Magazine de 01 de Junho de


2008, pp. 56/57. CVII

Anexo 8: “PRIMEIRA LINHA” – Entrevista a José Mourinho”, in Jornal de Negócios de 30


de Maio de 2008, pp. 4 – 7. CIX

XI
Índices

Índice de Figuras

Figura 1- Cladograma relativo aos hominóides actuais 240


Figura 2 - Mãos e pés de diferentes primatas 243
Figura 3 - Comparação do pé do chimpanzé e do Homem 243
Figura 4 - Hómunculo Motor e Sensitivo 245
Figura 5 - Primeiros passos da Criança Humana 249
Figura 6 - Relação complexidade de jogo e redução de espaço e efectivo
numérico 298
Figura 7 - Bola de trapos utilizada por Pelé na infância 336
Figura 8 - Áreas sensoriais e Representação cortical somestésica 394
Figura 9 - Cortéx Cerebral 1 462
Figura 10 - Cortéx Cerebral 2 463

XII
Índices

Índice de Quadros

Quadro 1 – Morfociclo Padrão 484


Quadro 2 – Princípios Fundamentais, Culturais e tipos de Princípios 488
Quadro 3 – Princípios de Jogo Específicos 489

XIII
RESUMO

RESUMO
O Futebol é um fenómeno Humano único a nível mundial. Por este motivo
influencia e é influenciado pelas diversas sociedades. Por conseguinte exerce
desde idades muito precoces, um fascínio especial sobre os indivíduos,
tornando pertinente a racionalização dos processos de Formação. Estes, se
devidamente racionalizados, permitem que a prática precoce se revele
favorável ao desenvolvimento de Talentos, que no Futebol, têm de revelar uma
adaptabilidade especial, mas, cuja expressão qualitativa, é tanto mais possível,
quanto mais precocemente se iniciar a prática de qualidade do Futebol. O
presente estudo, articula informação proveniente de diferentes domínios, os
quais nos permitiram responder aos seguintes objectivos: (1) evidenciar que o
Futebol é um Fenómeno Social Total; (2) realçar a pertinência do conceito
AntropoSocialTotal; (3) apresentar o Futebol como um fenómeno complexo; (4)
evidenciar que o Futebol é aparentemente ContraNatura; (5) evidenciar como
determinantes as práticas de infância dos Talentos; (6) sustentar essas
práticas; (7) evidenciar que a racionalização do processo de Formação, torna
exequível o Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação; (8)
evidenciar, que a prática precoce de qualidade é determinante; (9) inferir
acerca dos efeitos da prática precoce sobre o Corpo; (10) sustentar a
importância da prática precoce na alteração da funcionalidade Corporal; (11)
explicitar que a Inteligência de Jogo, é uma Inteligência Corpórea adquirida por
InCorporAcção; (12) evidenciar a importância da Aculturação ao fenómeno
fazendo-se com base em referenciais de qualidade; (13) evidenciar a
necessidade de uma lógica congruente, conceptual e metodologicamente,
entre a realidade do Futebol de Formação e do Futebol dos adultos.
Destacamos em termos de conclusões, que o parto de Jogadores e de
Talentos (realidade Ecogenética), pode encontrar-se facilitado se nos
processos de Formação tiverem subjacente uma Concepção Metodológica
(Periodização Táctica/Periodização à La Long) e uma Cultura de Jogo (Modelo
de Jogo) comum e congruente com a realidade sénior, respeitando
coerentemente o Trinómio Modelo de Jogo, Modelo de Jogador, Modelo de
Treino, desenvolvendo a Inteligência de Jogo, através da sua InCorporAcção.
Palavras-Chave: CORPO; FENÓMENO ANTROPOSOCIALTOTAL;
INCORPORACÇÃO; PERIODIZAÇÃO à LA LONG; PRECOCIDADE.

XV
ABSTRACT

ABSTRACT
In a world standard, Soccer is a unique Human phenomenon. By this reason,
it persuades and is persuaded by divers societies. Consequently, it exerts since
young ages, a special enchantment over individuals, rendering suitable the
rationalization of the Forming process. These, if properly rationalized, permit
that precocious practice will be favorable for the development of Talents, that in
Soccer, have to reveal exceptional adaptability, but whose qualitative
expression, is much more possible according to the sooner or more
precociously the individual initiates soccer practice. The present study,
articulates information coming from divers sphere’s, that permits us to answer
the following matters: (1) to clearly show that soccer is a Total Social
Phenomenon; (2) to emphasize the relevancy of the “TotalAnthropoSocial”
concept; (3) present Soccer as a complex phenomenon; (4) highlight that
soccer is totally counter-natural; (5) to clearly show as determinant the
precocious practice of Talents; (6) to sustain those practices; (7) to obviously
show that the rationalization of the Forming process, makes executable the
Trinomial More Soccer, Better Child, Better Education; (8) clearly show that
premature quality practice is determinant; (9) to infer about the effects on Body
of precocious practice; (10) sustain the importance of premature practice in the
modification of Corporal Functionality; (11) clarify that the Intelligence of Game,
is a Corporal Intelligence acquired by “InCorpusAction”; (12) highlight the
importance of Culture on this phenomenon basing itself on quality references;
(13) showing the need of a consistent logic, conceptual and methodologically,
between the reality of Soccer Forming and of Adult Soccer. As conclusive we
affirm, that birth of Players and of Talents (“Ecogenetic” reality), can be easier if
in the process of Forming they have as underlying Methodological Conception
(Tactical Spacing/ À La Long Spacing) and a Game Culture (Game Model)
common and consistent with Senior reality, coherently respecting the Trinomial
Game Model, Player Model, Training Model, developing the intelligence of
game through its InCorpusAction.
Key-Words: BODY; TOTALANTHROPOSOCIAL PHENOMENON;
INCORPUSACTION, À LA LONG SPACING; PRECOCIOUS.

XVII
RÉSUMÉ

RÉSUMÉ
Le Football c’est un phénomène humaine unique a niveau mondiale. Par ce
motif, il influence et est influencié pour les divers societés. Par conséquent il
exerce dés jeune âge, une fascination spécial sur les individus, ce qui en fait la
rationalisation des procédures de Formation. Ceux-ci sont correctement
rationalisés, permets les débuts sera propice au devéloppement de Talents,
que dans le Football, doit montrer une capacité d’adaptation spécial, mais, dont
le terme qualititif, est d’autant plus possible, plus tôt car il commence la pratique
de qualité de Football. Cette étude, articule informations de différents
domaines, que nous permettent de répondre aux objectifs suivantes : (1)
montrer que le football est un phénomène social total ; (2) mettre en évidence la
pertinence du concept « AnthropoSocialTotal » ; (3) présenter le Football
comme un phénomène complexe ; (4) rendre évident que le Football est
apparemment contre nature ; (5) montrer comme les pratiques de l’enfance
sont déteminants de Talents ; (6) soutenir ces pratiques ; (7) montrer que la
racionalisation des process de formation, rend possible le triangle Plus de
Football, Plus d’Enfant, Plus d’Éducation ; (8) se mettre en avant, que la
pratique prématuré de la qualité est essential ; (9) deduire sur les effets de la
pratique precoce sur le corps ; (10) soutenir l’importance de la pratique precoce
sur l’altération de la fonctionnalité corporel ; (11) préciser que l’intelligence de
jeu, c’est une Intelligence Corporel acquisé par InCorporAction ; (12) mettre en
évidence l’importance de l’Acculturation au phénomène et faire sur la base de
critères de qualité; (13) se mettre en évidence la nécessité d’une logique
cohérent, conceptuel et méthodologiquement, entre la realité de Formation de
Football et de Football pour les Adultes. Mis en évidence en termes
d’achèvement, que la naissance de joueurs ou de Talents (realité
Ecogénétique), sera plus facilité si dans les process de formation se trouver
sous-jacent une Conception Méthodologique (Périodisation Tactique/
Périodisation À La Long) et une Culture de Jeu (Modèle de Jeu) commun et
cohérant avec la réalité sénior, toujours en respectant le Triangle Modèle de
Jeu, Modèle de Joueur, Modèle d’Entraînement, a développé l’Intelligence de
Jeu, par l’intermédiaire de sa InCorporAction.
Mot-Clé : CORP ; PHÉNOMÈNE ANTHROPOSOCIALTOTAL ;
INCORPORACTION, PÉRIODISATION À LA LONG ; PRÉCOCITÉ.

XIX
Introdução

1 – Introdução (motivações, actualidade, objectivos e


estrutura):

“Valemo-nos do fado para desabafar mágoas, de Fátima para reverter as descrenças,


do futebol para simular outro tamanho e atrair um olhar de apreço do mundo. E foi no
futebol, diga-se em abono da verdade, que mais nos erguemos e abeiramos de nós
mesmos. (…) O futebol e a sua organização e profissionalismo têm que ser repensados
de alto a baixo, para tanto urge trazer de volta a matriz desportiva, até agora soterrada
pelo negócio e a indústria.”
(Bento, 2008, pp. 17).

A presente dissertação abordará diferentes temáticas relacionadas com o


Futebol com o intuito de responder a muitas das questões que este fenómeno
complexo coloca. Recorreremos para tal, a diversos domínios do
conhecimento, para que as aproximações a que possamos chegar se revelem
pertinentes e profícuas, uma vez que, urge o despertar para um novo tipo de
“ciência”, o qual deverá atender à multidisciplinaridade de saberes (Ribeiro &
Caraça, 2005).
É nossa pretensão evidenciar que a prática precoce de Futebol é
determinante para a obtenção de níveis de desempenho de destaque, a nível
do Rendimento Superior, se alicerçada numa determinada qualidade do
processo de Formação o qual se estende por largos anos, carecendo assim de
uma devida racionalização. Procuraremos explicitar, os efeitos diversos, que tal
precocidade poderá ter na funcionalidade do Corpo Humano, sendo este
entendido, como uma entidade indivisa, pois como nos sugere Bento (2004),
quando nos ocupamos do Corpo, estamos atentos ao “Homem-Todo”.
A nível pessoal, este trabalho reveste-se de enorme interesse, desde logo,
por se centrar numa temática, que ao longo dos últimos anos tem vindo a ser
descoberta por nós, a qual pensamos, se devidamente equacionada poderá
fornecer ensinamentos que permitam uma abordagem no terreno mais
ajustada. Além da temática ser do nosso interesse e se constituir nos últimos
tempos como uma descoberta, a realização desta dissertação tem subjacente,
outros interesses pessoais. Nas últimas três épocas desportivas, o treino de

1
Introdução

jovens tem sido uma preocupação prática diária, desempenhando cargos de


treinador em escalões de Formação de alguns clubes de Futebol, em que nos
encontramos incumbidos do contacto com Crianças dos escalões de escolas e
pré-escolas, o que confere uma responsabilidade acrescida, a qual nos é
incumbida pelos pais, que nos procuram como um meio auxiliar à Formação
dos respectivos filhos, alguns dos quais com idades inferiores a 5 anos, o que
torna ainda mais pertinente esta pesquisa. Note-se contudo, que as motivações
não são exclusivamente pessoais, uma vez que julgamos que esta dissertação
poderá proporcionar várias respostas, pertinentes, relativamente à prática de
Futebol nas Crianças.
Ao longo desta dissertação procuraremos evidenciar que podemos adoptar
para o Futebol o conceito de Fenómeno Social Total, proposto por Mauss
(1979) e que tem vindo a ser adoptado para o Desporto em geral (A. d. S.
Costa, 1992, 1993, 1997, 2004, 2006; Garcia, 1993; Murad, 2006).
Procuraremos explicitar também, que sendo um Fenómeno Social Total, por se
tratar de uma actividade Humana, e comportar toda a complexidade
Antropológica, se torna pertinente a adopção para este conceito, no domínio do
Futebol do prefixo “Antropo”. Havendo assim necessidade e imprescindibilidade
de reconhecer no Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal (V. Frade, 1979).
Um fenómeno que é contudo, em termos das bases anatómicas da
Hominização, aparentemente ContraNatura, uma vez que, a funcionalidade dos
pés, e do trem inferior, cuja preponderância é relevante numa actividade como
o Futebol foram, preteridas em detrimento da funcionalidade e sensibilidade
das mãos. Facto que comporta alguns condicionalismos (J. Leandro Massada,
2001).
Este autor salienta mesmo, que fruto do processo evolutivo, as mãos se
constituíram como “dois cérebros”. Sendo nossa intenção ao longo da
dissertação evidenciar, que tal como as mãos foram “cerebralizadas”, também
outras partes do Corpo, que foram secundarizadas em termos evolutivos, como
por exemplo os pés, poderão ser alvo de igual processo de “Cerebralização”,
caso se observe uma estimulação precoce de qualidade. Encontrando-se tais
especulações, fundamentadas com base nos relatos de algumas histórias de

2
Introdução

Vida, de pessoas que apesar de nascerem com os membros superiores


amputados, revelam com os pés uma funcionalidade semelhante àquela que
culturalmente, foi sendo atribuída às mãos. Casos que evidenciam a enorme
adaptabilidade e plasticidade que caracterizam os organismos vivos (Capra,
2005). Uma plasticidade que é tanto mais significativa, quanto mais
precocemente os indivíduos são estimulados num determinado domínio
(Buzan, 2003; Levitin, 2007; Simões, 2007).
Além dos aspectos relacionados com os condicionalismos impostos, pela
filogénese Humana, outro motivo que em nosso entender, torna a presente
dissertação pertinente relaciona-se com o facto, de nos últimos anos devido a
alterações profundas a nível social, o Futebol de Rua se ter eclipsado e parecer
urgir a necessidade de recuperar o que o caracterizava (Cruyff, 2002; H.
Fonseca, 2006; Lobo, 2002, 2007; Michels, 2001; Pacheco, 2001; Ramos,
2003; Tamarit, 2007; Valdano, 2002). Importando a este respeito considerar por
outro lado, o proliferar das Escolas de Futebol, que vendo na sociedade
algumas lacunas, se tentam emancipar. Não podemos ignorar ainda, que a
Vida das Crianças é cada vez mais atarefada não lhes sendo proporcionado
tempo para brincar e desenvolver a criatividade. Esta pressa, que afecta a
sociedade em geral, tem levado a que as Crianças se tornem ainda em idades
muito precoces em adultos, com tudo o que isso tem de negativo, como
evidenciam estudos recentes (Ginsburg, 2007). Entendemos que o facto de na
nossa sociedade se verificar um modismo, que leva os pais a colocarem os
jovens em Escolas de Futebol, caso os processos que nestas se desenvolvem
sejam de qualidade, poderá revelar-se uma tendência bastante proveitosa para
o Futebol. Aquilo a que nos referimos é, ao crescente interesse evidenciado
pelos pais, na participação dos filhos, em actividades desenvolvidas pelas
Escolas de Futebol. As Escolas de Futebol assumem-se deste modo, para os
pais como um lugar de destaque para a Formação, que não exclusivamente
desportiva, dos seus educandos. E de facto estamos em crer, que o Futebol,
pelo seu potencial formativo (J. Bento, 2004) se pode assumir como um
complemento muito positivo na Formação de qualquer Criança. Ou seja,
entendemos que a prática precoce de Futebol, tendo subjacente um processo

3
Introdução

de qualidade permite o cumprimento da tríade, Mais Futebol, Mais Criança,


Mais Educação.
Conscientes de tais valências, e também das necessidades sentidas pelos
pais, os responsáveis pelas Escolas de Futebol tentam suprir algumas das
limitações apresentadas pela sociedade, o que leva estas instituições, ainda
que na generalidade dos casos por interesses comerciais, e não tanto por
razões metodológicas, a acolherem jovens em idades cada vez mais precoces.
Observando-se uma prática formal no Futebol, cada vez mais precoce
(Pacheco, 2001). O que poderá ser bastante profícuo para o assegurar da
exponenciação de jovens Talentos (Côte et al., 2003; Ericsson, 1996; J. L.
Starkes, Deakin, Allard, Hodges, & Hayes, 1996).
O facto de começar cedo a prática do Futebol, se poder revelar como
determinante, leva-nos a considerar que a questão que devemos colocar
quando abordamos a problemática da Formação não é, quando começar, mas
sim como começar?
Parece-nos evidente, que neste momento as Ciências do Desporto estão a
registar aquilo a que Capra (2005) designou de “ponto de mutação”, ou
recorrendo à designação de Kuhn, T. (1962, cit. por Capra, 1996) verifica-se
uma “mudança de paradigma”, que tem sido reivindicada por diversos autores
(J. Bento, 2004; V. Frade, 1979, 1989; V. M. d. C. Frade, 1976, 1990; Sobral,
1995; Tani, 2002).
J. Bento (2004, pp. 53) afirma mesmo, “que as Ciências do Desporto têm pela
frente uma larga panóplia de perspectivas de crescimento e desenvolvimento.
Para tanto devem ajustar-se às alterações ocorridas na paisagem desportiva e
atender à sua pluralidade.”
Face a esta necessidade que urge, no sentido de um mais rico elucidar da
complexidade inerente ao Fenómeno Desportivo e de forma mais particular, ao
Fenómeno Futebol, ao longo desta dissertação procuraremos, enveredar por
uma abordagem sistémica a qual se justifica para o fenómeno em questão
(Carvalhal, 2002; Castelo, 1998; V. Frade, 1979, 1989; V. M. d. C. Frade, 1976,
1990; Garganta, 1997; Garganta & Silva, 2000; J. G. Oliveira, 2004;
Teodorescu, 1984). O que nos levará a socorrer de conhecimentos

4
Introdução

provenientes de diversas áreas, que têm sido um pouco ignoradas, devido ao


peso das disciplinas mais convencionais, como a Biomecânica e a Fisiologia,
que têm ao longo da história da Metodologia do Treino, assumido um lugar de
destaque nas investigações do âmbito desportivo (Tani, 2002). É deste modo
nossa pretensão, fazer com que este trabalho vá de encontro às necessidades
das novas abordagens em complexidade e da necessidade de criar nas
Ciências do Desporto uma nova forma de abordar as suas problemáticas, ou
seja, uma “scienza nuova” (Morin, 2003), na qual a multidisciplinaridade
assume um lugar de destaque. Uma nova forma de fazer Ciência, que não
nega a especificidade de cada área do conhecimento, contudo não refuta ou
abdica da necessidade de se munir de conhecimentos, que se revelam válidos
para os seus interesses. As Ciências do Desporto, têm de acompanhar a nova
vaga que emerge na Ciência actual e que procura ultrapassar os
condicionalismos da “excessiva especialização”, que levou diferentes domínios
de investigação, a fecharem-se e a ficarem tolhidos pelos respectivos bloqueios
epistemológicos, que as levaram a desligarem-se, erradamente, de tudo o que
as rodeia e das informações provenientes de outras Ciências. “Ora, quando a
excessiva especialização parecia ter retirado unidade à ciência e à actividade
científica, eis que começa a verificar-se um movimento paralelo de reencontro
e cruzamento de disciplinas que, de tão focadas nas especificidades,
começaram a precisar de outros olhares que as complementassem. Sem
prescindir de forma alguma da especificidade, a interdisciplinaridade é hoje
uma realidade nos grandes centros de investigação.” (Pombo & Mendonça,
2008, pp. 30). Urge também no Futebol, a necessidade de recorrer a “práticas
de importação” (Pombo & Mendonça, 2008), sendo para tal determinante,
adaptar à nossa realidade, o lema postulado por Abel Salazar, adoptado e
adaptado por V. Frade (1985) para o Futebol, e que sugere, que “quem só sabe
de Futebol, nem de Futebol sabe”. Apesar de uma tendência recente, a
reflexão acerca das orientações vanguardistas da Ciência, e o consequente
cruzamento sistémico de saberes provenientes de diversos domínios do
conhecimento, como a Filosofia, a Sociologia, a Antropologia, a Física, a
Química e a Biologia, tem desencadeado efeitos muito benéficos, “fenómenos

5
Introdução

espantosos (…) na senda dessa fascinante e maravilhosa aventura que é a


procura do Conhecimento.” (Pombo & Mendonça, 2008, pp. 30).
Esta necessidade juntamente com o facto, do modo como entendemos o
Futebol, requisitar uma relação estreita com os processos cognitivos,
aproximando assim as Neurociências do Futebol (Tamarit, 2007) impeliu a
necessidade de efectuar o devido transfere dos conhecimentos recentes,
provenientes desta área para a nossa realidade, o Futebol. Uma abordagem,
que como procuraremos evidenciar, fundamenta muitas das práticas que a
generalidade dos Talentos do Futebol realizavam enquanto Crianças, e que se
revelaram determinantes para o alcance de níveis de excelência. Reforçando
deste modo, a necessidade de uma maior aproximação entre o empirismo e as
ciências cognitivas (Berthoz & Petitt, 2006).
Importa realçar que sendo as Neurociências, uma área ainda relativamente
recente, são poucas ainda as aplicações que têm sido efectuadas no âmbito do
Futebol (C. Campos, 2007; Freitas, 2004; Gaiteiro, 2006; M. Silva, 2008; B.
Oliveira et al., 2006). Note-se contudo, que sendo ainda poucas, as existentes
revelam não somente um entendimento transgressor do fenómeno (B. Oliveira
et al., 2006), mas também uma qualidade e aplicabilidade que consideramos
de extrema relevância para o treino de Futebol, tanto ao nível da Formação
como enquanto seniores. Não obstante, notamos existir ainda muito espaço
para a aplicação dos conhecimentos provenientes das Neurociências no âmbito
do Desporto e de modo especial no Futebol, se considerarmos problemáticas
como por exemplo a plasticidade, e outros fenómenos que implicam a
interacção altamente complexa entre corpo - cérebro – mente, e que ajudam a
edificar e melhor compreender o Corpo que Joga.
O facto de se tratar por isso mesmo de uma abordagem, a determinados
níveis inovadora, reveste-se de aspectos positivos, mas também de aspectos
negativos. Estamos por isso em crer, que apesar de se tratar de um desafio
ambicioso, dele resultam em nosso entendimento informações muito
pertinentes, que esperemos, possam contribuir para um Futebol melhor.
É nossa intenção com a realização desta dissertação, construir um Corpus de
conhecimento, que nos permita inferir de forma sustentada, acerca de muito

6
Introdução

daquilo que se considera especulativo no domínio das ciências. “O que é


especulativo hoje pode bem ser senso comum amanhã!” (Goertzel, 2004, pp.
241). Tornando-se pertinente para a presente dissertação o estabelecimento
dos seguintes objectivos:
• Evidenciar que o Futebol é um Fenómeno Social Total;
• Realçar a pertinência para o Futebol da adopção do prefixo
Antropo, como extensão do conceito Fenómeno Social Total;
• Apresentar o Futebol como um fenómeno complexo, que carece
de uma abordagem sistémica;
• Evidenciar que a funcionalidade implicada no Futebol é,
aparentemente ContraNatura, ou melhor dizendo Ao Lado da Natura;
• Evidenciar que as práticas de infância dos Talentos no Futebol
foram determinantes para os níveis de desempenho alcançados;
• Sustentar cientificamente as práticas de infância dos Talentos;
• Evidenciar que a racionalização qualitativa do processo de
Formação, torna exequível o Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais
Educação;
• Tornar evidente, a suspeição de que a prática precoce de Futebol,
alicerçada num processo de Formação de qualidade, Periodização à La Long,
é determinante para a exponenciação de Talentos;
• Inferir de forma fundamentada, acerca dos efeitos da prática
precoce, ao nível das alterações da representatividade cerebral, e do reverter
dos condicionalismos impostos pela filogénese Humana;
• Sustentar a importância da necessidade de prática precoce de
Futebol ao nível da alteração da funcionalidade Corporal e das relações corpo
– cérebro – mente;
• Explicitar que a Inteligência de Jogo, é uma Inteligência Corpórea
cuja aquisição se repercute na sua InCorporAcção;
• Evidenciar a importância da Aculturação precoce ao fenómeno se
fazer pelo contacto com referenciais e processos de qualidade;
• Evidenciar que o parto de jogares e de Talentos que respeitem a
pluralidade do Jogo, pode fazer-se a partir de Úteros Artificiais, desde que o

7
Introdução

processo tenha subjacente uma Concepção Metodológica comum e congruente


com a realidade sénior, Periodização Táctica (Periodização à La Long),
respeitando o Trinómio Modelo de Jogo, Modelo de Jogador, Modelo de Treino.
Quanto à estrutura, o presente estudo será estruturado em dez pontos.
No primeiro a “Introdução”, pretende apresentar o estudo, as motivações
implícitas na sua realização, justificar a pertinência do tema e da abordagem a
encetar, e ainda apresentar os objectivos desta dissertação.
No segundo ponto denominado “Abordagem Etnometodológica um Imperativo
para o decifrar de um Fenómeno AntropoSocialTotal”, justificaremos os motivos
para a elaboração do presente estudo não seguindo as metodologias de
investigação convencionais.
O terceiro ponto “Futebol um universo de Relações”, pretende explicitar que o
Futebol é um Fenómeno Social Total, que como tal estabelece múltiplas
relações, benéficas ou não com a realidade envolvente, influenciando-se estas
mutuamente. O que como procuraremos explicitar, se repercute de forma muito
significativa na iniciação da prática de Futebol nas Crianças.
No quarto ponto cujo título é, “Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal”,
evidenciamos que a aplicação do prefixo Antropo, se reveste de grande
pertinência, para o elevar do Futebol à sua verdadeira dimensão e
complexidade.
O quinto ponto, “O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal
que é simultaneamente um Fenómeno aparentemente ContraNatura” procura
evidenciar que o Futebol em termos de Hominização se revela uma actividade
que comporta alguns condicionalismos a nível anatómico, que contudo podem
ser revertidos, daí que o apresentemos neste ponto, como um fenómeno Ao
Lado da Natura.
No sexto ponto, denominado “Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais
Futebol, Mais Criança, Mais Educação”, evidenciaremos que processos de
Formação de qualidade, podem não somente fomentar a exponenciação de
Talento no Futebol, como também a edificação de pessoas Humanas. Neste
ponto procura-se ainda evidenciar que muitas das práticas de infância dos
Talentos confirmados do Futebol, foram determinantes para o nível por eles

8
Introdução

atingido. Sendo ainda nossa intenção identificar essas actividades, para as


sustentar cientificamente e sugerir a sua recriação nos processos de
Formação.
No sétimo ponto, “O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois
entranha-se»! A Importância da InCorporAcção Precoce do Jogo na
Exponenciação de Talentos”, salientaremos a necessidade do Talento ser
entendido como uma construção e exponenciação Ecogenética, e ainda que a
prática precoce do Futebol, alicerçada numa determinada qualidade, se revela
determinante e repercute no Corpo, verificando-se a InCorporAcção da
Inteligência de Jogo. Um saber Corpóreo que sugerimos ser simultaneamente
específico e Específico.
No oitavo ponto serão apresentadas as evidências conclusivas do presente
estudo, e um acresento de última hora às mesmas, no qual se apresentam
algumas referências, que permitem dar Vida a um jogar de qualidade.
No nono ponto, far-se-á a indexação da totalidade das referências
bibliográficas mencionada ao longo da dissertação.
No décimo primeiro ponto “Anexos”, podem ser consultadas as transcrições
integrais das entrevistas gravadas através de gravador áudio Olympus VN-
240PC, tendo estas sido posteriormente revistas pelos respectivos
entrevistados, servindo de complemento ao que será abordado ao longo deste
estudo. Encontrando-se indexadas por ordem cronológica de realização. Neste
ponto, encontram-se também outras fontes que pela pertinência das temáticas
que afloram, entendemos justificar-se a possibilidade da sua contemplação
integral.

9
Abordagem Etnometodológica um Imperativo para o decifrar de um Fenómeno AntropoSocialTotal

2 - Abordagem Etnometodológica um Imperativo para o


decifrar de um Fenómeno AntropoSocialTotal

“Les recherches en ethnométhodologie visent à décrire les activités naturellement organisées de


la vie quotidienne.”
(Garfinkel, 2001a, pp. 439).

Importa antes de tudo, ter em consideração os três pontos prévios que


seguidamente se apresentam:
ƒ “O primeiro problema a enfrentar, refere-se Á NATUREZA DO
OBJECTO-EMPÍRICO deste jogo desportivo colectivo, e o segundo, Á
MANEIRA DE ESTUDÁ-LA. Ambas são questões epistemológicas.” (V. M. d. C.
Frade, 1990, pp. 3).
ƒ “Acho que a análise de conteúdo é muitas vezes uma falácia das
ciências moles, ou uma insuficiência das ciências moles, perante o
determinismo das ciências duras. E portanto, há situações, em que a análise
de conteúdo não funciona de todo.” (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).
ƒ “Na filosofia budista, existe o princípio de que o meio utilizado para
testar uma proposta específica deve estar de acordo com a natureza do
assunto em estudo.” (Dalai–Lama, 2006, pp. 34).
Face a estas premissas, nas quais nos revemos, tornou-se um imperativo o
recurso a uma concepção metodológica, que conseguisse atender à “natureza
do assunto em estudo”, sem incorrer, na “falácia das ciências moles”, tendo
sido a alternativa por nós encontrada, na adopção da Etnometodologia.
O conceito Etnometodologia refere-se à investigação das propriedades
racionais das expressões contextuais e de outras acções práticas como os
esforços contínuos e contingentes das práticas engenhosamente organizadas
da Vida quotidiana (Garfinkel, 2006), sendo uma área que procura descrever as
actividades naturalmente organizadas da Vida quotidiana (Garfinkel, 2001a).
Os estudos neste âmbito demarcam-se das abordagens da Sociologia corrente,
imprimindo a esta área de investigação uma orientação fenomenológica
(Watson, 2001). Uma concepção fenomenológica que requisita uma intercrítica
de conhecimentos que permita a reconciliação das Ciências Humanas e

11
Abordagem Etnometodológica um Imperativo para o decifrar de um Fenómeno AntropoSocialTotal

Sociais com as Neurociências, realidades que têm permanecido desconexas, e


ainda a aproximação entre a Filosofia e o empirismo (Berthoz & Petit, 2006).
Adopta, assim uma posição radicalmente nova e contra-corrente, relativamente
à Sociologia Clássica por se centrar na capacidade dos indivíduos se apoiarem
no senso comum, para agir, dar conta da sua acção e para perceber como a
Vida social se traduz nas nossas práticas (Molénat, 2008)
A Etnometodologia assume-se deste modo, como uma transgressão em
relação ao que convencionalmente se faz em Sociologia. Por este motivo,
Ogien (2001) salienta, que em torno da compreensão do projecto
etnometodológico, se levanta há muito tempo, a questão, se a Etnometodologia
é, ou não uma área do domínio da Sociologia. Este autor, sugere e apresenta-a
como sendo “L’autre sociologie”.
Trata-se deste modo, de uma abordagem “marginal” (M. Silva, 2008)
enquadrada no âmbito da investigação qualitativa, que contrariamente à
análise formal, não se limita a interrogar sobre o que acontece, mas também o
que lhe está subjacente, ou seja, o que despoleta e motiva tais
acontecimentos. Procura assim, ir mais além, isto é, propõem e elabora
“quelque chose de plus”, qualquer coisa mais, que as investigações conduzidas
pelos procedimentos de análise formais, não fornecem nem podem fornecer
(Garfinkel, 2001b, pp. 32). Por este motivo, depois de desde a sua origem
acerca de quarenta anos, ter sido marginalizada, e considerada como uma
“secte”, ou seja, uma seita dentro das Ciências Sociais, é agora tempo da
discussão em torno desta abordagem começar, e lhe ser reconhecida a devida
relevância (Molénat, 2008).
Os estudos no âmbito da Etnometodologia tomam as actividades e
circunstâncias práticas e o racionamento sociológico prático como objectos
empíricos, prestando atenção ás actividades mais comuns de modo
semelhante àquela que geralmente se presta a eventos extraordinários,
procurando apreendê-las como fenómenos por direito próprio, especificando as
características “problemáticas” e recomendar métodos para o estudo destes, e
sobretudo, considerar os aspectos mais relevantes a apreender de cada
fenómeno (Garfinkel, 2006). Deste modo, concebe os fenómenos tendo em

12
Abordagem Etnometodológica um Imperativo para o decifrar de um Fenómeno AntropoSocialTotal

consideração, o modo como se manifestam num contexto singular,


caracterizado por um conjunto de detalhes que lhe conferem sentido prático
(Watson, 2001). A este respeito, importa desde já salientar que o processo de
construção e exponenciação, de Talentos e de jogares, tem lugar em contextos
singulares, o que por conseguinte lhes confere sentido prático. Conforme
esclarece M. Silva (2008), a Etnometodologia visa reconhecer e descrever os
procedimentos contextualizados nos seus locais de concretização, assim como
a sua actualização prática. Debruçando-se assim, sobre o carácter prático dos
fenómenos sociais (Fornel, Ogien, & Quéré, 2001), o que numa abordagem
como a presente se revela altamente pertinente.
Devemos ainda ter em consideração, que “uma atitude fundamental adoptada
(…) pela ciência consiste no empenhamento em prosseguir a busca da
realidade através de meios empíricos e na disposição de rejeitar posições
aceites ou conservadas ao longo dos tempos se o nosso estudo verificar que a
verdade é diferente.” (Dalai-Lama, 2006, pp.31/32). Facto que reforça a
necessidade do recurso à Etnometodologia, a qual enfatiza o empirismo e as
questões que emergem de uma realidade concreta (Fornel, Ogien, & Quéré,
2001). Deixa deste modo, de se nortear exclusivamente por preocupações
teóricas, mas também pela prática do desenvolvimento dos fenómenos, como o
jogo (M. Silva, 2008).
“O método, tal como eu o entendo, parte da observação de certos fenómenos
no mundo material, conduz a uma generalização teórica que prediz os
acontecimentos e os resultados que se produzem se tratarmos os fenómenos
de um modo particular, e depois testa a predição com uma experiência. O
resultado é aceite como parte do corpo do conhecimento científico mais amplo
se a experiência for correctamente conduzida e puder ser reproduzida.
Contudo, se a experiência contradisser a teoria, então é a teoria que precisa de
ser adaptada, dado que a observação empírica dos fenómenos tem primazia.”
(Dalai–Lama, 2006, pp. 30).
De acordo com Watson (2001) a Etnometodologia pretende assumir-se como
uma abordagem empírica, consciente da realidade que envolve, cada um dos
fenómenos a considerar, com o objectivo de responder a questões de ordem

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Abordagem Etnometodológica um Imperativo para o decifrar de um Fenómeno AntropoSocialTotal

lógica e de sentido do contexto. Para Ogien (2008) a Etnometodologia não é


simplesmente uma corrente de análise que procura desenvolver uma
Sociologia convencional, sendo pelo contrário uma outra forma de encarar a
investigação social, capaz de incorrer segundo o mesmo autor, no risco de
denunciar que nenhuma teoria se encontra em condições de prever o que
somente a observação das práticas nos pode ensinar. “Assim, procura nas
condições concretas onde acontece a acção, a sua validade prática ou seja,
analisa e reflecte as decisões práticas no seu contexto e portanto, em função
dos detalhes imediatos que as produzem.” (M. Silva, 2008, pp. 54).
“…tudo o que tem existência e identidade, só o tem dentro da rede total de
tudo com que possa estar relacionado, ou potencialmente relacionado. Não
existe nenhum fenómeno com uma identidade independente ou intrínseca.
E o mundo é feito de uma rede de inter-relações complexas. Não podemos
falar da realidade de uma entidade discreta fora do contexto da sua esfera de
inter-relações com o seu meio e outros fenómenos” (Dalai–Lama, 2006, pp.
64). Fundamentando-se deste modo, o recurso à Etnometodologia para
explicar um Fenómeno AntropoSocialTotal como o Futebol.
Este tipo de abordagem procura apreender e demonstrar as propriedades
ordenadas das explicações fornecidas pelos indivíduos, acerca dos fenómenos
em questão, entendendo tais propriedades como expressões e relatos
contextuais (Garfinkel, 2006). Por este motivo, como forma de enriquecer a
abordagem efectuada no presente estudo, consideramos pertinente munirmo-
nos de relatos provenientes de diferentes âmbitos e de diferentes
intervenientes no fenómeno. Com esta abordagem, procuramos não incorrer no
materialismo e cepticismos científicos, segundo os quais apenas fontes que
apresentam cunho científico são pertinentes para o conhecimento da realidade
(Dalai-Lama, 2006). Para tal recorremos a fontes muito diversas, desde o
recurso a DVD’s e gravações de programas televisivos ou biografias relativas a
temáticas que consideramos pertinentes para a abordagem em questão, uma
extensa bibliografia composta por livros de diferentes temáticas, artigos ditos
científicos ou não, provenientes de fontes muito diversas, entrevistas
publicadas na imprensa, e algumas não editadas e ainda comunicações

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Abordagem Etnometodológica um Imperativo para o decifrar de um Fenómeno AntropoSocialTotal

efectuadas por diferentes autores. Tendo sido a informação providenciada por


estes recursos, complementada por um conjunto de cinco entrevistas abertas,
realizadas propositadamente para esta dissertação. Importa salientar, que os
cinco entrevistados constavam de um leque inicial de dez possíveis e
desejáveis, tendo sido condição imposta, pelo orientador desta dissertação a
realização de pelo menos cinco entrevistas a “Cientistas”.
O critério adoptado para a selecção dos entrevistados relaciona-se com os
motivos abaixo mencionados:
ƒ Manuel Sobrinho Simões: é reconhecidamente um dos mais
consagrados Cientistas portugueses, exercendo o cargo de Director do Instituto
de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP),
uma das entidades científicas mais consagradas radicadas no nosso país.
Além disso, tem proferido conferências em áreas de interesse para a temática
desta dissertação, nomeadamente as áreas dos Talentos, da Epigenética e da
Ecogenética.
ƒ Leandro Massada: trata-se de um reputado Cientista no âmbito do
Desporto, tendo se especializado em Medicina Desportiva, e Doutorado em
Biologia do Desporto, exerce funções de Professor auxiliar na Faculdade de
Desporto da Universidade do Porto, tendo além de todas estas valências,
centrado muita da sua investigação, em torno da problemática do bipedismo, e
as alterações anatómicas decorrentes do processo de Hominização, editando
já livros em torno desta temática; “O Bipedismo no Homo Sapiens”. Não
devendo ainda ignorar-se, que se trata de uma pessoa que ao longo de largos
anos, tem contactado de perto com a realidade do fenómeno desportivo,
desempenhando papéis muito diversificados, o que lhe permite ter uma
percepção do fenómeno muito particular.
ƒ Luísa Estriga: tem vindo a preocupar-se, no âmbito da realização da
sua tese de Doutoramento, com a problemática da prevenção de lesões,
procurando saber as relações entre a ocorrência de lesões e a Especificidade
do processo. Colocando, à semelhança dos grandes investigadores da área,
como refere, a tónica da prevenção de lesões no desenvolvimento da
proprioceptividade desde idades precoces, através dessa Especificidade. De

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Abordagem Etnometodológica um Imperativo para o decifrar de um Fenómeno AntropoSocialTotal

notar ainda, que tem ao longo da sua vida profissional vindo a dedicar-se ao
processo de EnsinoAprendizagem de uma modalidade colectiva, o Andebol,
tanto na realidade escolar como nos clubes, tendo contactado com alguns dos
maiores Talentos femininos desta modalidade.
ƒ Paulo Cunha e Silva: pelas diversas valências científicas que revela,
Mestre em Medicina Desportiva, Doutorado em Ciências do Desporto,
Professor da Faculdade de Deporto da Universidade do Porto, tem centrado a
sua investigação na problemática do Corpo, personificando assim o carácter
multidisciplinar que procuramos conferir ao presente estudo, sendo deste modo
um elemento fundamental, numa dissertação que se preza de ser
multidisciplinar. Sendo ainda os seus relatos pertinentes, por ser um Cientista
que revela uma familiarização inequívoca com as problemáticas mais em voga
da Ciência, e uma posição e um tipo de conhecimento rejuvenescido não
desfasado com a realidade contemporânea, o que lhe permite ter uma visão
sistémica e complexa da realidade. Importa também salientar, que o seu
contributo se justifica ainda pela abordagem em torno da problemática do
Corpo, como foi referido, uma temática basilar nesta dissertação.
Marisa Gomes: Licenciada em Ciências do Desporto pela Faculdade de
Desporto da Universidade do Porto, foi durante quatro épocas coordenadora da
Escola do Dragão do Futebol Clube do Porto, encontrando-se actualmente a
desempenhar o cargo de treinadora no escalão de sub-13 do Futebol Clube do
Porto, pode considerar-se, do conjunto dos nossos entrevistados, a “Cientista
do Terreno” que procura, fundamentar a sua praxis num corpus de
conhecimentos teóricos, em constante actualização e evolução, motivo pelo
qual se encontra a frequentar uma (mais) Licenciatura em Neurofisiologia, o
que por si só poderia justificar a pertinência dos seus relatos. Mas além destes
motivos, o seu contributo justifica-se, não somente pela temática abordada na
sua Tese de Monografia, recentemente convertida em livro; “O
desenvolvimento do jogar segundo a Periodização Táctica”, como também, por
se encontrar actualmente envolvida num processo de Formação, que sabemos
ser balizado por muito do que sugerimos no presente estudo, e por lidar com
escalões etários mais baixos, tornando deste modo o seu contributo muitíssimo

16
Abordagem Etnometodológica um Imperativo para o decifrar de um Fenómeno AntropoSocialTotal

pertinente, para fazer a ponte entre a teoria e a prática, uma preocupação


constante nesta dissertação.

O estudo etnometodológico, evita os métodos de análise formal para


responder às questões de ordem lógica e de sentido do contexto, que os
fenómenos sociais colocam (Watson, 2001). Assim, e face às insuficiências
que apresentam as metodologias que recorrem à análise de conteúdo (Paulo
Cunha e Silva, Anexo 4), o tratamento das entrevistas não seguirá uma
metodologia convencional, mas sim uma interpretação e utilização dos relatos,
que tem por base a Etnometodologia, um tipo de pesquisa que “põe em causa
o papel da teoria e das hipóteses e o carácter geral das interpretações utilizado
pelas ciências sociais.” (M. Silva, 2008, pp. 53). A Etnometodologia, permite
realçar o fluxo existente entre os fenómenos sociais e tudo o que os envolve
(Garfinkel, 2006), motivo pelo qual consideramos pertinente, o não
estabelecimento de categorias de análise para o tratamento do conteúdo das
entrevistas efectuadas. Sabemos que o entendimento do processo de
categorização convencional, o qual remonta a Aristóteles se tem revelado
como um dos grandes problemas que continua a contaminar a Ciência
empírica, por se encontrar desfasado da realidade e envolto em artificialismos,
o que quebra o fluxo que caracteriza os fenómenos (Levitin, 2007), e não se
coaduna com os intentos de uma abordagem etnometodológica. Por este
motivo, e com o intuito de atender à inteireza do fenómeno em questão, o
Futebol, optamos por utilizar os relatos dos nossos entrevistados,
interconectando-os com os dados recolhidos para a realização da presente
pesquisa, provenientes de outras fontes, e que conjuntamente nos permitem ao
longo da dissertação inferir acerca da aplicabilidade ou não, de tais
informações, para a problemática em estudo. Sendo que “este tipo de
conhecimento (inferencial) (…) reflecte uma actividade básica da mente
humana que usamos com naturalidade no nosso dia-a-dia” (Dalai-Lama, 2006,
pp. 37). O que para a abordagem de um fenómeno AntropoSocialTotal nos
parece de especial relevância.

17
Futebol um universo de Relações

3- Futebol um universo de Relações:

3.1- Desporto um Fenómeno Social Total:

“Todos os fenómenos se apoderam do Homem ou o Homem se dá inteiramente bem com todos


os fenómenos, não existe separação nenhuma entre o Homem e todos os fenómenos.”
(A. d. Silva, 2002, pp. 34).

O facto do Futebol, se constituir como temática desta pesquisa, que se


propõem multidisciplinar, assim como de muitas outras, evidencia por si só,
mas não somente por esse motivo, a relevância que este Fenómeno, que é um
epifenómeno1, assume nas sociedades actuais.
“O desporto e as suas práticas, enquanto fenómeno social e objecto de
investigação, são matéria de crescente complexidade requisitando diversos
saberes disciplinares para a respectiva interpretação” (Constantino 2007, pp.
57).
Trata-se de um epifenómeno, visto que não sendo fundamental para a
existência Humana, funciona como um complemento que lhe é fundamental,
como mais adiante tentaremos evidenciar.
Para compreender, a dimensão que o Futebol atingiu desde que foi criado,
importa ter consciência que, este se engloba num fenómeno mais macro, o
Desporto. Inegavelmente um fenómeno muito particular, cujo impacto é,
também por isso muito significativo na sociedade. Segundo A. Marques (1993)
o Desporto tem a particularidade de não deixar ninguém indiferente. De facto o
fenómeno desportivo, aglutinou a atenção das diferentes sociedades, daí que
Moura, (2007, pp. 6) afirme que; “o sucesso do Desporto e de todos os seus
sucedâneos fazem desta actividade um dos sectores sociais preponderantes
no século XXI”. Opinião partilhada por Lopes (2007), segundo o qual, este
fenómeno se transformou nos tempos hodiernos num Fenómeno sociocultural
incontornável.

1
Epifenómeno: fenómeno secundário e acessório que acompanha outro reputado primário e
acidental (DiciopédiaX, 2006).

19
Futebol um universo de Relações

O facto do Desporto ter conseguido adquirir, tal estatuto nas sociedades


actuais, pode considerar-se uma inevitabilidade decorrente do facto de se tratar
de uma actividade Humana. “Todos os fenómenos se apoderam do Homem ou
o Homem se dá inteiramente bem com todos os fenómenos, não existe
separação nenhuma entre o Homem e todos os fenómenos” (A. d. Silva, 2002,
pp. 34). Parece-nos pertinente advertir para tal inevitabilidade, sem contudo, de
momento nos pronunciarmos muito aprofundadamente sobre o facto do
Desporto ser uma actividade Humana. Por conseguinte, aquilo que importa
reter neste ponto é, o aumento da relevância que este Fenómeno tem
adquirido. Facto que é evidenciado por Elias & Dunning (1992) como uma das
características das sociedades actuais.
O facto do Desporto exercer sobre a sociedade um impacto enorme, levou a
que A. d. S. Costa (1992) adoptasse, para o fenómeno Desportivo o conceito
de Facto Social Total, proposto por Mauss (1979). Este conceito é aplicável
segundo o seu mentor, ao conjunto de fenómenos complexos, pelos quais as
instituições se exprimem e o todo social pode ser observado. Segundo este
autor, através destes Factos Sociais Totais, podemos observar o
funcionamento dos traços ou dos vestígios das instâncias fundamentais que
compõem as sociedades, apresentando um total de seis; familiar, educativa,
política, económica, religiosa e recreativa.
Consideramos, que até mesmo os menos familiarizados com o fenómeno
desportivo, são capazes de com relativa facilidade, reconhecer o
funcionamento das diferentes instâncias apresentadas por Mauss (1979), no
Desporto, motivo pelo qual comungamos com o que sugerem alguns autores
(A. d. S. Costa, 1992, 1993, 1997, 2004, 2006; Garcia, 1993; Murad, 2006),
quando aplicam o conceito, Fenómeno Social Total, ao fenómeno desportivo.
São igualmente vários os autores, que comungam da ideia, de que o
Desporto é capaz de reproduzir uma imagem fidedigna da sociedade em que é
praticado, e que na sua compreensão reside a chave do conhecimento da
sociedade (A. d. S. Costa, 1992, 1993, 1997, 2004, 2006 Elias, Dunning, &
Fayard, 1994).

20
Futebol um universo de Relações

Em conformidade com os autores anteriores, encontra-se, Gritti (1975, pp. 6),


que de forma inequívoca afirma que, “é absolutamente evidente que o desporto
se apresenta como um espelho – exacto ou deformante – das sociedades
contemporâneas”, sugerindo ainda, que “a literatura desportiva tem todas as
possibilidades de manifestar o funcionamento deste espelho”, em parte, aquilo
que procuramos com esta parte da dissertação é, precisamente tornar menos
«baço», o nosso espelho, e com isso perceber um pouco melhor e mais
aprofundadamente, realidades altamente complexas, e em conexão, como são
a Sociedade e o Desporto, e de modo particular o Futebol.
Partindo do pressuposto apresentado anteriormente, pelos autores citados, e
com o intuito de compreender, a sociedade actual e o Desporto que nela se
faz, importa citar Constantino (2007, pp. 62) quando sugere que, “o desporto é
o reflexo de uma sociedade onde o rendimento, o avanço científico e
tecnológico, o desenvolvimento económico, conflituam muitas vezes com a
visão prometeica do progresso e do bem-estar social. O desporto contém as
contradições inerentes a outras práticas sociais e à sociedade, o desporto não
é uma realidade transhistórica ou transcultural.” Encontramo-nos de acordo
com a citação, no entanto, julgamos ser fundamental realçar, e ter em
consideração, que o Desporto e o modo como se expressa em cada sociedade,
não deve ser entendido de forma isolada, uma vez que se trata de um
fenómeno situado no tempo e no espaço. Como adverte V. Frade (1998),
relativamente ao Futebol, mas que entendemos ser extensível ao Desporto em
geral. Pelo facto de não se tratarem de fenómenos naturais, estes têm não
somente uma Geografia mas também uma História, que importa considerar.
Constantino (2007) acrescenta ainda, que o Desporto moderno emergiu, como
representação simbólica dos ideais utópicos da sociedade industrial. Opinião
corroborada por Bento (2007, pp. 20) o qual refere, relativamente às origens do
chamado “desporto moderno”, que este resultou, da “emanação e expressão
fidedignas dos princípios da sociedade industrial.”
Constantino (2007) adverte que o Desporto, apesar de não se constituir como
um fenómeno em si mesmo, tem potencialidades para preencher múltiplas
funções e para assumir uma grande pluralidade de significados sociais,

21
Futebol um universo de Relações

destacando a este respeito, o impacto que este fenómeno assume ao nível da


integração e coesão social, aspectos que nos parecem cada vez mais
relevantes, nas sociedades actuais, tendencialmente multiculturais e que se
encontram simultaneamente fragmentadas no plano económico, social e étnico.
Por tudo o que foi salientado, “o desporto não é um tema menor, com pouco
ou nenhum valor para abordagens literárias e culturais. É um caleidoscópio da
diversidade de problemas e traumas da vida e do homem, das suas fraquezas
e contradições. Pela sua janela entra e contempla-se o mundo todo.” (J. O.
Bento, 2004, pp. 200).

3.2- Futebol, um «epifenómeno» que é um Fenómeno Social Mais Total:

“ «Você só pensa em futebol. Vai ver que já nem se lembra do dia do nosso casamento», diz a
esposa.
- «Claro que me lembro, meu amor. Véspera de um Santos – Corinthians. Jogaço, ganhou o
Santos, 4-1», responde o marido apaixonado”.
(Betty Mary in “O país e a bola”, s.d. cit. por Lobo, 2007, pp. 90).

Depois de termos evidenciado que o Desporto é um fenómeno peculiar no


seio das nossas sociedades, torna-se mais fácil compreender o fascínio que
suscita, ao ponto de não deixar “ninguém indiferente” (A. Marques, 1993) e de
se constituir como um “idioma global” (Kitchin, L., s. d. cit. por Garganta,
Oliveira, & Murad, 2004).
Como realça Sobrinho Simões (Anexo 1) reportando-se ao Futebol refere que
o viu “sempre de uma forma muito mais global do que a de qualquer outro
desporto”, acrescentando tratar-se de forma indiscutível, a modalidade que em
termos mundiais, melhor concilia a dimensão desportiva com aspectos
comerciais, com o espectáculo e inclusive com a política. O Futebol deste
modo, e de forma mais evidente no nosso espaço geográfico é, um caso único,
quando comparado com outras modalidades desportivas, apresentando-se de
modo muitíssimo mais atractivo (Leandro Massada, Anexo 2).
Não somente com base, em algumas das entrevistas por nós realizada, como
também, na pesquisa por nós efectuada, pudemos constatar que o Futebol é,
considerado de forma especial, podendo por isso dizer-se, que sendo um

22
Futebol um universo de Relações

Fenómeno Social Total, tal como a generalidade das modalidades, se


apresenta, em nosso entendimento, como um Fenómeno Social Mais Total, por
isso, o Futebol apresenta-se como um micro fenómeno muito especial, dentro
do macro fenómeno desportivo, sendo praticado e apreciado num espaço muito
vasto e peculiar, um “amplo jardim comunitário” (Valdano, 2002).
O impacto social do Futebol é facilmente constatável, por se tratar de um
fenómeno que nas suas diversas facetas se afigura, na nossa sociedade, como
uma temática dominante encontrando-se na ordem do dia, tanto de programas
televisivos como radiofónicos, ou ainda nos canais do ciberespaço, o mesmo
sucedendo nos escritos de articulistas, ou tão simplesmente nas conversas
quotidianas que têm lugar nas ruas e cafés (Garganta, 2001).
Sobrinho Simões (Anexo 1) salienta a este respeito, que a sua percepção do
fenómeno Futebol, deriva fundamentalmente, da sua envolvente
comunicacional, o que o torna, num fenómeno de dimensão mundial
A omnipresença do Futebol, na nossa sociedade levou, A. d. S. Costa (1990)
a considerar o Futebol como, “a grande festa dos tempos modernos”. Facto
que poderá ser mais facilmente compreensível se, tivermos em consideração, a
advertência efectuada por Haldas (1981), o qual realça o facto de existir no
Futebol algo mais, que ultrapassa o próprio Futebol. Opiniões corroboradas por
J. Bento (2004), quando adverte que o Futebol, assim como os espaços em
que se pratica funcionam como símbolos de causas, evidenciando deste modo,
a dimensão hermenêutica do fenómeno.
J. A. Santos (2004, pp. 220) para quem é inquestionável a importância social
do Futebol, refere que se trata do “fenómeno multitudinário mais importante da
actualidade”, opinião partilhada por Garganta (2004) que o apresenta como o
fenómeno mais marcante do final do século XX e princípio do século XXI.
Madaíl (2004), ajuda-nos a perceber a relevância que o Futebol assume na
actualidade, quando o descreve como “uma religião universal”, justificando-o,
com o facto de se encontrar difundido e inserido por todo o mundo, e também,
pela Assembleia Geral da FIFA ser composta por 202 países, representando
assim um número mais elevado que, o de países com participação nas Nações
Unidas. O percurso realizado pelo Futebol, desde a sua origem representa

23
Futebol um universo de Relações

“uma viagem apaixonante de um século em que logrou colonizar o mundo.” (J.


Valdano, 1998, pp. 51).
A popularidade do Futebol encontra-se deste modo, difundida por todo o
planeta, e independentemente das diferenças que as pessoas possam
evidenciar a diferentes níveis, idade, estatuto social e género, um dado é
inequívoco, o seu impacto social, sendo na ordem dos biliões o número de
pessoas que partilham a afinidade por este fenómeno (Blatter, 2004).
Ou seja, tal como o Desporto em geral, também o Futebol não deixa ninguém
indiferente.
Apesar do fascínio que este fenómeno desperta, nem sempre este é
facilmente decifrável. J. O. Bento (2004) revela ficar intrigado, quando tenta
encontrar os motivos, que o levam a ir ao estádio. Esta inquietude provocada
pelo Futebol é, quanto a nós, reveladora do fascínio em parte misterioso, que
este fenómeno desperta nas pessoas.
“O futebol é o desporto mais popular do planeta. Envolve directa e
indirectamente bilhões de pessoas, entre praticantes amadores, atletas
(Jogadores) profissionais, adeptos e incalculáveis recursos humanos
empregados em muitas ocupações e serviços, que funcionam de suporte ou
meio para a consecução de suas metas.” (Murad, 2007 pp. 245).
Na tentativa de decifrar possíveis razões para tal popularidade, o mesmo
autor salienta, o facto de ser considerado pelos especialistas como a
modalidade mais espontânea, imprevisível, simples, estável, barata e
democrática para os seus praticantes, factores que como sugere, podem ajudar
a entender a sua imensa e diversificada popularidade.
A este respeito, Leandro Massada (Anexo 2) salienta o facto do Futebol se
constituir, como um espaço muito relevante para a libertação, por parte das
pessoas, do stress emocional acumulado no quotidiano, sendo ainda a
apetência evidenciada pelas pessoas para com este fenómeno, estimulada
pelas rivalidades que comporta. “O futebol, pelas rivalidades, pelas guerras,
pelos hinos, pelas bandeiras, por tudo o que o envolve tem uma influência
muitíssimo mais marcada na sociedade do que qualquer modalidade desportiva
e vai continuar assim para sempre.” (Leandro Massada, Anexo 2).

24
Futebol um universo de Relações

Também com o intuito de encontrar possíveis explicações para tamanha


popularidade e relevância social, Vargas, M. (s.d. cit. por Maurício, 2002),
apresenta-o como “o ideal de uma sociedade perfeita”, pelo facto de apresentar
poucas regras, sendo estas claras e simples, capazes de garantir espaço para
a competência individual. Em conformidade Dunning (s.d., cit. por Brown, 1998)
apresenta como razões para o sucesso deste fenómeno, a simplicidade, não
requerendo muitos meios materiais, a sua fácil compreensão e o facto da sua
prática ser relativamente barata.
Talvez por este conjunto de características, o Futebol se tenha tornado num
fenómeno diferente, para muitos uma verdadeira paixão. Filho (2004) sugere
que se trata da maior paixão do nosso planeta. J. O. Bento (2004, pp. 201) vai
mais longe, quando enaltecendo os méritos do Futebol, é peremptório em
afirmar que, “o futebol é a nossa paixão”, não deixando ainda de acrescentar e
advertir, para o facto de não afirmar ser a nossa maior paixão, mas tão
somente a nossa paixão, “é que não sei se haverá outras. E se as há
encontram-se em franco declínio ou não se mostram.”
Para Alegre (2006), o Futebol é, “o único jogo total”, assim, e sendo um
Fenómeno Social Total (Coelho, J. N., 2000; A. d. S. Costa, 1992, 1993, 1997,
2004, 2006; Murad, 2006), o facto de ser considerado o “único jogo total”,
parece reforçar a nossa ideia, de que o Futebol se pode considerar mais
satisfatoriamente como, um Fenómeno Social Mais Total.
Enquanto Fenómeno Social Total, o Futebol alcança uma significação, que se
encontra para além do jogo realizado dentro do relvado (Murad, 2007), o que
reforça o facto das suas construções e simbologias se poderem constituir como
objecto de estudo pertinente para as Ciências Sociais (Haldas, 1981).
Para Garganta, Oliveira, & Murad (2004) o Futebol emerge nas sociedades,
como um dos traços matriciais da nossa civilização, assumindo-se deste modo,
como o Jogo2 mais praticado, visto e aclamado do planeta. O Futebol

2
Jogo: ao longo desta dissertação a palavra Jogo, encontra-se por vezes escrita com a
primeira letra em maiúsculas, quando tal se verifica, reportamos-nos à dimensão macro, isto é,
ao Jogo todo o qual é composto por diferentes jogares. Quando nos reportamos ao jogo
praticado por uma determinada equipa, esta palavra será redigida em minúsculas. Sendo

25
Futebol um universo de Relações

enquanto Fenómeno Social Total “é um microcosmos da sociedade e um


espelho da mesma em todos os seus aspectos.” (A. d. S. Costa, 2004, pp. 55).
Foer (2006) evidencia que o Futebol, contrariamente ao que sucede com
outras actividades desportivas, pelo impacto social que alcançou, comporta o
peso da História e dos seus ódios seculares. “O futebol tem, portanto uma
geografia, uma história, não é um fenómeno natural, é um fenómeno
construído, sendo, no entanto, necessário tempo para o construir”. (V. Frade,
1998). Ou seja, o Futebol é, um fenómeno situado no espaço e no tempo.
Parece-nos igualmente pertinente, realçar que o Futebol se demarca, pelo
menos em termos de impacto social, face ao exposto, das restantes
modalidades desportivas, mas também de muitos outros Fenómenos Sociais
Totais, como a literatura, a música, entre outras actividades. “Futebol e
literatura: dois jogos, quase uma redundância. Trata-se de escapar à realidade
por caminhos distintos que raras vezes se cruzam.” (J. Valdano 1998, pp. 172).
Não é nossa intenção passar a ideia, de que o Futebol é o assunto ou
fenómeno mais importante do nosso planeta, ainda que não estejamos
totalmente em desacordo com Bill Shanckly (s.d. cit. por. Alegre, 2006, pp. 15),
quando este refere que, “o futebol não é um caso de vida ou de morte, é muito
mais que isso”. De uma forma hiperbólica, para muitos dos aficionados pelo
Futebol, este é tal como para Bill Shanckly, muito mais que um caso de vida ou
morte. Não obstante este facto, não devemos ignorar que se trata de um
epifenómeno, e como tal, não deverá ser sobrevalorizado ou opor-se, mas sim
coabitar e complementar os restantes fenómenos eminentemente culturais,
como a literatura, a música a pintura entre muitos outros e sobretudo, servir de
complemento para a Vida.
Maradona (2005, pp. 139) acerca da conquista do Mundial de 1986, evidencia
o que pretendemos salientar a este respeito, quando afirma que aquela vitória,
“foi uma vitória extraordinária do futebol argentino, que lamentavelmente não
se voltou a repetir, mas nada mais do que isso. A nossa vitória não fez descer

contudo pertinente ter em consideração, que “no Jogo global quem interfere é o jogo de letra
pequena.” (V. Frade, 2006). Ou seja, não são realidades desconexas, que como tal se
influenciam mutuamente.

26
Futebol um universo de Relações

o preço do pão. Oxalá nós, os futebolistas, pudéssemos resolver os problemas


das pessoas com as nossas jogadas. Quão melhores estaríamos todos!”
Este apaixonante Fenómeno, que como já foi referido colonizou Mundo, não
deixa indiferente o nosso país, assumindo-se mesmo no nosso espaço
geográfico, como um traço marcante da nossa sociedade e identidade
(Leandro Massada, Anexo 2). O facto, mais evidente de que o Futebol no
nosso país tem, um impacto enorme, expressa-se por este pertencer à tríade
dos três “f’s”, que caracteriza o nosso país, “Fátima, Futebol e Fado”, Portugal
pode, mesmo definir-se como um país tradicionalmente louco por Futebol
(Johansson, 2004).
“O futebol é uma das paixões nacionais, ocupando um lugar central na
sociedade e cultura portuguesas. É o tema preferido das conversas. Domina
audiências. Faz parar o país, torna-o mais feliz ou deprimido, conforme os
resultados dos jogos e as peripécias do universo futebolístico. Diz-nos muito
acerca do país que fomos, do que somos, de como temos vindo a mudar e só
por isso já merece toda a atenção e pesquisa. Um património histórico e
cultural, vivo e popular, construído na escala das emoções e dos sentimentos”
(J. N. Coelho & Pinheiro, 2004, pp. 33). O Futebol pode deste modo servir,
como um campo de observação, uma vez que, “é um laboratório de análise
social e pode, mesmo, ser visto como espelho fiel da nossa sociedade”. (A. d.
S. Costa, 1997, pp. 139).
Ramos (2003), realça que parece ser indiscutível, que o Futebol exerce um
grande impacto nos hábitos culturais desportivos dos nossos dias, sendo isto
especialmente evidente no nosso espaço geográfico, o que provoca uma
enorme atracção para a sua prática, a muitas Crianças e jovens, que deste
modo têm a possibilidade de «imitar» e «encarnar» os adultos seus modelos,
por vezes elevados à qualidade de ídolos. Este facto, em nosso entendimento,
torna ainda mais pertinente, a realização desta pesquisa, que se debruça sobre
a problemática da Formação.
O Futebol é a prática desportiva mais popular de Portugal (Morais, 1993)
podendo considerar-se como uma das paixões nacionais, sendo capaz de
ocupar um lugar central na sociedade e cultura portuguesas (J. N. Coelho &

27
Futebol um universo de Relações

Pinheiro, 2004). Não admira por isso, que em Portugal, haja três jornais diários
desportivos, cujo conteúdo é quase na sua totalidade dedicado ao Futebol,
tendo volumes de vendas muito significativos, e também que os telejornais
dediquem, parte considerável do tempo atribuído, ao Futebol (A. d. S. Costa,
2004). Por tudo isto, percebe-se que não são despropositadas as palavras de
D. S. e. Sousa (1983, pp. 132), ao afirmar que, “o país bebe mais futebol do
que leite”.
Depreende-se deste modo, “que o futebol português é um dos símbolos mais
expressivos de identificação nacional é uma certeza que todos podemos ter,
nomeadamente viajando um pouco através de outros países.” (A. d. S. Costa,
2004, pp. 60).
Podemos concluir, que o Futebol é inequivocamente um acontecimento, ou
conjunto de acontecimentos, muito peculiares cuja dimensão enquanto
fenómeno, se revela enorme. Importa a este respeito salientar, que é o
acontecimento, plano mais micro que confere dimensão, e que consubstancia o
fenómeno, plano mais macro, que resulta, do conjunto de acontecimentos
decorrentes em torno de uma realidade.
“Acontecimento, até no sentido epistemológico do termo, é qualquer coisa
que aparece, e que se manifesta e se evidencia e subitamente nos convoca
para a sua diferença (…) consegue rasgar a pele da realidade e impor-se, a
partir da sua diferença e da sua capacidade de provocar perplexidade em
quem o observa.” (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4). Depreendendo-se deste
modo, e face ao que foi exposto, que inequivocamente o Futebol é um
acontecimento, ou melhor dizendo um conjunto de acontecimentos, que
marcam as sociedades.
Assim, consideramos suficientemente evidente o impacto que o Futebol
exerce sobre a generalidade das sociedades mundiais, e de forma especial
sobre a nossa sociedade, o que nos leva a considerá-lo, como muito
provavelmente, o Fenómeno Social Mais Total de todos, e que por esse motivo,
exerce um fascínio especial, sobre as Crianças e jovens, o que deverá implicar,
da parte de quem lhes dá a conhecer o fenómeno, uma conveniente qualidade
de intervenção, e a necessidade de lhes propiciar contextos igualmente

28
Futebol um universo de Relações

qualitativos, para que as interacções sejam desde idades precoces, de


qualidade.

3.2.1 - Futebol um Fenómeno com relações e ralações com as instâncias


Sociais: Política, Religiosa, Económica e muito mais …

“Culturalmente depreciado, politicamente utilizado e socialmente reduzido a uma expressão


popular de menor quantia, o futebol segue alimentando a paixão domingueira dos aficionados de
todo o mundo, convertido num cativante fenómeno de mobilização massiva que deveria ser
merecedor de atenção mais respeitosa.”
(Valdano, 2002, pp. 252).

Tal como evidenciamos anteriormente, parece consensual o facto do Futebol


se constituir, como um Fenómeno Social Total, ou até mesmo, como
sugerimos, um pouco mais que isso, ou pelo menos, uma expressão muito
peculiar e especial deste conceito.
Importa realçar que quando Mauss (1979) apresentou este conceito, não o
concebeu pensando no Desporto em geral, nem no Futebol em particular,
contudo, pelo impacto social, já evidenciado, este foi adoptado para o
fenómeno desportivo, sendo a sua expressão mais evidente no Futebol.
Relembramos que, para um fenómeno poder ser considerado um Fenómeno
Social Total, este terá de nos permitir observar o funcionamento dos traços ou
dos vestígios das instâncias fundamentais que compõem as sociedades, as
instâncias, familiar, educativa, política, económica, religiosa e recreativa.
Propomo-nos neste ponto, evidenciar as relações exigentes entre o Futebol e
algumas destas instâncias, com o intuito, de comprovar que de facto, o
conceito proposto por Mauss (1979) pode ser aplicável ao Futebol. De
momento, apenas nos iremos pronunciar, sobre as relações que o Futebol
estabelece com a Política, com a Religião e com a Economia, visto que as
relações do Futebol, com as restantes instâncias, Familiar, Educativa e
Recreativa, se encontram evidentes, ainda que de forma implícita no decurso
desta dissertação, e para as quais iremos pontualmente advertir.

29
Futebol um universo de Relações

3.2.1.1- Futebol e Política ou Política e Futebol?! Como queiram, a


relação é biunívoca.

“Na história do mundo os governos de direita sempre exploraram mais as proezas desportivas
do que os poderes de esquerda, descontando aqui, por revestir outros contornos, a questão dos
países de Leste.”
(Lobo, 2002, pp. 219).

Como já anteriormente foi salientado, o Futebol foi sendo ao longo dos


tempos politicamente utilizado (Valdano, 2002) tendo conseguido conciliar ou
congregar aspectos desportivos com a dimensão Política (Sobrinho Simões,
Anexo 1). “O futebol é sempre um espelho da sociedade e da política de um
país” (Sacchi, 2006)
Para realçar o impacto que o Futebol exerce sobre a Política, devemos
atender que se trata de um fenómeno que mais do que apaixonante, colectivo e
de massas, é um fecundo e significativo filão de pesquisa sobre a vida cultural,
social e política (Murad, 2007). Daí a nossa intenção de evidenciar algumas
das formas de expressão da relação entre as duas realidades, Futebol e
Política.
A. d. S. Costa (1997) defende que Futebol e Política são dois Fenómenos
que cada vez mais se assemelham, e cujo funcionamento e lógica, são
idênticos, os quais apresentam ainda muitas semelhanças a nível discursivo.
Estabelecendo, um conjunto de analogias muito interessantes, que em nosso
entendimento, se apresentam ajustadas. Assim, sugere que as substituições
que se realizam no Jogo se assemelham, às trocas que se verificam nos
diferentes Ministérios sempre que há alteração de Ministros; que ambos são
jogos feitos por Homens orientados pelo objectivo de vencer, e que assumem
nos seus contextos papéis de actores astutos. Astúcia que a uns serve para
enganar os adversários, e a outros para iludir os governados.
O impacto social que o Futebol assume, tem reconhecido da parte dos
políticos, a necessidade de se criar legislação específica para o regulamentar.
Tais decisões políticas, podem ser de diversos âmbitos, e emanadas por
Organismos diversificados. Foi recentemente, aprovado pelo Parlamento

30
Futebol um universo de Relações

Europeu um “relatório extenso e corajoso”, cujas propostas visam “resolver os


principais conflitos do futebol internacional” (G. Almeida, 2007, pp. 24).
Beckembauer (2007) revelando-se consciente do impacto social que o
Futebol exerce, afirma que, o Futebol não podendo mudar o Mundo, pode fazer
algo, para torná-lo melhor. Evidenciando ainda, que as relações entre Futebol e
Política, são de tal modo estreitas, que o facto da UEFA atribuir o Euro – 2012,
à Polónia e à Ucrânia resulta, na sua opinião de uma decisão política. Alegre
(2006) sem ignorar, nem refutar as relações entre estas duas realidades,
detecta entre estas uma diferença, que poderá ajudar a perceber o fascínio do
Futebol, é que segundo este autor, contrariamente ao que sucede com as
vitórias das selecções, onde as vitórias são de todos, as vitórias eleitorais
apenas são festejadas pelos vencedores.
São inúmeros os modos como as relações entre Futebol e Política se têm
manifestado, variando, em diferentes países caracterizados por diferentes
regimes políticos e em diferentes épocas.
Em Portugal, as relações do antigo regime com o Futebol são, de uma forma
geral conhecidas e sugeridas por diversos autores (Alegre, 2006; A. d. S.
Costa, 2004; Lobo, 2002). Relativamente a este facto, A. d. S. Costa (2004, pp.
64) refere que, “Salazar foi bastante acusado de fazer um exagerado
aproveitamento político do desporto e principalmente do futebol”. Parece
consensual, admitir-se que as vitórias dos clubes portugueses, especialmente
as equipas do S.L. Benfica da década de 60, a nível internacional, e da
selecção nacional, nos tempos de Salazar, foram utilizadas como uma bandeira
do antigo regime, o qual conseguia através do Futebol manter o povo,
culturalmente empobrecido, minimamente animado, distraído e iludido no seu
“provincianismo bacoco”, permitindo que o regime salazarista visse atenuada a
sua oposição (Lobo, 2002).
Note-se contudo, que pelo que pudemos verificar, o Futebol se apresentou
como um espaço, para expressões de desagrado, para com o antigo regime
(Lobo, 2002; Melo, 2004). Por exemplo no dia 30 de Janeiro de 1938, num acto
de grande simbolismo e coragem, alguns Jogadores portugueses, que se
preparavam para defrontar a selecção espanhola, recusaram-se a fazer a

31
Futebol um universo de Relações

saudação fascista, tendo sido posteriormente detidos para interrogatório pela


polícia política (Melo, 2004).
As figuras do Futebol Nacional da época, pela relevância social que
apresentavam, exerciam grande influência sobre os adeptos em geral, motivo
pelo qual, sempre que tais modelos sociais, se manifestavam discordantes, dos
ideais salazaristas eram, de uma forma, eufemista, advertidos pela PIDE.
Cândido de Oliveira, em Abril de 1942, foi advertido pela PIDE por
alegadamente estar a conspirar junto das forças antifascistas (Lobo, 2002).
Note-se contudo, que tal como sucedeu com Salazar, a generalidade dos
políticos, inclusive os que não gostam de Futebol, não deixaram de o utilizar,
para alcançar os seus intentos (Alegre, 2006). Deste modo, percebe-se que em
Portugal, actualmente as relações entre Futebol e Política se mantêm. Se
olharmos para tribunas dos estádios de Portugal, e também para as comitivas
que integram as selecções e equipas, nas deslocações ao estrangeiro,
verificamos, que uma parte considerável dos elementos que as compõem é,
constituída por pessoas que exercem cargos políticos. Outro facto
suficientemente elucidativo, é um dos processos jurídicos, mais mediáticos
ainda em decurso em Portugal, apelidado de “Apito Dourado”, o qual resulta
das relações, infelizmente promíscuas daí, relações que podem ser
simultaneamente ralações, entre Futebol e Política. Poderíamos ainda referir
muitos outros exemplos, alguns deles bastante presentes na memória da
generalidade da população portuguesa, como são o caso das felicitações tanto
do Primeiro Ministro José Sócrates, como do Presidente do Parlamento
Europeu, Durão Barroso, à selecção portuguesa, pelo facto de se ter apurado
para a fase final, do Campeonato da Europa de Futebol de 2008, algo que foi
noticiado pela generalidade dos média nacionais.
Pelo uso diverso, que a Política parece ter vindo a fazer da relevância social
do Futebol, este tem servido, em diferentes épocas, tanto como forma de
afirmar e consolidar os ideais políticos vigentes, como também, como um meio
de se lhes opor. Facto evidenciado por Leandro Massada (Anexo 2), quando se
reporta, ao exemplo do que se observou, em algumas regiões do nosso país.
“Em Vila Real o núcleo influenciado pelo tempo do Salazarismo continua a ser

32
Futebol um universo de Relações

os benfiquistas da era dos anos 50 e Mondim de Bastos é um núcleo de


portistas. Quer dizer, o aparecimento do núcleo de portistas em Mondim de
Bastos traduz a guerra que há em termos políticos do domínio do Vila Real
sobre o Mondim de Bastos e isso serve de contra corrente. Portanto futebol é
utilizado em todos os aspectos e isso, a influência que tem sobre nós é
extremamente importante.”
A Itália é, um país que em termos do passado político apresenta algumas
semelhanças com Portugal. Se em Portugal houve Salazar, na Itália o seu
homologo foi Mussolini, que de igual forma, se serviu do Futebol para enraizar
os seus ideais (Lanfranchi, 2007; Lobo, 2002)
Lobo (2002, pp. 52) refere que, “mais do que uma simples selecção nacional,
a Squadra Azzurra dos anos 30 personificava o ideal nacionalista preconizado
pela pujança ditatorial de Benedito Mussolini, Le Duce, que resumia numa
lapidar frase dirigida à selecção todo o seu sentir: Vencer ou Morrer”. Como
realça ainda este autor, o tipo de treino ministrado por Vittorio Pozzo, vitorioso
seleccionador italiano da época, reflectia o carácter militarista do regime de
Mussolini, um líder que utilizou o Futebol, para divulgar “um nacionalismo
exacerbado e xenófobo” decidindo, “fechar fronteiras à entrada de jogadores
estrangeiros que nessa época começavam a conquistar maior admiração do
que os italianos no coração dos tifossi”. Depreende-se de tais palavras, que
também para o regime fascista italiano, o Futebol funcionou como um
instrumento de propaganda, capaz de fazer proliferar os ideais preconizados
por “Le Duce” (Lanfranchi, 2007), sendo a selecção italiana da década de 30, a
“expressão futebolística do regime fascista de Mussolini”, um verdadeiro
símbolo fascista (Lobo, 2002).
“Muitos anos depois, já nos finais do século, o dono do Milan ganhou as
eleições italianas com um lema, Forza Italia!, que vinha das arquibancadas dos
estádios. Sílvio Berlusconi prometeu que salvaria a Itália como havia salvo o
Milan” (Galeano, 2005, pp. 38).
Os actuais políticos italianos continuam a usar o Futebol, fazendo-o não raras
vezes da pior maneira podendo considerar-se, como um grupo de oportunistas,
cujo objectivo é, a auto-promoção à custa do Futebol (Sacchi, 2006). Em Itália,

33
Futebol um universo de Relações

como comprova o recente escândalo “Calcio Caos”, as relações entre Política e


Futebol, têm sido altamente perniciosas. Facto que não é novidade, pois na
década de 80, um “escândalo” semelhante abalou o Futebol italiano
(Lanfranchi, 2007).
A França é um país que atravessa actualmente, alguma instabilidade social,
decorrente da sua pluralidade cultural e étnica. O facto da sociedade francesa
ser um mosaico multicultural, tem conferido alguma conturbação à sociedade
francesa, cujos conflitos étnicos e as manifestações de violência, também
reflectidas no Futebol, assumem manifestações cada vez mais frequentes,
infelizmente.
Sendo o Futebol, um Fenómeno Social Total, não nos surpreende o facto de
tal diversidade cultural e étnica se repercutir, no Futebol praticado neste país.
As grandes selecções francesas de Futebol, tiveram sempre nas suas
constituições, franceses resultantes da imigração, como são os casos de
Raimonde Kopa, Just Fontaine, Michel Platini e Zidane, entre muitos outros.
Contudo, a estrutura multiracial que tem caracterizado as selecções
francesas, não agrada a todos, e permite que alguns políticos, cujos ideais
contrariam tal miscigenação étnica, se manifestem desagradados com tal
situação, aproveitando deste modo, o Futebol para apregoarem as suas
doutrinas. O caso mais evidente observado em França foi, o de Jean Marie Le
Pen, o qual como foi suficientemente noticiado, insurgindo-se contra o facto da
selecção nacional francesa de Futebol, que participou no Mundial de 1998, ser
multiracial, sugerindo mesmo tratar-se de uma farsa considerar os Jogadores
da selecção francesa como tal, ou seja, franceses (Hussey, 2006). “A Le Pen
não lhe agrada que os jogadores da sua Selecção não saibam o hino francês,
me parece que tão pouco gosta que alguns dos jogadores da sua Selecção
tenham a pele de uma cor tão pouco francesa. É que Le Pen parece-se muito
com o pior do futebol; o fanatismo sabe-se, é um lugar de encontro dos que
vivem fora de jogo.” (J. Valdano, 1998, pp. 50). Por este motivo, há quem o
considere um oportunista, que aproveitou o momento certo para, referir que a
selecção francesa representa tudo o que era decadente e mau no país
(Hussey, 2006).

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Futebol um universo de Relações

Note-se contudo, que o Futebol uma vez mais, superiorizou-se às crueldades


e desigualdades sociais, uma vez que a selecção francesa acabou por ser
campeã, de um evento que mobilizou como nunca a população daquele país, e
que elevou por todo o Mundo o nome da França. O Futebol revelou a
importância da harmonia étnica, e da Antropodiversidade, um assunto que será
abordado mais adiante nesta dissertação.
Também os blocos comunistas de Leste se serviram do Futebol, como
símbolo e expressão dos seus ideais políticos. O Futebol era, um fenómeno
bastante admirado também naqueles países, “na União Soviética o futebol era
o principal entretenimento, era quase como uma religião, a vida era muito
difícil, metade da nação estava na prisão, nas zonas rurais, não havia o que
comer e era o futebol que unia toda a gente.” (Nilin, 2007). O apego da
generalidade das pessoas, da União Soviética ao Futebol, tornou-o também
naquele espaço geográfico, um fenómeno de grande impacto social, que não
podia ser contrariado, ainda que assim fosse desejado, pelos regimes
comunistas, que por este motivo, e reconhecendo-se incapazes, mas
simultaneamente conscientes da relevância do Futebol para o povo, decidiram
controlar, a paixão do povo, visto que erradicá-la se afigurava pouco plausível.
A criação de diferentes clubes de Futebol, naqueles países está, directamente
relacionada com diferentes orientações politicas. Por exemplo o Dínamo de
Moscovo, estava conotado com o poder político, o CSKA tinha relações com o
exército, e o Spartak de Moscovo, era considerado o clube do povo, afinidades
que se reflectem ainda hoje, na tipologia dos adeptos pertencentes a estes
clubes. “Não há dúvida que muitos dos adeptos do Spartack eram verdadeiros
oposicionistas, que talvez não se atrevessem a mostrar a sua oposição noutras
áreas da vida” (Riordan, 2007). O Futebol afigurava-se deste modo, como um
espaço de tolerância politica e de liberdade, ainda que de forma camuflada.
Tal como sucedia com os regimes fascistas, também nos regimes
comunistas, o Futebol foi sendo utilizado como símbolo de tais ideais, assim,
“também o futebol era obrigado a construir uma nova e superior noção do
chamado homo sovieticus, à imagem do homem socialista, regido pelos
ditames do colectivo” Lobo (2007, pp. 136).

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Futebol um universo de Relações

A Argentina é um país cuja história política reflecte, a forma apaixonada e


volátil de viver, que caracterizam este país. Um dos grandes momentos
futebolísticos que a Argentina viveu, o Mundial de 1978, coincidiu com um
período de grande opressão política. Lobo (2002, pp. 171) reportando-se ao
contexto social, que caracterizava a Argentina em que crescera Maradona,
escreve que este, “fizera-se homem num país onde a liberdade era uma
miragem e a ditadura militar respirava de plena saúde. Nesse ano (1978)
durante quatro semanas, os golos de Kempes acalmaram as massas, fizeram-
nas esquecer por uns tempos os 15 mil desaparecidos e deram o título mundial
à Argentina. Quando no Monumental de Buenos Aires o general Videla
entregou a taça do Mundo a Passarela, o seu bigode ergueu-se num sorriso
hipócrita.”
Gallo (2007) referindo-se à Ditadura Militar opressiva, comandada pelo
general Videla, afirma que, “chegaram ao poder através de um golpe de
estado, não foram um governo eleito, e estavam perfeitamente cientes, que se
a Argentina vencesse o Campeonato do Mundo, era muito provável que o
povo, associasse triunfo futebolístico com triunfo político.” Uma vez mais, fica
evidenciada a forma astuta, como os políticos, tentaram ao longo dos anos, se
servir do Futebol, e o modo como o adoptaram como meio de propaganda.
A Argentina tornou-se a selecção vencedora do Mundial de 1978, o que se
constitui como um momento marcante, para a população. “Conheço pessoas
que por causa do Campeonato do Mundo saíram à rua pela primeira vez,
desde o golpe militar as concentrações populares haviam sido proibidas.
Muitas pessoas que saíram à rua para festejar encontraram outras pessoas,
que já não viam desde o golpe militar. Activistas políticos por exemplo tinham
passado á clandestinidade.” (Moores, 2007).
Mas o Futebol, na Argentina, tal como noutros países, permitiu igualmente
que os opositores ao regime vigente se expressassem Tarantini (2007) defesa
da selecção Argentina de 1978, que não esquecendo as agruras provocadas
pelo regime aos argentinos, aquando da deslocação do general Videla ao
balneário, para felicitar a equipa pela vitória nas meias-finais do Mundial frente
à equipa peruana resolve vingar-se. “Naquela altura da ditadura militar, eu tinha

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Futebol um universo de Relações

três amigos que estavam desaparecidos e já tinha tentado saber do paradeiro


deles. O regime não me prestou a mínima atenção, nem sequer me quiseram
ouvir. Disse ao Daniel (Passarela) aposto mil dólares que se ele (Videla) cá
aparecer ensaboo os «tomates» e quando ele vier ter comigo, lhe aperto a
mão. Ele disse, está apostado.” E assim fez.
Decidimos colocar esta estória, caricata e arrojada, por considerarmos, que
são também estes pequenos episódios que ajudam a edificar o Futebol,
enquanto Fenómeno Social Total.
Na Alemanha, talvez o país onde podemos encontrar, pela sua história
política o maior instrumento de propaganda de sempre, não é de admirar que,
o Futebol tenha sido utilizado, com intuito de instituir, os ideais nazis, usando o
Futebol praticado no país como uma bandeira do poder, e soberania daquele
país no Mundo. Joseph Paul Goebbels, chefe de propaganda Nazista, Ministro
do Terceiro Reich (cit. por Murad, 2007, pp. 251), defendia que uma vitória no
campo era, mais importante para a população do que a conquista de uma
cidade em território inimigo. Outros autores (Galeano, 2005; Lobo, 2002),
narram alguns acontecimentos, e episódios sucedidos durante este período, a
partir dos quais facilmente se depreende, que a pressão e medo imposto aos
Jogadores alemães, assim como aos adversários era imensa. Uma pressão em
relação à qual se Aculturaram, conferindo a este povo, características muito
peculiares, como a enorme frieza e consistência mental, as quais são
igualmente evidenciadas em jogo.
A Espanha apresenta-se como um país, extremamente rico a este respeito,
visto que tanto no presente como no passado, nos apresenta factos,
decorrentes das conjecturas verificadas, que evidenciam as relações entre
Futebol e Política. Sendo vários os autores (Foer, 2006; Galeano, 2005;
Valdano, 2002) a salientarem as relações existentes entre o regime instituído
pelo General Franco, e o Futebol espanhol.
O franquismo, encontra-se associado a uma determinada concepção de
Futebol, mais conservadora, tendo se verificado que a morte do general
Franco, se constituiu como o momento ideal, para o emergir de uma nova
forma de estar e entender o Jogo, representando esse momento, a morte da

37
Futebol um universo de Relações

tradicional “fúria espanhola”, um sinal de identidade arcaica, um cunho do


franquismo (Valdano, 2002).
Foer (2006, pp. 12) evidencia que apesar do facto do Futebol da era de
Franco, em Espanha, representar os seus ideais, este fenómeno era o único
espaço, em que as pessoas podiam demonstrar apego à sua génese cultural,
“durante o regime de Franco, os clubes Atlético de Bilbau e Real Sociedad
eram os únicos cenários onde o povo basco podia exprimir o seu orgulho
cultural sem ir parar á cadeia.” Estes clubes, são ainda hoje símbolos dos
ideais bascos, apresentando-se ainda, como instituições muito ligadas ao
desejo de independência, desta região espanhola. Foi contudo o FC Barcelona
o clube que de forma heróica, se constituiu como o maior centro da resistência
à ditadura militar de Franco, sendo o Camp Nou, o único local onde era
permitido aos seus adeptos, protestar contra o regime (Foer, 2006).
Estas referências vão de encontro, ao que foi referido em relação ao
sentimento, a que aludimos acerca do facto do Futebol se apresentar como um
espaço de tolerância política, no qual as minorias se podiam manifestar, e
evidenciar as suas posições.
O FC Barcelona, ainda na actualidade denota uma forma de estar no Futebol
muito peculiar, facto que se reflecte, nas relações estabelecidas entre Futebol e
Política. Os responsáveis do Governo Catalão, não se escusam de dar os seus
pareceres acerca, das orientações que o clube deve adoptar, como se de
assuntos de Estado se tratassem. Face a esta proximidade, entre Política e
Futebol, não é de admirar, que os principais partidos catalães procurem
efectuar alianças com os candidatos à presidência do clube, com o intuito, de
poderem figurar posteriormente de forma assídua, na tribuna de honra do
estádio (Foer, 2006). Daqui se depreende o uso, que os políticos fazem, do
Futebol. Não sendo ingénuos, facilmente lhe reconhecem um potencial único,
para a dita “caça ao voto”, até porque as bancadas dos estádios são, lugares
de excelência para os políticos concretizarem os seus intentos, conquistar o
eleitorado, camuflando as suas falhas através da festividade emotiva, inerente
ao fenómeno Futebol.

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Futebol um universo de Relações

No Médio Oriente, onde as questões políticas são ainda mais complexas, e


os conflitos dominantes, o Futebol tem se revelado um meio imprescindível,
para a resolução dos conflitos verificados nestas zonas do globo. De tal modo
isto se verifica, que Foer (2006) sugere a “revolução do futebol”, como a chave
para o futuro do Médio Oriente, salientando que esta já se reflecte nas
transformações verificadas naquela zona do globo, indo ainda mais longe, ao
considerar que foi devido ao Futebol, que a consciência política despertou nos
adeptos iranianos. Este autor, narra um conjunto de episódios, verificados
desde os anos 20 do século passado, até aos nossos dias, que nos ajudam a
perceber de que forma o Futebol, foi e é utilizado como instrumento político no
Médio Oriente. “A história do Irão moderno pode ser contada como a história do
futebol iraniano” (Foer, 2006, pp. 263).
“Talvez o futebol seja um factor importantíssimo para a secularização duma
sociedade aferrada a tradições que ligam o poder político ao poder religioso.
Talvez o futebol contribua para a democratização da sociedade iraquiana, pois
sobrevoa credos, raças e condições sociais. O futebol é um extraordinário
nivelador social, pois nele todos encontram o seu espaço de afirmação” (J. A.
Santos, 2004, pp. 225). O Futebol no mundo muçulmano singra, sem servir de
contrapeso ao radicalismo (Foer, 2006). De facto, a profecia lançada por J. A.
Santos (2004) parece estar a concretizar-se, uma vez que no Iraque, em muito
devido ao Futebol, muito está neste momento a mudar. Al-Khairalla (2007)
referindo-se, ao triunfo da selecção iraquiana na Taça da Ásia, apresenta um
conjunto de declarações elucidativas, quanto às alterações que estão em
decurso, naquele país, explicitando ainda o impacto e fascínio, que o Futebol
tem naquele povo, cuja comemoração do feito alcançado foi feita
descontroladamente, tendo a generalidade dos cidadãos ido para a rua, apesar
dos imensos perigos, que tal representa. “Eu espero que a unidade, a força e a
coragem da selecção iraquiana possam fazer com que os políticos parem com
as suas ambições pessoais e tenham em conta o interesse geral” (Mohammed,
2007, pp. 30).
O Futebol apresenta-se, face aos conflitos existentes naquele país como um
fenómeno aglutinador, de tal forma, que se trata muito provavelmente do único

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Futebol um universo de Relações

espaço em que xiitas, sunitas e curdos, coabitam e partilham valores. A


selecção iraquiana, ao ser constituída por elementos destes três povos,
assume-se como um exemplo para a restante sociedade. Ao ponto do político
sunita Saleem al-Jubouri (cit. por, Al-Khairalla, 2007, pp. 31) reconhecer que a
selecção iraquiana, “Os Leões da Mesopotâmia”, colocaram em evidencia as
falhas dos legisladores na resolução dos problemas sectários e étnicos. “O que
os jogadores conseguiram foi unir os iraquianos e fazê-los sorrir, fazendo com
que nos envergonhemos da nossa incapacidade para criar o mesmo
sentimento.” Estas declarações são, em nosso entendimento profundamente
esclarecedoras em relação ao impacto que o Futebol tem, também a nível
político. Um fenómeno de facto único, capaz de auxiliar na resolução e de dar o
mote, para a solução dos problemas políticos mais graves que atravessam o
planeta.
Outros factos, que evidenciam a relação entre Futebol e Política, podem
surgir de muitos outros países, de diferentes zonas do globo terrestre, como
explicitam alguns autores (Foer, 2006; Galeano, 2005; Lobo, 2002).
O Futebol foi determinante para dar o mote, no Brasil à instauração de um
regime democrático. Sócrates, internacional brasileiro dos anos 80, dotado de
especial consciência política e social, reflectiu profundamente sobre os
problemas que atravessavam um Brasil constrangido, pela ditadura militar.
Sócrates, o “Doutor Futebol”, defendeu naquele período, que os problemas que
o país atravessava eram muito complexos, e implicavam alterações profundas
a nível educacional, cultural e de consciência política, tendo conjuntamente
com mais dois Jogadores do Corinthias, Adilson e Casagrande, implementado
um movimento, que ficou conhecido como “Democracia Corinthiana”, cujo lema
era “Ganhar ou perder mas sempre em democracia”, e que se assumiu como
um símbolo no Brasil da luta pela Democracia, tendo mesmo sido decisivo para
a sua implantação, um direito conquistado em parte pelo poder do Futebol
(Lobo, 2002).
Também na Jugoslávia, as relações entre Futebol e Política parecem ter sido,
e continuam a ser evidentes, observando-se uma forte ligação entre clubes,
como o Estrela Vermelha de Belgrado e o nacionalismo, e ainda entre a claque

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Futebol um universo de Relações

deste clube os “Ultra Bad Boys”, e o regime de Milosevic, tornando-se mesmo


nas “tropas de choque” do regime de Milosevic (Foer, 2006).
O mesmo autor faz, um paralelismo interessante entre o percurso histórico do
Estrela Vermelha de Belgrado, “um bastião do nacionalismo” e a evolução
política, e as mudanças culturais que se têm verificado naquela zona da
Europa, evidenciando que apesar deste clube historicamente associado ao
nacionalismo sérvio, tem nos últimos anos incorporado Jogadores de todo o
país, incluindo um separatista croata. O que em nosso entendimento, realça o
poder do Futebol no que se refere ao atenuar dos problemas políticos e étnicos
que compõem as sociedades.
Outro exemplo, embora menos recente, é apresentado por Lobo (2002),
quando se refere aos conflitos verificados na Argélia na década de 50,
destacando a forma astuta como líderes políticos da rebelião argelina,
souberam aproveitar o mediatismo e simbolismo dos seus famosos futebolistas
para defenderem as suas causas.
Em suma, podemos com base no que foi exposto, referir que
independentemente dos regimes políticos, a utilização do Futebol, como meio
de propaganda é, generalizada.
Os políticos, desde muito cedo perceberam, que a relevância social do
Futebol, se devidamente aproveitada, poderia lhes trazer dividendos enormes.
Assim, e perante a impossibilidade de erradicarem uma paixão, que é comum à
generalidade dos povos, de forma sensata, adoptaram como estratégia
controlarem o fenómeno Futebol, utilizando-o, nem sempre de forma subtil,
como um poderoso meio de propaganda política.
Antes de terminarmos esta abordagem, julgamos ser pertinente evidenciar
que apesar de grande parte das referências, por nós efectuadas, se centrar na
utilização efectuada no passado por regimes totalitários, não queremos fazer
transparecer a ideia de que apenas estes se serviram, bem ou mal, do Futebol.
Aquilo que nos parece evidente é, que o facto de não terem sido por nós
encontradas, em igual abundância, referências sobre as relações actuais entre
Futebol e Política, resulta de dois aspectos. Primeiro, porque o tempo para
aferir acerca do tipo de uso e das repercussões do uso, que a Política actual

41
Futebol um universo de Relações

tem feito do Futebol, ainda não é suficiente. Tal, para se efectuar de forma
devidamente sustentada, só é possível em nosso entendimento, tendo por
base uma perspectiva temporal mais alargada, e não imediatista. E em
segundo lugar, porque apesar das Democracias se terem generalizado, há
nelas ainda vestígios de antepassados mais opressivos, o que coíbe os
especialistas, de escreverem sobre o assunto. Não obstante este facto há
quem o faça, e quanto a nós de forma bastante pertinente. Alegre (2006, pp.
16) conclui que da mesma forma que a Política se tem servido do Futebol,
também os dirigentes desportivos se têm servido da Política, acrescentando
que tal “não é bom para o futebol nem para a política, muito menos para a
democracia”. Acrescentando que como é sabido, as ditaduras utilizaram o
Futebol, mas não foram somente estes regimes que se serviram do Futebol,
sugerindo por isso, que é tempo, para reflectir sobre a promiscuidade que se
tem verificado em Democracia, na relação existente entre Política e Futebol.

3.2.1.2- Futebol e Religião, espaços de Heróis e Deuses.

“Em que o futebol se parece com Deus? Na devoção que desperta em muitos crentes e na
desconfiança que desperta em muitos intelectuais.”
(Galeano, 2005, pp. 36).

Também a Religião, enquanto instância social apresenta ligações diversas


com o Futebol. Da pesquisa por nós efectuada, pudemos constatar que o
Desporto em geral, e o Futebol de forma muito particular, têm sido
apresentados como verdadeiras religiões. O fenómeno desportivo, enquanto
fenómeno ritual e simbólico, pode ser entendido como um sistema mítico (A. d.
S. Costa, 1997, 2006). O Desporto afigura-se na actualidade, como uma
religião dos tempos modernos (Baillet, 2001). Uma religião, que contrariamente
a outras modernas, não é de palavras nem de projectos, mas sim uma religião
em que predomina a gestualidade e os rituais festivos (Remmy, 1987). Em
nosso entendimento, tal é facilmente observável pela ida a um estádio de
Futebol, bastando, admirar as bancadas e observar o quanto de festa lá existe,
onde por exemplo, a entrada dos Jogadores em campo se apresenta como um

42
Futebol um universo de Relações

momento de êxtase, no qual muitos dos Jogadores, aproveitam até ao apito


final para efectuarem as suas orações de circunstância, gesticulando inclusive,
de forma bastante explícita. Sendo o Futebol, no âmbito desportivo, um
fenómeno especial, ou como já o consideramos, um Fenómeno Social Mais
Total, depreende-se, que as expressões do sagrado no Futebol, poderão
considerar-se ainda mais evidentes. Pelo seu funcionamento ritualizado, o
Futebol caracteriza-se por uma elevada religiosidade, no qual a linguagem,
assim como outras formas de expressão se assemelham às manifestações
típicas de espaços sagrados (A. d. S. Costa, 1997).
“Claro que o futebol não é o mesmo que Bach ou o budismo. Mas é com
frequência vivido mais profundamente que a religião, e tal como qualquer outra
parte do tecido comunitário, um repositório de tradições.” (Foer, 2006, pp. 12).
Uma perspectiva, exacerbada por J. A. Santos (2004) que sugere, que o
Futebol ultrapassa, inclusive a própria Religião. De facto, para muitas pessoas
o Futebol assume-se como uma genuína e reconfortante religião (J. O. Bento,
2004), chegando mesmo a considerar-se que “o Futebol é uma religião
universal” (Madaíl, 2004), ideia partilhada por A. d. S. Costa (2006), para quem
o Futebol se assemelha ás restantes religiões, por apresentar uma simbólica
sagrada universal, podendo falar-se dele como uma religião. Este autor
acrescenta ainda, que os católicos dos países latinos, têm vindo a trocar os
seus locais de culto pelos estádios. Note-se que alguns destes estádios, são
considerados como verdadeiros templos religiosos, ou designados como tal,
por exemplo, “Catedral da Luz” (estádio do SL Benfica). Talvez, não sejam de
todo descabidas tais designações, sobretudo se atendermos ao que já foi
exposto, e que nos leva a inferir, que muita da religiosidade que acompanha as
pessoas, tem sido desviada para os espaços de Jogo. Sendo assim nos
estádios que as pessoas cumprem os seus rituais de sacralização. Quantos de
nós, nunca se depararam num estádio com uma situação, em que um dito
“ateu”, na hora da decisão por grandes penalidades, revelou a sua
religiosidade, rezando e efectuando as suas preces divinas?! O Futebol não
pode deixar de agregar o lado sagrado (Souto, 2004), apresentando também,
os seus “santos” e “pecadores” (A. d. S. Costa, 1997; J. A. Santos, 2004).

43
Futebol um universo de Relações

“Trata-se de um processo de heroicização, onde o homem é transfigurado,


continuando a ser humano. Há aqui uma experiência do sagrado, descrita
como religiosa, mas vivida numa versão secularizada. É mais um dos aspectos
da metamorfose do sagrado no interior da nossa cultura industrial que se
afirma apenas profana.” (A. d. S. Costa, 2006, pp. 45). O “processo de
heroicização”, permite que um homem ordinário se converta num super-homem
(A. d. S. Costa, 1997, 2004, 2006).
Enquanto fenómeno ritual e simbólico e entendido como um sistema mítico
(A. d. S. Costa, 1997, 2004, 2006; Sanchez Pato, 2006), o Futebol é um
espaço de criação de Deuses e Heróis, que apresenta o Herói como aquele
que representa o mito (Sánchez Pato, 2006), tendo assim uma história feita de
heróis (J. Bento, 2004, pp. 83). “A sócio-antropologia admite, de forma
consensual, que no desporto existe um campo de forças positivas para a
construção de mitos e heróis (…) o desporto moderno, através dos seus rituais,
consegue resgatar seus velhos mitos no âmago da sociedade actual.” (Filho,
2004, pp. 171).
Estes Deuses ou Heróis afiguram-se como seres fantásticos capazes, de
transcender todas as barreiras (Morris, 1982), e são símbolos da luta do
Homem com a Natureza (Rubio, 2001), mostrando à sociedade que através do
Desporto, se pode lutar contra o anonimato, e que através dele, se pode
procurar valores transcendentais, que nos elevem (J. Bento, 2004). A luta
incessante dos heróis desportivos, no sentido de baterem constantemente
recordes e de superarem permanentemente os seus rendimentos e êxitos
desportivos é, um dos aspectos mais marcantes do Desporto actual, o qual
assumiu na sociedade industrial, que o fomentou, um simbolismo enorme. Isto
leva, a que A. d. S. Costa (1993, 1997) refira que os heróis desportivos, que
lutam legitimamente para sistematicamente se superarem, funcionam como
modelos simbólicos para a sociedade, permitindo que as pessoas se tentem
realizar, constituindo-se por isso, como modelos de transcendência. O facto
dos heróis desportivos, se revelarem modelos para a sociedade, procurando
enraizar nesta, valores de transcendência e constante superação, são
características que consideramos determinantes, para que o Talento no

44
Futebol um universo de Relações

Futebol se manifeste, e que entendemos poder, e dever ser fomentada ao


longo do processo de Formação. Além disso, o fascínio despertado por estes
heróis, quando devidamente utilizado, pode constituir-se como um meio de
Aprendizagem muito relevante no Futebol.
O Futebol é sugerido como um fenómeno de funcionamento tribal, que admite
a criação de heróis e de deuses (A. d. S. Costa, 2004; Filho, 2004, Morris,
1982). “As derradeiras reuniões tribais da sociedade ocidental são muitas
vezes encontradas nos estádios de futebol, onde todos adoram os verdadeiros
magos no seu coração. Para eles os verdadeiros heróis e magos são os que
marcam golos.” (Mclaren, 2006). O Futebol é deste modo, um espaço, no qual
o imaginário, transfigura o real, permitindo ao Homem eleger os seus heróis e
neles projectar angústias e aspirações (Filho, 2004), aspirações que são
relevantes, para a generalidade dos jovens que se iniciam no Futebol, os quais
têm os seus heróis como referenciais. É que o herói do Futebol assume,
especial impacto no povo, sendo alvo de uma adoração diferente da que se
observa noutros fenómenos (Morris, 1989). Parece assim pertinente,
diferenciar os heróis do Futebol, dos heróis dos restantes fenómenos,
encontrando-se a diferença, “no facto de que, no futebol, a assunção do herói
depende da derrota do oponente” (Souto, 2004, pp. 126). O herói do Futebol,
ao viver para a sua causa, “faz o elo entre a vontade dos homens e a força dos
deuses”, sendo por isso venerados tal como verdadeiros deuses (Filho, 2004,
pp 171). Segundo A. d. S. Costa (1997), estes seres com origens comuns a
todos nós, conseguem transformar-se em deuses, capazes de figurar no
Olimpo. Não sendo por isso, de admirar que tenham sido criadas, em torno dos
heróis do Futebol, organizações, consideradas como religiões. São algumas as
“igrejas” ou “religiões” criadas em torno de alguns Jogadores de Futebol,
destacando-se em Portugal, a religião de Neno (ex. Guarda-Redes do SL
Benfica) e a nível mundial uma bem mais mediática, criada em 2002, a igreja
de Maradona, que conta com 25000 seguidores (Fernandes, 2007), sendo uma
religião criada de forma análoga à Igreja Católica, apresentando um edifício
para a realização dos seus cultos, uma capela, designada de “La Mano de
D10s”, uma bíblia que é, a autobiografia de Maradona, e uma cartilha, da qual

45
Futebol um universo de Relações

constam 10 mandamentos, um dos quais obriga, a que os fieis, atribuam aos


seus descendentes o nome de Diego (F. E. d. Lima, 2007). Os devotos da
“Igreja Maradoniana”, apesar de na generalidade católicos, assumem ter “um
Deus da razão”, e também um “deus do coração” que é Maradona (Souto,
2004). Não obstante este facto, “as pessoas têm de perceber que o Maradona
não é uma máquina de dar felicidade.” (Maradona, 2005, pp. 70).
Importa por isso advertir, para a existência de diferenças entre os Deuses e
os Deuses do Futebol e do Desporto em geral, estes últimos “praticam a única
coisa que aos deuses é vedado fazer: aspirar a uma glória incerta e arriscar-se
ao fracasso.” (J. Bento, 2004, pp. 87). Talvez por isso, por serem Deuses
palpáveis, visíveis e Humanos, os Deuses do Futebol, exerçam tanto fascínio
nas pessoas, e nas Crianças.
As histórias dos Deuses do Futebol remetem-nos deste modo, para contos do
fantástico, em que indivíduos de origens humildes, ou até miseráveis, se
tornam admirados e venerados por multidões.
“Mas o mais surpreendente, o que talvez não tenha sido dito nem consiga
explicar, é o carinho que continuam a ter por Eusébio os que nem sequer eram
nascidos quando ele jogava (…) os meninos e os jovens continuam a correr
para Eusébio e a pedir-lhe autógrafos. Onde quer que chegue, em qualquer
parte do mundo, o seu nome e o seu rosto continuam a ser sinónimos de
futebol e festa. Porquê? Eu creio que a razão está no menino que Eusébio
continua a trazer dentro de si. O menino que começou a jogar descalço em
Moçambique, depois veio para Lisboa e andou a marcar golos pelos campos
do mundo”. (Alegre, 2004, pp. 169). Palavras, suficientemente elucidativas em
relação ao fascínio, por vezes até misterioso que os Deuses do Futebol,
despertam nas Crianças. Pessoas endeusadas que segundo Morris (1982), por
serem fruto de um meio austero foram obrigados a fomentar um espírito
perseverante e competitivo, que em muito contribuiu para as suas ascensões
ao estatuto de Heróis ou Deuses. Em nosso entendimento, a resiliência
evidenciada, poderá revelar-se, como um traço de personalidade, determinante
para o sucesso dos Talentos no Futebol.

46
Futebol um universo de Relações

Para explicitar, a relação existente entre Futebol e Religião, podemos nos


socorrer de inúmeros factos, que em nosso entendimento, podem contribuir
para uma melhor compreensão de tal relação.
Uma das maiores rivalidades futebolísticas, que se observam no Reino
Unido, tem na sua base, divergências religiosas, trata-se da rivalidade
estabelecida entre o Celtic de Glasgow, clube com afinidades com o
catolicismo e o Glasgow Rangers, conotado com o protestantismo, sendo uma
rivalidade religiosa, que resulta da extensão de um combate inacabado pela
reforma protestante (Foer, 2006). Também os conflitos religiosos, relacionados
com as questões judaicas, se reflectem no Futebol, tendo este sido
determinante para a aceitação dos judeus em países nos quais se constituíam
como uma minoria (Foer, 2006).
A forma como a religiosidade se expressa no Futebol é bastante diversa, face
a um fenómeno tão aglutinador e apaixonante, e pelo fascínio universalizado
que desperta, não deixa de facto nada nem ninguém indiferente daí que
inclusive as maiores instituições e instâncias religiosas, não sejam excepção.
No nosso país, são várias as figuras do clero, que revelam fascínio pelo
Futebol, uma das mais conhecidas é o Padre Vítor Melicias, que no programa
“Cultura Táctica” transmitido pela Sport TV, se revelou um fervoroso adepto de
Futebol e adepto do Sporting CP. Mas também no Vaticano, o Futebol é algo
muito apreciado, o Papa Bento XVI, por alturas do Mundial de 2006, solicitou a
instalação de um televisor no seu apartamento, para assistir aos jogos,
resultando muito do seu interesse, do impacto que o Futebol tem na sociedade
(Amaro, 2006).
Todos estes factos, permitem em nosso entendimento, perceber o quanto é
universal, o credo da bola.

47
Futebol um universo de Relações

3.2.1.2- Futebol e Economia, os riscos de abanar definitivamente «a


árvore das patacas».

“O futebol está melhor publicitado que nunca: é moda, um fenómeno social, um produto do
consumo de primeira necessidade, mas até ao momento está melhor vendido que jogado.”
(J. Valdano, 1998, pp. 21).

A Economia estabelece também relações muito diversas com o Futebol, o


que nos parece ser compreensível, se atendermos a que os interesses
económicos se têm apoderado dos diversos domínios da sociedade, com tudo
o que de bom e de mau, tal tem associado (Capra, 2005).
O Desporto em geral, logo, também o Futebol encontram-se profundamente
relacionados com as alterações e traços caracterizadores da sociedade
industrial, sendo mesmo um reflexo muito fiel, dessa mesma sociedade (Bento,
2007; A. d. S. Costa, 1993, 2006).
O impacto económico do Desporto em Portugal evidencia-se pelo facto deste
representar, em termos laborais um significado bastante significativo, no sector
do Desporto e áreas afins, podem considerar-se mais de 900000 indivíduos
empregados (C. Almeida, 2007). Depreendemos destes dados, que sendo a
população em Portugal de cerca de 10 milhões, e destes, apenas uma parte
desempenha actividades laborais, o número apresentado é bastante
significativo, e elucidativo, acerca do impacto que as actividades associadas ao
Desporto exercem sobre a Economia portuguesa. De acordo com E. Pereira
(2007), o Desporto nos diferentes âmbitos de prática tem na sociedade actual
conquistado, um significado social e económico tendencialmente crescente, o
mesmo sucedendo com as relações que tem estabelecido com o turismo, uma
das maiores indústrias da actualidade, no nosso país. Para esta autora, o
Desporto assume um papel muito relevante ao nível da promoção dos destinos
turísticos, constituindo-se assim, como um bom gerador de receitas.
Recentemente, em Portugal, temos tido a prova disso, com a realização de
competições desportivas diversas, destacando-se contudo, o Campeonato
Europeu de Futebol em 2004, muito provavelmente, o maior meio de promoção
turística de Portugal nos últimos tempos. Destacando-se assim o Futebol,

48
Futebol um universo de Relações

também ao nível das potencialidades de promoção turística, das restantes


modalidades. Parece ser de forma inequívoca, a modalidade desportiva que
melhor consegue conciliar, os aspectos comerciais, com os desportivos
(Sobrinho Simões, Anexo 1). Reforçando-se deste modo, a ideia por nós
apresentada de que o Futebol é, um Fenómeno Social Mais Total, assumindo
na Economia, um significado muito considerável.
“Fonte incomensurável de geração de empregos directos e indirectos, o
futebol mobiliza recursos gigantescos em patrocínios, publicidade, transmissão
televisiva, salários, dentre outros aspectos, inclusivamente um deles, bem
contemporâneo, que é o «turismo desportivo». Este, hoje, é uma actividade
profissional, sector de investimentos em recursos humanos e financeiros e área
de investigação académica.” (Murad, 2007, pp. 249). Quando comparado com
General Motors, a maior empresa mundial, movimenta volumes económicos
consideravelmente superiores, por exemplo, “o montante FIFA” alcançava em
2006 cerca de 300 biliões de dólares (Murad, 2007).
J. N. Coelho & Pinheiro (2004), relatam que à medida que o Futebol foi
evoluindo pelo século passado, sofreu alterações rápidas e profundas,
desencadeadas pelo seu potencial social e económico. Com tais alterações,
observaram-se algumas tendências que contrariam as concepções mais
convencionais de gestão dos clubes. Motivo pelo qual, estes autores referem a
este respeito, que a chegada das SAD’s ao Futebol e as respectivas cotações
em Bolsa dos clubes, provocou nos adeptos, habituados ao associativismo
tradicional, um espanto generalizado. Sugerindo ainda que o impacto das
tendências globais socioeconómicas, tiveram no Futebol português um impacto
negativo, nomeadamente, ao nível da diminuição das assistências nos
estádios, uma consequência do aumento de transmissões televisivas;
implicando ainda o êxodo de Talentos, o que se repercute numa diminuição da
competitividade do Futebol português.
Face ao exposto, e tendo em consideração o que refere Souto (2004) o
Futebol representa 1% do PIB dos países mais desenvolvidos, mas este autor
acrescenta, que este Fenómeno vive neste momento um conflito entre dois

49
Futebol um universo de Relações

pólos de dimensão antagónicos, visto que vislumbra o seu futuro


comprometido, entre a dicotomia “esporte ou negócio”. (Souto, 2004).
“O futebol tornou-se progressivamente propriedade de gente com dinheiro.
Como tal, sofreu o mesmo desenvolvimento que a sociedade. Pouco a pouco,
o mundo transformou-se num mundo capitalista e o dinheiro ganhou cada vez
mais importância. O importante é fazer com que as regras da ética do jogo
sejam respeitadas e que o Futebol não seja poluído. Os interesses financeiros
podem poluir o espírito do jogo.” (Wenger, 2006).
São já vários os autores (Cruyff, 2002; Foer, 2006; Garganta, 2004; Valdano,
2002) que se têm mostrado preocupados e que alertam, para a perigosidade
que pode constituir esta relação, que é por vezes uma “ralação”, entre Futebol
e Economia. Cruyff (2002) adverte para o que acabamos de referir, salientando
que dar primazia aos interesses económicos, em detrimento do rendimento
desportivo, pode ser altamente pernicioso. Acrescentando ainda, que as
influências externas, decorrentes das pressões económicas, das quais se
destaca a pressão dos patrocinadores, pode ser muito prejudicial, para a
gestão dos clubes.
Tal como em Portugal, também noutros países, como o Brasil, se tem
observado um crescente mercantilismo, que se tem repercutido de forma
perniciosa, no Futebol daquele país, apelidado de “NBA do futebol global”,
tendências perversas, que têm permitido aos dirigentes de clubes brasileiros
ascenderem social e economicamente, à custa da depreciação do Futebol,
reflexos no Futebol, dos maus aspectos da globalização (Foer, 2006).
“O futebol está melhor publicitado que nunca: é moda, um fenómeno social,
um produto do consumo de primeira necessidade, mas até ao momento está
melhor vendido que jogado.” (J. Valdano, 1998, pp. 21). Por tudo isto, Garganta
(2004) questiona de forma pertinente, quanto a nós, se a vaga economicista
que tenta promover este fenómeno, enquanto espectáculo, não poderá ser
responsável pelo reverter da essência do Futebol, “o verdadeiro espírito do
jogo”. Consideramos, que o Futebol, não poderá ignorar o facto de se ter
constituído como um negócio, contudo, se continuar a dominar, o desejo de
extrair dele descontroladamente dividendos, tal poderá se repercutir na

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Futebol um universo de Relações

decadência deste fenómeno, que incapaz de resistir ao lucro imediato,


hipotecará mais tarde ou mais cedo, a possibilidade de usufruir dele, e de
tampouco extrair dele quaisquer dividendos. Deste modo, parece-nos que
todos estes problemas que atravessam o Futebol enquanto negócio, obrigam a
uma reflexão profunda, acerca da forma como se encaram os processos de
Formação de jovens Jogadores. Os quais, com o crescente número de escolas
de iniciação ao Futebol, pagas, em detrimento do tradicionalismo que
caracterizava a Formação, tendem a cada vez mais ceder, a lógicas de
mercado, levando a que muitas das vezes, mais do que interessadas no
“verdadeiro espírito do jogo”, e na qualidade do processo de Ensino do Jogo,
se preocupem com estratégias que lhes permitam “encher os bolsos”.
Importa contudo salientar, que nem tudo é mau, se pensarmos de forma um
pouco ingénua, e ignorarmos tudo o resto, verifica-se que muitos cidadãos com
as vitórias dos seus clubes e ou selecções nacionais, chegam aos locais de
trabalho com um alento, que proporciona uma maior rentabilidade nos locais de
trabalho, e como tal, impulsionando assim, a Economia mundial.

3.3- Futebol a sua omnipresença, e os efeitos e enfeitos da


Globalização:

“… diz-se que houve, de facto, um cessar-fogo de quarenta e oito horas, observado apenas para
nós, e os meus companheiros lembram-se de terem visto bandeiras brancas e cartazes dizendo
que haveria paz só para verem Pelé a jogar.”
(Pelé, 2006c, pp. 152).

Consideramos pertinente neste ponto evidenciar um conjunto de factos,


acontecimentos e episódios, que fomos recolhendo e que evidenciam que o
Futebol é um fenómeno omnipresente nas sociedades actuais. E mais que
isso, que essa presença se faz notar de forma especial.
A presença do Futebol é, extensível a diferentes domínios, e nem mesmo
áreas do conhecimento tradicionais, como a Química, lhe ficam indiferentes. Na
tabela periódica um dos seus elementos é, o buckminterfullereno, o qual, pelas

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Futebol um universo de Relações

suas parecenças com uma bola de Futebol, é vulgarmente designado de


“futeboleno” (Calado, 2005).
O acontecimento futebolístico mais representativo é, a realização dos
Campeonatos do Mundo organizados pela FIFA, eventos capazes de permitir
que durante aproximadamente um mês, todos os dias sejam domingos
(Valdano, 2002). Os Mundiais de Futebol, mais do que momentos de aferição
das tendências e evolução registadas no Jogo, constituem-se como
Fenómenos Sociais únicos, uma grande festa em que há interacção entre
diferentes culturas.
Se nos cingirmos apenas, à realização do último Mundial de Futebol,
realizado na Alemanha em 2006,verificamos que são inúmeros os factos que
podemos recolher, e que evidenciam o Futebol enquanto Fenómeno Social
Mais Total. Conforme realça Murad (2007, pp. 251), “a Copa do Mundo é o
maior evento de audiência televisiva já registrado: em 2002 Coreia/Japão, 44
bilhões de audiências, na Alemanha / 2006, cerca de 50 bilhões.”
Acrescentando, à semelhança de outros autores (R. P. Garcia, 2006; Soares,
2004; Valdano, 2002) que não existe na história, fenómeno de qualquer
natureza que tenha conseguido aproximar-se de tais números. “Nenhum
evento, desportivo, nem os Jogos Olímpicos, é tão abrangente.” (Blatter, 2006).
Em Portugal, durante o Mundial da Alemanha, observou-se, “um país parado
para assistir à força daqueles rapazes de chuteiras.” (R. Ferreira, 2006).
“Quis falar comigo sobre o próximo congresso do PS. Escusei-me. O que
neste momento me aflige é saber se Cristiano Ronaldo joga ou não.” (Manuel
Alegre, 2006, cit. por R. Ferreira, 2006). Este tipo de declarações é
perfeitamente elucidativa, em relação à dimensão e preponderância que o
Futebol assume na sociedade, reflectindo-se no caso de modo mais evidente
na instância política, encontrando-se presente em todo o lado, inclusive no
Parlamento. Podemos inferir que o facto de até os políticos, se escusarem a
falar de assuntos públicos, por causa do Futebol, é revelador do quanto é
grande, a dimensão deste Fenómeno. Possivelmente, tal como Manuel Alegre,
também a quase totalidade da população portuguesa se encontra mais
preocupada com questões, mesmo as mais irrelevantes, relacionadas com o

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Futebol um universo de Relações

Futebol, do que com questões fundamentais da política nacional e


internacional. A prová-lo destacamos os relatos efectuados, e transmitidos
pelos media, relativos à recepção efectuada por milhares de pessoas, aos
Jogadores da selecção nacional, aquando da chegada a Portugal, tendo-se
deslocado ao Estádio do Jamor milhares de pessoas, como se encontra
documentado, na generalidade da imprensa publicada no dia 10 de Julho de
2006.
Outro facto que nos parece ser muito relevante, para a compreensão da
dimensão social que o Futebol apresenta na sociedade portuguesa, é relatado
por A. Campos (2006, pp. 25), a qual salienta que nas urgências do hospital de
Santa Maria da Feira, o facto de estar a realizar-se um jogo da Liga dos
Campeões, “alivia momentaneamente um serviço que nalguns dias fica quase
saturado.” O Futebol parece deste modo, ter o condão de tranquilizar o
ambiente agitado que geralmente caracteriza aquele espaço.
“O futebol terminou. Pelos largos corredores do serviço, médicos e
enfermeiros mostram-se já mais atarefados” (A. Campos, 2006, pp. 25). Esta
evidência parece-nos concludente, no que concerne ao impacto que o Futebol
tem sobre os portugueses, podendo inclusive assumir-se como um anestésico
para os males sociais.
Mas, até pelo que foi evidenciado, o impacto social do Futebol não se
observa de forma evidente, apenas no nosso país. Os Mundiais de Futebol,
são fenómenos únicos, que não passam indiferentes à generalidade das
sociedades, inclusive as que à priori, se apresentam mais relutantes à
aceitação do Futebol e de tudo o que o envolve. A este respeito Lorent Blanc
(in, Platini, 2006b), salienta que antes do Campeonato do Mundo, realizado em
França em 1998, os franceses questionavam se seria bom para o país
organizar o evento, já que o país não se envolve muito no Futebol.
Acrescentando que contudo, no final, as pessoas foram seduzidas e durante
dois meses viveram em função do Futebol. “Emoldurado por entre um universo
de glamour cultural e iconoclasta, durante muito tempo o futebol não despertou
grandes paixões na tranquila Velha Gália” (Lobo, 2002, pp. 192), um contexto,

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Futebol um universo de Relações

que ajuda a compreender a relutância evidenciada pela população francesa,


face ao Futebol, um fenómeno situado no espaço e no tempo.

3.3.1 - Futebolização, um «pau de dois bicos» ou talvez não?!

“No final achei difícil manter uma atitude demasiado hostil face à globalização. Com os seus
inúmeros defeitos, levou o futebol aos cantos mais remotos do mundo e à minha vida.”
(Foer, 2006, pp.13).

À semelhança do Futebol, também o tema globalização tem assumido


especial destaque, sobretudo nos últimos anos, mesmo que muitas das vezes,
não se perceba de forma muito clara o que tal representa. Marques (2007, pp.
81), evidenciando que nos encontramos num contexto de crescente
globalização, realça que “o desporto não está à margem deste processo de
globalização. E nem poderia ser de outro modo, porque, nas suas formas
modernas, se procurou instituir e afirmar como linguagem universal, um modelo
cultural adoptado internacionalmente.”
Foer (2006) efectua uma análise muito diversificada sobre os efeitos da
globalização no Futebol, tentando encontrar explicações para a compreensão
das sociedades, perceber quais os fundamentos em que se suportam, e ainda
quais as relações múltiplas, como evidencia que existem entre Futebol e
globalização. Evidenciando deste modo, aquilo a que apelida de “globalização
dos relvados”, isto é, os reflexos que a globalização tem sobre o Futebol,
advindo desse facto repercussões diversas, positivas e também negativas.
Destacando a este respeito, por exemplo, o êxodo dos Jogadores no Brasil, um
clã que se tem espalhado por todo o Mundo. Num Jogo recente da Liga dos
Campeões, realizado a 4 de Dezembro de 2007, que opôs a equipa ucraniana
do Shaktar Donetsk ao SL Benfica, pudemos observar que de facto os
Jogadores brasileiros, se encontram em países muito diversos, alguns dos
quais em termos culturais, e ambientais completamente antagónicos do país de
origem, sendo nalguns dos casos submetidos a condições climatéricas, como
sucede na Ucrânia, cuja única semelhança com o Brasil, será a temperatura,
com a pequena particularidade de num caso, ser negativa e noutro, positiva.

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Futebol um universo de Relações

Mascarenhas (2004, pp. 96), ajuda-nos a perceber que este fenómeno, é de


facto um reflexo da globalização no Futebol, e que se pode caracterizar por um
processo, “de crescente grau de extroversão da tradicional base local, movido
pela nova racionalidade instrumental do mercado que hoje reorganiza o futebol
em escala mundial.”
Os efeitos da globalização e da maior propensão para o imediatismo, que lhe
está associada, pode ser evidente pela popularidade globalizada, que pode
afectar os protagonistas deste fenómeno. De acordo com Lourenço & Ilharco
(2007) o impacto de José Mourinho, extravasou o âmbito desportivo, tornando
este treinador num “fenómeno global” e uma “referência mundial” a diferentes
níveis, motivo pelo qual a sua imagem surge associada a variadas marcas
conceituadas mundialmente, e as suas declarações são das mais citadas pela
imprensa inglesa (Athayde, 2006) facto ainda mais relevante, se considerarmos
que na Inglaterra, não existem jornais exclusivamente desportivos. Um outro
dado revelador, do enorme impacto que a imagem de José Mourinho tem, em
todo o Mundo é, a recente tradução para japonês, e publicação neste país do
livro, “Mourinho – Porquê tantas vitórias?!” (B. Oliveira et al., 2006), depois do
mesmo ter sucedido em Espanha.
Em nosso entendimento, tais constatações, tornam evidentes as influências,
que no caso julgamos de uma forma geral positivas, que a globalização pode
ter sobre o Futebol, ajudando assim, a explicar porque motivo, figuras do
Futebol são conhecidas em todo o Mundo. Na actualidade, Cristiano Ronaldo,
José Mourinho, e Luís Figo são, provavelmente as figuras portuguesas mais
conhecidas no Mundo, despertando nas Crianças do nosso país um fascínio
especial, que se tornará mais evidente numa fase posterior desta dissertação,
e que pode influir de forma muito significativa, na construção de Talentos no
Futebol.
São inúmeros os factos que evidenciam que o Futebol se encontra, presente
em todos os locais do nosso planeta, mesmo nos mais inóspitos. O Futebol tem
inequivocamente, a capacidade de não deixar ninguém indiferente. Nómadas
mongóis, a muito custo engendram formas que lhes permitam assistir à
transmissão das grandes competições, enquanto que os monges budistas que

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Futebol um universo de Relações

habitam mosteiros budistas no Nepal, a 5000 metros de altitude, ao lado de


Buda colocam fotografias de Ronaldo (actual Jogador do AC Milan) (Martinez,
2006).
Não obstante, todos estes dados que explicitam o fascínio que o Futebol
desperta, não devemos deixar de salientar, que um lado menos bom da
globalização também existe (Foer, 2006). A este respeito, Lobo (2007) salienta,
que perante o cenário de globalização que se tem observado no Futebol, torna-
se pertinente ponderar até que ponto, tal não se repercutirá, numa
descaracterização das diferentes identidades futebolísticas. Segundo este
autor, estas encontram-se, nos últimos tempos, bastante ameaçadas, por
exemplo, por um conjunto de processos de duplas nacionalizações duvidosos.
A polémica em torno das naturalizações dos Jogadores de Futebol, tem nos
últimos tempos, gerado alguma controvérsia, e quanto a nós, tem se revelado
como mais um condicionalismo à inclusão de jovens Jogadores formados nos
próprios clubes. Os quais preferem preterir um jovem com potencial, em favor
de um negócio arriscado e dúbio. Contudo, é mais uma problemática, a juntar à
enorme complexidade que caracteriza este fenómeno, juntando-se deste modo,
aos já inúmeros temas de conversa e de discussão, que o Futebol apresenta, e
sobre os quais todos gostam de opinar. “O futebol é muitas coisas, pode ser,
(…) desde aquilo que nós vemos, desde o jogo no relvado, até aquilo que se
diz na televisão, por exemplo. Futebol é tudo isso.” (Paulo Cunha e Silva,
Anexo 4). É também a este nível que reside o fascínio do Futebol, a sua
omnipresença também na oralidade, afinal, por vezes “há mais jogo falado do
que jogado” (Alegre, 2002).
Apesar de tudo, e não podendo ignorar o lado mais pernicioso da
globalização, e a necessidade de o atenuar, não deveremos ter uma posição
demasiado fatalista, face a este fenómeno que se assume como uma
inevitabilidade. Uma inevitabilidade que é cada vez mais evidente, visto que os
novos meios de comunicação, de modo especial a Internet, permitiram alargar
horizontes (Sobrinho Simões, Anexo 1), e projectar ainda mais, a dimensão
planetária do Futebol. “No final achei difícil manter uma atitude demasiado
hostil face à globalização. Com os seus inúmeros defeitos, levou o futebol aos

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Futebol um universo de Relações

cantos mais remotos do mundo e à minha vida.” (Foer, 2006, pp.13).


Entendemos por isso, que o desafio que se coloca, aos intervenientes neste
fenómeno, passa pela tentativa de promover a qualidade do Futebol, para que
a todos sejam dados a conhecer referenciais de qualidade. A este respeito,
parece-nos particularmente pertinente, a importância da Formação e da
promoção da qualidade dos processos de Formação, uma vez que é destas
que depende o futuro do Futebol.

3.3.2 - Futebol Feminino, um dos enfeitos da Globalização do


Fenómeno:

“A mulher não podia ficar indiferente ao gosto, tendência e moda do seu envolvimento. E é
assim que a mulher entra no mundo fascinante do futebol organizado e institucionalizado.”
(Morais, 1993, pp. 185).

Pelo que pudemos constatar, a globalização permitiu que o Desporto e o


Futebol, em particular passassem a fazer parte da vida de um número cada vez
maior de Crianças, jovens e adultos do sexo feminino, isto apesar, da prática
desportiva neste grupo ser, um fenómeno recente (Morais, 1993).
A procura do Futebol por parte da população feminina constitui-se como um
facto que consideramos importante realçar, e que é um reflexo, da
emancipação que se tem observado por parte da mulher, em diferentes
sectores da sociedade actual. Tornando deste modo evidente, uma vez mais,
que o Futebol não é imune, às tendências sociais. O Futebol conseguiu
transcender as barreiras dos géneros, tendo visto aumentado o interesse das
mulheres em praticá-lo (S. R. d. S. Oliveira, Junior, Mansano, & Simões, 2006).
Consideramos, que o facto do Futebol, estar a cativar cada vez mais a
população feminina, tanto ao nível da prática efectiva, como da assistência a
competições, assume-se como extremamente enriquecedor, para o fenómeno.
“O futebol nos dias de hoje, é de uma forma inquestionável a prática desportiva
mais popular em Portugal. A mulher não podia ficar indiferente ao gosto,
tendência e moda do seu envolvimento. E é assim que a mulher entra no

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Futebol um universo de Relações

mundo fascinante do futebol organizado e institucionalizado.” (Morais, 1993,


pp. 185).
Um aspecto que se afigura importante salientar, é que parece ser nos locais
do globo, onde os direitos da mulher, tardam em se afirmar, e como tal, onde
as causas feministas são mais urgentes, que o Futebol assume de forma mais
explícita o seu impacto social e político, no que se refere à emancipação das
mulheres.
A este respeito, Lobo (2007) salienta que, o Futebol, um “desejo proibido” às
mulheres iranianas, as quais não podem assistir a jogos de Futebol, desperta-
lhes um sentimento muito especial, que as leva inclusive a desafiarem, e a
ignorarem o cumprimento de alguns princípios culturais, arriscando
disfarçarem-se, para poderem entrar nos estádios, sabendo à priori, que se
algo correr mal, serão sancionadas pelo sucedido. O mesmo autor evidencia
ainda, que desde 1998, quando Nadia Pizzuti, uma jornalista italiana, se
constitui, oficialmente como a primeira mulher a entrar num estádio de Futebol,
têm sido várias as conquistas alcançadas, pela iranianas no que se refere, a
uma maior participação no Futebol. Ao ponto de em 2006, ter sido criada uma
selecção iraniana de Futebol Feminino. Também Foer (2006, pp. 257) se refere
a este Fenómeno, que se observa no “mundo islâmico”, destacando igualmente
o facto das mulheres, em número crescente, nesta zona do planeta arriscarem
“castigos severos”, disfarçando-se, procurando comprimir os peitos, esconder
os cabelos e vestir roupas de homem, para poderem presenciar nos estádios
de Teerão jogos de Futebol. Este autor salienta ainda, algo que em nosso
entender pode assumir, um simbolismo muito significativo, no que se refere à
emancipação das mulheres no Islão. É que após o apuramento do Irão, para o
Mundial de Futebol de 2006, os festejos de tal feito, realizados nas ruas não
tiveram, apesar das sugestões efectuadas pelo governantes, participação
exclusivamente masculina, “os celebrantes festejaram em companhia mista”,
sendo que algumas mulheres, e aqui reside, um simbolismo ainda mais
marcante, “deitaram fora a hijad sem quaisquer atavios na cabeça (…) quando
a equipa finalmente regressou (…) Milhares de mulheres desafiaram a
solicitação do Estado e reuniram-se (…) Determinadas a conseguir a sua

58
Futebol um universo de Relações

parcela de celebração, irromperam pelas barreiras policiais e entraram à força


no estádio (…) a polícia não teve escolha senão fechar os olhos à sua entrada
e aceitar a derrota.” De facto, face ao exposto, o Futebol é um Fenómeno
Social Mais Total, de tal forma poderoso, que pode inclusive pressagiar ou
funcionar como um catalisador de revoluções sociais bastante profundas.
Face ao crescimento e desenvolvimento do Futebol Feminino, e do impacto
que este fenómeno desperta na população feminina, torna-se necessário que
num futuro próximo se desenvolvam programas de desenvolvimento e de
estruturas, semelhantes às já existentes no Futebol Masculino (UEFA, 2007).
Sendo cada vez maior, o impacto social que o Futebol representa na
população feminina, as repercussões destas tendências manifestam-se de
múltiplas formas. Uma das quais, directamente relacionada com o processo, e
como tal, de especial pertinência no âmbito deste estudo. Assim, e em
conformidade com o que foi referido anteriormente, compete aos intervenientes
nos processos de Formação de Jogadores (e claro Jogadoras), desenvolverem
processos, que respeitem as peculiaridades desta população, a qual será cada
vez mais alvo das suas intervenções.

3.4 – «Mostra-me como jogas dir-te-ei quem és», Futebol e as suas


Idiossincrasias:

“Enquanto prática social, o futebol tem uma história, inclusivamente, uma geografia. Daí, não se
tome por único o que é plural, e por plural o que é único. O futebol pré-existe à ideia que dele se
tem. O problema está em saber, se as ideias que dele se tem, se lhe ajustam.”
(V. M. d. C. Frade, 1990, pp. 3).

Ao longo da exposição por nós efectuada até ao momento, foi já possível


evidenciar alguns exemplos das diversas interacções existentes entre as
características expressas em determinadas formas de jogar e, aquilo que
caracteriza as sociedades em que se expressam. “O desporto sempre foi um
meio de expressão e de afirmação de identidades.” (Constantino, 2007, pp. 77).
O Futebol uma vez mais, apresenta-se também a este respeito, um exemplo
ainda mais elucidativo, do que as restantes modalidades. Lobo (2002) adverte,

59
Futebol um universo de Relações

que apesar do esbater das fronteiras, ainda é o peso histórico de cada nação
que continua a moldar os estilos das várias “nações futebolísticas”. Em
consonância encontra-se Foer (2006) o qual sugere que a história de alguns
países pode ser contada, através da história dos respectivos “futebois”. Por
estes motivos, o Futebol assume-se como um ícone, identitário dos vários
países e povos, razão pela qual Cruyff (2002) salienta, que a responsabilidade
dos Jogadores é grande, uma vez que representam um conjunto de adeptos e
as “cores” dos seus clubes e selecções. Assim, “para além das opções tácticas,
sobre cada estilo de jogo predomina sempre uma noção básica de entender o
futebol (e para nós também a Vida, num sentido lato): para os latinos, a
técnica, para os sul – americanos, os valores individuais, para os alemães a
força e, para os ingleses, o sentido colectivo do jogo.” (Lobo, 2002, pp. 131).
Na verdade, a epopeia do Futebol pelo Mundo tornou-o, num “viajante
incansável”, que levou a bola a percorrer todos os continentes, sendo que,
“cada país a recebeu, acariciou e tocou de forma diferente (…) Nele (Futebol)
se espelham os traços dos países, climas e atmosferas, o sentir e o pulsar dos
seus povos e a história que os moldou. Podemos tentar entender o fascínio do
futebol através de várias formas. A mais sublime e romântica é a lendária,
numa simbiose de desporto e cultura, que são indispensáveis para admirar e
observar na sua dimensão plena” (Lobo, 2002, pp. 10).
A relação entre Desporto e Cultura, não é algo recente. Segundo Caillois
(1967), o ludismo um aspecto configurador do Desporto apresenta, uma
génese contemporânea ao fenómeno desportivo, sendo que ambos
estabeleceram ao longo da história, uma evolução paralela. Huizinga (1977) vai
mais longe, considerando que o “jogo” pode ser considerado o berço da
Cultura. Ideia partilhada por A. d. S. Costa (2004, pp. 59) que, especificando
para o domínio do Futebol salienta que este é, além de um fenómeno
eminentemente cultural, um poderoso meio de expansão cultural. Este autor
acrescenta inclusive que, “podemos efectivamente conhecer o temperamento e
talvez mesmo a cultura de um povo, analisando a maneira como os seus
jogadores se comportam no terreno de jogo. Os Portugueses, por exemplo, não
jogam como os Alemães, os Brasileiros não jogam como os Europeus, etc. Os

60
Futebol um universo de Relações

jogadores são, no terreno, uma imagem do seu povo”. Desta citação, pode
depreender-se, que o Futebol, como evidenciaremos com mais pormenor mais
adiante, apresenta múltiplas formas de se expressar, o que em nosso
entendimento, se consubstancia, numa maior riqueza para este Fenómeno,
que assim se revela plural. Na mesma linha de pensamento, com o autor
anterior, encontra-se Lobo (2002, pp. 22), que defende, que, “cada estilo de
futebol é produto das idiossincrasias em que cresceu e viveu. Técnico ou em
força, lento ou em velocidade, o futebol é diferente em todo o mundo. Nenhum
país ou continente joga da mesma maneira.” Um Fenómeno plural, portanto.
Acrescentando ainda que, “olhando cada selecção a jogar, viajamos através
dos vários estilos que habitam o planeta do futebol e nele detectamos as suas
atmosferas e a história que os gerou.”
Para Valdano (2002) o Futebol, por responder a uma determinada maneira de
ser e por implicar que os Jogadores actuem como a sociedade exige, pode
considerar-se como sendo Cultura, acabando por se parecer com o sítio onde
se cresce, sem ainda escapar à época em que se joga. Corroborando deste
modo, a ideia por nós já apresentada, de que o Futebol é um fenómeno situado
no espaço e no tempo. Deste modo, o Futebol espelha a mestria, o génio, os
valores a história e a atitude face à Vida, ou seja, é um reflexo da expressão
cultural de um povo (Lobo, 2002), funcionando assim como um Jogo de
espelhos entre Vida e Futebol, detectável em todos os continentes (Lobo,
2007), reflectindo, enquanto fenómeno situado, os locais e as personalidades
das suas pessoas.
Todos estes factos, apesar de relevarem o impacto social do fenómeno,
apresentam por conseguinte algumas implicações que importa não ignorar, e
que se revelam de especial pertinência para os processos de Formação, os
quais deverão atender às idiossincrasias dos lugares em que o Futebol é,
jogado. Os Talentos assumem-se, como uma expressão muito peculiar, do
local onde se desenvolveram, e foram sendo construídos. Sendo
especialmente importante realçar a este respeito, a necessidade dos processos
de Formação, contemplarem os traços identitários de cada local, e não

61
Futebol um universo de Relações

renunciarem aquelas que são as suas características genuínas, as quais são


indissociáveis da história dos espaços em que o Jogo é praticado.
“Há que ter em conta as características de cada povo. Não é o mesmo
Roterdão que Amesterdão. Não é o mesmo Barcelona que Sevilha. Como a
gente é diferente, tem desejos e gostos diferentes, Porque o norte tende a
jogar como os ingleses? Por proximidade na mentalidade. Se os jogadores
trabalharam bem, lutaram, se entregaram, suaram a camisola, todo o mundo
feliz. Não importa tanto a táctica ou a técnica.” (Cruyff, 2002, pp. 132).
As influências culturais inerentes à construção de um jogar, assim como a
consciência, da sua relevância, da sua existência e da necessidade de
consonância entre o jogar e o contexto em que este se constrói são, aspectos
determinantes para a consecução do mesmo. Como adverte J. Valdano (1998),
conhecer a “sensibilidade” da cidade em que se trabalha, é um requisito
determinante e revelador da Inteligência de um treinador. Os modelos, e aqui
podemos enquadrar, o Trinómio Modelo de Jogo, Modelo de Jogador,
Modelo de Treino, e tudo o que se possa relacionar com o fenómeno Futebol,
são condicionados por tudo o que os envolve (B. Oliveira, 2002; M. Silva,
20083), sendo igualmente condicionados pelas mudanças culturais e sociais
observadas ao longo dos tempos, o que implica que às mudanças culturais
correspondam mudanças, nos Modelos e nas Concepções (B. Oliveira, 2002).
Salvaguardando desde já, que “todas as generalizações são perigosas,
inclusive esta” (V. Frade, 1979, pp. 5), e que qualquer aproximação limitada se
pode revelar limitativa (Amieiro, 2005), Lobo (2002, pp. 83) tenta de forma
sintetizada referir a existência de “quatro diferentes correlações de poderes e
estilos no interior do planeta da bola: o futebol latino, escola de virtudes
técnicas; o sul – americano, paraíso de magos, mas num tempo em que as
fronteiras ainda eram, distantes dos olhos europeus; o futebol inglês, rude e
tradicional, com lançamentos longos e correrias; e o futebol centro – europeu,

3
As referências à autora M. Silva (2008), reportam-se a considerações que se podem
encontrar no livro, "O desenvolvimento do jogar, segundo a Periodização Táctica”, da autoria
da nossa entrevistada Marisa Gomes, citada ao longo desta dissertação do seguinte modo:
Marisa Gomes (Anexo 5).

62
Futebol um universo de Relações

misto de frieza de leste, com bordado de técnica, onde crescera o estilo


rendilhado e, ao mesmo tempo, atlético da Áustria, Checolováquia e Hungria.”
Seguidamente, e conscientes de que a pluralidade deste fenómeno não se
esgota, muito pelo contrário, na exposição que faremos, procuraremos
explicitar alguns dos traços tipificadores dos “futebois” de algumas selecções,
as quais revelam peculiaridades nos seus “futebois”, que são na verdade
extensões das idiossincrasias dos seus lugares.
O Futebol português segundo Lobo (2002) foi, tal como noutros países,
nomeadamente Holanda e França, como salientaremos, fortemente
influenciado, pela miscigenação, resultante da inclusão de Jogadores das ex.
colónias. Para este autor, não se pode mesmo dissociar, os êxitos alcançados
pelo Futebol português dos anos 60, da influência do Jogador ultramarino.
Relembramos, que entre outros Jogadores, nesse tempo se destacavam, tanto
na selecção como em clubes portugueses, alguns nomes como os de Eusébio
e Mário Coluna. O Futebol em Portugal sofreu, também influências
provenientes de outras latitudes. “Portugal tem cheiro de África e do Brasil sul –
americano, o toque, bailado à brasileira como gostam de dizer os analistas
internacionais.” (Lobo, 2002, pp. 190). Tais características, levam a que por
vezes se definam os Jogadores portugueses como, “os brasileiros da Europa”.
O Futebol é, segundo A. d. S. Costa (2004), um factor de identidade nacional,
que assume especial importância para as comunidades emigrantes
portuguesas que se encontram dispersas pelo Mundo. Podendo o Futebol
português, caracterizar-se, pela dominância dos aspectos ditos técnicos, pelo
passe curto, a desmarcação constante, e pelo improviso dos Jogadores (Lobo,
2002). Podemos com base nestes traços identitários do Futebol de Portugal,
estabelecer uma analogia, entre o que se observa nos relvados deste país, e o
que se passa nessa sociedade, na qual as pessoas, se caracterizam por um
pessimismo generalizado (A. d. Silva, 2002), ou seja, incapazes por isso de no
quotidiano fazerem, “passes” de maior risco. Evidenciando ainda nas suas
actividades laborais, pela instabilidade económica que se observa, uma
necessidade de “constante desmarcação”, podendo também considerar-se que
a forma de trabalhar, dos portugueses em geral, é à semelhança do que se

63
Futebol um universo de Relações

passa no Futebol, caracterizada por um desenrasque permanente, isto é,


baseada “nos golpes de improviso”.
No Brasil, a “Futbolandia” (Valdano, 2002), o Futebol representa uma
actividade que tem sobre a sociedade um efeito tremendo, constituindo-se
como a prática de eleição da população, peladas, na praia ou na rua ou em
qualquer outro local, assim como jogos de Futevolei, são parte integrante da
paisagem brasileira (Lobo, 2007).
“… Brancos, negros e índios mesclaram num imenso leito de amor, seus
sangues, seus deuses, seus ritmos, seus gostos, para formar um povo de
imensa doçura, de uma cordialidade pouco vulgar, pacífico, inteligente até mais
não poder, com um extraordinário dom para a criação artística”. (Jorge Amado,
s/d, cit. por J. Valdano 1998, pp. 69). Ajudando a perceber até que ponto, tais
características foram, influentes no Futebol brasileiro, e a suportar as palavras
anteriores Lobo (2002, pp. 98) apresenta o Futebol deste país, como um
“sublime instrumento cultural e espelho gestual morfológico e estilístico de um
povo onde o cruzamento de raças gerou uma forma dengosa, artística e quase
mágica de jogar futebol.” Acrescentando, que “podem ter sido os ingleses a
inventar o futebol, mas foram os brasileiros a transformá-lo em dança, samba
ou ballet, ao ritmo de cuícas, tamborins e, muitas vezes nos solos mágicos de
negros divinos, como Leónidas, Pelé, Garrincha ou Romário, ao som de um
simples berimbau.”
Pelé (2006c) defendendo que cada país tem um estilo próprio de jogar ou
“carácter futebolístico”, elucida-nos acerca do modo como se manifesta este
“instrumento cultural”, salientando que no caso do Brasil, os traços mais
marcantes são, o controlo de bola, os toques delicados, passes que conduzem
a equipa para o ataque, criando um estilo de jogo atacante, que é
simultaneamente eficaz e agradável. De tal forma agradável que Teixeira
(2004) salienta, que o Futebol se tornou, no Brasil uma paixão, que se
constituiu como um traço cultural do país (Valdano, 2002). Neste país “a
elementar indústria de futebolistas improvisa-se em qualquer parte. Só faz falta
um terreno, dois cocos para construir cada baliza e uns quantos para cada
lado. Se não há sapatilhas, joga-se descalço, e se não há bola, arranja-se outro

64
Futebol um universo de Relações

coco. A paixão está assegurada”. (Valdano, 2002, pp. 15). Depreende-se deste
modo, que o Futebol brasileiro, mais do que espelhar as idiossincrasias deste
país, assume-se ele mesmo, como parte integrante das idiossincrasias daquele
país.
A Itália, quando comparada com o Brasil representa uma forma de estar e de
entender o Futebol completamente antagónica. No Futebol italiano, o
conservadorismo foi sendo uma tónica dominante, assim como, a exacerbação
de Concepções de Jogo de predominância defensiva, em detrimento da
criatividade, que caracteriza o Futebol brasileiro. Não obstante, os juízos de
valor que se possam efectuar, em relação aos diferentes tipos de Futebol,
entendemos ser de enaltecer o facto, da Itália ter permanecido fiel às suas
origens (Lobo, 2002). Uma fidelidade, em muito sustentada pelo facto de
grande parte dos êxitos do Futebol italiano, desde os anos 30, era de Vitorio
Pozzo, terem sido alcançados, com este tipo de abordagem, que se reflectiu de
forma muito profunda na Concepção cultural que o Futebol adoptou naquele
país. As repercussões, que tal assume na Aculturação futebolística observada
nos jovens em Itália, leva a que este seja “o único país do Mundo em que os
miúdos, desde as peladas de rua, querem ser defesas em vez de avançados
(…) nesta preferência, emergente quase desde o primeiro pontapé no couro,
está escondida a raiz da classe que, ao longo dos tempos, os defesas italianos
sempre demonstraram ter com a bola nos pés, em contraste com os de outras
regiões ou nações futebolísticas (…) Pátria onde nasceu o libero, génese das
grandes tácticas defensivas e contra-ataque, a Itália, por natureza e cultura,
impôs aos seus futebolista a obrigação estilística de saber tratar a bola” (F.
Lobo, 2002). Ficando deste modo evidente, o quanto a construção de Talentos
se relaciona, com o contexto em que se insere, e também o modo como tal
afecta a expressão dos “futebois”, que caracterizam cada país.
As equipas italianas, continuam a revelar-se «traiçoeiras», sendo por isso
mesmo, geralmente apelidadas de “equipas cínicas”.
Pelo que pudemos verificar, “a Itália permaneceu sempre fiel às suas raízes
(…) O mundo italiano é hoje o mesmo que há meio século. O perfil dos seus
jogadores é o mesmo (…) É, ao fim e ao cabo, a expressão da sua mais

65
Futebol um universo de Relações

genuína escola e ninguém pode condenar um país por permanecer fiel às suas
raízes estilísticas” (Lobo 2002, pp. 190). Algo que é igualmente defendido por
um Jogador que quanto a nós, pode personificar com bastante rigor, a
influência que este contexto exerceu e exerce, na expressão futebolística dos
Talentos daquele país, Fábio Cannavaro (s/d, cit. por Oliveira, B. 2002, pp. 27),
que refere, “toda a gente critica Trapattoni, afirmando que a Itália joga um
futebol feio (…) mas, quando é que alguma vez a selecção italiana jogou um
futebol bonito?!”
A Alemanha é outro país, que tanto a nível de concepção como a nível
estético, pelo que pudemos observar, se aproxima pelo pragmatismo e frieza
que caracterizam o seu Futebol, daquele que se pratica em Itália. Para uma
melhor compreensão dos traços caracterizadores do Futebol alemão importa
desde já evidenciar, alguns dos aspectos que tornam tão peculiares os
cidadãos alemães. De acordo com Lottar Matthaus (s/d, cit. por Lobo, 2002, pp.
152), “um alemão jamais se desconcentra. Ele nunca é batido. É uma questão
de mentalidade, de orgulho e vontade. Diante da adversidade e das
circunstâncias difíceis, ele supera-se. É essa a sua grande força!”. Uma
qualidade, que como evidenciaremos mais adiante se revela determinante, na
construção de Talentos, e que a julgar, pelo que sucede com o povo alemão é,
um traço de personalidade, fomentado também, pelo contexto envolvente. A
este respeito, parece-nos pertinente relembrar aquilo que já aludimos
anteriormente aquando da reflexão sobre as relações entre o regime nazi e o
Futebol da época. O que pretendemos sugerir é, que o clima de ameaça e
suspeição que marcou essa época, poderá ter sido determinante, para a
construção e manifestação de uma mentalidade muito própria, que se espelha
no Futebol praticado pelo povo alemão. Um “estilo burocrático que lhes é tão
comum. Sempre igual: quando alguém se começa a aborrecer, é golo da
Alemanha.” (J. Valdano, 1998, pp. 21). Ou seja, pragmático, à semelhança de
Adolf Hitler na aplicação dos seus ideais xenófobos. O ex. Guarda-Redes Maier
(2007) salienta que, como Jogadores de Futebol, os alemães não revelam
tanto Talento como outros países, “mas no que respeita à moral e à atitude
estamos à frente dos outros todos”. Facto evidenciado por Cruyff (2002, pp.

66
Futebol um universo de Relações

94), quando aborda a derrota da Holanda na final do Mundial da Alemanha de


1974, perante a selecção alemã. Destaca que a derrota holandesa se explicou
por “um problema de mentalidade (…) Nós os holandeses, temos uma
mentalidade em que nos sentimos satisfeitos bastante rápido (…) quiçá
acomodamo-nos ao que já tínhamos. Sem embargo, creio que se não
tivéssemos jogado contra os alemães teríamos ganho. Mas, precisamente, as
coisas são como são e resulta que a Alemanha é a única equipa que em todos
os campeonatos acaba marcando o golo que lhe dá a vitória no último minuto,
quando parecia que tudo estava decidido.” Daí que seja frequente afirmar-se
que, “só é possível vencer os alemães quando estão a tomar duche”
(Braukman, 2007). Depreende-se de tais palavras, que a selecção alemã,
apesar de previsível e pouco encantadora, apresenta como curiosidade
histórica, o facto de, apesar de todos saberem como vão ganhar, ninguém
saber como lhes ganhar (Valdano, 2002).
A Cultura holandesa reflecte-se igualmente de forma muito significativa, na
história que o Futebol foi registando neste país. O percurso do Futebol
holandês sofreu, ao longo da sua evolução, algumas transformações
decorrentes de alterações sociais que se foram observando no país,
corroborando deste modo, o que é sugerido por B. Oliveira (2002). O período
pós-guerra constitui-se como um momento de viragem, no Futebol holandês.
“Elegantes e fortes fisicamente, no gesto e na concepção técnica e táctica do
jogo, as novas gerações «laranjas» começavam a definir um novo estilo para o
futebol holandês, onde solidariedade e o entendimento do colectivo eram
pontos fundamentais da percursora ideologia futebolística” (Lobo 2002, pp.
141). O mesmo autor acrescenta algo bastante pertinente, para a abordagem
presente, quando adverte que, “há quem acredite que esta concepção colectiva
de jogo só seria possível de surgir, de forma natural, na Holanda. Basta reparar
nas suas casas, janelas, plantas e demais decorações para darmos conta de
que na Holanda cada um pensa a mesma coisa que o seu vizinho.” E este é,
um aspecto fundamental para o Futebol de qualidade, o segredo das grandes
equipas reside precisamente, em ser capaz de ter um Colectivo a pensar em

67
Futebol um universo de Relações

função da mesma coisa ao mesmo tempo (B. Oliveira, et. al., 2006; Valdano,
2002).
A Holanda é culturalmente um país diferente, tendo mesmo se demarcado
dos restantes países. Damásio, (2004) refere, que desde o princípio do século
XVII, a Holanda se afigura como uma “terra prometida”, distanciando-se deste
modo, dos restantes países europeus, pela sua estrutura política e social
marcada por uma relativa tolerância, da qual resultou, uma boa parte daquilo
que hoje se reconhece como justiça e capitalismo modernos, no fundo “obras
dos holandeses desta época.” Destas palavras, depreende-se que os
holandeses sempre tiveram uma mentalidade avançada para as épocas em
que se encontravam, característica que ainda hoje preservam, e que os levam
sem qualquer relutância a afirmarem “que se Deus inventou o Mundo, foram os
holandeses que inventaram a Holanda”.
A Cultura holandesa, revela como traços caracterizadores, o culto da
diferença, e da tolerância, motivo pelo qual a consideramos, no Mundo actual,
um referencial social a seguir, tratando-se assim de uma sociedade, que num
contexto de intolerância crescente se assume como uma elite, sem contudo
serem elitistas. Aspectos que permitiram ao Futebol deste país, retirar
dividendos relevantes. Tendo mesmo possibilitado que nos anos 80, o Futebol
holandês fosse revigorado, sofrendo algumas metamorfoses na sua identidade,
em muito devido à inclusão de Jogadores provenientes do Suriname, os quais
acrescentaram ao Futebol holandês algo de diferente. Como realça Lobo
(2002, pp. 149), “ao mesmo tempo que em finais dos anos 70 a era mágica do
futebol holandês chegava ao fim, um pequeno país nas margens da América
do Sul tornava-se independente: o Suriname.
Com o fim do ciclo dos holandeses voadores, o futebol holandês perdeu, por
momentos, o encanto da geração Cruyff” acrescentando contudo que em 1988
se observou, o “renascimento da Laranja Mecânica” advertindo no entanto,
para o facto desta ser porém, uma selecção diferente, de “tez negra”, e com
“ritmo tropical”, sendo liderada por Jogadores mestiços como Gullit ou Riijkard,
transportando desse modo para o campo, a Cultura reagge, do Suriname. Algo
que é, ainda nos dias de hoje facilmente verificável, através da observação das

68
Futebol um universo de Relações

selecções nacionais de Futebol deste país, as quais são, fortemente


miscigenadas.
A miscegenação, evidenciada por algumas selecções de Futebol é, um traço
muito revelador, do modo, como também as sociedades foram Aculturando
este fenómeno. À semelhança do Futebol holandês, também o francês, se
apresenta a este respeito como um óptimo exemplo. “A França utilizou o
futebol como uma via de integração da imigração. À sua maneira a Holanda
também (…) conseguiram aglutinar ao redor dos êxitos da sua selecção muitos
aspectos que demonstram a dimensão extradesportiva do fenómeno.” (Cruyff ,
2002, pp. 96).
O processo de miscigenação, foi determinante, no percurso do Futebol
francês, podendo mesmo considerar-se que, “o grande sucesso do futebol
francês resulta de duas remotas correntes migratórias com sentido diferentes
(…) essa miscigenação deu origem a fabulosos talentos que, a partir de finais
da década de 70, começaram a construir les jours de gloire do football gaulês.”
(Lobo, 2002, pp. 198).
A Espanha, revela-se ao nível das idiossincrasias do Futebol um país com
características muito peculiares. Trata-se de um país que foi ao longo dos
tempos incapaz de superar conflitos, resultantes da sua mestiçagem interna e
reivindicação por parte de algumas regiões, de um estatuto que lhes
permitissem assumir como entidades distintas das nacionalidades castelhanas
(Fabião, 2007). Neste país as questões regionalistas encontram-se
exacerbadas, ao ponto do sentimento de pertença a uma região e ou cidade
superar, o sentimento de pertença ao país. Por conseguinte, o Futebol
espanhol representa, um “cocktail de estilos” (Lobo, 2007), fortemente
fomentado pelo conjunto de conflitos existentes neste território, provocado
pelas fortes convicções regionalistas. Neste país o sentimento de pertença a
um clube, geralmente símbolos de uma região, como já salientamos, supera o
sentimento de identidade nacional. Assim um adepto do Atlético de Bilbau, não
se sente espanhol, mas sim basco, do mesmo modo que um adepto do FC
Barcelona, se identifica como catalão, e não como espanhol (Foer, 2006). Em
Espanha não existe uma personalidade nacional, aquilo que existe são,

69
Futebol um universo de Relações

identidades regionais (Valdano, 2002). Este sentimento, como veremos de


seguida tem moldado, a tipologia de Jogo do Futebol espanhol, ajudando
também a perceber porque motivos, as suas selecções, mesmo sendo
constituídas por Jogadores de qualidade, nunca foram capazes de alcançar
resultados notáveis ao mais alto nível (Valdano, 2002). Estas diferentes
identidades regionalistas, expressas em diferentes formas de ser, repercutem-
se na forma de estar no Futebol, o que leva a que a Aculturação e expressão
dos jovens Talentos ao Futebol, neste país, evidencie nuances muito
significativas de região para região. Quando se observa a realização de
competições de jovens, nas quais se encontram equipas espanholas de
diferentes regiões, são evidentes diferenças muito significativas na forma de
jogar dessas equipas. Numas, ainda reina a fúria enquanto que noutras, esta
parece já um passado longínquo.
Para Lobo (2002, pp. 201) “espelho de diversas culturas e atmosferas, o
futebol espanhol teve, assim, sempre grandes dificuldades em encontrar o seu
verdadeiro estilo”, podendo mesmo considerar-se que se trata de um Futebol,
que se desenvolveu envolto de uma “crise existencial”. O que no Futebol é,
altamente pernicioso.
Não obstante este facto, de uma forma geral, pode referir-se, em relação ao
Futebol espanhol, que este se apoderou do carácter índio da América Latina,
caracterizador das suas antigas colónias, embora permanecendo “embrião
temperamental da fúria tauromática”, encontrando-se por tudo isto, ainda à
procura de definir o seu Futebol (Lobo, 2002).
A Inglaterra, por seu turno é um país que, sempre adoptou uma atitude muito
própria, o que se repercutiu, na forma de ser dos seus habitantes, cuja imagem
que geralmente evidenciam é, a de uma atitude altiva, transparecendo uma
ideia de superioridade em relação a outras nacionalidades. Como
seguidamente evidenciaremos, tais características tiveram ao longo da história
do Futebol deste país, uma grande influência sobre o tipo de Futebol nele
praticado. Lobo (2002, pp. 130) salienta que, “com um ego desmedido, o
futebol inglês ficara isolado no seu castelo, convencido da sua superioridade,

70
Futebol um universo de Relações

não se apercebendo que, entretanto, outros tipos de futebol, de desenho


diferente, estilo e força, tinham despontado por todo o mundo.”
A criação do Futebol com os contornos que hoje se nos apresenta é da
responsabilidade dos ingleses. Um fenómeno, que à semelhança do que se
verificou noutros países, se constituiu com o passar dos anos como uma
notável força social, naquela região do globo (Lobo, 2007). Esse mérito
honroso, o da criação do Futebol, mostrou-se contudo altamente pernicioso
para a evolução do Futebol na Inglaterra. Uma vez que levou à adopção de
uma atitude petulante, em relação ao Futebol que se praticava nos restantes
países. Assim, o facto de terem sido os criadores do Futebol, imbuiu os
ingleses de um embuste, o da sua pseudo superioridade no Futebol, algo que
se revelou prejudicial e hipotecou, durante anos, não somente a evolução do
Futebol praticado na Inglaterra, mas também o seu sucesso (Lobo, 2002). O
Futebol inglês após a morte de Herbert Chapman, verificou um período de
estagnação, não havendo ninguém capaz de conseguir reatar o seu trabalho, o
que se repercutiu na estagnação dos seus conceitos de Jogo, em grande parte,
motivada pela prepotente, e errada percepção de superioridade face aos
restantes “futebois”. Superioridade, que se veio a revelar inexistente. (Lobo,
2007).
Ao longo da história do Futebol inglês, destacam-se como principais
características Concepções de Jogo, que privilegiam um estilo muito próprio.
Recordando Cruyff (2002, pp. 132), “se os jogadores trabalharam bem, lutaram,
se entregaram, suaram a camisola, todo o mundo fica feliz. Não importa tanto a
táctica ou a técnica.” Foi este o entendimento que persistiu durante décadas no
Futebol inglês, internacionalmente conhecido pela expressão “Kick and Rush”.
Pelé (2006c, pp. 128) em conformidade com o que foi referido, salienta que os
ingleses privilegiavam os seus tradicionais passes longos, procurando efectuar
cruzamentos letais dirigidos ao avançado – centro, os quais com uma
capacidade de cabeceamento muito própria, se encarregavam de marcar
golos. A “ciência inconsciente”, dos Jogadores ingleses, leva a que estes se
revelem culturalmente condicionados por esta forma de jogar, motivo pelo qual,

71
Futebol um universo de Relações

quando desejam manifestar expressões distintas, da sua identidade de jogo, se


revelam incapazes (Valdano, 1998).
Relativamente ao Futebol inglês, e às suas características, julgamos neste
ponto ser relevante evidenciar algo que pudemos constatar recentemente no
Mundialito de Futebol de Sete de 2007, realizado em Vila Real de Santo
António e Monte Gordo. Neste evento foi nos possível observar, in loco, que a
equipa do escalão de infantis, do Everton FC, se destacou por ter um padrão
de jogo que vai de encontro ao estilo de Futebol inglês, referido anteriormente.
Esta equipa surpreendeu, como pudemos constatar, a generalidade das
pessoas pela capacidade de cabeceamento que os seus jovens evidenciavam.
Facto que ajuda a perceber o quanto tem de Cultural, a construção de uma
identidade de Jogo e a construção de Talentos. Assim, da mesma forma que os
italianos tendem a destacar-se em zonas mais recuadas no terreno, por desde
cedo se sentirem culturalmente atraídos para tais posições, também os
ingleses, revelam especial proficiência em aspectos que caracterizam o jogo
que se pratica naquele país. Parecendo-nos desta forma evidente, que a
Aculturação ao Futebol tem subjacente uma Sociogénese Específica,
relacionada com o lugar em que cada um começa a jogar, sendo essa
Aculturação, tanto mais marcada, quanto mais precocemente se efectuar,
como mais adiante procuraremos confirmar.
Note-se contudo, que o Futebol inglês tem observado nos últimos anos,
alterações muito significativas como consequência da globalização. “ Chelsea e
Liverpool, Mourinho e Benítez deram ao futebol inglês uma dimensão até então
inexplorada – à genuinidade juntaram o aproveitamento das nuances tácticas,
à generosidade somaram organização. A revolução iniciada por Wenger – que,
sendo alsaciano, é quase anglo-saxónico e, por isso, cede em muitos aspectos
à mentalidade britânica – teve nos dois continuidade radical, ao ponto de
ambos serem hoje as figuras dominantes do futebol inglês.” (Tadeia, 2005, pp.
1). Consideramos, que o abandono do velho estilo de jogo inglês e adopção de
uma nova forma de o conceber, resultante da entrada de treinadores e
Jogadores estrangeiros tem se constituído como o principal propulsor do novo
Futebol inglês, cuja liga se tem destacado das demais, não somente pela

72
Futebol um universo de Relações

emoção como até então, mas também, pela qualidade de jogo que nela se
pratica, e pelos êxitos a nível internacional das suas equipas.
Na Argentina, à semelhança do que referimos para outros países, o contexto
social que envolve o Futebol, exerce desde idades muito precoces, forte
influência sobre a construção de Talentos naquele país. “No meu povo não há
um único cesto de basquetebol. Nem falar de pista de atletismo. Só o ténis
ganhou um lugar desde que Guillermo Vilas passou as ganas de jogar a todo o
país, incluindo gordos e descoordenados. Jogar futebol é obrigação porque é
uma paixão comum, é barato e não há outra coisa”. (J. Valdano, 1998, pp. 95).
Lobo (2002, pp. 165) complementa, referindo em relação ao envolvimento em
que se desenvolvem os jovens Jogadores argentinos, o seguinte; “carregando
quase todos um melancólico semblante, onde o tango parece alma, os
passionais bairros porteños adoptaram o futebol como uma expressão da sua
personalidade.”
Pode deste modo concluir-se, que “o futebol é uma expressão de arte
popular. Reflecte as idiossincrasias de cada povo, e a sua morfologia acima de
tudo. Todos os países, nenhum foge disso” (Lobo, 2002 pp.190). O Futebol
além de exercer o seu impacto sobre as sociedades, é igualmente influenciado
por esta, motivo pelo qual cada país, ou nalguns casos como salientamos cada
região, enceta um processo de Aculturação ao Jogo muito próprio, capaz de
transmitir e de perpetuar identidades de jogo muito peculiares, que nada mais
são, que um reflexo dos lugares em que decorre esse processo. Entendemos
que para uma maior qualidade de tais processos se torna pertinente, a
identificação dos traços identitários dos jogares de diferentes lugares, para que
de forma criativa, e não redutora, estes possam servir de base orientadora para
a operacionalização dos processos de Formação, que deste modo, poderão
desenvolver Talentos, que apesar de únicos, quando formados em locais
comuns, partilham as idiossincrasias do lugar em que foram construídos.
“Cada país tem a sua cultura muito própria e isso tem influência na formação
desportiva do indivíduo (…) o próprio Futebol é amado de maneiras diferentes
conforme a cultura e a sociedade de cada país.” (B. Oliveira, 2002, pp. 22).

73
Futebol um universo de Relações

3.5 - «Pressa» e «Homogeneização», emergências que são urgências


num Futebol agrilhoado pelos males sociais.

“Ainda gostamos muito de amar as semelhanças, damo-nos muito bem com aqueles que se
parecem connosco, quando o nosso gosto, também deveria ser por aquilo que é diferente.”
(A. d. Silva, 2002, pp. 109).

“Os grandes homens de séculos passados nunca tinham pressa, e é por esse motivo que o
mundo nunca terá pressa de os esquecer.”
(Dr. Cecil Webb-Johonson, s/d, cit. por Gleick, 2003, pp. 23).

Como temos procurado salientar o Desporto de uma forma geral, e em


particular o Futebol, não são imunes ao envolvimento (J. O. Bento, 2004). O
Desporto não se encontra assim, numa redoma de vidro, que lhe confere
protecção em relação ao que de menos bom existe nas sociedades. Deste
modo, Marques (2007) salienta que não podemos escamotear que o futuro do
Desporto atravessará problemas. Julgamos, ser também nossa missão com
este trabalho, alertar para a existência de alguns desses problemas. Não
obstante esta nossa intenção, não nos debruçaremos sobre temas como a
violência, corrupção, racismo, entre outros, que em nosso entendimento já se
encontram suficientemente tratados, não devendo apesar de tudo, ser
menosprezados. Optamos por alertar para a emergência de novos problemas
que florescem no seio das sociedades, e para os efeitos perniciosos que deles
resulta para o Futebol, daí que além de emergências, os consideremos
também como urgências. Segundo Capra (2005), grande parte das patologias
que tendem a incrementar-se nas sociedades, encontram-se estritamente
relacionadas com o contexto sócio-cultural em que nos desenvolvemos. Numa
perspectiva semelhante, Ferro (1999), salienta que os progressos, altamente
perniciosos que se têm verificado na sociedade, são responsáveis pelas crises
em que esta se encontra, acrescentando ainda, que tal se reflecte, numa crise
generalizada e que tornou a “doença”, como refere, num personagem social
que se manifesta num campo cada vez mais alargado. Deste modo, pode
deduzir-se que também o Futebol poderá se encontrar afectado por este
estado doentio generalizado. Sendo o Futebol um espelho da sociedade,

74
Futebol um universo de Relações

“manifesta igualmente todas as contradições e vícios da sociedade” (A. d. S.


Costa, 2007, pp. 56). Na conjuntura social presente, podem quanto a nós
destacar-se dois grandes males sociais, cujos efeitos sobre o Futebol são
evidentes, e se têm agudizado nos últimos anos, são eles, a Pressa e a
Homogeneização.

3.5.1 – O Futebol carece de passagens de nível: «Pare, Olhe e Escute». A


importância de «cozinhar» Talentos em «Banho – Maria»?!

“Podar minutos, segundos e centésimos de segundo tornou-se uma obsessão em praticamente


todos os segmentos da sociedade.”
(Gleick, 2003, pp. 18).

“Vi posters na estrada a recordar-nos que «a primeira causa de acidentes é a velocidade». Eu


colocá-los-ia nos estádios para os futebolistas entenderem a importância do tempo de cada
jogada.”
(J. Valdano, 2007c).

Vivemos no tempo da pressa, encontramo-nos a acelerar o tempo, os últimos


anos têm sido caracterizados pela compressão do tempo (Gleick, 2003), motivo
pelo qual, como sugere Sobrinho Simões (Anexo 1) a generalidade das
pessoas, é vitima do «mal da pressa», como designam alguns médicos e
sociólogos (Gleick, 2003). De facto, não nos encontramos imunes a este mal
social, e a prova disso, é o carácter de alguma urgência com que temos de
realizar esta dissertação, sob pena de não cumprirmos os prazos
estabelecidos, o mesmo sucedendo com os revisores da mesma que de forma
relativamente apressada terão de a avaliar. Não obstante esta aparente
inevitabilidade, devemos tomar como ponto prévio a premissa de que a
velocidade é “uma fonte de mal-entendidos” (Morin, 2003).
“Quem sabe se não estamos a avançar com velocidade cada vez maior e, a
certa altura, não ultrapassaremos a possibilidade de imaginar, podendo haver
uma Humanidade futura sobre a qual não podemos fazer nenhuma ideia?” (A.
d. Silva, 2002, pp. 104). Trata-se de uma questão que nos obriga a reflectir
pertinentemente sobre as perigosidades da velocidade na sociedade actual, e

75
Futebol um universo de Relações

por extensão na qualidade do Futebol e dos processos de Formação, que


imbuídos pela pressa vertiginosa, vêem hipotecada a criatividade dos
Jogadores, por verem ultrapassadas por tal pressa as “possibilidades de
imaginar”.
A sociologia tem vindo a aperceber-se que os níveis crescentes de riqueza e
de instrução têm acarretado um crescente sentimento de tensão em relação ao
tempo (Gleick, 2003).
Os intensificadores4, compressores do tempo, são cada vez mais uma
realidade presente no nosso quotidiano, sendo evidentes até nas coisas mais
simples, que vão desde o pão já fatiado e sem côdea que comemos, à
utilização de telecomandos para não perdemos tempo, ou ainda, às calças que
compramos já «pré-coçadas» e «pré-remendadas», antecipando precocemente
o futuro destes materiais (Gleick, 2003).
A pressa, apoderou-se de forma bastante significativa da sociedade, ao
ponto de podermos especular sobre a possibilidade, desta se repercutir em
alguns traços caracterizadores da espécie Humana. Parece haver alguns
indícios, que sugerem o enraizamento deste mal social na nossa espécie
(Sobrinho Simões, Anexo 1).
Podemos especular, se o tempo de gestação dos fetos que tende de forma
apressada a ser encurtado, não será uma consequência do mal da pressa. São
cada vez mais, os bebés que nascem prematuramente, o que tem associado
uma elevada perigosidade (Cintra, 2006). A este respeito Dunbar (2006, pp. 35)
adverte, que “os bebés humanos nascidos no final de uma gestação normal
são apenas capazes de sobreviver; aqueles que nascem mais cedo estão na
realidade a tornar demasiado fina a linha da vida.”
A pressa, “afecta logo as crianças através da insuficiente disponibilização dos
pais. Eu acho que é o pior problema. Quer dizer, a criança que ainda não está
nessa fase, «da pressa», percebe que os pais estão. E agora são ambos
profissionais enquanto que há duas gerações não eram, portanto, há
problemas. Os pais não estão em casa, os pais têm muito menos tempo para
serem verdadeiramente exemplares, os pais chegam a casa cansadíssimos e,

4
Intensificadores: são lugares e objectos que representam impaciência (Gleick, 2003).

76
Futebol um universo de Relações

de facto, houve uma substituição dos pais pela escola e pelos tempos de
acompanhamento extra-escolar.” (Sobrinho Simões, Anexo 1).
Vivemos num período cultural de aceleração, uma perversidade da pressa
instigada pela sede insaciável de tempo, que se encontra fortemente
fomentada pela sociedade industrial (Gleick, 2003), o qual exerce a sua
influência desde os momentos mais precoces da Vida, e que é um reflexo, da
sociedade industrial, que como vimos tem sobre o Futebol um impacto
tremendo, ajudando deste modo a perceber como este “mal da pressa”, afecta
o Futebol.
P. Varela (2006) salienta, que esta realidade apressada conduz a uma
excessiva ansiedade, algo que caracteriza as sociedades actuais, e se
repercute numa deturpação do sentido da vida e da transcendência. Uma
opinião partilhada também por Goleman (2003), que sugere que a ansiedade
que caracteriza cada vez mais pessoas é, uma ansiedade negativa por ser
geralmente desproporcionada e deslocada. Encontramo-nos culturalmente
condenados à ansiedade, o que leva à adopção por parte da sociedade de
comportamentos psicóticos, o que se revela profundamente drástico para a
forma como os mais jovens se desenvolvem (Capra, 2005). Por este motivo,
Sobrinho Simões (Anexo 1), não tem dúvidas em afirmar, que “se tiver que
identificar um aspecto negativo da evolução da sociedade, no que diz respeito
à organização familiar, parte dele é resultado dessa pressa”, sugerindo ainda,
que tal tem repercussões a nível patológico, que se expressam de formas
muito diversas, podendo mesmo classificar-se tais estados como sendo
verdadeiras doenças, das quais resultam alterações gravíssimas ao nível do
cansaço, défices de atenção, fibromialgias, hiperactividade, entre outras
alterações.
Pode depreender-se assim, o quanto pode ser perniciosa a edificação de
pessoas cuja Formação decorre neste contexto doentio. Podendo antever-se
também o que poderá suceder, se tal se verificar igualmente na Formação de
jovens Talentos. Ou seja, perante tal contexto, o risco do Futebol ficar doente,
“psicótico”, e de por tudo o que já salientamos, não somente ser contagiado
mas também contagiar a sociedade parece-nos ser bastante elevado.

77
Futebol um universo de Relações

Um aspecto que importa evidenciar é, que os crescentes níveis de ansiedade


e stress são construções sociais (Goleman, 2006), que como tal contribuem
para o emergir de um paradigma que afecta todos os que se encontram nele
inseridos. A este respeito, Sobrinho Simões (Anexo 1), refere algo que
consideramos muito relevante quando adverte que a aquisição de
comportamentos, e de indícios reveladores do mal da pressa nas Crianças,
“são no fundo, semelhantes aos dos pais, eles têm-nos por um aspecto
mimético, não é que eles tenham razões objectivas para isso. Os miúdos
mantêm, apesar de tudo, uma boa performance, mas não é aí que está o
problema; o problema é muito mais eles verem a vida «desgraçada» dos pais e
dos avós.” Este facto permite perceber porque motivos, as ramificações dos
males da pressa se estendem a diferentes fenómenos. Evidenciando também,
uma dimensão muito importante, o mimetismo, no que à aquisição de
comportamentos diz respeito, e que como veremos mais adiante, se revela
significativo para a Formação de Talentos no Futebol.
As novas “doenças da civilização”, associadas à pressa têm de ser
combatidas em tempo útil, pois caso contrário instalar-se-ão de forma “crónica”
(Castro, 2006). A vida emocional das pessoas encontra-se condicionada pela
“instantaneidade” (Gleick, 2003), nas sociedades actuais o esforço deixou de
ser valorizado em detrimento de uma moda orientada pelo “culto do desejo, e
da sua satisfação imediata (Lipovetsky, 1989). Julgamos por isso que face a
tais obsessões sociais, importa interiorizar os ensinamentos de A. d. Silva
(2002) segundo o qual a Vida também é para perder anos, não é só para
ganhar, sendo para tal necessário dar tempo ao tempo, uma vez que a Vida
deve ser vivida com calma. “No emprego a subtileza significa produzir mais
fazendo intervalos mais frequentes (…) Na estrada, a subtileza significa uma
abordagem mais calma da condução, melhorando a velocidade e a economia
de todos os condutores, ao abrandar em alturas em que o impulso seria
acelerar.” (Tenner, 1996, cit. por Gleick, 2003, pp. 77). Conselhos que devem
ser assimilados também pelo Desporto, e em particular pelo Futebol. De acordo
com Tani (2002) a noção de “timing”, assume uma importância muito relevante
para os desempenhos desportivos, podendo considerar-se que as condições

78
Futebol um universo de Relações

para a resposta são favoráveis quando a mesma pode ser efectuada sem
pressa, no melhor momento, conferindo ao mesmo tempo ao organismo um
estado pós-resposta satisfatório. A noção de timing, vai de encontro à
necessidade de ausência de pressa, e da necessidade de subtileza, o que
quanto a nós é de extrema relevância. No entanto, o Desporto actual encontra
na “velocidade” uma palavra-chave (P. C. e. Silva, 2007). E de facto
concordamos com tal afirmação, no entanto advertimos para o facto desta
“velocidade”, não somente poder ser perniciosa, se indevidamente entendida,
mas também, e por conseguinte, para a necessidade de conferirmos a este
conceito, um sentido polissémico. Ou seja, julgamos ser mais ajustado referir
por isso mesmo as velocidades, e não a velocidade como a palavra-chave do
Desporto.
J. G. Oliveira (2004) esclarece que para se efectuar determinada acção com
êxito, esta se pode realizar sem movimento ou a grande velocidade,
dependendo do contexto do envolvimento, relativizando deste modo, o
convencional conceito de “velocidade”. Importa também realçar, que é desde
há muito sabido, que existe uma relação inversa entre velocidade ou pressa e a
qualidade dos desempenhos (Fitts, 1954; Woodworth, 1899, cit. por Tani,
2002).
No que se refere ao Futebol, também este se encontra atormentado pela
pressa, podendo mesmo definir-se como um “mundo de impaciência” (J. A.
Santos, 2004), isto apesar de como adverte J. Valdano (1998) a impaciência
não apresentar quaisquer virtudes pedagógicas. Contudo, aquilo que parece
caracterizar o Futebol actual é um aumento desta “impaciência”, em
consonância com o que se verifica na sociedade em geral.
Amieiro (2005) apelida este estado de impaciência de “vertigem da pressa”,
algo que se revela em campo pelo desejo dos Jogadores fazerem tudo de
forma apressada, algo que como sugere, contraria aspectos fundamentais do
Futebol de qualidade, no qual é decisivo, correr e parar, acelerar e travar,
antecipar e esperar. Lobo (2007, pp. 108) adverte que do mesmo modo que se
torna impossível ler apressadamente um bom livro, “é impossível ler um bom
jogo em alta velocidade”, destacando igualmente a necessidade de fazer

79
Futebol um universo de Relações

devidamente as pausas que o jogo requisita, para que este possa ser alvo de
uma leitura mais ajustada. A pausa é, o segredo dos grandes Jogadores e
equipas de Futebol (J. Valdano, 1998).
Michael Laudrup (s/d, cit. por Lobo, 2007) prognostica que no futuro, não
haverá lugar no Futebol a Jogadores como ele, pois todos irão “preferir atletas”,
o que evidencia que Jogadores como o ex. internacional dinamarquês, que
conheciam a importância da pausa no jogo não terão mais lugar. “Futebol é um
esporte difícil não é, para qualquer um não (…) no meu tempo o Futebol era
jogado com mais classe, mas muito lento, valia mais a qualidade do Jogador
como um organizador, como um finalizador. Hoje o que vale é, a velocidade. O
Homem tem que ser mais veloz, Futebol tem de ser jogado com mais rapidez,
e o Homem também, ele quase se iguala à velocidade do jogo, entende. O
Homem hoje tem de ser muito veloz para jogar Futebol. Mudou muito”. (Moreira
& Moreira, 2006).
Alguns autores (Lobo, 2007; J. Valdano, 1998) realçam a importância da
ausência de pressa no Futebol, ao evidenciarem que Jogadores “grandes”
como, Rivaldo, Giovanni, Suker, Romário, Kiko, Zidane, Deco, Rui Costa, Kaká
ou Baggio apresentavam em comum, o facto de “nenhum ter pressa”, isto
apesar de por vezes serem catalogados de lentos, uma “ilusão óptica” (Lobo,
2007). “A aparente lentidão é uma mentira do corpo, o disfarce que usam os
que têm a velocidade escondida na inteligência” (J. Valdano, 1998, pp. 141).
Garganta (1999), salienta que o Futebol se caracteriza por um aumento da
velocidade, facto corroborado por Lobo (2007) que destaca que o tempo para
pensar escasseia, motivo pelo qual os Jogadores têm de decidir
apressadamente. A este respeito importa advertir para o que foi referido
anteriormente em relação à correlação inversa existente, entre velocidade e
proficiência. O Futebol actual tende deste modo, a perder proficiência e
qualidade, pelo excesso de pressa que de uma forma geral o caracterizam.
Em Portugal, a pressa encontra nos estádios um espaço privilegiado para se
manifestar, como denunciou Andrade (2003), ao salientar, que a principal
diferença entre o Futebol espanhol e o português reside no facto de em

80
Futebol um universo de Relações

Portugal, se pretender fazer tudo com pressa, em vez de se pensar mais o


jogo, como sucede em Espanha.
Importa contudo salientar que a perniciosidade da pressa no Futebol, não se
reflecte somente, na forma como o Jogo se expressa em campo, uma vez que,
se repercute também na forma como os jogares e os Talentos se constroem,
os quais são cada vez mais cozinhados em «panelas de pressão», um bom
exemplo de intensificador. A Formação de Jogadores desde idades muito
precoces caracteriza-se por conseguinte, como um processo de Formação
desajustado que padece da “vertigem da pressa”. A Formação de jovens
Jogadores de Futebol pode catalogar-se pela palavra «rápido», caracterizando-
se desta forma por uma lógica imediatista, que como já salientamos é
altamente perniciosa, uma vez que “o progresso humano é lento” (Reeves et
al., 2006, pp. 122).
Importa salientar, que o conjunto de alterações sociais verificadas nas últimas
décadas, tem tido consequências muito nefastas para o desenvolvimento e
Formação das Crianças. Apesar do Homo Sapiens ainda ser lento a tornar-se
adulto, a infância tem sido claramente encurtada (Jones, 2006), o que em
nosso entendimento é altamente pernicioso, uma vez que “o Homem não
admite processos rapidíssimos” (V. Frade, 1979, pp. 11). Podemos assim
especular que as Crianças e os jovens, se encontram a desenvolver com base
numa cronobiologia que lhes é estranha, e própria dos adultos, motivo pelo
qual tendem a tornar-se adultos à pressa. Alterações que levam os jovens a
viverem sob relógios de adultos, algo que consideramos bastante plausível,
somatizando desde idades muito precoces o mal da pressa. De acordo com
Capra (2005) interiorizamos a tensão e o stress ao ponto de patologicamente
os somatizarmos. Não devendo ignorar-se o facto, de que os relógios
biológicos e os ritmos circadianos são construções culturais e sociais, “a
sincronização dos nossos ritmos faz-se essencialmente através da utilização
de sinais sociais” (Reinberg, 1994, pp. 50). De acordo com o sugerido por
Ginsburg (2007), a falta de tempo para brincar, decorrente da vida cada vez
mais atarefada que as Crianças têm, obriga-as de uma forma extremamente
precoce a encetarem por uma vida orientada em função de um ritmo de vida

81
Futebol um universo de Relações

típico dos adultos. Gleick (2003), apresenta uma opinião consonante com o
autor anterior, salientando igualmente que o facto das Crianças terem deixado
de ter tempo para brincar, implica igualmente uma redução no desenvolvimento
do espírito criativo e da espontaneidade, traços que como salientaremos mais
adiante neste trabalho enriquecem significativamente o Futebol. Estes factos,
quando manifestados na Formação de Jogadores conduzem à “ vertigem pelo
piloto automático”, ou a um tipo de Formação “sobre carris”, que leva à não
Formação, isto é, à formatação de Jogadores, que deste modo se constroem
sem criatividade, autonomia e com comportamentos altamente estereotipados
(B. Oliveira, et al., 2006). A este respeito, Laig (1978, cit. por Capra, 2005 pp.
370), salienta e indo de encontro ao que foi referido por Sobrinho Simões
(Anexo 1), que tal se tem reflectido num crescente número de Crianças com
problemas psiquiátricos, acrescentando que, estamos a tornarmo-nos mais
eficazes na condução das Crianças à loucura, do que na educação das
mesmas, suspeitando que tal facto, poderá ser devido à forma como as
estamos a educar, e que as tem conduzido à “loucura”. Também Goleman
(2003, pp. 262) salienta que a sociedade cada vez mais sedentária e
acomodada, está a caminhar para a “Era da Depressão”, uma “epidemia” que
como o próprio salienta, se está a apoderar das populações mais jovens. “A
depressão infantil, outrora praticamente desconhecida (ou pelo menos não
reconhecida) está a emergir como uma característica constante da cena
moderna. Panksepp (1998) apresenta a hipótese, do síndrome de
hiperactividade infantil, que é crescente nas nossas sociedades, resultar do
facto dessas Crianças serem privadas de quantidades adequadas de
brincadeiras. O que nos leva a questionar e especular se a “vertigem da
pressa” que caracteriza o Jogo, o poderá tornar “hiperactivo”, e se tal poderá
estar relacionado com um hipotético, reduzido e possivelmente desajustado
tempo, que é proporcionado aos jovens para desfrutarem do Jogo?! “Em
ciência, fazer a pergunta certa é muitas vezes a chave para encontrar a
resposta.” (Hawking, 2002, pp. 142).
Aquilo para o qual queremos alertar é, para os perigos de estarmos a
submeter os jovens a uma Formação “psicótica” e ou “depressiva”, e também

82
Futebol um universo de Relações

para as repercussões que tal pode representar, para a qualidade dos Talentos,
e por consequência para a qualidade do futuro do Futebol.
Para Cruyff (2002) o segredo da Formação de jovens Jogadores reside no
facto da maturação destes, se dever fazer lentamente, refutando assim
quaisquer lógica apressada. No entanto, a pressa em descobrir novos Talentos
tem se tornado numa obsessão (Lobo, 2007), facto que conjuntamente com o
sugerido acima, em nosso entendimento, é altamente pernicioso para a
qualidade dos Jogadores, cuja Formação se deve caracterizar por um
processo, que em nosso entendimento, não se coaduna com lógicas
apressadas. Todos estes factos, juntamente com o desejo insano de aprender
de forma rápida (Gleick, 2003), levam J. O. Bento (2004) a realçar
relativamente à Formação de Jogadores, que se trata de uma “transgressão do
processo normal de desenvolvimento de um menino”, o facto de se
submeterem jovens a alterações profundas nas suas vidas, obrigando-os a
entrar apressadamente na vida adulta, e a apagarem prematuramente os
referenciais que os ligam às suas origens, aumentando-se deste modo,
segundo este autor, “a vulnerabilidade do menino”.
Tem se observado na Formação de Jogadores de Futebol, que o desejo de
alcançar objectivos imediatos tem sido enfatizado, repercutindo-se no
interiorizar de erros que posteriormente são dificilmente corrigidos, por não se
conceber este processo como um processo moroso, que não se coaduna com
lógicas apressadas (Pacheco, 2001). Por estes motivos, sugerimos que o
processo de construção de Talentos deve ser perspectivado a longo prazo, isto
é, respeitando uma lógica de Periodização à La Long.
Outro facto que caracteriza a sociedade apressada e consumista em que nos
encontramos é, a lógica de “comprar pronto” (Gleick, J., 2003), algo que quanto
a nós, tem reflexos muito evidentes no modo como é actualmente concebida a
Formação de Jogadores, e no descrédito que se lhe encontra por vezes
associado. A lógica do comprar pronto tem também caracterizado as políticas
de contratações dos clubes de Futebol, especialmente em Portugal, onde o
número de estrangeiros contratados pelos clubes é crescente, o que se

83
Futebol um universo de Relações

repercute numa deturpada ou por vezes até inexistente, concepção para as


respectivas Formações.
Deste modo, os clubes negligenciam a necessidade de desenvolver Modelos
para a Formação, e de estabelecerem objectivos e prioridades, preferindo, com
excepção de alguns clubes, desconsiderar a Formação, apesar de
paradoxalmente se demonstrarem interessados em mantê-la, com o intuito de
passarem um estatuto social aumentado, ou ainda, para poderem beneficiar
dos financiamentos destinados à Formação, os quais não raras vezes servem
para pagar salários, geralmente muito inflacionados aos Jogadores recrutados
(comprados já feitos). Ignorando deste modo, potenciais Jogadores de
qualidade formados no clube, que caso lhes fossem proporcionadas
oportunidades se mostrariam possivelmente bastante motivados, os quais
muito provavelmente seriam mais rentáveis em termos financeiros, por
auferirem de salários mais baixos, e por poderem no futuro tornarem-se activos
bastante rentabilizados, capazes inclusive de ajudar os clubes a sobreviverem
às crises financeiras que os atravessam. Em vez disso, os clubes permanecem
obstinados numa lógica linear, que não se coaduna com sistemas abertos, não-
lineares afastados do equilíbrio (Capra, 1996), como é o caso do Futebol
(Garganta, J. 2001) hipotecando desta forma, possíveis lucros futuros
decorrentes de hipotéticas vendas dos Jogadores provenientes da Formação.
Indo de encontro ao que acabamos de referir, R. Santos (2000) denuncia, a
existência de “clubes que têm mais de uma centena de jovens atletas
(Jogadores) em actividade que servem unicamente de montra”, especulando
de forma intrigada, acerca das condições proporcionadas a esses jovens para
os respectivos desenvolvimentos.
Em forma de conclusão, no que se refere à pressa instalada no Futebol,
parece-nos que a solução para reverter este mal social, é reconhecendo valor à
sabedoria popular, que de forma empírica sugere e pelo exposto, com
fundamento que, “depressa e bem há pouco quem”, e que, “devagar se vai ao
longe”.

84
Futebol um universo de Relações

3.5.2 – Homogeneização no Futebol?! O Futebol como a fast food.

“A quem entende a diferença como igualdade fractal – feita da emergência das diferenças.”
(P. C. e. Silva, 1999, pp. 11).

Pelo que verificamos, outro mal social, o qual não deve ser dissociado do
referido anteriormente e que tem atormentado o Futebol é, a homogeneização,
um fenómeno tendencialmente crescente nos últimos tempos. A este respeito
não podemos ignorar o impacto que a globalização, como já salientamos,
exerce sobre o Futebol, visto que a homogeneização é fortemente
condicionada pelo processo de globalização. De acordo com Reeves et al.,
(2006), corremos o risco de perder a diversidade que nos caracteriza, pelo
facto da Cultura tender a tornar-se homogénea e o Mundo global. Uma das
principais consequências da globalização é, o facto do capitalismo
multinacional tender a homogeneizar e a destruir tradições culturais (Klein,
2002). Por tudo o que já salientamos, percebe-se o impacto que tais tendências
podem exercer sobre o Futebol, um fenómeno que deste modo tende
igualmente a ver diluídas as suas idiossincrasias, tendendo a uma crescente
homogeneização. Uma forma relativamente simples de percebermos, como
este fenómeno se manifesta na sociedade é, olhando para a tendência que as
pessoas têm para aderir às modas, levando por exemplo, a que a generalidade
das pessoas se vista de forma muito semelhante, nalguns dos casos,
substituindo o vestuário globalizado e globalizante, como as jeans e as t-shirt’s,
pelos trajes e indumentárias que ostentavam durante anos, exibidos com
orgulho e que se constituíam como símbolos de uma determinada Cultura.
Sobrinho Simões (Anexo 1) salienta a este respeito, que a influência das
marcas sobre os jovens é extremamente limitante. “E portanto os miúdos
quererem todos comprar o mesmo tipo de sapatilhas, beberem os mesmos
iogurtes…” Ainda de acordo com Sobrinho Simões (Anexo 1), outros aspectos
relevantes, e que conduzem à homogeneização das Crianças são, o efeito da
comunicação social e das brincadeiras cada vez mais pré-formatadas a que as
Crianças são submetidas. Este último aspecto é quanto a nós de especial
relevância, por entendermos que grande parte da homogeneização que se

85
Futebol um universo de Relações

observa no Futebol resulta, da formatação indevida das actividades de treino


proporcionadas aos jovens.
Note – se contudo que o Futebol, apesar de não ser indiferente a esta
emergência social, parece ser ainda um fenómeno que revela relutância em ser
contagiado por este mal, como sugerem alguns autores (Foer, 2006; Lobo,
2002).
Lobo (2002, pp. 23), apesar de consciente da configuração social e cultural,
em que o Futebol se move, e também consciente da homogeneização que o
afectam, revela algum optimismo, mostrando-se esperançado que o Futebol,
pela relutância que revela a este nível, se constitua como um movimento
contracorrente no que se refere ao proliferar da homogeneização nas
sociedades. Afirma, a este respeito que, “no tempo em que as fronteiras se
esbatem e as influências culturais são cada vez maiores, o futebol sente o
perigo de ver os seus distintos estilos adulterados. Apesar de a identidade
cultural já não ser o que era, irão permanecer eternamente os traços das
culturas futebolísticas que diferenciam um brasileiro de um inglês ou um
alemão de um italiano.” Também para Foer (2006) o fenómeno da globalização
tem sentido algumas dificuldades em “diminuir as culturas locais de jogo”.
Mas, não podemos contudo ignorar que o Futebol tende a padecer dos
efeitos da homogeneização crescente que se observa na sociedade. “A lógica
instrumental globalizadora vem prevalecendo sobre a tradição local, alterando
profundamente a estrutura e a cultura do futebol.” (Mascarenhas, 2004, pp. 99).
O que reforça, a possibilidade de perda das identidades locais, facto que
consideramos prejudicial para o Futebol, um fenómeno que como salientamos,
serve de importante veículo de expressão cultural.
São já identificáveis alguns indícios que denotam que o Futebol tem sido
apoderado pela homogeneização. Um desses indícios é, por exemplo, o
recente fenómeno de “Europeização” do Futebol brasileiro, um Futebol que
cuja tendência evolutiva, no caso talvez «involutiva», tem contrariado os seus
traços identitários.
A este respeito Valdano (2007b), denuncia que em todos os «futebois» se
observa o mesmo tipo de jogo, denunciando deste modo, a homogeneização

86
Futebol um universo de Relações

que se tem observado no Futebol. Como refere, “tudo está uniformizado”,


acrescentando, que “olhar qualquer jogo (…) é como entrar no McDonald’s
(que diga-se é talvez o expoente máximo da globalização). De Paris a Buenos
Aires encontramos as mesmas coisas, dispostas da mesma maneira, servidas
com o mesmo sorriso…”
Trata-se de uma metáfora que em nosso entendimento, faz todo o sentido,
até porque, a relação entre Futebol e fast food, leva-nos de forma metafórica a
referir que o Futebol actual está a ficar obeso, e a engordar as pessoas. Isto é,
tal como a sociedade consumidora deste tipo de comida, também o Futebol se
enche, mas, com coisas supérfluas e pouco saudáveis. O Futebol «obeso», é
assim quanto a nós um embuste, que se caracteriza pela existência de planteis
que apresentam cada vez mais Jogadores, alguns dos quais com reduzida
qualidade, e caracteriza-se também pelo facto dos clubes se mostrarem, à
semelhança da sociedade consumidora, obsessivos consumidores de
Jogadores estrangeiros, os quais fomentam ainda mais esse Futebol obeso.
Tudo isto em contraponto com as finanças dos clubes, claramente emagrecidas
e com falta de saúde, fruto de tal obesidade. Mas, os efeitos de tal obesidade
estendem-se também aos adeptos, que consomem um número cada vez maior
de jogos, em muito assemelhados a fast food, o que leva estes mesmos
adeptos a engordarem de forma doentia, com o consumo de algo que não os
sacia, mas em relação aos quais se foram habituando, e que como tal
consomem cada vez mais. Em suma, estes adeptos encontram-se “a engordar
a aparência à custa do emagrecimento da experiência” (J. Bento, 2004, pp. 74).
No Futebol mundial, parece observar-se uma “Crise de Modelos”, tendendo a
forma de jogar das equipas, cada vez mais, a assemelhar-se (Lobo, 2006). Os
treinadores têm também responsabilidades na crescente tendência para a
homogeneização do Futebol, facto resultante, do desejo de se quererem impor
ao Futebol, negligenciando a exaltação das diferenças. “Com afã de neutralizar
o adversário os treinadores copiam-se e as equipas acabam a olhar para o
espelho do adversário para se anularem colectivamente.” (Valdano, 2007a).
Esta tendência para a homogeneização, resulta do entendimento desajustado
que os responsáveis pelos processos de treino têm daquilo que é o Jogo, o

87
Futebol um universo de Relações

qual entendem indevidamente, como um conjunto de situações de 1x1, 2x2,


3x3, quando na verdade o Futebol não é isso (Marisa Gomes, Anexo 5).
Mas, não são somente os jogares das equipas que tendem a tornar-se
idênticos, também a manifestação do plano individual, os Jogadores, evidencia
uma tendência para homogeneização. Cruyff (2002, pp. 37), evidenciando a
importância das diferenças individuais entre os Jogadores, refere que os
Jogadores expressam as suas qualidades de forma diversa, no entanto, “hoje
em dia, pelo contrário, parece que em todo o mundo se faz o mesmo.” Leandro
Massada (Anexo 2), salienta que o facto do treino, em idades precoces, tender
a ser cada vez mais mecanicista conduz o Futebol e os seus Jogadores, para a
homogeneização, acrescentando contudo, que a maior ou menor propensão de
determinados povos para a homogeneização, tem associados aspectos
culturais. Referindo a este respeito, que nos países como o Brasil, onde as
brincadeiras de rua ainda estão presentes e onde a criatividade e a
individualidade são, dimensões culturalmente valorizadas a tendência para que
a homogeneização se verifique é menor, em contraste com o que sucede nos
países escandinavos ou do centro da Europa, onde os treinos por razões
sociais, climatéricas e culturais, tendem a ser mais mecanicistas, e por
conseguinte mais homogeneizadores.
A homogeneização, sendo uma tendência crescente nas sociedades,
assume-se, desse modo igualmente como uma tendência crescente no
Futebol, mas que no entanto deveremos contrariar, ainda precocemente,
evitando que os processos de Formação sejam, mecanicistas, formatados, e
esterilizados. “…a pior coisa que podia acontecer ao futebol era, tentarmos
meter o futebol num tubo de ensaio e vermos como funciona, e esse já não é o
futebol que desejamos (…) é um futebol num tubo de ensaio (Paulo Cunha e
Silva, Anexo 4).
“Ainda gostamos muito de amar as semelhanças, damo-nos muito bem com
aqueles que se parecem connosco, quando o nosso gosto, também deveria ser
por aquilo que é diferente” (A. d. Silva, 2002, pp. 109). O culto da diferença, e o
reconhecimento de que a singularidade é, o que distingue os Talentos, devem
ser premissas basilares para quem pretende detectar Talentos, a quem

88
Futebol um universo de Relações

incumbe igualmente, a posterior exponenciação e possibilidade de expressão,


pois o Talento “tem de se mostrar” (Marisa Gomes, Anexo 5). A aceitação e
até, o culto da diferença devem quanto a nós, ser introduzidos no Futebol ainda
que de forma cuidada, isto é, não procurar ser diferente só para ser diferente.
Isto, para que o Futebol possa ficar imune ao mal social por nós apresentado.
Se tal não suceder, observaremos uma descaracterização das diferentes
identidades de jogo, e o desrespeito pela expressão plural do Talento, o que
contrariará um aspecto determinante, para a qualidade e enriquecimento do
Futebol.

3.6 – Do eclipse do Futebol de Rua, ao regresso retrocedente ás origens


passando pelo «encanto enganoso», e pela necessidade de um Útero
Artificial.

“O futebol não se aprende mais ao ar livre e no espaço aberto: nas ruas, nas praças e nos
campos por cultivar. É ensinado no recinto fechado. A autorização para participar no jogo passou
da amizade com o dono da bola para a matrícula numa escolinha.”
(J. O. Bento, 2004, pp. 204).

Neste ponto explicitaremos um conjunto de factos, que de forma implícita,


poderão evidenciar e ajudar a perceber a relevância que o Futebol assume nas
instâncias, Familiar, Recreativa e Educativa, o que conjuntamente com o que
foi já salientado para as restantes instâncias sociais, permitirá corroborar de
forma ainda mais evidente, a ideia de que a adopção para o Futebol do
conceito apresentado por Mauss, (1979), faz todo o sentido. Apresentando-se
assim, o Futebol é, um Fenómeno Social Total, ou até mais que isso, um
Fenómeno Social Mais Total.

89
Futebol um universo de Relações

3.6.1 – O Eclipse da Melhor Escola de Futebol do Mundo, o Futebol de


Rua:

“Uma imagem romântica e fiel à parábola das grandes estrelas, de Pelé a Maradona, cujo génio
nasceu e cresceu na maior e melhor escola de futebol do mundo: a rua.”
(Lobo, 2002, pp. 16).

Não obstante, tudo o que foi já referido consideramos que os efeitos mais
significativos das alterações que se têm verificado nas sociedades se reflectem
no Futebol, pelo eclipsar do Futebol de Rua, algo que se constituía como um
espaço fundamental para a construção de Talentos. O Futebol de Rua foi, o
responsável pelo começo dos grandes Talentos (J. Valdano, 1998). Contudo,
temos vindo a observar, que as alterações que se observam nas sociedades,
aumento da pressa, a falta de segurança, o desejo dos pais conferirem aos
filhos uma Formação diversificada, com a intenção, à primeira vista louvável,
de os dotar de competências várias para enfrentarem o futuro que se afigura
cada vez mais competitivo, acaba por lhes retirar tempo, para as suas
brincadeiras fundamentais (Ginsburg, 2007), sendo que, conjuntamente com
tudo o que acabamos de referir, também a estrutura das cidades em alguns
países, nomeadamente na Europa ocidental, se alterou profundamente, sendo
já raros os espaços que permitem aos jovens viver a realidade do Futebol de
Rua, e o conjunto de vivências que lhe estavam associadas, também elas
fundamentais para a edificação de Talentos no Futebol (Michels, 2001). Face
às alterações verificadas nas cidades, afigura-se difícil encontrar ruas em que
os jovens possam jogar (Cruyff, 2002), assumindo-se deste modo o Futebol de
Rua, como uma realidade cada vez menos presente nas sociedades actuais
(Valdano, 2002). Também J. O. Bento (2004) salienta o facto do Futebol de
Rua ter sido a escola dos grandes Talentos, e também o facto, deste ter sido
no passado a actividade dominante da generalidade dos jovens, acrescentando
no entanto, que as alterações sociais que se têm verificado, não permitem mais
que tal suceda.
Face ao exposto, aquilo que era culturalmente inevitável e espontâneo,
considerado como a melhor Escola de Futebol do Mundo (Lobo, 2002, 2007;

90
Futebol um universo de Relações

Valdano, 2002) e consensualmente aceite, como fundamental para o despontar


e criação de Talentos (Cruyff, 2002, H. Fonseca, 2006; Michels, 2001), o
Futebol de Rua é, cada vez mais uma realidade inexistente, mas que urge
recuperar, como defendem inúmeros autores (Cruyff, 2002; H. Fonseca, 2006;
Lobo, 2002, 2007; Michels, 2001; Pacheco, 2001; Ramos, 2003; Tamarit, 2007;
Valdano, 2002), que salientam ainda, que o facto do contexto actual não
permitir que o Futebol de Rua seja uma realidade, tem tido consequências
significativas na diminuição da qualidade do Futebol. Cruyff (2002), não tem
dúvidas em considerar, que a diminuição da qualidade de Jogo se encontra
directamente relacionada com a decadência do Futebol de Rua.

3.6.2 – O regresso retrocedente às Origens elitistas e a ameaça da


Lógica Maquínica:

“O jogo ao deus-dará cedeu o terreno à utilidade de aprender a ser jogador. O futebol virou
negócio, uma possibilidade choruda de investir e ganhar dinheiro, ainda que revestida de
preocupações e enfatizações educativas”
(J. O. Bento, 2004 pp. 204).

“… não surpreende que muitas crianças cresçam hoje acreditando que o alimento vem das
prateleiras do supermercado”
(Capra, 2005, pp. 247).

Importa evidenciar, que simultaneamente ao eclipsar do Futebol de Rua, se


observa a proliferação das Escolas de Futebol ou Academias de Futebol, que
procuram, sem ignorar interesses económicos, incumbir-se da
responsabilidade da Formação dos jovens Jogadores.
“O futebol não se aprende mais ao ar livre e no espaço aberto: nas ruas, nas
praças e nos campos por cultivar. É ensinado no recinto fechado. A autorização
para participar no jogo passou da amizade com o dono da bola para a
matrícula numa escolinha. O jogo ao deus-dará cedeu o terreno à utilidade de
aprender a ser jogador. O futebol virou negócio, uma possibilidade choruda de
investir e ganhar dinheiro, ainda que revestida de preocupações e enfatizações
educativas” (J. O. Bento, 2004 pp. 204). Trata-se em nosso entendimento, de

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Futebol um universo de Relações

uma reflexão muito pertinente e ajustada, capaz de retratar de forma bastante


fiel aquilo que se verifica actualmente com a iniciação dos jovens, na prática de
Futebol.
Este fenómeno como salienta Mário Zagallo (s/d, cit. por Filho, 2004), no seu
tempo de infância, não era aceite socialmente, ao ponto dos Jogadores serem
considerados vagabundos, tendo deste modo se convertido num fenómeno
menos elitista, ou pelo menos, mais extensivo e comum a diferentes estratos
sociais, o que à partida se revela positivo. Aliás, para benefício do Futebol,
seria desejável que tal sucedesse, embora estejamos a este respeito receosos.
É que face aos preços praticados pelas Escolas de Futebol torna-se, cada vez
menos acessível a muitas Crianças a sua prática. As mensalidades, que
permitem que uma grande parte dos jovens se iniciem na prática de Futebol,
constitui-se à partida, como um processo de selecção, no caso exclusão, em
que os preteridos, não raras vezes apresentam um potencial bastante grande,
em muito fomentado pelas vivências que possuem. É que o Futebol é, “uma
matéria de aprendizagem silvestre onde a pobreza ensina melhor que a
abundância.” (J. Valdano, 1998, pp. 80).
O facto do Futebol se poder assumir, no futuro como um fenómeno de prática
elitista, representa um retorno aos seus primórdios. Julgamos contudo, que tal
não representa algo positivo para o Futebol, pois como já evidenciamos, aquilo
que lhe conferiu a dimensão que hoje apresenta foi, o facto de se ter
constituído como uma Paixão Global e Globalizante, afastando-se deste modo,
das suas origens de actividade restringida e absorvida pelas classes sociais
mais altas, daí que consideremos que o que se verifica actualmente é um
retorno às origens, que por não o entendermos como benéfico, pelo facto de
ser excludente, o designamos de retrocedente.
Por volta de 1850 o Futebol encontrava-se, restringido às escolas elitistas e
universidades da Grã-bretanha (Blatter, 2004). No país onde como já
sugerimos, o Futebol é uma paixão, o Brasil, o Futebol foi introduzido e exerceu
um fascínio bastante significativo sobre a elite local, tendo se constituído entre
1900 e 1910 como um Desporto de elite (Souto, 2004). O mesmo sucedeu em
Portugal, onde como referem J. N. Coelho & Pinheiro, (2004, pp. 34)

92
Futebol um universo de Relações

inicialmente o Futebol podia ser considerado “um jogo de alta roda”, que foi
adoptado pela elite de aristocratas e burgueses. “Para a elite portuguesa, que
ditava as modas, o futebol foi, desde logo, visto como actividade selecta”.
No sentido de perceber um pouco melhor, o facto do Futebol tender quanto a
nós, a correr o risco de se tornar elitista, e com isto renunciar às
potencialidades que apresenta, enquanto fenómeno aglutinador, importa alertar
para algumas particularidades das sociedades actuais.
Efectuando uma análise social em torno do proliferar das Academias de
Futebol, verificamos que tal fenómeno tem subjacente necessidades impostas
pelo mercado, assumindo-se deste modo a Formação de Jogadores, nestes
moldes, como um serviço prestado, e «explorado» de acordo com uma lógica
empresarial. Tendo presente esta noção, devemos ter em consideração que a
procura destes espaços por parte dos pais, a qual aumentou
consideravelmente, poderá ter subjacente o facto da pertença a uma Academia
de Futebol, se constituir como um certificado de estatuto social considerado.
Motivo pelo qual, julgamos que o proliferar das Academias e da procura destes
espaços, poderá estar a tornar-se num modismo, com tudo o que de perverso
daí pode advir, nomeadamente, o aproveitamento interesseiro dos
responsáveis pelos processos de Formação, e os efeitos sucedâneos das
modas, a indiferença e banalização de uma realidade. Note-se contudo, que há
ainda outros possíveis motivos que podem explicar a crescente procura destes
espaços por parte dos pais. Os problemas que a sociedade enfrenta são
bastante profundos, e como muitas vezes se ouve, radicam num “problema
base”, decorrente de processos educativos desajustados, mas que infelizmente
imperam, e condicionam significativamente os jovens. O clima “eduquês” que
caracteriza a Educação conduziu-nos, para situação presente (Crato, 2006b).
Além disso, o conjunto de alterações sociais significativas que se têm registado
deu origem a uma educação super-proteccionista, que se repercute num
processo educativo desabstractizado, que conduz os jovens a uma construção
e percepção desajustadas, da realidade e consequentemente a uma
incapacidade para se confrontarem com esta, a qual quando lhes é dada a
conhecer, se revela muito diferente dos estereótipos que foram desenvolvendo

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Futebol um universo de Relações

e que os formatou, constituindo-se assim o confronto com o mundo real, como


um choque tremendo, muitas vezes demasiado assustador, como comprova, o
crescente número de suicídios entre os jovens, ou ainda, o crescimento em
exponencial de comportamentos desviantes nestes grupos. Goleman (2006,
pp. 14) refere a este respeito, que o aumento da violência nas populações mais
jovens se poderá explicar, a partir da pressão económica que “obriga os pais a
horários de trabalho mais prolongados, de modo que as crianças passam
horas, depois da escola, em centros de tempos livres ou sozinhas”,
acrescentando que tal é ainda agravado pelo facto, “de os pais chegarem a
casa cansados e no limite da paciência”. Por estes motivos, como já
salientamos, Sobrinho Simões (Anexo 1) considera que o modo apressado,
atarefado e preenchido, como vivem os pais se tem reflectido, na sua menor
disponibilização para o desempenho de forma efectiva dos seus papéis de
pais. O que se repercute, como acrescenta, de forma muito significativa, e
prejudicial na organização social e nos comportamentos das Crianças. Esta
realidade caracterizadora da Educação dos jovens, e do contexto em que esta
decorre tem conduzido, quanto a nós, a sociedade e de modo especial as
Crianças para uma lógica maquínica, que consideramos além de altamente
perniciosa, também castradora. Nos dias de hoje, fruto deste paradigma, “não
surpreende que muitas crianças cresçam hoje acreditando que o alimento vem
das prateleiras do supermercado” (Capra, 2005, pp. 247). Gladwell (2007)
salienta, que as pessoas tendem a sucumbir perante formulários, matrizes e
programas de computador, deixando-se simplesmente levar por estes,
tornando-se obcecadas pelo mecanicismo dos processos e revelando-se
incapazes de olhar holisticamente para os problemas. Não podemos ignorar a
este respeito, que a lógica maquínica, foi ao longo de séculos fomentada pelo
conhecimento científico, que durante um largo período se orientou, e continua a
ser orientado, pelo paradigma Cartesiano. “A revolução cartesiana no século
dezassete mudou o curso do pensamento (…) Para Descartes, todos os
animais e plantas, como todo o universo, eram apenas máquinas (…) não
havia qualquer princípio dando vida aos animais e ás plantas. Portanto, se o
mundo é uma máquina, se os animais são máquinas, podemos ter uma ciência

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Futebol um universo de Relações

totalmente mecânica e essa é a base em que se apoia toda a ciência


institucional” (Sheldrake, 2004b, pp. 159).
Valdano (2002) reportando-se ao modo como esta lógica tem afectado o
Futebol, classifica o jogo praticado e condicionado por esta realidade como
sendo, “teledirigido”, antevendo que fruto desta lógica, num futuro não muito
longínquo os Jogadores de Futebol, serão como que autómatos, isto é, como
seres sem vontade ou capacidade de decisão próprias, condicionados pelo que
já referimos ser, a “vertigem do piloto automático”. Ideia comungada por Lobo
(2007), que realça que o Futebol actual, se encontra ameaçado pela
robotização dos Jogadores.
Alguns pais, inteirados do valor formativo do Futebol, o qual explicitaremos
mais adiante, e conscientes da lógica maquínica, ou da “toxicidade desse caldo
que enche os nossos crânios” (Laborit, 1987, pp. 104), assim como dos
crescentes índices de inactividade que afectam a sociedade, e suas
consequências, encontram nas Academias ou Escolas de Futebol um espaço
que potencialmente pode contrariar tais tendências.
Bento (2007) salienta que a inactividade, atinge cerca de 85 % da população
mundial, tendendo a aumentar em algumas regiões do planeta, dados que
revelam que também este deverá ser um aspecto a considerar relevante nas
sociedades actuais, e que poderá estar associado a uma maior procura de
espaços, como Academias de Futebol, em que os jovens poderão praticar
Futebol de modo a suprir tal inactividade e de superar os problemas que lhe
estão associados. A este respeito, sendo uma realidade crescente, os
problemas de saúde associados à inactividade, pensamos ser pertinente
advertir para o facto, das Academias se munirem de competências, no caso
fundamentalmente recursos humanos, que lhes permitam prestar serviços de
qualidade a estas populações especiais. As quais se perspectiva, serem em
número cada vez mais crescente nas próximas décadas, e que como tal,
deverão merecer especial atenção, e um tratamento especializado, que atenda
às suas peculiaridades.

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Futebol um universo de Relações

3.6.3 – O «Encanto que pode ser Enganoso»:

“Os números não enganam e falam a mesma linguagem um pouco por toda a parte. O mundo do
futebol está cheio de muitos milhares de meninos que sonharam atingir o estrelato e vivem
defraudados e desiludidos porque o sonho não se cumpriu.”
(J. Bento 2004, pp. 206).

No sentido de perceber, quais os motivos que levam a que cada vez mais, e
cada vez mais cedo, os jovens sejam inscritos pelos pais em Escolas de
Futebol, não podemos, em nossa opinião deixar de evidenciar que o contexto
em que os jovens se desenvolvem actualmente é, cada vez mais exigente e
competitivo. Neste sentido, os pais encontram no Futebol um complemento
para a Formação dos progenitores.
A Formação que os pais idealizam para os jovens, procura nos dias de hoje,
ser a mais diversificada possível, com o intuito de dotar os jovens de
competências que lhes permitam dar respostas às exigências que terão de
superar, quando adultos. Parece-nos a este respeito pertinente evidenciar que
o Futebol se afigura, face ao contexto em que nos encontramos, precário e
altamente instável a nível de emprego, como uma saída profissional muito
viável por parte dos pais para os seus progenitores.
O facto dos Jogadores de Futebol se revelarem heróis e modelos sociais de
milhões de pessoas, leva a que os pais depositem no Futebol a esperança de
um futuro bem sucedido para os seus filhos. ”Para muitos meninos o futebol é
depositário de um sonho de vida, palpitante e realizável num futuro próximo e
perfeitamente acessível. Um sonho cristalizado e reforçado na consciência
pelos media, quando enaltecem a fama, o dinheiro e o prestígio e transformam
em virtude a irrelevância dos poucos jogadores bem sucedidos, de um modo tal
que difundem a ilusão de que tudo isso está ao alcance de todos.” (J. Bento,
2004, pp. 208).
Uma recente sondagem efectuada por Mendonça (2007), refere-se às
preferências dos pais, relativamente às futuras actividades profissionais dos
filhos. Tendo se concluído, que no caso dos filhos do sexo masculino, “se não
for possível ter um médico ou engenheiro na família, então que apareça um

96
Futebol um universo de Relações

jogador ou treinador de futebol”, que deste modo surge na terceira posição


desta sondagem com uma percentagem de 8,1% dos pais inquiridos.
No entanto, como é salientado e de forma bastante pertinente, este desejo é
na verdade um embuste, “um encanto enganoso” (J. Bento, 2004), ou um
“mito” (Mendonça, 2007).
Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos Jogadores Profissionais de
Futebol (2007, cit. por Mendonça, 2007), com toda a pertinência esclarece, que
“aquilo que o público vê é apenas o sucesso das estrelas, uma minoria”,
quando na verdade o que se verifica é que, 60% acabam no limiar da pobreza.
“Chegar aos palcos do futebol é um sonho de muitos, mas apenas privilégio de
uns poucos.” (J. Oliveira, pp. 235).
Joaquim Evangelista (2007, cit. por Mendonça, 2007) destaca nas suas
declarações, um aspecto que consideramos crucial, e nos deve fazer reflectir,
acerca da perversão que pode estar a verificar-se na Formação de Jogadores,
quando afirma lamentar que os pais “continuem a alimentar uma ilusão para
verem aí uma forma de resolução dos seus próprios problemas.” Mais adiante
nesta dissertação evidenciaremos, que a prática imposta de uma actividade
como o Futebol, parece não se coadunar com a construção de Talentos.
Consideramos, que a iniciação dos jovens na prática de Futebol deverá
realizar-se, à semelhança do que sucedia no Futebol de Rua, ou seja, deve
realizar-se pela própria iniciativa dos jovens e não de uma forma imposta pelos
pais. A paixão tem de ser descoberta e não imposta.
Não obstante este facto, aquilo que se verifica é que o Futebol continua, e
agora de uma forma mais evidente e maximizada pelos problemas sociais, a
funcionar como uma tentativa de refúgio. Segundo Souto (2004, pp. 123)
apesar deste “encanto enganoso” ser uma realidade, “a atracção exercida
sobre os jovens não se reduz à possibilidade de ascensão financeira permitida
pelo futebol, embora este seja hoje em muitas partes do mundo um dos raros
atalhos que levam à mobilidade social nas actuais condições de baixo
crescimento e desqualificação do mundo de trabalho.”
“Os números não enganam e falam a mesma linguagem um pouco por toda a
parte. O mundo do futebol está cheio de muitos milhares de meninos que

97
Futebol um universo de Relações

sonharam atingir o estrelato e vivem defraudados e desiludidos porque o sonho


não se cumpriu (…) No imaginário desses meninos (e dos pais) perfila-se uma
trajectória de êxitos, marcada pelo desejo silenciado de uma rápida ascensão
económica e de elevar simultaneamente o estrato social, como meio de
quebrar as grilhetas da origem modesta” (J. Bento 2004, pp. 206).
Entendemos que é absolutamente legítimo, e até conveniente para a
construção de Talentos, os jovens sonharem e procurarem tornar reais esses
sonhos, contudo, o que entendemos não se compadecer com a construção de
Talentos é, a pressão desmesurada que por vezes é colocada sobre os jovens
por parte de pais, dirigentes e treinadores. Além de que entendemos, que aos
jovens em iniciação deveria ser fornecida uma percepção mais real do
fenómeno, uma tarefa em que pais e treinadores se revelariam os principais
intervenientes.

3.6.3 – A necessidade de Úteros Artificiais:

“As pessoas sempre culpam as circunstâncias. Quem se sai bem neste mundo são as pessoas
que saem à procura das circunstâncias que desejam e, se as não encontram, criam-nas.”
(George Bernard Shaw, s/d, cit. por J. Bento, 2004, pp. 186).

A crescente procura por parte dos pais, das Academias ou Escolas de


Futebol pode contudo, ser benéfica para a melhoria do Jogo e da qualidade
dos Jogadores (H. Fonseca, 2006), desde que o processo permita o despertar
dessa qualidade. Para que tal suceda, importa reconhecer a necessidade de
fazer ressurgir, aquilo que Cruyff (2002) classifica como o “espírito primogénito”
do Futebol, ou seja, o Futebol de Rua, embora tenhamos de realçar que para
tal, importa igualmente termos consciência das dificuldades que tal representa.
São já vários os autores (Cruyff, 2002; H. Fonseca, 2006; Michels, 2001;
Tamarit, 2007; J. Valdano, 1998, 2002) que têm alertado para esta
necessidade, tendo inclusive alguns dos quais desenvolvido esforços nesse
sentido. As dificuldades para o implementar desta realidade advêm sobretudo
de questões de mentalidade, inculcadas pela conjectura social actual. O que é
especialmente complicado de alterar, “porque é preciso mover uma máquina

98
Futebol um universo de Relações

poderosa e com grande propensão para a inércia” (A. d. Silva, 2002), como são
um conjunto de concepções, que consideramos erróneas, e que afectam o
Futebol, e em particular a Formação de jovens Jogadores. De facto trata-se de
uma questão, não de meios mas sim de vontade, como realça Cruyff (2002) o
qual alerta para algo que consideramos pertinente, e denunciador daquilo a
que designamos, de embuste das condições para a Formação de Jogadores.
“Quantas crianças não utilizaram, as carteiras, as mochilas, os sacos ou umas
simples pedras para marcar a baliza? Este detalhe, e tantos outros parecidos,
demonstram-nos que nem sempre é necessário ter todos os elementos e que
as carências se superam com imaginação e ilusão.” (Cruyff, 2002, pp. 21). O
que vai de encontro ao que refere J. Valdano (1998) que relembrando afirma
que o Futebol é, “uma matéria de aprendizagem silvestre onde a pobreza
ensina melhor que a abundância.” Ou seja, “se queres podes” (Cruyff, 2002), e
no caso julgamos pertinente acrescentar, que se sabes o que é o Futebol de
Rua e “se queres podes”. Torna-se deste modo pertinente, que se identifiquem
os traços caracterizadores do Futebol de Rua, isto é, que se reconheça a sua
essência, e com base nessa matriz, se procure reproduzi-la em contextos que
não os da rua, com o intuito de revitalizar tal processo, que não mais parece
ser possível reproduzir nos moldes originais, uma inevitabilidade nos dias de
hoje (H. Fonseca, 2006; Tamarit, 2007).
Tal como evidenciamos, o conjunto de alterações registadas nas sociedades,
levou a que a Formação passasse do Futebol de Rua para as Academias, facto
que justifica uma “profunda reflexão” (J. O. Bento, 2004). Para Ramos (2003,
pp. 19) “as práticas elementares que a criança utiliza nos seus jogos de rua,
pode bem servir para uma intervenção correcta do adulto, quando intervém no
processo de aprendizagem das crianças”. Partindo deste pressuposto,
consideramos que a crescente procura das Academias de Futebol, poderá
representar algumas vantagens, se os processos de Formação que nelas se
desenvolvem forem ajustados, o que se revela possível, se esses processos
não ignorarem “as práticas elementares que a criança utiliza nos seus jogos de
rua”. Entendemos que poderão representar vantagens, pois desde logo,
constitui-se à priori como mais uma forma dos jovens conhecerem e

99
Futebol um universo de Relações

experimentarem o Futebol, o que consideramos por si só pertinente. Além


disso, e aqui é que quanto a nós, poderá residir a grande vantagem destes
espaços, caso nos seus processos de Formação, consigam dentro do possível,
fazer ressurgir tal como sugerido anteriormente, o “espírito primogénito” do
Futebol, o Futebol de Rua, poderão assumir-se como um ”Útero Artificial”
(Atlan, 2007), para a construção de Talentos. Pensamos, que esta analogia faz
sentido, uma vez que como salientamos anteriormente, o Futebol de Rua foi
durante anos, o espaço onde de uma forma natural, os Talentos se
desenvolveram, e o conceito de “Útero Artificial” remete-nos para a
possibilidade de gestação de um determinado processo, fora daquele que é o
seu contexto natural (Atlan, 2007). Em nosso entendimento, sendo difícil nos
tempos actuais desenvolver Talentos num contexto considerado por Michels
(2001) como, o mais natural dos sistemas educativos que um Jogador pode
encontrar (Futebol de Rua), as Escolas e Academias de Futebol poderão
assumir para si a responsabilidade da “ectogénese” dos Talentos no Futebol,
uma vez que, deverão procurar nos seus espaços, “artificiais”, recriar um
processo, que como evidenciamos era natural e espontâneo. Como salienta
Lobo (2007, pp. 173), “o que afinal os centros de formação ou escolinhas
devem procurar é isso mesmo. Reproduzir em laboratório o futebol de rua.”
Consideramos que sendo o eclipse do Futebol de Rua, tal e qual se
observava no passado, uma inevitabilidade, de nada serve o continuo lamentar
de tal situação, devendo desse modo, tentar subverter-se tal situação. “Os
vencedores serão sempre aqueles que inventaram o mundo e não aqueles que
se limitaram a responder-lhe” (Vítor Hugo, s/d, cit. por, J. Bento, 2004, pp. 54).
Imbuídos por este espírito, julgamos que para que se possa concretizar a
intenção de revitalizar o Futebol de Rua, há necessidade de racionalizar o
conjunto de vivências que o caracterizavam e tentar reavivá-las nas Escolas de
Futebol ou Academias. Note-se contudo, que por si só tais intenções são
quanto a nós, insuficientes, uma vez que para nutrir este hipotético “Útero
Artificial”, há necessidade de uma “Placenta Artificial” (Atlan, 2007), que
permita nutrir tal racionalização com o clima muito próprio do Futebol de Rua.
Uma placenta que mais do que nutrir, deve permitir o fermentar do Talento e da

100
Futebol um universo de Relações

qualidade de Jogo. Pensamos contudo, que esta será a maior dificuldade, pois
as alterações sociais são profundas, e o Espírito do Futebol de Rua, a placenta
que nutria este tipo de Futebol, é de recreação difícil e complexa, sendo deste
modo dificilmente recuperável. A dificuldade de gerar uma “Placenta Artificial” é
deste modo, muito provavelmente o maior entrave à implementação dos Úteros
Artificiais. Mas, não nos esqueçamos que “se queres podes”, e não há nada
como tentar. É nossa intenção ao longo deste trabalho, explicitar alguns dos
elementos que poderão permitir tornar exequível a ideia dos Úteros Artificiais,
aplicada à exponenciação de Talentos.
Desde já importa realçar, que face à lógica comercial que cada vez mais
impera nos processos de Formação, as instituições e pessoas responsáveis
por esses mesmos processos, deverão adoptar como pregão ou slogan a frase,
“eu não vendo pão vendo o fermento” (V. Frade, 1979, pp. 6). Um fermento
que, mais do que alimentar Talentos, permite que estes levedem, e deste
modo, cresçam e se maximizem.

101
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

4 - Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal5:

“O futebol é um romântico de carne e osso. É feito por homens e faz os homens menos
arqueados.”
(J. O. Bento, 2004, pp. 199).

“A complexidade situa-se num ponto de partida para a acção mais rica, menos mutiladora. Creio
profundamente que quanto menos um pensamento for mutilador, menos mutilará os humanos.
É preciso lembrar os estragos que as visões simplificadoras fizeram, não apenas no mundo
intelectual, mas na vida. Muitos dos sofrimentos que milhões de seres suportam resultam dos
efeitos do pensamento parcelar e unidimensional” (Morin, 2003, pp. 122).

4.1 – Antropo?! «Pertinente parece-nos!»

“Da necessidade e imprescindibilidade de reconhecer no «FUTEBOL» um fenómeno


«ANTROPOSOCIAL-TOTAL».”
(V. Frade, 1979, pp. 6).

Anteriormente evidenciamos que o Futebol pode considerar-se um Fenómeno


Social Total, consideramos contudo, que a aplicação deste conceito ao domínio
do Futebol, justifica o acrescento do prefixo Antropo6, à semelhança do que
sugere V. Frade (1979).
Por definição, este prefixo remete-nos para a necessidade de contemplar no
Futebol a dimensão Humana, sendo nossa intenção, com a adopção deste
prefixo procurar explicitar o Futebol enquanto fenómeno Humano, entendendo-
se o Homem como um ser íntegro, composto por diferentes dimensões que se
encontram interconectadas. Uma vez que a complexidade do fenómeno
Futebol é enorme, sendo múltiplas as conexões que estabelece com outros
fenómenos, “a locomotiva” de prefixos e de sufixos que a este se poderiam
aplicar é quase infindável (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4). Não obstante este
facto, para o Futebol, optamos por estabelecer como prefixo, para

5
Ao longo desta dissertação, serão escritos como uma unicidade, conceitos distintos, com o
intuito de enfatizar, as múltiplas conexões que estabelecem entre si, e desse modo evidenciar
aquilo a que mais adiante, iremos apresentar como inteireza inquebrantável.
6
Antropo: é o elemento de formação de palavras que exprime a ideia de Homem, de Ser
Humano (DiciopédiaX, 2006).

103
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

complementar o conceito de Fenómeno Social Total, o termo Antropo


(Supraprefixo), por entendermos que este ao congregar para si a dimensão
Humana, tem subjacente todos os restantes prefixos e sufixos que se poderiam
aplicar a este fenómeno.
Entendemos que somente com este complemento se torna possível, conferir
ao conceito Fenómeno Social Total, a verdadeira dimensão Humana, e
complexidade do fenómeno Futebol. Paulo Cunha e Silva (Anexo 4), concorda
com esta extensão ao conceito de Mauss (1979), realçando não se tratar de
um preciosismo, mas pelo contrário de algo que é bastante pertinente, até
porque como adverte, uma Sociologia atenta ao Homem não pode ignorar, nem
excluir o indivíduo na sua centralidade, e radicalidade participativa, uma vez
que é alguém que condiciona a sociedade, através do sistema de trocas que se
estabelece entre estes dois sistemas abertos, sociedade e indivíduo, os quais
interactuam e se influenciam.

4.2 – A necessidade da COMPLEXIDADE, para a compreensão de um


fenómeno Humano:

“Vivemos hoje num mundo globalmente interligado, no qual os fenómenos biológicos,


psicológicos, sociais e ambientais são todos interdependentes. Para descrever esse mundo
apropriadamente, necessitamos de uma perspectiva ecológica que a visão de mundo cartesiana
não nos oferece.”
(Capra, 2005, pp. 14).

O facto do Futebol poder ser considerado um Fenómeno AntropoSocialTotal,


confere-lhe uma complexidade acrescida, lançando-se deste modo um desafio
acrescido a esta dissertação, uma vez que “é evidente que os fenómenos
antropossociais não poderiam obedecer a princípios de inteligibilidade menos
complexos que os doravante requeridos para os fenómenos naturais. É-nos
preciso enfrentar a complexidade antropossocial e não dissolvê-la ou ocultá-la”
(Morin, 2003, pp. 21).
Quando nos reportamos ao Futebol, torna-se fundamental ter em
consideração que as variáveis em estudo são sempre complexas, e que se
encontram implicadas mutuamente (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).

104
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Como adverte Capra (2005, pp. 14) “vivemos hoje num mundo globalmente
interligado, no qual os fenómenos biológicos, psicológicos, sociais e ambientais
são todos interdependentes. Para descrever esse mundo apropriadamente,
necessitamos de uma perspectiva ecológica que a visão de mundo cartesiana
não nos oferece”, acrescentando ainda a necessidade de “um novo
«paradigma»”. Ainda segundo este autor, o “pensamento complexo” apresenta-
se como uma forma de suprir, “a visão de mundo cartesiana”.
“A complexidade situa-se num ponto de partida para a acção mais rica,
menos mutiladora. Creio profundamente que quanto menos um pensamento for
mutilador, menos mutilará os humanos. É preciso lembrar os estragos que as
visões simplificadoras fizeram, não apenas no mundo intelectual, mas na vida.
Muitos dos sofrimentos que milhões de seres suportam resultam dos efeitos do
pensamento parcelar e unidimensional” (Morin, 2003, pp. 122). Também Paulo
Cunha e Silva (Anexo 4) adverte para os perigos mutiladores que revestem
este pensamento, que ainda nos condiciona significativamente, e que impele à
necessidade da fragmentação para nos organizarmos.
Importa contudo realçar, que “a acção humana é um fenómeno complexo,
multidimensional e imprevisível”, podendo dentro desta se englobar o Futebol
(Lourenço & Ilharco, 2007, pp. 253). O Futebol e o Desporto em geral são,
actividades exclusivamente Humanas, feitas por e para Homens. R. P. Garcia
(2006, pp. 16) salienta que no Desporto, “acima de tudo vêem-se pessoas
humanas”, acrescentando ainda que a essência do Desporto reside na reflexão
sobre a “pessoa humana”. O Desporto por representar uma criação do Homem,
transporta consigo a sua própria natureza (Marques, 2004). O Desporto é
ainda, “um campo de demonstração da extraordinária competência do Homem
e do seu corpo” (Bento, 2007, pp. 24), pois tal como salienta Serpa, (2007, pp.
371) no Desporto “é e será sempre a pessoa a realizar as acções que integram
e harmonizam as competências e capacidades necessárias à espetacularidade
do alto rendimento.” Conseguimos deste modo, descobrir e encontrar no
Desporto uma forma de encenação da essência Humana (A. d. S. Costa,
2006).

105
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Sendo o que foi referido válido para o Desporto em geral, depreendemos que
é tanto ou mais válido no Futebol, um Fenómeno (Antropo) Social Mais Total.
Deste modo, e face ao que já salientamos, urge para o conveniente
entendimento deste fenómeno omnipresente no quotidiano das sociedades,
uma abordagem não redutora, mas sim, em complexidade. “É preciso ver a
complexidade onde ela parece em geral ausente, como por exemplo, na vida
quotidiana” (Morin, 2003, pp. 83). Apesar do Futebol ser praticado, não raras
vezes com o intuito de criar um mundo à parte do real, “é um fenómeno
complexo e atravessado pelas realidades que o circundam” (Valdano, 2002, pp.
47), ou seja, é parte de um todo maior, é um fio da extensa “Teia da Vida”
(Capra, 1996). Sendo assim importante não ignorar, que a “relação
antropossocial é complexa, porque o todo está na parte, que está no todo”
(Morin, 2003, pp. 109). Importa a este respeito salientar, que o facto de
apresentarmos o conceito, por nós sugerido para o Futebol, redigido como
unicidade, AntopoSocialTotal, pretende evidenciar o que nos sugere Morin
(2003), ou seja, “que o todo está na parte, que está no todo”.
De acordo com J. O. Bento (2004, pp. 199), para quem o Futebol é um
“romântico de carne e osso”, podemos caracterizá-lo por ser “feito por homens”
e ser capaz de fazer os “homens arqueados, mais direitos, menos soturnos,
mais alegres e transparentes, de coração mais potente, de passadas mais
amplas e de braços mais fortes e apertados”, constituindo-se deste modo, face
ao exposto como um fenómeno fundamental na edificação do Homem, logo
AntropoSocialTotal.
Com o intuito de compreender e desvendar as múltiplas conexões que o
Futebol estabelece com o Homem, devemos encetar uma abordagem científica
“humanológica”, logo complexa, visto que “as regras que gerem esse mundo de
contrastes não são escritas, estão implícitas nas relações humanas” (J. A.
Santos, 2004, pp. 219), reforçando-se deste modo, a pertinência da adopção
do prefixo “Antropo”, ao conceito apresentado por Mauss (1979).
Consideramos, que partindo do pressuposto de que o Futebol é, um Fenómeno
AntropoSocialTotal, “no treino, como na competição, o futebol só tem a ganhar
se assumir frontalmente a sua humanidade” (Garganta, 2004, pp. 228).

106
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

“A minha ideia de que estamos na pré-história do espírito humano é uma


ideia muito optimista. Abre-nos o futuro se acaso a humanidade vier a ter
futuro” (Morin, 2003, pp. 147). Talvez também no Futebol, o encontro com o
Humano ainda esteja na pré-história, e a padecer dos males da «ciência
mutiladora» (Sobral, 1995). Conforme augura J. Bento (2004, pp. 53) afigura-se
para as Ciências do Desporto “uma larga panóplia de perspectivas de
crescimento e desenvolvimento”. Facto que quanto a nós requisita também,
uma perspectiva optimista, esperançada na realização de um futuro, se
possível melhor, para o Futebol. Afinal, “o Nada foi, sempre a possibilidade de
Tudo” (A. d. Silva, 2002, pp. 98).

4.3 - Futebol «uma dimensão das duas faces que a moeda (da Vida)
tem»:

“Ora eu creio que no desporto e num simples jogo de futebol mora todo um mundo maravilhoso
de expressões e cores da vida.”
(J. Bento 2004, pp. 30).

Recordando Bill Shanckly (s/d cit. por. Alegre, 2006, pp. 15), “o futebol não é
um caso de vida ou de morte, é muito mais que isso”. Talvez seja um exagero,
contudo, seguidamente procuraremos evidenciar que o Futebol e a Vida são
duas realidades que constituem uma vasta e complexa rede, não podendo por
isso, serem percebidos de forma dissociada. Motivo pelo qual adaptamos as
palavras de Frade (in Carvalhal, 2002), e tenhamos sugerido que o Futebol é,
“uma dimensão das duas faces que a moeda” da Vida tem.
Com o intuito de explicitar, o facto do Futebol se ter assumido para a
generalidade dos seus intervenientes como um aspecto central nas respectivas
Vidas, decidimos apresentar de seguida algumas citações, que nos pareceram
conclusivas a este respeito.

“Para mim, o futebol foi mais do que a própria vida!” (Ferenc Puskas, s/d cit.
por Lobo 2002, pp. 82).

107
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

“Morri no dia 17 de Maio de 1987, com 32 anos…, dia que me retirei do


futebol” (Michel Platini, s/d, cit. por Lobo, 2002, pp. 196).

“Está aqui a bola que me ajudou muito. Ela e as irmãs dela. São uma família
por quem tenho uma gratidão enorme. Na minha passagem pela Terra, ela foi a
principal. Porque sem ela ninguém joga. Eu comecei numa fábrica de Bangu.
Trabalhando até que encontrei esta minha amiga. E estive sempre muito feliz
com ela a meu lado. Graças a ela conheço o mundo inteiro, viajei muito tive
muitas mulheres.” (Domingos da Guia, s/d, cit. por Galeano, E. 2005, pp. 83).

Beckenbauer (s/d, cit. por Lobo, 2002) salienta que para ele o Futebol não foi
trabalho, tendo-se diluído com a sua própria Vida.
Além dos relatos acima transcritos, parece-nos como forma de complemento
importante evidenciar, que o Futebol acompanha o processo ontogenético de
muitas pessoas. Repare-se que muitas pessoas, no dia do nascimento se
tornam, embora não de forma autodeterminada, sócias de clubes de Futebol,
alimentando e fortalecendo esse laço de afecto ao longo dos anos, ao ponto de
alguns, no dia em que são enterrados ostentarem símbolos dos seus clubes,
como por exemplo, bandeiras que são colocadas em volta do caixão. Há ainda
pessoas que perpetuam a sua ligação a clubes além do período de Vida,
exemplo disso, são os adeptos do Boca Juniores, um clube que tem um
cemitério próprio para os seus adeptos.
Uma vez que nos encontramos a abordar um tema tão complexo, a Vida,
importa tecer algumas considerações prévias pertinentes. Assim, “a vida é, não
uma substância, mas um fenómeno de auto-eco-organização
extraordinariamente complexo que produz autonomia” (Morin, 2003, pp. 21) o
que lhe confere, segundo este autor, a necessidade de uma abordagem que
não dissolva nem oculte a “complexidade antropossocial”.
A utilização da palavra Vida, não deve fazer-se de uma forma banal, devendo
mesmo ser por vezes evitada, pois de acordo com Laborit (1987, pp. 135), “não
se sabe onde ela começa e onde ela acaba, e porque nos arriscamos a fazer
dela uma qualidade esotérica”. Trata-se de uma advertência, que devemos

108
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

considerar nesta abordagem, e que nos alerta também para algo que nos
parece fundamental, ou seja, para a compreensão das múltiplas conexões que
esta estabelece, é que “não se sabe onde ela acaba e onde ela começa”. Não
obstante, como tentaremos evidenciar independentemente de qual o seu
princípio e fim o seu percurso pode, e geralmente é uma inevitabilidade, passar
também pelo Futebol, daí que este se possa apresentar como uma dimensão
das duas faces da moeda da Vida.
Segundo Jacquard (1995, pp. 11) “a palavra «vida» não define uma
propriedade específica reservada a certos objectos, exprime o nosso
deslumbramento diante dos poderes dos objectos hipercomplexos” o que ajuda
a perceber as relações que a Vida pode ter com o Futebol, um objecto
“hipercomplexo”, que como salientamos, não deixa ninguém indiferente,
apresentando por isso um poder de deslumbramento enorme, o qual se
observa desde idades muito precoces. Este fascínio pode explicar-se pelo facto
do Desporto não ser apenas um complemento da Vida, mas sim, um fenómeno
“essencial das propriedades da existência”, capaz de revelar existência
Humana e de permitir aceder à realização da existência pessoal (Lenk, 1989).
O Futebol remete-nos na sua essência para uma relação com a Vida, sendo
pela própria Vida que os adeptos se deslocam aos estádios (J. O. Bento,
2004). Ideia reforçada por Alegre (2006) que evidencia a existência de uma
relação muito próxima entre a Vida e o Futebol, um epifenómeno que a
acompanha. Considerámo-lo deste modo, por estar subjacente e coexistir com
o fenómeno mor, a Vida.
Lourenço & Ilharco (2007), referindo-se à relação entre Futebol e Vida
salientam, a importância de na operacionalização de uma determinada forma
de jogar, os treinadores não poderem ignorar “o homem todo”, realçando ainda,
a necessidade de não haver separação entre Vida profissional e social dos
intervenientes no processo. Verifica-se assim, que não existem fronteiras entre
Vida e Futebol, sendo deste modo, duas realidades que coexistem. Note-se
que o conceito de fronteira, não se coaduna com a perspectiva ecológica que
aqui desejamos desenvolver. Numa abordagem aos sistemas complexos, o
recurso a este tipo de terminologia é, inadequado. Capra (1996) refere a este

109
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

respeito, que aquilo que se pode observar é uma engendração entre sistemas
mais ou menos complexos, obedecendo a uma hierarquia em forma de
pirâmides, pois como salienta, na Natureza não existe “acima ou abaixo”, nem
hierarquias, o que existe são redes “aninhadas” dentro de outras redes. De
acordo com Lohrey (2004), as ordens hierárquicas não devem ser confundidas
com as redes de relações, uma vez que nas redes, nenhuma parte é mais
fundamental que as restantes.
Uma opinião muito semelhante é apresentada por Laborit (1987, pp. 87)
quando afirma que “há muito tempo que insistimos sobre o facto de que a
palavra «hierarquia» não convinha para descrever essa noção. Não podemos
evitar – é essa a nossa linguagem – atribuir a essa palavra um juízo de valor,
quando afinal não pode haver juízo de valor na natureza do «superior» e do
«inferior».” Existe deste modo uma sinergia, uma “deshierarquia, no sentido
que não há, que não é uma anarquia, mas é uma deshierarquia” (Paulo Cunha
e Silva, Anexo 4).
Estas opiniões contrapõem-se, deste modo à existência de “hierarquias”,
procurando abolir a concepção rígida de “fronteira”, evidenciando assim um
pensamento ecológico, no qual a noção de hierarquias dá, lugar à noção de
redes (Capra, 1996). “E assim, cada organismo representa o Universo e cada
porção do Universo representa, de certo modo, os organismos que estão no
interior.” (Laborit, 1987, pp. 86).
Das múltiplas conexões que a Vida e o Futebol estabelecem, podemos ainda
destacar o facto, de partilharem das três grandes questões que se colocam à
Humanidade. Tal como na Vida, também no Futebol, para melhor sistematizar
o processo de exponenciação de Talentos e de jogares, devemos questionar
sobre, “Quem somos?... Onde estamos? (…) Onde podemos vir a estar?”; com
a particularidade de no Futebol existir ainda uma outra grande inquietação, “a
mãe de todas” que é a interrogação que todos colocam, mas nem sempre o
fazem na Vida, “ganharemos?” (J. Valdano, 1998).
O Futebol pode ainda espelhar e funcionar como meio de divulgação dos
ideais de Vida dos seus protagonistas, segundo Menotti (s/d cit. por Lobo,

110
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

2002, pp. 176), “através da maneira como faço jogar as minhas equipas eu falo
da sociedade em que gostaria de viver”.
De acordo com Arendt (2001) mais importante que a imortalidade da Vida é o
facto desta ser um “bem supremo”. Opinião de que partilhamos, daí que em
nosso entendimento, só possa “haver compromisso com o futebol se antes
existir um compromisso com a vida” (J. Valdano 1998, pp. 166). Por esse
motivo, poderão ser exageradas as palavras com que abrimos este ponto, “o
futebol não é um caso de vida ou de morte, é muito mais que isso”. Não
obstante, se a Vida é um bem supremo, o Futebol foi, é e será, pelo menos
para alguns, um meio supremo para o alcançar, o que confere per si um mérito
bastante relevante, e simultaneamente uma responsabilidade acrescida
àqueles que nele intervém, e de modo especial, para aqueles que o dão a
conhecer às Crianças, através dos processos de Formação. Uma Formação,
que como tal não se pode cingir ao ensinar a jogar, contemplando também, o
ensinar a viver.
Dalai-Lama (2006) salienta algo que qualquer treinador deve ter em
consideração, quando refere que entre os princípios éticos fundamentais e
universais podemos encontrar o “reconhecimento da preciosidade da vida”.
Uma vez que, “sempre que olhamos para a vida, olhamos para redes” (Capra,
1996, pp. 78), o que importa reter é que o respeito pela Vida passa também
pelo respeito pelo Futebol e vice-versa.
“Ora eu creio que no desporto e num simples jogo de futebol mora todo um
mundo maravilhoso de expressões e cores da vida.” (J. Bento 2004, pp. 30).

4.4 – Futebol e o encontro com a Humanidade:

“Um desportista de alto rendimento pode ser considerado um recurso humano, mas perde-se a
noção de que é um ser humano com recursos”
(Serpa, 2007, pp. 388).

O Futebol enquanto Fenómeno AntropoSocialTotal, tal como o consideramos,


apresenta-se como um espaço privilegiado para o Homem se encontrar,
permitindo assim que “o gado humano” se identifique, se encontre e registe o

111
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

“selo de humanidade em cada indivíduo, para que seja pessoa” (J. Bento,
2004, pp. 68).
Marinho (2007, pp. 244) salienta que “nós, eternos devotos da paideia
desportiva, caminhamos de mãos dadas com o desporto, contribuindo para a
construção do ser-se humano de um modo mais íntegro e atingindo um estágio
mais probo.” O Desporto é deste modo, “o artefacto por excelência, criado pela
nossa civilização, para corresponder ao desejo de instituir o corpo como palco
de socialização em princípios e valores que elevam a pessoa e a vida” (Bento
2006, pp. 9). Lourenço & Ilharco (2007, pp. 252), partilham de tal ideia, ao
sugerirem que o Futebol pode ser entendido “como parte do processo
civilizacional”, capaz de transformar “instintos primitivos num acto competitivo
socialmente aceitável”.
J. O. Bento (2004) considera os estádios de Futebol, como um dos poucos
locais que no mercado quotidiano em que vivemos, nos proporcionam um
encontro simples com a nossa Humanidade, debilidade e humildade.
Depreendendo-se deste modo, que se trata de um potente meio para que cada
um se encontre e se situe no Mundo. J. A. Santos (2004, pp. 224) reforçando
esta ideia, salienta que o Futebol é um espaço, em que “o homem, qualquer
que seja a sua condição, encontra-se a si próprio encontrando o outro.
Descobre-se, descobrindo o outro”. Este efeito congregador é, quanto a nós,
uma virtude fantástica, sobretudo nos nossos tempos. Deste modo, o Futebol e
o Desporto de uma forma geral, podem ser considerados como espaços que
proporcionam um “encontro simples com a nossa humanidade” (Bento, 2004,
pp. 200). Mas, o Futebol pode funcionar como mais do que um lugar de
encontro com a Humanidade, podendo também ser fundamental para a
construção da própria Humanidade em cada pessoa, como mais adiante, e
com mais pormenor evidenciaremos, tornando ainda mais relevante a
problemática da Formação de Jogadores. O Futebol apresenta de facto muitas
valências em termos formativos de tal forma que Tenreiro (2007, pp. 103),
realça que o investimento no Desporto é, “um investimento em capital humano
de altíssima qualidade e que o retorno de cada euro investido é muito elevado.”
No entanto, não podemos ignorar que estamos a tratar de um investimento,

112
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

que implica o Homem, daí que seja importante advertir para a perniciosidade
que tal pode representar. “Um desportista de alto rendimento pode ser
considerado um recurso humano, mas perde-se a noção de que é um ser
humano com recursos” (Serpa, 2007, pp. 388).
Face ao exposto, consideramos que o Futebol é, um Fenómeno
AntropoSocialTotal que nos permite, “realizar a epopeia de vestir com roupa e
próteses humanas o macaco nu, de que nos fala o livro de Desmond Morris” (J.
Bento, 2004, pp. 43), sendo para tal necessário o respeito por quem o pratica,
o Homem, e no caso da Formação, o Homem com particularidades especiais, a
Criança, “o melhor do Mundo” (Pessoa, s/d).
“Não esqueçamos que o segredo do homem é a sua própria infância.” (J.
Bento, 2004, pp. 111).

4.5 – Homem e Futebol a “Inteireza Inquebrantável” como um traço


comum:

“Muito embora muitas vezes pareça que estão divorciados, a mente e o corpo andam sempre
juntos na nossa vida (…) Para marcar um golo nem o corpo basta, nem o espírito chega; ambos
são necessários em igual medida em pé de igualdade e em perfeita harmonia.”
(Bento, 2007, pp. 25).

Para uma compreensão ajustada do Homem, e por inerência também do


Futebol, uma vez que o Universo é um todo unificado (Capra, 2005) temos de
entender tais realidades, como partes integrantes de um todo maior, capazes
de revelarem nas suas especificidades essa macrodimensão. Não obstante, o
reconhecimento da necessidade de tal entendimento, o que se verificou
durante muitos anos, nas abordagens à generalidade dos fenómenos, e o
Futebol uma vez mais não foi excepção, foi que tais abordagens foram
profundamente influenciadas por um paradigma científico, imbuído de uma
lógica incapaz de reconhecer a importância da não separabilidade, tal como
evidenciamos anteriormente. Deste modo, o entendimento do Homem e do
Corpo permaneceu, durante muito tempo, objectivado por uma “inteligência
cega”, caracterizada por destruir os conjuntos e as totalidades isolando os
objectos daquilo que os envolve (Morin, 2003). De acordo com Paulo Cunha e

113
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Silva (Anexo 4), “precisamos de partir, dividir, separar. Só partindo, dividindo,


separando é que nos conseguimos organizar”, pois como adverte, ainda
receamos o confronto com o todo.
Esta cegueira foi, pelo que pudemos verificar, fortemente fomentada pela
interpretação efectuada, à posteriori, das ideias preconizadas por Renè
Descartes.
Lourenço & Ilharco (2007, pp. 50), advertem que “o pensamento científico
que dominou o século XX encontra o seu fundamento, primeiro, em René
Descartes (1596-1650).” Acrescentando que este se funda, num “modelo de
pensamento reducionista, ou seja, num esquema que preconiza o estudo do
fenómeno em causa através da sua separação e divisão em partes para, a
partir de um entendimento detalhado dessas mesmas partes e da sua posterior
junção, se tentar, então, explicar o todo. O todo, por isso, é um resultado da
soma das partes; é o resultado da soma das partes”. Importa a este respeito
salientar que a complexidade dos fenómenos advém, do todo se encontrar na
parte, que está no todo (Morin, 2003), e das relações entre as partes serem
mais importantes, que a soma das partes (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).
Deste modo se depreende, que o pensamento reducionista, denunciado por
Lourenço & Ilharco (2007), não se coaduna com o “princípio hologramático”. De
acordo com Morin (2003, pp. 109) o “princípio hologramático”, implica
reconhecer, que não é apenas a parte que se encontra no todo, mas também o
todo que está na parte, sendo ainda de realçar, que este princípio se encontra
“presente no mundo biológico e no mundo sociológico”. Deste modo, o princípio
hologramático, ao enfatizar a importância das relações entre as partes,
ultrapassa o reducionismo, caracterizado por só ver as partes, mas também o
holismo «balofo», que apenas vê o todo.
Julgamos contudo, que neste ponto se torna pertinente advertir, para o facto
de considerarmos que o paradigma cartesiano não deve ser crucificado, nem
servir de bode expiratório para tudo que de menos bom acontece, e se tem
feito em Ciência. Sendo assim pertinente, contextualizar a época em que tais
conhecimentos emergiram, e também o impacto enorme que tiveram. Na
época, permitiram aceder a um conjunto de conhecimentos revolucionários,

114
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

contudo, no ponto em que nos encontramos, esta concepção revela-se


esgotada, insuficiente e ultrapassada. Esta é uma posição defendida por Capra
(2005, pp. 53), que refere que “o método de pensamento de Descartes e a sua
concepção da natureza influenciaram todos os ramos da ciência moderna e
podem ainda ser úteis”, no entanto, efectua um reparo muito pertinente, ao
acrescentar que só serão úteis se as suas limitações forem reconhecidas.
Lourenço & Ilharco (2007), denunciam as limitações do cartesianismo, tomando
como exemplo paradigmático, o projecto científico do mapeamento do genoma
Humano, consensualmente aceite como um dos mais avançados
empreendimentos da ciência contemporânea, e que se revela capaz de ilustrar
de forma interessante, tais limitações. Assim, o projecto do genoma humano,
também vulgarmente designado do “segredo da vida”, representa a metáfora
perfeita das limitações do cartesianismo, uma vez que este, não atendendo a
que o segredo se encontra nas conexões, e nos padrões de organização do
todo, apresentava-se à partida, capaz de conhecer o Homem a partir das suas
partes, no caso os genes. O que se revelou uma ficção, pois apesar dos
animais de uma mesma espécie serem geneticamente iguais, o que se
observa, como evidenciaremos mais adiante, é que é a diversidade que nos
caracteriza. Uma diversidade que tem por base, a forma como os genes, se
expressam, ou seja, a sua qualidade.
Queremos salientar, que o problema não reside nas ideias de Descartes, mas
sim no uso irreflectido, que posteriormente se fez destas, e que nos
conduziram à situação actual, que implica uma “ruptura epistemológica” (Kuhn,
1962, cit. por Capra, 1996) que implica uma “mudança de paradigma”, já
encetada em algumas áreas do conhecimento, devido ao reconhecimento e ou
constatação das limitações do reducionismo, uma tendência que, deverá
alargar-se às restantes Ciências (Capra, 1996, 2005). Com base neste
pressuposto, também as Ciências do Desporto deverão encetar esta ruptura
epistemológica (Sobral, 1995). Tarefa que contudo, não se afigura muito fácil,
visto que o peso do reducionismo, leva a uma enorme inércia, que se faz sentir
de forma muito marcada ainda na actualidade. “Temos medo do todo, ficamos
inibidos com a fragrância do todo, com a complexidade do todo, com a forma

115
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

como o todo se apresenta à nossa frente. Por isso temos necessidade de o


cortar aos pedacinhos para ver se o entendemos. O problema é que se
cortarmos o todo, mutilamos o todo. Como sabemos, a relação entre as partes
é mais importantes que a soma das partes.” (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).
Além do reducionismo, outra ideia que emergiu, e posteriormente se
perpetuou, a partir da interpretação das ideias de Descartes foi, a de dualismo
entre mente e matéria, que se repercutiu entre outros aspectos, num
desajustado entendimento do Corpo.
Para Descartes a concepção de Natureza baseava-se numa divisão entre
dois domínios separados e independentes, a res extensa, correspondente à
matéria e a res cogitans, correspondente ao domínio da mente (Damásio,
2003a). Segundo Descartes (s/d cit. por Capra, 2005 pp. 55), “não há nada no
conceito de corpo que pertença à mente, e nada na ideia de mente que
pertença ao corpo”. Segundo Lourenço & Ilharco (2007, pp. 86), “para o
dualismo antropológico cartesiano, o corpo é apenas físico. Com o cogito, ergo
sum separou-se (…) corpo e mente, atribuindo-se assim ao corpo a dimensão
de «coisa» (…) Na mente residiria a essência da natureza humana; no corpo, a
instrumentalidade mensurável daquilo que somos na aparência.” Algo que é
igualmente explicitado por outros autores (Capra, 2005; Changeux, 2003;
Damásio, 2003a; Ganascia, 1999; Lohrey, 2004), que suportam igualmente, a
necessidade de abandonar tal concepção. Deste modo, são vários os autores
que refutam o dualismo cartesiano, por exemplo Changeux (2003), afirma de
forma inequívoca que “não há dualismo”. Opinião partilhada por Damásio
(2003a, pp. 110) que se refere, àquilo a que foi designado por Daniel Dennet
de “teatro cartesiano”, como “uma intuição falsa” em Neurociência. Verificamos
ao longo da nossa pesquisa, que inúmeros autores (Amoroso, 2004;
Changeux, 2003; Damásio, 2003a, 2003b, 2004; Drãgãnescu & Kafatos, 2004;
H. Fonseca, 2006; Ganascia, 1999; Goleman, 2003, 2006; Lohrey, 2004; Nava,
2003; K. Pribram, 2004; P. C. e. Silva, 1999; Varela, et. al, 2001) sugerem a
necessidade, para um melhor entendimento da funcionalidade orquestrada do

116
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Corpo7, de uma concepção fenomenológica do mesmo, consubstanciada pela


interacção entre o corpo-propriamente-dito (Damásio, 2003a) cérebro, mente e
meio.
Julgamos, que urge deste modo uma reformulação de entendimento do
Corpo, uma vez que, “somos sistemas interactivos ressonantes e harmónicos,
com esta totalidade auto-organizada indivisível (…) temos de compreender que
somos um com o todo, e não uma parte dele” (Biase, Schweitzer, & Rocha,
2004, pp. 263).
A necessidade de reformular a concepção de Corpo, que durante anos
vigorou é reforçada por Damásio (2004, pp. 215), o qual salienta, que “para
chegar a uma solução (…) é necessário mudar a perspectiva. E para mudar a
perspectiva é necessário compreender que a mente emerge num cérebro
situado dentro de um corpo-propriamente-dito, com o qual interage; que a
mente prevaleceu na evolução porque tem ajudado o corpo-propriamente-dito;
e de que a mente emerge em tecido biológico (…) duvido que se encontre
solução se não mudarmos de perspectiva.”
Para P. C. e Silva (2007, pp. 357) “o novo corpo ultrapassou a cisura
cartesiana. Entre corpo e espírito já não há mais essa fenda que Descartes
construí laboriosamente e que, apesar de tudo, foi central para o aparecimento
da medicina moderna.” Uma opinião partilhada por Dalai-Lama (2006), que
reforça a ideia de que mente e matéria são realidades “co-dependentes”, ou
seja, “o espaço psíquico e o corporal se entrelaçam sem fronteiras.” (Nava,
2003, pp. 37). Ideia suportada por Capra (2005, pp. 338) que salienta que “o
corpo, como um todo, é um reflexo da psique” acrescentando ainda, que “o
trabalho com o corpo mudará a psique e vice-versa.” O que como
evidenciaremos mais adiante se assume como preponderante, no processo de
Formação de jovens Jogadores. A este respeito, repare-se no que sugere

7
Corpo: ao longo desta dissertação, a palavra corpo, será escrita com a primeira letra em
maiúsculas, para evidenciar a noção de um Corpo íntegro, ou seja, como um todo, composto
pelo corpo-propriamente-dito, cérebro e mente, e as relações entre estas partes. Pretendemos
deste modo, distingui-lo do vulgar entendimento de corpo, “couraça óssea e muscular” (J.
Bento, 2004), ou seja, do corpo-propriamente-dito (Damásio, 2003a).

117
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Malson (1988, p.212), quando salienta que “é a conexão intima que une o
homem físico ao homem intelectual (…) tudo se confunde nos limites em que
se entrechocam estas duas ordens de funções”, acrescentando que “o seu
desenvolvimento processa-se de modo simultâneo e sujeito a recíproca
influência”. Corroborando deste modo, o que sugerimos.
O Corpo apresenta-se como uma realidade bastante complexa, que pode ser
mesmo definida, como “a materialização da complexidade humana” (Sérgio,
2003, pp. 182).
“Muito embora muitas vezes pareça que estão divorciados, a mente e o corpo
andam sempre juntos na nossa vida, mesmo que pouco sintonizados na acção.
No entanto o desporto proporciona situações em que eles ficam num estado de
total e inigualável imbricação, intimidade e cumplicidade. No desporto,
enquanto manifestação de humanidade, o diálogo entre a mente e o corpo é de
tal ordem que um não consegue subjugar o outro. Para marcar um golo nem o
corpo basta, nem o espírito chega; ambos são necessários em igual medida
em pé de igualdade e em perfeita harmonia. No desporto ambos se misturam
para revelar e celebrar a maravilha exaltante da humana competência” (Bento,
2007, pp. 25).
Segundo, P. C. e Silva (1999, pp. 26) o Corpo deve ser entendido a partir de
um “lugar fractal”, ou seja, “um lugar que o reconheça no pormenor, mas que o
identifique no todo”. O Homem é um fractal do que vive, e reflecte o modo,
como se inscreve no que o envolve (Marisa Gomes Anexo 5). É neste lugar
fractal, o lugar do Corpo, que todas as disciplinas se encontram para o tentar
compreender, motivo pelo qual se torna possível, a partir deste lugar, entender
melhor todas as disciplinas, este Corpo, no sentido Humano é, um óptimo local
de observação (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).
Julgamos assim, que o Homem e o Corpo que Jogam devem ser
considerados como “inteirezas inquebrantáveis”8 (Amieiro, 2005). A
utilização deste conceito tem subjacente e vai de encontro, a ideias

8
Inteireza inquebrantável: o entendimento e respeito por este conceito é determinante para a
operacionalização aquisitiva da Organização Colectiva de um determinado jogar, de acordo
com o modo, como entendemos que o treino deve ser perspectivado.

118
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

provenientes da Física Quântica, preconizadas pelo emergir do pensamento


sistémico, advogando que um dos princípios para entender os fenómenos, é o
“Princípio da não-separabilidade”, da “não-localização” das propriedades de
cada partícula. Ajudando assim a perceber porque motivo, Homem e Futebol
se encontram incrivelmente conectados.
Uma vez que, como “o corpo é um grande desconhecido porque a sala das
máquinas está na cabeça (embora nem tudo se resolva a este nível) e todavia
a ciência não soube chegar até ao fundo” (J. Valdano, 1998, pp. 93), a
interpretação feita das ideias de Descartes, assim como a perpetuação das
mesmas, levou a que em torno do Homem e do Corpo, fosse criado um
paradigma reducionista, desajustado, que se repercutiu no Futebol a diferentes
níveis (Gaiteiro, 2006; Lopes, 2007; B. Oliveira et al., 2006; J. G. Oliveira, 2004;
Resende, 2002; Sobral, 1995). Em relação a este entendimento, que perdurou
durante vários anos, importa realçar que o Corpo, que ainda padece de um
entendimento ajustado e generalizado, é um elemento de charneira do
Desporto em geral, e como é óbvio, do Futebol. O que torna, mais
compreensível a percepção dos motivos subjacentes às manifestações de
reducionismo e de dualismo observadas no Futebol.
No entanto, como já salientamos o Futebol permite que o Homem se
encontre, um encontro que apenas se torna possível, se entendermos o
Homem enquanto “inteireza inquebrantável”.
“É, pois, inquestionável que o desporto é um dos instrumentos de fabricação
do Homem, de criação de seu corpo e, por via deste, da sua alma” (Bento,
2007, pp. 25), o que reforça a ideia já por nós apresentada de que o corpo-
propriamente-dito, não é uma realidade descontextualizada e isolada. Em
conformidade com o autor anterior, encontra-se A. d. S. Costa (2006, pp. 66) o
qual salienta que “o Desporto é um fenómeno que implica um engajamento
total daqueles que o praticam”. Deste modo, todo os intervenientes no
Desporto devem tomar consciência, que ao se ocuparem do Corpo, têm de
estar atentos ao “Homem-Todo” (J. Bento, 2004).
O Futebol, tal como o Homem é globalidade (José Mourinho, s/d, in B.
Oliveira et al., 2006), o que tem implicações muito pertinentes para o

119
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

entendimento que se tem do Jogo, do treino, da Formação e de uma forma


geral do fenómeno Futebol.
Desde logo, partindo de tal pressuposto se depreende a necessidade de
desmontar ou «(Des) Frankensteinizar» (Amieiro, 2005) alguns “mitos” (B.
Oliveira et al., 2006) existentes no Futebol, nomeadamente, a este respeito, o
“mito das capacidades condicionais”, e o “mito do treino individualizado”.
Relativamente ao “mito das capacidades condicionais”, consideramos, que
sendo o Homem uma realidade multidisciplinar e indissociável, não faz sentido
aplicar uma lógica reducionista que separa, segundo uma lógica simplista e por
isso mutiladora (Morin, 2003), um determinado jogar em pseudo-factores. O
jogar de uma equipa, ou seja, a SupraDimensão Táctica9 (B. Oliveira et al.,
2006; J. G. Oliveira, 2004; M. Silva, 2008), assume-se deste modo como uma
SupraInteireza, Específica, que a distingue dos restantes jogares, e cuja
identidade, resulta da conexão estabelecida pelas restantes dimensões que a
compõem. De acordo, com V. Frade (1998), “o táctico não é físico, técnico,
psicológico, nem estratégico, mas precisa dos quatro para se manifestar.”
Todas estas dimensões são deste modo, inseparáveis (Lourenço & Ilharco,
2007), sendo das conexões que estabelecem que resulta a identidade do todo,
ou seja, da SupraInteireza, que é o jogar da equipa, ou seja, a Táctica.
Partindo, do pressuposto de que tal como o Homem, também o Futebol é
“globalidade”, parece-nos pertinente tecer algumas considerações, que nos
podem ajudar a desmistificar, o “mito do treino individualizado”.
“Tudo isto é complexidade e o homem é um todo complexo no seu contexto,
por isso trabalhar qualidades individualizadas e / ou descontextualizadas da

9
SupraDimesão Táctica: o entendimento de Táctica, tal como nos foi sugerido por Marisa
Gomes (Anexo, 5) reporta-se a uma determinada Cultura, “uma variabilidade cultural” que
comporta uma determinada qualidade de jogo, a qual se relaciona, com o padrão de
interacções expresso pelos Jogadores que dão Vida a um determinado jogar. Motivo pelo qual
deverá ter um entendimento plural. Apresentámos esta dimensão, como SupraDimensão, por
entendermos que é esta que se deve assumir, como o referencial balizador de todo o processo,
ou seja, é a partir de um determinado Táctico, que todas as restantes dimensões emergem, e
devem ser operacionalizadas.

120
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

complexidade do jogo é, para mim, um erro grave” (José Mourinho, s/d in


Lourenço & Ilharco, 2007, pp. 47).
Sendo o Futebol uma “inteireza inquebrantável”, caracterizada pela
interacção dos seus elementos constituintes (Jogadores), e sendo o
desempenho expresso pelo padrão resultante dessa interacção, motivo pelo
qual é considerado um Jogo Desportivo Colectivo, (Graça & Oliveira, 1998;
Lopes, 2007; J. G. Oliveira, 2004; Tavares, 1998), julgamos não fazer sentido,
a realização de treinos individualizados. Consideramos difícil, entender a
evolução de um Jogador, à margem da evolução da equipa (José Mourinho,
s/d, in B. Oliveira et al., 2006). Deste modo, sugerimos que a dinâmica
evolutiva inerente ao processo de treino, deverá fazer-se de acordo com uma
CoRelação AutoHetero, capaz de respeitar o “princípio hologramático” (Morin,
2003). Assim, deverá ser Auto, no sentido de permitir fazer evoluir a parte
(Jogadores), e Hetero, no sentido de permitir fazer evoluir o todo (jogar da
equipa), consubstanciando-se esta evolução, através da evolução das relações
entre as partes. “Ou seja, o indivíduo progride, mas submetido a uma lógica
que tem a ver também com a coexistência e crescimento dos outros, num
registo comum no que se refere à concepção de jogo (e de treino). Daí (co)” (B.
Oliveira et al., 2006, pp. 154).
Por tudo o que foi referido, importa reter como sugerem Drãgãnescu &
Kafatos (2004) que as realidades por formarem “um todo indivisível”, para
serem devidamente compreendidas requisitam a exploração da “estrutura
básica dessa realidade subjacente.” No caso do Futebol, a sua radicalidade
advém de um correcto entendimento da sua inteireza inquebrantável, e da
aceitação da Táctica como Supradimensão.

121
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

4.6 - Homem e Futebol Realidades Plurais, a importância do Culto da


Diferença e da expressão plural da Antropodiversidade:

“O futebol é uma linguagem universal com vários dialectos corporais. Existem mais de mil
maneiras de ganhar ou perder um jogo. A mais educativa é aquela que respeita o talento. A mais
cruel é a que ignora as boas ideias”
(Lobo, 2007, pp. 7).

Através de um olhar atento da realidade subjacente à totalidade dos


fenómenos deparamo-nos com a constatação, de que a diversidade se
encontra generalizada. De facto “o mais bonito da vida é, exactamente, a
diversidade” uma vez que não existem dois seres vivos perfeitamente idênticos
(Coutinho, 2005).
De acordo com Morin (2003, pp. 94), “as ciências biológicas dizem-nos que a
espécie não é um quadro geral no qual nascem indivíduos singulares, a
espécie é ela própria um parttern singular muito preciso, um produtor de
singularidades. Além disso, os indivíduos de uma mesma espécie são muito
diferentes uns dos outros.” Perante tais constatações, foi criado o conceito de
Biodiversidade, preconizado por E. Wilson (1985), que contudo o apresentou
com a designação de “diversidade biológica”. O termo “biodiversidade”, surgiu
em 1986, tendo sido introduzido por Robert MacArthur (E. O. Wilson, 2007).
De acordo com Barbault (2007) a Biodiversidade é determinante para a
evolução dos seres vivos, uma opinião igualmente defendida por outros autores
(Capra, 2005; Dalai-Lama, 2006), que realçam igualmente, o facto da
diversidade ser fundamental para a adaptabilidade10 dos seres ao
envolvimento e às suas alterações. Este facto, pode quanto a nós ajudar a
perceber o quanto é, desde idades precoces, determinante para o Futebol a

10
Adaptabilidade: capacidade de adaptação a novos envolvimentos, não definidos à partida
(V. Frade, 1979). Procuramos com este termo, uma alternativa àquilo que geralmente se
entende no treino por adaptação, um conceito desajustado, sendo por norma, utilizado como
não comportando a flexibilidade devida, e que como tal, não se coaduna com a realidade dos
fenómenos complexos. Adaptação é um conceito do qual nos servimos para conceber a
realidade, mas que se encontra contudo, mutilado, conduzindo desse modo a acções
mutiladoras (V. Frade, 1979).

122
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

contemplação da diversidade do mundo vivo, uma vez que, é através desta,


que a adaptabilidade se torna possível. Deste modo, para que os processos de
treino e de Formação promovam o desenvolvimento dos Jogadores, importa
não ignorar a diversidade que caracteriza a Natureza. Facto que se revela
particularmente pertinente na Formação, pois como mais adiante
salientaremos, nem sempre a Antropodiversidade se encontra contemplada,
em detrimento de determinados perfis.
Percebe-se ainda, com base em Barbault (2007) o quanto é determinante a
diversidade, para a adaptabilidade dos Jogadores às constantes alterações
contextuais que caracterizam o Jogo (Graça & Oliveira, 1998; Lopes, 2007; J.
G. Oliveira, 2004; Tavares, 1998). Uma adaptabilidade que apenas se torna
possível, se os sistemas conseguirem sobreviver numa determinada franja que
lhes permita lidar convenientemente com as permanentes alterações a que
tanto o próprio como tudo o que o envolve, se encontram sujeitos (Paulo Cunha
e Silva, Anexo 4).
Segundo E. O. Wilson (2007), podemos de um modo simples definir
Biodiversidade como sendo, a diversidade observada em todas as formas
vivas, acrescentando contudo, que “para um cientista”, consiste em toda a
variedade de seres vivos estudada em três níveis; a nível dos ecossistemas; a
nível das espécies que compõem os ecossistemas; e a nível dos genes de
cada espécie.
“A essência da complexidade é a impossibilidade de homogeneizar e de
reduzir: é a questão da unitas multiplex” (Morin, 2003, pp. 155), daí que faça
sentido, tomar os fenómenos complexos, como realidades plurais,
caracterizadas pela “impossibilidade de homogeneizar”, reforçando-se assim, a
necessidade de abandono das lógicas reducionistas, as quais anulam a
diversidade. De acordo com Arendt (2001) a pluralidade é a “lei da Terra”, tal
como demonstra Jones (2006) socorrendo-se de exemplos diversos do reino
animal, uma pluralidade que se verifica desde a origem do planeta (Reeves et
al., 2006).
Para Laborit (1987, pp. 113) “o espaço e o tempo em que vivemos deixaria de
existir se fossem ao encontro da singularidade.” Uma advertência

123
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

particularmente pertinente nos nossos dias, caracterizados pelo enorme


desafio que atravessa o mundo vivo, a destruição dos ambientes naturais, está
a culminar numa destruição massiva dos seres vivos (E. O. Wilson, 2007). Tem
se observado, uma destruição planetária da Biodiversidade (Quintanilha, 2005).
O despertar das consciências Humanas para esta realidade é determinante,
uma vez que, contrariamente ao sucedido em outras eras em que se
verificaram destruições massivas, na actualidade, a principal ameaça não são
catástrofes naturais, mas sim, uma única espécie, o Homem (E. O. Wilson,
2007). Parece-nos pertinente, estabelecer uma analogia para com o Futebol.
Salientamos já, que o contexto em que os jovens se iniciavam no Futebol,
fazendo-o de forma natural e espontânea, o Futebol de Rua se está a eclipsar.
Deste modo, tendo por base o que foi referido, o Homem deverá ter o cuidado
de preservar, ou dada a impossibilidade já explicitada, tentar recriar o mais
fielmente possível, os ambientes naturais em que os jovens se iniciavam no
Futebol, entendendo a diversidade como um elemento fundamental para a
expressão qualitativa do fenómeno, e para a sua continuidade. Se o Futebol
renunciar à diversidade, ficará seriamente ameaçado de extinção, e da
destruição massiva de uma espécie já em extinção, os Talentos. Tudo por
acção da espécie Humana (E. O. Wilson, 2007), competindo assim aos
Homens do Futebol o reverter de tal tendência, o que na Formação passa pelo
não excluir de potenciais Talentos, com base em características morfológicas,
como mais adiante evidenciaremos, passando também, pela possibilidade de
dar a conhecer aos jovens, formas que contemplem na sua manifestação a
pluralidade. Sustentando a importância do treino, ao nível da contemplação da
diversidade e do desenvolvimento de Talentos, Coutinho (2005) realça que a
diversidade que contemplamos no planeta, se deve a aspectos genéticos,
epigenéticos, e ainda a aspectos relacionados com as vivências
experenciadas, salientando-se através deste último aspecto a importância do
treino.11

11
As questões relacionadas com os aspectos genéticos, epigenéticos e com as vivências dos
indivíduos, serão abordadas com mais pormenor posteriormente.

124
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

“Se os comportamentos se tornarem todos muito homogéneos, muito


sedentários, muito determinados pelas marcas, e se a globalização fizer com
que isto não só se passe na Europa e nos Estados Unidos, mas também na
Índia, China, Brasil e Rússia, é verdade que a miudagem vai ser formatada”
(Sobrinho Simões, Anexo 1).
No treino a diversidade deve estar presente, não somente através da
possibilidade de congregar num jogar, indivíduos diferentes, mas também
através dos estímulos que são proporcionados aquando da exercitação.
Somente deste modo, entendemos ser possível, contrariar a crescente
tendência para a homogeneização, que se tem observado no Futebol, e que
cada vez mais formata os jovens.
Sobrinho Simões (Anexo 1), salienta que apesar de se poder colocar a
hipótese, num caso extremo, da Antropodiversidade ser hipotecada, existem
actualmente forças no sentido da diversificação, nomeadamente o aumento da
esperança média de vida, e o recurso generalizado a meios como a Internet,
que como mais adiante evidenciaremos, poderão ser convenientemente
utilizados nos processo de Formação.
O Corpo é uma realidade complexa, um espaço fractal e um território plural, e
somente através de tal entendimento, nos é permitido ultrapassar o
“protocorpo”, desembocado por abordagens deterministas, e aceder a um
“metacorpo” (P. C. e. Silva, 1999). Este protocorpo é um Corpo em potencial,
um “corpo branco”, que urge ser pintado e Aculturado, com o intuito de se
tornar no tal metacorpo (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).
“Nada é tão óbvio como estarmos num mundo em que cada ser humano é
diferente, único e irrepetível” (Lourenço & Ilharco, 2007, pp. 57). Constatação
reforçada por Maia (2007, pp. 148) ao salientar que “quando um estudante de
Biologia Humana, Antropologia Física ou Ciências do Desporto lança o seu
olhar sobre qualquer característica humana observável e quantificável a
evidência maior é para a VARIAÇÃO”. Deste modo, a Antropodiversidade é
algo que caracteriza a espécie Humana, pois cada ser Humano além de uno é
também único (Lourenço & Ilharco, 2007). O Homem é uno, por ser “inteireza

125
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

inquebrantável”, e único, por com a sua autenticidade contribuir para a


pluralidade da espécie, Antopodiversidade.
“É fato evidente que atualmente o homem está sujeito a uma grande
variabilidade: dois indivíduos da mesma raça não são mais completamente
semelhantes e milhões de fisionomias, comparadas entre si, serão sempre
diferentes” (Darwin, 1974, pp. 39).
Alguns autores (Arsuaga, 2007; Changeux, 2003; Mendonza, 1998)
evidenciam, que a Antrpodiversidade se observa também a nível do cérebro,
salientando que neste órgão se observa uma grande variabilidade dentro da
espécie Humana, tanto entre indivíduos como entre diferentes populações.
Aspecto que mais adiante nesta dissertação será particularmente relevante.
Uma vez que, a pluralidade do planeta em geral, e do Homem são,
irrefutáveis importa ter em consideração para uma convivência harmoniosa, o
respeito por princípios de tolerância e pelo culto pela diferença. A. d. Silva,
(2002, pp. 108) salienta que a plenitude Humana alcançar-se-á, quando
“amarmos a diferença”, pois só desse modo, teremos acesso à “pluralidade
extraordinária” existente no Mundo. O culto da diferença é, determinante para
uma forma mais ajustada de viver (Capra, 2005; Taylor, 1998). Para Dalai-
Lama (2006) a diversidade da Humanidade, e tolerância que a deve
acompanhar são, “uma das maravilhas da vida”, indo assim, de encontro ao
sugerido pelos autores anteriores.
Importa contudo salientar, que numa era de globalização, que assume como
já explicitamos, uma influência enorme sobre a generalidade dos fenómenos,
ao ponto de tendermos para uma homogeneização generalizada, Smith &
Szathmáry (2007) alertam para algo, que nos parece muito pertinente. Para
estes autores, a Antropodiversidade manifesta-se não somente pela dimensão
Natura, mas também através da diversidade cultural, considerando
fundamental o respeito por tal diversidade, sendo que cada Cultura deverá
preservar os seus rituais, sob pena da Humanidade sofrer consequências
penosas. “Mas eu gostaria, que não ficasse com a ideia, de que entre Natura e
Cultura, há uma cisura. A Cultura é, uma extensão da Natura, ou seja, é a
Natura do Humano” (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).

126
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Também nós partilhamos da ideia de que a Antropodiversidade, encontra na


Cultura, uma forma de expressão sublime, e talvez esta nos ajude a perceber
as diferenças verificadas entre os cérebros Humanos de diferentes populações
(Mendonza, 1998). Julgamos ainda, que sendo o Homem um ser cultural,
embora, reconheçamos que esta possa não lhe ser exclusiva, consegue
através dos seus artefactos culturais, alguns dos quais altamente
desenvolvidos, demarcar a Antropodiversidade do seu âmbito mais geral, a
Biodiversidade. Para J. Bento (2004) a Cultura é, a mais relevante e genuína
parturiente do Homem.
Dunbar (2006) adverte que em torno do conceito de Cultura, existe alguma
controvérsia, decorrente do uso indiferenciado do mesmo, acrescentando
ainda, que convencionalmente os antropólogos, imbuídos daquilo a que
designa de “chauvinismo genérico da fraternidade antropológica” (Dunbar,
2006, pp. 140), refutam a ideia de que outros seres, que não Humanos, tenham
Cultura, para eles somente um Homem consegue expressar Cultura. Uma
posição em relação à qual, efectua algumas objecções, reconhecendo contudo,
que o Homem é, a única espécie que tem Cultura, “com um C muito maiúsculo”
(Dunbar, 2006, pp. 136) ou “Alta Cultura”, sugerindo ainda, que a Cultura é um
aspecto omnipresente, em todas as sociedades Humanas. O Homem
apresenta um “comportamento tecnológico consciente jamais conhecido em
qualquer espécie actual não humana.” (Arsuaga, 2007, pp. 64). Por esta razão
V. d. Fonseca (2007) apresenta o Homem como um ser “biocultural”, enquanto
que Reeves et al. (2006, pp. 129) sugerem, que a evolução presente da
Humanidade é, cultural, lembrando que “o homem saiu lentamente do mundo
animal, após uma luta contra a natureza, impondo a sua cultura contra o
determinismo inato.” Tal como também realça Paulo Cunha e Silva (Anexo 4).
Foi o processo de criação cultural, que permitiu o surgimento da Humanidade,
tendo sido a Cultura igualmente fundamental para a sobrevivência e ulterior
evolução (Capra, 2005), De facto, enquanto ser Cultural, o “Homo sapiens
transformou o mundo na certeza do seu domínio” (Jones, 2006, pp. 236), o que
como vimos, poderá ter repercussões muito dicotómicas no mundo vivo, desde

127
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

as mais perversas, às mais sublimes, as quais nos elevam e conferem


Humanidade.
Sendo o Desporto e o Futebol veículos de expressão cultural pode
depreender-se, que também estes se assumem como plurais, e enquanto
Fenómenos AntropoSociaisTotais, como espaços por excelência, de
Antropodiversidade.
J. Bento (2004) salienta que se encontra lançado às Ciências do Desporto um
grande desafio, uma vez que estas se deparam, com uma vasta panóplia de
perspectivas de crescimento e desenvolvimento, que requisitam a necessidade
destas se ajustarem às alterações ocorridas na paisagem desportiva, e como
tal atender à pluralidade que a caracterizam, uma ideia, que é igualmente
partilhada por Sérgio (2003). Deste modo, “o Desporto é, como se sabe, um
fenómeno polissémico e uma realidade polimórfica. Ou seja, ele alicerça-se
num entendimento plural e é, o conceito mais representativo, congregador,
sintetizador e unificador das dimensões biológicas, físicas, fisiológicas,
culturais, técnicas, tácticas, espirituais, psicológicas, antropológicas,
sociológicas, afectivas, entre muitas outras” (Bento, 2006, pp. 7). Em suma,
trata-se de um fenómeno que implica o “Homem-Todo” como vimos
anteriormente, e também Todos os Homens, e como tal, a pluralidade Humana.
O Desporto revela uma extraordinária forma de expressão, para a
Antropodiversidade se fazer cumprir (R. P. Garcia, 2006).
Entre Futebol e Homem, podemos como temos vindo a evidenciar, encontrar
muitas afinidades, desde logo, o facto de ambas serem duas realidades
planetárias, até porque o Homem vive em toda a parte do Mundo (Arsuaga,
2007). Face a esta premissa, sendo o Futebol um Fenómeno
AntropoSocialTotal, também ele se encontra espalhado pelo Mundo, tal como
já evidenciamos. Mas a pluralidade que se observa nestas duas realidades,
não se cinge à pluralidade geográfica. Podemos considerar que o Futebol é
inclusive, um espaço privilegiado, para a expressão da diversidade Humana, tal
como evidenciamos anteriormente a propósito de alguns exemplos de

128
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

miscigenação que se podem observar no Futebol. Segundo Lobo (2002, pp.


100) “para o futebol a miscigenação de raças12 é uma dádiva”.
De acordo com Barbault (2007) a Biodiversidade é o tecido vivo do planeta, e
como tal, o suporte de todas as actividades Humanas. Daqui se depreende,
que Biodiversidade, no caso, Antropodiversidade, é também no Futebol o
suporte deste Fenómeno AntropoSocialTotal, que através da
Antropodiversidade, encontra uma forma de enriquecimento e de alargamento
da sua pluralidade.
O Futebol tem muitos rostos, e nele cabem diferentes tipo de personagens
(Lobo, 2007), e isto é válido não somente para o que se passa no terreno de
jogo, mas também, em tudo o que o envolve, de tal forma, que os estádios se
apresentam como um espaço de encontro entre diferentes.
Murad (2007, pp. 248) indo de encontro ao que acabamos de referir afirma
que, “num século onde o mundo moderno fragmenta as identidades,
desterritorializa as pessoas, desgeografiza as pessoas é justo neste terreno,
que surge o FUTEBOL que tem um ethos de unidade dentro da
heterogeneidade e assim este desporto ganha essa dimensão.” Acrescentando
ainda que, “num mundo assim fragmentado, as pessoas podem ter uma
identidade única, pelo menos durante 90 minutos.” O que vai também de
encontro ao que foi já referido, por Lobo (2002) quando adverte, que apesar do
esbater das fronteiras, ainda é o peso histórico de cada nação que continua a
moldar os estilos das várias “nações futebolísticas”. Ou seja, o Futebol cumpre
a utopia de permitir que num mundo globalizado, e tendencialmente
homogeneizado, cada um descubra aquilo que o torna diferente e único,
mesmo que tal utopia não seja perene, e dure apenas “90 minutos”, no entanto,
parece-nos mesmo assim, um “impossível necessário” (J. Bento, 2004).

12
Importa salientar que em rigor, o facto da Humanidade ter como característica a
Antrpodiversidade, observada também a nível genético, leva a que na nossa espécie não
possamos distinguir, e como tal considerar a existência de diferentes raças, as quais são
consideradas, como um conjunto de indivíduos ou populações, que apresentam em comum,
uma parte significativa dos respectivos patrimónios genéticos (Jacquard, 1995).

129
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

O facto do Futebol permitir, que a pluralidade Humana se manifeste, e mais


que isso, permita que cada um experiencie através dele, diferentes papéis
pode levar, a que este fenómeno seja considerado como o Jogo “mais
generoso de todos” (J. Valdano, 1998). Em nosso entendimento, essa
generosidade, foi determinante para o Futebol se tornar, num fenómeno com
as dimensões que temos procurado evidenciar.
Toledo (2004, pp. 164) adverte “que a categoria do futebol-arte não deve ser
percebida como uma forma de representação homogénea”. Lobo (2002)
referindo-se ao Futebol espanhol salienta que as diferentes atmosferas
regionais, que caracterizam o país produziram um Futebol eclético, híbrido, em
que coexistiram, e continuam a coexistir, diferentes escolas, uma das quais a
cosmopolita escola castelhana, da qual resultou o “grande Real Madrid”
caracterizado por um estilo que, sendo temível carece de homogeneidade.
Também Johan Cruyff (1997) realça a importância da diversidade, e
Antropodiversidade no Futebol, ao tornar evidente que Talentos desde Pelé a
Maradona, todos eles são únicos e distintos dos demais, comprovando deste
modo, que existem muitas formas de estar no Futebol, e a Top. Na verdade é a
singularidade que distingue os Talentos (Marisa Gomes, Anexo 5). Valdano
(2002, pp. 175) reforça esta ideia, ao referir-se a Marco Van Basten e a Hugo
Sanchez da seguinte forma, “o dianteiro cordial e o feroz dianteiro, foram duas
formas opostas de ser especialistas. Dois 9. Duas maneiras antagónicas de
chegar ao mesmo golo e de servir o mesmo espectáculo.”
Ainda a este respeito, L. O. Costa (2007) salienta que Filippo Inzaghi é, o tipo
de Jogador que não era suposto resultar, mas que no entanto resulta, “é como
uma sande de geleia e manteiga de amendoim, é uma daquelas coisas que
não devia resultar, mas que resulta.” Na verdade, “não fomos ainda capazes de
prever o comportamento humano a partir de equações matemáticas” (Hawking,
2002, pp. 105).
Parece deste modo, que “na actividade humana não existem receitas
infalíveis nem modelos de sucesso; se assim fosse, todos fariam a mesma
coisa e nada se distinguia. A questão é que tudo no mundo é único, singular, e
está em permanente mudança” (Lourenço & Ilharco, 2007, pp. 305). Já neste

130
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

ponto explicitamos que a diversidade pode ser fundamental no Futebol, e


manifestar-se a diferentes níveis; pela adaptabilidade que confere aos
processos de treino, de Formação; à estrutura acontecimental do Jogo que é
em parte aleatória, e também porque permite que a Antropodiversidade se
expresse através da singularidade existente em cada Jogador, que contudo,
deve encontrar-se subordinada a uma lógica colectiva, da qual comungam os
diferente Eu’s que constituem a equipa.
O facto de cada Jogador ser diferente, permite que cada um forneça ao Jogo,
e a cada jogar, contributos diferenciados enriquecendo-os desse modo (Cruyff,
2002). Por permitir que Jogadores muito diferentes coexistam numa interacção
harmoniosa, Lobo (2007, pp. 33) salienta que uma equipa de Futebol é um
ecossistema capaz de congregar diferentes “espécies” de Jogadores,
acrescentando que é, pela “conciliação sábia” das suas diferenças que surge o
sucesso das equipas. “A equipa é uma colectividade feita de singularidades”,
ou seja, é um todo feito de partes que são fundamentais, e que constituem um
todo não homogéneo, mas sim, uma espécie de mosaico fluído, que como tal
apenas faz sentido enquanto “todo mutante”, e não como “todo cristalizado”
(Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).
Relembramos uma vez mais, que na viagem realizada pela bola de Futebol,
“cada país a recebeu, acariciou e tocou de forma diferente”. A diversidade no
Futebol é, deste modo fomentada por diferentes identidades e Culturas de Jogo
como salienta Amieiro (2005), ao destacar a possibilidade das equipas
poderem evidenciar padrões comportamentais muito distintos, no momento de
Organização Defensiva. Uma vez que, como já salientamos o Jogo é “inteireza
inquebrantável”, verifica-se que tal pluralidade se estende aos restantes
Momentos de Jogo, Organização Ofensiva, Transição Defesa – Ataque e
Transição Ataque – Defesa. Podemos considerar, que no Futebol há diferentes
formas de estar, o que se repercute em várias formas de jogar, de conseguir
resultados, e também, em diferentes formas de treinar, e de conceber a
Formação (Garganta, 2004; B. Oliveira et al., 2006), o que confere uma
pluralidade imensa a este fenómeno. Sendo contudo importante realçar para a
necessidade, de dentro de tal pluralidade, identificar regularidades reveladoras

131
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

da presença de qualidade, e se possível confrontar os Jogadores, ainda em


idades precoces com a possibilidade de vivenciarem essas pluralidades,
digamos, mais enriquecidas e simultaneamente mais enriquecedoras.
O Futebol é deste modo “uma linguagem universal com vários dialectos
corporais. Existem mais de mil maneiras de ganhar ou perder um jogo. A mais
educativa é aquela que respeita o talento. A mais cruel é a que ignora as boas
ideias” (Lobo, 2007, pp. 7).
Tais palavras, assumem quanto a nós, uma importância extrema e são
reveladoras de que o futuro do Futebol, tanto ao nível do Rendimento
Superior13 como da Formação, assim como o futuro do Mundo Vivo dependem
da necessidade de atender à pluralidade que os caracterizam, sob pena de
corrermos o risco da homogeneização se acentuar, e com isto, passarmos a
viver num Mundo e num Futebol de espelhos, em que passaremos a observar
cada vez mais Jogadores, jogos e jogares iguais. O que por tudo o que já
evidenciamos, se constituiria como um empobrecimento enorme para este
fenómeno, que por ser AntropoSocialTotal se deseja plural.

13
Rendimento Superior: consideramos tratar-se do nível de rendimento mais elevado a que
se pode aspirar e no qual constam, as principais equipas e Jogadores a nível mundial.
Devendo deste modo assumir-se, como o referencial orientador dos processos de Formação.

132
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

4.7 – Em torno da complexidade dos Sistemas Vivos no Futebol, em


busca de algumas Categorias Antropológicas:

“Os físicos gostam de pensar que tudo o que é preciso é dizer: estas são as condições; o que é
que acontece a seguir?”
(Richard P. Feynman, s/d, cit, por Gleick, 2005, pp. 33).

4.7.1 – A necessidade de um novo entendimento de Categorização, para


fazer «Ciência» de categoria:

“Foi Wittgenstein quem desferiu o primeiro golpe em Aristóteles, puxando o tapete às suas
definições rígidas do que é uma categoria.”
(Levitin, 2007, pp. 146).

Apesar do conjunto de evidências que temos vindo a efectuar, e que em


nosso entendimento, ajudam a sustentar a aplicabilidade do prefixo Antropo ao
conceito de Fenómeno Social Total (Mauss, 1979), deparamo-nos com
algumas dificuldades em definir o Homem e por inerência, o Futebol, um
Fenómeno AntrpoSocialTotal. Trata-se de uma dificuldade que não nos é
exclusiva, e que decorre da extrema complexidade que caracteriza estas
realidades.
“A filosofia tem consciência da dificuldade que é compartimentar por palavras
o ser humano, pelo que não será estranho que uma actividade profundamente
humana, caso do desporto, também não se atrele a definições ligeiras. Uma
definição, seja de homem ou, mais prosaicamente, de desporto (Futebol), tem
que possuir duas características primárias: ser abrangente e, qual paradoxo,
limitativa.” (R. P. Garcia, 2006, pp. 19/20).
Com o intuito, de estabelecer e compreender com a devida profundidade as
relações entre Futebol e Homem, consideramos pertinente identificar algumas
categorias, que podem classificar-se de Antropológicas, e cuja expressão se
observa no Futebol.
A categorização é, uma das actividades cognitivas mais fundamentais dos
organismos (Varela, et. al, 2001). De acordo com Levitin (2007), a
categorização é, uma função básica dos seres vivos. Segundo este autor, não

133
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

obstante o facto de cada objecto ser único, assumimos muitas vezes, que estes
pertencem a classes ou categorias. É a capacidade de categorização que
permite que cada experiência se transforme num conjunto mais limitado de
categorias, às quais os seres Humanos, e outros organismos respondem
(Varela, et al., 2001).
Remonta a Aristóteles, o método no qual se baseiam filósofos e cientistas
para compreender o modo como os conceitos se formam nos Humanos,
método que sugere, que as categorias resultam de listas de características
definidoras, sendo a atribuição de uma categoria efectuada através de uma
análise das suas propriedades, comparando-a com a definição de determinada
categoria específica (Levitin, 2007). Os processos de categorização foram ao
longo dos tempos utilizados de forma indevida, durante a era behaviorista da
Psicologia, as categorias foram tratadas como arbitrárias, sendo as tarefas de
categorização utilizadas em Psicologia apenas, para estudar as leis da
Aprendizagem (Varela, et. al. 2001).
“Desde Aristóteles, passando por Locke e até aos dias de hoje, as categorias
foram tidas como questões lógicas e os objectos estavam dentro ou fora de
uma categoria.” (Levitin, 2007, pp. 146). De onde se depreende, que os
processos de categorização se caracterizaram, por alguma rigidez,
inflexibilidade e impermeabilidade, conferindo-se deste modo, um carácter
estanque às categorias. Uma vez que, os fenómenos complexos têm
subjacentes variáveis de ordens de complexidade elevadas, que além disso, se
implicam mutuamente, não podem ser categorizáveis, com base nos processos
de categorização convencionais (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).
Mais recentemente, têm se desenvolvido algumas pesquisas substanciais,
neste âmbito, e com o propósito de superar as limitações que caracterizam o
processo de categorização. Foi Ludwing Wittgenstein, após um hiato de dois
mil e trezentos anos, quem através de uma simples pergunta; “O que é o jogo?”
relançou o trabalho empírico sobre a formação de categorias, tendo em
contraposição com Aristóteles, sugerido que a integração numa categoria
deveria ser determinada pela semelhança familiar, e não por uma definição

134
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

(Levitin, 2007), conferindo deste modo, um carácter mais flexível ao processo


de categorização.
“Foi Wittgenstein quem desferiu o primeiro golpe em Aristóteles, puxando o
tapete às suas definições rígidas do que é uma categoria.” (Levitin, 2007, pp.
146).
Os esforços de Wittgenstein têm vindo a ser retomados por outros autores,
dos quais se destaca Rosch (1973, 1987a, 1987b). Esta autora desenvolveu as
suas pesquisas neste âmbito, tendo por base as ideias de Wittgenstein, as
quais retomou transformando consequentemente o modo como pensamos as
categorias (Levitin, 2007).
Para Rosch (1987b), e na senda de Wittgenstein, qualquer coisa pode ser,
com maior ou menor precisão, elemento de uma categoria, tendo mostrado que
as categorias têm fronteiras indistintas. As categorias não têm por isso, sempre
fronteiras claras (Levitin, 2007). As categorias são realidades subjectivas e
também, realidades não estanques no tempo, sendo evidente que as pessoas
podem discordar acerca das categorizações e que uma mesma pessoa pode
em alturas diferentes discordar de si própria relativamente a uma determinada
categorização (Rosch, 1987). Para esta autora, determinados estímulos
assumem uma posição privilegiada, transformando-se em protótipos14, sendo
as categorias formadas com base nesses protótipos.
Levitin (2007) pronunciando-se sobre as investigações desenvolvidas por
Eleanor Rosch, salienta as seguintes conclusões: 1 - as categorias formam-se
com base em protótipos; 2 – estes protótipos podem ter fundamento fisiológico
ou biológico, 3 – os elementos que compõem as categorias podem ser
pensados em termos de grau, 4 – os itens novos são pensados com base em
protótipos dando origem a gradações nos elementos categoriais, 5 – não é
necessário existir um atributo comum a todos os elementos de uma categoria e
os limites não têm de ser necessariamente exactos.
Levitin (2007) numa extensão das ideias de Rosch, defende que as
categorias formam-se, não apenas com base na correspondência de

14
Protótipo: pode definir-se como a tendência nuclear, ou como o elemento médio da categoria
(Levitin, 2007).

135
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

propriedades, mas também com base em teorias acerca do modo como as


categorias se relacionam. Acrescentando ainda, que necessitamos de uma
teoria acerca da formação de categorias que tenha em consideração, as
categorias sem um protótipo claro, a informação contextual e o facto de
estarmos permanentemente a formar categorias. O que nos parece um reparo
muito pertinente. Outro aspecto de especial pertinência, prende-se com o facto
de Rosch ter constatado que um dos grandes problemas que continua a
contaminar a Ciência empírica, resulta do facto do processo de categorização,
se encontrar desfasado da realidade, e envolto em artificialismos, o que quebra
o fluxo que caracteriza os fenómenos (Levitin, 2007). Uma constatação que nos
parece pertinente, e que ajuda a perceber as dificuldades inerentes à
categorização de fenómenos complexos, tendo por base as ideias
preconizadas por Aristóteles. Note-se contudo, que não se trata de uma tarefa
impossível, requerendo contudo uma abordagem e entendimento do processo
de categorização diferente. A categorização de fenómenos complexos, tal
como o Futebol e o Homem, e a identificação de pontos em comum a ambos é
possível, mas apenas com um entendimento não convencional, isto é, um
entendimento não estanque e rígido do processo de categorização, o que
implica, ter em consideração o todo e as idiossincrasias das partes (Paulo
Cunha e Silva, Anexo 4).
Face ao exposto, tendo por base um novo entendimento do processo de
categorização, mais flexível, e até subjectivo, mas necessário para contemplar
a complexidade de fenómenos como o Futebol e o Homem, procuraremos
evidenciar e entender as relações sem perda do fluxo existente entre estes, e
também como algumas categorias Antropológicas são observáveis no Futebol,
podendo desse modo, ser integradas numa categoria comum, corroborando
assim a ideia de que o Futebol é um Fenómeno AntropoSocialTotal.
Concluímos, que um processo de categorização ajustado a estes fenómenos
deverá ser abrangente, no sentido de permitir abarcar a pluralidade destas
realidades e, simultaneamente “limitativa”, mas não limitadora, no sentido de
permitir perceber as especificidades inerentes a estas realidades, os seus
pontos em comum e os laços que as ligam.

136
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

4.7.1.1 – Para sistemas complexos, uma abordagem em complexidade:


Futebol e Homem são como as cebolas, se os picarmos em pedacinhos,
fazem-nos chorar!

“Direi primeiro que a complexidade, para mim, é o desafio, não é a resposta.”


(Morin, 2003, pp. 147).

“… o segredo dos segredos parece ser, na realidade, a noção daquilo que, há já trinta anos,
designo de «níveis de organização»”
(Laborit, 1987, pp. 15).

Face à complexidade da problemática em análise, e face ao modo como


consideramos que esta deve ser analisada, torna-se necessária uma
abordagem ecológica em torno do mundo vivo e do Homem. A qual não se
deverá caracterizar por uma abordagem ecológica “rasa” ou seja,
antropocêntrica, exclusivamente centrada no Homem, ignorando e conferindo à
Natureza um carácter meramente utilitário, do qual o Homem se serve (Capra,
1996). Uma vez que, a acção Humana é uma extensão da Natureza (Paulo
Cunha e Silva, Anexo 4), teremos de encetar por uma ecologia profunda que
“não separa seres humanos – ou qualquer outra coisa – do meio ambiente
natural. Ela vê o mundo não como uma colecção de objectos isolados, mas
como uma rede de fenómenos que estão fundamentalmente interconectados e
são interdependentes. A ecologia profunda reconhece o valor intrínseco de
todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio
particular da teia da vida” (Capra, 1996, pp. 25).
Vários autores (Carvalhal, 2002; Castelo, 1998; V. Frade, 1979, 1989; V. M.
d. C. Frade, 1976, 1990; Garganta, 1997; Garganta & Silva, 2000; J. G.
Oliveira, 2004; Teodorescu, 1984) sugerem que o Futebol deve ser abordado
tendo em consideração, uma perspectiva sistémica. O que nos leva uma vez
mais, a realçar a necessidade de uma “mudança de paradigma” (Capra, 1996;
2005), a qual parece estar já em decurso (Ruiz, 2006).
Csanádi, A. (1967, cit. por Lobo, 2002, pp. 61), referindo-se ao conceito de
“táctica” sugeria, que “uma equipa de futebol é como um organismo humano,
que tem órgãos que se adaptam ao mau funcionamento de outros. Há uma

137
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

parte de vida vegetativa, quase automática, outra de reflexão espontânea e


uma inteligência que controla quase tudo.” Para J. G. Oliveira (2004) o Jogo de
Futebol pode ser entendido como “um sistema de sistemas”, podendo
considerar-se o Jogador, de acordo com a sua própria natureza como um
sistema e ainda como subsistema da equipa e como agente de um sistema
maior que é o Jogo. Também a equipa se constitui deste modo, como um
sistema, consubstanciado pelo subsistema Jogadores (Garganta, 1997; J. G.
Oliveira, 2004; Teoduresco, 1984), o sistema equipa, pela natureza do Jogo,
implica deste modo a confrontação entre sistemas, ou seja equipas, que
igualmente estabelecem “um confronto de sistemas de jogo”, daí que o Jogo de
Futebol, se possa definir como um sistema de sistemas (Garganta, 1997; J. G.
Oliveira, 2004), algo que é corroborado por Paulo Cunha e Silva (Anexo 4),
para quem o Futebol se apresenta como um sistema de camadas múltiplas, de
“casca de cebola”, no qual podemos encontrar “mundos dentro de mundos”.
Sendo o Futebol, um “sistema de sistemas”, encontrando-se os diferentes
níveis de organização aninhados em redes, a configuração do Jogo e do
fenómeno Futebol, pode ser descrita através da metáfora da casca de cebola.
Isto é, tal como numa cebola, cada camada (nível de organização), é uma parte
de um todo maior, podendo apresentar-se em cada camada escalas maiores
ou menores, do todo. Esta metáfora da cebola é igualmente pertinente para
percebermos, o tipo de abordagem que devemos fazer a este fenómeno. Assim
tal como sucede com as cebolas, e isto para os que se preocupam com a
qualidade do Futebol, se pretendermos picar (reduzir) o todo em partes,
corremos o risco de chorar, pois estaremos a adoptar um pensamento
fragmentado, que conduz a acções mutiladoras. “Infelizmente, a visão
mutiladora e unidimensional paga-se cruelmente nos fenómenos humanos: a
mutilação corta a carne, deita sangue espalha o sofrimento (…) conduz à
tragédia suprema.” (Morin, 2003, pp. 19). Relembramos que “se cortarmos o
todo, mutilamos o todo” (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).
A necessidade de adopção urgente para o Futebol, de uma perspectiva
sistémica, resulta da extensão de tal necessidade à generalidade do mundo
vivo, que como temos vindo a salientar é indissociável deste fenómeno, motivo

138
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

pelo qual, procuraremos encontrar quais as relações possíveis entre as


características do mundo vivo, e do Homem em particular, com o Futebol, e
quais as extrapolações possíveis de realizar para o domínio do Futebol, dos
conhecimentos emanados pelo pensamento sistémico.
Para o pensamento sistémico a primeira premissa a considerar é, a mudança
das partes para o todo, refutando-se deste modo o reducionismo, e alargando-
se consequentemente, de forma considerável os horizontes da Ciência (Capra,
1996). Segundo Morin (2003, pp. 28) “o campo da teoria dos sistemas é muito
mais vasto, quase universal, pois que num sentido, qualquer realidade
conhecida, desde o átomo à galáxia, passando pela molécula, a célula, o
organismo e a sociedade, pode ser concebida como sistema, quer dizer,
associação combinatória de elementos diferentes.” Capra (2005, pp. 40)
salienta que o pensamento sistémico15, “considera o mundo em função da
inter-relação e interdependência de todos os fenómenos.” Motivo pelo qual
Reeves et al., (2006) sugerem que para além de descendermos dos macacos e
das bactérias, mantemos relações muito próprias também com os astros e as
galáxias. Na verdade, somos um fio da teia altamente complexa que compõe a
Vida.
Um conceito deveras fundamental para o pensamento sistémico, é o de
sistema, um conceito, que deriva do grego synhistanai, e exprime a ideia de
“colocar junto”, o qual pode ser entendido, como um todo integrado cujas
propriedades essenciais resultam das relações entre suas partes, de onde se
depreende que o pensamento sistémico é, “a compreensão de um fenómeno
dentro de um todo maior” (Capra, 1996; 2005). O pensamento sistémico é
deste modo, um pensamento ecológico, uma vez que é, contextual, visto que
procura perceber esse sistema, considerando o ambiente em que se encontra
inserido.

15
Pensamento sistémico, é por vezes também designado de teoria geral dos sistemas, e
apresenta-se como o tipo de pensamento, que de acordo com uma determinada concepção
metodológica do Futebol, a qual está subjacente a esta dissertação, a Periodização Táctica, se
apresenta como o mais ajustado para a compreensão deste fenómeno.

139
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Nesta forma de pensar, o segredo reside nas conexões existentes entre os


elementos constituintes do sistema, sendo a tendência para a “associação” e
estabelecimento de vínculos, ou seja, para as conexões, uma característica
fundamental dos organismos vivos (Capra, 2005). De acordo com Lohrey
(2004), a “mudança de paradigma” não se consuma, pelo conceito de ser ou de
existir, mas apenas se nos centramos nas relações. As relações, apresentam-
se como o objecto de estudo fundamental para um pensador sistémico, sendo
estas relações existentes entre os diversos constituintes, que conferem ao
sistema uma determinada “forma”, que os distingue (Capra, 1996). Em
conformidade, V. M. d. C. Frade (1990) realça a necessidade da interacção se
assumir como objecto prioritário de investigação no âmbito do conhecimento
científico do Futebol. Entendemos, que uma abordagem rigorosa à
complexidade do Futebol requisita necessariamente uma abordagem que
reconheça a importância das relações, das conexões, da interacção.
Nas teorias sistémicas, os sistemas são percepcionados enquanto teias,
refutando deste modo a convencional ideia de hierarquias, algo a que já nos
referimos (Capra, 1996; Laborit; 1987). Para o pensamento sistémico, a noção
de “redes de relações” é determinante, e postula que nenhuma parte se
sobrepõe às restantes que compõem o sistema (Capra, 1996), obedecendo
ainda ao princípio hologramático (Morin, 2003), ou seja, não é apenas a parte
que se encontra no todo, mas também o todo que está na parte.
A noção de sistemas aninhados dentro de sistemas, decorrente da formação
de redes relacionais implica, a necessidade de se reconhecerem diferentes
níveis de organização, outro aspecto relevante nas teorias sistémicas. De
acordo com Capra (2005) a organização dos sistemas vivos, leva à formação
de estruturas compostas por múltiplos níveis, cada nível dividido em
subsistemas, constituindo-se cada um deles, como um «todo» em relação às
suas partes, e uma «parte» relativamente a «todas» maiores.
“…o segredo dos segredos parece ser, na realidade, a noção daquilo que, há
já trinta anos, designo de «níveis de organização»” (Laborit, 1987, pp. 15),
daqui se depreende, que o pensamento sistémico radica em pensamentos não
contemporâneos, mas que foram ao longo de vários anos ostracizados, tendo

140
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

sido marginalmente recuperados nas últimas décadas, embora, muitas áreas


do conhecimento, por se encontrarem ainda obstinadas pela inércia causada
pelos séculos de reducionismo permaneçam, indevidamente relutantes em
aceitá-los como válidos.
Não obstante tal relutância, Capra (2005, pp. 274) salienta que “a tendência
dos sistemas vivos para formar estruturas de múltiplos níveis, que diferem em
sua complexidade, é comum a toda a natureza e tem de ser vista como um
princípio básico da auto-organização. Em cada nível de complexidade
encontramos sistemas integrados, todos auto-organizadores, que consistem
em partes menores e, ao mesmo tempo actuam como partes de totalidades
maiores (…) a ordem num nível sistémico é consequência da auto-organização
em um nível maior.” Daqui se depreende, que os diferentes níveis sistémicos,
se caracterizam por representarem diferentes níveis de complexidade, e por
revelarem diferentes propriedades “emergentes”, inexistentes nos níveis
inferiores, e que emergem num determinado nível.
A complexidade foi salientada na diferenciação entre os níveis de
organização, como um aspecto determinante, e ela emerge da interacção
existente, podendo assumir diferentes formas entre os agentes constituintes do
sistema. Um sistema complexo caracteriza-se, pelo facto de não poder ser
caracterizado a partir das partes que o constituem, por assumir um
comportamento que não pode ser previsto com base nas propriedades das
partes componentes, advindo o seu grau de complexidade da quantidade de
níveis de organização que apresenta (P. C. e. Silva, 1999).
Segundo Morin (2003, pp. 20) “a complexidade é um tecido (complexus: o
que é o tecido em conjunto) de constituintes heterogéneos inseparavelmente
associados”, acrescentando que tal conceito, nos coloca perante o paradoxo do
uno e do múltiplo, e que a complexidade é efectivamente o tecido de
acontecimentos, acções, interacções, retroacções, determinações, acasos, que
constituem o nosso mundo fenomenal. Uma equipa, o mosaico fluído (Paulo
Cunha e Silva, Anexo 4) e o respectivo jogar, como se depreende são
realidades complexas, uma vez que são, ou pelo menos devem ser realidades,

141
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

tecidas em conjunto, por constituintes heterogéneos, os Jogadores, que se


encontram inseparavelmente associados.
As palavras de Morin (2003) evidenciam uma vez mais, a importância que as
redes estabelecidas entre os elementos do sistema assumem, para o tecer da
rede mor que é, a “teia da vida” (Capra, 1996). “As redes são a face biológica
da complexidade dos seres vivos” (Gaiteiro. 2006, pp. 23).
Considerar a complexidade inerente ao mundo vivo, e compreender as redes
que nele se tecem é fundamental, uma vez que “entre o infinitamente pequeno
e o infinitamente grande, parece despontar o «cada-vez-mais-complexo»”
(Laborit, 1987, pp. 13). Pode daqui depreender-se, que o nível de grandeza
implicado neste entendimento, não é quantitativo, mas sim qualitativo,
assumindo-se a complexidade, não somente como uma exigência, mas
também uma condição estruturante da Vida (P. C. e. Silva, 1999). O mundo
vivo, pode ser considerado como um sistema extremamente complexo, dado o
elevado número de agentes que o compõem, e a diversidade de relações que
estes podem estabelecer, o mesmo sucedendo nos subsistemas que
constituem a biosfera. De acordo com Smith & Szathmáry (2007) a
complexidade dos organismos vivos é incrível, destacando-se dentro da
imensa complexidade que caracteriza os organismos vivos, o Homem, o
expoente máximo da complexidade. O âmago da Humanidade é, infinitamente
complexo (Damásio, 2003a; Jones, 2006). Laborit, (1987, pp. 13) esclarece que
a complexidade extraordinária que nos caracteriza resulta, de “num só homem
haver certamente um maior número de níveis de organização – cada qual com
a sua estrutura própria – que os que há no Universo inteiro.” O que reforça o
que foi sugerido anteriormente por este autor, quando advertiu para o facto do
problema da complexidade ser de natureza qualitativa, decorrente das
propriedades emergentes e das relações existentes entre, e nos diferentes
níveis de organização. A passagem da quantidade para a qualidade é, uma das
características da “mudança de paradigama” (Capra, 1996).
Hawking (2002) salienta que os sistemas mais complexos que podemos
observar são, os nossos próprios Corpos. “A teoria da complexidade cruza-se,
assim, inevitavelmente, com qualquer teoria do corpo, não só porque

142
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

formalmente um corpo é um conjunto de tecidos, mas porque o corpo se


fabrica na possibilidade de fabricar seus tecidos” (P. C. e. Silva, 1999, pp. 120).
O que tem repercussões muito significativas para o Futebol, onde o Corpo é,
um sistema em torno do qual tudo se desenvolve. Sendo o Homem, um
sistema especialmente complexo, pode concluir-se, que o Futebol um
Fenómeno AntrpoSocialTotal é igualmente altamente complexo, pois como
salienta J. G. Oliveira (2004) comporta como subsistemas, o Homem, a equipa,
caracterizada pela interacção entre Homens, e ainda a essência do Jogo, um
“sistemas de sistemas” em que se observa a confrontação entre dois
subsistemas diferentes, as equipas.
Como salientamos já, a interpretação de um sistema não se coaduna com
uma “ecologia rasa” (Capra, 1996), uma vez que requisita um entendimento
contextualizado do sistema, que por sua vez lhe acarreta uma complexidade
acrescida. A inteligibilidade de um sistema só se torna deste modo possível, se
não nos reportarmos exclusivamente ao próprio sistema, havendo assim
necessidade de compreender a sua relação com o meio, uma relação que não
é apenas uma simples dependência, mas sim também ela, constitutiva do
sistema (Morin, 2003). Trata-se por isso, de um sistema aberto, que como tal,
se caracteriza também pelo estabelecimento de trocas com o meio envolvente,
e pela flexibilidade que evidenciam face à mudança. Como salienta Capra
(2005) um “sistema saudável”, não é uma realidade estática, mas sim um
sistema aberto à mudança. Contrariamente ao que sucede com os sistemas
fechados, nos sistemas abertos não é a constância que os caracteriza. Nos
sistemas vivos tal equilíbrio não se verifica, existindo antes um desequilíbrio no
fluxo energético que os alimenta, que se assume fundamental na regulação da
organização do sistema aberto (Morin, 2003).
Os sistemas abertos são sistemas criativos, que como tal têm capacidade de
contemplar o novo, sem lhe sucumbir (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4) Os
sistemas abertos mantêm-se deste modo, afastados do equilíbrio, “estado
estacionário”, caracterizado por fluxos contínuos de mudança (Capra, 1996). O
Homem é um sistema aberto (V. d. Fonseca, 2007), que como tal, se mantém
afastado do equilíbrio.

143
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

O facto dos sistemas viverem e evoluírem em estados longe-do-equilíbrio16,


apresenta-se como uma grande vantagem, por lhe permitir incorporar o novo,
revelando-se assim capazes de viver numa “franja” ou “zona fluída”, que lhes
confere uma flexibilidade comportamental muito maior, do que a que se
verificaria se fossem fechados, ou “pré-progamados” (Paulo Cunha e Silva,
Anexo 4).
“Os seres humanos, a sociedade, a empresa (equipa), são máquinas não
triviais” (Morin, 2003, pp. 119). Por conseguinte, também o Futebol não pode
ser entendido como uma realidade trivial e estática. Para se constituir como um
“sistema saudável”, é fundamental que permaneça longe-do-equilíbrio, para
que evolua continuamente através da contemplação do novo.
Os sistemas complexos são caracterizados pela não-linearidade, pela in-
homogeneidade, adaptabilidade, existência de rede de interacções e por serem
sistemas abertos (Mendes, 2007). Uma vez que o Futebol cumpre com todos
estes requisitos, pode englobar-se na categoria dos sistemas complexos,
revelando-se, um sistema aberto, não-linear, afastado do equilíbrio (Garganta,
2001; Paulo Cunha e Silva, Anexo 4). Deste modo, podemos considerar que
Homem e Futebol se englobam na categoria, sistemas complexos.
O facto dos sistemas vivos, poderem ser considerados sistemas complexos,
confere-lhes uma complexidade enorme, no entanto, apesar de como adverte
Morin, (2003) a complexidade ser um desafio, enquanto exigência e condição
estruturante da Vida, esta exige ser entendida (P. C. e. Silva, 1999).

16
Longe-do-equilíbrio: “estado de não-equilíbrio do sistema, ou seja, um estado em que o
comportamento é facilmente alterado para uma forma qualitativamente diferente por pequenas
perturbações ao acaso. Implica instabilidade, caos, comportamento fractal.” (Stacey, 1995, pp.
548).

144
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

4.7.1.2 – Bem-vindos ao CAOS! O desejo de compreender o


«incomensurável».

“… o caos é a ordem (modelo) dentro da desordem (comportamento ao acaso).”


(Stacey, 1995, pp. 546).

O Futebol coloca-nos o desafio de termos de lidar com a complexidade, tal


como foi salientando anteriormente. Por ser um fenómeno constituído por
partes complexas das quais resultam um todo ainda mais complexo que a
soma dessas partes, coloca um dilema essencial que é o de “como
compreender uma coisa, que à partida é incompreensível (…) Como
compreender o incomensurável, aquilo que não podemos medir?” (Paulo
Cunha e Silva, Anexo 4). De acordo com Hawking (2002, pp. 105) “não fomos
ainda capazes de prever o comportamento humano a partir de equações
matemáticas.” Deparamo-nos deste modo, com a pertinente incógnita, de como
tentar decifrar o melhor possível a complexidade inerente ao mundo vivo, sem
contudo, a mutilar e sem recurso a “artifícios simplificadores” (P. C. e. Silva,
1999).
Entendemos a este respeito, que é fundamental partirmos do pressuposto, de
que a complexidade estabelece contacto com o acaso, embora não se possa
reduzir à incerteza, uma vez que se trata de uma incerteza intrínseca a
sistemas “ricamente” organizados, o que leva, a que a complexidade esteja
relacionada com um misto de ordem e de desordem (Morin, 2003), este autor
esclarece ainda, que o acaso17, sempre indispensável, nunca se encontra só
nem explica tudo, sendo necessário que haja o encontro entre o imprevisível e
uma potencialidade organizadora.
Tal entendimento obriga-nos a enveredar, pela necessidade de um tipo de
conhecimento, “O Caos”, que depois de descoberto nos obriga a ver o Mundo
de outro modo (Gleick, 2005). “A ciência do caos pretende a reconciliação com
o mundo” (Cunha e Silva, 1999, pp. 121). Laborit (1987) refere que o Homem
17
Acaso: entende-se por acaso o comportamento errático e fruto da sorte, desencadeado na
sequência de acontecimentos em que nenhum destes ocupa a mesma posição que já ocupara
anteriormente (Stacey, 1995).

145
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

tem necessidade de colocar ordem no Universo, no entanto, desde há algumas


décadas algumas leis, consideráveis intangíveis, revelaram-se muito menos
exclusivas do que se pensava, pois como acrescenta, os fenómenos são
caóticos e imprevisíveis.
Apesar da aparente intangibilidade que caracteriza os sistemas complexos, e
que torna incontrolável as respectivas funcionalidades, através de meios de
modelização contemporâneos, de metamodelização, pode compreender-se o
comportamento destes fenómenos caóticos visto que estes, “não vivem
angustiados”, uma vez que vivem e progridem assentes em “variáveis
flutuantes”, que lhes permitem contemplar a criatividade (Paulo Cunha e Silva,
Anexo 4).
A teoria do caos é, uma teoria matemática, cuja aplicabilidade é extensível à
generalidade dos fenómenos. Esta teoria tem vindo a ser aplicada tanto nas
ciências “físicas” como “sociais” (Ruiz, 2006), motivo pelo qual deverá ser
também, em nosso entendimento, aplicável ao Futebol.
Esta “matemática da complexidade”, constitui-se como um importante ramo
da teoria dos sistemas dinâmicos, e corta com o convencionalismo matemático,
“é mais qualitativa do que quantitativa e, desse modo, incorpora a mudança de
ênfase característica do pensamento sistémico – de objectos para relações, da
quantidade para a qualidade, da substância para o padrão” (Capra, 1996, pp.
99).
Conforme salienta Gaiteiro (2006), o sucesso de todas as organizações,
incluindo as existentes no Futebol, numa sociedade como a actual é
determinado de forma cada vez mais marcante, pela capacidade de gestão da
mudança e do imprevisível, acrescentando por isso, que no Futebol, onde as
equipas se comportam como sistemas dinâmicos interrelacionados e
sobrepostos, “sistema de sistemas”, como já referirmos, a aplicação dos novos
conceitos emergentes da teoria do caos mostra-se bastante promissor. Com a
teoria do caos, procura-se trazer ordem ao caos que caracteriza os sistemas
complexos (Capra, 1996), os quais como sugere P. C. e. Silva (1999) são
necessariamente caóticos, uma vez que é o caos, que lhes permite “misturar as
coisas”, e consequentemente criar novas direcções que possibilitam a evolução

146
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

do sistema. Este autor realça dentro desta teoria, a emergência do “caos


determinístico”, depois da “paradoxal evolução” observada em torno do
conceito de caos durante cerca de 3 décadas. Como esclarece, este novo caos
encontra-se despido do “catastrofismo incontornável” que caracterizou as
primeiras abordagens, e reporta-se ao comportamento não periódico de
sistemas dinâmicos, que são caracterizados pela possibilidade de evoluírem, a
partir de condições iniciais de extrema sensibilidade18. Para Ekeland (1999) a
grande lição que a teoria do caos nos dá é, a de que a incerteza não está
ligada à complexidade, definindo os sistemas caóticos, como sistemas capazes
de produzirem por si próprios sem necessitarem de recorrer a fontes exteriores,
acrescentando ainda, que são profundamente instáveis, e caracterizados pelo
facto de pequenos desvios iniciais originarem de forma célere grandes
afastamentos, ou seja, caracterizam-se pela extrema sensibilidade às
condições iniciais (Capra, 1996; Ruiz, 2006).
O Futebol é um fenómeno caracterizado pela extrema sensibilidade às
condições iniciais, visto que “é um sistema cuja evolução, temos imensa
dificuldade em perceber, se não tivermos em atenção que é feito a partir da
soma de todas essas complexidades. E a soma de todas as complexidades,
produz uma complexidade, ainda maior.” (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).
Podemos depreender, que uma decisão por muito insignificante que possa
parecer à priori poderá ter repercussões muito significativas no desenrolar dos
acontecimentos futuros do Jogo. Por exemplo, a lesão de um Jogador, uma
substituição indevidamente ponderada, ou ainda uma grande penalidade
falhada, poderão ser determinantes para o decurso dos acontecimentos e do
comportamento revelado pelas equipas, o mesmo sucedendo também, quando
não é concedido à equipa tempo suficiente para realizarem no período que
antecede a Competição, uma adequada pré-activação para introdução à
Competição. Um aspecto, que pelo que temos observado é descurado em não

18
Sensibilidade às condições iniciais: pode entender-se como a propriedade amplificadora dos
mecanismos de feedback não-lineares, o que significa que alterações minúsculas podem sofrer
uma escalada até à mudança completa do comportamento a longo-prazo (Stacey, 1995).

147
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

raras vezes nos escalões de Formação, o que se repercute, no posterior


desempenho dos jovens e das equipas.
A necessidade de atender à extrema sensibilidade às condições iniciais, no
Futebol implica, que todos os aspectos que se relacionam com o jogar, com o
competir e com o treinar, sejam devidamente ponderados. Algo que nem
sempre sucede, e de modo mais significativo nos escalões de Formação, onde
a «carolice» e amadorismo mesmo que revestidos de boa vontade, não se
compadece com a essência do Jogo. O que realça a necessidade, de qualificar
todos aqueles que intervém nos processos de Formação, de modo, a que os
pormenores que envolvem o Jogo, não se tornem em «pormaiores».

4.7.1.2.1 – Rotatividade uma imprescindibilidade exclusiva do


Rendimento Superior?! Ou mais do que isso?! Que implicações no
processo?

“Em resumo: a simples introdução «de um balde de peixes», pode ocasionar alterações
profundas económicas, sociais e ecológicas.
(Mendes, 2007, pp. 353).

Um dos aspectos que no Futebol consideramos poder ser mais evidente, a


extrema sensibilidade às condições iniciais é, ao nível da problemática da
rotatividade de Jogadores, algo que pode considerar-se como «uma faca de
dois gumes» ou um «pau de dois bicos» se, não tivermos em consideração
este traço caracterizador do Jogo. A rotatividade é, uma exigência a nível do
Rendimento Superior, sobretudo por quatro aspectos, nomeadamente, a
crescente densidade competitiva a que as equipas, deste nível, se encontram
submetidas e consequente necessidade de recuperação; a necessidade de
contemplar a dimensão estratégica; como aspecto motivacional para os
Jogadores menos utilizados; e como complemento essencial à evolução dos
desempenhos dos Jogadores menos utilizados: Note-se contudo, que por outro
lado, face à extrema sensibilidade às condições iniciais que caracteriza este
fenómeno, urge que a problemática da rotatividade seja, devidamente
equacionada por quem a operacionaliza. A ponderação devida desta

148
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

problemática, poderá encontrar quanto a nós, na teoria do caos algumas


respostas muito interessantes.
Com relativa facilidade se pode constatar, que salvo algumas excepções, na
generalidade das equipas a rotatividade implica um decréscimo na qualidade
de jogo das mesmas. Importa contudo, a este respeito não ignorar, que o
decréscimo de qualidade poderá estar também relacionado com concepções
metodológicas relativas ao treino. Entendemos, que se o padrão de treino for
distinto daquele que caracteriza o Jogo, e de modo mais particular o jogar de
cada equipa, os efeitos negativos da rotatividade poderão ser mais evidentes,
do que aqueles que se observam em processos de treino levados a efeito em
regime de Especificidade19. De acordo com V. Frade, (1998), é o Princípio da
Especificidade, que deve dirigir a periodização de um determinado jogar, ou
seja, da Táctica de determinada equipa. O que como acrescenta, implica que a
equipa técnica tenha como preocupação, inventar exercícios ajustados a essa
pretensão, procurando-se deste modo, criar nos treinos a Competição que
desejam que aconteça, ou seja, essa forma de jogar a que aspiram.
Ao treinar em Especificidade, os Jogadores vivenciam partes (Princípios de
Jogo) que corporizam um determinado Modelo de Jogo, reproduzindo-o, deste
modo. A este respeito Queiroz, (1986) salienta, que o treino deve fundamentar-
se e desenvolver-se a partir do elemento primário de todo o processo, ou seja,
do jogo.
Deste modo, entendemos que é a Especificidade, que confere qualidade ao
processo, tornando-o próximo quase da perfeição, pois como adverte V. Frade,
(1985), “não é o treino que torna as coisas perfeitas, mas antes o perfeito treino
(em Especificidade, entenda-se) que permite obter a perfeição.”
Marisa Gomes (Anexo 5) afirma; “no meu treino e no meu processo, existe
em termos macro uma filosofia e portanto, no padrão de problemas que
19
Especificidade: em conformidade com J. G. Oliveira (2004) ao longo desta dissertação a
palavra Especificidade ou “interacção Especifica” como também sugere, aparecerão escritas
com “E” maiúsculo de modo a diferenciar, a especificidade relativa à modalidade da
Especificidade relativa ao jogar de determinada equipa. Trata-se de um conceito nuclear, para
o correcto entendimento da operacionalização do processo, segundo aquilo que sugerimos
dever ser, desde as idades mais precoces.

149
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

colocam as equipas, umas às outras, reconhecemos um padrão de problemas”,


a nossa entrevistada acrescenta ainda, que como tal, é fundamental que o
treinador, face às exigências que a Competição coloca seja capaz de identificar
o padrão de problemas que o adversário exige que a equipa resolva. A
necessidade de identificar estes padrões, é reforçada por Gladwell (2007)
quando refere, que as relações e os problemas de maior complexidade têm
subjacente um determinado padrão.
A Especificidade permite que ao longo de todo o processo, os Jogadores se
prepararem para competir, e evidenciar uma determinada Cultura de Jogo, a
qual quanto mais assimilada e próxima da “perfeição” se encontrar, menos
vulnerável se revelará face aos problemas que o adversário coloca, e aos
efeitos da rotatividade, os quais são minimizados. Não obstante possíveis
diferenças de desempenho, decorrentes de diferentes abordagens
metodológicas, aquando da operacionalização da rotatividade, esta é cada vez
mais uma necessidade, contudo, esta problemática não se deve esgotar na
necessidade de fazer recuperar funcionalmente os Jogadores e as equipas,
para corresponderem à densidade competitiva a que estão sujeitos ao longo da
época.
A rotatividade deve ser equacionada também, com o intuito de permitir que os
Jogadores menos utilizados evoluam, uma vez que o estímulo do Jogo é, um
complemento essencial ao treino no processo de exponenciação de Talentos.
A progressão dos Jogadores menos utilizados é, quanto a nós, um aspecto que
se revela bastante importante, devendo por isso mesmo não ser ignorado. Por
diversos motivos, a qualquer momento o treinador pode necessitar de recorrer
a Jogadores cuja densidade competitiva é, claramente reduzida, o que se
poderá repercutir, em incapacidade por parte destes para responder às
exigências que lhe são colocadas em Competição, por não terem desenvolvido
a adaptabilidade necessária, mesmo treinando em Especificidade. A
rotatividade torna-se, deste modo, determinante para a evolução qualitativa dos
Jogadores, devendo ainda ser equacionada atendendo aos aspectos
motivacionais, tal como reconhecem alguns dos mais consagrados treinadores
mundiais.

150
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

“Há um truque a que nós podemos recorrer para podermos manter todos os
jogadores da equipa motivados e empenhados, e que eu utilizo no Manchester.
É colocar a jogar todos os jogadores da minha equipa, nem que seja em
competições diferentes. Assim, todos se sentem bem, porque participam nos
êxitos da equipa.
É importante manter os jogadores motivados, e ter também em consideração
que um jogador em Inglaterra, pode chegar a fazer sessenta jogos numa
época, o que é uma loucura”. (Alex Fergusson, 2003, cit. por Pacheco, 2005,
pp. 77).
Também Mourinho (2002) salienta que a rotatividade é, fundamental para
manter os índices de motivação elevados numa equipa, pois como afirma, “a
rotatividade é melhor para a motivação dos jogadores”.
A rotatividade pode ainda ser contemplada tendo em consideração, a
necessidade do desenvolvimento de um plano estratégico20 para a abordagem
de um determinado jogo.
Em suma, perante quadros competitivos de elevada exigência e densidade, a
rotatividade torna-se necessária, contudo, deve fazer-se com prudência, devido
à extrema sensibilidade às condições iniciais que caracteriza o Futebol. A
rotatividade deve atender a quatro aspectos, gestão da Fadiga21 acumulada
pela elevada densidade competitiva, assegurar a evolução qualitativa de todos
os Jogadores, para manter elevados os índices motivacionais dos Jogadores, e
ainda por motivos relacionados com nuances estratégicas para abordagem à
Competição.
Ao nível de equipas de Rendimento Superior, a elevada densidade
competitiva, o elevado nível de exigência e elevado nível de pretensão são,
aspectos presentes ao longo de toda a época, contudo, estas deparam-se com
a grande dificuldade que é, sobreviver preservando a sua integridade e
identidade, num contexto de extrema sensibilidade às condições iniciais, o que

20
A dimensão estratégica e as implicações desta tendo em perspectiva a teoria do caos serão
abordadas mais adiante.
21
Fadiga: ao longo desta dissertação a palavra Fadiga aparecerá escrita com “F” maiúsculo de
modo a diferenciar a fadiga periférica da “fadiga táctica” (Carvalhal, 2002; Freitas, 2004).

151
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

leva a que a rotatividade tenha de ser devidamente equacionada. A


problemática da rotatividade tem se revelado, uma necessidade ao nível do
Rendimento Superior, tendo sido já desenvolvidas investigações a
comprovarem-no. Contudo, entendemos que a rotatividade não deve ser
equacionada apenas a nível do Rendimento Superior, ou a nível do Futebol
sénior. Entendemos que também na Formação a ponderação desta
problemática se torna pertinente. Nos escalões mais jovens, os aspectos
relacionados com a necessidade de recuperar os índices de Fadiga, não se
colocam como uma necessidade premente, devido à reduzida densidade
competitiva existente nestes escalões, salvo em algumas equipas, a partir dos
iniciados, que têm de ceder Jogadores às selecções nacionais. Assim, não
sendo uma necessidade em termos da recuperação funcional dos Jogadores, e
da gestão dos níveis de Fadiga, caso o processo seja devidamente
operacionalizado, a rotatividade deve ser contemplada na Formação, pois
como sugerimos apresenta como valências, a possibilidade de desenvolver o
potencial dos Jogadores, de os motivar, e de permitir a nuancianção
estratégica de um determinado jogar. Entendemos, que este último aspecto,
não devendo ser uma prioridade nas idades mais precoces, pela não
consolidação de forma muito efectiva, de uma determinada complexidade de
jogo, Táctica, poderá caso o nível da equipa o permita, ser também um aspecto
a considerar, e que se revelará enriquecedor para a exponenciação dos
Jogadores, implicando a necessidade destes desde idades precoces estarem
submetidos a um processo que tenha subjacente um determinado Modelo de
Jogo.
Consideramos, que é ao nível dos aspectos motivacionais, da possibilidade
de desenvolvimento de Talentos, e de evolução dos desempenhos destes, que
a rotatividade se torna importante na Formação. Não obstante, as
potencialidades que esta problemática possa apresentar, à semelhança do que
sucede a nível sénior, também na Formação estes aspectos deverão ser
devidamente ponderamos, pois o Jogo tem implicado a extrema sensibilidade
às condições iniciais. Deste modo, entendemos que sempre que possível os
treinadores da Formação, sem desvirtuar o verdadeiro sentido da Competição,

152
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

deverão possibilitar, como forma de motivação e desenvolvimento, que os


Jogadores menos utilizados também desfrutem da Competição. Não queremos
com isto passar a mensagem, de que deverá ser concedida igualdade de
oportunidades a todos, mas antes, que sempre que possível, devem ser os
menos utilizados a ter a «oportunidade». A diferença significativa, reside no
facto de entendermos que o treinador não se deve esquecer, que as Crianças
que orienta gostam muito de Jogar, mas que por serem verdadeiros
competidores, e como tal gostarem de ganhar, não se importam de não Jogar
se tal implicar a vitória da equipa, a qual sentirá como sua. E aqui reside um
dos valores formativos do Futebol. Além disso, o treinador não deve ignorar
que os jovens associam a sua competência às decisões que os treinadores
tomam e aos resultados que juntos conseguem alcançar, e por não gostarem
de perder, sentir-se-ão, atraiçoados se o treinador “facilitar”, sendo isto válido
para todos, inclusive os menos utilizados. Compete deste modo ao treinador,
tanto da Formação como dos escalões seniores, saber gerir com parcimónia e
sobriedade a complexa problemática da rotatividade, equacionando-a
devidamente. O que em nosso entendimento se faz, mantendo um núcleo de
Jogadores (referências) que permitam a sustentabilidade do jogar da equipa,
sendo efectuada uma rotação alternada de alguns Jogadores, de acordo com
as suas posições e funções, preservando-se as ligações e os padrões de jogo
da equipa.
“Numa equipa, num grupo de profissionais, sempre que mexemos num
elemento não o afectamos apenas a ele, pois alteramos e modificamos o
próprio todo de forma complexa (…) A arte do líder vai alternando e vai
mudando, agindo e reagindo, mantendo as ligações importantes, os padrões
que funcionam, o modelo de jogo, a cultura que vence fazendo com que
pequenas alterações não venham a gerar grandes ou pequenas mudanças que
não sejam pretendidas” (Lourenço & Ilharco, 2007, pp. 56).

153
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

4.7.1.2.1 – A fatalidade de não reconhecer as Fractalidades do Jogo e do


jogar.

“Não existe futebol ofensivo ou futebol defensivo. Existe futebol harmonioso”.


(Boris Arkadiev, s/d cit. por Lobo, 2007, pp. 73).

O Futebol é, face ao que já referimos, um fenómeno caótico (Garganta &


Silva, 2000; J. G. Oliveira, 2004), podendo mesmo considerar-se o Jogo como
um dos mais eloquentes exemplos de «caos determinista» (P. C. e. Silva,
1999).
Os fenómenos caóticos são, simultaneamente imprevisíveis e determináveis,
ou seja, o caos não é algo aleatório, uma vez que apresenta uma ordem que
lhe está subjacente, o que nos remete para os “fractais”22, pois ambos
procuram reconhecer alguma previsibilidade, a fenómenos aparentemente
imprevisíveis (Mandelbrot, 1998; P. C. e. Silva, 1999; Stacey, 1995).
“O termo fractal veio para ficar, como meio de descrever, calcular e pensar
as formas irregulares e fragmentárias, complexas e recortadas”, sendo que
para a mente um fractal é, uma forma de entrever o infinito (Gleick, J. 2005, pp.
154).
Importa realçar que o Corpo, como sugerem alguns autores (Gleick, 2005; P.
C. e. Silva, 1999), apresenta uma organização fractal. O mesmo sucedendo,
com a “inteireza inquebrantável” de um jogar, que pode ser entendida e
operacionalizada de acordo com uma organização fractal (Gaiteiro, 2006; J. G.
Oliveira, 2004).
J. G. Oliveira (2004), reportando-se à construção de um Modelo de Jogo,
salienta que esta deve evidenciar uma construção fractal. Torna-se por isso
pertinente neste ponto, tecer algumas considerações acerca desta
problemática para percebermos, qual a sua aplicabilidade ao Futebol.
Como sugere Capra (1996) a criação da geometria fractal também designada
de Teoria dos Fractais por Mandelbrot na década de 70, procurava não
22
Fractal: entende-se por fractal, a propriedade de fracturar em modelos semelhantes, sendo
uma dimensão que mede o constante grau de irregularidade de um modelo caótico (Stacey,
1995).

154
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

somente descrever, mas também para explicar a complexidade das formas


irregulares que caracterizam a Natureza. Os fractais são objectos matemáticos
muito complexos, que são auto semelhantes, o que quer dizer que uma parte é
igual ao total, apresentando deste modo uma propriedade que Mandelbrot,
(1983) designou de “auto-similaridade”, um conceito que segundo Gleick,
(2005) afronta alguns dos antigos preconceitos da nossa Cultura. A
propriedade relevante dos «fractais» reside no facto, dos seus padrões
característicos se encontrarem repetidamente em escalas descendentes, o que
permite que em qualquer escala, as suas partes sejam, na forma, semelhantes
ao todo (Capra, 1996), sendo uma linguagem que entronca no postulado de
que ”o todo está na parte que está no todo” (Morin, 2003).
Consideramos, que a aplicabilidade destes conhecimentos no Futebol tem
toda a pertinência, uma vez que a globalidade complexa, inerente a um jogar
implica, não que o treino seja a totalidade desse jogar, mas sim que o treino
atenda a uma lógica de Redução Sem Empobrecimento23. De acordo com V.
Frade (2000) o que deve importar, no processo de treino é, considerar a
organização de jogo de uma equipa como algo, que sendo um problema de
dinâmicas é necessariamente complexo, havendo assim necessidade de
reduzir-se sem empobrecer, no sentido de articular essas várias dinâmicas,
através de «pacotes de jogo», que permitem operacionalizar um determinado
conjunto de Princípios de Jogo, e consequentemente, criar uma organização de
jogo, Táctica.
A lógica da Redução Sem Empobrecimento, vai deste modo de encontro à
geometria fractal, uma vez que, aquilo que se pretende é que diferentes
escalas de um determinado jogar, «pacotes de jogo», operacionalizados no
treino, contenham o padrão que caracteriza o todo, o jogar, respeitando-se
deste modo a sua “dimensionalidade não-inteira” (Frade, 1990). Uma vez que,
o que se pretende nesta forma de entender o treino é, que os Jogadores
vivenciem e assimilem escalas menores de um jogar, os exercícios de treino

23
Reduzir Sem Empobrecer: revela-se determinante para a operacionalização aquisitiva de
um jogar. Dependendo o correcto entendimento deste conceito, de um conveniente
entendimento da fractalidade do Jogo e dos jogares.

155
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

devem ser fractais, que possibilitem a Aculturação dos Jogadores a um


determinado jogo, devido à constante vivenciação do padrão que caracteriza a
equipa. A “auto-similaridade” entre diferentes escalas ou “homogeneidade”
(Ekeland, 1999) é quanto a nós, algo que deverá ser transportado para a
realidade do treino. Assim, a modelação e operacionalização de um jogar, deve
ter sempre como referencial, o padrão de jogo desse jogar, devendo o
exercício ser um fragmento daquilo que se pretende que suceda em
Competição.
O entendimento do conceito de padrão é deste modo fundamental, sendo de
crucial importância para o entendimento do mundo vivo, e para uma
compreensão científica do mesmo (Capra, 1996). Um pensamento precursor
deste conceito, foi por nós encontrado em Laborit (1987, pp. 33) que apresenta
a “forma” como algo que acrescenta ao conjunto, algo mais que a soma dos
seus elementos constituintes. Capra (1996, pp. 77) esclarece que “embora seja
verdade que todos os organismos vivos sejam, em última análise, feitos de
átomos e de moléculas, eles não são só «nada mais que» átomos e moléculas.
Existe alguma coisa mais na vida, alguma coisa não-material e irredutível – um
padrão de organização.” Este autor, como já foi por nós evidenciado salienta a
relevância do pensamento sistémico ter substituído a substância pelo padrão,
salientando ainda, que este pensamento lida fundamentalmente com
qualidades e padrões, contrariamente às abordagens reducionistas.
Um padrão pode ser definido, como um conjunto de relações, “o padrão de
organização de qualquer sistema (…) é a configuração de relações entre os
componentes do sistema que determinam as características essenciais desse
sistema” (Capra 1996, pp. 134).
Reportando-nos ao Futebol, e à aplicabilidade da geometria fractal neste
domínio, importa salientar que no processo, a fractalização incide na
operacionalização e direccionamento de um jogar. Assim, através da
organização fractal do jogo pretende-se criar nos diferentes aspectos que se
podem decompor, uma homotetia interna que permita, em qualquer escala,
identificar as singularidades da equipa, ou seja, o seu padrão (J. G. Oliveira,
2004).

156
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Face ao que foi sugerido em relação às formas fractais, consideramos que a


sua aplicabilidade ao fenómeno Futebol, não se esgota no que evidenciamos
anteriormente. “Os processos de ensino e de treino devem ser construídos
através de uma organização fractal, no sentido de se manifestarem através de
invariâncias / padrões fractais nas diferentes escalas de manifestação –
invariância de escala – tanto ao nível dos padrões de comportamento, como ao
nível da produção do processo.” (J. G. Oliveira, 2004, pp. 129).
Sendo o Jogo “inteireza inquebrantável” (Amierio, 2005), caracteriza-se por
uma dinâmica colectiva, e por um fluxo, ou fluxos de jogo, que são igualmente
“inteirezas inquebrantáveis”.
Para J. G. Oliveira (in C. Campos, 2007) a “inteireza inquebrantável” do Jogo,
pode ser consubstanciada em duas fractalidades, uma “fractalidade em
profundidade”, que se reporta às escalas de organização estabelecidas pelos
elementos e sectores que compõem a equipa, e uma “fractalidade transversal”,
que se reporta á escalas daquilo a que geralmente se designa de Momento de
Jogo. Apesar, de por definição o conceito de fractal nos remeter para a
natureza do fragmento, para a sua forma, é igualmente verdade que tal se faz a
partir da abordagem da sua superfície, que é para qualquer forma,
simultaneamente o limite que o separa e liga ao mundo (P. C. e. Silva, 1999),
daí que faça sentido falar-se na necessidade de fractalidade entre os diferentes
Momentos de Jogo, mas não exclusivamente destes, que entendidos deste
modo, transparecem a correcta ideia de fluidez, “inteireza inquebrantável”,
inerente ao jogo. A fractalidade assume-se deste modo, “como uma morfologia
da fronteira (não convencional), do contacto, da articulação” (P. C. e. Silva,
1999, pp. 112).
“Não existe futebol ofensivo ou futebol defensivo. Existe futebol harmonioso”.
(Boris Arkadiev, s/d cit. por Lobo, 2007, pp. 73). Entendemos, que a qualidade
de jogo resulta da maior ou menor harmonia evidenciada, tanto nos diferentes
instantes que compõem o Jogo, como entre os elementos que compõem a
equipa. Uma vez que o Jogo é “inteireza inquebrantável”, em cada uma das
fractalidades acima referidas, devem permanecer inalterados os padrões de
determinada “inteireza inquebrantável”, assim como, é determinante que a

157
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

conexão entre as inúmeras fractalidades que compõem o jogo, se estabeleça


no respeito pela noção de fractalidade, a qual implica, conexão. Marisa Gomes
(Anexo 5) concorda que não atender à fractalidade do Jogo e de um jogar se
torna numa fatalidade, acrescentando a este respeito, que sendo uma
fatalidade para os treinadores, é ainda mais para os potenciais Talentos,
acrescentando, que pior que não entender a fractalidade do Jogo e dos jogares
a que se aspira é, estragar aquilo que os potenciais Talentos revelam. “Porque
pior do que um treinador, chegar ao treino e dar uma bola aos miúdos, e pô-los
a jogar são, os treinadores que exigem que eles façam outras coisas” (Marisa
Gomes, Anexo 5). De onde se depreende que o entendimento da fractalidade
do Jogo e dos jogares, é determinante, e somente desse modo, se
operacionaliza devidamente a Redução Sem Empobrecimento. Urge permitir,
“às crianças uma prática simplificada, reduzida, mas sem empobrecimento.” (V.
Frade, 1979, pp. 11). Somente deste modo, entendemos que se consegue
aceder ao “futebol harmonioso” e a Talentos com tal entendimento do Jogo. No
Futebol cada Momento de Jogo (parte ou fractal), Organização Ofensiva,
Organização Defensiva, Transição Ataque – Defesa e Transição Defesa -
Ataque, estão relacionados com os restantes, e além disso, devem conter a
totalidade do jogar da equipa, ou seja, devem ser fractalidades da essência do
Jogo, e também fractalidades da essência de um jogar, isto é, comportando a
Especificidade, o padrão, a Táctica, de um determinado jogar. Deste modo,
estas escalas menores, deverão encontrar-se imbricadas com as escalas
maiores. O mesmo sucede nos diferentes níveis de organização da equipa,
desde o plano individual, à Organização Colectiva, todos devem manifestar, à
respectiva escala, regularidades que caracterizam o todo, ou seja o jogar,
mantendo deste modo, a sua identidade sem se desintegrar. È por este motivo,
que se uma equipa pretende apresentar determinadas características, quando
se encontra com a posse de bola, tem de evidenciar uma estruturação e um
padrão comportamental em consonância quando se apresenta sem bola, e vice
– versa, sem que nos possamos esquecer dos hiatos, vulgo transições, que
existem entre o ter e não ter bola, como salienta Amieiro (2005).

158
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Também os Princípios de Jogo de um determinado jogar, têm de ser


entendidos, como fractais de um determinado Modelo de Jogo (J. G. Oliveira,
2004), os quais, obedecendo a uma correcta compreensão da geometria
fractal, permitem a conveniente operacionalização aquisitiva desse jogar. A
qual se faz, pela “(des)integração dos princípios” e consequente
necessidade de “articulação de sentido” dos mesmos, no respeito, pela
inteireza inquebrantável desse jogar.
Como salienta Gleick (2005) um sistema caótico pode revelar estabilidade se
o seu estilo particular, entenda-se padrão, perdurar face a pequenas
perturbações. E este é o desafio que se coloca às equipas de Futebol, ou seja,
serem capazes face à aleatoriedade que caracteriza o fenómeno, e aos
sistemas que o compõem, fazer perdurar o seu padrão de jogo, a sua
identidade. Quando tal sucede, irrompem padrões que à pequena escala,
assim se deseja, denunciam um comportamento caótico, impossível de prever,
mas que a uma grande escala revelam alguma regularidade (P. C. e. Silva,
1999). Uma regularidade que entendemos ser tanto mais evidente, quanto mais
precocemente se efectuar a Aculturação a um determinado padrão.
A possibilidade do sistema caótico, no caso o jogar de uma equipa, poder em
diferentes escalas manter uma morfologia idêntica, e com isto, apesar do caos
aparente se revelar estável é designado de “homeotetia interna” (Mandelbrot,
1998; P. C. e. Silva, 1999; Stacey, 1995) e é responsável por conferir a
diferentes equipas, peculiaridades que caracterizam os seus jogares (J. G.
Oliveira, 2004), contribuindo deste modo, para a pluralidade do Jogo, pela
possibilidade de expressão de diferentes jogares, o que como salientamos, é
uma característica relevante no fenómeno Futebol.
Sendo o Futebol um sistema dinâmico não linear, torna-se fundamental o
recurso ás estruturas fractais, pois estas vieram a revelar-se determinantes na
compreensão deste tipo de sistemas (Gleick, 2005).

159
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

4.7.1.2.2 – A «ATRACÇÃO» vital, que pode revelar-se fatal.

“…o treino tem a capacidade de fabricar atractores em territórios (comportamentos) motores


desconhecidos. Ao criar esses territórios, essa nova acção passa a ser familiar para quem a
pratica, a estranheza a variabilidade (no sentido da descoordenação) inicial é substituída pela
familiaridade posterior”.
(P. C. e. Silva, 1999, pp. 110).

A teoria do caos, por permitir encontrar características e comportamentos


invariantes e auto-referentes, os quais se prolongam no desenrolar dos
sistemas, possibilita que se revelem e identifiquem tendências, que caem num
grau probabilístico que poderá ser inferido (Paulo Cunho e Silva, Anexo 4). A
geometria fractal, remete-nos para o conceito de “atractores estranhos”, os
quais são exemplos “extraordinários” de fractais (Capra, 1996). Algo, que é
também salientado por P. C. e. Silva (1999) que se refere aos atractores
estranhos, como a imagem mais visível de um lugar fractal. Acrescentando,
que se trata de um lugar que se desdobra, numa infinidade de lugares
possíveis, mantendo contudo, o respeito por um qualquer centro. Segundo
Capra (1996) a designação de atractor, explica-se uma vez que segundo os
matemáticos, este permite representar o ponto fixo, no centro do sistema que
“atrai” a sua trajectória (Capra, 1996). Conforme refere Gleick (2005) os
atractores estranhos têm por definição, a importante propriedade de
estabilidade. A finalidade dos atractores estranhos é, face ao comportamento
caótico, determinista e padronizado, permitir transformar a aleatoriedade
aparente em formas visíveis, procurando-se através deles, predizer as
características qualitativas do comportamento de um sistema (Capra, 1996).
Os atractores estranhos vivem em “espaços de fase”, um espaço em que o
estado completo de conhecimento sobre um determinado sistema dinâmico,
num determinado instante de tempo colapsa num ponto (Gleick, 2005). Ou
seja, corresponde a um ponto que em determinado instante, representa a
totalidade do sistema. De acordo com Gaiteiro (2006) este espaço pode ser
considerado, abstracto, não topológico, conjectural, multidimensional e pode
assumir tantas dimensões quantas as variáveis que caracterizam o
comportamento do sistema, expressando ainda, a totalidade de possibilidades

160
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

comportamentais, representando deste modo num único ponto todas as


características do sistema. O espaço de fase pode deste modo ser entendido,
como um retrato fiel da realidade (Gleick, 2005). Por este motivo, Capra (1996)
designa de “retrato de fase”, a figura dinâmica de todo o sistema, sendo que
esta resulta, da classificação dos atractores e das bacias de atracção, de
acordo com as suas características topológicas.
Este autor, alerta para o facto de ser uma característica comum a todos os
sistemas caóticos, a impossibilidade de predizer, por que ponto do espaço de
fase, passará a trajectória do atractor num determinado instante, contudo
esclarece, que tal não significa que a teoria do caos não consiga efectuar
qualquer tipo de previsão, pelo contrário, permite efectuar previsões bastante
precisas, que contudo, se reportam às características qualitativas do
comportamento do sistema.
Temos vindo a sugerir que o Futebol é um sistema caótico, como tal, o caos
que o caracteriza cai num determinado campo de possibilidades, ou de
tendências, isto é, numa bacia de atracção que deverá ser construída (Paulo
Cunha e Silva, Anexo 4). A previsibilidade com que se manifestam, as
características qualitativas de um jogar, sendo uma bacia de atracção,
comporta-se como a âncora que suporta esse jogar. Para que a construção
dessa bacia de atracção seja possível, torna-se determinante que o processo
em termos macro, obedeça e tenha subjacente uma determinada “filosofia”, a
qual possibilite à equipa, a expressão de um padrão de problemas e a
possibilidade de com base nessa identidade, responder ao padrão de
problemas colocado pelos adversários (Marisa Gomes, Anexo 5).
O reconhecimento da possibilidade de previsão das características
qualitativas de um sistema, como por exemplo a equipa ou os Jogadores, torna
pertinente a reformulação do modo como geralmente se efectuam as análises
ou observações de Jogo, por norma quantitativas. O Futebol requisita também
a este nível, uma mudança de paradigma, devendo passar da observação
quantitativa para a qualitativa. Entendemos deste modo, que uma abordagem
qualitativa, deve procurar a identificação de um retrato de fase, uma figura
dinâmica do jogar das equipas, e ainda tentar identificar quais as suas bacias

161
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

de atracção. Devemos entender uma “bacia de atracção”, como uma


determinada região do espaço de fase, em que se iniciam mais tarde, ou mais
cedo, todas as trajectórias (Capra, 1996). Extrapolando para o Futebol, a
detecção das bacias de atracção de uma equipa, permitir-nos-á perceber e
identificar quais as regularidades tendenciais das equipas, e com isto decifrar
ou aferir o modo como os Princípios de Jogo se expressam, e ainda quais os
Jogadores, que corporizam tais bacias de atracção. Isto é, quais os Jogadores
referência que assumem maior preponderância na dinâmica de todo o sistema
que é a equipa. Ou ainda, perceber quais as zonas do campo mais exploradas
pela equipa, entre muitas outras regularidades. O Jogo diz-nos tudo, mas a
grande questão é saber o que lhe perguntar (Garganta, 2006a). “O
CONHECIMENTO necessário é o de OBSERVAR O QUÊ.” (Edgar Allan Poe,
s/d, cit. por V. M. d. C. Frade, 1990, pp. 2).
Importa contudo relembrar, que sendo o Jogo um sistema caótico, este é
igualmente caracterizado pela extrema sensibilidade às condições iniciais, e
que como tal, um pequeno desvio inicial, pode representar desvios enormes
numa escala maior (Capra, 1996; Ekeland, 1995). Como tal, a utilização da
informação proveniente da observação e análise qualitativa do Jogo, deverá
ser operacionlizada e contemplada com bastante parcimónia, sob pena de
descaracterizar o retrato de fase (Modelo de Jogo) da própria equipa, entrando
deste modo, num “ponto de bifurcação” que poderá, ser altamente pernicioso.
Os pontos de bifurcação são, novos atractores que surgem subitamente,
caracterizados por serem estruturalmente instáveis, e permitirem a evolução,
mas também (in)volução do sistema numa nova direcção.
Por este motivo Frade (2002, cit. por Amieiro, 2005, pp. 68/69) adverte que,
“preocuparmo-nos em demasia com a dimensão estratégica pode levar-nos a
alterar em demasia aspectos tidos como fundamentais no que se refere à
nossa concepção de jogo”, acrescentando que “a ênfase colocada na
dimensão estratégica pode interferir com aquilo que são os princípios de jogo”.
Ou seja, a contemplação desajustada, das “alterações estratégicas de
circunstância” (V. Frade, 1985), a dimensão estratégica, pode tornar-se um
“«atractor estranho»”, ou um “«buraco negro»” (B. Oliveira et al., 2006).

162
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Sendo o Jogo um sistema caótico, e como tal extremamente sensível às


condições iniciais, aquilo que pode à partida ser um pormenor na dinâmica e
Organização Colectiva de uma equipa, rapidamente poderá se revelar como
“pormaiores”, capazes de se transformem em verdadeiros desastres colectivos.
Não obstante, não devemos esquecer que “se conheces o teu adversário como
a ti mesmo não receies uma centena de batalhas, se te conheces, mas não
conheces o adversário, por cada vitória sofrerás uma derrota, se não te
conheces nem conheces o adversário, sucumbirás em cada batalha” (Tzu,
1994). Os atractores estranhos, revelam-se fundamentais para conhecermos
não somente o adversário, mas também as próprias equipas, no sentido em
que poderão revelar determinadas regularidades, que passam aparentemente
despercebidas aos treinadores, mas que na realidade, pela essência caótica do
sistema se assumem como relevantes. Estes atractores poderão ser benéficos
para o jogar das equipas, e como tal a sua identificação, pertinente no sentido
de os contemplar no treino, algo que não sucede se o treinador for incapaz de
os identificar. Não obstante, os atractores podem igualmente ser
contraproducentes para uma determinada forma de jogar, e deste modo, sendo
um «estorvo», deverão ser detectados e erradicados precocemente, para evitar
que através de um processo continuado, treino e Competição, desenvolvam um
retrato de fase, que se contrapõe aos intentos do treinador, impossibilitando-o
de dar forma ao retrato de fase que deseja, o Modelo de Jogo da sua equipa. A
necessidade de detecção precoce destes desvios indesejados, com o intuito de
não se treinarem e enraizarem erros, realça a importância de desde idades
muito precoces, a avaliação do processo se fazer atendendo a uma abordagem
qualitativa, e não estritamente quantitativa, como acontece por norma (B.
Oliveira et al., 2006). De acordo com Gaiteiro (2006), o facto do sistema caótico
evidenciar sensibilidade anormal às perturbações e flutuações, apesar de se
caracterizar por globalmente estável, do qual é sinónimo o atractor estranho,
encerra também uma fonte de regularidade, aleatoriedade e imprevisibilidade,
a nível local, evidenciada através de trajectórias irrepetíveis. Por este motivo, “o
Jogo de Qualidade tem demasiado Jogo, para ser Ciência, mas é demasiado
científico para ser só Jogo” (V. Frade, 2006). Isto é, comporta simultaneamente

163
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

um plano cientificável, que requisita contudo o pensamento sistémico, e que se


reporta ao plano dos Princípios de Jogo de uma equipa, as suas regularidades
ou invariâncias, e comporta também um plano de Jogo, não cientificável, por se
constituírem como emergências, o qual nos reporta para o contingente, para o
aleatório, para o inopinado e ainda para a criatividade.
O reconhecimento de que o Jogo contempla estes dois planos é, quanto a
nós determinante, visto que somente deste modo, não o estaremos a esterilizar
e a colocar “num tubo de ensaio”, preservando-se deste modo, a essência
daquilo que queremos estudar, o Jogo (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4). Em
conformidade V. Frade (1979, pp. 9) afirma que a “aprendizagem não é um
fenómeno «IN VITRO», isto é, não é um problema tecnocrático, de
concretização mais ou menos mecânica.” Entendemos por isso, que atender
apenas a uma das dimensões é, bastante redutor. Um treinador que considere
que tudo no Futebol pode ser controlável, adopta uma posição semelhante à do
Deus de Laplace, vive num embuste (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4), do
mesmo modo, consideramos que um treinador para o qual, nada existe de
cientificável no Jogo, é alguém que não acredita nas potencialidades da
operacionalização do seu processo. “Ou seja, o treino tem a capacidade de
fabricar atractores em territórios (comportamentos) motores desconhecidos. Ao
criar esses territórios, essa nova acção passa a ser familiar para quem a
pratica, a estranheza a variabilidade (no sentido da descoordenação) inicial é
substituída pela familiaridade posterior”. (P. C. e. Silva, 1999, pp. 110).
Sustenta-se deste modo, a necessidade de apreender a pertinência do
processo criar bacias de atracção no Futebol, visto que são estas, que
permitem conferir regularidade e o emergir de um padrão identificável a um
sistema instável, sem os atractores, tenderíamos a uma constante
desidentificação, pela inexistência de referências, o que nos colocaria «fora-de-
jogo».

164
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

4.7.1.3 - Para a perpetuação da Paixão, e não extinção do Talento urge


um Futebol na «Fronteira do Caos».

“Numa simples interpretação literal das palavras elas parecem inconciliáveis ou inimigas. A
ordem está para limitar o talento. O talento, esse, está para subverter a ordem. Errado. Ambas
estão para o futebol como a moldura e a tela para a pintura.”
(Lobo, 2007, pp. 48).

Ao longo desta abordagem, em que nos temos reportado às ramificações da


teoria do caos, encontra-se subjacente a noção de desordem. De facto, o
Universo tende para a entropia geral, ou seja para uma desordem maximal,
importando contudo não ignorar, que a desordem e a ordem, durante muito
tempo concebidas como inimigas, cooperam no sentido de organizar o
Universo. Assim, uma determinada ordem organizacional pode nascer a partir
de um processo que produz desordem (Morin, 2003). Importa salientar, que
entropia, não deverá ser entendida como uma medida de desordem, mas
sobretudo como uma medida de complexidade (Biase, Schweitzer, & Rocha,
2004), das muitas medidas de complexidade, a que mais se lhe ajusta
(Mendes, 2007).
No Futebol a relação entre ordem e desordem é determinante, “tudo no
futebol, incluindo a criatividade, necessita de apoiar-se numa ordem” (J.
Valdano 1998, pp. 26). “Numa simples interpretação literal das palavras elas
parecem inconciliáveis ou inimigas. A ordem está para limitar o talento. O
talento, esse, está para subverter a ordem. Errado. Ambas estão para o futebol
como a moldura e a tela para a pintura.” (Lobo, 2007, pp. 48).
Lourenço & Ilharco (2007) destacam o facto de uma das grandes
insuficiências do pensamento reducionista ter resultado da incapacidade, de
aceitar a desordem e o desequilíbrio, seguindo deste modo, o “caminho da
ordem”, ignorando que a desordem é parte integrante do Universo. De acordo
com Capra (1996), os sistemas vivos combinam a estabilidade da estrutura
com a fluidez da mudança. Morin (2003, pp. 129) refere que, “num universo de
ordem pura, não haveria inovação, criação, evolução. Não haveria existência
viva nem humana”, e a prova disso, são os cemitérios, no entanto, adverte que

165
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

de igual modo, a desordem pura, não permite nenhuma existência, uma vez
que não haveria qualquer elemento de estabilidade para fundar uma
determinada organização. Paulo Cunha e Silva (Anexo 5) salienta a este
respeito, que o Corpo se organiza a partir de dois pressupostos, o corpo
centrípeto, que acumula e organiza, e o corpo centrífugo, que busca a
excitação e tende para a dissipação, não podendo contudo permanecer
permanentemente numa destas dimensões sob pena de se dissipar, pelo
contrário, para sobreviver necessita de viver sobre a tensão que esta
bipolaridade lhe coloca.
Depreende-se deste modo, que todos os sistemas necessitam de ordem e
de desordem. Sendo fundamental, que se encontre um “sentido da divina
proporção” (B. Oliveira et al., 2006), tal como no Futebol, onde se torna
fundamental encontrar um meio que possibilite o mínimo de ordem e o máximo
de liberdade (J. Valdano, 1998). Na verdade as equipas de qualidade
caracterizam-se por viverem longe do equilíbrio, sem contudo, perderem a
ordem que serve de suporte a tal liberdade, não libertina.
O Futebol, como na generalidade dos sistemas vivos, encontra-se num
estado de continua flutuação entre um limite inferior e superior (Capra, 2005).
Por este motivo, são sistemas que vivendo na “fronteira do caos” (Stacey,
1995), apresentam como vantagem o facto de poderem incorporar o novo, e de
revelarem uma grande flexibilidade comportamental, por serem capazes de
sobreviver numa determinada “franja” ou “zona fluída” (Paulo Cunha e Silva,
Anexo 4).
Os sistemas vivos caracterizam-se deste modo, por viverem afastados do
equilíbrio, sendo um organismo em equilíbrio24, “cristalizado”, um organismo
morto (Marisa Gomes, Anexo 5; Paulo Cunha e Silva, Anexo 4). É o facto de se
encontrarem afastados do equilíbrio que lhes confere Vida, e é graças a este

24
Equilíbrio: “estado em que não há tendência para o movimento para além de um
determinado modelo de comportamento. Poderá ser um estado estável ou instável, mas é
sempre ordenado, no sentido de que o mesmo modelo de comportamento é sempre
observado. O comportamento em equilíbrio é repetitivo e previsível, pelo menos em alguns
níveis.” (Stacey, 1995, pp. 547).

166
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

facto, que podem desenvolver estados de complexidade crescente (Capra,


1996).
Através do processo de treino procura-se, a evolução continuada de um jogar
e por inerência dos Jogadores que lhe estão subjacentes, visto que se trata de
uma AutoHeteroEvolução25. Uma evolução, que para ser qualitativa se tem de
observar em termos de complexidade, urgindo deste modo, que a
operacionalização, e expressão desse jogar e dos potenciais Talentos, se faça
longe do equilíbrio, para que não estagnem e morram. Entendemos, que face
ao exposto, a construção de um jogar e a consequente elevação a níveis
sublimes, assim como a exponenciação de Talentos, aquilo que de facto
desperta a paixão, deve obedecer ao Princípio Metodológico da Progressão
em Complexidade (B. Oliveira et al., 2006; M. Silva, 2008), o qual na
Formação deve ser perspectivado numa lógica de Periodização à La Long26.

25
AutoHeteroEvolução: optamos por redigir este termo como um todo, com o intuito de
enfatizar a necessidade da evolução dos Jogadores (Auto) e de um jogar (Hetero), ser
entendida como uma inteireza inquebrantável. Entendimento fundamental, para o modo como
perspectivamos o Jogo. Os Jogadores, os treinadores, o jogar, e tudo o que os envolvem,
encontram-se imbricados num mesmo “nicho ecológico” (Marisa Gomes, Anexo 5).
26
Periodização à La Long: trata-se de um conceito nuclear, para o modo como entendemos a
Formação, e que visa estabelecer como premissa o facto do processo de Formação, o qual
decorre ao longo de vários anos (à La Long), ter subjacente a emergência de um determinado
jogar, cuja complexidade deverá emergir paulatinamente, para níveis de complexidade
crescentes. Sendo para tal necessário, que a complexidade a que se aspira, seja previamente
sistematizada, “quantificação à priori” (V. Frade, 2006), requisitando uma Periodização de uma
determinada complexidade, Táctica, e que decorre ao longo dos vários anos de Formação.

167
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

4.7.1.4 – A necessidade de Dissipação, um “Doping” numa Cultura que


desde muito cedo deve ser de Risco.

“No mundo vivo das estruturas dissipativas, a história desempenha um papel importante, o
futuro é incerto e a incerteza está no cerne da criatividade”.
(Capra, 1996, pp. 158).

Os sistemas que se constituem «longe do equilíbrio», na medida em que


requisitam um aporte contínuo de energia e de matéria para se preservarem,
são designados de «estruturas dissipativas» (P. C. e. Silva, 1999). Segundo
Laborit (1987) nestas estruturas, não se verifica o antagonismo natural entre
acaso, irregularidade e determinismo. Constatando-se deste modo, que a
irregularidade é o resultado de um jogo determinista, não linear, com diversas
variáveis. Por conseguinte, já não se constitui como um sistema aleatório
clássico, encontrando-se a realidade entre irregularidades e determinismo.
O conceito de estrutura dissipativa foi proposto por Ilya Prigogine, um
Cientista que introduziu uma mudança fundamental na sua teoria de estruturas
dissipativas, ao evidenciar que em sistemas vivos, que operam afastados do
equilíbrio, os processos irreversíveis desempenham um papel construtivo e
indispensável (Capra 1996). Esta irreverssibilidade, é segundo Prigogine (1983,
cit. por Capra, 1996) determinante pois permite produzir ordem a partir do caos.
Biase, Schweitzer, & Rocha (2004) referindo-se ao trabalho desenvolvido por
Prigogine salientam que este, desenvolveu uma extensão da Termodinâmica
capaz de evidenciar a emergência de novas estruturas de ordem, a partir do
caos. Este tipo de auto-organização gera estruturas dissipativas, criadas e
mantidas através de intercâmbios de energia com o ambiente, em condições
de não-equilíbrio. Estas estruturas dissipativas encontram-se dependentes de
uma nova ordem, designada por Prigogine de ordem por flutuações,
correspondente a uma «flutuação gigante» estabilizada pelas trocas com o
meio de uma dissipação de energia, na qual a energia se desloca, gerando
simultaneamente a estrutura, através de um processo contínuo. Quanto mais
complexa a estrutura dissipativa, mais informação é necessária para manter
suas interconexões, tornando-a consequentemente mais vulnerável às

168
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

flutuações internas, o que significa um maior potencial de instabilidade e de


possibilidade de reorganização. Prigogine (1989, cit. por Capra, 1996 pp. 155)
descreve as estruturas dissipativas como sendo, “ilhas de ordem num mar de
desordem, mantendo e até mesmo aumentando sua ordem às expensas da
desordem maior em seus ambientes”, ou seja, “a ordem flutua na desordem”.
Segundo Dalai-Lama (2006) uma das definições fundamentais da Vida é a
«entropia negativa», a capacidade desta se desenvolver do caos para a ordem.
Capra (1996) sugere que o conceito de estruturas dissipativas é, não apenas
fundamental para os cientistas entenderem a Vida, mas também para nos
auxiliar a integrarmo-nos de forma mais plena na Natureza. Ajudando por
conseguinte, a compreender mais profundamente o Jogo, e mais
concretamente, a evolução e o processo de construção de um jogar, e de
exponenciação de Talentos. Até porque, como refere Prigogine (1979, cit. por
Capra, 1996), das novas formas de interacção entre antigos padrões, resultam
novas conexões, logo, um novo padrão, as partes são deste modo,
reorganizadas num novo todo, e o sistema alcança uma ordem mais elevada.
Sendo esta uma das principais finalidades da operacionalização de um jogar,
como salientamos acima. Aliás, apesar de se tratar de um conceito das áreas
da Física e da Química, a sua aplicabilidade não se confina a estes domínios,
podendo considerar-se inclusive transversal, pela pertinência que assume a
sua adopção noutras áreas (P. C. e. Silva, 1999), sendo mesmo estruturas que
se manifestam na generalidade dos fenómenos característicos da Vida (Capra,
2005).
Relativamente às estruturas dissipativas, devemos ter em consideração que,
quanto maior o afastamento do equilíbrio, mais fortes os “escoamentos “, o que
aumenta consideravelmente a entropia do sistema, que deste modo, não tende
mais para o equilíbrio. Neste estado, o sistema pode experimentar uma
instabilidade que origina novas formas de ordem que se afastam mais do
sistema no estado de equilíbrio. Assim afastadas do equilíbrio, as estruturas
dissipativas podem desenvolver formas de complexidade crescente e cujas
características dessa estrutura dissipativa não podem derivar das propriedades
de suas partes, mas são em vez disso, consequência da «organização

169
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

supramoleular» que originam, estabelecendo correlações de longo alcance,


que aparecem precisamente no ponto de transição do equilíbrio para o não-
equilíbrio, sendo que a partir desse ponto em diante o sistema se comporta
como um todo (Capra, 1996).
Face ao exposto, com base neste conceito podemos não somente perceber
como se fabrica o jogar de uma equipa, ou seja, como se operacionaliza a
crescente complexificação do seu jogar, através da emergência de novas
formas de ordem, que são tanto mais facilmente alcançáveis quanto mais
elevado for o estado de entropia experimentado pela equipa. A qual deverá
permanecer na fronteira do caos, sem que os padrões antigos se desagreguem
antes da nova ordem se constituir. Depreende-se de tal entendimento, que
quanto mais uma equipa, e como é óbvio um potencial Talento, procurarem
viver nos limites do caos, mais evoluirão para níveis de complexidade
superiores. Se pelo contrário permanecerem no equilíbrio, os seus estados de
desenvolvimento serão nulos, e enquanto sistemas vivos, morrerão. Paulo
Cunha e Silva (Anexo 4) salienta, que temos necessidade de alternarmos
momentos de centripetação, com momentos de centrifugação nos quais se
observa uma dissipação parcial, e não plena, pois tal não se compadece com a
essência da Vida. Sugerindo, que este padrão comportamental se pode
observar nos Jogadores em Competição.
O correcto entendimento de Rendimento Superior tem subjacente, a
dimensão centrífuga, a Cultura do Risco. Para se estar e aspirar a este nível, e
a níveis de complexidade crescentes, é fundamental viver constantemente na
fronteira do caos, desafiando os limites do impossível (V. Frade, 2006).
Segundo Marisa Gomes (Anexo 5), é a possibilidade de experienciar estes
estados desafiadores, que “dá pica” e incita à AutoHeteroSuperação,
funcionando assim como um “doping”, para a exponenciação dos Talentos.
Acrescentando que esta dimensão, que os faz crescer, deve ser parte da
Cultura de jogo a que os jovens se vão Aculturando. Ou seja, a Cultura de
Risco, deve ser contemplada ao longo dos vários anos em que se processa a
Formação.

170
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Cunha e Silva (1999, pp. 115) ajuda-nos a perceber a relevância das


estruturas dissipativas, no processo de adaptabilidade decorrente do treino,
quando salienta que também o “corpo desportivo” se pode admitir como uma
estrutura dissipativa, “porque é um corpo que se configura no estímulo da
competição, no esforço de superação, na adversidade do meio, é um utilizador
muito mais radical da «termodinâmica do não-equilíbrio». Ele serve-se da
hostilidade do meio (dessa desordem) para se ultrapassar (para criar uma nova
ordem interna de muito maior complexidade).”
As estruturas dissipativas são, pelo que referimos, fundamentais para a
AutoHeteroEvolução de um jogar, e são igualmente determinantes para
perceber o emergir da criatividade no Jogo, como sustentam as seguintes
palavras de Capra (1996, pp. 158), “no mundo vivo das estruturas dissipativas,
a história desempenha um papel importante, o futuro é incerto e a incerteza
está no cerne da criatividade”. Daqui se depreende que o emergir da
criatividade, algo de fundamental para a qualidade dos sistemas vivos, e do
Jogo, como salientaremos mais adiante, encontra-se facilitado quanto mais
afastadas do equilíbrio as equipas jogarem.

4.7.1.5 – EcoAutoOrganização, o emergir de jogares e Talentos


AutoHeteroSustentáveis.

“Aliás, o que é individualizar (constituir um indivíduo, estabelecer uma identidade) senão auto-
organizar?”.
(P. C. e. Silva, 1999 , pp. 118).

O conceito de estrutura dissipativas tem subjacente, um outro conceito


fundamental que importa considerar, para um adequado entendimento destas
estruturas e do mundo vivo em geral. Trata-se do conceito de auto-
organização27, já aludido na referência efectuada Biase, Schweitzer, & Rocha
(2004), acerca das estruturas dissipativas.

27
Auto-organização: “processo em que os comportamentos comunicam espontaneamente
entre si e cooperam subitamente num comportamento comum, coordenado e concertado.”
(Stacey, 1995).

171
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Este conceito é de tal forma importante, que Kafatos, (1998, cit. por
Drãgãnescu & Kafatos, 2004) indicou que fosse proposto, como princípio
fundamental na Filosofia da Ciência.
Laborit (1987) refere que nos encontramos perante um organismo vivo, se
este revelar as seguintes características; auto-conservação, auto-regulação,
auto-organização e auto-reprodução. Em conformidade para Reeves et al.,
(2006) um organismo vivo caracteriza-se por ser um sistema capaz de
assegurar a sua própria conservação, de se gerir a si próprio e de se
reproduzir. No mesmo comprimento de onda Dalai-Lama (2006) salienta, que
uma das características-chave dos organismos é, o facto de serem sistemas
auto-sustentados.
Foi evidente, através da abordagem efectuada ao conceito de estruturas
dissipativas, que os sistemas que se desenvolvem longe do equilíbrio, são
capazes de a partir da desordem gerar ordem (P. C. e. Silva, 1999). Em todo o
mundo vivo o caos é transformado em ordem (Capra, 1996). Daqui resulta a
importância da auto-organização que, segundo Atlan (1993, cit. por P. C. e.
Silva, 1999) é um processo de criação e de estabilização da novidade.
Como já salientamos, de acordo com Capra (2005), existe entre os seres
vivos, uma tendência comum para formarem estruturas de múltiplos níveis, que
diferem na sua complexidade, devendo esta ser entendida como um princípio
básico da auto-organização. Nos diferentes níveis de complexidade
encontramos sistemas integrados, todos auto-organizadores, que consistem
em partes menores, mas que simultaneamente actuam como partes de
totalidades maiores, assim a ordem num nível sistémico é consequência da
auto-organização num nível maior. Lourenço & Ilharco (2007) reconhecendo
que a desordem é parte fundamental da Vida, sugerem que os seres vivos se
conseguem auto-organizar. Sendo fundamental para a compreensão dos
fenómenos auto-organizados, a compreensão da noção de padrão (Capra,
1996). Ainda de acordo com este autor, o seu entendimento é crucial para o
entendimento do mundo vivo, e ainda, para uma compreensão científica da
Vida.

172
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Capra (2005) reforçando a importância deste conceito refere que, a partir do


momento em que assumimos que a essência dos organismos vivos é, a auto-
organização, o principal objecto de preocupação das Ciências da Vida é, o
estudo dos processos padronizados dos sistemas auto-organizadores, e ainda
as energias envolvidas nesses processos. Daqui se depreende, que as
Ciências do Desporto devem igualmente centrar as suas abordagens sobre
este conceito. Este autor adverte ainda, que a estabilidade dos sistemas auto-
organizadores deve ser entendida como profundamente dinâmica, não
devendo por isso ser confundida com equilíbrio. Esclarecendo, que tal
estabilidade dinâmica consiste, na manutenção da mesma estrutura global
apesar de mudanças e substituições contínuas de seus componentes. Como
realça Hawking (2002, pp. 94) “as histórias mais prováveis não são
perfeitamente regulares, tendo, em vez disso, pequenos altos e baixos.” Os
sistemas vivos encontram-se deste modo, numa permanente situação de
desequilíbrio, sem contudo perderem o seu padrão organizacional, podendo a
partir desse estado de desequilíbrio, ou desordem aparente, aceder a um nível
mais elevado, num processo que complexifica o sistema. Os processos de
auto-organização advêm de um estado de desordem, estado esse fundamental
para a existência de Vida, por esse motivo, Drãgãnescu & Kafatos (2004)
referem que a emergência de Vida no Universo, resulta de um processo de
auto-organização.
A auto-organização pode ser definida, como a emergência espontânea de
novas estruturas e formas de comportamento nos sistemas abertos não-
lineares, caracterizados por laços de feedback internos descritos por meio de
relações não-lineares (Capra, 1996). Este processo assume-se deste modo,
como um processo vital para o mundo vivo, Smith & Szathmáry (2007)
salientam a este respeito, que alguns biólogos advogam para o
desenvolvimento dos seres vivos, um conjunto de processos dinâmicos auto-
organizados, o que se atendermos ao que foi referido anteriormente, em
relação às estruturas dissipativas, nos parece ajustado, uma vez que como
salientamos, o novo estado de organização que caracteriza o organismo,
resulta de um processo criativo, que transporta o sistema para um novo nível,

173
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

caracterizado por maior complexidade, com novas relações entre os seus


componentes, sem contudo reverter o seu padrão inicial. No caso de uma
espécie, observa-se o emergir ao longo da sua evolução, de novas relações
que conferem maior complexidade ao organismo, sem que esta perca as
características, as suas características filogenéticas.
Marisa Gomes (Anexo 5) salienta que podemos estabelecer uma analogia,
entre o que se observa na evolução das espécies e dos Talentos no Futebol.
Sugerindo, que é da maior ou menor adaptabilidade, e consequentemente
maior ou menor criatividade que os Talentos revelam face aos contextos, que
resulta a respectiva evolução ou extinção. O mesmo sucedendo com as
espécies, que como verificamos anteriormente, evoluem através do emergir de
níveis de complexidade crescentes, referenciados a um determinado padrão.
Também nós entendemos, que a evolução qualitativa de um Talento se
observa pelo emergir de novas relações e níveis de complexidade, sem perda
de determinados padrões, relacionados com a singularidade de cada Talento
(Auto), mas também com padrões (Princípios de Jogo) relativos a um
determinado jogar (Hetero), os quais lhe permitem uma afinidade com um
determinado filo, a equipa.
Para Capra (1996) um sistema vivo é auto-organizador, uma vez que a sua
ordem e comportamento não são impostos pelo meio ambiente, sendo deste
modo autónomos, o que não significa, que se encontrem isolados do seu meio
ambiente, muito pelo contrário, interagem com o meio ambiente por intermédio
de um intercâmbio contínuo de energia e matéria, embora não seja essa
interacção que determina a sua organização, pois por definição são auto –
organizados.
Morin (2003) aprofunda esta problemática ao evidenciar que os sistemas
auto-organizadores se destacam do meio e se distinguem dele, pela autonomia
e individualidade que revelam, mas que ao mesmo tempo se ligam tanto mais a
esse mesmo meio, pelo crescimento da abertura e pela troca que acompanha
qualquer progresso de complexidade. Por conseguinte o sistema auto-
organizador, pode ser designado auto-eco-organizador, uma vez que o meio
está no seu interior desempenhando um papel co-organizador. Neste sentido, o

174
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

sistema auto-eco-organizador não pode portanto bastar-se a ele próprio, só


pode ser totalmente lógico ao introduzir nele, o meio. Enquanto realidade
aberta não pode “terminar-se, fechar-se e autobastar-se.” Este aspecto é,
particularmente relevante, sobretudo se atendermos que a operacionalização
de um jogar decorre, num “nicho ecológico” Específico, do qual são parte os
Jogadores e treinadores, aos quais é possível intervir no lado emergente do
processo, o que não sucede, com os elementos que não fazem parte desse
ecossistema (Marisa Gomes, Anexo 5).
Os organismos além de auto-organizadores são também autopoiéticos, visto
que, além de serem capazes de a partir da desordem conferirem ordem, são
igualmente capazes de com base nessa desordem, partir para um nível mais
elevado de ordem, alcançando assim níveis de complexidade superiores. O
conceito de autopoiese, foi introduzido por Varela, Maturana e Uribe no ano de
1974, e procurava definir os seres vivos enquanto sistemas capazes de se
reproduzirem a si mesmo (Gaiteiro, 2006). Para Capra (1996) a autopoiese,
que significa auto-produção, caracteriza o padrão de organização dos sistemas
vivos, admitindo-o como a característica que define a Vida, sugerindo que para
se descobrir se um determinado sistema é vivo, tudo o que precisamos de
fazer é descobrir se o seu padrão de organização é o de uma rede
autopoiética. A autopoiese, ou auto-criação pode deste modo ser entendida,
como o Padrão da Vida, revelando-se um padrão de rede no qual, a função de
cada componente contribui em particular para a produção ou transformação
dos outros componentes da rede, criando-se assim, continuamente a si
mesma. Deste modo, estes sistemas são simultaneamente produtores e
produto, como salienta Morin (2003), que acrescenta que o organismo vivo,
pela relação que estabelece com o meio envolvente, se auto-organiza e se
auto-reproduz, sendo por isso, ao mesmo tempo capaz de auto-eco-
organização e auto-eco-produção.
A aplicação do conceito de autopoiese é extensível aos sistemas sociais
(Capra, 1996; Drãgãnescu & Kafatos, 2004; Gaiteiro, 2006). Daqui se
pressupõe que a aplicabilidade deste conceito, tem toda a pertinência para o
Futebol. “No mundo do futebol, a formação de uma unidade com carácter auto-

175
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

eco-organizador, sustentada em interesses comuns e coligações à volta de


determinados problemas. A cooperação, discussão, acção, interacção,
comunicação, empenho como pretensa resolução dos desafios que fragilizam e
solidificam as estruturas desenvolvidas” (Gaiteiro, 2006, pp. 79). Consideramos
que a vitalidade dos sistemas que compõem o Futebol depende, em grande
parte, da capacidade que estes revelam para se renovarem e auto-produzirem.
Julgamos, que tal pode e deverá ser perspectivado a dois níveis, um a mais
curto prazo, e outro a mais longo prazo. Entendendo, que a aplicabilidade do
conceito autopoiese, faz todo o sentido no seio de sistemas como as equipas
de Futebol, consideramos, que estas deverão, ao longo de uma época
desportiva, serem capazes de se renovarem continuamente, fazendo evoluir os
seus jogares, e os seus Jogadores, permitindo que as equipas acedam a níveis
de complexidade crescentes, capazes de as fazer sobreviver no contexto
altamente competitivo que as envolve. Caso as equipas, não consigam fazer
emergir ao longo de uma época um conjunto de novas qualidades, tornar-se-ão
previsíveis e limitadas ao nível da qualidade dos respectivos jogares, não se
verificando qualquer Progressão Complexa. Acrescentamos ainda, que o facto
dos clubes, poderem ser considerados sistemas autopoiéticos, numa
dissertação como esta, cujo enfoque dá primazia à Formação remete-nos para
algo que consideramos de grande relevância. Assim, e partindo do princípio de
que a melhor forma dos clubes enfrentarem as dificuldades económicas
vigentes é recorrendo à Formação, entendemos, que também a este nível
deverão ser capazes de se auto renovarem e de se auto produzirem. Os
clubes, em que a Cultura de Formação se encontra devidamente instituída,
organizada e operacionalizada, através de um processo a longo prazo de
qualidade, Periodização à La Long, apresentarão tais potencialidades. Ou seja,
serão susceptíveis de renovarem constantemente os seus plantéis, fazendo-o
de forma autosuficiente, perpetuando e enriquecendo consequentemente, as
respectivas Culturas de Formação. Cumprindo deste modo, com o Princípio
Metodológico da Progressão Complexa. As equipas destes clubes renovar-
se-ão periodicamente ao longo de anos, através da inclusão de Jogadores já
devidamente Aculturados, que de modo mais facilitado e célere desenvolvem,

176
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

os seus processos de adaptabilidade às equipas seniores dos clubes. Estes


Jogadores poderão face ao exposto, mais facilmente substituir Jogadores que
entretanto por motivos diversos, vão abandonando os clubes, mantendo deste
modo, a vitalidade destes. Para que tal seja exequível, defendemos ser
necessária a existência de um fio condutor, isto é, um padrão, um determinado
Modelo de Jogo, Modelo de treino e Modelo de Jogador, cujas articulações
sejam devidamente efectuadas entre os escalões de Formação e o que se faz
nos planteis seniores.
Como característica nuclear dos sistemas autopoiéticos, podemos considerar
o facto destes, passarem por continuas mudanças estruturais enquanto
preservam os seus padrões de organização, o que permite que apesar das
mudanças, os sistemas mantenham suas identidades, ou seja, os padrões de
organização global. As mudanças observadas no seio destes sistemas são
determinantes, no sentido em que se constituem como o cerne para a adopção
de comportamentos futuros, o que os torna igualmente sistemas de
Aprendizagem (Capra, 1996). Com base nestes pressupostos, um determinado
Modelo de Jogo deve ser entendido como um sistema auto-organizado e
autopoiético, algo em aberto e dinâmico, contemplando mudança, um aspecto
determinante para o emergir da criatividade dentro do sistema, que tendo
subjacente um determinado padrão, permite ao jogar e aos potenciais Talentos
que o suportam, evoluirem para níveis de complexidade mais elevados, sem
perda de identidade. O processo e o emergir de Talentos, estabelece-se a
partir de sistemas auto-organizados (V. Frade, 1979). Tratando-se de uma
modelação dinâmica, em que o conceito de Modelo de Jogo tem de ser
encarado, como algo capaz de gerar ordem a partir do caos, tendo por base as
âncoras do seu padrão, os Princípios de Jogo, devendo simultaneamente ser
passível de expansão, sendo para tal determinante viver afastado do equilíbrio,
sem perder os seus padrões globais de organização. Pode assim considerar-
se, que o processo que permite aspirar ao futuro, é determinado pelo acto de
Modelação de um jogar, e não o contrário, devendo para isso, o Jogo e os
“seus filhos”, os jogares (V. Frade, 2006) serem entendidos como sistemas
autopoiéticos. Caracterizados pela capacidade de evoluírem e de Aprenderem,

177
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

encetando uma coevolução e uma coaprendizagem com tudo o que envolve o


“nicho ecológico”. A construção de um determinado Modelo de Jogo deverá
evidenciar uma construção fractal única, aberta às contingências das
interacções que os diferentes agentes, sobretudo, Jogadores e treinadores,
mas não somente estes, podem proporcionar, e ao respectivo envolvimento
cultural em que esse jogar emergirá (J. G. Oliveira, 2004).

4.7.1.6 – Porque o Futebol não é «ping-pong», a CRIATIVIDADE carece


de ser contextualizada por um jogar!

“A minha opinião sobre esse assunto deve ter tido o homem, que pela primeira vez, afrontou um
cavalo: também ele pensou que o cavalo, com um coice apenas, o poderia inutilizar para sempre.
Mas esse homem achou que não, que a única coisa a fazer era inventar a arte da equitação
montando o cavalo.”
(A. d. Silva, 2002, pp. 58).

Os sistemas dinâmicos, onde incluímos o Futebol, assim como as formas de


o compreender, pelo que foi já exposto contemplam a criatividade como um
aspecto essencial e fundador.
“A criatividade é uma consequência importante da visão do mundo sob o
ponto de vista do caos, em que é um processo contínuo. No futebol, enfrenta-
se uma competição cada vez mais dura. Porque se trata de um jogo de
sobrevivência, só o «criativo» pode desenvolver novas maneiras de jogar, pois
possibilita que ao jogar o jogo se tenha maiores probabilidades não só de
vencer, mas que esse jogo seja de efectiva qualidade. Um jogador criador, que
se elabora e não permanece inerte. Mas sustentado numa ordem…” (Gaiteiro,
2006, pp. 48).
Ficou já evidenciado, que os sistemas vivos são, simultaneamente
determinados e livres (Capra, 1996). Para Capra (2005) os organismos vivos
têm um potencial inerente para se superarem, para criarem novas estruturas e
novos tipos de comportamento, tendo designado esta potencialidade de
“superação criativa”. A criatividade assume-se como uma característica
essencial do mundo vivo, onde os sistemas são caóticos, com um futuro
incerto, sendo nesta incerteza que se encontra o cerne da criatividade, a

178
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

criação de novidade é, a “propriedade-chave de todos os sistemas vivos”, uma


vez que se revelou determinante nas respectivas evoluções (Capra, 1996).
Uma evolução que com base em Marisa Gomes (Anexo 5), é análoga à
evolução dos Talentos, os quais entende, estarem relacionados com a
criatividade, pois como refere, “a criatividade tem de fazer parte do talento”.
O processo criativo assume como tal, na espécie Humana uma importância
determinante, podendo na nossa espécie ser especialmente exponenciada.
Segundo Maturana e Varela (1987 cit. por Capra 1996) o sistema social
Humano permite a amplificação da criatividade individual dos seus
componentes, no sentido, em que esse sistema existe para esses
componentes.
De acordo com Wells (2007), a essência da Humanidade reside na
criatividade, tendo sido esta a característica mais relevante na evolução da
espécie. A evolução das espécies, de acordo com a perspectiva sistémica
resulta da tendência inerente à Vida, para criar novidade (Capra, 1996). A
estrutura cerebral do Homem, parece suportar a ideia de que a criatividade se
encontra privilegiada na nossa espécie, apresentando-se a região cerebral
onde se concentra predominantemente a criatividade, o córtex pré-frontal,
especialmente desenvolvida (Arsuaga, 2007).
Lourenço & Ilharco (2007, pp. 79) destacam o facto, de para algumas das
grandes referências científicas, como, Prigogine, Morin, Heidegger, Sartre,
Weisenberg Geertz, entre outros, a essência criativa e inovadora do Homem se
encontrar, no centro do seu futuro e da própria natureza do mundo em que
vivemos. Malson (1988) salienta que algo que caracteriza o Homem é, a
“faculdade de inventar”. Para J. Bento (2004, pp. 165) “a experiência da
mudança estimula por sua vez a criatividade”. Uma afirmação que vai de
encontro, ao que salienta Marisa Gomes (Anexo 5), quando refere que o
Talento, por implicar a expressão de criatividade, tem necessariamente de
revelar adaptabilidade contextual.
Sendo a criatividade uma característica presente de forma muito evidente no
Homem, Morin (2003) salienta, que de acordo com Chomsky a criatividade
deve ser reconhecida como um fenómeno Antropológico de base. Podendo

179
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

assim ser considerada, como uma característica Antropológica, que como tal,
se assume como uma característica essencial, num Fenómeno
AntropoSocialTotal como o Futebol.
Foi a criatividade que permitiu ao Homem reinventar-se, superar-se, com isto
complexificar-se e coexistir com o meio envolvente, e inclusive dominá-lo, com
tudo o que de menos bom daí pode advir. De acordo com Jones (2006, pp. 61)
“a evolução humana segue a regra das outras criaturas e as leis da natureza
vão acabar por vencer.” No entanto, acrescenta que no caso do Homem “nem
sempre, a popularidade significa sucesso”. De facto, o Homem não tem, como
denuncia Capra (1996; 2005), conseguido uma coexistência respeitosa e
harmónica com a Natureza por se encontrar obcecado pelo seu domínio,
ignorando que o segredo da existência reside na coengendração da teia da
vida, e não na adopção de uma postura altiva e desrespeitosa face ao que o
envolve. O Homem é uma extensão da Natureza, não devendo entre estes
haver qualquer “cisura” (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4). Note-se contudo, que
o Homem revela manifestações interessantes de coexistência com o mundo
envolvente e reveladoras do seu enorme poder criativo. Segundo Vítor Hugo
(cit. por J. Bento, 2004, pp. 54), “os vencedores serão sempre aqueles que
inventaram o mundo e não aqueles que se limitaram a responder-lhe”. Também
no Futebol esta premissa se assume como determinante para o emergir de
complexidades crescentes, e para o consequente maior espanto e fascínio
criado nas pessoas. A possibilidade de dominar algo, que era à partida pouco
verosímil, desperta nas pessoas um sentimento especial, e revela o poder
criativo do Homem.
A criatividade, pode ser definida de acordo com Capra (1996) como a
geração de configurações que são constantemente novas. Para A. Goswami
(2004), criatividade consiste na descoberta de novos contextos de
pensamentos. Segundo Damásio (2003a, pp. 199) “criar consiste não em fazer
combinações inúteis mas em efectuar aquelas que são úteis” acrescentando
que é inventar, é discernir e escolher. Desta definição depreende-se o carácter
utilitário e funcional deste processo, que encontra também no Futebol um
espaço para se manifestar, e que entronca na definição daquilo, a que vulgo se

180
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

designa como “técnica”. Tendo como referência o entendimento deste conceito,


apresentado por J. G. Oliveira (2004), este não deve ser concebido de uma
forma abstracta relativamente ao contexto acontecimental do Jogo,
comportando ainda a Especificidade de um determinado jogar. Para este autor,
a Técnica resulta da adequação da sua utilização a um determinado Momento
do Jogo, salientando que por este motivo, um gesto dito “técnico”, resulta de
uma interpretação (dimensão cognitiva) situacional do jogo, ou seja resulta de
uma resposta a uma necessidade Táctica. Outros autores (Garganta & Pinto,
1998; Lopes, 2007) reforçam esta ideia, ao sugerirem que no Futebol os
aspectos relacionados com a “técnica” são determinados por um contexto
Táctico, motivo pelo qual a utilização ajustada de determinada execução
“técnica” decorre, deste compromisso. Destas opiniões, percebe-se a
pertinência da utilização do conceito de TácticoTécnica, e não o de “técnica” ou
“técnico-táctica”, cujos dois últimos consideramos desajustados. Entendemos
que TácticoTécnica e criatividade, são conceitos muito próximos e que se
diluem no Futebol, uma vez que ambos implicam a necessidade de inventar,
discernir e escolher, de forma útil (Damásio, 2003a), tendo por base um
determinado padrão (Especificidade de um jogar), que permite face à
configuração caótica do sistema, o emergir da criatividade, o qual se revela
determinante para a tomada de decisão ajustada ao contexto circunstancial de
Jogo (TácticoTécnica). O que vai de encontro ao que como referimos sugere
Marisa Gomes (Anexo 5).
Torna-se pertinente neste ponto evidenciar, o modo como a categoria
Antropológica, criatividade, se manifesta no Futebol.
De acordo com, Oliveira, J. (2004, pp. 238) “para além de todas as
capacidades, da preparação e dos conhecimentos é talvez necessário algo
mais. Talvez seja precisa muita imaginação. Porque o caminho nem sempre é
regular e a direito. Existem por vezes obstáculos e nem sempre a melhor
solução para os ultrapassar surge na cabeça dos actores de forma óbvia.
Então, é preciso criar uma «deixa» que não vem no guião, recorrendo à
imaginação que como dizia Einstein «é mais poderosa do que o
conhecimento». Amplia a visão, dilata a mente e desafia o impossível”. Este

181
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

autor, reforça a ideia que Futebol é um sistema caótico, “caminho nem sempre
é regular e a direito”, reconhecendo ainda a importância da criatividade, “algo
mais”, para conseguir dominar esse caos aparente. Uma vez mais, importa
realçar que esta criatividade deve sempre ter subjacente um determinado
padrão, para que não se descaracterize a totalidade do sistema. Como adverte
Cruyff (2002,) a criatividade não se encontra dissociada da disciplina, “no
futebol tudo, incluindo a criatividade, necessita de se apoiar na ordem” (J.
Valdano, 1998, pp. 27)
Para Colina (2006) a criatividade “é inovação, a criatividade é construir. A
criatividade é inventar algo novo e apresentar coisas antigas sob uma nova
luz”. Este ex. árbitro acrescenta ainda que no Futebol, “talvez apenas se ganhe
com a mistura certa de criatividade e organização.” Nestas palavras, destaca-
se o facto da criatividade ser sustentada em algo que já existe, “apresentar
coisas antigas sob uma nova luz”, o que realça o papel do treino na criação
dessas “coisas antigas”, que servem de suporte ao acto de criação. Além deste
facto, realça-se uma vez mais, a importância de conciliar “criatividade e
organização”, sendo para tal determinante o “sentido da divina proporção” (B.
Oliveira et al., 2006).

4.7.1.6.1 – TreinarRecuperar fundamental para criar. A necessidade de


atender ao Princípio Metodológico da Alternância Horizontal em
Especificidade

“A recuperação não é sequer uma face da moeda, é uma dimensão das duas faces que a moeda
tem.”
(Frade, 2000, cit. por Carvalhal, 2002, pp. 92).

Entendemos que a expressão da criatividade no Futebol é determinante,


devendo ser contemplada na expressão do jogar das equipas, o que implica
necessariamente a sua contemplação na operacionalização do processo que
está subjacente a esse jogar.
“Quando eu era pequeno meu pai dizia para mim: Deus te deu o dom de
jogar, a criatividade natural, mas você tem de estar sempre fisicamente

182
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

preparado para criar, para poder improvisar, então eu costumava dizer que as
duas podem. Junto é melhor, mas a criatividade é a melhor.” (Pelé, 2006a).
Relativamente a esta afirmação, sendo o Futebol “inteireza inquebrantável”, e
a criatividade uma emergência que não se pode dissociar de tudo o que a
envolve e se encontra implicado no Jogo, não devemos adoptar uma
perspectiva fragmentária do fenómeno, como sugerem as palavras
supracitadas, não obstante, o que importa reter é o facto daquele que é
considerado o maior Talento do Futebol mundial de todos os tempos,
reconhecer a criatividade como uma dimensão fundamental do Jogo. Além
deste facto, Pelé (2006a) adverte para algo que consideramos muito relevante
para a expressão da criatividade. Considera ser determinante, um Jogador não
se encontrar fatigado para poder criar. Note-se que apenas se refere à fadiga
periférica, uma perspectiva limitadora, pois não contempla a verdadeira
dimensão da Fadiga implicada no Futebol, a “fadiga táctica” (Carvalhal, 2002;
Freitas, 2004).
De acordo com Leal (2008) o cansaço, ou se quisermos a Fadiga, não é
sempre igual, devendo mesmo ser entendido como algo plural. Salientando que
na generalidade das vezes, o tipo de cansaço ou Fadiga, que mais nos
atormenta tem subjacente motivações pouco perceptíveis à partida, mas cujo
reflexo é muito relevante nos estados de alma que experienciamos, e no
destroçar da alma, como sugere. Este entendimento de Fadiga, mais
abrangente, o qual se repercute num mal-estar, e como veremos mais adiante,
por conseguinte num mal pensar, revela-se pertinente para o entendimento do
tipo de Fadiga implicada no Futebol. A “fadiga táctica” assume-se como um
aspecto fundamental, a considerar quando um treinador tem pretensão, que do
seu jogar, emirja com regularidade a criatividade. Freitas (2004, pp. 75) refere,
não ser “possível realizar todas as unidades de treino com o mesmo grau de
concentração. O treinador deverá «respeitar» uma certa alternância, devendo
distribuir temporalmente pelo microciclo (Morfociclo) padrão, os princípios, sub-
princípios e sub-princípios dos sub-princípios dos sub-princípios, de forma a
que a sua intervenção emocional, em função dos diferentes objectivos dos
vários dias do microciclo (Morfociclo) padrão, seja também ela diferenciada.”

183
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Marisa Gomes (Anexo 5), salienta que os acentuados índices de Fadiga, que
se encontram associados ao treino aquisitivo, se reflectem no modo como o
detalhe se manifesta, ou no caso, como não se manifesta, e também pelo
desajuste entre as intenções prévias e as intenções em acto28 dos Jogadores.
Sendo por este motivo, que salienta ser determinante a contemplação da
recuperação ao longo do processo, visto que somente deste modo se torna
possível a manutenção da qualidade ao longo do processo.
Importa deste modo, ter em consideração o efeito limitador subjacente aos
desempenhos que a vivenciação de um jogar, na Competição ou no treino tem,
sobre os Jogadores. “Parece-nos que só deste modo terá em consideração o
princípio do efeito limitador e evitar forçar o jogador a ter um conjunto de
atitudes e comportamentos, que vão massificar novamente os mesmos centros
nervosos” (Freitas, 2004, pp. 75).
Necessitando a criatividade no Futebol de assentar numa ordem, um
determinado Modelo de Jogo, que é corporizado pelos respectivos Princípios
de Jogo, para uma maior qualidade, e rentabilidade, tanto em treino como em
Competição, torna-se fundamental que na operacionalização se contemple os
aspectos relacionados com a “fadiga táctica”, para que a criatividade se
manifeste de forma mais regular. O que nos reporta, para a necessidade de
respeitar o “Princípio Metodológico da Alternância Horizontal em
Especificidade”29 (B. Oliveira et al., 2006; M. Silva, 2008), um princípio
metodológico que deverá ser também na Formação convenientemente
equacionado. Ainda que nas idades mais precoces, até por volta dos catorze
anos, este Princípio Metodológico, possa não ter a relevância que assume
posteriormente. No que ao padrão de desempenhos semanal diz respeito,
torna-se fundamental contemplar devidamente a gestão dos desempenhos e
da Fadiga a que os jovens são submetidos. A distribuição do padrão de
esforço, e o modo como é contemplada a recuperação nestas idades, não

28
Intenções prévias e intenções em acto, serão alvo de esclarecimentos mais adiante.
29
Princípio Metodológico da Alternância Horinzontal em Especificidade: para um conveniente e
aprofundado esclarecimento deste Princípio Metodológico, aconsellhamos a consulta da obra
de B. Oliveira et al. (2006), Mourinho - Porquê tantas vitórias?.

184
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

tendo necessariamente de seguir o “rigor” ao nível do cumprimento deste


Princípio Metodológico, não deverá deixar de ser uma preocupação, ainda que
a contemplação da recuperação se faça de forma, “mais anarca”.
O Futebol enquanto Fenómeno AntropoSocialTotal, tem implicado a
dimensão biológica (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4), a qual não poderá ser
ignorada. Existindo uma impossibilidade biológica, que não permite aos
Jogadores serem constantemente solicitados, com os estímulos relativos a um
jogar, sob pena de se sobrecarregarem as estruturas implicadas na
vivenciação desse jogar ao longo do processo, o treino deverá contemplar a
“dupla ESFORÇO/RECUPERAÇÃO” (V. Frade, 1979), sendo o mesmo
sugerido por outros autores (Carvalhal, 2002; Freitas, 2004).
O Princípio da Alternância Horizontal em Especificidade, à semelhança dos
restantes princípios metodológicos, tem de ser equacionado tendo em
consideração um determinado Modelo de Jogo (B. Oliveira et al., 2006). O
respeito por este princípio desde idades precoces, isto é, ao longo do processo
de Formação, permite a operacionalização de um jogar respeitando o binómio
Esforço/Recuperação, permitindo que o treino seja aquisitivo, pelo facto, da
vivenciação dos Princípios de Jogo de um determinado Modelo de Jogo, se
fazer num regime de Fadiga mínimo face às pretensões aquisitivas para cada
sessão, não se revelando esses níveis de Fadiga contraproducentes à
assimilação e expressão criativa de um jogar e dos potenciais Talentos que
dão Vida a esse jogar.
Verifica-se para um conveniente entendimento do binómio
Esforço/Recuperação, não somente, que este seja contemplado nas próprias
sessões de treino (Carvalhal, 2002), mas também, na operacionalização e
planificação semanal, o que implica, que o treinador deverá obedecer a uma
certa alternância, distribuindo temporalmente pelo Morfociclo Padrão, os
princípios, sub-princípios e sub-princípios dos sub-princípios dos sub-princípios
(Freitas, 2004). O que explica a designação de Alternância Horizontal (ciclo
semanal) em Especificidade (complexidade de um jogar), procurando-se deste
modo, dosear para progredir e revelar em Competição um nível de Rendimento
elevado (B. Oliveira et al., 2006).

185
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Para que a operacionalização deste princípio se faça convenientemente, todo


o processo deverá ter subjacente, um determinado “padrão de problemas”
(Marisa Gomes, Anexo 5), um Morfociclo Padrão, que contemplando a
variabilidade cultural de um jogar (Marisa Gomes, Anexo 5), possibilite que a
complexidade de um jogar seja vivenciada pelos Jogadores, ao longo dos
diferentes dias do Morfociclo, em escalas de complexidade diferentes.
Importando a este respeito salientar, que sendo padronizado e estável ao longo
do processo o Morfociclo que permite dar Vida a um jogar, o que se faz nos
diferentes dias e nos diferentes Morfociclos vai variando, mas nunca o padrão
subjacente a esse Morfociclo. Procurando-se com a padronização do
Morfociclo, manter a regularidade semanal relativa à alternância dos diferentes
padrões de Esforço/Recuperação (B. Oliveira et al., 2006).
Revelando a expressão da criatividade uma relação inversa com a
manifestação de Fadiga, a existência de uma concepção que permita a gestão
conveniente do binómio Esforço/Recuperação, através da existência de um
Morfociclo Padrão, como sucede na Periodização à La Long, revela-se
fundamental para a expressão criativa dos jogares e dos potenciais Talentos,
uma vez que a criatividade, pode ser exponenciada pelo treino de qualidade
(Gaiteiro, 2006; J. G. Oliveira, 2004).

4.7.1.6.2 – Criatividade, com TRÊS ou mais, ainda é melhor?!

“…quando aparece o terceiro elemento, esse terceiro introduz o caos no sistema”


(Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).

Temos vindo a sugerir que a criatividade é parte do fenómeno Futebol,


podendo mesmo considerar-se como uma das categorias Antropológicas, cuja
expressão tem lugar no Futebol. De acordo com Marisa Gomes (Anexo 5), o
inopinado é parte do Jogo, sendo uma necessidade a contemplação da
variabilidade ao longo do processo, para que a criatividade, a transcendência e
consequentemente o Talento se manifestem. Acrescentando que para tal,
compete ao treinador a criação de contextos, que propiciem o emergir da
criatividade. Conforme salienta Paulo Cunha e Silva (Anexo 4) a criação de

186
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

contextos, ou “sistemas criativos”, isto é, de sistemas que tenham capacidade


de incorporar o novo, torna-se possível quando se encontram em interacção
três ou mais variáveis. O nosso entrevistado fundamenta, que Jules Henri
Poincaré demonstrou que sistemas com mais de três elementos em interacção
se revelam extremamente sensíveis às condições iniciais, tornando-se os seus
comportamentos muito imprevisíveis.
Capra (1996) referindo-se a Poincaré salienta que este, com o intuito de
analisar as características qualitativas dos complexos problemas dinâmicos, se
socorreu dos fundamentos da matemática da complexidade. “Aplicando o seu
método topológico a um problema dos três corpos ligeiramente simplificado,
Poincaré foi capaz de determinar a forma geral de suas trajectórias e verificou
que era de uma complexidade assustadora.” (Capra, 1996, pp. 110).
Tendo concluído, que quando se procura “representar a figura formada por
essas duas curvas e a sua infinidade de intercepções (…) essas interacções
formam uma espécie de rede, de teia ou de malha infinitamente apertada;
nenhuma das suas curvas pode jamais cruzar consigo mesma, mas deve
dobrar de volta sobre si mesma de uma maneira bastante complexa a fim de
cruzar infinitas vezes os elos da teia. Fica-se perplexo diante da complexidade
dessa figura, que nem mesmo eu tento desenhar.” (Poincaré, s/d, cit. por
Capra, 1996, pp. 110).
“Sempre que há mais do que três variáveis a capacidade que elas têm de se
implicar e condicionar a evolução das outras é muito grande (…) quando
aparece o terceiro elemento, esse terceiro introduz o caos no sistema” (Paulo
Cunha e Silva, Anexo 4).
Daqui se depreende, que para não retirar ao Jogo aquilo que o caracteriza,
ou seja, a criatividade, complexidade, infinidade contextual e circunstancial, é
fundamental que aquando da realização e da criação de contextos criativos, o
número de elementos em interacção, não seja inferior a três Jogadores. A partir
de três observa-se a “abertura à infinidade” (V. Frade, 2006).
Já anteriormente salientamos que os exercícios de treino devem ser, um
fragmento do que se pretenda que suceda na Competição, isto é, um
fragmento do jogar a que se aspira. Para que estes meios permitam, a

187
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

contemplação da criatividade, aleatoriedade, e não esterilização da essência


do Jogo, é importante que estejam três elementos (Jogadores) em interacção,
como salienta Paulo Cunha e Silva (Anexo 4), o qual acrescenta que os
sistemas bipolares30, são sistemas que tendem a auto anular-se,
condicionando assim, as respectivas evoluções e criatividade dos sistemas que
comportam. Ou seja, os sistemas bipolares tendem para o equilíbrio, o que
para o treino de qualidade, longe-do-equilíbrio, não é desejável, uma vez que
tudo o que é fechado, não permite a transcendência e manifestação dos
Talentos (Marisa Gomes, Anexo 5).
Por entendermos que o processo de treino ao longo dos vários anos de
Formação, mas não só, é o lugar por excelência, para a exponenciação dos
Talentos e da criatividade que lhes está subjacente, sugerimos que
predominantemente, pelos motivos já apresentados, se favoreçam formas
jogadas que impliquem a interacção de três ou mais elementos, para que os
exercícios se constituam verdadeiramente como sistemas ou contextos
criativos.
Note-se contudo, que a pertinência do recurso a contextos que impliquem
mais do que três elementos em interacção, relaciona-se não apenas, com a
essência do plano do detalhe que caracteriza o Jogo, a qual já explicitamos,
encontrando-se também relacionada, com a essência do plano cientificável do
Jogo. Esta última dimensão relaciona-se como já referimos, com os Princípios
de Jogo, no caso, com os designados princípios específicos do ataque e da
defesa (Queiroz, 1983), que por entendermos deverem ser comuns a qualquer
jogar, se poderão designar de Princípios Culturais (relativos à especificidade da
modalidade). De acordo com Garganta (2000, cit. por Pacheco, 2001, pp. 153),
e indo também de encontro ao que referimos acima, “a situação de jogo 3x3,
revela-se como a estrutura mínima que garante a essência do jogo, na medida
em que reúne o portador da bola e dois recebedores potenciais, permitindo
passar de uma escolha binária (conservo a bola ou passo-a ao meu colega)
para uma escolha múltipla”, acrescentando que a partir desta situação se torna
possível observar a concretização dos quatro Princípios Culturais ou

30
Sistema bipolar: sistema em que se encontram apenas dois elementos em interacção.

188
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

específicos de ataque e defesa, respectivamente, penetração; cobertura


ofensiva; mobilidade; espaço e contenção; cobertura defensiva; equilíbrio;
concentração (Queiroz, 1983). Consideramos ainda, que o recurso a efectivos
numéricos iguais ou superiores a três elementos é importante, por permitir uma
estruturação que favorece o jogo “triangulado” (V. Frade, 2006), uma
disposição geométrica, que permite por exemplo uma disposição geométrica
essencial para o assegurar de “superfícies de passe”31 (V. Frade, 2006).
Face ao exposto neste ponto, consideramos que a elaboração de contextos
criativos, no treino de Futebol, deverá contemplar de forma dominante o
recurso a situações que impliquem na operacionalização e vivenciação de um
jogar, enquanto inteireza inquebrantável, ou seja, nos diferente Momentos de
Jogo, a interacção de pelo menos três elementos. O que contudo não implica,
que se recorra a situações em que se encontrem menos elementos em
interacção, pois tal poderá ser pertinente, tendo em consideração os objectivos
pretendidos pelo treinador, não deverá, é isso apresentar-se como a tendência
dominante do processo.

4.7.1.6.3 – A expressão Criativa no Jogo, elevação do Futebol à


categoria de Arte.

“… desenvolvemos a maior liberdade de forma definida. Não posso improvisar enquanto a


banda toca outra coisa. Tenho de dizer o meu texto e manter a minha posição. Da mesma forma,
também o jogador tem de seguir as regras. Realmente fascinante é quando as pessoas cumprem
as regras e desenvolvem uma liberdade própria, que é imprevisível, surpreendente e simplesmente
artística.”
(Tabatabai, 2006).

“Um jogador que evolui, que corre, que salta, pode ser um artista como
Nureyev. Pode ser um artista como outras pessoas. Por que não? Eu sinto
mais prazer a ver alguém como o Zidane que um grande bailarino, pois é a

31
Superfícies de passe: apresentamos este conceito como alternativa, ao que vulgo se designa
de “linhas de passe”, algo que julgamos ser redutor uma vez que, o Futebol se pratica, e
permite explorar uma realidade tridimensional.

189
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

minha forma de ver a arte. E também a minha forma de compreender que arte
não é apenas poesia, dança, ballet, Ravel…” (Platini, 2006a).
Para o actual presidente da UEFA, um Jogador pode ser considerado como
um artista, salientando que as suas afinidades com o Futebol lhe alteram a
forma de conceber a Arte, conferindo a este fenómeno um carácter relativista,
cuja relevância para uma ou outra forma de manifestação, depende dos
“óculos” que colocámos, para as contemplar. “Mudei o nível de percepção do
OBJECTO e, nesse mesmo acto, mudei o Objecto. (…) Mudar o nível de
percepção multiplica os Objectos, como uma espécie de espelho diabólico”
(Roland Barthes in Conversa com Stephen Heath, s/d, cit. por Frade, 1990, pp.
2). “Os homens observam o mundo através dos sentidos e, mais ainda, através
dos seus conceitos”. (Jacquard, 1995, pp. 7). Também o Jogo, como foi
evidenciado por Marisa Gomes (Anexo 5) é entendido e vivido através de
conceitos, sendo que no caso dos jovens, por serem “mais plásticos” e
“adaptáveis”, os conceitos com que jogam, são os nossos. “…com esses
miúdos os conceitos são nossos (…) é óptimo, porque só fazendo acontecer é
que a coisa resulta” (Marisa Gomes, Anexo 5).
O que releva a importância desses conceitos, que são dos treinadores se
ajustarem aos devidos propósitos. “O futebol pré-existe à ideia que dele se tem.
O problema está em saber, se as ideias que dele se tem, se lhe ajustam.” (V.
M. d. C. Frade, 1990, pp. 3).
A nossa entrevistada adverte, que quando se refere à problemática dos
conceitos, estes devem ser alvo de um entendimento para além da sua
superficialidade conceptual, realçando que são algo que se regista no Corpo,
ou seja, são corpóreos. “…quando falo em conceito, não é em termos
conceptuais só. Entendo o conceito em termos conceptuais e também em
termos corpus, na capacidade de realização (…) essa mapeação dos
conceitos, não resulta só da cabeça para os pés, também resulta dos pés para
a cabeça” e a prova disso são os miúdos a aprender um jogar, como
acrescenta. Um entendimento que como salientaremos mais adiante, vai de
encontro a muitos dos aspectos centrais desta dissertação.

190
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Platini (2006a) reconhece, que não é fácil por vezes a aceitação do Futebol
enquanto expressão artística, sobretudo em contextos em que este conceito se
encontra sujeito a uma forte inércia conservadora. “É uma noção difícil de
transmitir no mundo cultural francês. Os desportistas não são artistas. Ouvi
grandes filósofos como Bernard Henri Levy dizer: «não se deve comparar os
desportistas com os artistas.» Isso é um grande erro. Creio que os desportistas
são artistas.” (Platini, 2006a). Este facto, reforça a ideia por nós defendida, de
que o Futebol é um fenómeno situado, que no caso da França, “emoldurado
por entre um universo de glamour cultural e iconoclasta, durante muito tempo o
futebol não despertou grandes paixões na tranquila Velha Gália” (Lobo, 2002,
pp. 192).
Nistelrooy (2006) estabelecendo um paralelismo entre Zidane e um dos
maiores dançarinos clássicos de sempre, Nureyev, à semelhança de Platini
(2006a) refere que, “quando os defesas se aproximam, ele afasta-se no
momento exacto. Ele liberta-se na altura certa.” Acrescentando que tal como
Nureyev na sua Arte, também Zidane, tem sempre a posição certa e está
sempre controlado. O que ajuda a suportar a ideia apresentada por Platini
(2006a), de que um Jogador pode ser entendido como um artista, sendo vários
os aspectos que partilham e têm em comum. O Jogador holandês acrescenta
ainda que ao olharmos para certos Jogadores na história do Futebol,
nomeadamente, os que acederam ao mais alto nível mundial, “essas imagens
permanecem na mente das pessoas como quadros. Vejam o golo de Maradona
contra a Inglaterra, por exemplo. A forma como driblou quatro ou cinco
adversários.” Independentemente, da controvérsia que se possa verificar, em
torno da consideração do Futebol como Arte, como realça Nistelrooy (2006),
ambos despertam o lado emocional, “imagens permanecem na mente”,
realçando ainda, que tal como nos artistas as suas obras, sobretudo as mais
criativas, eternizam-nos e elevam-nos à condição de Heróis e de Deuses, como
vimos anteriormente.
Kaká (2006) socorrendo-se igualmente do exemplo de Zidane, também o
compara a Nureyev, referindo que todos o admiravam a jogar, “porque é um
jogador que tem esse estilo, que está flutuando, que está realmente dançando,

191
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

que está com tranquilidade”. Destacando deste modo, algo para o qual já
alertamos, ou seja, para a necessidade de “tranquilidade”, o que nas
sociedades actuais, não é fácil.
Para Tutu (2006), ex-arcebispo anglicano da Cidade do Cabo e Prémio Nobel
da Paz, quando o Jogo e os Jogadores têm qualidade, é frequente considerar-
se que “não pode haver nada mais belo. O seu movimento é maravilhoso.
Vemos uma coreografia maravilhosa.” Futebol e a Dança podem ter muitos
pontos em comum, tal como sugere Henry (2006), o qual afirma
eloquentemente que o Futebol é uma Arte. “Por vezes, sinto que os jogadores
dançam. Dançam com a bola e, para mim, isso é uma arte.”
“Para mim, a arte é despertar algo nos outros que eles não sabiam ter, mas
que existia dentro deles. O futebol pode atingir uma beleza que se pode tornar
arte realmente. Ao mesmo tempo, uma arte individual, mas sobretudo uma arte
colectiva.” (Wenger, 2006). Este treinador destaca deste modo, o facto do
Futebol ter potencial para poder ser considerado Arte, depreendendo-se ainda
das suas palavras que nem todos os «futebois» se podem considerar como tal.
O Futebol que ascende à categoria de Arte, deverá, segundo estas
declarações, “despertar algo nos outros que eles não sabiam ter, mas que
existia dentro deles”, ou seja, e indo de encontro ao que já sugerimos, o
Futebol Arte, assume-se como um meio para o Homem se encontrar com a
Humanidade, se revelar, e se autocriar. De realçar ainda a particularidade do
Futebol, poder segundo as palavras supra transcritas, ser considerado, não
somente como uma “arte individual”, mas também como uma Arte partilhada,
“arte colectiva”. Ou seja, no Futebol os quadros (jogares) que se criam são
pintados em conjunto, sendo o contributo de cada pintor (Jogador)
determinante para a obra final. Esta é uma das peculiaridades do Futebol, e
que lhe confere, quanto a nós, uma complexidade muito mais acrescida do que
aquela que se verifica em modalidades individuais, em que a tela se preenche
por um único pintor, uma “arte individual”, exclusivamente individual.
As analogias possíveis de estabelecer entre o Futebol e a Arte, não se
circunscrevem apenas à Dança ou à Pintura, segundo Wender (2006), “o

192
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

futebol é uma das formas de arte mais populares” aproximando-se segundo


este realizador do Rock e do Cinema.
“O futebol é como o improviso musical, pois quando improvisamos na música
não dizemos ao outro tipo que nota vamos tocar a seguir. Limitamo-nos a fazê-
lo e toda a gente acompanha. Parece impossível, pois ninguém o explica, mas
está a acontecer e passa-se o mesmo no campo de futebol. Não enviam
mensagens uns aos outros, onde dizem: «tu corres pela direita e tu…»
Limitam-se a fazê-lo.” (Stewart, 2006). Importa advertir, que este saber-fazer,
comum à Música e ao Futebol, e que é tácito, para se manifestar deve ter
subjacente um determinado padrão (Modelo de Jogo), capaz de conferir
organização ao sistema, seja ele uma equipa ou uma banda de música. “A
verdade é que a improvisação não é nada aleatória nem caótica. (…) Porque a
improvisação é uma forma de arte definida por uma série de regras” (Gladwell,
2007, pp. 118). Não obstante esta necessidade, o Talento, que como
procuraremos evidenciar nesta dissertação, pode ser fomentado pelo treino, é
igualmente determinante. “É preciso talento para que o erro (improviso) se
torne fecundo” (Morin, 2003, pp. 170).
A necessidade de coexistência, entre o plano do detalhe, e o plano dos
Princípios de Jogo, entre o Auto e o Hetero, para a harmonia geral do sistema
é explicitada por Tabatabai (2006), que salienta que se pode ser criativo em
diferentes contextos, e que esse contexto é determinante, pois é aí que como
afirma, “desenvolvemos a maior liberdade de forma definida. Não posso
improvisar enquanto a banda toca outra coisa. Tenho de dizer o meu texto e
manter a minha posição. Da mesma forma, também o jogador tem de seguir as
regras (Princípios de Jogo). Realmente fascinante é quando as pessoas
cumprem as regras e desenvolvem uma liberdade própria, que é imprevisível,
surpreendente e simplesmente artística.” Estas palavras são quanto a nós,
muito pertinentes para definir aquilo que pode ser considerado um jogar de
qualidade, salientando ainda, a necessidade da criatividade se expressar de
forma contextualizada.
À semelhança de J. Oliveira (2004), Hopper (2006), estabelecendo ligações
entre o Futebol e o cinema, salienta que tal como sucede com os actores

193
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

existem Jogadores maus e bons, sendo que alguns conseguem aceder a níveis
de genialidade, considerando-os como Talentos. Este actor esclarece ainda
que “esse talento tem de ser criativo para conseguirem o que querem. Mas
algumas pessoas usam os pés e a cabeça melhor que outros.” O que vai de
encontro ao sugerido por Marisa Gomes (Anexo 5) para quem o Talento é
necessariamente criativo.
Também Lobo (2007), reportando-se à fenomenologia implicada nas
manifestações de Talento, que se observam no Jogo, as define como Arte,
julgamos contudo, que se torna pertinente sustentar cientificamente as várias
opiniões de que nos socorremos anteriormente, encetando para tal uma
abordagem um pouco mais pormenorizada e menos expositiva, em torno das
relações entre Futebol, Arte e Estética.
De acordo com J. Bento (2004) a matriz moral, ascética e ética do Desporto
comporta a dimensão Estética. Pela perplexidade que desperta nas pessoas, o
Futebol comporta uma dimensão Estética (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).
O conceito de Estética (DiciopédiaX, 2006) remete-nos para a Filosofia do
século XVIII, tendo por base os pensamentos de Baumgarten e Kant,
apresentando-se assim, como uma disciplina filosófica. Este termo deriva, do
grego, aistesis, que significa "sensação". A Estética era, no contexto grego,
entendida como o supremo objectivo da Arte.
Actualmente Estética é, considerada a disciplina filosófica que trata dos
problemas da Arte.
Apesar da controvérsia existente em torno da afirmação, “o Futebol é Arte”,
consideramos que o Desporto e o Futebol partilham, com a Arte várias
dimensões, entre as quais a dimensão Estética. A. Marques (1993), destaca a
pertinência desta problemática ao referir que, “uma questão emergente nas
reflexões e formulações teóricas centra-se na consideração da existência ou
não de factores de aproximação entre desporto, a estética e a arte” (A.
Marques, 1993, pp. 33) acrescentando, e indo de encontro à possível
controvérsia, da afirmação a que aludimos anteriormente; “Futebol é Arte” que,
“mais polémica e complexa é a discussão das relações entre desporto e arte.”
(A. Marques, 1993, pp. 36). Sugerindo ainda, que apesar de ser consensual e

194
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

pacífica a identificação do Desporto com categorias da Estética, não sucede o


mesmo relativamente às categorias da Arte. Uma problemática, possivelmente
em muito fomentada, pelo entendimento convencional de categorização, o qual
remonta a Aristóteles, e que foi já por nós refutado. Com um entendimento
menos rígido do processo de categorização, admitimos, que sendo vários os
pontos em comum entre Desporto, e no caso Futebol, e a Arte, estes se podem
integrar numa categoria comum.
Frade (in D. Marinho, 2007) salienta que o Futebol é Estético, uma vez que
cativa, impressiona, causa espanto e sensibiliza. Opinião que vai de encontro
ao que sugere A. Marques, (1993, pp. 31) quando afirma que, “goste-se ou não
do desporto não se lhe pode ficar indiferente. Há nele, sempre, algo que nos
fascina. O esforço dos atletas (Jogadores), a ideia de superação, a beleza dos
corpos, a plástica do movimento, as emoções e a cor, a vitória e a derrota, a
festa e o drama (…) são valores a que não somos insensíveis.”
Garganta (2006b) refere que “se o Futebol é arte, então ele é também o culto
do relativo, da diferença, e se é como pensamos uma prodigiosa invenção do
Ser Humano compete-nos ser culturalmente dignos da sua importância em prol
da celebração do Desporto e da Vida.” Esta afirmação vai de encontro, ao que
foi salientado anteriormente por Platini (2006a), “é a minha forma de ver a arte”.
Em conformidade Frade, (in D. Marinho, 2007) salienta que o Futebol enquanto
fenómeno Artístico exige uma determinada identificação, sugerindo que muitas
vezes a sentimentalidade e emotividade associadas à contemplação deste
fenómeno, enquanto fenómeno Estético e Artístico, leva a que por vezes se
adultere, aquilo que nos impressiona e nos causa espanto. Reforçando esta
ideia, acrescenta que este facto implica que o Futebol seja perspectivado
também a este nível, pois é um fenómeno, que só faz sentido com
espectadores e com adeptos. Assume-se deste modo, e de acordo com as
palavras de Wenger (2006), como uma Arte Colectiva, que não se cinge
apenas à consecução, abrangendo também a sua contemplação.
Contemplação que note-se, não é inócua, uma vez que se trata de um sistema,
AutoEcoOrganizador.

195
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

A adulteração a que o Futebol pode ser submetido, por se constituir como um


fenómeno Estético e Artístico, e com isto alvo de interesses financeiros
diversos, especialmente dos canais de televisão, pode converter-se em algo
bastante pernicioso, e que contraria aquilo que verdadeiramente desperta
fascínio nas pessoas, a criatividade. Esta tem sido a preocupação de alguns
autores, que advertem para a necessidade do Futebol continuar a despertar o
sentimento de fascínio nas pessoas, sendo para isso necessário contemplar a
criatividade nos jogares. J. Valdano (1998) adverte que se o Futebol algum dia
morrer será, da seriedade. Frade (in D. Marinho, 2007) mostra-se igualmente
preocupado, com o uso descartável que tem sido dado ao Futebol, decorrente
da sua entrada nos circuitos de mercantilização, algo que considera poder
representar o “abanar definitivo da árvore das patacas”, uma vez que tem
contribuído, para a perda de aspectos que eram fundamentais para a sua
dimensão Estética, a diversidade e a criatividade.
A criatividade tem sido denunciada, como algo que se está a perder no
Futebol, o que por tudo o que já referimos, se repercute em falta de vitalidade,
algo que nos deve preocupar, sob pena do “abanar definitivo da árvore das
patacas” se consumar.
Consideramos, que para retirar o Futebol do seu estado vegetativo, reavivar a
paixão que desperta e elevarmos a sua dimensão Estética e Artística, este
necessita que novos «desordeiros», como foram Garrincha, Di Stefano, Pelé,
Eusébio, Cruyff, Maradona, entre outros criativos, comecem a emergir. Sendo
para isso fundamental que os processos de Formação permitam o emergir
dessa potencialidade.
Como foi sugerido por Wenger (2006), existe no Futebol uma Arte Colectiva,
como tal a apreciação Estética e Artística do Jogo, não deve reportar-se
exclusivamente ao plano do individual. Frade (in D. Marinho, 2007), adverte
que a dimensão Estética, pode resultar daquilo que é, à partida menos
impressionável, sobretudo, para aqueles que não se identificam com a efectiva
qualidade de um fenómeno como o Jogo. Sugerindo que esta dimensão
Estética, pode revelar-se através de manifestações colectivas, e não somente
com o que se circunscreve ao local em que se encontra a bola. Deste modo, a

196
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Dinâmica Colectiva é, como destaca, um contributo Estético muito relevante


para o Jogo. Podendo considerar-se como uma Estética fundamentalmente
assente na conjunção de participação de diferentes categorias, relacionadas
com a qualidade Organizacional nos vários Momentos de Jogo, com o devido
entendimento de ritmo e, sem contudo hipotecar, o inopinado e o individual,
devendo este surgir de forma contextualizada. Este autor realça ainda, a
pluralidade como um contributo relevante para a dimensão Estética do Jogo,
salientando que para a apreensão Estética do Futebol, devem ser
consideradas de forma interrelacionada todas as categorias estéticas, e não
sugerir que determinada categoria, é mais ou menos relevante que as
restantes. Ou seja, num fenómeno que é uma inteireza inquebrantavél também
a sua apreciação Estética, tem de o ser.
Podemos considerar, que o Futebol é Arte e contempla a dimensão Estética
de forma esplendorosa quando revela a expressividade dos onze Jogadores,
contendo a presença singular de uma multiplicidade individual suportada na
ordem colectiva (Frade, in D. Marinho, 2007).
Para compreendermos as possíveis relações entre Futebol e Arte, devemos
atender também ao facto de ambos poderem ser considerados, fenómenos
caóticos. De acordo com P. C. e. Silva (1999) por tradição sempre se entendeu
a Arte como uma luta contra o caos, a obra de arte resultava da necessidade
de organizar o caos perceptivo. Ainda segundo este autor, a Arte moderna
aceita a convivência com o caos, não com o intuito de o conhecer e superar,
mas utilizando-o como objecto plástico. Podemos, atendendo ao facto de que o
Futebol é um sistema caótico, servirmo-nos dele como objecto de Arte. A
prová-lo, encontramos diversas exposições fotográficas, livros de fotografias ou
de caricaturas, que tratam o Futebol através da Arte, servindo o primeiro de
mote para o segundo. “O caos do corpo, do corpo motor, cria o caos da obra,
da obra de arte. E a partir da arte, e da visibilidade acrescida que ela
proporciona, podemos compreender melhor o caos motor, do corpo motor” (P.
C. e. Silva, 1999, pp. 157). Depreendemos desta citação, que a contemplação
do Futebol através de uma perspectiva artística, nos permite compreendê-lo
com maior profundidade. Além disso, uma vez que, ambos são caracterizados

197
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

pela presença do caos, requisitam para os seus domínios a criatividade.


Pensamos por tudo o que foi exposto, que o Futebol se pode caracterizar como
um fenómeno, que apresenta uma dimensão Estética e que quando revelado
com qualidade, isto é, contemplando a criatividade assente numa ordem, pode
ser elevado à categoria de Arte.
Importa salientar, que a criatividade e a dimensão Estética que dela emerge,
não se cingem exclusivamente, tal como salienta Frade (in D. Marinho, 2007),
ao plano individual do Jogo, nem somente aos Jogadores. Tudo o que envolve
o Futebol, e que contribui para a construção do seu ecossistema, necessita de
expressar criatividade. O treinador tem necessariamente de ser um criativo,
pois também ele necessita, de no caos que caracteriza o Jogo, criar soluções,
sustentadas num determinado padrão, (Modelo de Jogo), que permitam à
equipa aceder à AutoEcoCriação, elevando-a para um nível de complexidade
superior. Fabio Capello (2005, cit. por Pacheco, 2005, pp. 24), reportando-se à
criatividade que um treinador deve possuir refere que procura “roubar ideias de
outros treinadores. Estamos num mundo de ladrões. Creio mesmo que o
melhor treinador é o maior dos ladrões. Porque se esforça sempre para
aumentar a soma dos seus conhecimentos. Quando vejo treinos ou jogos,
procuro sempre roubar qualquer coisa. Se renunciamos a isso fossilizamos.”
Como salienta, este “roubo” criativo é o que confere vitalidade a um treinador, à
semelhança do mundo vivo em geral, “se renunciamos a isso, fossilizamos”.
Importa relativamente a esta afirmação salientar, que o “roubo” efectuado pelos
treinadores deve ser consciente, isto é, cada um em função daquilo que deseja
para o seu jogar, deve roubar e ajustar o que rouba àquilo que deseja ver
expresso em campo pelos Jogadores. Uma vez mais, a criatividade tem
subjacente a necessidade de um referencial, de um padrão, um Modelo de
Jogo, para ser contextualizada e como tal revelar-se útil.
Mas, também os Árbitros assumem um papel importante para a manifestação
e preservação da criatividade no Jogo, e consequentemente, para a
valorização da dimensão Estética do mesmo. De acordo com Colina (2006), um
bom árbitro “deve defender a criatividade em campo. Isso é um papel muito
importante. Caso se cometam erros nesse papel a beleza do jogo e a

198
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

criatividade pode ser influenciada de forma negativa”, acrescentando ainda,


que “um árbitro defende a criatividade quando garante que o jogo é disputado
de acordo com as regras. As regras garantem um espectáculo e garantem o
jogo”. Uma vez mais, ordem (regras) e caos (criatividade) não se encontram
dissociados.
Podemos concluir, que a criatividade, considerada por nós como categoria
Antropológica encontra no Futebol um espaço para se manifestar, e é
determinante para a qualidade de Jogo, para o seu enriquecimento Estético, e
para a possibilidade de o elevar à categoria de Arte. Por este motivo, Enzo
Bearzot, (s/d, cit. por Lobo, 2002, pp. 12) refere que “se o futebol fosse um
estilo de música, seria jazz, a arte da improvisação”. Sendo contudo pertinente
advertir, que apesar do jazz ser “a arte da improvisação”, não deixa de ser
Jazz, ou seja, tal como no Futebol, o Jogo de qualidade obedece a uma matriz,
um padrão, um Modelo de Jogo, que permite que este não se descaracterize,
mesmo quando a criatividade, o improviso e o inopinado se revelam como
traços caracterizadores de determinado fenómeno. Num sistema caótico como
o Futebol, existe necessidade de um compromisso referenciado a um padrão,
entre todas as partes do sistema, de modo a alcançar-se a “superação criativa”
(Capra, 2005) do todo.

4.7.2 – Futebol, uma expressão Cultural AnarcoGregária.

“A identidade individual é ritualisticamente socializada, na liturgia antropológica do futebol, sem


se eliminar, contudo, a delicada e necessária idiossincrasia. Assim:
Eu = individualidade Sou = identidade Equipe = colectividade.”
(Murad, 2007, pp. 247).

Havendo no Futebol, para a expressão qualitativa de um jogar necessidade


de um compromisso, entre as partes constituintes do sistema, referenciado por
um determinado Modelo de Jogo, cada parte é desse modo gregária,
contribuindo com a sua individualidade para um sistema social complexo.
Assim, entendemos que uma equipa pode ser entendida como uma entidade
social, e o Jogador e treinadores como seres gregários. Seguidamente

199
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

procuraremos evidenciar que o processo de socialização e o facto do Homem


ser, um ser social, pode considerar-se uma categoria Antropológica que se
manifesta no Futebol.
A vida social pela complexidade e caos que apresenta, pode definir-se como
“um grande jogo de cartas” (Arsuaga, 2007, pp. 365).
Segundo Capra (2005, pp. 271) os organismos vivos sociais, são incapazes
de sobreviver em isolamento, por isso, actuam como células de um organismo
complexo, dotados de Inteligência Colectiva, que lhes confere uma maior
capacidade de adaptação (adaptabilidade) do que aquela, que se observa se
considerados de forma individualizada. “Esse fenómeno da reunião de animais
para formar sistemas de organismos maiores não está limitado aos insectos,
pode ser observado em muitas outras espécies, inclusive, é claro, a espécie
humana.” Para Morin (2003, pp. 136), o aumento de complexidade dos
organismos só se torna possível, através de uma “solidariedade vivida”, o que
releva, e vai de encontro ao que referimos acerca da importância da
criatividade Colectiva não só para o mundo vivo, mas de modo particular para o
Futebol.
Para a evolução da espécie Humana, e sua consequente complexificação o
processo de socialização revelou-se determinante. “Para entender a natureza
humana, estudamos, não só suas dimensões físicas e psicológicas, mas
também suas manifestações sociais e culturais. Os seres humanos evoluíram
como animais e seres sociais e não podem conservar-se física ou mentalmente
bem se não permanecerem em contacto com outros seres humanos. Mais do
que qualquer outra espécie social, dedicamo-nos ao pensamento colectivo”
(Capra, 2005, pp. 291).
Dunbar (2006) salienta a existência de uma correlação entre o tamanho dos
grupos sociais, estabelecidos pelas diferentes espécies de primatas e o volume
do neocórtex, sugerindo que a necessidade de gerir o complexo mundo social
em que estes seres vivem, tem conduzido à evolução de cérebros sempre
crescentes. Acrescentando ainda, que o tamanho dos grupos nos humanos se
aproxima de 150 indivíduos, considerando o número de pessoas que
conhecemos pessoalmente e com quem temos algum tipo de relacionamento

200
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

significativo, um número que é superior, ao observado noutros primatas, em


que os grupos são menores, o que se repercute no tamanho cerebral. Jones
(2006) salienta, que a generalidade dos primatas vive em grupo, embora
constituindo grupos com número de elementos diferenciado em função das
espécies, sendo nos grupos Humanos, onde se observam os grupos com maior
número de elementos. Também Smith & Szathmáry (2007), partilham da ideia
defendida por Dunbar (2006), e sugerem que o tamanho do cérebro Humano
se encontra associado ao tamanho das capacidades, sociais, técnicas e da
história natural. Em conformidade com os autores anteriores, Arsuaga (2007)
defende que o desenvolvimento cognitivo da espécie Humana corresponde ao
aumento da respectiva complexidade social. Reeves et al., (2006) salientam
que o Homem se destacou ao longo da evolução, pelo facto, de ter sido a
primeira espécie a partilhar, e mais que isso, a participar numa forma de
organização social.
O facto dos processos de socialização se terem assumido como
determinantes na evolução da espécie Humana, ao ponto de lhe conferirem
adaptações estruturais e funcionais muito profundas, acarretou um acréscimo
muito significativo de complexidade, como salienta Morin (2003) a noção de
autonomia nesta espécie é bastante complexa, pois depende de condições
culturais e sociais. E este facto reflecte-se ainda nos nossos dias, onde o
conhecimento Humano é adquirido através da interacção social (Arsuaga,
2007). Motivo pelo qual, Ganascia (1999) destaca a necessidade das Ciências
Cognitivas se voltarem para a dimensão social.
Malson (1988), explicita através de inúmeros exemplos de “crianças
selvagens”, a importância e influência que a sociogénese e o contexto em que
esta decorre, assumem sobre o padrão comportamental adoptado pelo
Homem. Facto, que é também reconhecido pela área da genética, que não
ignora a enorme influência que os processos de socialização exercem sobre a
componente genética. Jacquard (1995, pp. 103) salienta que,
independentemente da componente genética, o Homem é acima de tudo um
ser Social, “quando a criança diz «eu» é porque ouviu dizer «tu». Dito por
outras palavras, o indivíduo tornou-se uma pessoa com contacto com outras

201
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

pessoas.” Por este motivo, Lourenço & Ilharco (2007, pp. 84) salientam, tal
como o autor anterior que o Homem é, um ser essencialmente social, referindo
que “como seres-no-mundo somos-com-os outros.” O que vai de encontro a
Savater (s/d, cit. por J. Bento, 2004a, pp. 72) quando refere que “ser-se
humano (…) consiste principalmente em ter relações com outros seres
humanos (…) a vida humana boa é vida boa entre seres humanos ou, caso
contrário, pode ser que seja vida, mas não será nem boa nem humana”. Ideias
igualmente evidenciadas por Marisa Gomes (Anexo 5) a qual salienta que “o
individual, não se restringe a nós (…) Porque nós não vivemos sem
circunstâncias (…) isso não é vida, isso não é jogo, isso não é nada (…) o
Homem não é Homem, sem circunstâncias, nem Homem sem outros Homens.”
Sugerindo, e de encontro ao que já evidenciamos, que somos um fractal do
que vivemos, e do modo como nos inscrevemos no que nos rodeia.
“Se não houvesse a sociedade e a sua cultura, uma linguagem, um saber
adquirido, não seríamos indivíduos humanos” (Morin 2003, pp. 108).
Somos deste modo, animais sociais por excelência (Goleman, 2006), como
tal, caracterizamo-nos por termos hábitos de animais sociais (Jones, 2006), um
dos quais pode ser ir ao estádio de Futebol e conviver, num encontro de
Humanidade e com a Humanidade.
Enquanto seres sociais, possuímos um sistema de comunicação simbólico, e
axiológico que nos permite uma convivência que se revela muito interessante,
e não raras vezes proveitosa. “Nós, os humanos modernos, somos uns
primatas, e até podemos dizer uns humanos, extraordinariamente sociais,
sempre atentos, de forma permanente, aos sinais que nos chegam de outros
humanos e que nos ajudam a ler as suas mentes e a prever os seus actos”
(Arsuaga, 2007, pp. 365). Esta Inteligência Colectiva é, um aspecto
determinante para o Jogo de qualidade, pois é esta que se encontra subjacente
à possibilidade de um colectivo, expressar um pensamento em função da
mesma coisa e ao mesmo tempo (B. Oliveira et al., 2006; Valdano, 2002).
Laborit, H. (1987, pp. 25) esclarece que em comunidades tribais, e já
salientamos que o Futebol pode ser entendido deste modo, o indivíduo existe e

202
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

imagina-se como membro dessa comunidade, não se sentindo, não se


compreendendo, nem se imaginando, separado desta.
O funcionamento tribal como realça a obra de Morris (1982) aplica-se ao
Futebol, logo, também os vários intervenientes neste fenómeno, não podem ser
entendidos, nem entender o Futebol como uma realidade dissociada das suas.
Um pensamento enfatizado por Marisa Gomes (Anexo 5), que realça que no
Futebol, a individualidade não pode ser entendida se dissociada do colectivo,
encontrando-se estas duas realidades conexas.
“O futebol é, por definição, um jogo colectivo” (Lobo, 2002, pp. 159), como
tal, todo o processo é um processo de socialização e Aculturação, que procura
induzir no Homem que joga, a interiorização e adaptabilidade a um conjunto de
valores e regras de convivência, partilhadas num contexto específico, e num
regime de Especificidade, instituída pelo cumprimento dessas regras ou
normas de conduta (Princípios de Jogo) comuns a todos os elementos de um
determinado grupo, isto é, de uma equipa.
“Sendo os principais actores do grande espectáculo chamado futebol, o
treinador e os jogadores são parte do colectivo que é a equipa. Para alcançar o
desígnio da máxima performance, os principais actores do jogo têm de
executar múltiplas tarefas unidas por objectivos comuns.” (J. Oliveira, 2004, pp.
236). Motivo pelo qual, treinadores e Jogadores são parte integrante de um
mesmo “nicho ecológico” (Marisa Gomes, Anexo 5).
De acordo com Teoduresco (1984), uma equipa deve ser concebida como um
“microsistema social complexo e dinâmico”. Segundo Lourenço & Ilharco (2007,
pp. 61) “uma equipa de futebol não é apenas em função dos seus jogadores; é
também a forma como esses mesmos jogadores estão e são juntos: as suas
ligações, comportamentos, relacionamentos, padrões de actuação, liderança,
etc.” por isso consideram-na, como uma comunidade concreta. Uma
comunidade, em que o individual não deve subverter o colectivo, mas antes
contribuir para a manifestação das suas singularidades, em relação e respeito
permanente pelas restantes individualidades e pelo padrão (Modelo de Jogo)
do todo, permitindo desse modo, a elevação do colectivo. Como o define
Francisco Maturana (s/d, cit. por Valdano, 2002, pp. 214), “o futebol é uma

203
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

combinação de organização colectiva, mas de exaltação de capacidade


individual.” Assim, e como salienta Lopes (2007, pp. 66) ”a equipa, como
emergência, deixa de ser a soma dos valores individuais, passa assim, a ser
uma nova entidade fruto das relações entre seus elementos dando origem a
uma frase conhecida por muitos mas devidamente interpretada por poucos – o
todo é mais do que a soma das suas partes.” Opinião igualmente partilhada por
Lourenço & Ilharco (2007) que salientam ainda, que esse todo, não começa
nem acaba nos Jogadores, uma vez que todos aqueles que pertencem à
estrutura do todo, nas respectivas funções, desde roupeiro a fisioterapeutas,
são determinantes para o sucesso final do grupo.
A complexidade dos processos de socialização no Futebol é, bastante
grande, sobretudo se atendermos ao facto de numa equipa coexistirem
diferentes individualidades que geralmente comportam, fruto de diferentes
processos de socialização, mentalidades, rituais, crenças, e hábitos muito
diversos. Num balneário, facilmente encontramos Jogadores que por serem
provenientes de todo o Mundo, transportam consigo culturas e hábitos
profundamente enraizados, e que inclusive se podem revelar
contraproducentes com a rentabilização do Rendimento colectivo, por colidirem
com as normas vigentes do local em que se encontram a jogar. Também por
esses motivos, o Futebol se torna fascinante, sobretudo, quando esbate tais
barreiras, e consegue que o aporte cultural e social dos Jogadores permaneça
latente, em detrimento da Cultura (Modelo de Jogo) e de um conjunto de
normas (Princípios de Jogo) que realmente importam naquele contexto, ou
melhor dizendo naquela sociedade. Como refere J. Valdano (1998, pp. 180)
quando o Futebol tem qualidade, “as cumplicidades surgem espontaneamente
entre jogadores de características distintas, mas adaptáveis como peças de um
puzzle. Menotti classificou estes felizes encontros como «pequenas
sociedades» e é um conceito que convém publicitar, porque o futebol se faz
grande nestes diálogos geniais, nesses eficazes instantes mágicos.”
O Futebol como já salientamos, funciona como um espelho da sociedade, no
entanto, por ser constituído por diversas «pequenas sociedades», cada um dos
vários “futebois”, que em conjunto constituem a MacroSociedade Futebol,

204
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

influenciam, enquanto parte, significativamente esta dimensão macro, ou seja,


o todo. O qual funciona como um modelo de Sociedade, e como uma utopia
face aos males sociais, relembramos que Menotti (s/d cit. por Lobo, 2002)
salienta que “através da maneira como procurava colocar a jogar as suas
equipas procurava falar da sociedade em que gostaria de viver.” Na
MacroSociedade Futebol, a harmonia entre diferentes Eus é por vezes, mais
evidente do que na sociedade contemporânea, onde individualismo, colide não
raras vezes, com o altruísmo e com o sentimento de pertença a um grupo.
“O futebol em particular (…) permite uma fina sintonia entre os planos
individual e grupal. Coloca em prática um dos ideais fundadores da
democracia, daquilo que os gregos clássicos consideravam que era o melhor e
o mais produtivo nas actividades humanas: a acção deve ser sempre colectiva,
mas sem excluir o brilho da iniciativa pessoal (…) futebol é esporte colectivo,
conceituado assim mesmo como «futebol association». Das «categorias
nativas», encontradas no discurso dos jogadores, uma central e recorrente é
aquela que diz que «ninguém ganha nada sozinho».
Fora, no estabelecimento dos laços de inserção e no sentimento de pertença
a uma colectividade. A identidade individual é ritualisticamente socializada, na
liturgia antropológica do futebol, sem se eliminar, contudo, a delicada e
necessária idiossincrasia. Assim:
Eu = individualidade Sou = identidade Equipe = colectividade.” (Murad, 2007,
pp. 247).

4.7.3.1 – Futebol, um Jogo Táctico, um lugar de Inteligência(S).

“… não existe dentro de campo maior força que a da inteligência”.


(Menotti, 1999, pp. 161).

Partindo do pressuposto por nós explicitado, de que o Futebol é um Jogo


Colectivo, e que segundo Lobo (2007, pp. 21) é um Jogo cuja “base é táctica”
tal, pressupõe que este seja pensado “como equipa”. O que nos remete, para
uma dimensão que consideramos fundamental para o Futebol, a dimensão
cognitiva, algo que se pode constituir como uma categoria Antropológica, cuja

205
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

expressão se observa neste fenómeno. Segundo Amieiro (2005, pp. 176) o


Futebol “apela á esfera cognitiva”, por esse motivo, e em conformidade com o
que já referimos sugere que se trata de um “jogo fundamentalmente táctico”.
Uma opinião partilhada por Cruyff (1989, cit. por Barend & Dorp, 1999) que
refere que o Futebol é um Jogo, jogado fundamentalmente com o cérebro,
realçando assim, a dimensão cognitiva, deste fenómeno. Note-se contudo, que
como evidenciaremos mais adiante, consideramos que o cérebro, não é a
única estrutura implicada na dimensão cognitiva do Jogo, ou pelo, menos e
como já alertamos, não o faz de forma dissociada do restante corpo-
propriamente-dito, e das relações que este estabelece com a mente. A este
respeito, importa considerar a seguinte citação de Rui Faria (s/d, cit. por
Lourenço & Ilharco 2007, pp. 78) que corroborando a implicação do cérebro,
acrescenta algo muito importante, e que entronca no que acabamos de referir,
“a mente tem de estar sempre presente e o jogo tem de começar por ser um
fenómeno pensado. O cérebro não está isolado dos pés; as coisas não
acontecem dessa forma. Os pés funcionam num processo que passa pela
mente.”
Mourinho (2005) corroborando a ideia já explicitada de que o Futebol é
globalidade, afirma que “futebol é tudo”, acrescentando, que a “táctica é
importante, a verdadeira essência do desporto colectivo”. Algo que vai de
encontro ao que é sugerido por Garganta & Pinto (1998), que esclarecem, que
no Futebol a essência do Rendimento é Táctica. Mourinho (2005), reconhece e
enfatiza a importância da dimensão cognitiva, ao ponto de afirmar, não
acreditar que se possa desenvolver um processo de qualidade com Jogadores
“burros”. Face ao exposto, e em consonância com J. Oliveira (2004) urge
reconhecer que o Futebol é “um jogo táctico”, mas urge igualmente reconhecer,
que tal “burrice” pode ser debelada, através de processos de Formação
ajustados. Louis Van Gaal (1998, cit. por Carvalhal, pp. 56) realça o facto da
dimensão cognitiva do Jogo, poder ser incrementada, através de um processo
que proporciona a educabilidade ou alfabetização Táctica dos Jogadores, para
este treinador, “a Educação Táctica dos futebolistas (…) é o mais importante
para uma equipa ter sucesso”.

206
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

O Futebol é um Jogo em que a Táctica, se assume como SupraDimensão,


até porque, o problema primeiro que se coloca aos Jogadores é sempre de
natureza Táctica (Garganta & Pinto, 1998; Queiroz, 1986). Partilhamos por isso
da ideia que no Futebol, a Táctica é a dimensão do Jogo, da qual emergem as
demais, assumindo-se assim como uma Supradimensão (B. Oliveira et al.,
2006), pois em nosso entendimento todas as demais se lhe encontram, ou
deverão encontrar subordinadas, sendo contudo importante relembrar, que
esta somente faz sentido se consubstanciada pelas restantes dimensões, que
lhe estão subjacentes.
O Futebol é um Jogo Táctico, não somente por se tratar de uma actividade
social ou gregária, mas também por requisitar a dimensão cognitiva dos seus
praticantes. De facto, a capacidade revelada pelos seus intervenientes, para
tomar decisões, assume-se como um aspecto determinante e diferenciador dos
diferentes níveis de Jogo, revelado pelos Jogadores. Garganta (2004, pp. 232)
explicita bem a necessidade e complexidade, de se tomarem decisões no
Futebol, ao sugerir que num contexto caótico como o que se verifica nesta
actividade, os seus “eventos”, não são equações, “mas eventos com história,
feitos com gente, a gestão criteriosa de recursos para se alcançar um ou vários
alvos, depende da capacidade de resolver conflitos. Neste caso, impõe-se uma
escolha, de entre várias alternativas de intervenção possíveis”. O Futebol, uma
actividade em que como já referimos apela à dimensão cognitiva e em que a
criatividade deve encontrar-se contemplada, não se coaduna com a aplicação
de equações lineares, para solucionar os problemas que dele emergem. “A
dinâmica da psique é maravilhosamente criativa e não pode ser capturada em
um conjunto de fórmulas rígidas aplicáveis de forma rotineira” (Grof, 2004, pp.
149). Motivo pelo qual, o processo não se deve pautar por lógicas, nem
possibilitar a vivenciação de jogares em contextos lineares (Marisa Gomes,
Anexo 5).
Samulski & Greco (2004, pp. 274) salientam, que os processos cognitivos,
especialmente a tomada de decisão, revelam grande importância para o
Rendimento desportivo. O mesmo sugere Lopes (2007, pp. 23), ao realçar que
no caso dos Jogos Desportivos Colectivos o desempenho se encontra bastante

207
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

dependente, da capacidade de processamento de informação, designada de


“capacidade táctica individual”, vulgarmente referida como realça, de
capacidade para “ler o jogo”. Importa aqui relembrar, que a forma como os
Jogadores lêem o Jogo, se faz através de ideias e conceitos, motivo pelo qual
o Jogo é um conjunto de problemas conceptuais, e não um problema oftálmico.
Sendo a finalidade do processo, ao longo de vários anos, permitir a
Aculturação a um conjunto de conceitos, que se pretendem ajustados ao
fenómeno em questão.
A qualidade dos processos cognitivos, revela-se determinante para o
Rendimento desportivo, tal como sugerem os autores anteriores, motivo pelo
qual, o Futebol não é excepção. De acordo com Garganta (2004, pp. 232),
“num mundo em constante ebulição, como é o do futebol, só a inteligência
pode ajudar verdadeiramente”. A Inteligência assume-se deste modo, como um
requisito fundamental, para um jogar, para um processo de construção de um
jogar de qualidade, e para o exponenciar dos Talentos.
Pelo que pudemos constatar ao longo da nossa pesquisa, o conceito de
Inteligência, assume uma enorme aplicabilidade, no que se refere às
exigências e necessidades que o Jogo de Futebol apresenta, como tal,
pensamos fazer todo o sentido considerar que a Inteligência é, um aspecto
determinante no Futebol. “Inteligência consiste em agir de maneira adequada
quando um problema não é claramente definido e as soluções não são
evidentes” (Capra 1996, pp. 216) esta definição, vai de encontro à definição por
nós apresentada, do conceito TácticoTécnica, revelando-se ainda determinante
perante a necessidade de tomar decisões num sistema caótico, como aquele
que caracteriza o Jogo.
São várias as referências que podemos encontrar a corroborar a ideia por
nós apresentada, diversas personalidades relacionadas com o Futebol,
reconhecem a Inteligência como um requisito fundamental, para a expressão
de Jogo de qualidade.
De acordo com Castelo (1998), a Inteligência é uma característica muito
importante, uma vez que os Jogadores necessitam de perspicácia para em
primeiro lugar, observar e decidir sobre o que devem fazer, posteriormente

208
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

registar essa resposta e por fim enviar a resposta para que possa ser cumprida
pelos órgãos efectores32. Cruyff (2002) salienta que o facto do Futebol ser uma
modalidade “menos mecânica” e mais imprevisível que as outras, implica uma
grande Inteligência para poder ser praticado. Platini (2006a) salienta, que
devido à existência de algumas Leis de Jogo, o Futebol se tornou num Jogo
distinto, “se não houvesse fora-de-jogo, este seria o jogo mais idiota de todos
(…) mas o fora de jogo criou este desporto inteligente, muito inteligente.”
Para J. Valdano (1998), a Inteligência de um Jogador é um aspecto
determinante, importando contudo realçar que a Inteligência de um Jogador,
deverá ser entendida como algo funcional, e que somente faz sentido se
entendida de forma contextualizada. Ou seja, o conhecimento dos Jogadores
deverá ir de encontro ao que refere Diderot (s/d, cit. por Changeux, 2003, pp.
76), para o qual o “conhecimento só é verdadeiro na medida em que há
conformidade entre as nossas ideias e a realidade das coisas”. Mais uma vez,
nesta citação, consideramos ser possível estabelecer uma grande proximidade
com o conceito de TácticoTécnica por nós apresentado.
Lobo (2007, pp. 180) refere que dos aspectos mais tranquilizantes no Futebol
é, “encontrar um jogador inteligente”, uma opinião partilhada por Garganta
(1999), que sugere que face às exigências do Futebol actual, a Inteligência e a
velocidade de pensamento são aspectos determinantes. Por este motivo
Menotti (1999, pp. 161) refere de forma inequívoca que, “não existe dentro de
campo maior força que a da inteligência”. Venglos (2001) sugere que a partir
do momento em que no Futebol, se reconhecer a importância da Inteligência,
este caminhará para o seu período mais prestigiante. È com o intuito de
contribuir para que tal suceda, que grande parte desta dissertação se centra
nesta problemática, e na necessidade de um entendimento e contemplação

32
Concordamos com Castelo (1998), quando refere que a Inteligência é determinante no
Futebol, contudo, conforme explicitaremos mais adiante, o modo como esta se expressa neste
fenómeno, vai muito para além da aparente linearidade processual proposta por este autor,
implicando uma fenomenolgia muito mais complexa, na qual se encontram implicadas e em
conexão diversas estruturas.

209
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

diferente desta dimensão, na abordagem a este fenómeno, que tem descurado


tais potencialidades.

4.7.3.2 – INTELIGÊNCIA como Categoria Antropológica.

“A inteligência, certamente a característica mais importante do ser humano, mesmo a sua


melhor ferramenta ao longo da evolução e emergida da sua interacção com o meio, é uma
componente adaptativa altamente modificável, sem a qual não seria possível a construção do
mundo civilizacional e a adaptabilidade à variedade das situações experienciais do seu processo
sócio-histórico.”
(V. d. Fonseca, 2007, pp. 369).

A Inteligência, podendo ser considerada uma categoria Antropológica como


de seguida procuraremos explicitar é, mais uma faculdade Humana que se
reflecte em campo, o que ajuda a sustentar a hipótese do Futebol ser um
Fenómeno AntropoSocialTotal.
Segundo Lourenço & Ilharco (2007) os seres Humanos caracterizam-se, tal
como os Jogadores no contexto de Jogo, por se encontrarem constantemente
a fazer escolhas, que por sua vez, mostram novos caminhos, novas
possibilidades, e ainda novos desafios. De acordo com Arsuaga (2007, pp. 31)
o Homem converteu-se numa espécie “radicalmente diferente das outras, com
propriedades mentais únicas”, daqui se depreende, que as faculdades mentais
distanciaram o Homem dos restantes animais, este autor sugere ainda, que
enquanto espécie, a Humanidade se tem especializado na Inteligência.
Também Goleman (2006, pp. 477) reconhece a importância da Inteligência
para a evolução e capacidade de sobrevivência da nossa espécie, “a
inteligência conta-se entre as capacidades humanas que ajudaram a nossa
espécie a sobreviver.” Em conformidade V. d. Fonseca (2007, pp. 369) salienta
que a Inteligência, foi “certamente a característica mais importante do ser
humano, mesmo a sua melhor ferramenta ao longo da evolução (…) sem a
qual não seria possível a construção do mundo civilizacional e a adaptabilidade
à variedade das situações experienciais do seu processo sócio-histórico.” Para
este autor a Inteligência é algo modificável e adaptável, o que por conseguinte
se revela bastante importante nos processos de treino, sobretudo se

210
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

atendermos que “o treino é, um processo de adaptabilidade”, uma vez que, visa


a adequação, o tornarmo-nos mais capazes, para um determinado jogar, o qual
não pode descurar o contexto em que se insere, nem o lado emergente (Marisa
Gomes, Anexo 5).
Em conformidade Anastasi (1968, cit. por V. d. Fonseca, 2007) sugere que a
Inteligência deverá ser concebida como uma qualidade de conduta adaptativa,
definida como a expressão de formas mais eficazes, capazes de responder às
exigências e às mudanças do meio ambiente, sugerindo-a como um conceito
pluralístico, e que como se pode depreender, capaz de contemplar a noção de
TácticoTécnica, advertindo ainda, para o cariz específico que deve caracterizar
esta faculdade.
Em complemento V. d. Fonseca (2007) esclarece que Inteligência pode
considerar-se simultaneamente, como um fenómeno biológico, mas também
cultural, acrescentando que um, não se opõe ao outro, sugerindo ainda que o
cérebro é um órgão civilizacional.
De facto o cérebro, tal como já salientamos com base em alguns autores
(Dunbar, 2006; Smith & Szathmáry, 2007) apresenta uma evolução relacionada
com o crescente processo de socialização que caracterizou a espécie Humana.
Goleman (2006, pp. 468) indo de encontro à ideia apresentada por V. d.
Fonseca (2007), apresenta a noção de “cérebro social (…) um conjunto de
vastas redes neurais distintas mas fluídas que se sincronizam no
relacionamento umas com as outras”, contudo esclarece, que esta designação
é, uma ficção ainda que, reconhecidamente útil.
Como sugerimos já, a tipologia do cérebro Humano apresenta diferenças
significativas relativamente a outras espécies (Dunbar, 2006; Smith &
Szathmáry, 2007), sendo que a mais evidente se reporta, ao extraordinário
desenvolvimento do neocórtex. A este respeito, Goleman (2003, pp. 33) refere
que “o neocórtex do Homo Sapiens, maior do que o de qualquer outra espécie
trouxe consigo o que é distintamente humano. O neocórtex é a sede do
pensamento”.

211
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

4.7.3.2.1 – Inteligência ou INTELIGÊNCIAS, do entendimento Plural, à


INTELIGÊNCIA DE JOGO.

“É engraçada a forma como você fala no plural. São de facto isso, inteligências. Há múltiplas
inteligências”
(Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).

Como evidenciamos anteriormente Anastasi (1968, cit. por V. d. Fonseca,


2007) concebe a Inteligência, como uma qualidade de conduta adaptativa,
apresentando-a ainda como um conceito pluralístico. Paulo Cunha e Silva
(Anexo 4) também concorda que a Inteligência é uma faculdade plural, e além
disso, específica, contextual e operativa, salientando que o carácter operativo
da Inteligência é fundamental na generalidade dos jogos. Também Sobrinho
Simões (Anexo 1) destaca que a Inteligência carece de um entendimento
plural, salientando que além de uma faculdade específica, se caracteriza por
revelar diferentes “timings”. Isto é segundo o nosso entrevistado, a Inteligência
deve manifestar um carácter adaptável às necessidades que sentimos em
diferentes períodos da ontogénese e em diferentes circunstâncias, as quais
implicam respostas e recursos diferentes para responder a tais necessidades.
Esclarecendo que por exemplo, um Jogador que durante um período da sua
carreira suportou o seu jogo num determinado conjunto de características,
poderá com o envelhecimento passar a ter de se socorrer de outras valências
que lhe permitam, dar respostas aos problemas que o Jogo lhe coloca. Um
aspecto que consideramos muito pertinente, e que entendemos dever ser
fomentado desde idades muito precoces, através daquilo a que Marisa Gomes
(Anexo 5) designa de “variabilidade cultural”.
Com base no que foi exposto, consideramos que a categorização desta
faculdade, deve contrariar a convencional conotação que se atribui a esta
faculdade, geralmente entendida como algo padronizado e passível de ser
mensurável com teste de QI. Deste modo, entendemos que a Inteligência não
deve ser entendida de forma estanque, e cuja expressão se faz de forma única,
pelo contrário deverá ser entendida como uma faculdade de manifestação

212
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

plural, específica, contextual e operativa, podendo comportar faculdades não-


cognitivas.
Gardner (2005) sugere que não existe uma única Inteligência mas sim,
“inteligências múltiplas”, propondo a existência de “sete inteligências humanas”;
Inteligência corporal e cinestésica; Inteligência espacial, linguística, lógico-
matemática, musical, interpessoal e social. Segundo Goleman (2006, pp. 478)
“a perspectiva evolucionária desafia-nos a repensar (…) e a reconhecer que
«inteligência» pode incluir competências não-cognitivas”, algo que é igualmente
defendido por Gardner (2005). A mente Humana abriga diferentes Inteligências,
de acordo com Celso Antunes (2006), o qual salienta que estas apresentam
uma funcionalidade orquestrada, não se encontrando em compartimentos
estanques específicos, como sugere a frenologia.

4.7.3.2.2 – Inteligência Emocional, a “fusão” de Intenções!

“…há aspectos puramente emocionais de importância transcendental no desenrolar de um


encontro de futebol.”
(Valdano, 2002, pp. 250).

Das Inteligências que nos podem ajudar a caracterizar a espécie Humana,


pode destacar-se entre outras a “inteligência emocional” (Goleman, 2003). O
papel das emoções na tomada de decisões, em diferentes contextos, incluindo
sociais, tem sido amplamente sugerido por Damásio (2003a; 2003b; 2004)
como determinante para o sucesso das mesmas, refutando deste modo, a
crença secular de que razão e emoção eram duas realidades antagónicas e
dissociadas. Vários dados provenientes das Neurociências, reconhecem razão
aos estudos realizados por este autor; “os neurocientistas descobriram fortes
evidências de que a inteligência humana, a memória humana e as decisões
humanas nunca são completamente racionais, mas que sempre se manifestam
coloridas por emoções” (Capra 1996, pp. 68).
As emoções são segundo alguns autores, uma característica muito peculiar
no Homem. De acordo com Mark Twain (s/d, cit. por Jones, pp. 212) “o homem
é o único animal que cora – ou tem necessidade de o fazer.” Para Reeves et

213
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

al., (2006) o Homem pode definir-se, “seguramente”, pela emoção. No mesmo


comprimento de onda, Lourenço & Ilharco (2007) caracterizam o Homem como
um ser emocional, que ao longo da sua existência tem sido acompanhado por
emoções. Importa contudo reter, que o mecanismo emocional é algo Corpóreo,
conforme salienta Nava (2003, pp. 79) “existe uma emoção vivida no corpo e
outra na mente, que como pudemos perceber são mutuamente interactivas”.
Evidência que se revelará particularmente pertinente mais adiante nesta
dissertação.
Dalai-Lama (2006, pp. 163) realça algo que consideramos pertinente, e que
reforça a ideia de que as emoções tiveram um papel determinante na evolução
da espécie, facto que se repercutiu na tipologia cerebral. Assim, esclarece que
as emoções cognitivas superiores, se encontram mais associadas ao
neocórtex, a parte que se desenvolveu mais na evolução Humana, e que como
já salientamos, se encontra mais implicada e activa na actividade cognitiva
complexa, como o raciocínio. Estas evidências reforçam não somente, a
importância que as emoções tiveram para a Humanidade ao longo dos tempos,
mas também, o facto da actividade emocional, não poder ser dissociada da
capacidade de tomada de decisão. Podemos considerar, que sendo as
emoções caracterizadoras da nossa espécie, “só quando dominares os teus
instintos deixarás de ser animal para passares a chamar-te Homem” (A. d.
Silva, 2002, pp. 89). O que nos leva a inferir que o Homem, além de um ser
racional e emocional é, um ser capaz de racionalizar as suas próprias
emoções, sendo igualmente capaz de Aculturar a emotividade, o que nos
remete para a possibilidade de treinar, Aculturar e educar precocemente esta
dimensão. “As competências emocionais cruciais podem sem a mínima dúvida
ser aprendidas e aperfeiçoadas pelas crianças, se nos dermos ao trabalho de
lhas ensinar” (Goleman, 2003, pp. 54). Este facto, leva-nos a realçar a
necessidade de nos processos de Formação esta dimensão, e a possibilidade
da sua educabilidade, ser devidamente contemplada. Diversos autores (C.
Campos, 2007; Freitas, 2004; J. G. Oliveira, 2004) têm já realçado, e de forma
bastante contundente, a importância das emoções no Futebol.

214
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Damásio (2004, pp. 183) considera ser “legitimo concluir que, na ausência de
emoções e sentimentos normais, especialmente na ausência de emoções
sociais, a emergência de comportamentos éticos seria improvável”
acrescentando, que “a eliminação da emoção e do sentimento acarreta um
empobrecimento da organização da experiência humana (…) a construção
cultural daquilo que deve ser considerado bom ou mau seria mais difícil”. Esta
citação reporta-nos, para a importância que as emoções podem ter no Futebol,
ao nível da construção de uma identidade social, isto é de uma Cultura, uma
Táctica, no seio de uma equipa e ainda, para a necessidade do cumprimento
dos “comportamento éticos”, que atendendo à Especificidade de um
determinado jogar, podem ser considerados, como sendo os respectivos
Princípios de Jogo.
O Futebol enquanto actividade Humana, comporta a presença em
permanência das emoções, visto tratar-se de uma dimensão omnipresente na
acção Humana. Segundo Cruyff (2002), o Futebol é um Jogo de emoções.
Uma opinião, sustentada por Jones (2006) que realça que as emoções têm no
Futebol um papel determinante e uma actividade bastante considerável, sendo
isso verificável, como sugere, através da variação dos níveis de testosterona,
decorrente das diferentes vivências possibilitadas por este fenómeno. Por este
motivo, Valdano (2002, pp. 250) salienta que “há aspectos puramente
emocionais de importância transcendental no desenrolar de um encontro de
futebol.”
Também a acção do treinador é, ou deverá ser altamente emocional na
condução de todo o processo, Lourenço & Ilharco (2007) salientam a
importância da Inteligência Emocional em diversos domínios da acção
Humana, incluindo no Futebol, tanto ao nível da operacionalização, por via da
“descoberta guiada”33, como também, nos processos de liderança. O
treinador enquanto líder é igualmente, um gestor de emoções, das suas e do
grupo. “O treinador deve assumir uma atitude interventiva imbuída de emoção
diferenciada (que «conduza» os jogadores ao processo do «sentir a emoção»),

33
Descoberta guiada: é uma das dimensões da operacionalização do processo. Mais adiante,
serão tecidas considerações mais pormenorizadas sobre este conceito.

215
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

de forma a direccionar os comportamentos dos jogadores para o tipo de


concentração (táctica) que pretende ao longo de todo o processo” (Freitas,
2004, pp. 15). Esta é, uma ideia igualmente partilhada por C. Campos (2007).
Para Goleman (2003) um autor para o qual a Inteligência Emocional é, a que
mais contribui para as qualidades que nos tornam plenamente Humanos, as
emoções são contagiosas, o que pode ajudar a perceber porque motivo o
Futebol, enquanto Jogo de emoções é, contágio (Valdano, 2002). Motivo pelo
qual os treinadores, como líderes de todo o processo, devem gerir
convenientemente as suas emoções, uma vez que se por exemplo,
transparecerem sentimentos e emoções negativas no decurso do processo,
estas poderão alastrar-se por contágio aos Jogadores, o que tendo em
consideração, a extrema sensibilidade às condições inicias, poderá ser
altamente pernicioso.
A este respeito consideramos importante aludir, para o conceito de “campos
mórficos” apresentado por Sheldrake (2004b, pp. 187), que nos parece,
ajustado e relevante para se perceber o quanto são importantes, a emotividade
e a intencionalidade dos treinadores na operacionalização do jogar das suas
equipas. Para o autor, a noção de “campos mórficos” evidencia, que “as
intenções humanas podem ter um efeito à distância (…) pode ser que um ser
humano (…) possa responder a uma intenção humana a muitos quilómetros de
distância.” Note-se contudo, que com esta ideia não pretendemos sugerir, que
o treinador deva deixar de ser um operacionalizador do terreno para passar a
ser um telepata. O que pretendemos, salientar é que as suas emoções e
intenções, deverão estar presentes de forma coerente e esclarecida em todo o
processo, sem que isto, ignore ou hipoteque, a necessidade que o treinador
tem de através da operacionalização, permitir que os Jogadores vivenciem o
jogar a que aspira. Para que se perceba um pouco melhor esta noção de
campos mórficos, Sheldrake (2004b, pp. 188) refere que do seu ponto de vista,
“a mente e os efeitos da mente se estendem no espaço, através da percepção,
através da intenção e através daquilo que queremos que aconteça no mundo
(dar Vida a um determinado jogar)”, acrescentando ainda que considera que,
“esses efeitos são mediados por campos mórficos que mantêm unidas partes

216
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

de sistemas auto-organizadores (…) a maneira como os campos mórficos se


organizam depende do facto de que cada sistema, em todos os níveis de
organização, tem um campo mórfico, e esses poderiam estar (…) em
organismos, em sociedades, e acho mesmo que cada sociedade tem um
campo mórfico para todo o agrupamento social”. Uma vez que, partimos do
pressuposto de que uma equipa é, uma entidade social, e um sistema auto-
organizador, com relativa facilidade se pode depreender a aplicabilidade deste
conceito ao Futebol, nomeadamente no que se refere, à necessidade do
treinador apresentar estados mentais reveladores de tranquilidade, confiança e
de coerência conceptual relativa ao seu jogar, para que desse modo, seja
capaz de contagiar os Jogadores, com os quais estabelece relações de
proximidade afectiva, algo que é fundamental, para que os campos mórficos,
exerçam a sua influência (Sheldrake, 2004b). Consideramos que esta noção de
Sheldrake (2004b), entronca em alguns dos aspectos que de forma implícita
foram salientados por Marisa Gomes (Anexo 5). Segundo a nossa entrevistada,
os treinadores e os Jogadores constituem um “nicho ecológico”, devendo na
operacionalização do processo, observar-se como que uma “fusão” entre os
intervenientes no processo. Um estado que permite, como que uma telepatia
entre estes, uma vez que se verifica uma convergência e sintonia de intenções.

4.7.3.2.2 – Inteligência Social, determinante num Fenómeno Gregário.

“E a mais fundamental das descobertas desta nova disciplina é: fomos concebidos para
conectar.”
(Goleman, 2006, pp. 11).

Anteriormente socorremo-nos de Dalai-Lama (2006), com o intuito de


explicitar que o desenvolvimento cerebral, e de modo mais preciso do
neócortex, se relacionou com a evolução das emoções, e da capacidade de
raciocínio. Esclarecemos também, que o desenvolvimento extraordinário
verificado no neócortex dos Humanos, quando comparado com o de outras
espécies, se relaciona com os processos de socialização de crescente
complexidade, que caracterizou a evolução da Humanidade (Dunbar, 2006;

217
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

Smith & Szathmáry, 2007). Estes dois factos, quanto a nós não devem ser
entendidos de forma dissociada, pelo contrário, sugerimos, que a evolução
nestes dois planos se fez de forma complementar. Algo que é corroborado por
Damásio (2004), o qual releva o papel das “emoções sociais” nos processos de
interacção e socialização. De acordo com Goleman (2006) o facto de termos
sido concebidos para conectar, levou a que a concepção do cérebro Humano
contribuísse, para a interconexão cerebral e por consequência corporal, entre
sujeitos, sugerindo mesmo, como já referimos, a existência de um “cérebro
social” e de uma “inteligência social”. Reeves et al. (2006) sugerem que o
funcionamento simultâneo de indivíduos conduz a uma Inteligência Colectiva,
algo que consideramos de grande importância no Futebol, uma actividade na
qual se pretende que diferentes indivíduos, e em número considerável, pensem
em função da mesma coisa, ao mesmo tempo (B. Oliveira et al., 2006;
Valdano, 2002), para que as Dinâmicas Colectivas e a qualidade de jogo,
possam emergir satisfatoriamente. Note-se contudo, que Smith & Szathmáry
(2007, pp. 227) salientam que a Inteligência Social não é exclusiva dos
Humanos, uma vez que é uma das características partilhadas pela
generalidade dos primatas. Apesar, de não se apresentar como uma
característica exclusiva da espécie Humana, constitui-se como um aspecto
determinante, ao ponto dos teóricos da evolução considerarem, “que a
inteligência social foi o talento primordial do cérebro humano” (Goleman, 2006,
pp. 485). Assim, o que importa reter é que os Humanos, são simultaneamente
indivíduos racionais e parceiros sociais (Changeux, 2003), sendo que outro
aspecto importante, e que não deverá ser ignorado é, o facto de todas as
dimensões da Inteligência Social, poderem ser aperfeiçoáveis (Goleman,
2006), à semelhança do que sucede com a Inteligência Emocional. Motivo pelo
qual, entendemos igualmente que os processos de Formação deverão
possibilitar o desenvolvimento das competências sociais, até porque,
consideramos ser de especial relevância para que os potenciais Talentos, não
perdendo a sua individualidade, a consigam expressar em conformidade com
um projecto colectivo.

218
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

4.7.3.2.2 – Inteligência Cinestésico – Corporal, as primeiras «achegas» à


hipótese do Futebol requisitar Inteligência(S) específica e Específica(S).

“Há vários tipos de inteligência: uma inteligência literária, uma inteligência musical, uma
inteligência corporal (…) há uma inteligência emocional (…) também há uma inteligência
futebolística, que jogadores como Pelé ou Maradona foram capazes de levar até às ultimas
consequências, até ao ponto de transmitirem a sensação de serem verdadeiros milagres
genéticos.”
(Valdano, 2002, cit. por Pacheco, 2005, pp. 76)

Quando iniciamos a nossa alusão à temática da Inteligência, sugerimos que


esta não deveria ser entendida de forma rígida e redutora, mas sim, como algo
cuja manifestação se pode expressar de diferentes formas, sendo que
alertamos também, para a possibilidade do conceito de Inteligência poder
contemplar faculdades não-cognitivas.
No domínio do Desporto, e de forma particular no Futebol consideramos, que
além da aplicabilidade das Inteligências a que anteriormente nos referimos,
Inteligência Emocional e Inteligência Social, existe um conjunto de faculdades
não-cognitivas que se afiguram como determinantes para desempenhos de
mestria. Destas consideramos de especial relevo, a Inteligência Cinestésico-
Corporal (Gardner, 2005). Celso Antunes (2006) salienta que mesmo os
movimentos mais singelos implicam a acção de diferentes Inteligências. Se
tivermos em consideração a complexidade inerente à gestualidade requisitada
pelo Futebol, pode deduzir-se que são várias as Inteligências que nele se
encontram implicadas, e que não se esgotam naquelas que aqui evidenciamos.
O mesmo autor refere, que nas diferentes modalidades desportivas, se utiliza
um “diferente elenco de inteligências”, em que a predominância de utilização de
determinada Inteligência é variável, salientando que a Inteligência Cinestésico-
Corporal, necessita de interagir com outras para a execução de determinada
tarefa motora, acrescentando ainda que esta, à semelhança da Inteligência
Emocional e Social, pode ser aprimorada.
A Inteligência Cinestésico-Corporal pode ser entendida, como a capacidade
para controlar e utilizar o Corpo e a motricidade em tarefas motoras complexas
e ainda, em situações novas ou na manipulação criativa e diferenciada de

219
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

objectos, com o intuito de resolver problemas novos (Gardner, 2005). Trata-se


deste modo, de uma Inteligência Corpórea, que pela definição acima
apresentada se revela fundamental em actividades como o Futebol. Celso
Antunes (2006), apresenta uma definição de Inteligência Cinestésico-Corporal
idêntica à de Gardner (2005), acrescentando, que o Corpo está
constantemente implicado na criação de soluções, para os problemas com que
nos deparamos. Daí a necessidade de uma Inteligência Corpórea. Tendo em
consideração o conceito de TácticoTécnica, já por nós apresentado, facilmente
se depreende a aplicabilidade deste tipo de Inteligência no Futebol. Como
evidenciamos são diversas as opiniões que sustentam a ideia, de que a
Inteligência é, determinante para a qualidade dos desempenhos no Futebol, no
entanto, com base no que já referimos acerca da problemática da Inteligência e
da existência de Inteligências Múltiplas, parece-nos pertinente especular,
acerca da possibilidade de existir uma Inteligência específica para o Futebol.
A este respeito, importa ter em consideração o que refere Lobo (2002, pp. 86)
quando se reporta a Josef Turay, um dos melhores avançados do Futebol
húngaro, “em campo era a inteligência personificada a jogar futebol” contudo,
“fora deles, não sabia ler nem escrever”. Esta evidência é, quanto a nós,
bastante pertinente e sustenta a ideia por nós apresentada, de que a
Inteligência é algo específico. Tomando como exemplo Eusébio, um dos
melhores, senão o melhor Jogador português de todos os tempos, quase
poderíamos dizer o mesmo, que Lobo (2002) refere em relação a Josef Turay.
É que nestes dois casos, a expressão de Inteligência se fazia, num domínio e
em contextos específicos, e em relação estreita com um objecto muito próprio,
o qual desde cedo se constituiu como companhia permanente, a bola. Uma vez
que, “ninguém tem necessidade daquilo que desconhece” (V. Frade, 2006),
provavelmente, se em vez de uma bola, lhes tivesse sido dado em idades
ainda precoces outros objectos, como por exemplo livros, talvez eles se
expressassem noutros domínios, de forma mais qualitativa, e o Futebol
perderia duas personagens que fascinaram multidões. Aquilo que pretendemos
sugerir, com esta especulação é, que além da Inteligência ser algo específico,

220
Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal

ela é igualmente passível de ser desenvolvida, desde que devidamente


solicitada.
Valdano (2002, cit. por Pacheco, 2005, pp. 76) reconhece que a Inteligência
de Jogo é algo Corpóreo, e que pode ser personificada nos melhores
Jogadores de todos os tempos. “Há vários tipos de inteligência: uma
inteligência literária, uma inteligência musical, uma inteligência corporal (…) há
uma inteligência emocional (…) também há uma inteligência futebolística, que
jogadores como Pelé ou Maradona foram capazes de levar até às ultimas
consequências, até ao ponto de transmitirem a sensação de serem verdadeiros
milagres genéticos.” Note-se, que a este respeito acrescenta ainda algo que
consideramos crucial, e em relação ao qual, mais adiante nos pronunciaremos
com mais pormenor. Refere que “são homens que nasceram para isso, além
de terem crescido num lugar onde todas as condições eram adequadas para
jogar Futebol. É inimaginável Maradona, ter nascido japonês” acrescentando
que este Jogador é, “um dos expoentes máximos da inteligência específica de
um futebolista.” Estas palavras realçam, não somente o facto da Inteligência de
Jogo ser algo Corpóreo, mas também, que esta se pode construir e
desenvolver, caso o contexto seja propenso.
Consideramos que pela especificidade dos padrões de acção, e de
interacção, assim como dos problemas que se apresentam no Jogo, e face à
evidência da existência de Inteligências Múltiplas, se pode adiantar a
possibilidade, quanto a nós muito plausível, de existir uma Inteligência de Jogo,
consubstanciada por diferentes tipos de Inteligência, a Inteligência Social,
Inteligência Cognitiva, Inteligência Cinestésico-Corporal, entre muitas outras,
cognitivas ou não.
A Inteligência de Jogo pode ser entendida, como “um enorme espanto e uma
desmedida admiração perante aquilo que se deve chamar a «inteligência do
movimento»: nenhum jogador tem tempo para pensar, para analisar, para
estabelecer um diagrama da situação. Um jogador corre mais depressa do que
pensa. Mas a corrida que faz, a finta que engendra e o passe que efectua são
formas de pensamento” (E. P. Coelho, 2004).

221
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

5- O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal


que é simultaneamente um Fenómeno aparentemente
ContraNatura:

“A evolução é isso mesmo: ela não se dedica a produzir a perfeição na engenharia, mas antes
adapta o que já existe, de modo simples e tão bem quanto consegue, a uma nova tarefa quando a
necessidade surge. E a evolução também não é gratuita: toda a mudança na concepção que
origine um benefício incorre inevitavelmente num custo”
(Dunbar, 2006, pp. 188).

O conhecimento da história filogenética dos seres é de capital importância na


compreensão da especificidade que caracteriza cada espécie no seu estado
actual, e como tal, assume-se como determinante na compreensão das suas
potencialidade e debilidades. O conjunto de características evidenciadas por
cada organismo vivo é, resultante de um processo complexo decorrente ao
longo de muitos anos. Um processo, caracterizado por um conjunto de
alterações muito diversas, e não lineares, que conferiu a cada espécie
qualidades peculiares, podendo ser ou não exclusivas, mas que no seu
conjunto, determinam um padrão organizacional próprio, ou seja, um conjunto
de relações único, capaz de determinar as características gerais de um sistema
vivo, encontrando-se estas incorporadas numa estrutura específica (Capra,
1996) que permite identificar uma determinada espécie e diferenciá-la das
demais. Percebe-se deste modo, que é o conjunto de relações entre as partes
constituintes dos sistemas vivos, e o modo como estas se estabelecem, que
lhes confere identidade filogenética, devendo desse modo, as características e
adaptações registadas ao longo da evolução da espécie ser entendidas, como
partes que implicam a reorganização de todo o sistema, que é complexo e
carece de um entendimento global. Smith & Szathmáry (2007, pp. 19)
salientam, que “olhando simplesmente para um objecto, não é, em princípio,
possível distinguir entre um organismo vivo e o produto de um desígnio
inteligente. Apenas concebendo a sua história é possível distinguir um ser vivo
de um artefacto. Poderíamos sempre definir um objecto (um carro ou monte de
térmitas, por exemplo) como um artefacto se tiver sido construído por entidades

223
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

(seres humanos, térmitas) diferentes de si, enquanto um ser vivo seria definido
como resultado da evolução.”
Uma vez que anteriormente apresentamos o Futebol enquanto Fenómeno
AntropoSocialTotal, julgamos pertinente conhecer algumas particularidades
associadas à evolução da espécie Humana. Através da incursão, ao percurso
filogenético da espécie Humana, procuraremos especular, tendo em
consideração o Futebol, acerca da existência ou não, de hipotéticos
constrangimentos e ou potencialidades filogenéticas.

5.1 – “Levanta-te e anda” o Bipedismo, como faceta evolutiva


determinante, as suas vantagens e desvantagens:

“A libertação dos membros anteriores como (enquanto) órgãos de locomoção, assim como a
horizontalização da visão ambos condicionados pela adopção do Bipedismo, permitiram a um
grupo restrito de vertebrados terrestres o domínio completo da Terra, devido ao aparecimento de
uma alteração anatómica bipedismo-dependente, caracterizada pelo desenvolvimento
extraordinário do encéfalo.”
(J. Leandro Massada, 2001, pp. 119).

Importa ter em consideração como ponto prévio nesta abordagem, que


segundo Reichholf (1996), o ser Humano se distingue por várias
características, podendo algumas serem consideradas mais ou menos
identificativas, acrescentando contudo, que nenhuma característica determina,
por si só, que o primata mais desenvolvido se tenha podido converter em
Homem. Não obstante esta advertência, que consideramos pertinente, de entre
as várias facetas evolutivas que caracterizaram o percurso da espécie
Humana, a aquisição do Bipedismo foi determinante para a configuração que o
Homem actual apresenta.
Dunbar (2006) reportando-se ao surgimento desta característica, esclarece
que o verdadeiro bipedismo, caracterizado por passos largos, típicos dos
Humanos modernos surgiu, pela primeira vez em registos fósseis apenas com
os primeiros membros do nosso género, a espécie Homo erectus, há cerca de
dois milhões de anos.

224
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

Desde então “temos estado sós no mundo. Não há espécie animal que se
pareça verdadeiramente com a nossa, uma vez que somos únicos” segundo
refere Arsuaga (2007, pp. 27), acrescentando ainda que existe um abismo, a
separar-nos no corpo, e sobretudo na mente (Corpo) dos restantes seres,
advertindo ainda que nenhum outro mamífero é bípede.
O bipedismo de facto assume-se, como uma característica bastante própria
do Homem, como salienta Craig Stanford (in Ackerman, 2006, pp. 53) “o
bipedismo é uma forma bizarra de locomoção. Entre mais de 250 espécies de
primatas, apenas uma se desloca sobre duas pernas.”
Para J. Leandro Massada (2001) o bipedismo pode ser entendido como uma
antiga conquista hominídea, sugerindo-a como sendo talvez, a primeira e mais
importante conquista evolutiva dos hominídeos. Importa contudo salientar, que
tendo em consideração a história das espécies, a qual se reporta a uma escala
de milhões ou biliões de anos, somente acerca de 300000 anos esta
característica se revelou com um padrão próximo daquele que conhecemos
actualmente, sendo assim em termos relativos, uma conquista que se pode
considerar recente (Lenadro Massada, Anexo 2).
Reichholf (1996) refere-se à adopção do bipedismo, e à possibilidade de
adoptarmos uma postura erecta, como uma característica especial,
apresentando a marcha na vertical como a característica exterior mais saliente
do Homem. Em conformidade, Dunbar (2006, pp. 37) salienta que entre outros,
o bipedismo é, um marcador fundamental da Humanidade, apresentando-o
mesmo, como a primeira característica a tornar-nos diferente das restantes
espécies. Percebe-se deste modo, que não é de estranhar que Platão (s/d, cit.
por Jones, 2006, pp. 199) tenha definido o Homo Sapiens como “um animal
bípede sem penas”. Numa versão um pouco mais refinada, Arsuaga, (2007)
apresenta-nos enquanto espécie, como “bípedes pensantes”. Este mesmo
autor, refere no entanto, que o bipedismo é, de forma unânime considerada a
menos «nobre» das senhas identitárias da espécie Humana. Não obstante,
importa reter neste ponto, que independentemente de ser, mais ou menos
«nobre», ou de quaisquer outro tipo de juízos que se possam efectuar, em
torno da aquisição do bipedismo, esta não deixa de ser uma senha identitária,

225
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

que inclusive se revelou determinante e precursora de muitas outras facetas


evolutivas que nos caracterizam, e que no seu conjunto e relações, nos tornam
Humanos. Craig Stanford (in Ackerman, 2006, pp. 51) a este respeito refere
que “o bipedismo foi a adaptação inicial que abriu caminho a outras.”
J. Leandro Massada (2001) destaca que com a adopção do bipedismo,
verificou-se a libertação das mãos para funções que não locomotoras
permitindo deste modo, o desenvolvimento de acções manipulativas delicadas,
que teve repercussões a diferentes níveis, nomeadamente, no aperfeiçoamento
tecnológico utilizado no fabrico dos instrumentos, na diversificação da dieta, na
estruturação social, que se tornou cada vez mais complexa e na expansão da
Inteligência. Para este autor, todas estas particularidades que marcaram a
evolução da espécie Humana, poderão ser consideradas como consequência
da postura bípede, que como salienta é pouco usual entre os animais
vertebrados, cuja Vida se desenrola em solo firme. Também Reeves et al.,
(2006) salientam que a partir do momento em que os Australopitecos
adoptaram a postura bípede, passam a servir-se mais das mãos, tornando-se
assim possível o aperfeiçoamento dos seus utensílios. A libertação das mãos,
permitiu que estas fossem Humanizadas, apreendendo um conjunto de funções
diferente daquelas que desempenhavam ancestralmente (Ruiz, 2006). O
bipedismo, parece face ao exposto, ter sido determinante para o
desenvolvimento tecnológico das sociedades Humanas, o qual não se encontra
alheio, ao extraordinário desenvolvimento cerebral verificado nesta espécie, em
interacção permanente com o meio envolvente. De acordo com Damásio
(2008, pp. 2), “existe um cérebro dentro do corpo, que tem tido como função na
evolução biológica a regulação da vida do corpo (…) Existe cérebro porque é
necessário coordenar a regulação do corpo num meio ambiental complexo. Se
o meio fosse simples e as condições do corpo fossem simples, era possível
com pequenos ajustamentos puramente corpóreos, sem cérebro manter a vida.
O problema é que, através da evolução, o corpo ganha novas unidades, novos
sistemas ligados uns aos outros, enquanto o meio se torna também mais
complexo, com perigos e oportunidades que se multiplicam.”

226
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

“A locomoção bípede revela-se como um pressuposto necessário para o


desenvolvimento de um cérebro altamente eficiente” (Reichholf, 1996, pp. 172).
Segundo Reeves et al. (2006, pp. 114) a adopção da posição erecta, libertou a
cabeça permitindo simultaneamente o crescimento da caixa craniana e desse
modo, “o cérebro só teve de ocupar o lugar disponível, como bom locatório.”
Para Capra (1996) a capacidade para permanecerem erectos, mesmo que
por breves momentos, revelou-se uma forte vantagem selectiva, uma vez que
permitiu aos primatas usar as mãos, para entre outras funções, colectar
alimentos, brandir varas e atirar pedras a fim de se defender. Com a destreza
manual aumentada, e consequente fabrico e utilização de armas, o
crescimento cerebral foi, significativamente estimulado. Arsuaga (2007),
salienta que das principais diferenças entre o ser Humano e os restantes
animais, somente a postura erecta configura um corte morfológico, visto que as
restantes como realça, são de outra natureza e, definitivamente, relacionam-se
directamente com um único órgão do nosso Corpo: o cérebro. Um órgão, cujo
desenvolvimento, como foi salientado anteriormente, se relaciona com a
adopção do bipedismo.
O bipedismo apresentou para a espécie Humana diversas vantagens, para
Reichholf (1996) as duas vantagens principais da locomoção na vertical são, a
possibilidade de manter um bom campo de visão durante a deslocação rápida,
e a possibilidade de deslocar uma massa corporal considerável, de forma
bastante eficiente. A maior eficácia desta forma de locomoção, resultante de
uma maior eficácia mecânica e consequente menor débito energético reduz de
forma muito substancial o esforço dispendido na locomoção, como é
igualmente sugerido por outros autores (Ackerman, 2006; Arsuaga, 2007; J.
Leandro Massada, 2001). A rentabilização do esforço foi, muito provavelmente,
determinante para a espécie Humana, no que à colonização de diferentes
nichos ecológicos, diz respeito. Dunbar (2006, pp. 33) sugere que o bipedismo
“requereu um novo ajustamento da estrutura anatómica”, salientando que das
vantagens decorrentes desta forma de locomoção se destacam, a possibilidade
de caminhar por distâncias mais longas, sem grande esforço ao nível da

227
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

musculatura dos membros inferiores e da região abdominal que suportam o


peso corporal na posição erecta.
“A postura Bípede (…) trouxe ao Homo Sapiens vantagens incomensuráveis
(…) a maior vantagem do bipedismo foi simplesmente permitir a um grupo de
primatas, através de uma simples alteração postural, a conquista do Mundo” (J.
Leandro Massada, 2001, pp. 237).
Como ficou evidenciado, na citação acima transcrita de Dunbar (2006), o
bipedismo requereu um conjunto de reorganizações a nível anatómico muito
significativas. Opinião partilhada por Arsuaga (2007) que salienta que todo o
nosso corpo-propriamente-dito, assim como o esqueleto que o suporta, são um
reflexo da adopção da postura bípede. As alterações anatómicas, decorrentes
da adopção do bipedismo são bastante profundas, e implicam todo o Corpo,
assim como, toda uma reorganização na Biomecânica Corporal da espécie
Humana (Ruiz, 2006).
“A locomoção sobre duas pernas (…) influencia uma grande parte da
estrutura física e exige transformações em locais que se encontram longe dos
pés” (Reichholf, 1996, pp. 171). Ruiz (2006) salienta que o bipedismo se
repercutiu de forma significativa em alterações ao nível dos pés, mandíbulas e
olhos, o que se reflectiu de forma muito significativa a nível perceptivo. Para
Reeves et al. (2006, pp. 109) encontramo-nos perante uma verdadeira
revolução, que implicou alterações, a diferentes níveis, a bacia, os membros
superiores mais curtos, as costelas e o próprio crânio, posto definitivamente
sobre a coluna vertebral, concluindo, que “toda a morfologia do esqueleto
revela uma atitude bípede.” Não devemos contudo, ignorar que o bipedismo,
desencadeou alguns condicionalismos para a espécie Humana. Na verdade,
quando nos reportamos aos percursos evolutivos das espécies, nem tudo é
perfeito. Conforme esclarece Dunbar (2006, pp. 188) “a evolução é isso
mesmo: ela não se dedica a produzir a perfeição na engenharia, mas antes
adapta o que já existe, de modo simples e tão bem quanto consegue, a uma
nova tarefa quando a necessidade surge. E a evolução também não é gratuita:
toda a mudança na concepção que origine um benefício incorre
inevitavelmente num custo.” Os custos, para a espécie Humana são bastante

228
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

diversos, segundo Ackerman (2006) a postura e locomoção erectas, estão na


origem de doenças exclusivamente Humanas, daí que se refira à nossa
espécie como “o imperfeito homem bípede”. Também Leandro Massada
(Anexo 2) sugere que “somos um animal ainda relativamente imperfeito em
tudo”. Para Reichholf (1996, pp. 7) “nós somos um produto da evolução natural,
se bem que um exemplar extremamente invulgar e, sob muitos pontos de vista,
também inacabado” acrescentando ainda, que “as nossas características
causam-nos uma série de dificuldades”.
J. Leandro Massada (2001, pp. 111), salienta que a adopção do bipedismo se
encontra relacionada com um conjunto de novas patologias, que emergiram no
Homem actual, referindo ainda, que o bipedismo, que “mostra no Homem o seu
maior grau de perfeição, ao contrário do que se verifica nas aves, criou-lhe
muitos condicionalismos de natureza mecânica”. A adopção da postura bípede,
implicou entre outras alterações, que a coluna vertebral assumisse funções de
suporte do peso corporal, originando deste modo uma sobrecarga mecânica
nesta região, que não é indiferente ao elevado índice de patologias lombares,
observadas nas populações Humanas (Carol Ward in, Ackerman, 2006).
Segundo Leandro Massada (Anexo 2) “todas essas articulações que sofreram
grandes modificações para obtermos esta nova posição espacial, este padrão
locomotor, são articulações que sofrem e degeneram com muito maior
facilidade.”

5.2- Pubalgia e afins, os condicionalismos Antropológicos da zona


média do corpo.

“As patologias que nos desportistas privilegiam as regiões púbica e inguinal são ainda motivo
de especulação e, assim de controvérsia. Para isso contribui a complexidade anatómica da região
inguinal do Homem, evolutivamente mal preparada para suportar esforços mecânicos
determinados pela adopção do bipedismo e significativamente ampliados pela prática desportiva”
(J. L. Massada, 2003, pp. 231).

Note-se contudo, que no “Homo Sapiens, é ao nível das formações


neurovasculares da parede abdominal que encontramos as marcas evolutivas
mais evidentes da quadrumania do primata ancestral em direcção ao

229
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

bipedismo do Homo Sapiens” (J. Leandro Massada, 2001, pp. 143). Daqui se
depreende, que das regiões anatómicas em que se verificaram alterações mais
significativas se destacam, as observadas ao nível da pélvis, cujas alterações
apesar de determinantes para o sucesso da marcha bípede, implicaram custos
secundários consideráveis (Arsuaga, 2007). Para este autor, o estreitamento
das ancas observado como consequência das alterações pélvicas,
aproximando-as do centro de gravidade, rentabiliza energeticamente a marcha
bípede. Dunbar (2006, pp. 31) reportando-se às alterações pélvicas
observadas na nossa espécie refere, que a pélvis dos Humanos modernos,
apresenta uma forma muito peculiar, em forma de taça, tendo sido concebida
para proporcionar simultaneamente, uma plataforma estável sobre a qual
equilibrar o tronco e, um suporte em forma de “balde para as entranhas, que de
outro modo cairiam incontrolavelmente para a frente e ficariam pendentes
sobre os joelhos”, acrescentando ainda, que estas são, características
intimamente associadas a uma marcha bípede. A região pélvica, na espécie
Humana, observa os maiores índices pélvicos entre os primatas, e apresenta
um conjunto de particularidades muito distintas de outras espécies, podendo
ser considerada a estrutura que mostra maiores diferenças entre o Homem e
os simiídeos e os antropóides (J. Leandro Massada, 2001).
Consideramos, que o conjunto de alterações observadas ao nível da pélvis,
se assume de especial relevância quando é abordada a problemática do treino
de Futebol, como sucede no presente trabalho. “No Homem a extensão
completa da articulação coxofemural, determinada pela adaptação do
bipedismo, fragilizou evolutivamente a região inguinal” (J. L. Massada, 2003,
pp. 222).
O que pretendemos evidenciar com esta abordagem é, que a identificação da
funcionalidade das cadeias musculares centrais, e dos segmentos anatómicos
mais solicitados no Futebol, como são o caso das estruturas existentes na
região pélvica é, uma condição indispensável para um correcto entendimento e
operacionalização do binómio EsforçoRecuperação. O treino de Futebol,
implica da parte dos treinadores um conhecimento relativamente aprofundado
das bases fisiológicas e da anatomia funcional dos grupos musculares mais

230
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

solicitados pela especificidade desta actividade (J. Soares, 2005), e de modo


particular, das Anatomias, Biomecânicas (Luísa Estriga, Anexo 3) e Fisiologias
implicadas nas Especificidades dos diferentes jogares.
Face a esta evidência, devemos ter em consideração o conjunto de
condicionalismos observados ao nível da região abdominal e pélvica,
resultantes da adopção do bipedismo. De acordo com J. Leandro Massada
(2001) a incidência de tendinopatias ao nível da anca, nos desportistas é, um
dos custos que o Homem paga pela adopção do bipedismo.
Na generalidade das modalidades desportivas, a maior incidência e
concentração de esforços mecânicos, depende do tipo de gestualidade,
requisitada por essa actividade (Leandro Massada, Anexo 2). Parecendo existir
em função dessas gestualidades, diferentes especificidades no tipo de padrão
lesional, associada à especificidade de uma determinada modalidade (Luísa
Estriga, Anexo 3).
Como salientamos, as estruturas anatómicas que constituem a região da
bacia encontram-se sobrecondicionadas Antropologicamente.
Condicionalismos, que se tornam mais evidentes com a prática desportiva, e de
modo particular com a prática de Futebol, pela propensão à ocorrência de
movimentos e deslocamentos antifisiológicos.
“As patologias que nos desportistas privilegiam as regiões púbica e inguinal
são ainda motivo de especulação e, assim de controvérsia. Para isso contribui
a complexidade anatómica da região inguinal do Homem, evolutivamente mal
preparada para suportar esforços mecânicos determinados pela adopção do
bipedismo e significativamente ampliados pela prática desportiva” (J. L.
Massada, 2003, pp. 231). Por este motivo, a região da bacia, deve ser uma
preocupação constante, uma vez que a sua contemplação, de forma adequada
é, um elemento chave para a não ocorrência de lesões de sobrecarga (V.
Frade, 2006). A doença dos adutores, por exemplo, é considerada por L.
Massada (2006) como uma patologia específica dos Futebolistas,
acrescentando que esta, por vezes, provoca incapacidades funcionais muito
relevantes e prolongadas. A pubalgia é também, uma lesão muito frequente

231
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

entre os Futebolistas, sendo em Portugal ao nível do Futebol a lesão de


overuse mais frequente (J.L. Massada, 2003).
Devemos ter em consideração que este tipo de lesões, resulta do não
reconhecimento das exigências funcionais que a sobre-solicitação que os
diferentes jogares implica, e do consequente desrespeito pelo binómio
EsforçoRecuperação, o que é suportado por J. L. Massada (2003, pp. 146) que
sugere que a pubalgia, resultante da amplificação do desequilíbrio muscular e
aponevrótico filogenético da parede antero-lateral e inferior do abdómen, se
encontra “condicionada por uma alteração do equilíbrio entre os músculos
abdominais e as massas musculares dos membros inferiores que se inserem
nos ramos ílio-isquiopúbicos resultantes de uma diferente resposta adaptativa
em relação às cargas mecânicas que lhes são impostas durante a prática
desportiva, fundamentalmente nos desportos que obrigam ao deslocamento
lateral intermitente, como é o caso do futebol.”
“…a área de maior concentração de forças está relacionada com o gesto
desportivo, no caso do futebol o remate, o salto, o deslocamento lateral, os
movimentos de torção que provocam hipersolicitação da coluna dorso lombar e
numa das zonas mais hipersolicitadas onde aqueles apresentam alterações
degenerativas mais marcadas, a zona da pélvis” (Leandro Massada, Anexo 2).
Motivo pelo qual, se observa na generalidade dos desportistas a existência de
músculos adutores «ricos» e de músculos abdominais «pobres» (J. L.
Massada, 2003).
Relativamente ao tratamento deste tipo de patologias, parece permanecer
ainda um pouco desconhecido, e envolto em alguma controvérsia, devido à
complexidade anatómica da região inguinal, mas também, pelo facto da
investigação médica neste domínio se ter cingido durante muito tempo ao
continente europeu, visto que apenas se tornou motivo de investigação
recentemente nos Estados Unidos da América, aquando do aumento de
interesse verificado em torno do Futebol, naquele país (L. Massada, 2006). Não
obstante a existência de alguma controvérsia, e desconhecimento
relativamente ao tratamento deste tipo de lesões, alguns autores (V. Frade,
2006; L. Massada, 2006) sugerem a diminuição ou paragem da prática de

232
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

actividade desportiva, e ainda a tonificação da região abdominal e alongamento


muscular.
O alongamento da musculatura abdominal profunda, assume-se como uma
prática muito importante na diminuição do risco de incidência de lesões, ainda
que muitas vezes, tal seja descurado pelos Jogadores e treinadores (Bangsbo,
2002). Importa ainda advertir, que sendo os músculos abdominais dos mais
solicitados nos Futebolistas, o fortalecimento dos mesmos deverá fazer-se de
forma ajustada, devendo como realça Luísa Estriga (Anexo 3), esses
desequilíbrios serem corrigidos de forma contextualizada, isto é, atendendo à
Especificidade de um jogar, fazendo-o através da operacionalização desse
mesmo jogar. Segundo J. Soares (2005), grande parte dos exercícios
realizados pelos Futebolistas, não se encontra suficientemente ajustado à
musculatura abdominal, solicitando simultaneamente, outros músculos
diminuindo deste modo, a solicitação dos músculos abdominais.
Consideramos, que apesar deste aspecto ter alguma relevância, face ao que
expusemos relativamente às alterações registadas ao nível da região
abdominal e pélvica, aquilo que mais importa realçar é, que a solicitação ou
estimulação parasita de alguns músculos como, psoas-ilíaco, recto anterior,
tensor da fascia lata, assim como os adutores, músculos «ricos», que se
encontram hipersolicitados no Futebol, representará uma sobrecarga adicional
desnecessária, que contribuirá, para um cada vez maior desequilíbrio, entre
músculos «pobres» e músculos «ricos».
Importa por isso, que os treinadores, desde a operacionalização de um
processo desde idades precoces, sejam criteriosos na escolha de exercícios
abdominais, e também, que sejam capazes de ter um controlo qualitativo do
modo, como os Jogadores os realizam, com o intuito de evitar a solicitação
parasita de alguns músculos. O ângulo de realização dos exercícios
abdominais, assume-se como um aspecto determinante, uma vez que, se por
exemplo as pernas se encontrarem em extensão, a probabilidade de solicitar
os músculos flexores da anca encontra-se aumentada, o mesmo não
sucedendo se, as pernas encontrando-se elevadas estiverem apoiadas numa
superfície com os pés a efectuarem pressão (J. Soares, 2005).

233
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

Uma vez que a filogénese da espécie Humana, e as bases anatómicas da


Hominização, se constituíram, a determinados níveis, como uma adversidade
acrescida á prática do Futebol, um Fenómeno AntropoSocialTotal, torna-se
imprescindível que o treinador reconheça os constrangimentos Antropológicos
que o Jogo implica. O Futebol, joga-se com o Corpo, comporta
inequivocamente uma dimensão Biológica (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4), e
esta tem de ser respeitada, e isso só é possível se conseguirmos identificar,
com clareza, quais as cadeias musculares centrais, os segmentos anatómicos
e possíveis constrangimentos, que têm maior predominância no Jogo, e de
modo particular, num determinado jogar.

5.3 – As bases anatómicas da Hominização, «atando-nos» de pés mas


não de mãos, a emancipação das Mãos, os dois novos Cérebros:

“No Homem, o punho e o cotovelo estruturaram-se de tal forma que permitiram que a mão se
tornasse quase um órgão inteligente”
(J. L. Massada, 2001, pp. 160).

Tal como temos vindo a evidenciar, a evolução da espécie Humana foi


fortemente condicionada pela adopção de uma nova postura, decorrente da
adopção do bipedismo, que se repercutiu num conjunto de particularidades que
no seu conjunto, e nas suas relações nos tornaram numa espécie única.
O bipedismo implicou como já realçamos uma reorganização estrutural muito
profunda, na qual foram implicadas alterações anatómicas profundas a
diferentes níveis. Com a adopção de uma postura e forma de locomoção tão
dispare da verificada nos quadrúpedes, os pés dos Humanos tiveram de alterar
a sua funcionalidade, tornando-se fundamentalmente órgãos de suporte, o que
se repercutiu numa necessidade de desenvolver um conjunto de alterações ao
nível do trem inferior, conformes com essa nova funcionalidade.
Segundo Reichholf (1996) a constituição do pé Humano, encontra-se
adaptada à nova forma de locomoção, e de corrida, o mesmo sucedendo, com
a distribuição da musculatura da perna.

234
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

“No membro inferior e ao nível do pé visualiza-se uma segunda etapa da sua


formação muito importante para o apoio bipodálico. O pé que inicialmente se
alinha com o eixo longitudinal da perna, progressivamente e coincidindo com
as alterações morfológicas de ossos como o astrágalo e o calcâneo, dirige-se
para a frente até formar com a perna o ângulo recto da disposição plantígrada
típica do pé do Homo Sapiens” (J. Leandro Massada, 2001, pp. 118). Os ossos
do pé sofreram alterações muito substanciais, tornando-se maiores e menos
densos, sendo que o maior volume ósseo permite, uma dissipação mais eficaz
das forças de tensão desencadeadas pela marcha bípede (Bruce Latimer in,
Ackerman, 2006).
Will Harcourt-Smith (in, Ackerman, 2006, pp. 59) afirma, que “o pé humano
tem sido correctamente descrito como a característica mais peculiar do corpo
humano”. O pé Humano pode caracterizar-se, por ser comprido, com o dedo
grande alinhado com o longo eixo do pé e junto dos restantes e por apresentar
um arco longitudinal bem desenvolvido (Will Harcourt-Smith in, Ackerman,
2006; Dunbar, 2006). Para Dunbar (2006) estas características evidenciadas
pelo pé Humano proporcionam uma caminhada eficiente porque, proporciona
uma plataforma como uma mola espiral, que permite um impulso acrescido
aquando do apoio do pé. Segundo J. Leandro Massada (2001) as arcadas
plantares que caracterizam o pé Humano, são determinantes para uma
locomoção bípede harmoniosa, e no seu conjunto, definem uma das estruturas
anatómicas mais evolucionadas do Homo Sapiens moderno. O mesmo autor
salienta que a elasticidade dos arcos, longitudinal interno, externo, e
transversal permitem, à abobada plantar uma boa adaptação às irregularidades
do solo, absorvendo e transmitindo de modo mais eficaz as forças mecânicas
geradas. Acrescentando ainda, que a arcada longitudinal interna, se constitui
como uma das principais características anatómicas diferenciadora da
morfologia do pé Humano, sendo esta determinante para a deambulação que
caracteriza a marcha bípede. Não obstante tais vantagens Biomecânicas,
importa não ignorar, que “há poucas configurações possíveis para um correcto
funcionamento do pé”, como realça Will Harcourt-Smith (in, Ackerman, 2006,
pp. 62). Acrescentando ainda, que em função da tipologia evidenciada pelo pé

235
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

de cada indivíduo, estes poderão ter maior ou menor propensão para diferentes
lesões “que alimentam a indústria da podologia”, podendo ir de fracturas de
fadiga, à formação de joanetes, um problema mais comum entre as mulheres,
possivelmente por estas apresentarem ancas mais largas (Ackerman, 2006).
O conjunto de alterações registadas ao nível do pé levou a que o Homem
passasse a dispor de uma estrutura especializada na locomoção bípede, o pé,
tendo prescindido deste como ferramenta, como adverte Ackerman (2006).
Trata-se assim de uma tendência evolutiva, antagónica à verificada ao nível do
trem superior, e de modo mais concreto ao nível das mãos, que se
emanciparam, a partir do momento em que o Homem se tornou bípede. A mão
especializou-se em tarefas de preensão, tendo-se vocacionado para acções
manipulativas delicadas em detrimento de acções que implicam manipulações
de maior vigor e força (J. Leandro Massada, 2001; Ruiz, 2006). O que pelo que
foi anteriormente referido, se revela uma antítese relativamente ao que
sucedeu com os pés.
Para Ackerman (2006) o bipedismo revelou-se um modo de vida gerador de
múltiplas vantagens, tendo sido a libertação das mãos, muito provavelmente, a
principal. R. Garcia (2006) considera que foi a posição bípede, que ao permitir
a libertação das mãos para tarefas que não as de locomoção, possibilitou um
salto evolutivo considerável, sugerindo ainda, que a libertação das mãos,
tornou possível alterar o processo evolutivo, que deste modo, passou a ter um
significado Cultural e não exclusivamente Biológico. Ainda de acordo com R.
Garcia (2006) a característica anátomo-funcional mais diferenciada do Homem
é, a sua mão. Uma ideia igualmente partilhada por J. Leandro Massada (2001)
que salienta, que tal se deve à especialização deste segmento, a qual foi
definida pela oponência do polegar, o que pode ser considerado como um
aspecto muito importante para a evolução Humana. O desenvolvimento
tecnológico observado na espécie Humana, foi já por nós salientado como uma
consequência da adopção do bipedismo, contudo, importa realçar que este só
foi possível, pois a nova postura adoptada pelo Homem, conferiu uma enorme
liberdade às mãos, relativamente às restantes partes em movimento (Alfred
Russel Wallace, in Ackerman, 2006). Muito provavelmente ao tornar-se bípede,

236
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

o Homem serviu-se mais das mãos, o que lhe permitiu desenvolver com maior
perfeição os seus utensílios (Reeves et al., 2006). A nova funcionalidade
conferida às mãos que implicava uma motricidade mais refinada, típica da
nossa espécie (Ackerman, 2006), levou o Homem a desenvolver de modo mais
aperfeiçoado os seus instrumentos, permitindo-lhe deste modo, uma relação
mais facilitada e inclusive dominadora, ainda que por vezes desrespeitosa, face
ao meio envolvente.
“A liberdade das mãos para fazer ferramentas, manejar armas e atirar pedras
estimulou o contínuo crescimento do cérebro, o que é uma característica da
evolução humana e pode mesmo ter contribuído para o desenvolvimento da
linguagem” (Capra, 1996, pp. 205). Daqui se depreende que a libertação das
mãos para novas funções, foi determinante para a aquisição de faculdades que
nos tornam únicos. De acordo com Reichholf (1996, pp. 212) “com o
desenvolvimento da linguagem, o Homem dominou o último grande passo da
hominização”, acrescentando, que foi a partir do momento em que o Homem
pôde falar, que se tornou num Humano completo.
A mão funcionou pelo exposto, ao longo da filogénese Humana, como um
utensílio pessoal extraordinário (J. C. Mendes, 1985), capaz de proporcionar ao
Homem conquistas importantes que o afastaram das restantes espécies. “No
Homem, o punho e o cotovelo estruturaram-se de tal forma que permitiram que
a mão se tornasse quase um órgão inteligente” (J. L. Massada, 2001, pp. 160).
Tendo em consideração, que tal como pretendemos evidenciar neste
trabalho, a Inteligência não deve ser entendida como algo centralizado num
único órgão, o cérebro, mas sim como uma potencialidade e faculdade
Corpórea, sugerimos que a adopção de uma nova funcionalidade para as
mãos, a partir da adopção do bipedismo, que foi sendo culturalmente
perpetuada e aprimorada, levou a que as mãos se emancipassem
relativamente a outras estruturas anatómicas, tornando-se, face ao refinamento
das suas acções e potencialidades das mesmas, como estruturas Inteligentes
(J. L. Massada, 2001). Sendo importante realçar, que se os pés se
submetessem a um processo evolutivo análogo, poderiam teoricamente
constituir-se como duas estruturas Inteligentes, cérebros (Leandro Massada,

237
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

Anexo 2), ou talvez, como evidenciaremos mais adiante já o sejam, e para se


manifestarem como tal, não necessitem de adaptações estruturais tão
profundas quanto aquelas que permitiram às mãos adquirirem o refinamento
psicomotriz que as caracteriza.

5.4 – O Futebol requisitando uma funcionalidade ancestral, daí um


Fenómeno aparentemente ContraNatura:

“Sempre nos foi difícil admitir esse parentesco, como sabe. A origem animal do homem choca
com tal violência contra as convicções filosóficas ou religiosas que recebe ainda numerosas
reticências …”
(Reeves et al., 2006, pp. 97).

Enquanto espécie os Humanos, pelo percurso evolutivo adoptado divergiram


de forma significativa das demais, incluindo as que lhes são mais próximas,
como a generalidade dos primatas. No ponto anterior deste trabalho,
procuramos explicitar que a filogénese Humana levou à secundarização, em
termos funcionais, dos pés, uma tendência contraposta pela emancipação das
mãos. “As mãos, nos braços, servem para manejar e manipular, mas só de
forma bastante limitada servem para nos agarrarmos ao trepar. Uma
característica especial das mãos é o polegar separado dos dedos, o qual lhe
possibilita uma preensão firme. Mais do que isso: com o auxílio do polegar e de
um dedo (indicador), podemos segurar objectos com extraordinária delicadeza.
Actuam como uma pinça. Com o dedo grande do pé não se consegue fazer o
mesmo. Não está numa posição oposta aos restantes dedos e, mesmo no caso
de uma grande destreza com os dedos dos pés, não somos capazes de fazer
mais do que agarrar simplesmente objectos” (Reichholf, 1996, pp. 167).
A diferenciação das mãos e dos pés, em termos funcionais e estruturais
revelou-se determinante na adopção de novas formas comportamentais e
manifestações culturais, tendo simultaneamente nos permitido divergir em
termos evolutivos, dos nossos antepassados mais próximos, que como
procuraremos evidenciar, relativamente às mãos e aos pés apresentam uma
diferenciação muito menos evidente. Torna-se pertinente neste ponto, tecer

238
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

algumas considerações acerca da taxionomia de alguns organismos vivos


aparentados com a espécie Humana, para que deste modo possamos perceber
de onde vimos, e para onde poderemos ir.
“Os primatas surgiram há cerca de 65 milhões de anos, antes do
desaparecimento dos dinossauros. Desde essa altura têm divergido em
lémures, macacos e símios, e estes últimos em dezenas de espécies
sobreviventes, incluindo homens, chimpanzés e gorilas. Os chimpanzés
separaram-se da nossa linhagem há aproximadamente 5 milhões de anos,
sendo talvez o último ancestral comum a humanos e gorilas 2 milhões de anos
mais novo” (Jones, 2006, pp. 204).
No que diz respeito aos hominóides actuais, chimpanzés, gorilas e
orangotangos, apresentando um aspecto semelhante, foram tradicionalmente
agrupados na mesma família, a dos pongídeos, onde também eram por vezes
incluídos os gibões, apesar de alguns autores os colocarem na sua própria
família, a dos hilobatídeos, sendo que a espécie Humana era a única da sua
família, a dos hominídeos (Arsuaga 2007). De acordo com Reeves et al. (2006)
podemos considerar, que o Homem provém de uma espécie que foi o
antepassado comum de duas linhagens, a dos macacos superiores africanos e
a dos pré-humanos. “Os humanos, os chimpanzés e os gorilas têm um
antepassado comum, uma espécie de «avô»” (Arsuaga, 2007, pp. 34).
Contudo, importa advertir que as proximidades filogenéticas, estabelecidas
pelo Homem com os vários hominóides, não são idênticas para todas as
espécies, encontrando-se deste modo, mais aparentado com umas do que
outras. Para Dunbar (2006, pp. 28) o último antepassado comum entre os
Humanos e os chimpanzés é, à escala de tempo a que nos temos de reportar
nestas problemáticas, relativamente recente, entre cinco a sete milhões de
anos, para este autor, a conclusão mais espantosa da investigação relativa à
descendência Humana, foi a de comprovar que os Humanos se encontram
intimamente aparentados com os chimpanzés, partilhando um antepassado
comum mais recente, com os chimpanzés do que com os gorilas ou os
orangotangos, como refere, “tão intima era a relação entre humanos e
chimpanzés (…) que parecia que, na realidade seríamos apenas chimpanzés

239
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

que tinham enlouquecido. Longe de serem nossos primos, os chimpanzés são


na realidade – taxonomicamente falando – a nossa espécie-irmã.” De acordo
com Jacquard (1995), importa contudo atender ao facto de que não é
inteiramente correcto, referir que o Homem descende dos macacos, mas sim
que o correcto, será afirmar que o Homem e o macaco descendem de
antepassados comuns.

Figura 1 - Cladograma relativo aos hominóides actuais (Adaptado de Arsuaga, 2007, pp. 33).

240
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

A proximidade filogenética entre Humanos e os restantes primatas, levou a


considerar-se de uma forma genérica, que “a espécie Homo sapiens – evoluiu
a partir dos macacos. A sua afirmação constitui actualmente uma verdade
universal aceite, excepto para aqueles que estão determinados a iludirem-se a
si próprios” (Jones, 2006, pp. 10). Torna-se contudo pertinente advertir, que o
Homem “só é um macaco, no sentido lato, por uma questão de «ordenação»
na classificação animal: a sua especificidade é precisamente ter ultrapassado
esta condição simples.” (Reeves et al., 2006, pp. 98).
Como temos vindo a sugerir, a possibilidade de ultrapassar essa “condição
simples” foi, em muito devida às alterações verificadas na espécie Humana que
conduziram à diferenciação de mãos e pés. Se efectuarmos, uma análise às
espécies evolutivamente mais aparentadas com a espécie Humana, sobressai
o facto de nestas, contrariamente ao que sucede na nossa espécie, se
observar uma funcionalidade praticamente indiferenciada entre trem inferior e
superior. A libertação do trem superior conduziu o Homem a uma evolução e
funcionalidade diferenciada, ao ponto de se constituir como a única espécie
pertencente à família dos hominídeos (Arsuaga, 2007).
“Naturalmente, tudo isto nos é familiar e não justificaria a pergunta sobre o
significado destas diferenças para a história filogenética do Homem, se os
Antropóides não tivessem os pés semelhantes às mãos (…) Quando fazemos
comparações simples, e não críticas, com os Antropóides, os nossos parentes
mais próximos, tudo se torna claro. Neles, os pés são semelhantes às mãos:
possuem também dedos grandes e oponíveis nos pés, podendo, por isso,
agarrar os ramos das árvores quer com as mãos quer com os pés. As mãos e
os pés dos Antropóides são, em geral muito mais parecidos entre si do que os
do Homem” (Reichholf, 1996, pp. 168).
De acordo com Dunbar (2006) as óbvias diferenças físicas a este nível, entre o
Homem e os restantes primatas, dotaram-nos de uma coordenação
manipulativa muito grande. Não sendo por isso de admirar, que a capacidade
dos chimpanzés para fabricarem utensílios, se encontre mais limitada, uma vez
que tudo parece indiciar que os braços e mãos não se encontram devidamente
coordenados para este tipo de actividade, como sugere, Arsuaga (2007), que

241
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

acrescenta, ser um facto, que não revela falta de mérito uma vez que, são
muito mais hábeis com os pés do que os Humanos. Conforme esclarece J. L.
Massada (2001, pp. 167) “entre os primatas, a acção de garra mostra-se
plenamente desenvolvida na mão e no pé, facto que não se observa no Homo
Sapiens ao nível do pé.” Em conformidade Will Harcourt-Smith (in, Ackerman,
2006) salienta que de entre os primatas somos a única espécie, que abdicou
do pé como órgão dominantemente vocacionado para agarrar objectos. Nos
primatas, como os gorilas ou os chimpanzés, verificou-se a perpetuação do pé
preênsil, a marcha vertical equilibrada observa-se numa forma ainda
rudimentar, nestes as «patas» anteriores são na verdade braços, utilizados
para funções próprias das mãos, como agarrar e suspenderem-se em árvores,
mas não para correr, contrariamente ao que sucedeu no Homem, em que o pé
apto para a marcha bípede e corrida, se desenvolveu de forma muitíssimo mais
significativa, o mesmo não sucedendo com as mãos (Reichholf, 1996).
Como afirma Ackerman (2006, pp. 59) “o pé do chimpanzé é um atributo
espantosamente útil e versátil, essencial para trepar ás árvores e capaz de
tanto movimento e manipulação como a sua mão. Em contraste, o pé humano
é um órgão hiperespecializado, concebido para (…) impulsionar o corpo em
frente e absorver o choque resultante desse movimento.” Acrescentando, que
“o bipedismo pode ter libertado as mãos, mas manietou os pés.” Por este
motivo aludimos no título do ponto anterior, para o facto das bases anatómicas
da Hominização nos terem «atado» de pés, mas não de mãos. A mesma
autora refere ainda, que a proficiência revelada pelos pés de um chimpanzé
resulta, do facto de apresentarem dedos oponíveis. Uma característica que
como salienta Reichholf (1996), não se verifica no pé Humano, sendo nesta
espécie apenas evidente ao nível das mãos, que como realça, apresentam
como característica especial, o facto do polegar se encontrar separado dos
restantes dedos, possibilitando deste modo, uma preensão firme e ainda, com
o auxílio do dedo indicador, segurar objectos com enorme delicadeza,
efectuando acções idênticas à de uma pinça. Também J. L. Massada (2001,
pp. 167) realça o facto evidenciado pelos autores anteriores, ao afirmar que “ao
contrário do Homem, a grande maioria dos primatas mostra uma grande

242
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

mobilidade do primeiro dedo do pé, enquanto na mão se verifica precisamente


o contrário.”

Figura 2 - Mãos e Pés de diferentes Primatas Figura 3 - Comparação do Pé do Chimpanzé e do Homem


(Adaptado J. L. Massada, 2001, pp. 91). (Adaptado Reichholf, 1996, pp. 51).

As investigações no âmbito da Paleontologia indicam que no passado, a


espécie Humana apresentava, um pé semelhante àquele que é ainda hoje
visível na generalidade dos primatas. Ou seja, estruturalmente encontrava-se
menos diferenciado das mãos. Ron Clarke (in, Johnson, 2007) com base na
análise de registos fósseis dos nossos antepassados, salienta que no pé, o
dedo grande, se assemelhava a um polegar, que como tal se podia afastar
ligeiramente dos restantes dedos, uma característica que teria favorecido uma
hipotética vida arborícola, que com a adopção do bipedismo se eclipsou nesta
espécie.
Consideramos, que a presente incursão ao percurso filogenético, e às
relações de proximidade da nossa espécie com outras que se nos encontram
aparentadas, se reveste de grande pertinência para um trabalho de

243
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

investigação cuja problemática é, o EnsinoAprendizagem do Futebol. Esta


abordagem justifica-se, uma vez que permite denunciar e inferir acerca do
conflito que é, pelo menos em parte, a nível evolutivo a prática de Futebol. Para
a compreensão desta nossa assunção, devemos ter em consideração que o
Futebol requisita e impõem, inclusive em termos regulamentares bastantes
constrangimentos à utilização das mãos e dos membros superiores. Note-se
que a utilização deliberada destas estruturas, é apenas permitida a um
Jogador, o Guarda – Redes. Visto que como ficou já evidente, o percurso
filogenético do Homem, contrariamente ao verificado nas espécies que lhe são
mais próximas, impôs a emancipação do trem superior, preterindo o trem
inferior, aquele que é significativamente mais solicitado no Futebol, pode
afirmar-se que o Futebol requisita uma funcionalidade mais ancestral. Ou seja,
o Futebol implica da parte dos seus praticantes, uma especificidade funcional
que decorrente do processo evolutivo Biológico e Cultural, foi sendo preterida e
secundarizada. O facto do Futebol se constituir, como uma actividade, ao nível
das bases anatómicas da Hominização, ContraNatura, torna ainda mais
pertinente a necessidade que o início da sua prática se faça precocemente. “O
futebol tem uma característica muito particular, que é, enquanto no andebol ou
nas actividades que solicitam mais o trem superior, a gente está quase
predispostos para, no futebol é precisamente o contrário.” (Marisa Gomes,
Anexo 5). O facto do Futebol se constituir a este nível como ContraNatura,
como salienta a nossa entrevistada, por solicitar predominantemente o trem
inferior, o qual apresenta uma predisposição evolutiva e cultural menor, torna
determinante o início precoce da prática de Futebol, para permitir o potenciar
de determinadas características, pois como acrescenta, é nas idades mais
precoces que a plasticidade34 se torna mais evidente.
Importa realçar, que a tendência evolutiva verificada na espécie Humana teve
repercussões muito significativas, não somente ao nível das alterações
anatómicas, já por nós salientadas, mas também, e uma vez que o Homem é
uma inteireza inquebrantável, a nível da representatividade cerebral. A

34
Plasticidade: é uma temática que será suficientemente abordada mais adiante nesta
dissertação.

244
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

motricidade e a sensibilidade da mão e do pé são, claramente distintas,


encontrando-se no caso das mãos, de uma forma geral na nossa espécie, mais
desenvolvidas. Facto que é comprovado pelos estudos realizados nos anos 50
por W. Penfield, que através da estimulação eléctrica do córtex motor, e do
córtex sensitivo, conseguiu comprovar que estes se encontram organizados
somatotopicamente, tendo sido designados os mapeamentos do córtex motor e
do córtex sensitivo, respectivamente por «homúnculo» motor e «homúnculo»
sensitivo (Habib, 2003).

a) b)

Figura 4 - a) Homúnculo Motor b) Homúnculo Sensitivo (Adaptado de Habib, 2003)

Como é possível observar, em termos de representatividade cerebral tanto a


nível motor como sensitivo, as mãos assumem uma maior preponderância, e
desenvolvimento que os pés. É com base nestas evidências que sugerimos
que o Futebol, ao requisitar uma funcionalidade mais ancestral, “o Futebol pede
aos pés, aquilo que a evolução programou para as mãos” (V. Frade, 2006)
pode ser considerado em parte, como um Fenómeno ContraNatura. “Futebol é
difícil, não é fácil (…) a gente faz com os pés o que muita gente, não pode e
não faz com as mãos” (Moreira & Moreira, 2006)
Trata-se de uma suposição, que depois de termos evidenciado que se trata
de um Fenómeno AntropoSocialTotal, não deixa de ser paradoxal. Contudo
trata-se apenas de um aparente paradoxo, como de seguida procuraremos
explicitar.

245
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

5.4 – Futebol um Fenómeno «ao lado da natura»:

“Os organismos, por outro lado, mostram um elevado grau de flexibilidade e de plasticidade
internas (…) deixam margem para variação e flexibilidade, e é essa que habilita os organismos
vivos a adaptarem-se a novas circunstâncias”
(Capra, 2005, pp. 262).

A assunção por nós efectuada de que o Futebol é, aparentemente


ContraNatura, pode ser controversa, e carece de um entendimento substancial
do fenómeno. Leandro Massada (Anexo 2), salienta que existem outras
modalidades, além do Futebol, que se revelam em termos anatómicos mais
ContraNatura, nomeadamente, as que solicitam a utilização das mãos e dos
membros superiores em posições antifisiológicas. Não ignorando, que de facto
também outras modalidades poderão revelar-se ContraNatura, face ao que
referimos relativamente à emancipação do trem superior, consideramos, que o
Futebol a este nível difere substancialmente, no tipo de implicações que
resultam da sua expressão. Leandro Massada (Anexo 2), apesar de
reconhecer que a expressão de determinados “movimentos mais
«coordenados»” no Futebol se pode constituir como adverso, justifica a sua
posição anteriormente apresentada, sugerindo que gestos implicados no
Futebol, como “o correr, o saltar, o deslocamento lateral, o pontapear, de
certeza absoluta, são gestos implicados e semelhantes a todos os gestos, que
inicialmente foram utilizados pelos nossos antepassados. O acto de correr, o
acto de saltar, o acto de pontapear o animal que pudesse vir a persegui-lo, era
um gesto que provavelmente seria utilizado numa fase inicial.” Consideramos
muito plausível esta justificação, contudo, importa a este respeito advertir que
para a expressão qualitativa da gestualidade implicada no Futebol, esta carece
de ser contextualizada e Aculturada, não somente à especificidade, mas
também à Especificidade. Motivo pelo qual, entendemos que o processo de
treino, se possível desde idades bem precoces, deverá permitir o Aculturar e
refinar desses comportamentos ancestrais. Certamente já vimos outros
animais, que não o Homem a pontapear bolas, contudo, nunca nenhum foi
visto a Jogar Futebol.

246
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

A evolução da espécie reflectiu-se num conjunto de alterações, que


permitiram que onde dantes apenas existia agressividade, emergissem formas
de expressão mais refinadas (Ruiz, 2006).
Entendemos ainda, que deve ser devidamente esclarecido que o
entendimento do Futebol enquanto fenómeno aparentemente ContraNatura,
não deve ser feito de forma restrita, o que se poderá tornar redutor. Como tal, e
por tudo o que temos vindo a referir, não se compadece com uma
“interpretação demasiado extremista dos aspectos físicos” (Sobrinho Simões,
Anexo 1) a qual não se compadece com a essência Humana. Assim, importa
salientar que não afirmamos que o Futebol é, um Fenómeno ContraNatura,
mas sim aparentemente ContraNatura, o que quanto a nós faz toda a diferença
e se constitui como um reparo muito pertinente. Apesar de como salientamos, o
Futebol em termos funcionais contrariar as tendências evidenciadas pelas
adaptações anatómicas decorrentes da Hominização, devemos ter em
consideração que esta é apenas uma das muitas dimensões contempladas
pela SupraDimensão Antropo. Daí, que qualquer generalização neste âmbito,
se torne altamente perniciosa. “Todas as generalizações são perigosas” (V.
Frade, 1979, pp. 5) Face ao exposto será mais indicado afirmar, que o Futebol
não é ContraNatura, mas sim ContraHominização, que como salientamos é
uma das muitas dimensões que consubstanciam a complexa evolução da
nossa espécie.
Neste trabalho com base em variados autores (Arsuaga, 2007; Capra, 2005;
Dunbar, 2006; Ganascia, 1999; Goleman, 2006; Jacquard, 1995; Jones, 2006;
Laborit, 1987; Lourenço & Ilharco, 2007; Malson, 1988; Morin, 2003; Reeves et
al., 2006; Smith & Szathmáry, 2007) evidenciamos que o Homem é, fruto da
sua evolução, um Ser Social, tendo sido ainda salientado, que tal se reveste de
enorme importância numa modalidade como o Futebol um Jogo Desportivo
Colectivo, que como tal implica o Homem na sua dimensão Social. Segundo
Sobrinho Simões (Anexo 1), um Jogador de Futebol tem de ser “um solista
numa orquestra” esclarecendo ainda, que “ser um solista numa orquestra não
pode ser contra natura”. Requisitando o Futebol o Homem enquanto Ser Social,
uma conquista e complexificação evolutiva da espécie, podemos, somente por

247
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

este facto, refutar o entendimento generalizado desta actividade enquanto


Fenómeno ContraNatura. Não obstante este facto, capaz de hipotecar a ideia
de que o Futebol é, um Fenómeno ContraNatura, consideramos importante
salientar que a evolução filogenética, é um processo cumulativo de aquisições
(Reichholf, 1996). Tal facto determina, que não haja um corte radical com os
nossos ancestrais, havendo por esta razão um conjunto de características
ancestrais, que por exemplo são relatadas pelos vários casos apresentados por
Malson (1988), que como salienta apresentam um conjunto de características
relacionadas com as respectivas aventuras solitárias. “Vítor (…) tendia sempre
a «andar a trote ou a galope» e que uma testemunha, o cidadão Nougairolles
(…) descreve fugindo a quatro quando um dia, perseguido num campo se viu
prestes a ser apanhado” (Malson, 1988, pp. 64). Daqui se depreende, que
permanece em nós latente um conjunto de características ancestrais, que
podem contudo se manifestar como próprias de cada um, se devidamente
estimuladas.
Uma das características ancestrais que a nossa espécie evidencia, ainda que
de forma transitória relaciona-se com a marcha bípede. Observa-se com
relativa facilidade, que as Crianças até conseguirem caminhar passam
geralmente por um conjunto de aquisições, cuja forma de locomoção se
relaciona com as formas de locomoção mais ancestrais. Além disso, quando a
Criança começa a dar os primeiros passos, se sustentada e «forçada» contra o
solo, manifesta um conjunto de reflexos arcaicos que lhe permitem caminhar e
que comprovam, a existência de vestígios dos nossos ancestrais, latentes no
Corpo.
Através da observação do padrão de marcha de uma Criança verificamos,
que nela são evidentes a manifestação de algumas das características
ancestrais do bipedismo, nomeadamente as pernas arqueadas e os primeiros
passos cambaleantes, características mais próximas da locomoção dos nossos
antepassados símios do que dos nosso progenitores Humanos (Ackerman,
2006). “Os outros símios, quando caminham bipedalmente, fazem-no com os
joelhos dobrados” (Dunbar, 2006, pp. 32).

248
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

A constatação da manifestação destas, e de outras


características ancestrais, assim como, a existência de
algumas que geralmente permanecem latentes mas que se
manifestam, em casos particulares, devido a uma
adequada e diferenciada estimulação, são factos que
realçam a importância do treino. As provas mais evidentes,
de que é possível despertar nos Humanos a funcionalidade
ancestral do trem inferior provêm, por exemplo das histórias
de Vida de algumas pessoas que nasceram, devido
Figura 5 - Primeiros passos da Criança aos efeitos perversos e imponderados da
Humana
talidomida, com os membros superiores amputados.
(Adaptado de Ackerman, 2006, pp. 64)
Muitos destes indivíduos, privados à nascença da
possibilidade de utilização dos membros superiores e das mãos, superam
estas limitações, através de uma funcionalidade e sentimentalidade aprimorada
dos membros inferiores e dos pés. São pessoas, que desempenham com os
pés tarefas como, cozinhar, conduzir, pentear, tocar guitarra, mudar fraldas,
entre outras que Culturalmente são desempenhadas pelas mãos. Como refere
Sobrinho Simões (Anexo 1) estes casos são, “a expressão da capacidade de
superação das limitações físicas pelo treino e pela operacionalização.”
Uma vez que, a funcionalidade implicada no Futebol se assemelha, em parte,
à requisitada pelas pessoas que desde cedo se vêem obrigadas a viver sem
membros superiores, pode com alguma segurança efectuar-se algumas
especulações, e inferir acerca das possíveis analogias e extrapolações, que se
podem efectuar para o Futebol. As palavras de Sobrinho Simões (Anexo 1),
conjuntamente com os relatos de Malson (1988), e das evidências de casos de
Aculturações Corporais diferenciadas, decorrentes da necessidade de
adaptabilidade a circunstâncias particulares, relevam a importância do treino e,
de uma estimulação adequada do Corpo, a qual se torna capaz de o
sensibilizar e Aculturar, ao ponto de tornar uma actividade aparentemente
ContraNatura, numa das mais avançadas e fascinantes técnicas de
manifestação Corporal, o Futebol, cujos expoentes máximos dessa construção

249
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

do Corpo como Técnica se encontram, personificados em Talentos como Pelé,


Di Stéfano e Maradona, etc…
Leandro Massada (Anexo 2) pronunciando-se sobre os casos de indivíduos
amputados à nascença, de membros superiores, diz o seguinte: “Um miúdo
que nasça sem braços, ele ao fim de uns anos consegue utilizar os membros
inferiores em gestos que vão suprir a falta dos membros superiores. Mas isso
não tem nada a ver com a genética, isso tem a ver fundamentalmente com a
função. A função de determinadas áreas ao permitir que de forma interactiva e
repetida que determinados músculos e determinadas articulações façam um
tipo de trabalho que não estava programado, pode permitir a essas
articulações, poderem desenvolver qualidades motoras para as quais não
estão programadas geneticamente. Aí, fundamentalmente o que actua é a
função.”
“As crianças revelam muitas vezes reacções que correspondem
genuinamente à nossa natureza (…) temos de treiná-las a comportarem-se
«civilizadamente»” (Levitin, 2007, pp. 264). Partindo destes pressupostos,
consideramos que o despertar de uma funcionalidade ancestral, poderá ser
mais efectiva, se efectuada ainda em idades precoces, nos períodos em que a
necessidade de Aculturação é mais premente, e em que também revela maior
potencial.
Devemos ter em consideração, que a capacidade de adaptabilidade que nos
caracteriza enquanto espécie, parece hipotecar, ou pelo menos colocar
bastantes reticências, à ideia de que somos uma entidade inflexível. Como
adverte Jones (2006, pp. 13) “os homens encontram-se em contínuo estado de
mudança”.
“Os organismos (…) mostram um elevado grau de flexibilidade e de
plasticidade internas. O formato de seus componentes pode variar dentro de
certos limites, e não há dois organismos que tenham peças rigorosamente
idênticas. Embora o organismo como um todo exiba regularidades entre suas
partes não são rigidamente determinados (…) Essa ordem resulta de
actividades coordenadoras que não constrangem rigidamente as partes, mas
deixam margem para variação e flexibilidade, e é essa que habilita os

250
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

organismos vivos a adaptarem-se a novas circunstâncias” (Capra, 2005, pp.


262). A este respeito Smith & Szathmáry (2007) salienta, que a capacidade de
adaptação é, uma característica da Vida. Para Capra (2005) a capacidade de
adaptação a um meio ambiente variável, pode considerar-se como uma
característica essencial dos organismos vivos e dos sistemas sociais. O que
face ao que já foi por nós evidenciado, relativamente ao Fenómeno Futebol,
nos leva a considerar que também neste a capacidade de adaptabilidade,
conceito que consideramos mais ajustado, é essencial. Por seu turno, Arsuaga
(2007) salienta que a capacidade de adaptabilidade evidenciada pelo Homem,
o tornou numa espécie ubíqua, capaz de ser bem sucedido, mesmo
encontrando-se exposto a diferentes influências ambientais. Uma opinião
igualmente defendida por Reeves et al. (2006). Com base nestas afirmações,
podemos especular, que talvez também pelo facto, de ser um fenómeno
caracterizado por evidenciar e requisitar uma extraordinária adaptabilidade, o
Futebol se tenha tornado num Fenómeno Global.
De acordo com Jones (2006) a variabilidade dos corpos dos primatas é um
reflexo da variabilidade observada nos seus hábitos. Um entendimento, que
quanto a nós sugere o Corpo como uma entidade funcional. Importando
contudo, a este respeito não ignorar, e indo de encontro ao conceito de
adaptabilidade por nós sugerido, que “o pensamento funcional não tolera
quaisquer condições estáticas. Pois todos os processos naturais estão em
movimento, mesmo no caso das estruturas rígidas e formas imóveis. (…) a
natureza ‘flui’ em cada uma de suas diversas funções, assim como em sua
totalidade. (…) A natureza é funcional em todas as áreas e não apenas nas da
matéria orgânica. Existem, é claro, leis mecânicas, mas os mecanismos da
natureza são, em si mesmos, uma variante especial de processos funcionais”
(Reich,1979, cit. por Capra, 2005, pp. 337).
Torna-se evidente face ao que foi exposto neste ponto, que a adaptabilidade
é uma característica essencial para a nossa espécie. Sendo o Futebol, uma
actividade que exige e implica, que se descubram, explorem e desenvolvam
potencialidades a Aculturar, isto é, funcionalidades ancestrais que possuímos,
mas que contudo, permanecem geralmente latentes, constitui-se como uma

251
O Aparente Paradoxo, um Fenómeno AntropoSocialTotal que é simultaneamente um Fenómeno
aparentemente ContraNatura

actividade que contempla a descoberta do Corpo, da sua flexibilidade funcional,


e das múltiplas formas de expressão da sua plasticidade. Motivos que nos
levam a considerar ser mais adequado, entender o Futebol como um
Fenómeno Ao Lado da Natura, e não ContraNatura.
“Mas não é contra natura. Se você quiser, é ao lado da natura. Quer dizer
porque agora você vai poder desenvolver” (Sobrinho Simões, Anexo 1).
Reforçando-se simultaneamente a ideia de que o Futebol se encontra ao lado
da Cultura, visto que entre estes não deverá haver “cisura”, e também que “a
Natura é a Cultura do Homem” (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).
Como nota final, queremos reforçar a ideia que “temos uma característica que
é adaptativa, e que tem de ser inicialmente aprendida, que pode evoluir de
modo a ficar integrada no cérebro” (Smith & Szathmáry, 2007, pp. 264). Uma
afirmação, que serve de ponte para os próximos capítulos, e que nos leva
desde já a especular acerca da possibilidade das Aprendizagens adaptativas
poderem induzir alterações estruturais significativas, inclusive a nível neuronal.

252
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

6 – Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol,


Mais Criança, Mais Educação:

“O que é que vamos fazer das nossas crianças e do nosso compromisso com elas? Não
esqueçamos que o segredo do homem é a sua própria infância”
(J. Bento, 2004, pp. 111).

6.1- A Brincar a Brincar é que o Talento começa a despoletar:

“A brincadeira tem vantagens muito sérias; através de anos e anos a brincar, as crianças
adquirem uma vasta gama de competências sociais”
(Goleman, 2006, pp. 262).

“Brincava a criança
Com um carro de bois.
Sentiu-se brincando
E disse, eu sou dois!
Há um a brincar
E há outro a saber
Um vê-me a brincar
E o outro vê-me a ver”
(Pessoa, s/d.).

Não obstante as alterações verificadas nas nossas sociedades, para as quais


já aludimos, assim como, para as consequências que estas apresentam para o
desenvolvimento dos mais jovens, são vários e provenientes de diferentes
áreas, desde a Física, às Neurociências passando pela Pediatria, os
especialistas na temática da brincadeira, a argumentar acerca da importância
do acto de brincar (Celso Antunes, 2006; Bekoff, 2007; Buzan, 2003;
Donaldson, 2007; Fiolhais, 2005; Fleisher, 2007; Ginsburg, 2007; Goleman,
2006; Jensen, 2002; Nava, 2003; Neto, 1997, 1999; Panksepp, 1998; Power,
2007).
A brincadeira apresenta-se, como uma ferramenta indispensável para o
desenvolvimento da generalidade dos seres vivos, sendo este facto ainda mais
evidente nos mamíferos, para os quais a brincadeira e o jogo podem ser

253
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

considerados como um alimento para o desenvolvimento dos mais jovens


(Fleisher, 2007).
Segundo Bekoff (2007), as brincadeiras dos animais vão de encontro aos
respectivos estilos de vida, salientando ainda, que o acto de brincar se revelou
e revela de extrema importância para a sobrevivência dos animais. Panksepp
(1998) refere que os mamíferos, e como tal, as Crianças Humanas necessitam
de brincar para se desenvolverem de forma conveniente. Este autor, um dos
pioneiros nesta temática, apresenta a brincadeira como a fonte de alegria do
cérebro. Também Donalson (2007) reconhecendo a importância de brincar
para a sobrevivência, refere que a aquisição das mais importantes faculdades,
como falar ou andar são aprendidas a brincar, acrescentando que é através
das brincadeiras que aprendemos a tocar o mundo, e que aprendemos
igualmente, que o mundo nos toca a nós.
“Uma criança desde que nasce, o que faz é descobrir o mundo. Como é?
Para isso agarra, vira, revira, vê e revê. A seguir pergunta (…) Ora não sendo a
ciência mais do que a descoberta do mundo, a atitude de um ser humano na
sua mais tenra idade ao interagir com o seu ambiente é de algum modo uma
atitude científica” (Fiolhais, 2005, pp. 83). Com base no que foi referido
anteriormente esta atitude científica precoce, pode ser considerada como uma
tendência característica dos mais jovens, que através das suas actividades
exploratórias se apresentam ao mundo, se apropriam dele e aprendem a
interagir com o que os rodeia.
Estudos recentes (Ginsburg, 2007) revelam, que o acto de brincar se constitui
como parte fundamental para o desenvolvimento social, emocional, físico e
cognitivo. O mesmo autor salienta ainda, que o acto de brincar permite que as
Crianças desenvolvam a criatividade e a capacidade de imaginação. Uma ideia
igualmente partilhada por Buzan (2003). Por seu turno Goleman (2006),
salienta o papel da brincadeira ao nível da aquisição e desenvolvimento de
competências sociais, enquanto que Celso Antunes (2006), também
corroborando o que se encontra sugerido por Ginsburg (2007), salienta que a
realização de actividades, como idas ao bosque, ou a parques onde haja
espaços para os jovens brincarem livremente, ainda que possam ser

254
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

supervisionados, realizando actividades como andar de baloiço, deslizar em


escorregões, trepar, representam um estímulo cinestésico – corporal muito
significativo para o desenvolvimento da motricidade das Crianças.
O contexto em que vivemos actualmente, pode ser caracterizado por
alterações significativas na estrutura familiar, pela necessidade que os
educadores sentem de perante uma sociedade altamente exigente,
proporcionarem aos seus educandos oportunidades de desenvolvimento de
competências diversas que lhes possam ser úteis no futuro, que se afigura
altamente competitivo, e ainda pelos crescentes níveis de insegurança
(Ginsburg, 2007), o que tem hipotecado que os mais jovens, possam aceder às
valências altamente vantajosas que o acto de brincar comporta, ou pelo menos
desvirtuado esta actividade, tendendo assim a esterilizar-se o acto de brincar.
Esta evidência poderá ter repercussões perniciosas no que se refere ao
desenvolvimento dos jovens. Apesar das pessoas considerarem que num
contexto tão competitivo e exigente como aquele em que vivemos, o acto de
brincar se pode considerar aparentemente inútil, devendo ser preterido em
detrimento de mais momentos de estudo e de aprendizagem (sentido
convenciaonal do termo), Power (2007) adverte que tal entendimento não tem
sustentabilidade, até porque como sugere, há estudos que evidenciam que
quando as Crianças têm múltiplas oportunidades para brincar durante o dia,
aumentam a qualidade dos seus desempenhos na escola, pois encontram-se
mais atentos e concentrados no espaço da aula. Os estudos levados a efeito
por Pankseep (1998) corroboram esta hipótese, sendo mesmo sugerido por
este autor, que a hiperactividade evidenciada por algumas Crianças, uma
síndrome crescente nas sociedades actuais, resulta do facto destas se
encontrarem privadas de momentos de brincadeira.
O acto de brincar apresenta-se deste modo, como um meio fundamental no
processo de desenvolvimento e de Aprendizagem das Crianças, ao ponto de
podermos considerar, que no mundo vivo, as espécies que mais brincam são
as mais evoluídas do ponto de vista social, e no que respeita aos domínios da
Inteligência. A este respeito, e apesar de tudo o que foi referido anteriormente,
somos ainda a espécie que por não ter necessidades de sobrevivência,

255
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

comuns à generalidade dos animais, dispõe de mais tempo para brincar. No


entanto, voltamos a frisar, que a diminuição do tempo destinado a esta
actividade poderá ter consequências muito nefastas. De acordo com Jensen
(2002), o eclipse de algumas brincadeiras típicas dos antigos recreios, poderá
representar um aumento significativo nas dificuldades de Aprendizagem das
Crianças.
Se nos reportarmos à infância de alguns Jogadores (Beckham, 2004;
Maradona, 2005; Pelé, 2006c; Zidane, 2006), verificamos que nas idades mais
precoces, as suas vivências foram bastante ricas no que ao brincar diz
respeito.
Pelé (2006c, pp. 32) reportando-se com nostalgia à sua infância refere, que
“há uma espécie de inocência nas brincadeiras que fazíamos, ainda que por
vezes nos envolvessemos em sarilhos por causa delas. Hoje, não há muitas
crianças que possam brincar na rua, que reconheçam uma mangueira e que
tenham o privilégio de comer uma manga acabada de colher da árvore,
sentando-se debaixo desta a saborear o fruto, sem se preocuparem com o
sumo que escorre pelos braços. As crianças quase não têm responsabilidade,
não raciocinam da mesma forma quando são adultas. Uma criança contenta-se
com o seu pequeno mundo. Tem uma ideia menos drástica da pobreza.” Em
nosso entendimento, esta afirmação vai de encontro a muito do que foi
salientado anteriormente, nomeadamente no que se relaciona com o modo
como as Crianças descobrem o mundo através do acto de brincar, e também,
relativamente ao contraste evidente entre as brincadeiras de antigamente e as
actuais.
Zidane (2006) reconhece que o facto de ter vivido num bairro rodeado de
outras Crianças, com as quais brincava foi determinante, destacando que foi
naquele local e com aquelas vivências que se começou a construir algo.
Reportando-se à sua infância, Beckham (2004) salienta que até à
adolescência, o seu desenvolvimento foi caracterizado por um conjunto de
brincadeiras como andar de bicicleta, skate, patins, ou explorar os atalhos
existentes na rua e brincar no parque, tudo isto juntamente com o seu grupo de
amigos, que foi por via destas brincadeiras se alargando.

256
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

“Eu não tenho dúvidas que essas vivências motoras enriquecedoras, e de


alguma forma também de exploração motora que as crianças hoje não têm, de
descoberta, não têm essa possibilidade, eu acho que é limitador” (Luisa
Estriga, Anexo 3). A nossa entrevistada adverte ainda, que esta carência é
ainda mais limitadora, quando o processo tende a ser mecanicista e
descentrado das exigências do Jogo. Reforçando deste modo, a necessidade
de pensar devidamente os processos de Formação.
Consideramos, que a regularidade e o carácter repetitivo, com que os relatos
da infância de Talentos, aludem para brincadeiras e vivências Corporais muito
diversas, juntamente com dados existentes acerca das potencialidades de
brincar para o desenvolvimento das Crianças, permitem-nos especular e inferir,
que esse conjunto de vivências se reveste de enorme utilidade para o
desenvolvimento da astúcia, da perspicácia, do reportório Corporal e da
proprioceptividade, que consideramos terem contribuído e servido de base para
um posterior desenvolvimento da mestria Corporal específica, e de excelência,
requisitada para Jogar Futebol ao mais alto nível.
“… nas escolas de futebol onde não existe futebol de rua, onde não existe
proprioceptividade, onde não existe habilidade pelo treino, as escolas da Suiça,
da Áustria ou na Rússia, por causa do tempo, há pouco futebol de rua, há
pouca proprioceptividade, há pouca habilidade natural, pouco desenvolvimento
dessas características (…) quando surgem situações de jogo, ou situações
sociais, de stress, falando fora do desporto, que sejam diferentes daquilo a que
eles estão habituados a fazer, têm mais dificuldade, menos criatividade. (…) A
proprioceptividade, o hábito dos miúdos fazerem actividade desportiva na rua,
o hábito dos miúdos na praia, de jogarem futebol na praia durante 3 meses e
em areia incerta, determinava um aumento tal da proprioceptividade entre
esses miúdos, que as lesões graves deles eram pouco frequentes.
Actualmente há uma diminuição dessas vivências, o treino é muito mais
mecanizado, os miúdos são mais robotizados” (Leandro Massada, Anexo 2).
Entendemos por isso, que se torna pertinente efectuar um levantamento de
algumas das brincadeiras comuns à generalidade dos Jogadores de Top, no

257
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

sentido de as tentar implementar como actividades regulares das nossas


Crianças, como tentativa de fuga a esta formatação.
“Os meus amigos vinham até ao quintal e inventávamos brincadeiras,
chegando a montar pequenos circos. Os ramos das árvores eram os nossos
trapézios e os riscos que assumíamos eram terríveis. A minha mãe e a minha
avó não gostavam nada das nossas brincadeiras. Saía para a rua – feliz a
criança que pode brincar na rua!” (Pelé, 2006c, pp. 29).

6.2 – Futebol e o seu valor Formativo:

“ O desporto é uma fabricação de próteses para as insuficiências e deficiências do corpo do


homem e para além dele. Faz parte da luta contra a ideologia da impotência que nos sussurra que
na vida não há nada para fazer, que não podemos fazer nada por nós, que não somos os sujeitos
principais da nossa construção, que nos devemos omitir e entregar nos braços de um destino de
derrotados e vencidos da existência. Por isso é educativo, é um sal da educação”
(J. Bento, 2004, pp. 47).

“Tudo aquilo que aprendi sobre a moral dos homens, aprendi-o nos campos jogando futebol”
(Alberto Camus, s/d, cit. por Lobo, 2002, pp. 64).

A Educação é um bem essencial para o desenvolvimento Humano, sendo


mesmo um instrumento fundamental na luta contra as fatalidades e
preconceitos sociais (Savater, 1997). Ou seja, através da Educação podemos
alargar horizontes, e alcançar as metas ambiciosas que vamos colocando, ou
que se nos colocam durante a ontogénese. Não obstante este facto, Goleman
(2003) adverte para algo que em nosso entendimento, é bastante pertinente
quando salienta, não ser suficiente Educar simplesmente falando às Crianças
sobre valores, torna-se fundamental que elas os pratiquem, pois somente deste
modo se torna possível que desenvolvam competências sociais e emocionais
básicas. O Desporto e de forma particular o Futebol, pelas suas valências
afiguram-se como espaços nos quais os jovens podem vivenciar, fomentar,
desenvolver, e tocar através de brincadeiras, os valores que lhes serão
fundamentais para a Vida, e para o alcance do sucesso.
“Para este destino pode e deve o desporto convergir por muitos caminhos.
Certamente que ele torna evidentes as nossas fraquezas, insuficiências,

258
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

mazelas e contradições, pondo a nu e convidando a cultivar o que em nós falta.


Mas por isso, é educativo e pedagógico por excelência. Funda e reforça a
convicção de que o caminho mais longo é o homem como pessoa moral. É
para ela que vale verdadeiramente a pena trabalhar e é para ela que sempre
apontaram as fundamentações antropológicas e filosóficas dos exercícios
físicos desportivos” (J. Bento, 2004, pp. 69).
Inúmeros autores argumentam, que o Desporto apresenta um potencial
Formativo que não deve ser desconsiderado no desenvolvimento das Crianças
(J. Bento, 2004; Bento, 2007; Constantino, 2007; Cruyff, 2002; Jensen, 2002;
Lopes, 2007; Mesquita, 2000; Murad, 2007; Pacheco, 2001; Santos, 2004;
Serpa, 2007; Tenreiro, 2007). Por este motivo, o envolvimento dos jovens na
prática desportiva pode em parte se explicar, pelo facto de tal adesão, se
fundar na convicção generalizada dos adultos, de que o Desporto apresenta
potencialidades no que concerne, à aquisição de comportamentos sociais
desejáveis (Gonçalves, 1991).
O Desporto é um acto fundante do Ser do Homem, sendo por excelência
educativo e pedagógico, nele podemos encontrar um universo de valores,
capaz de lutar contra a decadência de alguns valores, uma vez que, os valores
que desenvolve não se confinam apenas ao domínio desportivo, estendendo-
se para um âmbito mais abrangente “não se ensinam e aprendem apenas para
terem valimento no desporto, mas sim e essencialmente para vigorarem na
vida, para lhe traçarem rumos, alargarem os horizontes e acrescentarem metas
e meios de as alcançar.” (J. Bento, 2004, pp. 79). São deste modo valores
basilares para a Vida. Também Mesquita (2000) realça o papel do Desporto no
que se reporta à aquisição e desenvolvimento de valores, salientando que o
valor formativo do Desporto se expressa também pelo seu contributo ao nível
do desenvolvimento de capacidades e habilidades motoras e do
desenvolvimento harmonioso do indivíduo. Segundo Tenreiro (2007) o
Desporto potencia o capital Humano das sociedades, uma ideia partilhada por
Murad (2007) para o qual o Desporto é um instrumento importante na
construção da cidadania. Por tudo isto, sabe-se e está actualmente
comprovado, que a prática desportiva, assim como a estimulação motora

259
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

precoce se revelam de grande pertinência para o desenvolvimento íntegro das


Crianças (Jensen, 2002).
Também o Futebol, sendo um universo povoado de valores, pode ser
considerado como uma escola de virtudes (Costa, 2004). Deste modo, pode
reconhecer-se ao Futebol um potencial Formativo, (J. O. Bento, 2004; Costa,
2004, Cruyff, 2002, Garanta & Pinto, 1998; Santos, 2004; Wein, 2004), que
como tal, não deverá ser menosprezado.
O carácter dinâmico da estrutura acontecimental do Futebol permite-nos
aceder a conhecimentos muito significativos. “Aprendi que a bola nunca vem
para a gente por onde se espera que venha. Isso me ajudou muito na minha
vida, principalmente nas grandes cidades, onde as pessoas não costumam ser
aquilo que a gente acha que são as pessoas direitas“ (Albert Camus, s/d, cit.
por Galeano, 2005, pp. 66). Por este motivo, o Futebol pode contribuir para o
reforço da dignidade profissional e social dos indivíduos (J. A. Santos, 2004).
Segundo Cruyff (2002) o Futebol apresenta-se como uma boa escola de
Formação, dando um contributo relevante para a maturação da personalidade
de cada um. Não sendo por isso de admirar, que J. O. Bento (2004, pp. 196)
afirme que contínua sem saber dizer o que é o Futebol, sabendo apenas que
este lhe “atravessou a infância e configurou a vida”. Partilhando e corroborando
deste modo, as palavras de Albert Camus (s/d, cit por Lobo, 2002) quando
salienta que foi no campo, a jogar Futebol que aprendeu tudo o que conhece
acerca da moral dos Homens.
As histórias de Vida dos Jogadores de Futebol, e os relatos que estes fazem
das mesmas, nos quais salientam a importância do Futebol na sua Formação
enquanto pessoas, ajudam a suportar a ideia que o Futebol pode apresentar
um potencial Educativo e Formativo muito significativos. Por exemplo, Zizinho
(2006) teme que as alterações sociais verificadas no Brasil, e que levaram ao
eclipse do Futebol de Rua, conduzam os jovens para caminhos menos
positivos. Por seu turno, Shevchenko (2006), salienta que foi através da
assimilação de valores pelo Futebol, que se tornou uma pessoa pontual.
Beckham (2004) salienta que o que mais o espantou ao longo do seu
processo de Formação enquanto Jogador foi, o modo como simultaneamente

260
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

cresceu enquanto pessoa, destacando que estar envolvido desde muito cedo
no Desporto, e de forma particular no Futebol, o levaram a interiorizar regras
que lhe permitiram ascender ao nível que alcançou, pois ensinaram-lhe a
respeitar e a aplicar-se nos compromissos assumidos.
Face às evidências por nós apresentadas, o Futebol deverá ser entendido
como um espaço capaz de contribuir para a Formação integra dos jovens, o
que se por um lado lhe aumenta o estatuto, acarreta-lhe simultaneamente
responsabilidades acrescidas, para as quais, tanto clubes, como treinadores, e
outros agentes desportivos terão de estar preparados, pois só deste modo,
corresponderão às expectativas dos educadores que incumbem o Desporto e o
Futebol, da responsabilidade de contribuírem para a Formação dos seus
educandos, e por conseguinte, de contribuírem para a construção do futuro das
sociedades. O aumento de responsabilidades a este nível, implica quanto a
nós, da parte dos intervenientes neste processo a interiorização da seguinte
advertência de Bento (2007, pp. 51), “o desporto não quer apenas ver
aumentada a sua prática. Quer que ela seja conforme a padrões garantes de
qualidade educativa”.
Face ao exposto, se devidamente levado a efeito torna-se exequível, através
de Mais Futebol aceder a Mais Educação.

6.3 – Treino como Processo de EnsinoAprendizagem e o Treinador


como Formador:

“Desporto e pedagogia
Se os juntassem como irmãos, esse conjunto daria
Verdadeiros cidadãos!
Assim sem darem as mãos o que um faz, o outro atrofia”
(António Aleixo, s/d, cit. por J. O. Bento, 2004, pp. 205).

No ponto anterior procuramos evidenciar que o Futebol pode apresentar um


elevado potencial Formativo, que pode contudo ser seriamente comprometido,
se entendido, utilizado e operacionalizado como mero entretenimento.
Tornando-se assim pertinente, que o Ensino do Futebol tenha subjacente um
tratamento didáctico e pedagógico apropriado (Garganta & Pinto, 1998).

261
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Não obstante este facto tem se observado que o treino, e de modo particular
o treino de jovens tem permanecido divorciado, mesmo sem nunca ter casado,
da Aprendizagem Motora, devido ao incorrecto tratamento e entendimento das
suas matérias de ensino (V. Frade, 1979; Tani, 2002). Por este motivo, e tendo
por base as palavras de António Aleixo (s/d, cit. por J. O. Bento, 2004),
Desporto e Pedagogia têm adoptado orientações divergentes, “atrofiando-se”
reciprocamente.
O Futebol tem recebido influências da evolução genérica dos conceitos
existentes no âmbito do treino desportivo, revelando-se predominantemente
durante a sua evolução, mais receptor do que transmissor de ideias e
conhecimentos, o facto de ser mais influenciado do que influenciador conferiu-
lhe um défice de informação no âmbito desportivo (Ramos, 2003). O facto do
Futebol não se ter constituído como uma temática específica, motivou que
fosse atomizado (Sobral, 1995) e colonizado pelas restantes modalidades,
especialmente pelas modalidades individuais, o que motivou que o percurso
adoptado pelo treino em Futebol se tenha caracterizado pela exacerbação da
dimensão física, tendo prevalecido na área do Desporto um entendimento
redutor, e como tal desajustado, segundo o qual apenas os conhecimentos
provenientes da Biomecânica e Fisiologia do Exercício, são considerados
relevantes para o sucesso das prestações desportivas (Tani, 2002). O mesmo
autor faz notar contudo, que se tem observado uma ligeira alteração,
permitindo que áreas como a Psicologia do Desporto e a Cineantropometria,
contribuam com os seus conhecimentos para o Desporto, permanecendo no
entanto, e de forma paradoxal, a área da Aprendizagem Motora divorciada,
sem que esta se tenha casado em momento algum, com o Desporto de
Rendimento. Depreende-se deste modo, que a dimensão energética tem sido
sobrevalorizada relativamente aos aspectos relacionados com o tratamento da
informação, ignorando-se assim, o papel do cérebro no processo de treino, e o
papel do músculo enquanto órgão sensitivo, entendendo-se este último como
um mero efector de movimento, capaz de transformar energia química em
energia mecânica. Em conformidade Lopes (2007) denuncia, que o treino de
jovens se encontra fortemente influenciado pelo que se faz convencionalmente

262
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

no treino dos adultos, sendo deste modo caracterizado pelas concepções


mecanicistas vigentes, “a norma do treinar em futebol” (B. Oliveira et al., 2006).
Parece assim evidente, a necessidade de se estabelecer um “namoro” entre o
“ensino/aprendizagem” e o Rendimento Superior (V. Frade, 1979), e como é
óbvio, com os processos de Formação que permitem aceder a esse nível.
Urgindo deste modo uma “ruptura epistemológica” (Kuhn, T. 1962, cit. por
Capra, 1996), na área do treino de jovens. Encontramo-nos assim, no limiar de
uma revolução extensível a diferentes domínios de EnsinoAprendizagem, entre
os quais as Artes e a Educação Física, motivadas pela aplicação das novas
descobertas sobre o cérebro ao Ensino e à Aprendizagem (Jensen, 2002).
No que ao treino de Futebol diz respeito, entendemos, à semelhança de
vários autores tanto da área do treino desportivo como da Didáctica (Cruyff,
2002; V. Frade, 1979; Garganta & Pinto, 1998; Lehnert, 1986; Lopes, 2007;
Mesquita, 2000; Michels, 2001; B. Oliveira et al., 2006; J. G. Oliveira, 2004;
Pacheco, 2001; Queiroz, 1986; Ramos, 2003; Vickers, 1990; Wein, 2004;
Worthington, 1974) que o processo de Formação de jovens Futebolistas deve
ser entendido como um processo de EnsinoAprendizagem. Tornando-se desde
já pertinente esclarecer que Ensino e Aprendizagem se caracterizam por uma
relação bi-unívoca, sendo a definição de Ensino vazia de significado se não
aludir à Aprendizagem (Gomes, 2006). Ou seja, são processos distintos que
contudo deverão ser tratados em simultâneo, uma vez que fazem parte de uma
dialéctica constante entre quem ensina e quem aprende (J. G. Oliveira, 2004).
Até porque, os seus intervenientes mais directos, Jogadores e treinadores são
realidades conexas, pertencentes a um mesmo “nicho ecológico”, que como tal
se influenciam reciprocamente, devendo não somente os Jogadores
aprenderem com o treinador, como também este o contrário (Marisa Gomes,
Anexo 5).
Mesquita (2000) refere que para um conveniente processo de Formação de
desportistas, o treino se deve reger por princípios didáctico-metodológicos,
acrescentando que por este motivo, o processo de treino deve ser entendido
como um processo de EnsinoAprendizagem, uma vez que, o nível de
aquisições das matérias (Futebol) se encontra dependente, de quem as

263
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

aprende, no caso os Jogadores, e também da competência de quem ensina, o


treinador, os três principais intervenientes de qualquer processo de
EnsinoAprendizagem. O intuito do Ensino é a modificação da personalidade
dos alunos (Jogadores) e das respectivas qualidades, através do confronto
activo com determinado conteúdo (jogo) a apropriar, sob o efeito recíproco de
actividades do Professor (treinador) e dos alunos (Jogadores), em condições
concretas do processo de Ensino (Bento, 2003). O papel do treinador é
determinante na exponenciação de Talentos, mas para que a sua influência se
revele profícua é determinante que entenda a matéria de Ensino, o Jogo
(Marisa Gomes, Anexo 5). Note-se contudo, que “possivelmente, o maior
problema da formação de jovens futebolistas consiste em que muitos
treinadores conhecem bem a matéria a ensinar, mas não conhecem bem os
seus alunos” (Wein, 2004, pp. 43).
O treino desportivo afigura-se face ao exposto como um lugar pedagógico (J.
Bento, 2004), facto justificado por tanto o processo de EnsinoAprendizagem,
termo mais conotado com o Desporto no âmbito escolar, como o processo de
treino, geralmente mais conotado com o Desporto de rendimento, visarem
objectivos idênticos, ou seja, a melhoria qualitativa e quantitativa do
desempenho colectivo e individual da equipa e dos Jogadores (J. G. Oliveira,
2004). O treino desportivo é um processo balizado por princípios pedagógico-
científicos comuns à Educação e à Formação Desportiva (Lehnert, 1986), deste
modo, treino e EnsinoAprendizagem podem ser entendidos como sinónimos,
sendo o objectivo para ambos, alterar comportamentos, desejando que tais
alterações persistam no tempo, isto é, formar atitudes. No caso do treino ou se
quisermos, processo de EnsinoAprendizagem do Futebol, esses
comportamentos e atitudes remetem para um domínio específico de actividade,
e mais que isso, para a Especificdade de um jogar.
Podemos entender o processo de EnsinoAprendizagem Motora, como sendo
a aquisição de habilidades e de conhecimentos declarativos e processuais que
lhe estão associados (Tani, 2002).
“O treino é um processo de adaptabilidade”, cujo objectivo é tornar os
indivíduos que a este se submetem, capazes de expressar um determinado

264
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

jogar, devendo este processo contemplar a adequação da criatividade a um


processo comportamental e de desenvolvimento de relações (Marisa Gomes,
Anexo 5).
Uma vez evidenciado que está o Treino como Aprendizagem, consideramos
que este facto tem repercussões muito significativas tanto no estatuto como no
desempenho das funções de treinador, o qual deverá deste modo, ser
entendido como um Professor, ou ainda com mais rigor, como um Formador.
Uma ideia defendida por Cruyff (2002), segundo o qual os treinadores,
sobretudo na Formação devem se assumir como pedagogos.
O papel do treinador é de extrema relevância na Formação dos jovens, tanto
a nível do domínio das suas competências num domínio específico, o Futebol,
como também, face ao que foi já exposto, ao nível de competências de âmbito
mais alargado, válidas para a Vida. No desempenho das suas funções o
treinador assume-se como o principal responsável pela iniciação, orientação e
especialização dos desportistas, contribuindo para a qualidade da sua
intervenção, a existência de uma atitude Formativa e Educativa correcta face à
prática desportiva (Mesquita 2000). Funciona deste modo, como um modelo
social muito relevante para os Jogadores que com ele interagem (Pacheco,
2001), o que implica da parte deste uma forma de estar condizente com tal
estatuto, que lhe permita através da especificidade da sua matéria de ensino, o
Futebol, contribuir para a construção de Pessoas Humanas (J. Bento, 2004).
“Importa aprender através do futebol, a ler e a entender o mundo e a exercer
a cidadania. O que exige mestres da educação e do saber e não misters da
ignorância e da rotina.” (J. O. Bento 2004, pp. 205). O facto de nem todos os
jovens poderem, por motivos diversos, alcançar níveis de excelência, incumbe
o treinador da obrigação de lhes facultar uma Formação enquanto cidadãos,
fazendo deste modo do treino, uma “escola de carácter” (Pacheco, 2001).
Parece contudo que a missão de treinador, ou seja, de Formador, nem
sempre tem sido desempenhada atendendo ao que referimos anteriormente.
Peseiro (2002) reconhece que treino, não é por vezes devidamente concebido,
esclarecendo que sendo a questão do Ensino e de modo particular, do Ensino
do Futebol fundamental, o que se verifica é que os treinadores por norma se

265
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

limitam a treinar (entendimento convencional) e não a Ensinar Futebol.


Acrescentando ainda, que tal como a Matemática, o Português ou as Ciências,
também o Futebol tem de ser ensinado, sendo importante, distribuir a sua
matéria, o Futebol, por níveis de exigência e de complexidade. Este treinador
além de corroborar, muito do que referimos acerca do treino como
EnsinoAprendizagem, evidencia também a necessidade de racionalizar e
sistematizar, os processos de Formação de Jogadores. Em conformidade
Cruyff (2002) também se mostra acérrimo crítico em relação à intervenção
generalizada dos treinadores, sugerindo que uma premissa basilar para a
Formação de Jogadores é, que “o melhor método para ensinar uma criança a
jogar não é proibir mas sim guiar”. Também para Frade (2006), o Ensino do
Futebol, tanto ao nível da Formação como no Rendimento Superior, deve
promover a Criatividade dos Jogadores, contemplando deste modo, o plano do
contingente que também caracteriza o Jogo. Por este motivo este autor sugere,
que embora o processo deva ter subjacente determinados pilares, isto é,
Princípios Metodológicos, o treino deve ser “muito mais a arte das trajectórias,
do que a teoria dos alvos”, no qual os Jogadores se assumem como parte
activa de todo o processo (Lopes, 2007; B. Oliveira et al., 2006). Deste modo,
perante um processo de “descoberta guiada” (B. Oliveira et al., 2006) o aluno
(Jogador), sendo parte activa na descoberta e no desabrochar do seu Talento,
não é o único interveniente, uma vez que o processo deverá ser orientado por
um Formador, que com base na sua experiência e conhecimento, conduz todo
o processo (Lopes, 2007). Consideramos com base na premissa a que já
aludimos, sugerida por Cruyff (2002) e no que foi referido, que quando a
intervenção do treinador vai no sentido de guiar, este revela-se um Formador,
enquanto que quando a sua intervenção é mais proibitiva, revela-se um
deformador, por limitar a expressão criativa dos jovens. “Os treinadores das
equipas infantis, têm de deixar os jogadores jogar à vontade, criar, isso é muito
importante. Coisa que não está acontecendo” (Pelé, 2006a).
A qualidade de condução de todo o processo por parte do treinador, à
semelhança da actuação dos Jogadores, pode ser considerada uma
fenomenotécnica (B. Oliveira et al., 2006). A este respeito, Mesquita (2000)

266
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

salienta que o treino é um processo complexo, para o qual contribuem


diferentes dimensões, sendo por isso a acção do treinador consubstanciada,
não apenas por conhecimentos relativos aos conteúdos de treino, mas também
pela sua intuição e arte. O que em nosso entendimento, reforça a necessidade
dos treinadores investirem nos seus conhecimentos acerca da sua matéria de
ensino, visto que, tanto arte como intuição têm subjacente um corpo de
conhecimentos desenvolvido ao longo de anos, de prática, de descoberta, e de
investimento no conhecimento, carecendo estes permanentemente de
actualizações, até porque, ninguém pode Ensinar aquilo que não sabe
(Mesquita, 2000; Pacheco, 2001).
É uma obrigação dos Professores, e como tal também dos treinadores,
possuírem um conhecimento profundo da actividade que se propõem a Ensinar
(UNESCO, 1996).

6.4 – Quanto mais e mais cedo melhor, desde que seja Futebol?!

“De pequenino é que se torce o destino!”


(Fiolhais, 2005, pp. 95).

“O jogador de futebol devia colocar uma bola debaixo da cama para, logo ao acordar, a tocar,
acariciar, dar o primeiro toque, ganhar sensibilidade, e, assim, criar intimidade com ela.”
(Didi, 2006).

Como já foi por nós suficientemente salientado, o Futebol pelo seu impacto
social assume uma relevância imensa no quotidiano das sociedades,
condicionando, e sendo também condicionado pelas tendências destas. “A
evolução dos tempos, da sociedade e as recentes transformações operadas
nos hábitos desportivos dos cidadãos, faz com que cada vez mais cedo se
inicie a prática desportiva de crianças e jovens” (Pacheco, 2001, pp. 11).
Apesar desta evidência verifica-se que essa prática, considerada formal, se
afasta um pouco daquela que se observava outrora, e cuja tendência,
decadente, é antagónica à observada pelas práticas formais institucionalizadas.
A prática informal de Desporto, e em particular de Futebol, onde o Futebol de
Rua se destacava, são realidades que se têm eclipsado, tal como também já

267
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

evidenciamos. Em 1985, aquele que foi considerado o melhor treinador do


século XX pela FIFA Michels (2001, pp. 178), procurando desenvolver um
Modelo de Formação para o seu país, capaz de se assumir como uma
alternativa ao Futebol de Rua, constatou que a grande diferença entre as
práticas de outrora e as da altura residia ao nível do tempo de prática, uma
tendência exponenciada desde então, referindo a este respeito que; “…
enquanto nós jogávamos Futebol de rua diariamente, quase sempre durante
muitas horas consecutivas, totalizando sensivelmente 25 horas por semana,
actualmente, temos nos clubes um ou dois treinos uniformemente organizados
e uma partida semanal. Comparativamente com as mais de 25 horas de prática
que constituíam o processo natural de aprendizagem na rua, esta parece ser
uma missão impossível.” Acrescentando ainda que; “… felizmente, penso que
nós entre os 6 e o 12 anos recebemos o mais óptimo desenvolvimento possível
para um jovem jogador, jogando na rua, nos campos, na praia, etc. já que o
treino uma vez por semana não me parece que acrescente muito”.
Encontramo-nos por isso perante uma questão, que é simultaneamente um
problema e uma oportunidade, isto é, se por um lado se observa a decadência
das práticas de outrora, as quais se revelaram profícuas para o
desenvolvimento de Talentos, por outro, o facto de haver uma procura
crescente da prática desportiva em idades cada vez mais precoces, pode
representar um sinal de esperança, devendo para tal ser aproveitada tal
tendência, no sentido de tentar implementar aquela que era a intenção de
Michels (2001), ou seja, desenvolver uma alternativa ao Futebol de Rua, o
Útero Artificial para a gestação de Talentos. Devemos nessa caminhada revelar
uma atitude optimista, uma vez que; “para os pessimistas os lírios pertencem à
família das cebolas. Para os entusiastas optimistas as cebolas pertencem à
família dos lírios.” (Edgar Wallace, s/d, cit. por J. Bento, 2004, pp. 186).
São inúmeras as opiniões (Abernethy, Farrow, & Berry, 2003; Bruner, 1969;
Buzan, 2003; R. Costa, 2005; Côte, Baker, & Abernethy, 2003; Côté,
Macdonald, Baker, & Abernethy, 2006; Dias, 2005; Ericsson, 1996, 2003;
Ericsson & Charness, 1997; Ericsson & Smith, 1991; Goleman, 2003; Hebb,
1978; Helsen, Hodges, Winckel, & Starkes, 2000; Helsen, Starkes, & J., 1998;

268
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Hunt, 1969; Janelle & Hillman, 2003; Jensen, 2002; Kotulak, 1996; Levitin,
2007; Salmela & Moraes, 2003; Sprinthall & Sprinthall, 1993; J. Starkes &
Ericsson, 2003; Stein, 1997; Stemberg, 1997; Stones, Hong, & Kozma, 1993)
que sugerem que o alcance de desempenhos de excelência, ou construção de
Talentos em diferentes domínios, é fortemente condicionado por aspectos
exógenos, dos quais a elevada quantidade de estímulos e de prática, ao longo
de vários anos assume especial relevo. Daí que possamos especular, acerca
das potencialidades que poderão advir, da cada vez mais precoce prática
desportiva, no que à exponenciação de Talentos no Futebol diz respeito.
Nas últimas décadas a problemática dos Talentos tem no âmbito da
Psicologia Geral, e também da Psicologia do Desporto, sido alvo de diversos
estudos, fazendo com que a temática da “Expertise” tenha registado uma das
expansões mais significativas nas áreas da Psicologia e das Ciências
Cognitivas (Ericsson & Smith, 1991). Sendo actualmente consensual
considerar-se, que o desenvolvimento do Talento, e o alcance de
desempenhos de excelência resultam de um continuado incremento nas
prestações, ao longo de um processo que ocorre durante anos e décadas
(Ericsson, 2003; J. L. Starkes & Ericsson, 2003).
“…se um miúdo tiver uma predisposição enorme para jogar futebol, e nunca
jogar, concerteza que não vai ser um talento um «expertise». Porque a prática,
o meio não estimula o desenvolvimento desse talento.” (Marisa Gomes, Anexo
5). A nossa entrevistada acrescenta ainda, que o Futebol apresenta como
particularidade o facto de requisitar, pela sua especificidade funcional, um
processo de adaptabilidade muito longo.
O que acabamos de salientar é facilmente observável se analisarmos o
percurso de Vida de alguns dos maiores Talentos de diferentes áreas a nível
mundial, como do Desporto, da Música e das Ciências, verificando-se que
todos eles têm em comum muitos anos de labor nas respectivas actividades
(Buzan, 2003; Levitin, 2007). Ao longo deste processo à La Long, são vários os
aspectos que contribuem para o alcance, ou não, de um patamar de
excelência, sendo o contexto em que os Talentos se desenvolvem um aspecto
determinante (Côté, Baker, & Abernethy, 2003; Côté, Macdonald, Baker, &

269
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Abernethy, 2006; Dias, 2005; Ericsson, 1996; Salmela & Moraes, 2003; Stein,
1997; Stemberg, 1997; Stones, Hong, & Kozma, 1993). Sendo o Futebol um
Fenómeno AntropoSocialTotal, capaz de exercer enorme influência sobre o
contexto social em que os jovens se desenvolvem, tal poderá representar a
existência de um contexto propenso ao desenvolvimento de Talentos nesta
modalidade. Dos vários aspectos relacionados com o contexto a influência dos
familiares, dos pares e dos treinadores assume especial importância (Almeida,
Paiva, Rodrigues, & Sousa, 1991; Côte, Baker, & Abernethy, 2003; Ericsson,
1996; Salmela & Moraes, 2003), não sendo de descurar também o contexto
sócio-económico em que os Talentos estão inseridos (Côté et al., 2006;
Salmela & Moraes, 2003; Stein, 1997; Stemberg, 1997) e ainda, os estilos de
vida (Stones et al., 1993). A relação entre o contexto e Talento, é de tal forma
próxima, que podemos entendê-los como um sistema (Stein, 1997).
Não obstante a relevância dos aspectos referidos anteriormente, e que
afectam de forma indirecta o desenvolvimento dos Talentos, vários autores
(Buzan, 2003; Goleman, 2003; Janelle & Hillman, 2003; Levitin, 2007) são
unânimes em apontar a quantidade de prática como um aspecto preponderante
para o alcance de desempenhos de excelência, podendo mesmo ser sugerida
como o denominador comum, para o alcance da excelência (Janelle & Hilman,
2003).
A importância da prática no desenvolvimento de Talentos tem vindo a ser
estudada com base na Teoria da Prática Deliberada, sugerida por Ericsson &
Charness (1997), como o grande mecanismo capaz de despoletar níveis de
performance excelentes. A Prática Deliberada é descrita, como uma forma de
prática bastante estruturada, que permite o alcance de Aprendizagens
efectivas, requerendo esforço e concentração, produzindo recompensas não
imediatas, e sendo motivada por objectivos relacionados com a melhoria dos
desempenhos (Côte et al., 2003; Ericsson, 1996; J. L. Starkes, Deakin, Allard,
Hodges, & Hayes, 1996). A Prática Deliberada pode ainda ser caracterizada,
pela existência, de tarefas ajustadas ao nível de cada indivíduo, de feedback
informativo, de oportunidade de repetição, de correcção de erros e esforço e de
concentração durante as sessões de prática, sem que deste tipo de prática

270
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

tenha de resultar uma situação de prazer imediato, embora este possa estar
inerente à actividade e ao alcance dos objectivos estabelecidos (Ericsson,
1996). Em nosso entendimento, e como procuraremos evidenciar mais adiante
nesta dissertação, a possibilidade de desprazer não se coaduna, com aquela
que era a realidade observada outrora, quando os jovens se iniciavam no
Futebol. Pensamos tratar-se mesmo, da principal objecção à aplicabilidade da
Teoria da Prática Deliberada ao Futebol, uma actividade em que o Talento se
desenvolve de forma tanto mais evidente, quanto mais prazenteiro for o
processo. Contudo, reconhecemos nesta teoria alguns aspectos que nos
parecem determinantes para o desenvolvimento do Talento, como o facto de
considerar determinante, a quantidade de prática a que os indivíduos são
submetidos nas respectivas actividades. Ericsson (1996) um dos pioneiros da
investigação neste domínio, com base em alguns estudos sugere uma regra,
que determina que para se alcançarem desempenhos de excelência, os
Talentos devem despender de pelo menos 10 anos de preparação, sugerindo
ainda, que a quantidade de horas diárias dispendida na prática de tarefas
relacionadas com o alcance dos objectivos pretendidos, é essencial, podendo o
período de exercitação, estender-se por 4 ou 5 horas. Sendo o Futebol uma
actividade, cuja iniciação ao nível do Rendimento Superior se verifica em
idades não muito avançadas, e sendo a carreira de um Jogador neste nível, de
relativamente curta duração, torna-se pertinente face a tais evidências, que o
início da prática se faça em idades ainda precoces.
Os efeitos de uma elevada quantidade de prática numa determinada
actividade têm repercussões claramente vantajosas, sobre os diferentes
domínios da “Expertise”, domínio fisiológico, técnico, cognitivo e emocional
(Ericsson, 1996; Janelle & Hillman, 2003; Shea & Paull, 1996). Importa ainda
reter, relativamente à teoria da Prática Deliberada, que de acordo com alguns
autores (Ericsson, 1996; Ericsson & Charness, 1997), a sua relevância não se
cinge apenas à aquisição de performances excelentes, mas também, à
manutenção dessas performances. De acordo com Goleman (2003) a
quantidade de prática é determinante para o alcance de desempenhos de
excelência, sugerindo que da iniciação precoce numa determinada actividade

271
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

advêm vantagens que duram para o resto da vida. O mesmo autor refere ainda,
que determinados traços emocionais, como a persistência e entusiasmo, são
determinantes, uma vez que permitem que os Talentos de diferentes domínios,
se dediquem durante largos períodos das suas Vidas, às respectivas
actividades, mesmo submetendo-se a árduas rotinas. “Se o indivíduo tiver
capacidade de tolerância à dor, se o indivíduo for persistente, se o indivíduo
tiver determinados objectivos, esse pode fazer emergir todo o talento (…) se
ele não tiver nada disso e a sociedade neste momento está a fazer, esse
mesmo grupo de indivíduos que estão desinteressados esse talento nunca
emerge.” (Leandro Massada, Anexo 2).

Alguns estudos levados a efeito no âmbito da Prática Deliberada revelam


informações pertinentes para a construção de Talentos no Futebol. Janelle &
Hillman (2003) sugerem que a prática é, um aspecto bastante relevante para o
desempenho mais capaz dos Talentos, uma vez que aumenta a acuidade ao
nível dos comportamentos de antecipação e da procura de estratégias visuais.
Por seu turno Ericsson (1996) sugere que o mesmo se verifica ao nível da
tomada de decisão.
Helsen et al. (2000) concluíram a partir do estudo que desenvolveram, que a
Prática Deliberada é o aspecto mais relevante para o alcance de performances
de excelência no Futebol. Também Dias (2005) é contundente em afirmar, que
o processo de Formação e a quantidade de prática que está subjacente, à
construção de Talentos no Futebol é determinante, podendo mesmo ser mais
relevante que a componente genética. Helsen et al. (1998), confirmam através
dos resultados obtidos nos seus estudos que a regra dos 10 anos, não
devendo ser entendida de forma taxativa, poderá funcionar como uma
referência mínima, uma vez que concluem, que para atingir um nível
internacional no Futebol, o tempo investido se encontra próximo dos 13 anos
de prática. Os mesmos autores observam ainda algo bastante interessante,
uma vez que advertem, que o conceito de Prática Deliberada deverá ser
extensível à prática desenvolvida em grupo, e não somente à prática
individualizada, destacando deste modo, que a excelência no Futebol resulta
do tempo investido tanto em práticas individualizadas como em práticas de

272
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

grupo. Algo que nos parece fazer todo o sentido, uma vez que se trata de uma
modalidade colectiva, que como tal, tem uma complexidade diferente,
presumivelmente maior, o que poderá explicar o motivo pelo qual o número de
anos para se alcançarem desempenhos de excelência, seja um pouco superior
àquele que se observa noutros domínios estudados, geralmente actividades
centradas em actividades de carácter individual.
Helsen et al. (1998) sugerem ainda, que nas idades mais precoces a prática
deverá ser mais individualizada, para depois em idades mais adiantadas,
nomeadamente a partir dos 9 anos, se ir tornando progressivamente mais
intensa e colectivizada.
Dias (2005) com base na sua pesquisa, realça a importância de um elevado
número de horas de prática relacionada com o Futebol, advertindo contudo,
para um aspecto que consideramos de enorme relevância, ao sugerir que essa
quantidade de prática deverá encontrar-se associada à qualidade. A mesma
autora, referindo-se à questão do hipotético desprazer inerente à Prática
Deliberada no Futebol, sugere que se trata de uma falsa questão, visto que os
Jogadores sentem prazer, mesmo que de forma indirecta, ao verificarem que
evoluem ao nível dos seus desempenhos. No mesmo trabalho a autora analisa
as questões relacionadas com o contexto sócio-cultural, salientando que o
papel de pais, treinadores e pares, pode ter efeitos positivos e negativos sobre
a performance dos talentos.
R. Costa (2005) afirma ser um mito, considerar-se que o Talento é
determinado geneticamente, salientando que os desempenhos de excelência
revelados pelos indivíduos, em áreas como o Futebol, resultam do empenho
investido nas actividades ao longo de vários anos de prática, permitindo-lhes
alcançar melhorias extraordinárias.
Os aspectos que consideramos mais importantes reter, relativamente à
Teoria da Prática Deliberada são, o facto de realçar a importância de grande
quantidade de prática, e por conseguinte, da necessidade de iniciar
precocemente a prática numa determinada actividade.
Já anteriormente salientamos, que o facto da carreira de um Jogador de
Futebol, num nível de rendimento elevado se iniciar e terminar precocemente,

273
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

implica que a estimulação neste domínio se verifique o mais precocemente


possível. Segundo Fiolhais (2005) o facto das Crianças serem, seres curiosos
deve ser aproveitado para explorar o seu potencial precocemente.
“ «De pequenino se torce o pepino». «Burro velho não aprende línguas». «É
treiná-los enquanto é tempo». Estas afirmações e outras equivalentes atestam
o facto de que há muito reconhecemos a importância da experiência precoce
no crescimento e desenvolvimento. No entanto, foi, apenas neste século que
começamos a perceber até que ponto a experiência precoce é de facto
importante.” (Sprinthall & Sprinthall, 1993, pp. 73).
De acordo com Bruner (1969) a variedade de estímulos é muito importante
para o desenvolvimento cognitivo das Crianças. Em consonância, encontra-se
Hebb (1978) que salienta, que a importância da experiência precoce é, de tal
forma significativa que caso as Crianças não tenham estimulação suficiente
nos primeiros anos de vida, poderão apresentar futuramente limitações
irreversíveis. “E sabemos que o desenvolvimento motor dos humanos, nos
primeiros anos é decisivo” (Marisa Gomes, Anexo 5). Hunt (1969) sugere
através das suas pesquisas, que a privação precoce de estímulos pode ter
repercussões danosas ao nível do desenvolvimento motor. Sprinthall &
Sprinthall (1993) acrescentam, que tal privação prejudica também o
desenvolvimento intelectual futuro. Estes autores defendem ainda, com base
em alguns estudos, que a privação de estímulos, mesmo em situações em que
os indivíduos têm total liberdade de movimentos, induz além de atrasos
intelectuais, atrasos de ordem física. Também Kotulak (1996) adverte para a
perigosidade da privação de estímulos em idades precoces, sugerindo ainda
que quanto mais precocemente for a estimulação dos jovens, maior será
posteriormente a adaptabilidade cerebral que possuirão, defendendo deste
modo, que as Crianças necessitam de um festim de informação. Sprinthall &
Sprinthall (1993) advertem que apesar, de ser consensual considerar-se a
experiência precoce essencial para o desenvolvimento emocional, só nos
últimos tempos, se reconheceu a sua importância no desenvolvimento
intelectual.

274
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Tal como a elevada quantidade de prática, também a precocidade de


estímulos relacionada com determinada actividade se revela determinante,
para a construção de Talentos em diferentes domínios de actividade (Buzan,
2003; Levitin, 2007).
Segundo Ericsson (1996) os Talentos iniciam os seus processos de treino,
muito precocemente, usualmente antes dos 5 anos. O envolvimento dos
jovens, ainda em idades precoces numa determinada modalidade, no caso o
Futebol, possibilita uma Aprendizagem mais precoce e uma motivação extra,
aspectos que se revelam fundamentais no alcançar de desempenhos de
excelência no futuro (R. Costa, 2005). O Futebol “é uma profissão que é
preciso aprender, como qualquer outra, sabendo que há poucos eleitos ao nível
mais elevado. Mas começar o mais cedo possível é indispensável para avançar
o jogo” (Wenger, 2006). Para Pacheco (2001) a infância (6-12 anos), assume
especial importância na construção de Talentos no Futebol, podendo ser
considerada como a “Idade de Ouro da Aprendizagem”.
Tanto a quantidade de horas de prática, como a precocidade de estímulos
relacionados com o Futebol, e um conjunto de aspectos relacionados com o
contexto são, um denominador comum dos relatos de infância de inúmeros
Jogadores (Beckham, 2004; Cannavaro, 2006; J. Costa, 2006; R. Costa, 2006;
Cruyff, 2002; Didi, 2006; Eusébio, 2006, 2007; Maradona, 2005; Pelé, 2006c;
Platini, 2006b; Ronaldo, 2007, 2008; Sabrosa, 2005; Sousa, 2006; Tostão,
2006; Zidane, 2002, 2006; Zizinho, 2006) cuja notoriedade foi, ou ainda é,
bastante grande, motivo pelo qual podemos inferir que tais vivências se
revelaram determinantes para que todos estes Jogadores, sejam considerados
uma Elite:

“Tudo o que fazia, cada passo que dava, tinha a ver com isso, com a bola
(…) saía de casa às duas (…) e, às duas e um quarto, já estávamos a jogar.
Sempre a dar-lhe, sob os raios de sol!, e não nos importávamos nada e
dávamos tudo por tudo (…) Por volta das sete, parávamos um bocadinho,
pedíamos água nalguma casa e continuávamos. Jogávamos na escuridão, era
igual. E agora oiço dizer, por aí, que em tal campo falta luz (…) Não sei se

275
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

éramos meninos de rua; na verdade éramos miúdos do descampado. Se os


nossos velhos nos procuravam, sabiam onde nos encontrar. Estávamos ali, a
correr atrás da bola.” (Maradona, 2005, pp. 14).
“A primeira (bola) que tive foi o presente mais bonito que alguma vez me
deram na vida (…) eu tinha três anos e dormi abraçado a ela toda a noite.”
(Maradona, 2005, pp. 16).
“É agora que vejo o meu velho, o D. Diego, como a melhor pessoa que
conheci na vida, e repito-o. Se eles – o meu velho e a Tota também – me
pedirem o céu, dou-lho (…) Quando digo o que quero transmitir estou a dizer
que ídolos temo-los em nossas casas, bem perto, podemos tocá-los. Não são
aqueles que se vêem na televisão ou nas revistas; estão ali…” (Maradona,
2005, pp. 17).

“Lembro da primeira bola (…) estava sempre comigo, dormia, estava sempre
no meu quarto, quando estudava ela estava presente, e fazia parte do meu dia
a dia.” (Sabrosa, 2005).

“… Perdia horas, só quando começava a escurecer é que parava, porque


não tínhamos relógio, não tínhamos nada …” (Eusébio, 2006)
“Treino, Treino, Treino, muito Treino e disciplina. Eu me lembro ainda, que
quando os meus colegas já estavam a comer, eu ainda estava no Estádio da
Luz a treinar os livres, não tinha apanha bolas, eu pegava, eu batia nas bolas e
sem ninguém na baliza, ía buscar as bolas, punha. Não era o treinador que me
mandava, era eu.” (Eusébio, 2007)

“A verdade é que eu estava aprendendo sempre. No início já rematava bem


os livres, mas só para um dos postes, o da direita do guarda-redes. Depois
treinei muito e aprendi a dar à bola efeito contrário e metê-la no poste direito, o
lado esquerdo do guarda-redes. Foi difícil. Estive um ano inteiro todos os dias
no final dos treinos durante horas até que adquiri a perfeição”. (Zico, s/d, cit.
por Lobo, 2002, pp. 240).

276
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

“Primeiro eu não tive assim um início, eu já nasci dentro de uma sede de


Futebol, o meu pai era presidente de um clube, chamado Carioca (…) e a sede
era a minha casa. Então eu já convivi desde que nasci dentro do Futebol. Já
jogava lá, brincava com o Futebol quando eu tinha três, quatro anos, com os
Jogadores que jogavam no clube do meu pai. Vivi sempre com uma bola no pé”
(Zizinho 2006).

“Eu comecei a jogar Futebol na minha terra, Campos. E a minha terra sempre
foi um dos grandes celeiros, do Futebol brasileiro. Quando eu comecei, aos 11,
12 anos, ao lado de minha casa, havia vários terrenos baldios, e a gente
conseguia cada semana, roubar uma meia da mamãe ou do papai, e aí nós
começávamos a fazer as nossas bolinhas para que pudesse dar sequência às
boas peladinhas, ao lado de casa” (Didi, 2006).
“O jogador de futebol devia colocar uma bola debaixo da cama para, logo ao
acordar, a tocar, acariciar, dar o primeiro toque, ganhar sensibilidade, e, assim,
criar intimidade com ela.” (Didi, 2006).

“… Chegava ao bairro e treinava (…) Eu tive a felicidade de crescer num


bairro com bastantes miúdos, e era aquele miúdo que vinha da escola, comia à
pressa e passava o resto do dia a jogar, se tivéssemos 10 jogávamos 10, se
tivéssemos 2 jogávamos 2, e muitas vezes inclusive cheguei a estar sozinho
com a bola”. (J. Costa, 2006).

“… São um pouco os pais (…) que nos traçam o destino, que definem como é
que vamos ser na vida.” (Zidane, 2002).
“… Era sempre, sempre, sem parar (…) a única coisa que me interessava era
jogar à bola, era jogar futebol.” (Zidane, 2002)

“Quando era criança, não tinha brinquedos, nem me interessava muito por
eles, nem pelos carrinhos. Só me interessava por Futebol. Dormia agarrado à
bola e a minha primeira palavra foi «golo», e a segunda foi «Benfica».” (R.
Costa, 2006).

277
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

“Eu fui criado desde pequeno, no meio do Futebol, eu com 2 anos de idade
fui, morar no PPI, são nove prédios de apartamentos, quase mil apartamentos,
quase 5 mil pessoas, e tinha vários campos no meio desses prédios, inclusive
em cada prédio tinha um pátio interno. E, desde pequenininho fui, criado ali
jogando Futebol.” (Tostão, 2006).

“E não nos esqueçamos que estávamos no Brasil. O futebol estava em toda a


parte, quando cresci. Quando jogava com amigos no pátio ou na rua, havia
sempre jogos à nossa volta” (Pelé, 2006c, pp. 36).
“Jogávamos até escurecer” (Pelé, 2006c, pp. 41).

“Quando ía para a escola podia esquecer-me de levar as canetas ou um livro,


mas nunca a bola. Nos intervalos, no fim das aulas, a seguir ao jantar, a bola
era para nós como um membro do corpo, tinha sempre de andar connosco.
Tocava para sair e logo corria para o pátio da escola. Tocava para entrar e lá
tinha a professora que nos ir chamar pois a jogar ninguém ouvia ou queria ouvir
o toque de entrada. No caminho para casa era o concurso de toques. Todos os
dias tentava superar o meu record. Chegado a casa era comer à pressa para
que o intervalo no jogo não fosse prolongado.” (Sousa, 2006).

“Às vezes, nem era preciso ser intervalo, entusiasmávamo-nos com a


«peladinha» e lá faltávamos a uma ou outra aula para não deixar os jogos a
meio. No final das aulas, por incrível que pareça, a rotina mantinha-se e o ritual
repetia-se. Cada um ía a sua casa deixar a mochila com os livros, avisar as
respectivas mães, e lá íamos todos para um pequeno parque, no topo de um
morro ao qual chamávamos «a Costa», continuar a jogar até à hora do jantar.”
(Ricardinho, 2007, in Brás, 2007, pp. 14).

“Muitos Jogadores têm Talento, mas se tu nunca trabalhares o Talento,


nunca vais ser um grande Jogador, ou um Jogador fora de série, é isso que eu
tento fazer. Se tenho todas as características, rápido, driblar bem, o que eu
tento fazer é aperfeiçoar cada vez mais. É claro que há três anos atrás, não era

278
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

o mesmo Jogador que sou agora. Porque improvisei, cresci mentalmente,


fisicamente, percebi melhor o que é o jogo colectivo (…) sinto que ainda tenho
muitas coisas para aprender, sinto que a minha aprendizagem ainda não
terminou.” (Ronaldo, 2008)
“Lembro-me muitas vezes quando a minha mãe me ofereceu uma bola. Na
altura era cozida, cozida à mão, que era das mais fortes. Porque ela noutras
alturas oferecia-me bolas, mas eram bolas mais fraquinhas, eu apanhava a
bola e ía um, dois dias para a rua brincar com os meus colegas (…) dava-lhe
muito uso e a bola rebentava rápido (…) lembro-me da primeira bola que me
deu cozida, já durou bastante tempo, é esses momentos que me faz lembrar e
que tenho alguma saudade.” (Ronaldo, 2008).
“Se estou bem agora foi, devido a eles (familiares) porque sempre me
apoiaram, sempre me deram aquilo que eu não tinha, sempre me deram força,
sempre estiveram no meu lado, quando eu precisava. E é devido a eles que eu
tenho isto tudo. Ser Futebolista, nunca me cortaram as pernas pelo meu
sonho.” (Ronaldo, 2008).
“Estava sempre a jogar à bola, era o que mais gostava de fazer, com os
meus amigos, e era assim que eu passava o tempo.” (Ronaldo, 2007).

“Eu em jovem, jogava sempre”. (Cruyff, 2002, pp. 88).

“Passei muito tempo em Chase Lane Park. Se não estava com os rapazes
mais crescidos, estava com o meu pai (…) Ficávamos lá horas sem fim, a
treinar. Todos os meus pontos fortes no jogo, aprendi-os e pratiquei-os com o
meu pai há vinte anos atrás (…) até ficar tão escuro que já não víamos um
palmo à frente do nariz.” (Beckham, 2004, pp. 29).

As citações supratranscritas evidenciam que a iniciação dos Jogadores de


eleição, se caracteriza por desde idades muito precoces, se encontrarem
envolvidos sob uma muito considerável quantidade de estimulação relacionada
com o Futebol, sendo assim submetidos desde tenra idade, a um processo de
especificidade (relativa à modalidade) precoce. O facto dos estímulos serem

279
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

orientados desde idades muito precoces, em função de uma determinada


actividade, não é consensual, havendo quem defenda que nessas idades, a
estimulação deve ser o mais diversificada possível, ou multilateral (Marques,
2005) e também quem sugira, que a orientação dos estímulos para uma
determinada actividade, em idades precoces é, fundamental para o alcance de
performances de excelência (Janelle & Hillman, 2003).
Abernethy et al. (2003) sugerem que um dos aspectos fundamentais da
Teoria da Prática Deliberada é, reconhecer que nem todas as actividades
permitem obter iguais benefícios ao nível das Aprendizagens, o que sugere, o
Talento como algo específico, e também, a necessidade de seleccionar os
estímulos que se revelam mais determinantes para o desenvolvimento do
Talento numa determinada actividade.
Entendemos, que a proposta de desenvolvimento de Talentos desportivos,
através de uma estimulação desportiva multilateral, poderá revelar-se
extremamente útil para o desenvolvimento de Talentos Motores (Marques,
2005), revelando-se desse modo muito útil, para o enriquecimento do reportório
motor das Crianças. Contudo, e partindo do pressuposto de que o Talento
resulta da expressão de mestria numa actividade específica, e de que o
Futebol em termos de funcionalidade Corporal, contraria a tendência evolutiva
do Homem, consideramos que a precocidade de estímulos relacionada com o
Futebol, Especificidade Precoce35, se torna determinante, como demonstram
os relatos acima transcritos, para o alcance de desempenhos relevantes.
Assim, e não ignorando, tal como já salientamos, que há um conjunto de

35
Especificidade Precoce: importa realçar que o nosso entendidento de Especificidade
Precoce deverá implicar algo mais, que especificidade funcional relativa à prática de Futebol.
Na verdade, apenas se poderá designar de Especificidade, e não especificidade, se esta tiver
subjacente uma determinada concepção de jogo, que orienta e se afigura como referencial
último de todo o processo de Formação. Ou seja, deverá ter subjacente uma determinada
Cultura (um jogar), cuja “variabilidade cultural” deverá ser dada a conhecer desde idades muito
precoces aos jovens. Implicando deste modo, a necessidade de se ponderar devidamente o
que se entende por Cultura, sendo para tal fundamental entender o Jogo (Marisa Gomes,
Anexo 5), visto que é através de uma Cultura de qualidade, que se tornará facilitado o acesso
ao Rendimento Superior.

280
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

experiências e vivências de carácter multilateral, importantes para a expressão


qualitativa dos Talentos no Futebol, e que como tal também deverão ser
contempladas nos processos de exponenciação de Talentos, com o intuito de
fomentar o reportório motor destes, permitindo-lhes tornarem-se mais hábeis
com a bola, entendemos, que no processo de Formação de Talentos, cuja
racionalização se pode designar de Periodização à La Long, o padrão de
actividade, ou seja, a matriz do processo, a qualidade da quantidade deverá
ser, Futebol. A quantidade que evidenciamos como sendo determinante,
deverá contudo encontrar-se associada à qualidade (R. Costa, 2005; Dias,
2005; H. Fonseca, 2006; Tamarit, 2007). De acordo com R. Costa (2005) é a
qualidade do processo conjugada com a quantidade, que permite a distinção
entre os indivíduos com desempenhos de excelência e os demais. “Portanto,
apesar de ser a quantidade algo necessário, é fundamental que o treino seja de
qualidade.” (Tamarit, 2007, pp. 114).
A estimulação precoce revela-se determinante, contudo Hunt (1969) adverte
para a necessidade dos estímulos a que as Crianças são submetidas lhes
estarem coadunados, uma preocupação que designou de “problema do
ajustamento”. No domínio da prática desportiva o problema do ajustamento,
remete-nos para a problemática da “especialização precoce”, definida por
Marques (2005), como sendo a “orientação da estrutura do treino para um
quadro disciplinar restrito antes do tempo adequado para o fazer.”
De acordo com V. Frade (1979, pp. 39) a “ «ESPECIALIZAÇÃO PRECOCE»
NÃO É UM «FANTASMA»!!!”… existe, sendo deste modo pertinente, acautelar
para a perniciosidade desta realidade.
Têm vindo a ser evidenciados os perigos decorrentes da especialização
precoce no treino de jovens, parecendo que um dos principais motivos que
conduz a tais cenários, consiste em reproduzir nos jovens aquilo que se faz nos
adultos, tanto ao nível do treino como da Competição, um desajuste que
conduz geralmente a situações de abandono da prática. (Marques, 2005;
Pacheco, 2001). De acordo com Marques (2005) as principais causas de
especialização precoce são, ausência de formação dos treinadores; pressões

281
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

por parte de pais, dirigentes, mass media; busca de resultados imediatos;


fenómenos de aceleração biológica e sistema de competições desajustado.
A especialização precoce é a expressão do desrespeito no treino, pelas
Crianças, devendo por isso todos os agentes intervenientes no processo evitar
que tal se verifique, o que implica desde logo, um conhecimento profundo do
ser que joga, a Criança. “A natureza ordenou que os jovens sejam jovens antes
de serem adultos. Se pretendermos alterar esta ordem, produziremos só frutos
verdes sem sumo.” (Jean Jaques Rousseau, s/d, cit. por Pacheco, 2001, pp.
24).
Apesar de alguns avanços neste domínio, parece verificar-se que os cenários
de especialização precoce, continuam a persistir (Marques, 2005), o que se
reflecte, num crescente abandono e desinteresse por parte dos jovens
relativamente à prática desportiva. Segundo Michels (2001) o que se verifica, é
que muitas das actividades de treino são altamente descontextualizadas, com
dominância da dimensão física, tornando-se consequentemente pouco
inspiradoras e motivantes para os jovens. Em conformidade Luísa Estriga
(Anexo 3) realça que especialização precoce e Especificidade Precoce são
conceitos diferentes, acrescentando que “o maior problema não é ser
especialização, é o tipo de especialização, que é a mecanização de um padrão
motor que não corresponde àquilo que depois acontece em jogo.”
Lopes (2007) evidencia que nas últimas décadas se tem observado um
crescente abandono, desinteresse e insatisfação por parte dos jovens
relativamente à prática desportiva, urgindo deste modo, a emergência de novas
propostas, mais aliciantes, sugerindo que estas deverão ser norteadas, pela
fórmula dos “3S’S”, consubstanciada na simplicidade, satisfação e sucesso.
Levitin (2007) reportando-se ao domínio da música salienta que a generalidade
dos Talentos musicais, alcançaram desempenhos de excelência, sem se
guiarem por processos de treino “formais”, como os apelida, mas sim através
de meios mais criativos. O que face ao conteúdo dos relatos, dos Jogadores
por nós transcritos parece ser extensível ao desenvolvimento de Talentos no
Futebol. De acordo com Pacheco (2001, pp. 115) nos primeiros contactos “o
mais importante é que o jovem pratique a sua modalidade desportiva preferida,

282
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

o mais à vontade possível e que disponha de tempo suficiente para a


aprendizagem.”
Face a tudo o que foi por nós exposto, entendemos que não sendo seguro
que através de muita prática se atinjam desempenhos de elite, consideramos,
que sem quantidade de prática, sobretudo se alicerçada numa determinada
qualidade, tal se torna muito pouco verosímil. Tornando-se deste modo
necessário que o tempo de treino seja considerável e devidamente
rentabilizado (Michels, 2001).
A questão quando começar, afigura-se quanto a nós como uma falsa
questão, uma vez que, o início precoce da prática de Futebol ainda que de uma
forma não formal, e não condizente com o que por norma se faz no treino de
adultos, à partida não coloca objecções ao desenvolvimento harmonioso e
íntegro dos jovens, aliás, como comprovam os relatos de infância de Jogadores
de excelência. Massada (2003) atendendo ao reduzido impacto patológico que
a prática de Futebol parece causar, sugere que esta pode ser indicada sem
quaisquer reservas às Crianças. Claro está que para tal, se torna importante
salvaguardar a qualidade do processo, motivo pelo qual, consideramos que a
verdadeira questão a colocar, não é quando começar, mas sim como começar.
Ainda que o como, não deva ser perspectivado descurando o quando.
“A preparação de uma criança para a escola depende do mais básico de
todos os conhecimentos: como aprender.” (Goleman, 2003, pp. 215).
“…quanto mais precoce melhor para os miúdos, porque aí a questão é a
intensidade e a repetição das cargas36. A intensidade e a repetição das cargas
se forem feitas de acordo com a idade cronológica que o indivíduo tem, esses
podem ser estimulados relativamente cedo. O grande problema que nós
podíamos pôr aqui é, se o excesso de intensidade das cargas tem um efeito
deletério. Nós sabemos que as cargas fisiológicas estimulam o crescimento.
Por exemplo, num caso particular é que o excesso de cargas determina muitas

36
Cargas: por entendermos tratar-se de um conceito muito conotado com a norma do treinar, e
por entedermos ser associado a um entendimento redutor da essência do treino, uma vez que
se reporta convencionalmente à dimensão física que o Jogo comporta, sugerimos como
alternativa, e tendo em consideração a globalidade do fenómeno, o conceito de desempenho.

283
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

vezes o atraso do crescimento. Ora, portanto, em relação aos estímulos,


quanto mais precocemente a espécie for estimulada, melhor e mais
rapidamente desenvolve qualidades motoras e qualidades cerebrais. Agora, o
estímulo deve estar dependente da intensidade das cargas, da qualidade das
cargas e da resposta que o indivíduo tem em relação a essas cargas. No caso
da actividade motora, ela, neste caso, é fundamental que elas não sejam de tal
maneira intensas que levem ao patológico. E o patológico é quando nós
estamos a fazer muitas «asneiras», as quais aparecem com claudicação, com
dor. A própria natureza diz, que nós estávamos a fazer mal. Agora, nos miúdos,
desde que os estímulos sejam feitos de acordo com a idade cronológica que
eles apresentem, melhor; melhor é para eles.” (Leandro Massada, Anexo 2).
Para que a iniciação no Futebol respeite a Criança, e como tal seja possível
que através de Mais Futebol se construa Mais Criança, o como começar
deverá merecer especial atenção, com o intuito de evitar, que mais futebol
conduza a menos criança, como sucede nos cenários de especialização
precoce. Para tal apresentamos como alternativa a Especificidade Precoce, um
processo à La Long alicerçado em muitas das vivências de infância de
Jogadores de Elite, das quais procuraremos fazer um levantamento para que
possam servir de orientação aos processos de exponenciação de Talentos. A
Especificade Precoce, por ter subjacente uma determinada Cultura de Jogo,
deverá ser entendida como um processo de Aculturação ou de sociogénese
semelhante, ao que se observa nos indivíduos. “Para mim, a Especificidade
Precoce tem de ser vista como um processo cultural, como nas sociedades.”
(Marisa Gomes, Anexo 5). A nossa entrevistada salienta ainda, que este
processo deverá caracterizar-se pela possibilidade de proporcionar aos jovens
uma “variabilidade cultural”, isto é, uma variabilidade dentro de uma
determinada qualidade, um jogar, o qual não deverá ser castrador. Sugerindo
também algo que se revela determinante, quando salienta que o entendimento
de Cultura tem de ser devidamente equacionado, sendo para tal necessário
entender o Jogo. O que coloca a necessidade dos treinadores saberem bem
aquilo que ensinam, até porque como já salientamos, afigura-se tarefa difícil,
senão impossível ensinar aquilo que não se sabe. “Por isso, é que o treinador

284
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

nas idades mais baixas, tem que ser uma aposta clara nos escalões de
formação … não nos juniores nem nos juvenis … também tem que ser nestes
escalões, mas sobretudo cá em baixo (…) Um treinador que não entenda o
jogo e a essência do jogo, a trabalhar com estes miúdos é matar muitos
talentos.” (Marisa Gomes, Anexo 5).
O que pretendemos neste ponto é, ao “mesmo tempo que estamos a apreciar
o percurso «natural» do praticante, desde que se inicia «na rua», até ao futebol
mais institucional, (…) destacar que essas práticas mais naturais, utilizadas na
rua, nas primeiras etapas da sua evolução, podem ser excelentes processos
para a criação de metodologias próprias do futebol, em que se transferem para
o «treino sério», muitas das formas que a Criança utiliza na rua, evidentemente
com graus de exigência necessários a cada nível de competição.” (Ramos,
2003, pp. 15).

6.5 – Especificidade Precoce e a Qualidade dos Ingredientes que podem


Nutrir o Útero Artificial:

“A natação sem água (…)


Que a bola é a obrigação do futebol; que o jogador é mais importante que o treinador; e que
atacar deve ser, pelo menos, uma hipótese de trabalho. Isto não é uma revolução, mas sim a
própria base do futebol.”
(Valdano, 2002, pp. 148).

6.5.1 – A Bola como Companhia, o Primado na Relação com Bola:

“Está aqui a bola que me ajudou muito. Ela e as irmãs dela. São uma família por quem tenho
uma gratidão enorme. Na minha passagem pela Terra, ela foi a principal. Porque sem ela ninguém
joga. Eu comecei numa fábrica de Bangu. Trabalhando até que encontrei esta minha amiga. E
estive sempre muito feliz com ela a meu lado. Graças a ela conheço o mundo inteiro, viajei muito
tive muitas mulheres.”
(Domingos da Guia, s/d, cit. por Galeano, 2005, pp. 83).

A manifestação qualitativa do Talento no Futebol é um processo complexo,


uma vez que, enquanto modalidade colectiva resulta da relação com os outros,
sendo esta mediada por uma interacção, cujo referencial de acção é um

285
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

objecto externo, e à priori estranho, a bola, cujo contacto se estabelece


predominantemente com partes do Corpo, cuja motricidade e sensibilidade
mais refinadas foram, evolutivamente e culturalmente condicionadas. Este facto
torna pertinente que os primeiros contactos com o Jogo, se estabeleçam
precocemente, e que o âmago se centre na relação e familiarização das
Crianças à bola (Cruyff, 2002; Garganta & Pinto, 1998; Michels, 2001; Wein,
2004). Tem se verificado uma diminuição da qualidade de Jogo, e do “amor á
arte”, devido ao decréscimo da qualidade dos Jogadores, cada vez menos
dotados de “técnica”37 (Cruyff, 2002).
Fazendo uso da analogia de Valdano (2002), não havendo natação sem
água, também não há Futebol sem bola, daí que a adaptabilidade
relativamente ao objecto do Jogo se deva desenvolver aquando dos primeiros
contactos com o Futebol, tal como sucede, com a água quando se pretende
aprender a nadar.
Cruyff (2002, pp. 26) revela-se um acérrimo defensor do desenvolvimento dos
aspectos relacionados com a “técnica” nas idades mais precoces, sugerindo
que esta é a base de tudo, e ensiná-la deve ser a principal tarefa dos
treinadores de Crianças. Sugerindo que caso estes não possuam
conhecimentos para o fazer, refugiam-se noutras coisa, “os aspectos físicos e
todas estas coisas que são importantes, de acordo, mas que resultam
secundárias se as compararmos com a técnica.” Nas idades mais precoces a
afinidade com a bola deve estabelecer-se como prioridade, procurando
desenvolver-se desta forma a relação da Criança com a bola, assim como, a
sua fantasia, devendo dar-se especial importância às aptidões “técnicas”
básicas envolvidas nos jogos de Crianças, o passe, a recepção e o drible
(Michels, 2001). “Numa primeira fase do ensino do Futebol, pretende-se que o
praticante se familiarize com a bola, aprendendo a controlá-la e a apreciar as
trajectórias que lhe são imprimidas.” (Garganta & Pinto, 1998, pp. 117).

37
Neste ponto do trabalho, pontualmente serão feitas alusões ao conceito de “técnica”, contudo
queremos relembrar que este deverá ser entendido, de acordo com o conceito de
TácticoTécnica, já por nós apresentado. “O gesto somente faz sentido na harmonia com o
contexto; não tem valor em si mesmo.” (Bento, 2005).

286
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Os relatos relativos aos primeiros contactos dos Jogadores de Elite


(Beckham, 2004; Eusébio, 2006; Maradona, 2005; Moreira & Moreira, 2006;
Pelé, 2006c; Platini, 2006a; Ronaldinho, 2004; Sousa, 2006; Zidane, 2002;
Zizinho, 2006) parecem corroborar o facto de ser fundamental nas idades mais
precoces a ênfase do processo se centrar, na familiarização da Criança com a
bola, para que posteriormente, aquilo que era inicialmente um objecto estranho,
a bola, se comporte como um prolongamento do Corpo:

“A nossa imaginação de criança era muito fértil. A minha casa em Jugueiros


tinha um alpendre, construído pelo meu pai para o proteger enquanto
trabalhava. Para mim era apenas a baliza. Marcava os quatro cantos com
diferente pontuação e depois desafiava-me, tentando sempre superar a minha
classificação. Quando se tornava fácil e o desafio era superado, logo criava um
novo. Então, a bola tinha de ir ao telhado e eu, sem a deixar cair, rematava
para os pontos. Se a bola caísse não contava! O desafio seguinte foi colocar-
me de costas viradas para a baliza (…) Estas são algumas das minhas
invenções de criança (…) com estes exemplos que vos dei a conhecer,
reparem na quantidade de estímulos que têm afinidade com as minhas
características e funções enquanto profissional de futebol… ” (Sousa, 2006).

“Ronaldo arrancou, passou a bola por cima do cão (…) e antes da bola cair
no chão, já ele estava do outro lado para a segurar no ar e retroceder fintando-
o pelas costas (…) Ronaldo já corria pela sala de jantar, como se todos
aqueles móveis fossem seus adversários num jogo de futebol. As cadeiras, a
mesa (…) fintava-as pela direita, pela esquerda, pelo centro…” (Fabra, 2005,
pp. 14).
“A bola é quase a minha vida toda, não tenho nenhuma recordação que não
inclua uma bola. No meu bairro em Porto Alegre passei a infância a jogar à
bola. Nunca me separava da bola, driblava, driblava, driblava sem parar.
Jogava na rua com os meus colegas, mas também jogava horas sozinho ou
com o meu cão o «Bombom», que era incansável. Com ele, tentei todas as
fintas possíveis, para evitar que ele trincasse a bola, com excepção do «túnel»,

287
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

porque o «Bombom» tinha as patas curtas (…) A bola é a minha melhor


companhia, é o objecto que mais amo na vida (…) Faz-me recordar a minha
infância, quando fazia «túneis» por baixo de bancos e fintas as mesas.”
(Ronaldinho, 2004)

“Para mim, era uma amiga. Mas, para certos jogadores é sua inimiga. Creio
que a bola é uma amiga para o artista. É como o pintor. O pincel é o seu
amigo.” (Platini, 2006a).

“Desde que me lembro de ser gente, que a bola é a minha mais fiel
companheira.” (Ricardinho, 2007, in Brás, 2007, pp. 14).

“Tudo o que fazia, cada passo que dava, tinha a ver com isso, com a bola. Se
a Tota me mandava buscar alguma coisa, levava qualquer coisa comigo que se
parecesse com uma bola para poder ir jogando com o pé: podia ser uma
laranja, bolas de papel, ou de trapos. Assim subia as escadas da ponte sobre o
caminho-de-ferro, a saltar num pé – o direito – e levava fosse o que fosse no
esquerdo, tac, tac, tac… Assim ía para a escola também, ou sempre que a
Tota me mandava fazer um recado.” (Maradona, 2005, pp. 14/15).

“Não tínhamos dinheiro para comprar uma bola de borracha, e também


quando apanhávamos aquelas bolas do ténis, e se aqui, nós naquela altura
não ligávamos nenhuma, mas eram, era aperfeiçoar uma técnica com aquela
bola” (Eusébio, 2006).
“…há uma coisa, mais tarde, é pá, um gajo começa a ver, é que nós
apostávamos castanhas (…) eu dava 10 toques numa bola do ténis, e o outro
nada, é pá, então com o pé esquerdo e foi sempre, fomos ganhando a técnica.”
(Eusébio, 2006).

“Todo o garoto, quando ele recebe o primeiro presente, o primeiro presente é,


uma bolinha, ou quando ele não recebe uma bolinha ele faz uma bolinha de

288
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

meia, ou uma bexiga de boi, compreendeu. Tudo isso é para ele começar a
jogar Futebol.” (Moreira & Moreira, 2006).

“Você pode fazer uma porção de coisas com a bola. Só que tem gente que
não gosta de perder tempo com isso (…) então se você quiser aprender,
aprende como a bola mexe. Fica sozinho com a bola você aprende coisas
dessas (…) agora tem de gostar dela.” (Zizinho, 2006).
“Se você quiser aprender muito mesmo, às vezes você comete um erro numa
partida que, depois vai para o campo treina e aquele erro é, uma coisa que
você vai usar muitas vezes, o que para muita gente é um erro, você passa a
usar como se fosse uma virtude sua, que partiu de um erro. Se aprende sim.”
(Zizinho, 2006).

“Na rua, não há, não há obrigações. Só há obrigação de fazer o que nos
apetece! Com a bola é assim, felicidade pura!” (Zidane, 2002).

“Dondinho era diplomático, ajudando-me com ensinamentos técnicos (…)


Ensinou-me a pontapear com o pé esquerdo, a fazer bem os cabeceamentos,
melhorou o meu toque com o pé direito (…) Dondinho ensinou-me muita coisa
(…) falou-me do «peito do pé mágico», ensinou-me a passar com precisão e
mostrou-me a importância de manter a bola sempre perto. Isto foi algo que se
tornou uma espécie de assinatura no meu estilo de jogo (…) Era uma excelente
formação, complementada pelas horas de prática adquiridas com o Sete de
Setembro.” (Pelé, 2006c).

“Todos os meus pontos fortes no jogo, aprendi-os e pratiquei-os com o meu


pai há vinte anos atrás (…) Ele chutava a bola o mais alto que conseguia e
mandava-me controlá-la. Depois mandava-me passá-la de um pé para o outro,
dando vários toques, certificando-se de que o fazia correctamente (…) era
fantástico.” (Beckham, 2004, pp. 29).

289
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Com base no exposto acima, torna-se evidente que a bola foi ao longo da
infância dos Talentos uma companhia, e que a intervenção quando existia
visava guiar e não limitar a criatividade, encontrando-se essencialmente
centrada no desenvolvimento da relação com a bola, e não com os aspectos
considerados secundários (Cruyff, 2002).
De acordo com Ramos (2003) o conjunto de práticas naturais, que
caracterizou a iniciação destes Jogadores no Futebol, poderá servir de guião
para um conveniente desenvolvimento de Talentos no Futebol. Por este motivo,
apresentaremos algumas indicações, que quanto a nós, poderão ajudar na
criação de um Útero Artificial:
ƒ Nas idades mais precoces e até a Criança abandonar o egocentrismo
que a caracteriza, nos primeiros contactos com o Jogo (Pacheco, 2001) torna-
se fundamental que experimentem e descubram, num clima relativamente
informal, as infinitas formas de contacto com a bola. O contacto diversificado da
bola com diferentes partes do Corpo é apontado como um aspecto fundamental
nestas idades (Garganta & Pinto, 1998; Pacheco, 2001; Wein, 2004).
ƒ Realização de actividades nos treinos, como por exemplo, concurso de
toques, exibição de habilidades como fintas e dribles com bola, desafios de
precisão de passe (“Futebol Golfe”, “Rabia ou Meinho) e de remate (“Bola aos
postes”, “Remate de Precisão”, “Baliza em Baliza”), jogos que explorem as
qualidades de drible e finta, associadas ao remate (“Jogo de Todos contra
Todos”, “Jogos realizados em «gaiolas»”), entre outras actividades (ver Cruyff,
2002; Michels, 2001 Pacheco, 2001; Ramos, 2003; Valdano, 1998, 2002; Wein,
2004) que fazendo parte das infâncias de outrora, são altamente estimulantes e
divertidas, permitindo desenvolver de forma entusiasta, motivante e competitiva
os aspectos relacionados com a “técnica individual”. Note-se que todas as
sugestões efectuadas deverão contemplar diferentes variantes, com o intuito
de estimular de forma mais propensa todas as partes do Corpo que podem
contactar com a bola. Consideramos que estas actividades, “resultam em
grandes vantagens no processo ofensivo, quer na segurança individual na
«manutenção da posse da bola», quer nos desequilíbrios na defesa adversária
quando, evidentemente, articulados em coerência às acções colectivas.”

290
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

(Ramos, 2003, pp. 28). Esta evidência parece-nos muito pertinente para o
desenvolvimento de Jogadores capazes de expressar subliminarmente jogares
de cariz táctico-técnico (J. G. Oliveira, 2004) e de dominância marcadamente
ofensiva, como consideramos ser desejável para a elevação da qualidade de
Jogo.
ƒ As Crianças deverão ser incitadas pelos treinadores, a explorarem em
contexto que não o de treino a relação com a bola. Como se observa em
alguns dos relatos supratranscritos, grande parte da Aprendizagem dos
Talentos no Futebol, resultou de um processo que se prolongava muito para
além daquilo que faziam nos treinos. Cruyff (2002) sugere que deve ser
fomentado nos jovens o desejo de desenvolverem o Talento, também por conta
própria. Sendo o treino como evidenciamos um processo de
EnsinoAprendizagem, consideramos ser pertinente que os treinadores atribuam
tarefas para os jovens realizarem em casa, à semelhança do que sucede nas
escolas. De acordo com Michels (2001) deverão ser sugeridas às Crianças,
pelos treinadores tarefas para realizarem como trabalho de casa, sendo os
trabalhos de casa, posteriormente verificados durante aquilo a que vulgo se
designa de aquecimento. Propomos por este motivo, que o kit habitualmente
fornecido às Crianças, claro está depois de pago, aquando da entrada numa
Escola de Futebol, deverá conter uma bola para que as Crianças possam
exercitar em contextos extra treino, e para que possam fazer-se acompanhar
da respectiva bola nos treinos, responsabilizando-se por esta e deste modo,
ganharem uma maior afinidade e apego a esse objecto tão precioso, como é
relatado pela generalidade dos Jogadores de Elite.
ƒ Deve reconhecer-se, à semelhança do que refere Zizinho (2006) que o
erro é parte do processo de iniciação, e mais que isso, que esse erro poderá
tornar-se altamente fecundo, e daí resultar um traço muito próprio do jogar de
cada Jogador. Não obstante, observa-se que a liberdade para errar não se
encontra contemplada pelas metodologias convencionais, acreditando-se que o
processo de Aprendizagem se constitui como sendo uma sucessão de
respostas correctas, ignorando-se deste modo que o erro é intrínseco ao
Homem, sendo mesmo determinante para a construção do conhecimento

291
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

(Tani, 2005). Assim, o erro é parte integrante e inevitável ao longo do processo


de Formação de Talentos no Futebol. “O erro maior é ignorar os erros”
(Pacheco, 2001, pp. 183), tornando-se deste modo pertinente que a percepção
do erro se faça de forma ajustada. Isto é, não devendo ser indiferente o facto
de os cometer, pois se tal suceder não se revelará profícuo, estes deverão ser
relativizados tanto pelo treinador como pela Criança que os comete. Sendo
para o último caso importante, a relação estabelecida entre o jovem e o
treinador. Segundo Michels (2001) o Futebol de Rua pode considerar-se como
o processo mais natural de Aprendizagem do Jogo, uma vez que através das
várias vivências que proporcionava, permitia que os Jogadores aprendessem
com os erros cometidos, desenvolvendo consequentemente o seu Talento. No
Futebol de Rua, aprende-se com os erros, facto que permite uma
Aprendizagem pessoal com base nestes, que vão contudo coabitar com a
adaptabilidade aumentada dos Jogadores. Por esse motivo, a intervenção do
treinador deverá guiar o Jogador no sentido deste Aprender por si próprio, e
não proibir ou punir o erro (H. Fonseca, 2006; Tamarit, 2007). Importa contudo
advertir relativamente à intervenção do treinador, que sendo o Homem um
animal de hábitos, como mais adiante evidenciaremos, se torna importante,
que os treinadores orientados pelo “sentido da divina proporção” (B. Oliveira et
al., 2006) criem contextos de exercitação que atendam aos défices
circunstanciais das Crianças, possibilitando deste modo, que a propensão para
errar não seja exacerbada, sob pena de além de levar à
InCorporAcção/Somatização de erros, desmotivar quem os comete
sistematicamente. “Há pois que oferecer situações estimulantes e abertas, mas
em contextos realistas e significativos que permitem a confirmação ou a
contradição, devendo estas duas vertentes passar a merecer particular
atenção.
Para isso torna-se necessário criar um clima de confiança e de
desdramatização do erro e do insucesso (…) Contudo, há que não deixar
cometer sistematicamente os mesmos erros.” (Lopes, 2007, pp. 50/51).

292
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

“É preciso talento para que o erro se torne fecundo” (Morin, 2003, pp.170),
mas por outro lado, entendemos face ao exposto, que também o erro pode
fecundar o Talento.
ƒ A promoção da lateralidade deve ser uma preocupação presente nas
idades mais precoces. Valdano (2002) refere que a nível sénior, as exigências
que o Jogo coloca, obrigam o Jogador a socorrer-se daquilo que se encontra
nele mais enraizado, acrescentando que por esse motivo, é muito mais difícil
Aprender a utilizar o pé não dominante quando se é profissional. Reforçando-
se deste modo, a necessidade de desenvolver precocemente a lateralidade dos
jovens Jogadores, através da solicitação regular das partes do Corpo menos
hábeis, à partida. As questões relacionadas com o desenvolvimento da
lateralidade são complexas, contudo quanto mais precocemente a lateralidade
cerebral for estimulada melhor se desenvolve (Mendonza 1998). Consideramos
que nas diferentes tarefas propostas nos treinos de jovens, deverão ser
contempladas variantes de exercitação que incitem o desenvolvimento da
relação da bola com ambos os pés e pernas. N. Marques (2008), refere-se a
uma recente terapia utilizada na área da reabilitação que apresenta resultados
muito significativos em poucas semanas, ou dias, e que permite que pessoas
que sofreram acidentes vasculares cerebrais, recuperem da perda de
funcionalidade dos membros afectados. Trata-se de uma terapia utilizada pelo
neurocientista Edward Taub, que a designa de Terapia do Movimento
Constrangido-Induzido (CIMT, sigla original em inglês), e que consiste na
restrição do membro menos afectado pelo acidente vascular cerebral, com o
intuito de induzir a necessidade de utilização dos membros mais afectados. O
tempo a que as pessoas são submetidas a estes constrangimentos
diariamente, é na ordem das seis horas, durante duas-três semanas, sendo os
resultados muito significativos, e comprovados pelo seu mentor em estudos
efectuados em mais de 300 pacientes (N. Marques, 2008). Entendemos, que
estes dados realçam a importância da contemplação da estimulação da
lateralidade nos treinos de jovens. Claro está, que não pretendemos que os
jovens sejam submetidos a um processo semelhante durante horas. Até
porque, sendo o processo de Formação extensível a vários anos, e não a duas

293
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

ou três semanas, a possibilidade de desenvolver a proficiência dos membros


menos hábeis, durante um período alargado torna-se possível. Note-se ainda,
que o que pretendemos com estes dados é, evidenciar que desenvolver a
lateralidade é possível, não sendo nosso objectivo sugerir, que a utilização do
membro não dominante durante o treino, se assuma como a preocupação
central, uma vez que sendo o Talento singularidade, ele também o é pelo modo
como se expressa mais habilmente com um dos pés, ou nalguns casos com os
dois. Importando que não perca essas qualidades, nem as substitua, mas sim,
que as complemente com outras que o tornem ainda melhor sem perda dos
seus traços identitários (Marisa Gomes, Anexo 5), no caso poderá ser a
qualidade de relação com bola, que expressa com um dos pés, ou nalguns
casos com os dois como já evidenciamos.

Em suma, consideramos que o desenvolvimento dos aspectos mais


relacionados com o plano individual, nomeadamente os que se reportam à
relação com bola assumem uma importância determinante nas idades mais
precoces, devendo deste modo, revelar-se como premissa prioritária aquando
dos primeiros contactos dos jovens com o Jogo. O desenvolvimento deste
plano, deverá proporcionar o estabelecimento de uma relação criativa e
diversificada da Criança com a bola, devendo isso realizar-se, num clima de
Aprendizagem entusiasta e apaixonante. A ênfase colocada neste plano, não
implica que desde idades muito precoces e de forma paulatina não se verifique
a aquisição de alguns Princípios Básicos, através de orientações simples
como, desmarcar-se para espaços vazios, procurar recuperar a bola
imediatamente após a perda da sua posse e fazer o campo tão grande quanto
possível (Michels, 2001). De acordo com Cruyff (2002) até aos 14 anos é
fundamental deixar os jovens jogar e desfrutar, uma faixa etária igualmente
sugerida como referencial por Marisa Gomes (Anexo 5), que sugere que
sobretudo até este período, às Crianças deve ser proporcionada uma
“variabilidade cultural”. Partilhamos desta ideia, e como tal, também nós
consideramos que esta idade poderá servir como uma boa referência, não
devendo contudo ser entendida de forma estanque. O desenvolvimento da

294
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

“técnica individual” deverá ter subjacente um esboço de um jogar, de


dominância e aspiração a táctico-técnico (J. G. Oliveira, 2004), que ao
reconhecer especial importância a este plano nas idades mais precoces,
possibilitará que os jovens desenvolvam o Talento potencial que possuem, e
que posteriormente o expressem de forma exponenciada submetendo-o e
sustentando-o num jogar mais complexo alicerçado num plano colectivo. A
Aculturação a esse jogar, como forma prioritária apenas se deverá verificar em
idades mais adiantadas, momento em que a lógica do processo, se reverte.
Isto é, a dominância deverá deixar de ser sobre o plano individual, para se
centrar predominantemente, nas questões relacionados com a Organização de
Jogo, as quais comportam outra ordem de complexidade, para a qual os jovens
deverão encontrar-se preparados. Daí que a sugestão dos 14 anos, atendendo
às características padronizadas desta faixa etária (Meinel, 1984), nos pareça
ajustada. O facto deste momento de transição não dever ser igual para todos
os jovens, implica que o treinador seja capaz de reconhecer, quando é que
cada Jogador se encontra capaz de assimilar um nível de complexidade de
jogo diferente, menos centrado no Eu e na bola, passando-se deste modo, do
“jogar à bola” para o “jogar futebol” (Ramos, 2003), ou com base na
terminologia por nós utilizada, para o “jogar” um jogar.

6.5.2 – Jogo(S) Reduzir Sem Empobrecer, para Enriquecer o Talento e o


Prazer:

“A forma humana, a saúde e a felicidade, a vida boa e a arte de viver prendem-se também com a
competência para jogar (…) Postulado magistral a dizer-nos – em linguagem de contornos
conceptuais é certo, mas despida de fórmulas pomposas e gongóricas – que a filosofia emerge da
vida quotidiana. Que os homens inventaram os jogos, mas que estes fazem o homem: o Homem
do sonho, da aventura, do risco, das emoções, dos sentimentos, do choro, do riso, do enlevo e do
canto, do corpo em festa e da alma transbordante de abertura ao mundo e à vida.”
(J. Bento, 2004, pp. 76).

Foi já por nós evidenciada a importância de brincar nas idades mais


precoces, assumindo especial relevância no desenvolvimento de Crianças

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Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

variadas brincadeiras e o recurso a jogos (Celso Antunes, 2006; V. d. Fonseca,


2007; Jensen, 2002; Levitin, 2007; Neto, 1997, 1999).
“O estudo do jogo na perspectiva do desenvolvimento da criança e do
adolescente pode ser considerado do ponto de vista da investigação como uma
área exclusiva de abordagem. O jogo é uma das formas mais comuns de
comportamento durante a infância e altamente atractiva e intrigante para os
investigadores interessados nos domínios do desenvolvimento humano,
educação, saúde e intervenção social. “ (Neto, 1997, pp. 5).
Os jogos além de serem importantes para o desenvolvimento cerebral,
“sabem bem” (Jensen, 2002), tendo tal reconhecimento levado a que esta se
tenha tornado numa temática de interesse crescente no seio da comunidade
científica (Neto, 1997). Changeux (2003) apresenta a hipótese de que a
aquisição de conhecimentos, e do mundo que nos rodeia, sobretudo nas
idades mais precoces pode resultar da realização de jogos cognitivos, aos
quais as Crianças se entregam evoluindo permanentemente.
Levitin (2007, pp. 147) adverte que é complicado definir a categoria jogo,
propondo-a como “algo que se aparente com outras coisas que anteriormente
designamos por jogo”.
A qualidade que deverá nutrir o Útero Artificial encontra-se fortemente
relacionada com a possibilidade de contemplação do jogo ao longo do
processo de Formação (H. Fonseca, 2006; Tamarit, 2007). No entanto, perante
a dificuldade de definir a categoria o jogo, torna-se pertinente definir que Jogo,
ou jogos, consideramos mais aconselháveis para as Crianças iniciarem os seus
contactos com o Futebol, tal como adverte Marisa Gomes (Anexo, 5). Como é
evidenciado por B. Oliveira et al., (2006) o entendimento do treino e do Jogo
pode fazer-se de formas diversas, e por vezes antagónicas, tornando-se assim
pertinente da nossa parte a adopção de uma posição.
Parece ser consensual que o treino deve representar a essência do Jogo (H.
Fonseca, 2006; Garganta & Pinto, 1998; J. G. Oliveira, 2004; Queiroz, 1986;
Tamarit, 2007).
Barreto (1980) sugere uma concepção metodológica para o Basquetebol,
segundo a qual se aprende a jogar, jogando. Uma premissa com a qual nos

296
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

encontramos de acordo. Todavia, esta concepção metodológica parte do jogo


formal, sendo introduzidas habilidades à medida que surgem da parte dos
Jogadores necessidades de dar resposta, aos novos problemas que o jogo
coloca. A objecção que colocamos a esta concepção, embora não se destine
ao Futebol, prende-se com o facto de utilizar como meio, o fim a que queremos
chegar, ou seja, o jogo formal. Em nosso entendimento Aprender a Jogar,
Jogando é fundamental, mas consideramos que o ponto de partida, no que se
refere ao Futebol, não deverá ser o jogo formal. “O jogo deverá estar sempre
presente em todas as etapas do ensino do Futebol, já que os jogadores
aprenderam a jogar, jogando. Aquilo que mais prazer lhes dá é ter uma bola
com a qual possam contactar muitas vezes e se possível marcar muitos golos.”
(Pacheco, 2001, pp. 135). Reconhece-se deste modo a importância da
presença do Jogo ao longo do processo de Formação, que em nosso
entendimento, deverá ser dado a conhecer e a experimentar às Crianças
através de uma Redução Sem Empobrecimento do jogo formal, e mais que
isso, de um determinado jogar. A Redução Sem Empobrecimento poderá fazer-
se através do recurso a jogos reduzidos, enquanto objectos fractais do jogo
formal. O recurso a estes jogos tem vindo a ser largamente sugerido
(Campbell, 1998; Garganta & Pinto, 1998; Michels, 2001; Pacheco, 2001;
Ramos, 2003; Wein, 2004) como uma estratégia didáctica de valor muito
significativo para a Aprendizagem do Jogo pelas Crianças. Wein (2004)
defensor da utilização de jogos reduzidos, salienta que é necessário adaptar o
jogo às Crianças e evitar que sejam estas a terem de se adaptar ao jogo dos
adultos.
Os jogos reduzidos caracterizam-se pela diminuição das variáveis de
exercitação, espaço e número de intervenientes, não devendo a manipulação
destas variáveis fazer-se de forma aleatória, uma vez que estas, influem na
quantidade de informação a tratar pelos Jogadores, sendo assim aspectos
relevantes para a escolha do tipo de trabalho a desenvolver nos diferentes
escalões e níveis de jogo (Lopes, 2007).

297
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Figura 6 – Relação complexidade de Jogo e redução de espaço e efectivo numérico.


(Adaptado de Lopes, 2007, pp. 21).

A complexidade do Jogo que é dado a conhecer às Crianças deverá deste


modo, ter em consideração a quantidade de informação que os jovens terão de
tratar, sendo para isso necessário que o treinador atenda ao sentido da divina
proporção, e seleccione os jogos de acordo com as necessidades dos jovens,
ajustando-os aos seus défices circunstanciais. Estes jogos reduzidos poderão
apresentar diferentes variantes, como a utilização de equipas com diferentes
efectivos numéricos, capaz de conferir um cariz ainda mais enriquecedor a
estes jogos (Michels, 2001).
De acordo com Luísa Estriga (Anexo 3), o tipo de Jogo apresentado nas
idades mais precoces tanto no treino como na Competição, nomeadamente no
Andebol, é desajustado ao escalão etário a que se destina, o que leva a que as
decisões excluam grande parte dos intervenientes, centrando-se assim na
acção de dois ou três. Para a nossa entrevistada, as grandes lacunas
encontram-se na Formação, ao nível da qualidade dos processos,
acrescentando que conjuntamente com a reduzida Especificidade que
caracteriza esses processos, a não redução do Jogo implica a não preparação
para as exigências competitivas, contribui para a mecanização de
determinadas acções e ainda para a diminuição das propensões para a
ocorrência dos comportamentos desejados. O que segundo destaca, por não

298
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

permitir uma adaptabilidade conveniente para as exigências competitivas se


repercute numa maior ocorrência de lesões.
Garganta & Pinto (1998) sugerem que deve ser proporcionado aos jovens um
jogo acessível, composto de regras simples, com menos Jogadores e em
espaços mais reduzidos, de modo a permitir que os jovens percepcionem as
linhas de força (bola, terreno, adversário e colegas), estabeleçam muitos e
diversificados contactos com a bola, continuidade de acções e elevada
propensão de concretizações. Defendendo ainda, que a adopção de jogos
reduzidos permite uma maior solicitação e consequente maior desenvolvimento
dos jovens Futebolistas, tal como sugerem outros autores (Campbell, 1998;
Pacheco, 2001).
O divertimento aumentado motivado pelo facto destes jogos atenderem ao
desejo de jogar dos jovens, assim como a maior frequência e número de
contactos com a bola e maior propensão de situações de golo, são algumas
das vantagens sugeridas por Pacheco (2001), decorrentes da adopção destes
jogos. Para Michels (2001) a adopção daquilo a que designa de “jogos básicos”
com diferentes efectivos numéricos e com recurso a diferentes variáveis, além
de ser a forma mais divertida dos miúdos se iniciarem, favorece a não
existência de rigidez posicional por parte dos Jogadores. Segundo Luísa
Estriga (Anexo 3) a redução do Jogo permite, que os jovens percebam mais
facilmente a lógica do espaço, assimilem mais facilmente a gestão dos timings
de decisão e a ocorrência dos comportamentos desejados.
Sendo nas idades mais precoces uma prioridade o Desenvolvimento da
Relação do Corpo com a Bola, devendo esta ser complementada pelo seu
desenvolvimento em cenários de confrontação diversos, é fundamental que
nestas idades o processo permita às Crianças, experimentarem o Jogo através
de diferentes jogos. Jogos de uma só jogada, ou temáticos, como os sugeridos
no ponto anterior, nos quais se encontra privilegiada a ocorrência de
determinadas acções, simulações, passes, remates, entre outras, cumprindo
assim o Princípio Metodológico das Propensões (B. Oliveira et al., 2006).
Este Princípio Metodológico é determinante para a qualidade do processo a
que os jovens são submetidos. “Isso das propensões tem de ser de cima

299
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

abaixo. Tem que ser sempre e a todos os níveis.” (Marisa Gomes, Anexo 5). A
nossa entrevistada reforça deste modo, a necessidade deste Princípio
Metodológico ser extensível a todo o processo, independentemente das idades
dos intervenientes. Salientando ainda, que o contexto tem de ser propício para
o emergir de determinados comportamentos, encontrando-se o treinador, um
“alquimista”, como refere, incumbido da tarefa de criar esses contextos, sendo
para tal determinante ter muito bem definido os objectivos pretendidos, os
quais se relacionam pela dinâmica e evolução intrínseca ao processo. Este
Princípio Metodológico, parece-nos quanto a nós operacionalizavél através do
recurso, devidamente ponderado, a jogos, como os jogos reduzidos, que se
obedecerem a uma lógica de Redução Sem Empobrecimento, permitem
exponenciar e enriquecer o Talento das Crianças.
Importa contudo advertir que os jogos reduzidos, por si só são, um fractal do
Jogo, e numa lógica de Especificidade Precoce pretende-se mais do que
contemplar a especificidade, procura-se através deles vivenciar e
operacionalizar uma determinada Especificidade. Face ao exposto, o jogo
reduzido, mais do que ser um fractal do Jogo tem de ser um fractal de um
determinado jogar. Procurando-se com este entendimento de redução, não
somente que as propensões se centrem na gestualidade própria da
modalidade, mas mais do que isso, que as propensões se centrem na
gestualidade, nos hábitos, nos padrões comportamentais e de interacção
(Princípios de Jogo) que Corporalizam e permitem o expressar de um
determinado jogar. Trata-se portanto de uma redução, mais do que natureza
quantitativa (efectivo numérico e espaço), de uma redução qualitativa, uma vez
que se reporta à complexidade de um jogar.
Somente este entendimento reflecte o verdadeiro sentido da Redução Sem
Empobrecimento, que como salientamos, se refere à complexidade inerente a
uma determinada “variabilidade cultural” (Marisa Gomes, Anexo 5), vivenciada
através de jogos que contemplem, níveis de complexidade “reduzidos” de uma
determinada qualidade, isto é, de um determinado jogar. De onde resulta a
necessidade de uma articulação de sentido, entre esses diferentes níveis de
complexidade, tornando assim pertinente a necessidade de periodizar essa

300
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

complexidade. Uma periodização que reportando-se a um determinado jogar, é


Táctica, e que devendo verificar-se ao longo dos vários anos da Formação, se
pode designar de Periodização à La Long.
As principais vantagens dos jogos reduzidos, Reduzidos Sem
Empobrecimento, poderão ser sintetizadas nos seguintes aspectos:
ƒ Diminuição do número de Jogadores, implica diminuição da quantidade
de informação a processar pela Criança, o que conduz a um menor número de
erros, e como tal mais prazer.
ƒ Maior controlo e propensão para a ocorrência de determinados
acontecimentos, que o treinador pretende potenciar.
ƒ Maior e mais diversificado contacto da Criança com a bola.
ƒ Maior frequência de situações de finalização e de golos, um aspecto
motivador que permite à Criança sentir-se protagonista do Jogo.
ƒ Mais tempo para pensar e decidir, permitindo que as Crianças pouco
familiarizadas com a bola «saboreiem» Jogando.
ƒ Constante participação da Criança no respeito pela inteireza
inquebrantável do Jogo.
ƒ A participação dos menos hábeis torna-se fundamental para a equipa,
como tal estes participam mais e consequentemente desenvolvem mais as
suas potencialidades.
ƒ Respeito pela estrutura acontecimental do jogo dos adultos.
ƒ Ao diminuir de forma ajustada o espaço e número de Jogadores, diminui
a pressa dos Jogadores, «saboreiam» mais.
ƒ Evita a rigidez posicional, permitindo que as Crianças experimentem
constantemente funcionalidades diferentes, e ajustem os seus comportamentos
relativamente à zona de jogo em que se encontram, desenvolvendo assim a
“inteligência de zona” (Mahlo, 1969).
ƒ Maior intervenção dos Guarda-Redes, criando desde idades precoces o
hábito de que este também é parte do Jogo.
ƒ Aculturação a um jogar paulatinamente mais complexo num clima
emocional favorável.

301
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

As vantagens anteriormente salientadas permitem o cumprimento de alguns


daqueles que devem ser, os Princípios Metodológicos basilares da
Especificidade Precoce, o Princípio das Propensões, o Princípio da Repetição
Sistemática e ainda, o Princípio da Especificidade. Embora este último deva
merecer um entendimento diferente daquele que se observa no treino de
Rendimento Superior, ou seja, não se orientando pelos mesmos padrões. A
qualidade que consubstancia a Especificidade é nestes dois processos, de
níveis de complexidade diferentes. No treino de Crianças, essa qualidade em
vez de estar relacionada de forma mais notória com uma determinada forma de
jogar, ainda que não a deva ignorar, relaciona-se com a Especificidade
funcional e decisional relativa à actividade, através de um processo à La Long,
por nós designado de Especificidade Precoce. Especificidade Precoce
consubstanciada fundamentalmente por um conjunto diversificado de formas
jogadas geralmente utilizadas pelas Crianças, através das quais assimilam
muito do conteúdo específico da modalidade. Aquilo a que Luísa Estriga
(Anexo 3) designa como sendo uma Especificidade mais “global” e
“pluridisciplinar”, ou segundo Marisa Gomes (Anexo 5), reporta-se a uma
determinada “variabilidade cultural”. Ou seja, consideramos que a Repetição
Sistemática, sobretudo nas idades mais precoces, mas não somente, deve ser
uma repetição não repetitiva, isto é, deve caracterizar-se por ser um processo
de Repetição Sistemática balizado por uma determinada “variabilidade
cultural”, à qual se pretende que as Crianças através do contacto com o Jogo e
com um jogar, se vão Aculturando. V. Frade (1979, pp. 10) esclarece acerca do
conceito de Repetição Sistemática e da necessidade desta contemplar uma
determinada variabilidade, que a “perfeição do automatismo não consiste no
ter-se definitivamente fixado um certo encadeamento de acções musculares, é
pelo contrário, uma liberdade crescente na escolha das acções musculares a
encadear.” Remetendo-nos deste modo, para a necessidade da Repetição
Sistemática não ser entendida como algo fechado, em que os padrões motores
são estereotipados e previamente determinados. “Os bebés, está provado (…)
têm, até aos 4 anos, capacidade de aprender muitas línguas… Só que depois,
pelo padrão da estimulação do que vão ouvindo e que vão sentindo e pela

302
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

maneira como falam para eles, vão-se tornar selectivos a um idioma. Isto é que
é cultura. E é como no jogo, no ensino do jogo, os miúdos estão ali e não
sabem jogar. Óptimo! Vamos então dar-lhes essa noção e com isso, eles vão-
se tornando selectivos com a prática que têm. No entanto (…) todo o treinador
que nas escolas está a pedir «passa daqui para ali e daqui para acolá» (…)
está a querer formatar um jogo… isto é, está a reduzir a variabilidade e está a
ser castrador a qualquer talento… Porque esses bebés, já está provado, por
vários estudos, por exemplo vão-se acostumando ao que ouvem. E eu acho
piada às pessoas… Por exemplo, eu tenho uma sobrinha de um ano e eu digo
à minha mãe para ela ouvir o máximo de línguas possíveis, e sabes o que é
que a minha mãe me diz? A minha mãe, a minha irmã e as minhas tias dizem-
me: «então ela não sabe português e vai saber outras línguas?!» Como se isto
fosse, uma construção por etapas: primeiro, o português, depois as outras
línguas. Não! A selectividade resulta daquilo que a gente faz e portanto, se ela
for ouvindo várias línguas agora, a cultura dela vai ser muito mais abrangente.
É a mesma coisa no jogo.” (Marisa Gomes, Anexo 5).
Importa contudo reforçar a ideia que não devemos ignorar, que esta
variabilidade cultural é na verdade, uma variabilidade dentro de uma
determinada Cultura, ou seja, consiste na possibilidade de permeabilidade às
dimensões não cientificáveis de um jogar, sem hipotecar a integridade desse
mesmo jogar, isto é, do padrão que este tem subjacente e das regularidades
que conferem identidade a esse jogar, os Princípios de Jogo.
Como temos salientado, é pertinente que as vivências proporcinadas por
essa variabilidade se reportem ao Futebol e tenham subjacentes conceitos
relevantes para a expressão de jogares de níveis de complexidade mais
elevados.
Ramos (2003, pp. 18) salienta que a Criança foi capaz de captar a essência
do Jogo, mostrando-nos que é possível e aconselhável Aprender e Ensinar
Futebol com base nestas estratégias, “Joga em número reduzido de jogadores,
como os adultos só aprenderam a fazer, muito tempo depois das crianças
utilizarem estes métodos, como meio preferencial das suas aprendizagens.”

303
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Uma afirmação que é corroborada por alguns relatos de infância de Jogadores


que atingiram níveis de excelência.
Fabra (2005, pp. 48) reportando-se à infância de Ronaldinho e à sua
passagem pelo Futsal, uma possível forma de Redução Sem Empobrecimento,
destaca que “o futebol de salão era eléctrico, rápido, havia muitos golos. Era
ideal para a sua maneira de ser e de jogar. E muitos grandes jogadores
praticavam-no precisamente para se manterem em forma e terem reflexos.”
Os amigos de Zidane (2002), Malik e Yvon recordam a infância dizendo que,
“a carreira dele começou aqui. Deu os primeiros pontapés aqui, com os
amigos. Jogávamos três-contra-três (…) uma baliza aqui, e outra ali;
jogávamos neste espaço. Não havia lançamentos nem cantos a bola estava
sempre em jogo.”
Eusébio (2006) também recorda o local onde viveu na infância do seguinte
modo, “esse bairro, é perto da cidade e nós jogávamos ali à bola 3x3, 4x4 …”
Também J. Costa (2006) sugere que a sua iniciação no Futebol foi
privilegiada, uma vez que como destaca; “tive a felicidade de crescer num
bairro com bastantes miúdos, e era aquele miúdo que vinha da escola, comia à
pressa e passava o resto do dia a jogar, se tivéssemos 10 jogávamos 10, se
tivéssemos 2 jogávamos 2, e muitas vezes inclusive cheguei a estar sozinho
com a bola.” (J. Costa, 2006).
O reconhecimento da relevância na Formação da utilização de jogos
reduzidos é fornecido, por aquele que é considerado o melhor Jogador de
todos os tempos, Pelé (2006c), ao associar as suas características enquanto
Jogador com o facto de desde muito pequeno, ter sido habituado a jogar em
espaços reduzidos.
Uma vez mais parece verificar-se, que a generalidade dos Jogadores que
conseguiram alcançar um nível de excelência, através da criação de
actividades que se encontram referenciadas à essência do Futebol, o Jogo,
confirmando assim, o que foi anteriormente sustentado por nós. Como tal,
ainda que Reduzido Sem Empobrecimento, o Jogo deverá assumir especial
relevância no desenvolvimento de Talentos.

304
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Note-se ainda que o carácter relativamente informal com que decorriam estas
actividades de infância, nas quais as regras eram bastante flexíveis, e
condicionadas pelo próprio contexto em que os jogos decorriam (Zidane, 2002)
parece ser um aspecto a ter em consideração aquando da operacionalização
destas actividades nos pretensos Úteros Artificiais.
Levitin (2007) adverte que o desinteresse por vezes observado pela
Aprendizagem através dos jogos resulta, destes apresentarem por vezes
regras excessivamente complicadas.
O Jogo a apresentar às Crianças, deverá ser caracterizado pela existência de
regras simples e facilmente perceptíveis (Garganta & Pinto, 1998), devendo as
adaptações introduzidas nos exercícios, serem igualmente de fácil apreensão
pelas Crianças (Campbell, 1998).
Importa também salientar que uma das potencialidades que o recurso ao
Jogo, entenda-se Reduzido Sem Empobrecimento, parece possuir é o facto de
despertar uma maior satisfação e prazer naqueles que nele participam (H.
Fonseca, 2006; Lopes, 2007; Michels, 2001; Pacheco, 2001; Ramos, 2003;
Wein, 2004), um prazer que ao ser recriado nos Úteros Artificiais através
destes jogos, poderá permitir que neles se instale o clima de permanente
SupraMotivação, que caracterizava o Futebol de Rua, e que se revelou
determinante para o alcance de níveis de excelência por parte dos Talentos no
Futebol. De acordo com Tamarit (2007), a existência do prazer subjacente à
prática do Futebol de Rua pode explicar, o motivo pelo qual este se revela tão
importante para o desenvolvimento de Talentos no Futebol:

“O que me deixa bastante feliz é, fazer aquilo que eu gosto de fazer, que é a
minha paixão, é o Futebol, é isso que me deixa bastante feliz.” (Ronaldo,
2008).

“Eu tinha o prazer de Jogar (…) ninguém me obrigava, ninguém me obrigou a


Jogar à bola.” (Eusébio, 2007).

305
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

“… É como num sonho (…) a verdadeira felicidade. A verdadeira felicidade,


porque na rua, não há, não há obrigações. Só há obrigação de fazer o que nos
apetece! Com a bola é assim, felicidade pura!” (Zidane, 2002).

“…Isso é o mais importante, para além de fazer aquilo de que mais gosto. O
futebol tornou-se um trabalho, mas é um trabalho que me apaixona, e é por
isso que consigo dedicar-me inteiramente a ele.” (Piero, 2006).

“Encontro 150 pessoas durante a semana. As 150 pessoas dizem-me


exactamente a mesma coisa: «É preciso ganhar no sábado.» Ninguém me diz
como o fazer (…) essa necessidade pode tornar-se um obstáculo e não um
desejo. Quando temos de fazer algo, fazemo-lo menos bem. Quando temos
vontade de fazer algo, juntamos determinação e criatividade, pois estamos
contentes por fazê-lo.” (Wenger (2006).

“A base de tudo radica nas crianças desfrutarem jogando futebol, não que se
aborreçam” (Cruyff, 2002, pp. 35).

“Quando a bola começou a girar, fez o que sempre fazia: esquecer-se de


tudo, concentrar-se no jogo, tratar de jogar o melhor possível.” (Fabra, 2005,
pp. 77).

“Tornámo-nos bons jogadores, não porque somos dotados ou bem pagos,


mas por causa da fome e do amor que se coloca naquilo que se está a fazer.
Quando eu era miúdo, tinha ambas as coisas, hoje felizmente já não passo
fome, mas continuo a amar o que faço.” (Ronaldo, 2006).

Não devendo ser negada a possibilidade de Aprendizagem sem prazer, esta


parece ser potenciada se esta dimensão se lhe encontrar associada (H.
Fonseca, 2006). De acordo com a Teoria da Prática Deliberada, a
Aprendizagem de uma determinada actividade e o desenvolvimento de
desempenhos de mestria, poderá implicar a necessidade de expor as Crianças

306
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

a actividades nas quais o prazer poderá não ser contemplado, (Ericsson, 1996)
hipervalorizando-se deste modo, a importância do esforço, contribuindo assim,
para a convicção de que a melhoria dos desempenhos somente se verificará
através de actividades pouco prazenteiras (H. Fonseca, 2006). Ainda de acordo
com H. Fonseca (2006) esta teoria tem vindo a ser confrontada com alguns
estudos no domínio desportivo, que fragilizam tal convicção, demonstrando que
o prazer parece potenciar e melhorar a Aprendizagem. Também Dias (2005)
partilha desta opinião ao salientar que a sugestão de desprazer associada a
desempenhos de excelência é, uma falsa questão. Marisa Gomes (Anexo 5)
salienta igualmente que o prazer, é determinante para o “mapeamento” do
Jogo.
A análise das declarações acima transcritas dos Talentos no Futebol,
relativas aos jogos que realizavam nas respectivas infâncias expressa um
estado emocional muito próprio, o qual nos remete, para a Teoria Flow. O
prazer despoletado pelos jogos tem fundamento neurológico, uma vez que as
experiências sensório-motoras, são directamente enviadas para os centros
cerebrais associados ao prazer (Jensen, 2002).
Csikszentmihalyi (1990) foi pioneiro na investigação e recolha de relatos de
sujeitos com desempenhos de excelência em diferentes domínios, designando
o estado de êxtase presenciado por estes indivíduos e esta área de
investigação, através do termo “flow”, traduzido para a nossa língua como
“fluxo”. Goleman (2003, pp. 112) estabelece a relação entre esta teoria e os
estados emocionais experienciados pelos sujeitos, sendo estes caracterizados
como um estado de auto-esquecimento; “é uma experiência gloriosa: a
característica específica do fluxo é uma alegria espontânea, um êxtase.
Fazendo-nos sentir tão bem, o fluxo é inerentemente gratificante. É um estado
em que as pessoas em estado de fluxo ficam tão absortas no que estão a fazer
que perdem toda a consciência de si mesmas (…) Paradoxalmente, as
pessoas em estado de fluxo são exímias no controlo daquilo que fazem, as
suas reacções ficam perfeitamente sintonizadas com exigências da tarefa. E
embora as pessoas desempenhem no seu melhor quando em fluxo, isso não
as preocupa minimamente, não são assaltadas por pensamentos de êxito ou

307
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

de fracasso – o simples prazer do acto em si mesmo é o que as motiva.” Este


estado de êxtase como relata Paulo Cunha e Silva (Anexo 4) pode ser
observado através da contemplação dos grandes Talentos do Futebol, como
Zidane, os quais sentem necessidade de expressar comportamentos de êxtase
e de dissipação, sendo nesses momentos que expressam a sua criatividade.
Os estados de fluxo parecem ser consentâneos, com aquele que é vivenciado
pelas Crianças no Futebol de Rua, onde se sentem “como num sonho” (Zidane,
2002) como demonstram alguns dos relatos de infância dos Talentos. Esta
teoria apoia ainda a ideia, de que a prática de carácter mais informal e
espontâneo é determinante, para que se atinja tal estado de êxtase e de
desempenho sublime. “O modelo de fluxo sugere que chegar ao domínio de
qualquer competência ou corpo de conhecimentos deveria idealmente
acontecer de forma natural, à medida que a criança é atraída para as áreas
que espontaneamente a cativam – de que em essência ela gosta (…) faz a
criança feliz.” (Goleman, 2003, pp. 116).
A potenciação dos desempenhos por parte das Crianças que vivenciam este
estado de SupraMotivação, tão típico do Futebol de Rua, parece ser
sustentada por algumas evidências efectuadas por Damásio (2004), o qual
sustenta, que os estados de alegria e de felicidade se reflectem num modo
mais eficiente de pensar, numa maior fluência de ideias e numa maior
facilidade de actuar, por possibilitarem ao organismo o alcance de um maior
estado de perfeição, sendo o mesmo sugerido por Goleman (2003, 2006).
Este estado de SupraMotivação, face ao exposto demonstra-se determinante
para a expressão de desempenhos de excelência, e para o sucesso das
Aprendizagens efectuadas desde idades precoces no Futebol, consideramos
ainda, que a possibilidade de atingir este estado de perfeição por parte do
Corpo, caracterizado por um estado emocional muito particular, poderá ser
como mais adiante evidenciaremos, determinante para a
InCorporAcção/Somatização Precoce do Jogo, ou como sugere Marisa Gomes
(Anexo 5) para o seu “mapeamento”.
“O Futebol para a garotada que está começando, 6, 7, 8, 9 anos, que tenham
realmente tendência. Tem já ligação, que o Futebol nasce, então a gente tem é

308
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

que procurar se dedicar àquilo, com amor, com carinho. Procurar fazer bem,
procurar cada dia se corrigir, e por aí começam as coisas para o Futebol.” (Didi,
2006).
O prazer e a paixão pelo Futebol largamente incrementados pelo Jogo, são
fundamentais para a construção de Talentos. Motivo pelo qual consideramos
que tal como a elevada quantidade de relação com bola, também a presença
constante de Jogo(S), se revela um sustentáculo da Especificidade Precoce,
devendo este igualmente ser operacionalizado num clima de espontaneidade e
naturalidade, capaz de despertar a paixão e a vocação dos Talentos (Goleman,
2003).
Sendo a paixão e o prazer pelo Jogo determinantes, “já sabemos uma
maneira de não fabricar um Jogador: impondo a vocação.” (Valdano, 2007b).

6.5.3 – Um Talento Humano é um Competidor, a Resiliência como parte


da Qualidade:

“Os organismos vivos têm um potencial inerente para se superar a si mesmos a fim de criar
novas estruturas e novos tipos de comportamento. Essa superação criativa em busca da
novidade, a qual, no devido tempo, leva a um desdobramento ordenado da complexidade, parece
ser uma propriedade fundamental da vida”.
(Capra, 2005, pp. 278).

“O grande equívoco de muitos treinadores, digamos que mais teóricos, é que pensam que as
crianças de 7 ou 8 anos não querem ganhar. É um tremendo erro. Elas querem ganhar! Inclusive
mais que muitos adultos!”
(Cruyff, 2002, pp. 43).

No ponto anterior evidenciamos a necessidade das Crianças experimentarem


o Jogo, uma actividade que é de certa forma inerentemente competitiva
(Levitin, 2007), motivo pelo qual as Crianças deverão ainda precocemente
experimentar a Competição.
A Competição é para o Homem uma necessidade tão natural e vital, como
comer, dormir, jogar ou sentir-se querido, sendo através das situações
competitivas que a Criança se identifica consigo própria, desenvolve o seu

309
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

carácter, comportamentos e hábitos que em determinados momentos serão o


eixo da sua actuação em diferentes domínios (Wein, 2004).
Contudo, no Desporto instalou-se um pensamento generalizado segundo o
qual, ganhar, objectivo comum a todas as modalidades, deveria ser um aspecto
secundarizado, em detrimento da simples participação em competições, que
sendo assim orientadas, não deverão merecer tal designação. Trata-se de uma
utilização abusiva e deturpada do postulado de Pierre de Coubertin, que
sugeria para revitalizar os Jogos Olímpicos que “o importante é participar”.
“O grande equívoco de muitos treinadores, digamos que mais teóricos, é que
pensam que as crianças de 7 ou 8 anos não querem ganhar. É um tremendo
erro. Elas querem ganhar! Inclusive mais que muitos adultos!” (Cruyff, 2002,
pp. 43). Marisa Gomes (Anexo 5) salienta que somos sempre competitivos,
reforçando assim o facto do desejo de vencer estar presente em todas as
idades.
Verifica-se que muitos dos Jogadores de Futebol que atingiram níveis de
excelência (Platini, 2006b; Ronaldo, 2007, 2008; Zico, 2006), se revelam desde
muito cedo, pessoas muito competitivas e com objectivos muito bem definidos
para os seus percursos, aspectos que como realça Leandro Massada (Anexo
2) são determinantes. “Aquele indivíduo que não tiver objectivo não chega lá!”

“Toda a gente diz que não gosta de perder, eu também vou dizer, mas faço
para que isso não aconteça. A gente diz, «ah, eu não gosto de perder», mas
não faz para que isso aconteça. Eu faço o máximo para não perder. Claro que
não gosto de perder, odeio perder, mas faz parte, temos de saber perder
também.” (Ronaldo, 2008)
“Eu sempre tive a ambição de ser o melhor, eu digo que a minha profissão,
que eu não tenho profissão, digo que isto é uma bênção de Deus. Porque é
aquilo que eu gosto de fazer, é aquilo que eu mais gosto de fazer e claro, se é
isto que eu gosto de fazer, o que eu mais quero é ser o melhor (…) eu não vou
esconder que gostava de um dia ser o melhor, mais que uma vez. Quero deixar
marca, quero deixar a minha marca no Futebol, na história do Futebol. E acho

310
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

que se continuar assim, com a minha humildade, aprendendo, a querer sempre


aprender coisas, acho que se calhar um dia hei-de lá chegar.” (Ronaldo, 2007).
“Quem é que gosta de perder, penso que ninguém gosta de perder. Eu se
calhar fico um bocado mais irritado do que eles, mas não tenho culpa, isto já é,
já está no sangue, já é de família” (Ronaldo, 2007).

“Mais do que ninguém quando entrava dentro de campo eu era (…) ganhar
tudo, par ou impar eu queria ganhar já logo no início, quando tirava o cara e
coroa com os árbitros, e queria já ganhar, começar dali. Colectiva, brincadeira,
2 toques, a gente tem sempre que ganhar, buscar a vitória, correr atrás da
vitória dentro dos espíritos, do espírito da lealdade, do respeito pelas regras,
isso tudo” (Zico, 2006).

“Queria ganhar sempre.” (Platini, 2006b).

“Detesto perder, seja em que jogo for. Já quando era criança, jogava «futebol
de botão».” (Pelé, 2006c, pp. 258).
“Também sou muito competitivo – creio que é necessário ter uma veia
competitiva, se queremos competir ao mais alto nível.” (Pelé, 2006c, pp. 257).

Estas declarações evidenciam que o Homem é de facto, um ser


intrinsecamente competitivo, assim, mais do que tentar recalcar este traço que
lhe é tão característico será mais sensato, e desejável que lhe seja Ensinado a
Competir. Encontramos deste modo em conformidade com J. Bento (2004, pp.
75), o qual refere que “está aí bem colocado o dedo na ferida. A vida e a
sociedade actuais são muito criticadas por serem perpassadas pela
competição e esta é duramente vergastada por ser fonte dos males que
assolam aquelas. Eis um tremendo equívoco. A acusação deve voltar-se para
outro alvo. A competição é a base e pressuposto para a cooperação. Quem
não sabe competir não sabe cooperar. Seja entre pessoas, seja entre
instituições, cidades e países. Do que estamos carecidos é de uma sólida

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Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

aprendizagem da competição susceptível de enraizar profundamente uma ética


de jogo, do jogador e do competidor.”
O facto dos jovens serem intrinsecamente competitivos, faz com que se
sintam atraídos pelo fascínio despoletado pela Competição, na qual tanto o
risco de insucesso, como a possibilidade de êxito exercem um papel motivador,
capaz de colocar à prova a confiança individual num determinado domínio
(Lima, 1981).
São vários os autores (J. Bento, 2004; Gonçalves, 1991; Lima, 1981; Lopes,
2007; Lourenço & Ilharco, 2007; Maertens, 1999; A. T. Marques, 1993;
Mesquita, 2000; Michels, 2001; Pacheco, 2001; Wein, 2004) que salientam a
necessidade da Competição ser parte integrante do processo de Formação
desportiva das Crianças e jovens, facto que é igualmente corroborado por
Luísa Estriga (Anexo 3) e Marisa Gomes (Anexo 5).
Para Pacheco (2001) treino e Competição ao longo do processo de
Formação deverão constituir uma unidade. Em conformidade, Marisa Gomes
(Anexo 5) realça que sendo fundamental a Competição, torna-se essencial por
inerência o processo de treino, o qual visa preparar e gerir essa Competição.
Também Mesquita (2000) salienta que a Competição deverá ser parte
integrante do processo de Formação, pelo facto de representar o meio
preferencial de aplicação e avaliação das aquisições induzidas pelo treino, mas
também pelo facto, de preparar os jovens para novos desafios e dificuldades,
tanto no plano desportivo como no seu quotidiano. Valoriza ainda, a
importância das Competições serem uma fonte de prazer acessível a todos,
dando deste modo especial relevância à participação de todos. Também por
este motivo Luísa Estriga (Anexo 3) não tem dúvidas em afirmar que a
Competição é uma dimensão determinante, até pelos aspectos motivacionais
que comporta.
Pacheco (2001, pp. 44) salienta que os treinadores deverão incentivar o
desejo e o gosto pela vitória, uma vez que vencer, como realça é “uma
ambição de qualquer ser humano”, advertindo contudo para algo relevante,
quando acrescenta, que a vitória não deverá ser alcançada a qualquer custo. A
sobrevalorização dos resultados em idades mais precoces, não se afigura

312
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

conveniente ao desenvolvimento estável e sustentado dos Talentos no Futebol.


“No desporto de crianças e jovens também as competições são importantes,
sem que contudo, isso deva significar que a preparação seja orientada pela
necessidade de nelas obter o melhor rendimento.” (A. T. Marques, 1993, pp.
244). Entendemos que esta afirmação deve merecer alguns refinamentos,
assim, apesar de concordamos com o autor quando sugere que a Competição
nas idades mais precoces deve ser parte integrante do processo de Formação,
consideramos, que a preparação para uma actividade desportiva, no caso
Futebol, deve ter como referencial último “obter o melhor rendimento”, ainda
que não no imediato, mas sim à La Long. Contudo esta deve ser a meta,
Formar Jogadores que experimentando convenientemente os sentimentos de
tristeza, e de alegria aquando das derrotas e das vitórias, respectivamente, se
revelem no Rendimento Superior, Jogadores Campeões.
Michels (2001) denuncia que contudo este entendimento tem sido deturpado
pela exacerbação do resultado nas idades mais precoces, algo que se tem
verificado em vários países, contribuindo consequentemente para uma inibição
do desenvolvimento dos Talentos, especialmente os mais virtuosos e ofensivos
os quais são desde muito cedo, sacrificados pelos resultados. Também para
Pacheco (2001) o “vício” que é a pressão por parte de familiares e dirigentes,
no sentido dos jovens alcançarem precocemente resultados, estabelecendo
como prioridade a vitória a qualquer custo, é uma tendência também observada
nos treinadores, os quais lhe deveriam ser imunes.
Luísa Estriga (Anexo 3) denuncia que os problemas da Formação são bem
profundos, os quais não passam somente pela não existência de Modelos de
Jogo que sirvam de referencial aos processos, mas também pela não
existência dos respectivos Modelos de Treino, acrescentando ainda o seguinte:
“depois já não sei o que é que influencia mais o quê, se é o modelo de treino
que influencia mais o modelo de jogo, ou se é o modelo de jogo que influencia
mais o modelo de treino (…) ou se é a lógica de ganhar a qualquer preço…”
Destacando que um dos grandes problemas da Formação é, o resultadismo, o
querer ganhar a qualquer custo, proporcionando aos jovens um entendimento
deturpado da Competição, e como tal, uma formação irreal, incapaz de os

313
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

preparar para os problemas que o Jogo lhes colocará posteriormente em


idades mais avançadas.
O incentivo por parte dos treinadores no sentido de estimular nos Jogadores
o desejo de ganhar é legítimo, no entanto, devem preparar-se os jovens para a
derrota (Mesquita, 2000).
Gonçalves (1991) refere ser consensual aceitar-se, que a prática desportiva
competitiva, pode ser um espaço privilegiado para a socialização das Crianças
e dos jovens, advertindo contudo, que esse potencial se encontra intimamente
dependente da qualidade das situações que são criadas. Reforçando deste
modo a necessidade, de se ponderar devidamente que tipo de Competição
deve ser proporcionada às Crianças.
A questão das Competições dos mais jovens no Futebol praticado em
Portugal, tem sido menosprezada, motivo pelo qual nos podemos questionar
até que ponto tal não representará um afastamento cada vez maior das
Crianças relativamente à prática (Pacheco, 2001). Ainda segundo este autor, o
que se verifica é o decalcar na Competição que é dada a experimentar às
Crianças, do modelo vigente no Futebol adulto, não sendo ponderados
aspectos como a idade dos jovens, os seus níveis de Aprendizagem, ou ainda
os objectivos formativos a desenvolver, denunciando assim, a existência de um
quadro competitivo que não se coaduna com as necessidades das Crianças
que iniciam a prática de Futebol. Também Mesquita (2000) reforça a
necessidade dos sistemas de provas se ajustarem ao escalão etário dos
praticantes. O mesmo sucedendo com Luísa Estriga (Anexo 3), a qual salienta
que por exemplo no Andebol o Jogo praticado em Competição não se ajusta
aos escalões etários dos praticantes. Urge deste modo, pensar com rigor as
Competições, que devem ser proporcionadas aos jovens para um conveniente
desenvolvimento dos mesmos. “As competições deveriam ser para as crianças
como os seus sapatos: à sua perfeita medida”. (Wein, 2004, pp. 33).
Tal como defendemos relativamente ao Jogo, também a Competição dos
mais jovens deve obedecer, no respeito pelo ser que Joga, a Criança, a uma
lógica de Redução Sem Empobrecimento. Michels (2001) sugere que até a
Competição se realizar tendo como referencial o jogo formal, as formas

314
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

competitivas a utilizar deverão ser seleccionadas em função do nível das


Crianças, devendo estas passar pela realização de Jogos com diferente
número de Jogadores por equipa, sugerindo o Jogo de 4x4 como o ponto de
partida. O que face ao que dissemos anteriormente acerca da existência de
três ou mais elementos em interacção, nos parece um bom ponto de partida.
Segundo Cruyff (2002) a realização de torneios na Rua, em que a forma
utilizada é o 6x6, com a adopção de algumas regras que favoreçam o
desenvolvimento do Talento e a qualidade de jogo, tem-se revelado muito útil
enquanto alternativa ao Futebol de Rua. Em Portugal têm sido efectuados
alguns estudos (Cardoso, 1998; Carvalho & Pacheco, 1990; Pacheco, 2001)
que advogam a variante de Futebol de Sete como a mais aconselhável a
adoptar em quadros competitivos de iniciação.
Apesar de ser pretensão da UEFA tornar obrigatória a implementação do
Futebol de Sete desde o ano 2000, para escalões de sub 12 (Pacheco, 2001),
o que se verifica é que em Portugal, a prática competitiva de Futebol de 11 se
encontra ainda fortemente enraizada nos escalões de iniciação, sobretudo em
alguns distritos, por complacência das respectivas associações distritais de
Futebol. Uma vez que somos defensores de uma Competição, Reduzida Sem
Empobrecimento, consideramos ser necessário reformular os quadros
competitivos vigentes, procurando torná-los mais equilibrados e
consequentemente mais exigentes para todos, promovendo deste modo um
maior desenvolvimento do Talento. A Competição afigura-se inequivocamente
como um estímulo determinante para a exponeciação dos Talentos. Como
esclarece Marisa Gomes (Anexo 5), na Competição a equipa e os Jogadores
têm de dar resposta no momento, encontrando-se o lado emergente mais
presente, mais real e os seus efeitos sobre o que irá suceder naquele momento
muito mais relevantes. Dimensões que como acrescenta, são contudo
atenuadas e salvaguardadas, pelo menos em parte, pela existência de um
determinado padrão comportamental. Por este motivo, a nossa abordagem
relativamente à importância da Competição na Formação, não se cinge
exclusivamente, à necessidade de se reformularem os quadros competitivos

315
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

vigentes, é um pouco mais profunda, apelando deste modo a que a


Competição seja parte integrante do processo de treino.
Buzan (2003) salienta que a atitude de superação perante o fracasso e as
dificuldades, é um traço caracterizador dos Talentos. Em conformidade,
Leandro Massada (Anexo 2) realça que os Talentos apresentam um conjunto
de características, como a competitividade, a necessidade de ter objectivos, a
capacidade de superação, e a resiliência, que se revelam determinantes para
os níveis de desempenho que conseguem atingir.
De facto, parece ser um traço comum a vários Jogadores de Elite (Beckham,
2004; Eusébio, 2006; Maradona, 2005; Moreira & Moreira, 2006; Sabrosa,
2005; Zidane, 2006) a qualidade de resiliência, pois sendo as suas infâncias
marcadas pela adversidade, e por alguns episódios marcantes, directamente
relacionados ou não com o Futebol, o modo como lidaram e superaram tais
situações, revelou estarem dotados do verdadeiro entendimento de Competir,
aspecto determinante para a elevação das suas qualidades também no
Futebol:

“Tive uma infância óptima. Não tínhamos muitas coisas, talvez comêssemos
carne uma vez por mês, mas acho que foi melhor assim. Porque hoje, com
tudo aquilo que tenho, sou feliz e a grandeza não me sobe à cabeça” (Zidane,
2006).

“Talvez por isso, a separação dos meus pais tenha sido um dos episódios
mais difíceis que já tive de enfrentar em toda a minha vida. Para ser sincero,
ainda hoje tento superá-lo (…) já enfrentei vários problemas ao longo da minha
carreira e acho que sempre fui capaz de os resolver (…) sempre reagi aos
desafios enfrentando-os.” (Beckham, 2004, pp. 325).
“Sempre achei que devíamos estabelecer objectivos audaciosos para nós
mesmos” (Beckham, 2004, pp. 225).
“O United prometeu-me então que, se tudo corresse como previsto, poderia
assinar como profissional dentro de quatro anos e meio.

316
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Por acaso, eu até acho que esta incerteza nos fazia bem, a mim e aos outros
rapazes que entraram na mesma altura. Eu sabia que eles me queriam, mas
sabia também que seria posto à prova dentro dos próximos quatro anos. Se eu
soubesse desde o princípio que ser jogador profissional era um dado adquirido
– escrito num papel, preto no branco – quem sabe se não teria deixado
esmorecer a minha determinação em provar que merecia estar ali? Acho que
esta vontade acrescida de o provar contribui muito para o sucesso”. (Beckham,
2004, pp. 56/57).
“Uma vez, quando eu tinha dez anos, tive que sair a meio de um jogo por me
ter lesionado (…) o meu problema foi no calcanhar (…) tive de parar
completamente de jogar e de treinar. Não podia sequer dar uns toques no
parque. Aquelas foram as cinco mais longas semanas da minha vida”.
(Beckham, 2004, pp. 37).

“Vir para uma cidade tão grande como Lisboa, sem dúvida que era naqueles
primeiros tempos assustador, eu fazia praticamente sempre o mesmo caminho,
que era, estádio, escola, escola, treino e não fazia mais até ganhar confiança.
E no início foi assustador, mas depois foi passando, é claro havia muitas
saudades pelo meio, da minha mãe. Fazia sempre um choradinho à telefonista
do Sporting para me deixar telefonar todos os dias, porque nós éramos cerca
de 30 no centro de estágio, e podíamos telefonar só 2 vezes por semana,
naquela altura eu telefonava praticamente todos os dias, a senhora deixava-
me, e isso aí era importante, haver uma comunicação com a família. Sem
dúvida que da maneira como eu cresci, e os anos que eu tive na Formação do
Sporting foram importantes, porque vivi tudo e isso ajudou a ter também, a ver
de maneira diferente o futuro.” (Sabrosa, 2005).

“Eu me lembro da minha infância, não nasci num berço de ouro” (Eusébio,
2006).

“O meu pai! Nós quando jogávamos, éramos crianças, ele ía ao campo de


Futebol para nos apanhar porque meu pai não era de brincadeira não, batia,

317
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

quando ele não queria batia, e a gente não apanhava de chinelo nem de
paulada não, era de tala. Ele não queria que nós fossemos Jogadores de
Futebol, então nós colocávamos uns garotos amigos nossos, tomando conta
dos caminhos que levavam ao campo onde nós estávamos jogando, quando o
nosso pai vinha, para ver se estávamos jogando, eles vinham correndo avisar,
«olha seu pai vem aí», nós nos escondíamos, porque senão tínhamos que
apanhar.” (Moreira & Moreira, 2006).

“Olhou (Ronaldinho) para a mãe, vestida de luto, e para a irmã, triste e


silenciosa. Duas mulheres e ele. Roberto tinha a sua vida, era adulto. Mas ele
era uma criança, e a pessoa que mais apoiava os seus sonhos acabava de
morrer injustamente (…) O mundo mostrava-lhe o seu lado mais cruel e
amargo. Mas a terra não se abria para o tragar.” (Fabra, 2005, pp. 36).

“Se queremos vencer temos de saber como enfrentar o desafio. No desporto


como na vida há derrotas e há vitórias.” (Pelé 2006c, pp. 15).

“Tenho uma lembrança feliz da minha infância, mas se tivesse de definir a


Villa Fiorito, o bairro onde nasci e cresci, diria: luta. Em Fiorito se podíamos
comer, comíamos, e se não népia (…) A nossa casa era de três assoalhadas.
Era de ladrilho, um luxo (…) Quando chovia, tínhamos de andar a fintar as
goteiras, porque nos molhávamos mais dentro de casa do que fora. Quero
dizer que por outro lado, também tínhamos uma piscina. Não tínhamos era
água (…) conto isto para que saibam que há muitas famílias obrigadas a viver
desta maneira e, já agora, para reconhecer que me serviu de experiência.”
(Maradona, 2005, pp. 15/16).
“A raiva era para mim um combustível.” (Maradona, 2005, pp. 263).

A qualidade de resiliência das pessoas, tem vindo a tornar-se numa área de


investigação de interesse crescente (Bouteyre, 2008; Carla Antunes, 2006;
Cyrulnik, 2003; Davidson & Irwin, 1999; Goleman, 2003, 2006; Machado,
2006). Trata-se contudo, de um conceito originário da Física dos Materiais (P.

318
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

S. Santos, 2006), que no entanto foi adaptado pela Psicologia, podendo


considerar-se como a capacidade de recuperar de eventos traumáticos
(Cyrulnik, 2003). Apesar de se tratar de um conceito que pode ter diferentes
definições (Bouteyre, 2008), pode considerar-se como a capacidade revelada
pelos sujeitos, de se restabelecerem após situações adversas, mantendo
apesar de tudo, um funcionamento normativo (Goleman, 2006; Machado,
2006), sendo uma qualidade que deve ser fomentada ao longo do processo
ontogenético, ligando-nos sem cessar com o meio envolvente (Cyrulnik, 2003).
Goleman (2006) salienta que a resiliência é uma qualidade que pode ser
desenvolvida precocemente nas Crianças, salientando que se não formos
preparados para lidar com as vicissitudes da Vida, estaremos a crescer
emocionalmente mal preparados. Em conformidade, Bouteyre (2008) preconiza
a necessidade de encorajamento da resiliência no contexto escolar. Motivo
pelo qual consideramos pertinente, que tal encorajamento se verifique também
nos locais em que decorrem os processo de Formação.
Goleman (2006) realça também, que o contexto familiar que envolve o jovem
é muito importante para a manifestação de resiliência face à adversidade. Uma
rede de suporte com recursos pessoais proporcionada às Crianças, é
fundamental para que estas consigam lidar convenientemente com a
adversidade (Carla Antunes, 2006; Machado, 2006). Daqui se depreende a
importância do treinador, assim como de todos os demais que interagem com a
Criança durante a sua Formação.
Importa contudo ter em consideração, que ser resiliente não significa que os
traumas sejam inócuos para os indivíduos (Machado, 2006), motivo pelo qual
as Crianças deverão ser preparadas e educadas, para retirar da adversidade
ensinamentos válidos.
“O segredo não está em evitar as inevitáveis perturbações e frustrações da
vida, e sim em aprender e recuperar delas (…) Esta capacidade, como
acontece com tantas outras na vida social, começa na infância.” (Goleman,
2006, pp. 256). Motivo pelo qual consideramos pertinente que os processos de
Formação contemplem a possibilidade de desenvolvimento precoce da
resiliência, uma qualidade que se releva determinante no domínio desportivo.

319
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Karpov (s/d, cit. por Valdano 1998, pp. 168) referia que a sua “força mental”,
provinha da sua infância que havia sido “duríssima”.
Ainda de acordo com Goleman (2006, pp. 269), o contexto de superprotecção
em que as Crianças se desenvolvem na actualidade, é para elas uma forma de
privação; “a ideia de que a criança deve evitar a infelicidade a todo o custo
distorce tanto as realidades da vida como a maneira como as crianças
aprendem a encontrar a felicidade.” A prova de tal evidência é o relato
supratranscrito de Moreira & Moreira (2006), os quais se sujeitavam à
intolerância do pai, para poderem ir de encontro à felicidade, a qual tinha lugar
num campo de Futebol com os amigos. A evidência efectuada por Goleman
(2006) reforça também a nossa convicção, de que a resiliência deve ser
potenciada pelo contacto dos jovens com o Futebol, ao longo dos respectivos
processos de Formação através da exposição destes a cenários de
Competição, formalizada ou no local de treino.
Importa ter em consideração que “a resiliência numa determinada situação
não é necessariamente demonstrada ao longo do tempo ou transferida para
outras situações de desafio” (Carla Antunes, 2006), o que confere um carácter
contextual e específico a esta potencialidade. Assim, sabendo que a resiliência
se deve desenvolver precocemente (Goleman, 2006) e que esta parece ter um
carácter específico (Carla Antunes, 2006), deverá ser também considerada
como um traço caracterizador da Especificidade Precoce. Um processo de
Formação, que visa desenvolver Talentos Competitivos, com Cultura de vitória,
até porque, “o instinto competitivo é fundamental para vencer” (Lourenço &
Ilharco, 2007, pp. 27), no qual o Princípio da Especificidade (Especificidade
Precoce) deve dirigir todo o processo procurando como tal, recriar-se nos
treinos a Competição (Frade, 1998).
A Especificidade Precoce tem necessariamente de contemplar a Competição,
a qual deverá ser entendida como um conceito plural. “Eu tenho alguma
dificuldade, em imaginar um treino em que não tenha competição, um exercício
que não tenha competição.” (Luísa Estriga, Anexo 3).
Para tal, as actividades propostas nos treinos deverão ser imbuídas de um
cariz de Competição permanente, capaz de promover nas Crianças uma

320
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

constante necessidade de superação, à semelhança do que sucedia nas


brincadeiras que os Talentos realizavam e realizam:

“Eu e os meus companheiros, de vez em quando fazemos competições nos


Treinos” (Ronaldo, 2008)

“… e depois há uma coisa, mais tarde, é pá, um gajo começa a ver, é que
nós apostávamos castanhas (…) eu dava 10 toques numa bola do ténis, e o
outro nada, é pá, então com o pé esquerdo e foi sempre, fomos ganhando a
técnica.” (Eusébio, 2006).

“No caminho para casa era o concurso de toques. Todos os dias tentava
superar o meu record. Chegado a casa era comer à pressa para que o intervalo
no jogo não fosse prolongado.” (Sousa, 2006).
“Desafiava-me, tentando sempre superar a minha classificação. Quando se
tornava fácil e o desafio era superado, logo criava um novo. Então, a bola tinha
de ir ao telhado e eu, sem a deixar cair, rematava para os pontos. Se a bola
caísse não contava! O desafio seguinte foi colocar-me de costas viradas para a
baliza” (Sousa, 2006).

Parece face a estas declarações evidente, que para que se proceda a um


conveniente enriquecimento ao nível da Aprendizagem, e do desenvolvimento
cerebral, se torna determinante que as tarefas propostas se constituam como
desafios, para os quais o cérebro se encontra preparado para resolver, se
simples e concretos, desde o primeiro ou segundo ano de Vida (Jensen, 2002).
A apresentação do exercício como desafio, ou seja, como Competição,
AutoHeteroSuperação, é importante para o Talento emergir, visto que é face à
adversidade que o Jogo coloca que este desperta em toda a sua dimensão
(Valdano, 1998). É esta dimensão da AutoHeteroSuperação, que “dá pica” à
Competição e que consequentemente por a incitar, faz crescer e exponenciar o
Talento das Crianças (Marisa Gomes, Anexo 5).

321
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Schinke & Jerome (2008) salientam que se encontra suficientemente


comprovado que no domínio desportivo, os Talentos aumentam as suas
performances em situações de adversidade competitiva. “O talento sente
necessidade de desafio”, funcionando a necessidade de superação como o seu
“doping” (Marisa Gomes, Anexo 5).
Não obstante a necessidade das tarefas propostas nos treinos, serem
desafiadoras, o treinador deverá calibrar o nível de exigência ao nível dos
Jogadores, sob pena do desafio ser excessivamente exigente, promovendo
assim o fracasso permanente e consequente desmotivação na Criança (A.
Marques, 2005). Tornando-se assim também a este respeito necessário o
sentido da divina proproção. Davidson & Irwin (1999) advertem para tal
necessidade, quando salientam que Aprender a ser resiliente implica que as
Crianças sejam expostas a níveis de ameaça e de tensão, que sejam capazes
de dominar. “Os altos e baixos dão sabor à vida, mas precisam de ser
equilibrados.” (Goleman, 2003, pp. 76).
Concluímos deste modo que o “sofrimento”, no Futebol, também pode ser
uma escola (Valdano, 1998), desde que na devida proporção. Relembramos
que Goleman (2006, pp. 269) afirma que “a ideia de que a criança deve evitar a
infelicidade a todo o custo distorce tanto as realidades da vida como a maneira
como as crianças aprendem a encontrar a felicidade.” Como tal, não se trata de
um paradoxo ou contrasenso sugerir a necessidade de superação, de
resiliência e de espírito de sacrifício, depois de enaltecermos a importância do
prazer, para o desenvolvimento dos Talentos, pois as Crianças reconhecem
tacitamente que a superação é uma das mais dignas formas de prazer.
Tal como Pacheco (2001) também não somos apologistas da frase «o que
importa é participar, não é ganhar». Ser competidor desonesto no Desporto
consiste em não tentar ganhar (Maertens, 1999).
Em nosso entendimento, uma correcta Formação de Talentos deve ter como
premissa o seguinte postulado; ganhar e perder são dois resultados possíveis,
que devem ser ensinados pelo Desporto, mas Desporto é, fazer tudo para
ganhar!

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Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Os problemas não radicam deste modo na Competição, mas sim nas


distorções que se lhe colocam pelos adultos, os quais conferem à Competição
dos jovens uma excessiva carga psicológica, e clima de tensão, antes, durante,
e após, exacerbando-se os resultados, expondo os jovens à angústia da
derrota e à alegria desmedida das vitórias, sobrevalorizando-se os resultados
desportivos em detrimento de objectivos formativos (Pacheco, 2001).
A solução passa deste modo, por contemplar ao longo do processo
Competições ou desafios devidamente calibrados, capazes de testar e de
conferir estabilidade e maturidade ao Talento em potencial. Os desafios são
parte integrante da Vida, e também do Futebol, como tal não deverão ser
escamoteados. Fazê-lo é abstractizar a Formação.
Se o objectivo da Formação é preparar os Talentos, para as exigências que
encontrarão no futuro, na Competição que é a Vida, para a Competição a nível
de Rendimento Superior, e para o abandono desta, um momento que se revela
geralmente exigente ao nível da resiliência (Sobrinho Simões, Anexo 1), a
Competição nos mais jovens tem de ser uma constante, ainda que com
adaptações (regras, dimensão dos espaços de Jogo, número de Jogadores…)
relativamente à Competição dos adultos, apresentando-se deste modo
Reduzida Sem Empobrecimento. O Útero Artificial deverá deste modo, ser
nutrido por um clima altamente desafiador, onde a superação daqueles que
nele fazem as suas gestações tem de ser permanente. Só deste modo,
entendemos ser possível “aprender a jogar como se fosse um treino e a treinar
como se fosse um jogo” (Pacheco, 2001, pp. 123).

323
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

6.5.4 – Formando Talentos e não «atletas guerreiros», a importância de


separar por níveis:

“Se colocarem um menino que joga muito bem Futebol com meninos que jogam muito mal, pode
meter dez golos num jogo, mas não vai aprender. O homem cresce ao nível das dificuldades que
encontra, o mesmo sucede quando colocamos alguns rapazes a jogarem ao lado de grandes
jogadores, melhoram.
Quando se joga ao lado dos medíocres, não se evolui. Daí que o talento necessite de outros
talentos para se poder desenvolver.”
(Valdano, s/d, cit. por, Venda & Marques, 2002).

A problemática da selecção de Talentos desportivos, tem vindo a ganhar


interesse crescente nas últimas décadas, verificando-se uma tendência para se
efectuar uma abordagem multidisciplinar, congregando diferentes áreas
científicas em torno do tema. Contudo constata-se, que apesar desses
esforços, não foi ainda possível encontrar um sistema capaz de predizer a
evolução dos Talentos, com base nas características físicas ou psicológicas
dos jovens praticantes, não estando ainda provada a existência de qualquer
tipo de sistema de detecção, técnica e cientificamente consistente (Serpa,
2006).
Em Portugal a questão da selecção de Talentos em idades precoces tem
vindo a ser estudada no domínio desportivo, atribuindo-se aos professores de
Educação Física, um papel de relevo nesta tarefa (A. Marques, 1991). No
entanto, parece observar-se na selecção de potenciais Talentos no Futebol, a
existência de uma grande obsessão da parte dos treinadores, por Jogadores
fisicamente fortes, independentemente das respectivas qualidades e potencial
de evolução enquanto Jogadores de Futebol (Pacheco, 2001). A selecção de
Talentos, entendendo-os como uma realidade em potencial a ser desenvolvida,
obriga a que não se façam análises imediatistas aquando da selecção dos
mesmos, devendo antes, privilegiar-se uma perspectiva que olhe mais além, a
mais longo prazo. Advertimos por isso e com base nas palavras de Marisa
Gomes (Anexo 5) que “ninguém, consegue entender ou perceber e olhar e ver
um talento se não perceber o jogo. Sobretudo na formação.”

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Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

A preferência por Jogadores com um determinado perfil morfológico, mais


atlético, leva á sobrevalorização de Jogadores vulgares com reduzida
Criatividade, mas capazes de cumprirem criteriosamente as orientações dos
treinadores, preferindo-se assim a rigidez e a disciplina no cumprimento das
suas funções, à adopção de uma atitude de liberdade responsável (J. Valdano,
1998). Como consequência desta tendência, verifica-se um investimento de
tempo excessivo a hiper-solicitar jovens atleticamente mais dotados que
posteriormente acabam por abandonar a modalidade, em detrimento de outros
com maiores potencialidades, e que mais tarde poderão vir a revelar-se os
Jogadores de Futebol do futuro (Pacheco, 2001). Tani (2002) adverte que no
domínio desportivo, especialmente em modalidades abertas em que existe
interacção com um objecto, o mais importante para a qualidade dos
desempenhos, não é a força mas sim o “jeito”.
A existência deste embuste desfasado no tempo, no qual são valorizados os
Jogadores abnegados, ainda que com pouco discernimento e familiaridade
com a bola continua profundamente enraizado no Futebol português,
parecendo remeter-nos para aquela que é a história da nossa nação,
sustentando-se uma vez mais que o Futebol é um Fenómeno
AntropoSocialTotal. “No processo de construção da memória de um povo
(português) guerreiro e cioso da sua independência, que resiste ao invasor,
manifestamente anacrónica, diga-se, usando de uma forma selectiva a
memória, valoriza-se a dimensão guerreira e a resistência” (Fabião, 2007, pp.
80/81).
Parece deste modo necessária uma alteração, na forma de entender aquilo
que verdadeiramente se torna pertinente considerar na selecção de um Talento
no Futebol. Urgindo deste modo, em nosso entendimento a necessidade dos
clubes criarem os seus próprios referenciais de selecção, devendo estes ir de
encontro àquilo que os clubes consideram ser mais ajustado para as
respectivas Concepções de Jogo. Atendendo-se deste modo ao Binómio
Unitário Concepção de Jogo – Concepção de Jogador.
Se o Futebol não fosse tão democrático quanto é, permitindo que todos o
pratiquem, muito provavelmente nunca teríamos tido a hipótese de observar

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Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Jogadores como Maradona, Rui Barros, João Pinto, Romário (Pacheco, 2001)
entre muitos outros como Puskas, Platini, Nené, Zico, Pelé, Maradona, Messi,
Fabregas, Garrincha, ou até o Liedson… cujos perfis morfológicos, eram ou
são a antítese do protótipo do Atleta38, que muitos treinadores continuam
erroneamente a perseguir:

“Esse ser morfologicamente arredondado, com um centro de gravidade muito


baixo escondia, porém, uma assombrosa agilidade que, desenhada por um
mágico pé esquerdo, atingia em poucos metros de terreno uma velocidade de
tal forma estonteante que parecia capaz de, com a bola dominada, atravessar
todo o campo num abrir e fechar de olhos, só parando quando o couro
encontrasse o aconchego das redes. O seu nome era Ferenc Puskas.” (Lobo,
2002, pp. 82).

“No início ninguém imaginava que faria uma carreira daquelas. Era baixo.
Fisicamente, em relação aos miúdos da mesma idade, era franzino, mas isso
obrigou-o a melhorar o seu driblar. Foi assim que começou. O pai ensinou-o a
dar pontapés na bola.” (Platini, 2006b).
“Durante algum tempo, o Clube de Futebol do Metz recrutou jovens. Eles
tinham de se inscrever, eram reunidos e os melhores eram seleccionados; é
claro que ele (Platini) foi escolhido. Fizeram-lhe vários testes físicos. Um dia,
após uma longa corrida, pediram-lhe que soprasse para um espirómetro e ele
desmaiou.” (Frederic Bragard in Platini, 2006b).
“Platini, versão de Asterix como jogador de futebol.” (Lobo, 2002, pp. 195).

38
Atleta: consideramos que este conceito, por se encontrar conotado historicamente com perfis
morfológicos, ideias de força e de robustez física, assim como a modalidades cuja essência
difere substancialmente do Futebol, não faz muito sentido numa modalidade como o Futebol,
em que a Antropodiversidade deverá ser assegurada. Sugerimos por isso, a utilização de
termos como Jogador de Futebol ou Futebolista. Quando nesta dissertação nos referirmos ao
termo Atleta, pretendemos evidenciar o entendimento padronizado do perfil morfológico, que
convencionalmente se lhe encontra associado.

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Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

“… É verdade, eu também sentia isso. Parecia que havia uma regra segundo
a qual o melhor jogador era o mais aplicado, o mais forte, potente e lutador. Se
tudo isso fosse mesmo imprescindível, nunca teria sido jogador de futebol. Não
me atirava para o chão porque não era preciso; não ía ao choque se
percebesse antecipadamente que ía ficar sem bola; não corria atrás de lances
perdidos, nem fazia carrinhos inúteis pela linha lateral só para agradar aos
adeptos (…) Não me metia em confusões que só serviam para me
desconcentrar. Tinha mais que fazer. Andava por ali, avaliava os movimentos
dos adversários, procurava detectar os pontos fracos e, como não entrava no
jogo deles, não ía em provocações ou picardias, estava sempre no sítio certo
para marcar os meus golos e cumprir com aquilo que me pediam. Sempre
considerei que, para lá de um pormenor insignificante, não sujar os calções era
uma prova de inteligência.” (Nené, 2007).

“Zico, irmão de dois prestigiados jogadores dos anos sessenta, Edú


(América) e Antunes (Fluminense), começou no Flamengo. Aos quinze anos
media 1,55 metros e pesava 33 quilos; ninguém podia imaginar que essa figura
esmirrada dividiria a história do clube em a.Z. e d.Z. (antes de Zico e depois de
Zico), e que seria o melhor jogador durante as décadas de setente e oitenta.”
(Valdano, 2002, pp. 18).

“Para ele o corpo é geografia do escamoteamento, nunca lugar de colisão.


Quando Rui Barros se apresentou na senhorial Juventus, alguns adeptos
questionaram-se como faria, com esse tamanho, para jogar com os grandes. O
pequeno português da aldeia de Santa Marta, a quem todos os calções ficavam
grandes, terminou a época como melhor marcador da equipa, com doze golos,
mais seis que Laudrup, oito mais que Altobelli, mais dez que Zavarov (…) A
grande potência concentrada em seu corpo de 58 quilos, com uma distância de
meio centímetro para chegar ao metro e sessenta (159,5 centímetros de
altura), levou ao apelido de Formiga Atómica, com que é conhecido em Itália e
Portugal.” (Valdano, 2002, pp. 169).

327
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

“Era um magricela, com menos de 60 quilos” (Pelé, 2006c, pp. 68).

“(Cruyff) Era um monte de ossos vestido de vermelho e branco por entre


gigantes.” (Lobo, 2002, pp. 143).

“Ronaldo tinha nove anos e jogava com rapazes de dez e de onze. Era o
«benjamim» do grupo. Mas também era o melhor jogador da equipa, o que os
tornava diferentes, o que lhes dava aquela qualidade especial, e eles sabiam-
no.” (Fabra, 2005, pp. 43).

“Giampero Boniperti (…) tinha dito que alguém com um físico como o meu
não podia ir a lugar nenhum. Bem, a algum lado cheguei, não? O futebol é tão
lindo, tão incomparável, que tem lugar para todos. Até para os anões como eu.”
(Maradona, 2005, pp. 87).

“Fui lá treinar, fiz um pré-época espectacular, altura em que o FC Porto


dispensou dezenas de jogadores que recebia à experiência, e eu fui ficando
nos iniciados B, que era o meu escalão. Certo dia, no final de um jogo contra
os iniciados A, em que eu fiz um grande jogo e ganhamos 4-1, vieram ter
comigo e disseram que eu tinha muito talento, mas era muito baixinho e eles
estavam a apostar em jogadores mais fortes fisicamente. Fiquei para morrer
(…) como era possível num clube que tinha tido no Rui Barros uma das suas
maiores referências da história tomarem uma decisão com base no argumento
do tamanho!” (Ricardinho, 2007, in Brás, 2007, pp. 14).

“… Eu era um magricela. Por muito que comesse, enquanto cresci não


engordava nem um bocadinho.” (Beckham, 2004, pp. 28).
“No início da minha carreira no United, houve dúvidas quanto ao facto de eu
algum dia vir a ser suficientemente robusto para jogar na equipa principal (…)
Contudo, apesar do que se pudesse dizer, eu não me preocupava com a minha
altura. Aliás, estava convicto de que isso nunca me empataria. Eu sempre
jogara contra marcadoras maiores e mais fortes” (Beckham, 2004, pp. 86).

328
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

“O anjo das pernas tortas, como um dia escreveu Vinicius de Morais. Era o
desequilíbrio perfeito a jogar futebol. Um enigma para muitos médicos para
quem Garrincha nem devia poder andar, quanto mais correr e fintar, como
nenhum outro fez na história do futebol mundial (…) Garrincha era a negação
do corpo de atleta” (Lobo, 2002, pp. 114).

Com base nestas evidências, reconhece-se razão às palavras de Zico (s/d,


cit. por Lobo, 2002, pp. 239) o qual afirma ser “mentira que para jogar futebol
se tenha de ter nascido atleta”.
Deste modo, e atendendo ao que já referimos relativamente à presença de
Antropodiversidade no Futebol, um aspecto que torna o Futebol tão lindo e
incomparável (Maradona, 2005), não nos parece ajustado que a selecção de
Talentos, se faça com base nos indicadores antropométricos dos jovens ou
pelo seu perfil morfológico.
“Agora escolher morfótipos para o futebol é um erro (…) eu acho que neste
momento é um erro, e as escolas portuguesas têm feito isso, eliminar
indivíduos baixos ou relativamente baixos no Voleibol e Basquetebol. Acho que
é um erro. Nós devemos aproveitar as nossas características genéticas e
depois melhorá-las substancialmente (…) Aí, o papel do treino é fundamental.”
(Leandro Massada, Anexo 2).
Entendemos deste modo, que o Talento não se avalia nem a quilo nem a
metro (Pacheco, 2001), nem tão pouco através do bilhete de identidade.
Havendo assim a necessidade de encontrar um critério que permita que a
diferenciação tenha em consideração que o que se pretende, é colocar os
jovens perante estímulos competitivos ajustados, tanto de treino como de
Competição nos quais estes se possam desenvolver convenientemente.
A idade cronológica como critério utilizado para agrupar jovens desportistas,
tem colocado algumas objecções, sendo a alternativa mais sugerida, o recurso
à idade biológica dos jovens (Pacheco, 2001; Silva et al., 2004).
De acordo com Pacheco (2001) os principais erros cometidos na detecção de
Talentos resultam das diferenças entre as idades cronológica e biológica dos
jovens. Contudo, apesar de ser louvável o esforço destes autores no sentido de

329
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

sugerirem uma alternativa à idade cronológica, também esta parece não ser a
mais indicada, além de implicar custos consideráveis e utilização de
metodologias invasivas para uma correcta determinação da idade cronológica
dos jovens (Silva et al., 2004), podendo mesmo a sua utilização revelar-se uma
utopia, por não conseguir dar resposta às diferenças genéticas existentes entre
diferentes grupos populacionais, facto mais marcante na África equatorial, onde
a maturação óssea, indicador utilizado para determinar a idade biológica,
relativamente a outras etnias inclusive do mesmo continente, se observa em
idades consideravelmente mais precoces (J. L. Massada, 2003).
Aceitamos deste modo, que se continue a utilizar a idade cronológica como
indicador para estabelecer diferentes escalões competitivos, pelo maior
comodismo que representa, e maior facilidade processual.
Foi por nós salientada no ponto anterior a necessidade do desafio ser parte
integrante do processo de exponenciação de Talentos, motivo pelo qual,
iremos sugerir de seguida, que o estabelecimento de grupos de treino de
qualidade equilibrada se torna pertinente. Relativamente a este aspecto, se ao
nível das Federações e Associações de Futebol se torna tarefa difícil, arbitrária
e ainda mais utópica, a separação dos Jogadores por níveis de qualidade de
Jogo, que a diferenciação com base na idade cronológica, entendemos que a
nível interno, cada clube deveria se responsabilizar por seleccionar, agrupar e
diferenciar os seus jovens por níveis, tendo sempre como referência o perfil de
Jogador ou melhor dizendo de Jogadores que pretendem Formar, em função
da forma de jogar para a qual pretendem preparar os seus Talentos,
Especificidade Precoce.
Lopes (2007) sustenta a necessidade de separar os Jogadores por níveis ao
advertir, para a necessidade de nos treinos as forças em confronto serem
equilibradas. O que tendo em consideração também as palavras de Valdano
(s/d, cit. por, Venda & Marques, 2002) que sugerem, que os Talentos
necessitam de outros Talentos para se desenvolverem, sustenta ainda mais a
nossa proposta. Esta nossa sugestão é também apoiada por Michels (2001) o
qual considerava desejável colocar os Jogadores mais evoluídos, de uma
determinada idade, perante um nível de Jogo mais complexo, pois como

330
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

defende os critérios mais relevantes são a atitude em jogo e aquilo a que


designa de “soccer-age”, e não o calendário. Em conformidade Cruyff (2002),
considera ser um erro conceptual, esperar demasiado tempo até que os jovens
subam de escalão, devendo o indicador mais plausível para se agruparem
Jogadores, ser não a idade mas sim a qualidade. Acrescenta ainda, que
sempre que um jovem revelar qualidade para integrar o escalão acima,
independentemente da idade, deverá fazê-lo para melhorar ainda mais e evitar
o perpetuar alguns dos maus hábitos (excesso de individualismo) que vai
adquirindo pela sua superioridade, servindo-lhe simultaneamente como desafio
e estímulo. Justificando esta posição, com a sua própria experiência enquanto
Jogador, reconhecendo o quanto lhe foi útil jogar em escalões superiores
àqueles a que teoricamente deveria pertencer. O que se observa, e quanto a
nós suporta ainda mais a necessidade de separar por níveis, é que muitos dos
Talentos confirmados do Futebol (Beckham, 2004; R. Costa, 2006; Maradona,
2005; Pelé, 2006b, 2006c; Ronaldo, 2007; Sabrosa, 2005; Tostão, 2006),
passaram por situações semelhantes às experienciadas por Cruyff (2002),
tanto em clubes, como nas suas práticas mais espontâneas na Rua, sendo
este facto reconhecido por alguns como determinante.

“Eu comecei a jogar à bola na rua (…) e só mais tarde, é que comecei a jogar
no campo com os mais velhos, que começaram a deixar-me entrar, a pouco e
pouco, porque normalmente nesses jogos de rua ou de campo, também os
mais novos ficam sempre de parte, eles é que são os melhores, e eu tive a
felicidade de eles me poderem deixar entrar pouco a pouco, e então aí acho
que também foi importante no meu crescimento, como futebolista.” (Sabrosa,
2005).

“Agora que há tantas complicações com isso das idades (…) devo dizer que
comigo se passou a mesma coisa, mas ao contrário. Tinha doze anos, menos
três do que os meus colegas, mas o Francis mesmo assim punha-me no
banco. Se as coisas corriam mal, obrigava-me a jogar.” (Maradona, 2005, pp.
22).

331
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

“… Eu era um magricela. Por muito que comesse, enquanto cresci não


engordava nem um bocadinho. E quando jogava futebol mais pequeno devia
parecer porque, ou jogava com o meu pai e os seus amigos, ou jogava num
jardim perto de casa – Chase Lane Park – com rapazes que tinham o dobro da
minha idade. Não sei se seria por já jogar bem, ou se era porque faziam de
mim o que queriam e eu acabava sempre por voltar, a verdade é que todos os
dias, depois da escola, apareciam à porta: «Sra. Beckham? Deixa o David vir
jogar à bola no parque?»” (Beckham, 2004, pp. 28/29).
“Penso que o facto de ter jogado sempre com jogadores maiores e mais
fortes me ajudou bastante na minha carreira.” (Beckham, 2004, pp. 31).

“Eu fui prestar provas para o Benfica com outros 500 miúdos. O nome do
treinador era Eusébio. Estes 500 miúdos iam ser avaliados durante 10 minutos
(…) 10 minutos para cada um dos 22 jogadores. Eu fiz as provas e ao fim de
10 minutos tinha tocado duas vezes na bola. O Eusébio chamou-me e disse:
«volta amanhã.» Dos 500 miúdos que prestaram provas, eu fui o único que
passou e no dia seguinte comecei. No primeiro dia, comecei logo a treinar com
a equipa principal. Só me apercebi disso no fim do treino. Não compreendia
nada.” (R. Costa, 2006).

“Jogava sempre com os mais velhos, isso também, fez com que crescesse
mais e não ter medo de estar sempre no meio deles.” (Ronaldo, 2007).

“Eu tenho uma lembrança muito marcante na minha vida. Com sete anos de
idade, havia um team de Futebol do bairro (…) E com sete anos esse team foi
jogar, contra o team do Atlético, na categoria. O Atlético Mineiro, no estádio do
Atlético, então era uma glória para a equipa do bairro jogar no campo do
Atlético. E eu fui, assistir ao jogo, não fui para jogar porque eu era, tinha sete, o
mais novo depois de mim tinha doze, treze anos, uma diferença muito grande
(…) faltou o ponta esquerda aí me colocaram para jogar no meio dos
grandalhões. E eu entrei como ponta esquerda nesse jogo, eu tenho inclusive
essa fotografia, a faixa, tinha uma faixa horizontal na camisa, que não aparecia,

332
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

caía debaixo do calção. E eu entrei nesse jogo, e nós ganhamos de dois a um,
eu dei o passe para o primeiro golo e fiz o segundo golo.” (Tostão, 2006).

“Quando nós chegamos aqui em Santos, o primeiro treino como falei para
você, com 15 anos eu treinei, para integrar a team de baixo para ver qual era a
minha capacidade, contra o team principal, era o Formiga na época, o Zito, o
Álvaro (…) e eu dei um chapéu no Formiga (…) eu acho que foi isso que me
fez o contrato”. (Pelé, 2006b).
“Pensava que iam testar-me com jogadores da minha idade, mas não o
fizeram. Lançaram-me às feras, fui colocado entre os profissionais (…) Não
tinha medo, já tinha jogado com adultos em Bauru e não estava intimidado.”
(Pelé, 2006c, pp. 67/68).

As declarações que se encontram acima evidenciam, não somente a


pertinência dos Jogadores serem agrupados por níveis, mas também a
importância de ao longo do processo de Formação os Talentos, desde idades
precoces, estabelecerem contacto com o desafio que é, submeterem-se às
exigências do Futebol dos mais velhos. Esta evidência leva-nos a sugerir, que
além de separar por níveis é igualmente importante que nos pretensos Úteros
Artificiais, se realizem Competições inter-escalões e ainda, com equipas
constituídas por Jogadores de escalões diferentes. Em termos processuais,
não verificamos quaisquer incompatibilidades, uma vez que se o processo for
norteado pela Especificidade Precoce, o padrão de jogo tal como a sua
operacionalização serão comuns, ainda que contemplando ligeiras nuances,
logo os Jogadores ainda que de nível diferente estarão à partida em sintonia.
Aculturados num registo comum, e como tal conseguirão jogar o mesmo jogo.
A Especificidade Precoce reconhece deste modo, e depois do que fomos
sugerindo neste ponto, mais alguns ingredientes que consubstanciam a sua
qualidade, nomeadamente, a necessidade dos Talentos serem seleccionados
com base nas suas qualidades e potencialidades para o Futebol, devendo
contudo, essa selecção encontrar-se referenciada por um Modelo de Jogador
capaz de respeitar a Antropodiversidade e em consonância com o Modelo de

333
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Jogo para o qual se pretendem preparar os Talentos ao longo dessa


Periodização à La Long. Para que o reconhecimento do Talento se faça, o
papel do treinador ou dos responsáveis pela prospecção é determinante. De
acordo com Marisa Gomes (Anexo 5) “os talentos não se restringem aos
jogadores”, sendo determinante “reconhecer a singularidade dos jogadores” e
ainda analisar as suas acções tendo em consideração não somente os
comportamentos directamente observáveis, mas sobretudo o que lhes está
subjacente, as intenções.
Salientamos ainda neste ponto, a necessidade de separar por níveis e de
fomentar a Competição interna, sendo estes igualmente ingredientes que
sustentam a Especificidade Precoce e que poderão contribuir, para uma maior
qualidade dos pretensos Úteros Artificiais.

6.5.5 – A Variabilidade dentro da Qualidade:

“Um mote para o imiscuir do adulto …


Um desejo, uma vontade … motivação?
ou ilusão?
O Futebol que «todos» pedem …
p’ra fazer a sudação!
Mas, se ele for explorado … jogado,
Com mais bolas, até no chão …
Cruzado, falado, calado, «minguado»
Com todo-o-corpo que são
Com bolas que dele não são …
Só «do ar» a conclusão …
«de costas» utilizado,
e porque não?
Será que assim tão «maltratado»,
Não será mais construção?”
(V. M. d. C. Frade, 1976, pp. 32).

Temos vindo a salientar que a variedade de estímulos, “variabilidade cultural”


(Marisa Gomes, Anexo 5), relacionados com o contacto com a bola em idades
precoces é um aspecto de enorme relevância, para o alcance de desempenhos
de eleição no Futebol. De acordo com H. Fonseca (2006), estudos recentes

334
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

contrariam a concepção antiquada que sugere, que para uma conveniente


evolução num determinado domínio desportivo seria aconselhável reduzir-se
ou eliminar, a variabilidade contextual, resultante das condições materiais e
espaciais existentes, ou por vezes inexistentes, nas práticas que os Talentos
desenvolviam no passado. O mesmo autor acrescenta ainda, que actualmente
esta posição tem vindo a ser refutada, reclamando-se uma perspectiva
diferente na qual são vários os pontos em comum com as práticas que os
Talentos realizavam no Futebol de Rua, onde a variabilidade das condições de
prática, parecia assumir-se muito relevante para induzir adaptabilidade e evitar
a estereotipia nas acções dos Jogadores.
As sessões de treino, deverão proporcionar aos jovens situações
diversificadas de Aprendizagem, das mais simples às mais complexas, nas
quais deve existir grande liberdade de acção para os jovens (Pacheco, 2001).
H. Fonseca (2006) refere que os relatos recolhidos na sua amostra de
entrevistados sustentam a ideia, de que tais práticas, tinham no passado lugar
no Futebol de Rua, onde a imprevisibilidade e variedade dos jogos que aí se
desenvolviam eram significativas, no domínio material, temporal, espacial e
Humano, tal como também defende Michels (2001).
Sendo nossa intenção encontrar alguns dos traços caracterizadores do
Futebol de Rua, com o intuito de os tentar recriar em contextos de treino,
criando assim um pretenso Útero Artificial, consideramos que os aspectos
relacionados com a variabilidade de contacto com a bola, com o Jogo e com
um jogar, daí, variabilidade da qualidade, deverão merecer a atenção dos que
se preocupam com o treino de Crianças. Segundo Pacheco (2001) nos
escalões etários mais precoces, inferiores aos 10 anos de idade, deve
proporcionar-se às Crianças um conjunto diversificado de estímulos que lhes
permitam desenvolver simultaneamente a relação com bola e o vocabulário
motor, justificando que quanto mais diversificada for a estimulação da Criança
nas idades mais precoces, maior será no futuro a sua especialização como
Futebolista.
Verifica-se que os relatos efectuados, pela generalidade dos Jogadores que
alcançaram níveis de desempenho consideráveis realçam que as respectivas

335
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

práticas de iniciação no Futebol se observavam em contextos informais,


caracterizados por uma elevada imprevisibilidade, proporcionada por pisos
irregulares, utilização de diferentes tipos de bola, e de uma forma geral com
recurso a poucos materiais (H. Fonseca, 2006).
“Quantas crianças não utilizaram as suas carteiras, as mochilas, os abrigos,
ou umas simples pedras para marcar a baliza! Este detalhe e tantos outros
parecidos demonstram que nem sempre é necessário ter todos os elementos e
que as carências se suprimem com imaginação e ilusão.” (Cruyff, 2002, pp.
21).
Na tentativa de identificar alguns dos aspectos que poderão contribuir para a
variabilidade da qualidade, começaremos, pelo objecto sem o qual o Futebol
deixa de fazer sentido, a bola. A diversidade de bolas com que os jovens
contactam é, um aspecto relevante nos seus primeiros contactos com o Jogo,
algo que se observava nas actividades desenvolvidas no Futebol de Rua (H.
Fonseca, 2006). Entendemos por isso, que a utilização inclusive de “bolas que
dele não são” (V. M. d. C. Frade, 1976, pp. 32), com diferentes tamanhos,
pesos e formas poderá representar um aspecto muito
enriquecedor e favorecedor ao nível da relação dos jovens com
a bola:
“Não tínhamos equipamento, obviamente – nem sequer uma
bola, e tínhamos de nos desenvencilhar recheando uma meia
com papel ou trapos, fazendo o nosso melhor por dar uma
forma esférica, atando depois com um fio. De vez em Figura 7- Bola de trapos utilizada por Pelé
quando encontrávamos uma meia nova ou um pedaço na infância (Adaptado de Pelé, 2006c).

de tecido – por vezes, diga-se, subtraído de um estendal sem vigilância – e a


bola ficava um pouco maior, e atávamos de novo. Por fim acabava por resultar
qualquer coisa semelhante a uma bola de futebol a sério.” (Pelé, 2006c, pp.
36).

“Nós jogávamos ali à bola 3x3, 4x4 (…) uma bola de trapos (…) uma bola de
ténis e depois mais tarde, uma bola de borracha” (Eusébio, 2006).

336
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

“O mais difícil é a bola de trapos, porque tens de saber, porque no chão, no


controlo, no chão, aquilo não corre fica logo. Porque ás vezes, até
amarrávamos nos jornais não é, e depois metia aquelas meias das senhoras,
que a gente apanhava e depois metíamos os jornais, e depois embrulhava
aquilo e jogávamos.” (Eusébio, 2006).
“Jogávamos à bola com bola de trapo, não tínhamos dinheiro para comprar
uma bola de borracha, e também quando apanhávamos aquelas bolas de ténis
(...) e nós naquela altura não ligávamos nenhuma, mas eram boas, era
aperfeiçoar uma técnica com aquela bola” (Eusébio, 2006).

“Todo o garoto, quando ele recebe o primeiro presente, o primeiro presente é,


uma bolinha, ou quando ele não recebe uma bolinha ele faz uma bolinha de
meia, ou uma bexiga de boi, compreendeu. Tudo isso é para ele começar a
jogar Futebol” (Moreira & Moreira, 2006).

“Se a Tota me mandava buscar alguma coisa, levava qualquer coisa comigo
que se parecesse com uma bola para poder ir jogando com o pé: podia ser
uma laranja, bolas de papel, ou de trapos. Assim subia as escadas da ponte
sobre o caminho-de-ferro, a saltar num pé – o direito – e levava fosse o que
fosse no esquerdo, tac, tac, tac... Assim ía para a escola também, ou sempre
que a Tota me mandava fazer um recado.” (Maradona, 2005, pp. 14/15).

“E nem precisava de ser uma grande bola, podia ser uma bola qualquer – até
porque a vida não estava para grandes gastos – bastava ser redonda! Levava-
a debaixo do braço para a escola e qualquer pequeno intervalo servia para
jogar com os amigos.” (Ricardinho, 2007, in Brás, 2007, pp. 14).

A utilização de diferentes tipos de bolas, não levanta qualquer objecção ao


harmonioso desenvolvimento das Crianças, desde que efectuada de forma
ajustada. Jesen (2002) sugere ser muito importante, para um conveniente
desenvolvimento, sobretudo após o nascimento e até por volta dos 18 meses,
promover a interacção da Criança com bolas. Por este motivo, não será

337
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

descabido sugerir que desde os primeiros meses, os recém nascidos brinquem


com balões, explorando-os também com os pés. Algo que de acordo com Vítor
Frade (in, H. Fonseca, 2006) se poderá revelar muito profícuo no despertar de
alguns reflexos arcaicos, por norma latentes, devido à solicitação privilegiada
em termos Culturais, do trem superior, e que conduziram a uma funcionalidade
e sentimentalidade em termos de espécie, diminuída do trem inferior. Motivo
pelo qual, o Futebol pode aparentemente ser Fenómeno ContraNatura, um
paradoxo para o qual já aludimos.
Com base nos relatos acima transcritos sugerimos, que para se instalarem
diferentes conflitos na relação do Corpo com a bola, e consequente, maior
necessidade de reorganização e de adaptabilidade do mesmo, deverá ser
possibilitado aos jovens o contacto com bolas, de diferentes tamanhos, pesos,
superfícies e formas, como as de ténis, de rugby, de borracha, bolas furadas, e
oficiais.
Além das bolas, também a diversidade de pisos motivada pelas respectivas
texturas, irregularidades ou declives, contribui para um incremento significativo
da variabilidade de estímulos, com que os jovens têm de lidar a cada momento
(H. Fonseca, 2006; Michels, 2001).
Verificamos, que no nosso país proliferam os relvados sintécticos, sendo
inclusive fornecidos apoios por parte da Federação Portuguesa de Futebol,
para a implementação do primeiro relvado sintéctico em cada clube. Contudo,
H. Fonseca (2006) com base no seu estudo conclui, que sendo uma realidade
estes relvados não representam uma necessidade para se Aprender a Jogar
Futebol. De acordo com Michels (2001), uma das potencialidades do Futebol
de Rua residia no facto, de implicar que os jovens experimentassem todo o tipo
de pisos, facto comprovado pelo conhecimento de causa de Jogadores de
Elite:

“Estava sempre a jogar à bola, era o que mais gostava de fazer com os meus
amigos, e era assim que eu passava o tempo. (…) A rua era a subir, e a gente
jogava aí, os autocarros passavam, os carros, as motas, e a gente metia

338
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

pedras, quando passava o autocarro, a gente tirava as pedras, quando os


carros passavam a gente metia, e continuávamos a jogar.” (Ronaldo, 2007).

“Gosto que seja na rua porque certos automatismos não se podem treinar no
campo. Se tu és maior que eu e chocarmos, irei ao solo. E quando há pedra ou
cimento, raspas-te. O que tenho de fazer é esquivar-me. Nesse momento
começas a pensar em outras coisa além da bola. Na rua, a bola não rola tão
bem, sai em qualquer direcção, há que utilizar uma quantidade de coisas que
normalmente não usarás no campo relvado. Portanto, é algo extra que podes
dar a uma criança sem cair em algo muito sério.” (Cruyff, in Valdano, 2002, pp.
83/84).

“A gente fazia uns joguinhos, os garotos da rua Ruben’s Arruda, com a rua
170. Então a rua 170, era um pouquinho melhor arrumada que a rua Ruben’s
que só tinha pedra, buraco (…) quando eu já passei a entender um pouquinho
melhor, 10 para 12 anos, nós jogávamos num campo que era perto da Vila
Falcão que, a gente jogava para cima ou para baixo, quando a gente ía tirar a
sorte na moeda, a gente falava, «vamos jogar primeiro para baixo, porque a
gente mete 2, 3, depois a gente não precisa de descer», porque o campo tinha
uma trave lá em cima e outra em baixo. Então nessa época a gente jogava em
tudo o que era tipo de campo.” (Pelé, 2006b).
“Primeiro, é porque quando nós tínhamos de jogar com equipas mais fracas,
a gente sempre preferia jogar com um campo melhor, porque um campo
melhor é mais fácil de você driblar, mais fácil de você tocar a bola, você fazer a
jogada mais rápido. O campo ruim, facilita quando o teu team só destrói, só
vem destruir, então tinha muita influência. E a outra influência também, é o
local. Por exemplo, quando nós saímos do nosso bairro para jogar (…) era
difícil porque lá os campos geralmente eram ruins, bem ruins e lá era bem
difícil, na parte da torcida, que era uma torcida brava, e a parte técnica (…)
então realmente o campo tinha muita influência nessa época.” (Pelé, 2006b).

339
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Todas as declarações acima transcritas, sustentam o que referimos


relativamente à influência que os pisos exercem na relação dos Jogadores com
a bola, motivo pelo qual sugerimos que a prioridade dos clubes, deverá ir muito
mais no sentido de explorarem as potencialidades dos seus recursos espaciais,
do que enveredarem pela tendência crescente de construir campos sintécticos,
mesmo que isso represente, gastos incompatíveis com as suas realidades. Não
nos encontramos contra a utilização de relvados sintécticos, consideramos sim,
que se os jovens além deste tipo de piso experimentarem outros, pelado,
soalho, cimento, relvado, entre outros, o desenvolvimento do seu potencial será
à partida mais efectivo, por se tornar mais versátil e adaptável, à aleatoriedade
que caracteriza o Jogo. Caso o único espaço existente para treinar, seja um
relvado sintéctico, sugerimos que através de formas simples este seja
pontualmente adaptado, por exemplo, através da colocação de diferentes
obstáculos no solo, como por exemplo, sinalizadores plásticos, os quais
poderão conferir trajectórias imprevisíveis às bolas, em tudo semelhantes às
observadas nos pelados e nas Ruas.
Sem nos alongarmos muito mais a este respeito, consideramos de especial
relevo, as declarações supratranscritas de Cruyff (in Valdano, 2002, pp. 83/84),
por nos remeterem para algo que é determinante para a expressão qualitativa
dos Talentos no Futebol, o domínio da proprioceptividade e respectivo
desenvolvimento através do Futebol de Rua.
“É aquilo que nós verificamos por exemplo nas escolas de futebol onde não
existe futebol de rua, onde não existe proprioceptividade39, onde não existe

39
Importa salientar, que aquilo que se procura evidenciar com a afirmação “não existe
proprioceptividade”, é que em determinados contextos, pode verificar-se um enfraquecimento
proprioceptivo, que em nosso entendimento é prejudicial à exponenciação do Talento no
Futebol. De realçar ainda, que um conveniente entendimento deste conceito, implica ponderar
as “influências recíprocas dos sistemas de movimento, de coordenação, de aprovisionamento e
do estado psicológico” (V. Frade, 1979, pp. 28), e também a necessidade da sua Aculturação,
tendo em vista a especificidade funcional da modalidade em questão, e de modo particular, da
Especificidade de um determinado jogar. Ou seja, deverá ser concebida como algo em
concreto e não abstracto. Tomando como exemplo o que refere V. Frade (1979, pp. 29) “a
velocidade de contracção impossibilitada de melhorar («lei do tudo ou nada»!). A velocidade de

340
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

habilidade pelo treino, as escolas da Suiça, da Áustria ou na Rússia, por causa


do tempo, há pouco futebol de rua, há pouca proprioceptividade, há pouca
habilidade natural, pouco desenvolvimento dessas características”.
Capacidades como a agilidade, o equilíbrio, e a coordenação são controladas
por proprioceptores, como os órgãos tendinosos de Golgi e os fusos
neuromusculares, localizados respectivamente ao nível do tendão e do
músculo, desempenhando um papel muito relevante ao nível da motricidade
(Habib, 2003), sendo consequentemente determinantes para a capacidade dos
Jogadores executarem as suas acções com coerência e precisão (Houglum,
2001), ou seja, no timing apropriado (Tani, 2002). A realização de actividades,
relacionadas com o Futebol, em superfícies de grande irregularidade e
instabilidade poderá representar um factor importante para o desenvolvimento
sensorial desses receptores (H. Fonseca, 2006).
De acordo com Luísa Estriga (Anexo 3), a estrutura do treino deve permitir o
desenvolvimento da propriocetividade, sendo para tal determinante a existência
de processos que desde idades precoces atendam à Especificidade, sobretudo
em épocas como a actual onde se eclipsaram as vivências típicas do Futebol
de Rua. Acrescenta ainda, que “hoje a grande orientação está no controlo
neuromuscular (…) é um salto, hoje em dia os grandes investigadores nesta
área da prevenção dizerem, que a prevenção tem de ser o acima de tudo, e
que esta educação motora (…) neuromuscular se quiseres deve contar desde o
início.” Sugerindo assim que a educabilidade proprioceptiva, deve ser
contemplada ainda na Formação e não apenas a nível sénior. Para a nossa
entrevistada, é a este nível que reside também o segredo para a prevenção de
lesões ao longo da carreira de Futebolista. Ou seja, a contemplação da
educabilidade proprioceptiva, a qual se pode fazer através de formas muito
simples, sugeridas por alguns como sendo falta de condições, revela-se

condução e de coordenação do estímulo possível de ser melhorada. Como qualidade dita física
e sua relação com o (s) processo (s) de descriminação. (…) A aquisição de velocidade (por
exemplo) pode resultar duma transformação do comportamento através da modificação na
compreensão dos sinais vindos do jogo e através da modificação das acções dos jogadores em
função desses sinais. «Só se faz bem o que se compreende bem».” E compreender bem passa
por treinar em Especificidade.

341
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

determinante, não somente para o cumprimento do postulado Mais Futebol,


Mais Criança, como também para o postulado Mais Futebol, Mais Criança =
Mais Adulto. Uma vez que como sugere Luísa Estriga (Anexo 3) a diminuição
de lesões pode verificar-se pelo desenvolvimento em Especificidade da
proprioceptividade.
Além da variedade de bolas e de pisos, há ainda a considerar um conjunto de
práticas e de aspectos vivenciados pelos Talentos na infância, que sendo
aparentemente irrelevantes, e inclusive, contrariarem muito do que por norma
se faz, nos parecem igualmente pertinentes considerar.
O primeiro desses aspectos que iremos salientar, relaciona-se com o tipo de
calçado utilizado pelas Crianças nos seus primeiros contactos com a bola. H.
Fonseca (2006) questiona, até que ponto se justificará a utilização de
«chuteiras», em Crianças com 5 ou 6 anos, sugerindo como alternativa a
utilização de sapatilhas, de modo a possibilitar uma maior sensibilidade da
região plantar. Observa-se que alguns dos Jogadores de maior relevo a nível
mundial, fruto das dificuldades económicas e da própria Cultura do local em
que nasceram começaram a Jogar descalços.

“Eu comecei por coincidência, é uma história engraçada, porque onde eu


comecei a jogar era na rua (…) a rua onde eu morava, e não era calçado.”
(Pelé, 2006b).
“Camisolas de alças, calções e sem chuteiras (por uns tempos éramos como
«Pés Descalços», até que nos apercebemos de que havia diversas outras
equipas que tinham a mesma alcunha, pela mesma razão que nós).” (Pelé,
2006c, pp. 40).
“Lembro-me que uma vez, logo após ter regressado do Campeonato do
Mundo de 1958, na Suécia, que tínhamos ganho, passei por esse pequeno
recinto e vi uns miúdos entretidos numa peladinha (…) Então, fui a casa, vesti
uns calções, tirei os sapatos e joguei descalço com eles. Era assim que tinha
começado a jogar” (Pelé, 2006c, pp. 50).

342
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

“Eu me lembro da minha infância, não nasci num berço de ouro, pé descalço,
jogávamos à bola com bola de trapo” (Eusébio, 2006).

“Leónidas (…) No jogo contra a Polónia, no Mundial de 38, disputado sob


forte chuva e com o campo enlameado, resolveu a certa altura tirar as botas e
jogar descalço, porque assim, dizia, jogaria mais confortável. Ao perceber o
árbitro obrigou-o a calçar as chuteiras novamente, cumprindo as regras, mas
se fosse possível, Leónidas preferia jogar sempre descalço.” (Lobo, 2002, pp.
105).

“Telê Santana (…) dizia que nenhuma bota no mundo conseguiu reproduzir a
intimidade entre o pé e a bola com que jogam os garotos descalços das favelas
e dos baldios brasileiros: «Acho que jogar descalço aumenta a habilidade para
driblar e dominar a bola.»” Lobo (2007, pp. 175).

Uma vez mais, o conhecimento empírico dos Jogadores adquirido ao longo


de vários anos de contacto com a bola, parece ter sustentabilidade do ponto de
vista científico. A Universidade de Colónia, tem centrado muita da sua
investigação no pé, um segmento que tem vindo a ser negligenciado pela
generalidade da população, sugerindo-se nesses estudos (Brueggemann,
2007), que desde os primeiros passos devemos caminhar mais vezes
descalços. Uma opinião igualmente partilhada por Leandro Massada (1999), o
qual realça que a região plantar é extremamente sensível. Motivo pelo qual, H.
Fonseca (2006) sugere a não utilização de «chuteiras» nas idades mais
precoces, com o intuito de favorecer uma maior sensibilidade do pé, e de modo
mais notório, da região plantar. Uma zona que nas «chuteiras», geralmente é
constituída por materiais muito rígidos, inibidores dos proprioceptores
plantares.
Embora saibamos, que quando os indivíduos utilizam determinados
artefactos nas suas actividades e são submetidos a uma prática sistemática e
repetitiva, esses artefactos são Somatizados, passando a funcionar como parte
do Corpo (Nicolelis, 2008). “O que se verifica é que a adaptação do ser

343
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

humano, em relação (…) a usar a protecção do sapato ou a não protecção do


sapato, não tem assim grande influência. Teoricamente, o pé foi feito para
andarmos descalços (…) Mas o que é que acontece? Desde que haja uma
alteração biomecânica, por exemplo de alguma estrutura, em que haja uma
anomalia dos eixos mecânicos fisiológicos, o que é que verificamos? É que a
natureza, ao fim de 6 meses a um ano, um ano e meio consegue compensar
muitas dessas alterações (…) Se um pé que está habituado a andar descalço,
e de um momento para o outro começa a ser protegido pela acção do calçado,
por muitas alterações biomecânicas que surjam, pela diminuição de um
determinado jogo articular, pelas articulações que trabalham de uma forma
mais marcada, outras de forma menos marcada o que se verifica é que,
teoricamente, em termos biomecânicos, ao fim de um ano um ano e meio a
natureza habitua-se a isso, habitua-se a essa nova mecânica. Quer isto dizer
que o indivíduo que nasça e que ande descalço, em que a sua cultura não usa
sapatos, nas primeiras fases há um período de adaptação e que depois,
curiosamente, o que se verifica é que quando eles deixam de usar sapatos e
voltam a andar descalços não conseguem fazer isto” (Leandro Massada, Anexo
2). Não obstante tais evidencias sugerimos que nos primeiros contactos com
bola, as Crianças deverão experimentar por momentos, nas várias sessões de
treino, contactar a bola sem qualquer calçado, com o intuito de desenvolver
uma maior sensibilidade relativamente à bola e aos pisos, “porque é aí que
está a sensibilidade” (Vítor Frade, in H. Fonseca, 2006).
Uma prática que se tem vindo a generalizar, e que se constitui como um
constrangimento, que não é de fácil contorno, até por ser em muito fomentado
pela própria estrutura de apoio ou logística das equipas, prende-se com o facto
dos elementos dos departamentos médicos incentivarem os jovens, ainda em
idades muito precoces, a ligarem os pés, ou a adoptarem outro tipo de práticas,
como a utilização de calções térmicos, que constrangem a acção dos
Jogadores.
“Os fisioterapeutas, tinham-me recomendado que usasse uns calções de
ciclista em lycra para me manter quente e para me dar apoio extra (…) percebi
de imediato que tinha sido uma asneira ter concordado com eles. Sou daqueles

344
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

jogadores que tem de se sentir muito confortável com aquilo que veste, não só
o equipamento, mas também as chuteiras (…) sou incapaz de jogar com dois
pares de meias (…) Pode ser tudo psicológico, mas este tipo de fenómenos
influencia-me. Ainda o jogo não tinha começado e já eu me sentia preso com
aquela tralha vestida (…) não me sentia bem, não por causa da lesão, mas por
causa dos calções (…) Bem, se não me doía assim, também não havia de doer
sem os calções de lycra. Corri até à linha lateral e despi-os (…) ter-me livrado
dos calções fez toda a diferença para mim: senti-me logo muito melhor, mais
livre” (Beckham, 2004, pp. 234).
De acordo com J. L. Massada (2003) o recurso ao taping profilactico do
tornozelo, embora represente uma prática recorrente no Futebol, são
desconhecidos ainda quais os verdadeiros efeitos ao nível da incidência de
entorses no tornozelo, acrescentando que a este respeito nada se encontra
comprovado, sugerindo que na sua opinião, este tipo de imobilização rígida ao
nível do tornozelo, potencia a gravidade das lesões no joelho. Inferimos deste
modo, que a adopção destas práticas mesmo podendo não trazer malefícios,
parece constituir-se como um estorvo para a funcionalidade e sensibilidade dos
Jogadores, como comprovam as palavras de Beckham (2004) e de alguns dos
elementos que compõem a amostra de H. Fonseca (2006). Por este motivo,
sugerimos que os jovens deverão treinar, apenas com o material desportivo
necessário, sem quaisquer tipos de adornos adicionais, como ligaduras,
calções térmicos e inclusive caneleiras. No caso das últimas, também por
motivos relacionados com o desenvolvimento da destreza Corporal, e do
reportório motor, proprioceptividade, pois da mesma forma que sentirão
necessidade de se esquivarem das quedas nos pisos, também terão a
necessidade de se esquivarem, astutamente dos contactos com os
adversários. Quanto à utilização de equipamentos usualmente utilizados no
Inverno, como por exemplo blusões desportivos, estes deverão ser evitados, o
que não significa que os jovens não se devam apresentar com estes no treino,
para no final do mesmo, entre o período que medeia o término do treino e o
banho, se possam agasalhar convenientemente.

345
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Outra característica marcante do Futebol de Rua, no que à variabilidade diz


respeito, relaciona-se com versatilidade dos regulamentos. No Futebol de Rua,
a permeabilidade das regras é enorme, ao ponto, de poderem variar de Rua
para Rua, em função dos constrangimentos que o espaço coloca. No entanto,
apesar da variedade das regras a essência mantém-se, não se desvirtuando a
qualidade, o Jogo. Ou seja, procedem-se a inúmeras adaptações mantendo o
padrão inalterado, em momento algum as Crianças passam a algo semelhante
ao Basquetebol, é sempre Futebol, o que permite que através da adopção de
inúmeras regras, o Jogo seja recriado em inúmeros jogos.

“Pelada (…) uma partida recreativa de futebol, com regras perfeitamente


livres. Normalmente não há preocupação com o tamanho do campo, condição
das chuteiras e equipamentos, marcações básicas (pequena e grande área,
circulo central), faltas, tempo de jogo (muitas vezes as partidas são definidas
em número de golos), sendo tudo resolvido em consenso pelos jogadores.” (A.
C. Almeida, 2006).

“Eu jogava na rua, os carros passavam, e então quando avistávamos o


carro, a uns 20, 30 metros, avisávamos, «cuidado que vem carro, temos que
parar», encostávamo-nos à parede e parávamos, o carro passava e nós
continuávamos a jogar. As balizas eram as portas de entrada das casas”
(Sabrosa, 2005).

“Aí, fazíamos dos bancos de jardim as nossas balizas e do parque o nosso


estádio, um estádio onde as cercas, os baloiços, os candeeiros e os canteiros
de flores não constituíam qualquer obstáculo para a nossa imaginação”
(Ricardinho, 2007, in Brás, 2007, pp. 14).

“Nas partidas caseiras também havia muros, tabelas ou casas que usávamos
de extremos. A parede jogava para as duas equipas apoiando o que tinha bola.
Titular indiscutível.” (Valdano, 2002, pp. 219).

346
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

O treinador deverá à semelhança das Crianças, captar a essência do Jogo


(Ramos, 2003), e de com a mesma originalidade destas recriar contextos de
exercitação, que permitam potenciar as Aprendizagens dos Talentos. Os Jogos
que deverá propor aos jovens deverão ser redacções, e não ditados (B.
Oliveira, et al., 2006), subordinados a um determinado tema, induzido pela
aplicação de determinadas regras capazes de possibilitar um contexto de
propensões ajustado às suas intenções.
O reconhecimento do quanto são permeáveis as regras, no Futebol de Rua e
das suas potencialidades na exponenciação de Talentos permitirá, que o
treinador reconheça a importância de recriar de forma criativa o Jogo, em
inúmeros jogos de Futebol subordinados a diferentes temas. Poderá deste
modo, recorrer a variadíssimas estratégias que poderão revelar-se altamente
enriquecedoras. Por exemplo, poderá não recorrer de forma sistemática à
utilização de coletes. Como refere Lobo (2007), na Rua todos jogavam com a
roupa normal, ou até sem camisola, o que o motiva a sugerir, que nos clubes
sejam igualmente retirados às Crianças os coletes. A utilização de coletes
como forma de diferenciação das equipas, não é necessariamente benéfica,
podendo a sua não utilização em determinados momentos, revelar-se
vantajosa no desenvolvimento da observação e da «leitura de jogo». Também
nós partilhamos desta opinião, e apenas não sugerimos a não utilização de
coletes em qualquer momento do treino, por se tratar de uma estratégia que
poderá facilitar a actuação dos treinadores, que deste modo, identificam mais
facilmente as equipas, podendo assim intervir mais convenientemente. A não
utilização de coletes nos treinos, à semelhança do que sucedia no Futebol de
Rua, pode revelar-se uma estratégia para que as Crianças mais facilmente
adquiram um dos Princípios Básicos a interiorizar nestas idades, ou seja,
descentralizar o olhar da bola, para que se habituem desde cedo a terem a
Bola no pé, e os olhos no Jogo.
Muitas outras alterações às regras poderão ser feitas pelos treinadores,
sugerimos que adoptem campos com diferentes dimensões e formas, diferente
número de balizas, diferentes tamanhos de balizas, colocação de obstáculos
em diferentes pontos do terreno de jogo, adopção de regras que condicionem o

347
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

contacto da bola a determinadas partes do Corpo (Futebol Aranha,


exclusividade de passes de calcanhar, de «trivela», finalizações apenas com
bola tocada acima da cintura, finalização apenas através de cabeceamentos,
obrigatoriedade de uso do pé não dominante …) ou que favoreçam o contacto
de todo o Corpo com a bola, utilização de jogos que favoreçam a mobilidade
dos Jogadores sem bola (impossibilitando o Jogador com bola de a conduzir,
protegendo a respectiva posse de bola), utilização de tabelas, utilização
diferentes formas de apoio no solo e de locomoção, e tudo mais que a
imaginação possa recriar.
Tudo o que foi por nós sugerido neste ponto, relativamente à importância da
variabilidade de estímulos para o desenvolvimento de Talentos no Futebol,
parece ser corroborado por Salmela & Moraes (2003), os quais constataram
que nos países menos desenvolvidos, o sucesso dos desportistas em
determinada modalidade não poderá ser explicado apenas, pelo acesso a
treinadores e treinos de qualidade. Destacando que no caso dos Jogadores
nascidos na América do Sul, que representaram clubes de maior notoriedade, o
apoio familiar era geralmente escasso e o acesso a treino formal, limitado.
Motivo pelo qual sugerem, como explicação para os seus desempenhos de
excelência, o facto de se terem dedicado desde idades precoces, de forma
abundante à prática de Futebol em situações informais, geralmente sob
condições materiais e espaciais de aparente desvantagem.
Estas condições de desvantagem, são na verdade uma vantagem pelo que
foi exposto neste ponto, o que nos leva a remeter para aquilo que
consideramos ser, o embuste das condições.
A Especificidade Precoce implica, que a variabilidade da qualidade,
“variabilidade cultural” (Marisa Gomes, Anexo 5), isto é, do Jogo e dos jogares,
sejam contemplados ao longo de todo o processo, expressando-se através do
recurso desde idades muito precoces, à utilização de diferentes tipos de bolas,
pisos, contacto com bola sem adornos supérfluos, e ainda através da alteração
de regras, sem se desvirtuar da essência do Jogo e indo de encontro a um
jogar. Em nosso entendimento, tentar tornar exequível os pretensos Úteros
Artificiais não é uma realidade muito utópica, pelo menos no que às questões

348
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

relacionadas com as condições materiais, espaciais e regulamentares diz


respeito, uma vez que, possivelmente representa inclusive uma diminuição de
encargos para os clubes. As realidades em que se desenvolvem os processos
de treino de jovens, deverão quanto a nós, Aprender com as brincadeiras das
Crianças e com as próprias Crianças, que com recursos reduzidos, mas com
muita imaginação foram capazes de criar contextos de exercitação muitíssimo
ricos e estimulantes, recriando deste modo o Jogo, tendo sido capazes de
tornar a Aprendizagem do mesmo, num processo altamente diversificado,
entusiasmante e divertido.

6.5.6 – Observar Qualidade para Criar Talentos de Qualidade:

“Não existe ser humano que não tenha sido modelado na comunidade humana.”
(Lourenço & Ilharco, 2007, pp. 115).

“… O futebol é emulação e ter a possibilidade de ver jogar os grandes futebolistas é a melhor


escola para as crianças.”
(Valdano, 2002, pp. 263).

Sendo o treino de Futebol um processo de EnsinoAprendizagem, e sendo o


Futebol uma actividade eminentemente social, ao ponto de se poder considerar
como um processo de Aculturação semelhante ao que se observa em
diferentes domínios, tais evidências remetem-nos para o domínio da
Aprendizagem Social, na qual Albert Bandura é, figura proeminente (Sprinthall
& Sprinthall, 1993).
Ao longo do século passado, foram surgindo diferentes entendimentos e
tentativas de explicação para os processos de imitação e a sua relação com as
Aprendizagens (Daschiell, 1928, cit. por Kymissis & Poulson, 1990; Holth,
1931; Humprhrey, 1921, cit. por Kymissis & Poulson, 1990; Miller & Dollard,
1967; Skinner, 1968; Thorndink, 1911, cit. por Kymissis & Poulson, 1990).
Contudo, Bandura (1977) critíca consideravelmente essas teorias,
argumentando que não são suficientemente sociais, uma vez que, não
conseguem explicar a aquisição de respostas sociais novas e não prestam
atenção aos factores cognitivos. Em alternativa, propõe a Teoria da

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Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Aprendizagem Social, ou modelagem (Sprinthall & Sprinthall, 1993). Na


Aprendizagem observacional sugerida por Bandura (1977), e descrita como a
habilidade de adquirir novas respostas como o resultado de observar o
comportamento de um modelo, não é necessário que haja reforço directo para
que tal Aprendizagem ocorra, já que em condições naturais, o comportamento
exibido pelo modelo é tipicamente reproduzido pelo observador na ausência de
reforço directo (Bandura, 1977). Uma perspectiva, que não ignorando a
possibilidade do reforço poder ter influência no processo de modelação, como
sugeriam Miller & Dollard (1967) e Skinner (1968), lhe confere uma ênfase
significativamente menor. Segundo Bandura (1977) apesar do reforço exercer
uma função na Aprendizagem observacional, esta resulta, mais como uma
influência antecedente do que consequente, isto é, saber que o comportamento
de um modelo efectivo, em produzir consequências positivas ou em evitar
punições, pode melhorar a Aprendizagem observacional, como consequência
do aumento da atenção do observador para com as acções do modelo. A
atenção, a retenção, a reprodução motora e a motivação são apontados por
Bandura (1977) como os quatro processos cognitivos interrelacionados,
considerados determinantes na Aprendizagem Social.
Parece consensual (Bandura, 1977; Crato, 2006a; Dunbar, 2006; Goleman,
2003, 2006; Lourenço & Ilharco, 2007; Malson, 1988; Piaget, 1986; Vygotsky,
1998) considerar-se, que grande parte do comportamento Humano é aprendido
por modelação, isto é, pela observação de outros formamos uma ideia de como
novos comportamentos são feitos e, mais tarde, esta informação codificada
serve de guia à acção (Bandura, 1977). “Não existe ser humano que não tenha
sido modelado na comunidade humana.” (Lourenço & Ilharco, 2007, pp. 115).
A Aprendizagem por observação ocorre, quando um animal observa o que o
outro faz, e copia (Smith & Szathmáry, 2007). A imitação, é um elemento
essencial para o processo de Aprendizagem (Vygotsky, 1998), sendo sugerido
que a presença de um modelo poderá acelerar o processo de Aprendizagem
(Skinner, 1968). Segundo Goleman (2006) a existência de um cérebro social,
como sucede no Homem, favorece a Aprendizagem por imitação, uma vez que
este, aprende imitando os modelos. Álvares & Rio (1996, cit. por Vygotsky,

350
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

1998) consideram que o aprendiz toma emprestado, do seu interlocutor mais


capacitado, os modelos que ainda não desenvolveu inteiramente e usa-os para
construir as suas próprias habilidades, condutas, raciocínios e significados.
Partindo da análise do que ocorre durante a socialização e a Aprendizagem
na Criança e entendendo o meio social como o principal agente de
desenvolvimento dos processos mentais, Vygotsky (1998) enfatiza a
importância da prática guiada na Aprendizagem, considerando ainda, que
esses processos mentais ocorrem em dois planos: primeiro no plano social,
compartilhado (interpsicológico) e depois no plano individual (intrapsicológico).
Bandura (1977) aceita o princípio de que o comportamento é aprendido e que
essa Aprendizagem resulta da interacção entre o meio, o indivíduo e o próprio
comportamento. Segundo a perspectiva cognitiva-social deste autor, não
somos conduzidos por impulsos internos nem moldados e controlados
automaticamente por estímulos externos, uma vez que o comportamento
Humano depende de variáveis, cognitivas, pessoais e dos acontecimentos
ambientais, operando todos em conjunto, determinando-se reciprocamente.
A perspectiva cognitivo-social apresentada por Bandura (1977), poderá
ajudar a explicar a adopção de determinados comportamentos, por parte dos
“meninos selvagens” estudados por Malson (1988). Como realçam Lourenço &
Ilharco (2007) estes casos evidenciam, a relevância da dimensão colectiva
naquilo que somos, o poder das práticas de socialização, da imitação e da
Aprendizagem através da Vida com os outros e com o que nos rodeia.
(Lourenço & Ilharco, 2007). “Os bebés nascem com determinadas
predisposições, e ao longo do processo vão passando por tudo aquilo que
fazem e pelo que são sujeitos e vão assim adquirindo determinadas coisas. Um
bebé nascendo no calor ou no frio é diferente” (Marisa Gomes, Anexo 5).
A Aprendizagem, através de modelos é deste modo, um processo complexo,
com origens filogenéticas e ontogenéticas (Bandura, 1977). As investigações
no domínio da Aprendizagem Social sugerem não se tratar de um fenómeno
simples, podendo distinguir-se três diferentes mecanismos, relativamente à sua
origem; o realce de estímulo, a emulação e a imitação (Dunbar, 2006).

351
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

A imitação parece revelar-se uma característica, que não sendo exclusiva da


nossa espécie, encontra-se em nós particularmente desenvolvida, e tem se
revelado uma vantagem em termos evolutivos, nomeadamente ao nível da
coesão social (Crato, 2006a).
De acordo com Smith & Szathmáry, (2007) apenas a Aprendizagem por
observação conduz a mudanças culturais cumulativas, uma característica
fundamental na história da Humanidade. Assim, através deste tipo de
Aprendizagem os jovens podem Aprender com os adultos, permitindo ainda
que se o indivíduo encontrar uma forma de fazer algo, mesmo que de forma
involuntária, esse melhoramento possa ser copiado. Tratando-se assim, de um
processo em que a mudança é contínua, na qual o indivíduo aprende, copiando
uma habilidade que não aprenderia sozinho. Por esta razão, Vygotsky (1998)
considera, que a imitação se constitui como uma actividade essencial na
Aprendizagem, uma vez que possibilita que se adquiram os meios para o
desenvolvimento de algo novo, promovendo ainda, o que denominou de
internalização – processo que envolve muito mais do que mera cópia já que
implica uma reconstrução interna de operações externas, onde o sujeito
desempenha papel activo. Deste modo, com base no processo de modelagem,
poderão surgir novos padrões, visto que os Humanos, não se limitam a
responder a estímulos, também os interpretam (Bandura, 1977). Estudos
recentes (Decety & Jackson, 2008) indicam, que a imitação não se resume a
um simples fenómeno de ressonância comportamental, visto que poderá apelar
ao consciente do imitador. Os objectos poderão deste modo, através da
imitação, modificar os esquemas de acção dos sujeitos, sem que este tenha
necessariamente de utilizar de forma directa esses objectos (Piaget, 1986).
Apesar do potencial criativo que o processo de modelação pode contemplar,
importa advertir, que contrariamente ao que sustentam algumas teorias
psicológicas e pedagógicas de carácter construtisvista extremo, nem todas as
nossas aprendizagens correspondem a uma reconstrução criativa e individual
(Crato, 2006a).
Segundo Glencross (1993), ainda não é claro, o modo como os aprendizes
captam a informação a partir da observação dos modelos. Estudos recentes

352
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

com recurso a técnicas de imagiologia cerebral têm, contudo possibilitado


algumas informações relevantes. A este repeito, e partindo do pressuposto que
as nossas emoções são contagiosas (Monteverde, 2007) e de que a
emotividade, como temos salientado é parte integrante do Futebol, um
fenómeno eminentemente social torna-se pertinente aludir para a descoberta
dos neurónios-espelho, os quais nos ajudam a perceber como se desenrolam
os processos miméticos. Foi Giacomo Rizzolatti (cit. por Goleman, 2006, pp.
70), neurocientista italiano da Universidade de Parma quem descobriu os
neurónios-espelho, explicando que estes sistemas “permitem-nos perceber as
mentes dos outros não através do raciocínio conceptual, mas através da
simulação directa; pelo sentimento, não pelo pensamento.” A descoberta
destes neurónios pode considerar-se, a maior descoberta neurocientífica da
actualidade (Monteverde, 2007).
Goleman (2006, pp. 67) referindo-se aos neurónios-espelho, ou como os
apelida, “neurónios «faz-o-que-ele-faz»” afirma que estes “reflectem uma acção
que observamos em terceiros, fazendo-nos imitar essa acção ou sentir impulso
de imitá-la.” Os neurónios-espelho podem assim ser descritos como sendo
células que apresentam a particularidade de reflectirem em nós emoções que
se encontram presentes ao nosso redor (Monteverde, 2007). “O que está na
mente do outro ocupa a nossa.” (Goleman, 2006, pp. 94). Para Monteverde
(2007) a grande potencialidade dos neurónios-espelho consiste, na
possibilidade de fazermos mentalmente tudo o que assistimos alguém fazer.
Contudo adverte, que os neurónios-espelho não são selectivos, uma vez que
copiam aquilo que observamos sem discernir se o que se observa é bom ou
mau. O que em nosso entendimento, reforça a necessidade de serem
proporcionados aos jovens referenciais de qualidade relativos ao Jogo.
Goleman (2006) entende que a competência social, se encontra dependente
dos neurónios-espelho, uma vez que estes nos providenciam informações
sóciais valiosíssimas que nos permitem estar um passo à frente do que vai
acontecer, tornando-nos assim “camaleões sociais” (Goleman, 2006).
“Como somos seres primorosamente sociais, nossa sobrevivência depende
directamente da compreensão das acções, intenções e emoções dos outros.”

353
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

(Monteverde, 2007, pp. 44). Estes neurónios inicialmente encontrados em


macacos e posteriormente em Humanos, permitem a antecipação de
movimentos, que podem vir a ser necessários para a comunicação com
indivíduos cujos movimentos se encontram a ser espelhados (Damásio, 2004).
Por este motivo, os neurónios-espelho revelam-se determinantes naquilo a que
os neurocientistas designam de «ressonância empática», ou seja, ligações
intercérebros, que com bases nestes sistemas permitem que os Corpos “se
movam em uníssono, os pensamentos sigam os mesmos trilhos e as emoções
corram ao longo das mesmas linhas.” (Goleman, 2006, pp. 71). O que se torna
especialmente relevante em actividades como o Futebol, uma modalidade
colectiva. “Ao ligarem cérebros, os neurónios-espelhos criam um dueto tácito
que abre caminho a subtis mas poderosas interacções.” (Goleman, 2006, pp.
71).
Estes neurónios encontram-se localizados ao nível do córtex frontal
(Damásio, 2004), sendo que muito destes funcionam no córtex pré-motor, e
que por esse motivo são adjacentes aos neurónios motores, significando tal
localização, que as áreas do cérebro que iniciam o movimento podem
facilmente ser activadas, mesmo que apenas estejamos a ver outra pessoa a
realizar esse movimento (Goleman, 2006).
De acordo com Levitin (2007, pp. 273) a função dos neurónios-espelho, “é
presumivelmente treinar e preparar o organismo para fazer movimentos que
não tenha feito antes”. Motivo pelo qual entendemos serem determinantes num
processo aquisitivo, como o treino de Futebol. Goleman (2006) salienta que
estes neurónios desempenham um papel determinante nos processos de
Aprendizagem de jovens, sendo com base nas descobertas na área dos
neurónios-espelho que se torna possível explicar como as Crianças
conseguem dominar e se apropriarem de determinadas matérias, através da
observação.
“Enquanto vêem, estão a gravar nos seus próprios cérebros um reportório de
emoções, de comportamentos e de conhecimentos sobre a forma como o
mundo (Jogo) funciona” (Goleman, 2006, pp. 69).

354
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Os neurónios-espelho permitem que o nosso cérebro, por exemplo simule


“internamente” o que outros organismos realizam no nosso campo de visão
(Damásio, 2004). A Universidade de Huyesen desenvolveu um estudo, com
praticantes de modalidades desportivas em que são necessárias acções
motoras complexas, tendo concluido que os desportistas aprendem bastante
através da observação de outros desportistas, tendo ficado demonstrado que
aquando da observação do desempenho motor de outros, e da recriação
mental do mesmo, através da imaginação, se despoleta no cérebro uma forte
estimulação das regiões cerebrais mais relacionadas com o movimento, sendo
esta, muito semelhante à que se observa aquando da realização efectiva dos
movimentos, havendo ainda a considerar que esta activação cerebral se
repercute, em alterações conformes nos estados do corpo-propriamente-dito
(Munzert, 2007). Sabe-se actualmente que as mesmas estruturas cerebrais
mobilizadas na execução do movimento, estão igualmente implicadas na
imaginação desse mesmo movimento (Berthoz, 2008). Janata (1997) num
estudo semelhante ao de Munzert (2007), aplicado à recriação mental no
domínio da música, apresenta resultados idênticos, ou seja, imaginar uma
música pode desencadear uma resposta semelhante à que se observa, quando
a mesma é escutada. Munzert (2007) evidencia que os dados resultantes deste
tipo de estudos realçam a importância do treino mental para o alcance de
desempenhos de excelência. Em nosso entendimento, os dados
providenciados por estes estudos poderão ser utilizados, para um mais fácil e
célere processo de recuperação funcional de Jogadores, aquando de uma
lesão. Sugerimos por isso, que durante o período em que estes não se
encontram disponíveis para treinar, os Jogadores lesionados, deverão observar
jogos de Futebol e os treinos da respectiva equipa, para que possam estar em
contacto com o Futebol, centrando sobretudo a sua observação nos Jogadores
cuja Especificidade Posicional, é mais próxima da sua. Para o que mais
importa nesta dissertação, ou seja, o treino de Crianças, consideramos
igualmente que estes dados providenciam informação extremamente útil. Os
factos apresentados por Munzert (2007), juntamente com os dados que mais
adiante iremos providenciar acerca das possibilidades de desencadearmos

355
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

alterações ao nível da representatividade cerebral, que poderão ser induzidas


pela prática precoce de uma actividade, no caso do Futebol, poderão revelar-se
muito pertinentes e um forte argumento em relação às potencialidades da
Aprendizagem por observação.
O tipo de potencialidades sugerido por este estudo poderá ser explorado
desde idades muito precoces, uma vez que, a capacidade de imitação surge
bastante precocemente no Homem (Changeux, 2003; Decety & Jackson, 2008;
Dunbar, 2006; Goleman, 2003, 2006). Após o primeiro ano de Vida, as
Crianças são capazes de aprender por imitação (Changeux, 2003), sendo este
tipo de Aprendizagem reconhecido há muito, como uma das principais vias do
desenvolvimento infantil (Goleman, 2006). De acordo com Dunbar (2006), as
Crianças apresentam uma capacidade extraordinária para aprenderem, ainda
muito precocemente através da observação, motivo pelo qual, aprendem
geralmente com uma ou duas demonstrações. O Ensino por imitação pode ser
entendido nas Crianças como aquele, em que estas aprendem a fazer, o que
vêem ser feito (Goleman, 2003).
Buzan (2003) salienta que muitos dos “génios mundiais” de diferentes
domínios, como Isaac Newton, Stephen Hawking, Muhammad Ali, Alexandre
Magno, foram desde idades precoces influenciados pelos respectivos ídolos.
Parecendo o mesmo verificar-se, com a generalidade dos Talentos no Futebol,
os quais adoptaram desde cedo os seus modelos, admirando-os e tentando
assemelhar-se a eles. Além disso, observa-se que nos seus processos de
Aprendizagem, realizados através do Futebol de Rua, os companheiros de
brincadeira mais velhos e ou mais dotados, despertavam nos restantes o
desejo de os imitar:

“E os craques que ali jogavam? Nem queiram saber (…) De Maradona a


Paulo Futre, passando por nomes como Rabat Madjer, Balakov, Vítor Baía,
Luís Figo, Rui Costa e tantos, tantos outros, era só dizer! Cada um assumia o
papel do seu ídolo e, de repente ali se erguia um parque transformado num
estádio imponente, ainda assim pequeno para o talento de tantas estrelas no
mesmo local.” (Ricardinho, 2007, in Brás, 2007, pp. 14).

356
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

“… o meu pai e eu cruzámo-nos com o capitão da equipa, Bryan Robson.


Ambos passávamos horas em frente ao televisor a ver vídeos deste homem, o
nosso maior herói de todos os tempos.” (Beckham, 2004, pp. 56).
“… nós assistíamos a todos os jogos da primeira equipa em Old Trafford. Não
só para ver o jogo, mas também para observar cada jogador individualmente,
fazendo-me recordar o tempo em que o meu pai me levava às finais da Taça
quando eu era pequeno. «Não ligues ao jogo, David, concentra-te no Bryan
Robson e observa bem o que ele faz».” (Beckham, 2004, pp. 68).
“Uma grande parte daquilo que uma pessoa se torna surge por aprendizagem
e por observação dos outros. Outra é transmitida e só temos que a transmitir
igualmente à geração seguinte.” (Beckham, 2004, pp. 120).

“Para um drible, posso inspirar-me em algo que tenha visto na televisão, pois
presto atenção a tudo o que fazem os fenómenos como Ronaldo ou Zidane.
Entre nós existe como que uma emulação á distancia. É muito engraçado. No
Treino estou sempre a tentar pequenas coisas para ver o que dá. É uma
mistura entre instinto e treino. Se funcionar, aperfeiçoo o movimento e tento
explorá-lo em jogo.” (Ronaldinho, 2004).

“Bochini (…) Bertoni (…) Beto Alonso (…) Rivelino (…) eu via-os a todos e
aprendia.” (Maradona, 2005, pp. 20/21).

“Agora já sei o que quero ser quando for grande. Quero ser como Kopa e
fazer em campo as mesmas coisas que ele faz!” (Platini, cit. por Lobo, 2007,
pp. 205).

“Dizia: «sim, sou o Platini». Quando jogava com um amigo, eu era o Platini e
ele era outro jogador.” (Zidane, in Platini, 2006).
“Queria ser como ele (De Francescoli) porque era lindo vê-lo jogar.” (Zidane,
2002).

357
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

“… com o apoio, a minha força de vontade de querer vencer, foi muito


importante. Não esquecer, os mais velhos que estavam nessa altura na equipa
do Benfica (…) e então eu aprender com eles, e ouvir, concentrar-me e meter
aqui dentro, e depois, e seguir em frente.” (Eusébio, 2006).
“… em 61 ganho a minha primeira taça da Europa, com 19 anos. E eu vou
contar uma pequenina história, porque ganhar uma competição daquelas não é
qualquer equipa (…) mas eu (…) com aquela minha inocência, eu não queria
saber da taça, eu queria era a camisola do meu ídolo, D. Alfredo Di Stefano.
Cheguei ao pé dele: «Sr. Di Stefano, esqueceu-se da minha camisola». Ele
ofereceu-me a camisola (…) foi espectacular, graças a Deus, ainda tenho a
camisola”. (Eusébio, 2006).
“… Di Stéfano não é da minha idade (…) é mais velho, mas eu na África
ainda ouvia, através dos jornais, rádio, nós não tínhamos a televisão nem nada,
e falavam desse nome. E eu, quando cheguei cá a primeira coisa que eu falei
com o Coluna, «é um dia conhecer Sr. Di Stéfano» (…) quando acabou o jogo,
ganhamos o jogo, marquei dois golos, a segunda Taça da Europa, minha
primeira Taça da Europa, e eu não me importei nada (…) a minha inocência
(…) eu queria era a camisola dele, e quando ele me deu a camisola foi a maior
satisfação da minha vida como Jogador de Futebol (…) «ganhamos a Taça dos
Campeões Europeus» (António Simões), está bem mas eu tenho aqui a
camisola do meu ídolo.” (Eusébio, 2007).

“Comecei a jogar, como todos os miúdos da minha altura, na rua (…) no


Futebol de Rua vais aprendendo por ti, vais vendo os teus amigos, na altura
poucos eram os jogos que davam na televisão. Ou seja, passava os fins-de-
semana, nos estádios a ver os jogos, e ía-se aprendendo por nós. (…)
Chegava ao bairro e treinava (…) eu e os meus amigos aquelas coisas que
víamos os profissionais a fazer, e que víamos de um colega que tivesse mais
jeito, mas sempre por nós” (J. Costa, 2006).

“… onde começou o meu relacionamento com o Futebol, eu acho que é uma


coisa normal em todas as crianças brasileiras, porque o Futebol, está no

358
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

sangue, está no seio da família brasileira. Mas, no meu caso especificamente,


o meu pai, o Dondinho (…) ali eu já tinha um certo conhecimento do Futebol do
meu pai, tinha quatro a cinco anos (…) aí eu comecei a querer ser igual ao
Dondinho, igual ao meu pai (…) eu sempre achei que ía um dia jogar como o
meu pai.” (Pelé, 2006b).
“Suponho que ter um pai futebolista foi o princípio de tudo. A maior parte dos
filhos quer ser como os seus pais e eu não era excepção (…) Limitava-me a
dizer aos meus amigos: «Um dia, serei tão bom como o meu pai.»” (Pelé,
2006c, pp. 35).
“… as crianças sonhadoras imitam sempre o comportamento dos seus ídolos”
(Pelé, 2006c, pp. 41).
“Zizinho era o jogador que eu mais idolatrava.” (Pelé, 2006c, pp. 78).
“… a diferença que eu posso fazer entre o meu pai, que sempre foi o meu
ídolo e que sempre foi o meu ponto de referência, e o Zizinho. É que o meu pai
era o meu ponto de referência, mas eu não tinha conhecimento, eu via ele
Jogar em Bauru. O Zizinho, eu cheguei a ver jogar algumas vezes e joguei
contra ele no final da sua carreira. Então, para mim, era o Jogador mais
completo que eu tinha visto, Jogador que defendia, que driblava, que subia de
cabeça, que fazia o passe, que jogava, se tivesse que jogar no pau, na
marreta, ele estava lá no pau e na marreta. Então era um jogador que eu
admirava muito e eu, sempre me inspirei no Zizinho, e eu procurava até imitá-
lo, porque poucos Jogadores eu vi com tanta qualidade (…) foi um Jogador em
que eu realmente me procurei inspirar” (Pelé, 2006b).
Com base nas evidências dos relatos de Talentos no Futebol,
supratranscritos, podemos inferir que a Aprendizagem por modelação assume,
nos primeiros contactos com o Jogo um papel de especial relevância no Ensino
do mesmo. “Reconhece-se, então, que o futebol é iniciado por muitos
praticantes de forma absolutamente espontânea, por apropriação dos modelos
a que as crianças têm acesso, através de vários meios de comunicação.”
(Ramos, 2003, pp. 18). Pacheco (2001) salienta que é uma característica das
Crianças quando iniciam a sua prática no Futebol, procurarem seguir os seus

359
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

modelos, imitando frequentemente os seus ídolos, Jogadores mais velhos


(Pacheco, 2001).
Consideramos pertinente neste ponto salientar, que o facto dos Jogadores de
Futebol que atingiram um nível de relevo, se tornarem em modelos para muitas
Crianças, representa para estes responsabilidades sociais acrescidas, para as
quais deverão ser preparados ao longo do processo de Formação,
demonstrando assim, que o Futebol foi para eles também uma escola válida
para a Vida, e que os seus exemplos poderão contribuir para a exequibilidade
do trinómio, Mais Criança, Mais Futebol, Mais Educação, incentivando as
Crianças que os idolatram a estilos de Vida desejáveis. “O ídolo tem uma
responsabilidade muito grande, ele tem de assumir essa situação, porque, eu
acho que você ser cobrado é, sinal que você tem capacidade, você tem
competência, então você não pode fugir dessa responsabilidade, porque as
pessoas elas, só cobram de quem pode dar.” (Zico, 2006).
Consideramos, que não sendo uma missão exclusiva dos treinadores de
jovens, também lhes compete enquanto Formadores, contribuir para que os
Talentos sejam capazes de em idades mais adultas, se revelarem bons
modelos sociais para os jovens. “Hoje em dia, as crianças são mais curiosas e
ousadas. É por isso que temos de formar treinadores para ensinar aos jovens
não só o que acontece no relvado, mas também psicologia, fisiologia, (regras
sobre) drogas e doping e educação cívica. O treinador do futuro terá de ser, em
momentos diferentes, um professor, um companheiro, um pai um amigo, etc.
Não será suficiente impor apenas a autoridade. Precisará, acima de tudo, da
capacidade de ouvir e de passar a mensagem. Tem de ser credível e capaz de
defender os seus valores”. (Aimé Jaquet, s/d, cit. por Barclay, 2006, pp. 6).
Torna-se assim pertinente, que às Crianças sejam fornecidos modelos sociais
de qualidade, até porque nos Humanos, comparativamente com outras
espécies que lhe são aproximadas, se observa uma maior propensão para
imitar comportamentos, mesmo quando estes se revelam desajustados (Crato,
2006a). De acordo com Sprinthall & Sprinthall (1993) são inúmeros os
comportamentos que podem ser aprendidos através da modelagem, podendo
neles se incluir comportamentos indesejáveis. Estas advertências levam-nos a

360
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

sugerir, que além de modelos sociais de qualidade, deve ser proporcionado às


Crianças, o acesso a referenciais de Jogo de qualidade, isto é, Jogadores e
jogares de qualidade, para que a qualidade das suas imitações e recriação das
observações efectuadas se caracterize igualmente pela qualidade. “Imitar é o
primeiro efeito da admiração. Falando de aprender, Zidane deveria ser
obrigatório nos colégios”. (Valdano, 2002, pp. 73).
Torna-se assim pertinente, que as Crianças desde idades muito precoces
possam ter acesso a modelos de qualidade. A este respeito fazemos as
seguintes sugestões, que em nosso entendimento podem contribuir, para que
as Crianças possam observar e consequentemente tentar imitar e desenvolver
desempenhos de qualidade:
ƒ Nos locais de treino, em que tal seja possível, sobretudo nos clubes em
que as equipas seniores são profissionais, sugerimos que o contacto dos
jovens com os Jogadores da equipa principal deva ser mais próximo.
Consideramos que a presença de forma rotativa dos Jogadores seniores, nos
treinos de Crianças, com o intuito de interagirem com os mais jovens e de
efectuarem exibição de habilidades com bola, poderia revelar-se uma boa
estratégia para tentar recriar nos pretensos Úteros Artificiais, o efeito de
emulação que os jovens mais habilidosos criavam nos seus companheiros de
Rua. Devendo para tal, ser salvaguardado no contracto dos Jogadores
profissionais, a possibilidade destes realizarem o que acabamos de sugerir.
ƒ Deverá ser proporcionado aos jovens, a possibilidade de poderem
assistir a jogos nos estádios, algo que é cada vez menos visível, não somente
pelo receio que os pais têm relativamente a questões de segurança, mas
também, porque tanto os clubes como as federações não o incentivam.
Sabemos da existência em Portugal de clubes, em que os Jogadores
pertencentes às suas equipas de Formação se vêm obrigados a pagar para
verem a equipa principal jogar no próprio estádio. O que consideramos, um
absurdo.
ƒ Uma vez que consideramos que nas idades mais precoces, a primazia
deverá ser colocada na relação da Criança com a bola, e que a presença de
modelos de execução, se revela importante para o desenvolvimento dos

361
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Talentos, sugerimos que se poderia revelar uma estratégia duplamente


vantajosa, a integração de Jogadores recém retirados nas equipas dos
escalões mais jovens, exercendo funções que poderíamos apelidar de
«Treinadores Técnicos», que serviriam de modelos de execução, in loco, para
os mais jovens. Pela qualidade de relação com a bola que à partida possuem,
estes Jogadores funcionariam como um bom referencial para os mais jovens. O
motivo pelo qual, consideramos duplamente vantajosa esta estratégia prende-
se com o facto, de através da incorporação destes Jogadores recém retirados,
se poder atenuar aquele que é um dos períodos mais complicados para um
Jogador profissional, o período que sucede ao fim da carreira. Um momento
que exige geralmente grande resiliência, motivada pelo facto de deixarem de
poder corresponder ao estatuto de notoriedade e de protagonismo que
ostentaram durante os anos em que Jogaram.
“Há aí (…) um elemento de decepção afectiva não é. Quer dizer a perda das
luzes da ribalta, não é. E aí depois, não é somente um problema de
inteligência, aí é um problema de afecto (…) Porque há aqui um problema
muito engraçado. (há uma somatização do sucesso) Exactamente, e do
gostarem de nós, que eu acho que é muito importante. Quer dizer o tipo que
estava habituado a chegar à cervejaria e toda a gente, vinha pedir autógrafos e
pagar-lhe um copo, depois o “gajo” entra e é um ex. jogador. Deve ser horrível,
percebe (…) é uma desabituação, sobretudo numa sociedade muito
mediatizada, como é a actual repare, antigamente não era assim. Quer dizer, o
Salazar, ninguém o conhecia, o Salazar apareceu e desapareceu mas ele
próprio não se mostrava, não aparecia nas revistas. Imagine um tipo que
costumava ser um habitué dos «Prós e Contras» e que, de repente, deixa de
ser convidado, deve apanhar um susto para a vida dele.” (Sobrinho Simões,
Anexo 1).
Os Jogadores recém retirados ao desempenharem as funções que
sugerimos, veriam esse sentimento de frustração, capaz de levar em casos
extremos a distúrbios emocionais que poderão culminar em tentativas de
suicídio ou actos de violência (Pereira, 2006), serem atenuados por voltarem a
sentir que ainda são protagonistas, e modelos a imitar pelos mais novos.

362
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

Michels (2001) e Cruyff (2002) partilham desta nossa sugestão, sugerindo que
após o término das respectivas carreiras, os Futebolistas poderiam
desempenhar funções muito diversas relacionadas com o Futebol, entre as
quais, a possibilidade de colaborarem no Ensino do Jogo aos mais jovens,
contribuindo-se deste modo, para um mais prestigiante e facilitado abandono
da actividade ao mais alto nível.
ƒ Numa época, em que a generalidade das formas de Cultura se
encontram subordinadas à tecnologia (Capra, 1996), sendo assim uma
realidade muito presente, sobretudo no quotidiano das Crianças, estas
poderiam ser utilizadas de forma proveitosa para o Futebol. Consideramos que
a facilidade de acesso por parte dos jovens, à Internet deveria ser aproveitada
pelos treinadores, no sentido de os incitarem a visitar sítios onde possam
observar desempenhos dos grandes Talentos da actualidade no Futebol
Mundial. Podendo para tal fornecer aos jovens, um conjunto de endereços
electrónicos, nos quais poderão acerder a vídeos com tais desempenhos. Esta
mesma sugestão, poderia quanto a nós, partir dos responsáveis pelos próprios
clubes, academias ou escolas de Futebol, que por sinal geralmente publicitam
os seus serviços, com interesses marcadamente comerciais na Internet,
criando para o efeito páginas electrónicas próprias. Um local que quanto a nós,
deveria permitir aos jovens acederem a vídeos com os desempenhos dos
maiores Talentos da actualidade, através do estabelecimento de ligações
paralelas ao site oficial do clube, academia ou escola de Futebol.
Outra estratégia que poderia ser adoptada, numa época designada como
sendo a de novas tecnologias é, marcar alguns momentos especiais, como por
exemplo o aniversário de um jovem, com a oferta de vídeos ou DVD’s,
contendo imagens ou filmes com os desempenhos dos maiores Talentos do
Futebol actual e do passado, ou ainda com um conjunto de habilidades que
poderiam servir de mote, às propostas feitas pelos treinadores para trabalho de
casa. Poderá ser igualmente interessante, que o conteúdo das ofertas se
circunscreva a um único Talento, devendo o perfil deste, condizer com as
potencialidades funcionais e posicionais que o jovem apresenta para a prática
de Futebol. Estas ofertas poderiam ser ainda utilizadas, como forma de premiar

363
Em busca da Exequibilidade do Trinómio Mais Futebol, Mais Criança, Mais Educação

os Jogadores, e de conferir aos treinos um carácter ainda mais competitivo. Por


exemplo, aquando da realização de um concurso de habilidades ou torneio
interno, o prémio, previamente estipulado e referido aos jovens, seria oferecido
aos vencedores.
“… era uma cassete que eu tinha visto sobre o Maradona, era um treino (…)

nos treinos fazia gestos ainda mais especiais. Só ele conseguia fazê-los!
Lembro-me de um em particular. Era pôr-se praticamente na área dos seis
metros, quase na linha e enviar a bola à trave para que voltasse para ele. É
difícil consegui-lo nem que fosse só uma vez. Mas ele fazia isso 4, 5 vezes (…)
Guardo essa imagem. Isso para dizer que ele tinha uma precisão incrível, ia
dizer incredible, ía falar italiano!” (Zidane, 2002).
Algumas das sugestões por nós efectuadas, encontram-se explícitas nas
seguintes palavras de Cruyff (2002, pp. 27), que consciente da inevitabilidade
das novas tecnologias, não se opõem a estas tentando em vez disso,
aproveitar as vantagens que daí podem advir; “considero que há bastante vida
mais além do que se ensina em geral. Por isso sempre quis encontrar um
modo de ensinar essas coisas. Treinando, por supuesto, mas também através
de aulas de futebol, mediante mestres, ou simplesmente, com um CD-rom ou
um jogo de PC em que apareçam todos esses elementos e tu, logo, podes
praticar em casa. Assim qualquer um poderia aceder a eles e interpretá-los à
sua maneira.”
Ficou neste ponto evidente, que no treino de jovens deveremos estar
conscientes da necessidade de uma abordagem sociológica ao tema da
Aprendizagem, a qual nos leva a concluir que durante o processo de
sociogénese, as Crianças alteram os seus comportamentos, no caso num
domínio específico de actividade, o Futebol, como consequência da
modelagem a outras Crianças pertencentes ao mesmo grupo, ou outros
indivíduos que reconheçam como modelos. A Especificidade Precoce, implica o
reconhecimento do que acabamos de referir, revelando-se deste modo
necessário transportar para os pretensos Úteros Artificiais, referenciais de Jogo
de qualidade, isto é, permitir que desde idades muito precoces as Crianças
contactem e observem jogares e Jogadores de qualidade.

364
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

7 – O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois


entranha-se»! A Importância da InCorporAcção Precoce do
Jogo na Exponenciação de Talentos:

“O «viver» vai trazendo consequências para a maneira como se vive.”


(Coutinho, 2005, pp. 44).

7.1 – Talento uma realidade em Potencial, a importância da sua


Exponenciação:

“Diamantes nada mais são do que pedaços de carvão que fizeram o seu trabalho com
competência.”
(Malcon Forbes, s/d, cit. por J. Bento, 2004, pp. 111).

“… entendo como talento esse fio que ata as virtudes quase sempre com o correcto, e
às vezes com o distinto.”
(J. Valdano, 1998, pp. 161).

A temática da perícia ou expertise como é globalmente designada, tem nos


últimos trinta anos vindo a ser primordial nas investigações desenvolvidas nas
ciências cognitivas (Levitin, 2007). Permanece contudo no seio da comunidade
científica alguma controvérsia quanto às origens e definição do conceito. De
acordo com Araújo (2004) a adopção do conceito de Talento surgiu, para
justificar a necessidade de explicar aquilo, que não se sabe explicar e que se
relaciona com um bom desempenho dos praticantes. J. L. Starkes (1993)
define de forma muito sintética o Talento, como alguém que é capaz de
destrezas muito boas. A. Marques (2005) apresentando uma definição um
pouco mais elaborada, sugere que se trata de um “indivíduo que apresenta
características endógenas especiais, as quais sob a influência de condições
exógenas óptimas deixa prever a possibilidade de obtenção de prestações
desportivas elevadas.” Howe, Davidson, & Sloboda (1998) definem Talento,
como algo que tem origem em estruturas genéticas, que é identificável
precocemente, quando ainda não foram atingidos desempenhos de excelência,

365
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

sendo assim, algo que prediz aqueles que apresentam maiores probabilidades
de se notabilizarem. Acrescentam ainda, que apenas uma minoria pode aceder
a esta categoria, caso contrário o conceito deixaria de fazer sentido. Ou seja,
podemos depreender que aqueles que são considerados Talentos pertencem a
uma Elite. De acordo com Marisa Gomes (Anexo 5) o Talento é “uma
predisposição que as pessoas têm para fazer, para determinadas coisas (…)
uma predisposição que se vai desenvolvendo ao longo do tempo, porque um
talento pode ter uma predisposição, mas se não se manifestar, não é talento
(…) Se deixam de as manifestar, deixam de ser talento.” Para a nossa
entrevistada, o Talento é ainda definido pela sua singularidade, e pela
capacidade que tem em se exprimir qualitativamente de forma regular. O
conceito de Talento, pressupõe regularidade e persistência de desempenhos
elevados, a excelência desportiva requer a manutenção de performances de
nível superior, durante um período de tempo alargado (J. Starkes & Allard,
1993). “O que é importante é distinguir neles, qualquer coisa que eles têm e
que com o crescimento não desaparece.” (Marisa Gomes Anexo 5). A
excelência desportiva é um fenómeno multifacetado (Stemberg, 1997), sendo
sugeridos quatro domínios na excelência desportiva; domínio fisiológico,
domínio técnico, domínio cognitivo (táctico \ estratégico; perceptivo \ tomada de
decisão) e o domínio emocional (Costa, 2005; Dias, 2005; Janelle & Hillman,
2003). Contudo, Janelle & Hillman (2003) advertem para algo que
consideramos muito pertinente quando sugerem, que contrariamente ao que
tem sido efectuado nas pesquisas em torno da excelência desportiva seria
fundamental, para um melhor esclarecimento, se os efeitos do Talento nos
diferentes domínios fossem analisados de uma forma conjunta. Esta
advertência vai de encontro, ao que sugerem alguns autores relacionados com
o Futebol. Também nós entendemos, que tal como o Jogo, também o
entendimento do Talentos não se coaduna com perspectivas fragmentadas,
pois são inteirezas inquebrantáveis. O Futebol, não deve ser entendido através
da compartimentação de vários factores, visto que se trata de algo mais do que
o conjunto desses factores (Ferreira & Queiroz, 1982).

366
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

No domínio da expertise, (Ericsson, 1996; Ericsson & Smith, 1991; Feltovich,


Ford, & Hoffman, 1997; J. Starkes & Allard, 1993; J. L. Starkes & Ericsson,
2003) sugere-se que o Talento é extensível a diferentes actividades, ou seja,
que nos diferentes domínios evidenciados anteriormente, os Talentos, e não
somente para o Desporto, apresentam vantagens quando comparados com
sujeitos considerados não Talentos. Parte-se deste modo do princípio, que
existem características comuns a diferentes modos de expressão da expertise
ou perícia, considerando-se o Talento como uma qualidade generalizada, e
extensível a diferentes domínios de actividade (Ericsson, 1996). A abordagem
em torno da problemática dos Talentos, apresenta algumas falhas, podendo
ser refutável e contra-argumentável (Levitin, 2007). Apesar de se verificar, uma
grande correspondência entre vários domínios analisados (Ericsson, 1996;
Ericsson & Smith, 1991; Feltovich, Ford, & Hoffman, 1997; J. Starkes & Allard,
1993; J. L. Starkes & Ericsson, 2003), ao ponto de por exemplo, os Talentos no
Futebol apresentarem vantagens a nível cognitivo e perceptivo (Ward &
Williams, 2003), consideramos que tais vantagens advêm da especificidade
desta modalidade, a qual é capaz de estimular consideravelmente tais
faculdades. O Talento pode se manifestar de formas diferenciadas entre os
sujeitos e mais concretamente entre as Crianças (Levitin, 2007). Sem
querermos recusar a ideia, de que o Talento pode ser extensível a diversos
domínios de actividade, especialmente àquelas em que se observam algumas
semelhanças estruturais, entendemos que os Talentos no Futebol são uma
realidade em concreto e específica, embora possa por inerência daí advir
algumas vantagens para outros âmbitos de actividade.
O desenvolvimento do Talento, e o alcance de desempenhos de excelência
resultam de um continuado incremento nas prestações, um processo que
ocorre durante anos e décadas (Ericsson, 2003; J. L. Starkes & Ericsson,
2003).
A utilização do conceito Talento, faz-se por vezes de forma pouco rigorosa e
de forma indevida, associando-se geralmente, e de forma errada, este conceito
a uma predisposição inata quando na verdade, ao analisarmos os seus
percursos de vida observamos que a expressão do Talento tem subjacente

367
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

anos de trabalho (Levitin, 2007). Inúmeros autores sugerem, que o contexto em


que os Talentos se desenvolvem e de modo particular a quantidade de prática
que desenvolvem ao longo de vários anos é, um aspecto determinante para o
alcance de desempenhos de excelência (Côté, Baker, & Abernethy, 2003;
Côté, Macdonald, Baker, & Abernethy, 2006; Dias, 2005; Ericsson, 1996; H.
Fonseca, 2006; Levitin, 2007; Salmela & Moraes, 2003; Stein, 1997; Stemberg,
1997; Stones, Hong, & Kozma, 1993).
“O talento é, no meu entendimento, uma predisposição (…) No entanto, se
não existir um meio propício para que isso aconteça, as coisas não acontecem
(…) se um miúdo tiver uma predisposição enorme para jogar futebol e nunca
jogar, com certeza que não vai ser um talento, um expertise. Porque a prática,
o meio não estimula o desenvolvimento (…) Os bons são aqueles que têm uma
predisposição e que depois têm um meio propício a esse desenvolvimento.”
(Marisa Gomes, Anexo 5).
Sobrinho Simões (Anexo 1) afirma não ter dúvidas que o Talento é sobretudo
construção. “Conheço mal algumas actividades artísticas mais «intuitivas» e
não sei portanto se, para criar música, é preciso muito treino. Tenho a certeza
que para fazer música é preciso muito treino. Por exemplo, para ser um bom
pianista é preciso treinar como o diabo. Não sei se para escrever numa pauta
uma coisa genial é preciso muito treino. Se excluirmos as actividades artísticas
«intuitivo-criadoras», tudo o resto é sobretudo suor.” (Sobrinho Simões, Anexo
1).
Leandro Massada (Anexo 2) realça que o Talento resulta da combinação de
variadíssimos aspectos, entre os quais destacam a dimensão psicológica, o
contexto social e a importância do treino, sem contudo ignorar, a dimensão
genética. “O talento em princípio é genético (…) portanto o indivíduo nasce já
com determinadas características para determinadas áreas, para a música,
para a matemática, etc, que depois se forem bem «treinados», isto é, se os
estímulos posteriores ao seu nascimento forem executados de forma repetida e
se o indivíduo, também se aproveita das suas características genéticas do
indivíduo nessa altura, esse talento poderá ser aproveitado em termos do
indivíduo para a área em que se encontra vocacionado (…) Não há talento sem

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

genética; não há talento sem estímulo depois funcional e não há talento que
possa emergir se esse indivíduo não tiver um objectivo, e esse objectivo tem a
ver fundamentalmente com os aspectos psicológicos dessa própria pessoa.”
Indo de encontro ao que refere o nosso entrevistado Levitin (2007), salienta
que a genética é apenas um ponto de partida, uma vez que todos os
«fenómenos imediatos», na verdade necessitam de anos para se tornarem no
que são, salientando deste modo, que todos os Talentos necessitam de se
exponenciar através de um meio favorável. Segundo Rocha (2001), a
comparação de desempenhos desportivos de desportistas com proveniências
distintas, implica necessariamente a avaliação da relação entre factores de
determinismo genético e ambiental. A actividade física, assim como outros
aspectos de natureza multifactorial, é inequivocamente um produto resultante
do efeito aditivo e interactivo de genes e meio ambiente (Silva et al., 2004).
Torna-se deste modo pertinente compreender, a influência da hereditariedade
e do meio no comportamento Humano e de modo particular, na expressão do
Talento no Futebol.
A problemática da hereditariedade e do meio foi, durante muito tempo
discutida, verificando-se inicialmente uma tendência para se considerar que as
faculdades mentais dos sujeitos, provinham maioritariamente dos nossos
genes, Natureza, sugerindo-se a existência de um determinado gene para cada
faculdade. Contudo, aqueles que defendiam a influência do meio ambiente,
foram com o tempo ganhando alguma notoriedade, sendo hoje consensual,
que a hereditariedade fornece entre trinta a setenta por cento da nossa
estrutura neural e que quarenta a setenta por cento resulta do impacto
ambiental. A variação justifica-se, pois depende do traço ou do comportamento
específico que estivermos a considerar (Jensen, 2002).
Para Changeux (2003) estando a expressão de um determinado gene, de
certa forma dependente de um contexto, torna-se pertinente questionar até que
ponto fará sentido, no vocabulário científico alusões a «genes da inteligência»
ou «genes da linguagem». Face ao conjunto de informação de que dispomos
actualmente sobre esta problemática, parece não fazer sentido a falácia que
sugere que genes e ambiente são independentes, uma vez que estes se

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

influenciam mutuamente (Crabbe, 1999). “Constitui uma ideia já aceite que o


homem não tem natureza, mas sim que tem – ou melhor que é – uma história”
(Malson, 1988, pp. 5). Dunbar (2006) adverte que apesar dos nossos
comportamentos poderem ser determinados geneticamente, isso não significa
que a decisão para agir de um modo específico seja geneticamente
determinada. Para este autor, precisamos de algo mais para além do
genoma40, visto que ter exclusivamente comportamentos geneticamente
determinados, pode ser bom para organismos simples como a amiba, mas
revela-se insuficiente para organismos mais complexos, os quais têm de
adoptar comportamentos flexíveis, baseados na Aprendizagem para
conseguirem sobreviver. Parece ser biologicamente impossível um gene,
funcionar desconectado do seu meio ambiente, uma vez que são concebidos
para serem regulados por agentes provenientes das suas proximidades
imediatas (Goleman, 2006). Segundo Crabbe (1999) o desafio que se nos
coloca na actualidade é, o de tentar perceber o impacto do meio nas diferenças
de expressão dos genes, o que se constitui como mais um golpe para a
ingénua visão do determinismo genético, que postula que as experiências são
irrelevantes e que os genes são tudo. A este respeito Capra (2005), apresenta
uma perspectiva sistémica para explicar a relação entre genes e meio, na qual
as relações do organismo com os restantes sistemas, prefiguram a sua
configuração, refutando assim a ideia de «determinismo genético», sugerindo
que esta crença, de que os organismos são unicamente determinados pela sua
composição genética, é mais uma falácia decorrente da abordagem
reducionista. Uma falácia, que é igualmente denunciada por Lourenço & Ilharco
(2007). A alternativa que mais plausível se tem revelado, para superar as
limitações do determinismo genético é denominada de Epigenética41, e tem
vindo a ser sugerida, mesmo que de forma implícita nas ideias de vários
autores de diferentes áreas (Arsuaga, 2007; Changeux, 2003, 2008; Coutinho,
2005; Damásio, 2003a, 2003b; Edelman, 2008; Goleman, 2006; Habib, 2003;

40
Genoma: totalidade da soma dos genes existente nos nossos cromossomas (Damásio,
2003a).
41
Epigenética: “mecanismos de transmissão fora dos genes” (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Jacquard, 1995; Jensen, 2002; Jones, 2006; Levitin, 2007; Malson, 1988;
Mendonza, 1998; Nava, 2003; P. C. e. Silva, 2007; Simões, 2007; Smith &
Szathmáry, 2007; Varela et al., 2001).
Relativamente à etiologia da palavra epigenética, Changeux (2003, pp. 217)
esclarece que “a palavra «epigenético» compõem-se de dois étimos gregos:
epi, que significa «por cima» e génesis, que quer dizer «nascimento»”. O
conceito epigenética combina assim segundo este autor dois significados, a
ideia de sobreposição à acção dos genes, sobretudo como resultado da
Aprendizagem, e a de desenvolvimento coordenado e organizado. Para Habib
(2003) Epigenético, pode considerar-se tudo o que não é genético. Uma
definição que nos parece contudo insuficiente, e que poderá não respeitar a
reciprocidade e interdependência existente entre o que é genético e o que o
pode influenciar, mesmo não sendo genético. Para Mendonza (1998) trata-se
de uma teoria, que se opõe àquela que sugere a preformação estritamente
determinada pelos genes, para este autor, consiste numa teoria segundo a qual
um indivíduo se desenvolve, por diferenciação sucessiva de novas estruturas.
De acordo com Goleman (2006) reporta-se ao estudo acerca do modo como as
experiências alteram a funcionalidade dos genes. Reforçando assim a ideia
sugerida por outros autores (Changeux, 2003; Paulo Cunha e Silva, Anexo 4),
de sobreposição à acção dos genes. Podemos considerar que Epigenética é, a
propriedade evidenciada pelos fenómenos que dependem da influência do
envolvimento sobre a expressão genómica.
O desenvolvimento dos organismos vivos, pode deste modo ser explicado
com base em processos Epigenéticos, os quais dependem da relação entre o
genoma e o meio ambiente (Smith & Szathmáry, 2007). Arsuaga (2007)
salienta que as inovações morfológicas e comportamentais observadas na
nossa espécie ao longo do processo filogenético resultaram, de um jogo entre
forças genéticas e forças ecológicas. “Portanto, a função é extremamente
importante, quer num acto de vida intra-uterina, quer depois quando a criança
nasce e começa a adoptar o bipedismo, o estímulo da função é que o vai
desenvolver. Desenvolver em termos de funcionalidade e a expressão genética
dos seus genes ligados ás características genéticas da população, neste caso

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

dos primatas, e as características genéticas adquiridas pela função, pelos


chamados caracteres filogenéticos, só poderão ter expressão, quer o genético
puro, quer o filogenético ligado à função, se esse miúdo for sujeito à
funcionalidade. Isto para dizer que o aspecto do treino, o aspecto da função do
professor na área do desporto, o aspecto do professor em relação à musica no
treino da música, o aspecto da função do professor noutras áreas é
extremamente importante.” (Leandro Massada, Anexo 2). Uma afirmação que
consideramos de extrema pertinência, e que ajuda a suportar a ideia, de que
com base numa devida estimulação se torna possível Aculturar, dentro de
determinados limites, a dimensão genética. De tal modo, que se torna possível
um fenómeno aparentemente ContraNatura se tornar, numa das mais sublimes
e admiradas formas de expressão Humanas, o Futebol de qualidade.
Habib (2003) salienta igualmente a necessidade de adoptarmos uma
perspectiva Epigenética para compreendermos a aquisição de aptidões
Humanas, justificando que para a concretização de um “programa genético”, é
indispensável a presença de estimulação ambiental. A relação entre genes e
meio é como se depreende muito próxima verificando-se inclusive a nível
molecular (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4; Simões, 2007; Smith & Szathmáry,
2007), o que torna ainda mais difícil, ou até mesmo impossível, de acordo com
Simões (2007), dissociar genes do ambiente. Este mesmo autor acrescenta,
que somos, inclusive os recém nascidos, produto de uma interacção
permanente e mais ou menos equilibrada, dos genes que possuímos, com o
ambiente em que vivemos. Apesar de possuirmos um potencial genético, os
estímulos ambientais são determinantes, sendo que quando nos referimos aos
aspectos ambientais devemos neles incluir, as condições pré-natais a que o
indivíduo foi submetido (Levitin, 2007). Um dado que torna relevante a
precocidade das acções do meio sobre os indivíduos.
Goleman (2006, pp. 217) sugere o conceito de «epigenética social», o qual
reforça a importância das relações e experiências sociais no desenvolvimento
dos indivíduos, destacando que este fenómeno é mais significativo durante a
infância. O que se constitui, em nosso entendimento, como mais um argumento
que reforça as potencialidades de uma abordagem Epigenética precoce, ao

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

nível da exponenciação de Talentos no Futebol. Um processo que vê deste


modo justificada, a importância da influência do treino (estímulo ambiental) em
idades precoces, sobre o potencial genético de potenciais Talentos do Futebol.
“A repetição, a função pode estimular os chamados factores filogenéticos, isto
é, há determinados factores funcionais que nascem connosco e que foram
transmitidos ao genoma, por serem caracteres úteis e esses caracteres
filogenéticos podem ser melhorados e aumentados se o indivíduo for
estimulado em termos de função. Se não for não há expressão desses genes.
Portanto, o papel do treino é sempre extremamente importante” (Leandro
Massada, Anexo 2).
Varela et al. (2001, pp. 259) salientam, a importância da interacção,
especificação mútua e codeterminação do Corpo com o meio envolvente, ao
afirmarem que “os genes são, assim, melhor concebidos como elementos que
especificam aquilo que no ambiente deve ser fixado para que qualquer coisa
opere como gene”. Uma concepção próxima da apresentada por P. C. e. Silva
(2007, pp. 364), para o qual o Corpo é um sistema de relação que funciona
articulado com a Natureza e com o meio, sendo de esperar, “que o corpo
absorva algo do lugar e que o lugar fique como algo do corpo.”
De acordo com Habib (2003), o desenvolvimento cerebral e
consequentemente dos comportamentos estão relacionados com aspectos
genéticos e Epigenéticos. Changeux (2003) sugere que os processos
Epigenéticos, podem actuar sobre o organismo e de modo particular sobre o
cérebro, constituindo-se o desenvolvimento cerebral como um processo
evolutivo Epigenético. O facto do cérebro ser um órgão sujeito a processos
Epigenéticos, é em nosso entendimento de especial relevância para esta
dissertação, uma vez que deixa antever a possibilidade de se poder induzir,
através de estímulos externos como o treino, alterações significativas ao nível
macro e micro do cérebro. Aspectos que mais adiante iremos evidenciar, e que
implicam a não-aceitação, de perspectivas redutoras em torno da problemática
da exponenciação de Talentos.
“De um modo geral, não é nem prudente nem produtivo entrar no debate que
opõe natureza e meio ambiente para tentar decidir se uma certa função

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

cognitiva tomou forma, de certa maneira e em certo indivíduo, sob influência


determinante do genoma, ou sob a influência determinante do meio ambiente,
nomeadamente através da cultura. Torna-se cada vez mais claro, que esta
oposição é falsa, e que as influências da natureza e do ambiente são não só
combinadas mas frequentemente mútuas.” (Damásio, 2003b, pp. 263/264).
“Mas eu gostaria, que não ficasse com a ideia, de que entre Natura e Cultura,
há uma cisura. A Cultura é, uma extensão da Natura, ou seja, é a Natura do
Humano” (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).
As Neurociências têm vindo a demonstrar que a organização cerebral, apesar
de ter subjacente informação existente no código genético, é fortemente
influenciada, «esculpida», pelo ambiente (Nava, 2003). O mundo exterior
constitui-se assim, como um alimento para o cérebro em desenvolvimento
(Jensen, 2002).
Segundo Damásio (2003a) o genoma Humano é insuficiente para especificar
a totalidade da estrutura cerebral, sugerindo a existência, de algumas
especificidades estruturais determinadas por genes, e ainda um grande número
de outras especificidades determinadas, pela actividade do organismo ao longo
da sua ontogénese. Também Changeux (2003, 2007) sugere a existência de
um “invólucro genético”, ou seja, uma base genética para a organização
cerebral, existindo assim um número importante de estruturas cerebrais
preformadas ou inatas, que no entanto, requerem um desenvolvimento ulterior
resultante da interacção com o meio (Changeux, 2003), capaz de actuar sobre
as conexões entre neurónios, caracterizadas por apresentarem considerável
plasticidade, conferindo ao cérebro uma enorme variabilidade, a qual nos torna
únicos (Changeux, 2007).
De acordo com Levitin (2007), o desenvolvimento do Talento é um processo
Epigenético, que como tal, não deve ignorar a existência de factores genéticos,
contudo estes não podem ser interpretados e compreendidos, se dissociados
dos factores ambientais. “Para a norma, mais do que para os extremos, a
importância dos genes desvanece-se face ao ambiente e a biologia não tem
muito a dizer” (Jones, 2006, pp. 234). A citação anterior realça o papel do meio,
mas adverte para algo que não deve deixar de ser observado, sobretudo numa

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

abordagem como a que foi encetada até ao momento, na qual tem vindo a ser
mais acentuada a tónica nos aspectos relacionados com o meio, podendo
deste modo passar a ideia, errada, de que estes de modo exclusivo, poderão
explicar o Talento. Como se pode ler, de acordo com Jones (2006) para os
extremos, ou seja, para os fora de série onde se incluem os Talentos, a
componente genética parece ter um papel relevante, mais relevante segundo
este autor do que para aqueles que são considerados normais, contudo, e
reforçando uma vez mais esta ideia, as possíveis vantagens a nível genético,
relativamente à norma, não são suficientes para de modo exclusivo, explicar a
expressão da perícia num determinado domínio. Serão as experiências de
cada um que acentuarão as diferenças entre os indivíduos, por razões
genéticas, Epigenéticas e relacionadas com a experiência vivida, não há dois
seres vivos iguais (Coutinho, 2005). Depreende-se assim que para além da
genética e da Epigenética, há outras dimensões que deverão igualmente ser
contempladas. Simões (2007) refere a este respeito, o conceito de
Ecogenética, o qual consiste na regulação ambiental do funcionamento dos
genes. Ecogenética “é a capacidade que o meio tem de nos influenciar” (Paulo
Cunha e Silva, Anexo 4). Epigenética e Ecogenética, embora conceitos muito
próximos não deverão ser tomados como sinónimos, conforme esclarece
Sobrinho Simões (Anexo 1), que não diferenciando de forma muito significativa
estes dois conceitos, não os toma como sinónimos, afirmando que a
“Epigenética é para nós um conceito mais operacional. A Ecogenética tem a
ver mais com a extensão da Epigenética para níveis que nós sabemos que
existem mas que ainda não conhecemos bem.” Também Paulo Cunha e Silva
(Anexo, 4) diferencia estes dois conceitos, esclarecendo que Epigenética se
relaciona com os mecanismos de transmissibilidade que decorrem fora dos
genes, sendo assim mecanismos eferentes, enquanto que Ecogenética se
relaciona com a capacidade que os Humanos apresentam de inscrever o que
os rodeia dentro de si, isto é, reporta-se à capacidade que o meio tem de nos
influenciar, podendo deste modo considerar-se como mecanismos aferentes. O
nosso entrevistado sugere e esclarece, que através da Ecogenética
recebemos, e da Epigenética transmitimos.

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Para Sobrinho Simões (Anexo 1) a Ecogenética contempla, um carácter mais


especulativo por comportar uma multiplicidade de aspectos que se encontram
imbricados, uma opinião igualmente partilhada por Paulo Cunha e Silva (Anexo
4).
Ecogenética poderá deste modo, ser um conceito de grande aplicabilidade na
questão dos Talentos, uma vez que a exponenciação destes é, enquanto
projecto Antropológico, um processo multidimensional altamente complexo, no
qual algumas das dimensões, pelas relações múltiplas estabelecidas com as
demais, se tornam pouco perceptíveis e dificilmente decifráveis, sobretudo se
dissociadas do percurso e dos agentes intervenientes ao longo do processo de
construção de um Talento. Ou seja, é um conceito que poderá ajudar a decifrar
aquilo que segundo Araújo (2004) não se sabe explicar muito bem, mas que se
relaciona com um bom desempenho, ou seja, o Talento. Para Paulo Cunha e
Silva (Anexo 4) o desenvolvimento de Talentos relaciona-se com este conceito,
ou seja, como esclarece, com o que cada um transporta e com o que o meio
lhe pode fornecer.
Como se tem tornado evidente, temos sugerido que o Talento é também
construção e exponenciação, que como tal podem e devem ser fomentados,
através da possibilidade de se propiciar aos indivíduos, e de modo particular às
Crianças, condições de estimulação que o permitam.
Damásio (2003a) realça que no seu entendimento, o conceito de inato, não
exclui a existência de um papel para o ambiente e para a Aprendizagem na
determinação de uma estrutura ou padrão de actividade. Depreende-se deste
modo, a existência de um espaço para a construção e exponenciação, isto é,
para a possibilidade de Aprendizagem. Foi já evidenciado anteriormente, que
os «fenómenos imediatos» de acordo com Levitin (2007) são um embuste,
encontrando-se subjacente a esses fenómenos um processo de construção,
geralmente desconsiderado e entendido como irrelevante ou inexistente.
“A verdade que tudo isto proclama em definitivo é que o homem como
homem, antes da educação, não passa de uma possibilidade, isto é, ainda
menos do que uma esperança.” (Itard, 1963, cit. por Malson,1988, pp. 101).

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
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Face aos conhecimentos de que dispomos na actualidade, Jacquard (1995)


refere fazer cada vez mais sentido, a seguinte questão fundamental: que
Homens queremos ser? Não devendo ter uma interpretação e aplicação linear,
entendemos que se trata de uma questão de facto pertinente, daí inferirmos
que se pode igualmente questionar, com as devidas salvaguardas: que
Talentos desejamos construir? Uma questão que coloca aos clubes, a
necessidade de criarem referências para a Aculturação dos seus Talentos e
para o processo que lhe deverá estar subjacente. Entendemos, que o processo
de construção, exponenciação, e o produto final deverão encontrar-se
coadunados, para um correcto entendimento de uma premissa fundamental
para a exequibilidade da Especificidade Precoce, o Binómio Unitário
Concepção de Treino – Concepção de Jogador. Não devemos ignorar, que
o futuro é o elemento causal de todo o processo (Frade, 1985), sendo como tal,
no futuro onde reside a base do significado, e do projecto que cada um tem, o
ponto a que desejamos chegar deve ser uma projecção feita no presente
(Lourenço & Ilharco, 2007). “Portanto, as tendências do vir a ser são uma
propriedade geral da existência” (Drãgãnescu & Kafatos, 2004, pp. 59).
Partimos do pressuposto que o treino assume uma enorme relevância na
Aculturação da dimensão genética, também para nós, os “genes não são o
destino” (Goleman, 2006, pp. 217). “Não podemos só estar à espera que o
gene vá determinar tudo.” (Leandro Massada, Anexo 2). “A descoberta do
genoma veio-nos permitir perceber muito bem de onde é que nós vimos, em
termos de espécie, em termos de seres humanos (…) mesmo em termos de
origem da vida, mas não nos ensina nada para onde é que nós vamos.”
(Sobrinho Simões, Anexo 1). Entendemos que no Futebol, de modo ainda mais
notório que noutras modalidades, o determinismo genético não faz muito
sentido. Não obstante, foi recentemente noticiada a intenção de um clube
inglês, descobrir Talentos com base na detecção de um determinado
cromossoma, o qual supunham ser o responsável pelos desempenhos de
Cristiano Ronaldo (Monteiro, 2008). “Trata-se de um cromossoma muscular,
conhecido como ACTN3, que é normal encontrar-se em atletas especialistas
em competições nas quais a velocidade é fundamental, como Francis

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Obikwelu.” (Monteiro, 2008, pp. 48). Trata-se da expressão paradigmática


daquilo que consideramos ser o mito dos “Atletas”, o qual representa uma
concepção redutora daquilo que é o rendimento no Futebol. “Só que não basta
ser-se rápido para se ser bom futebolista. Existem outros aspectos” (Monteiro,
2008, pp. 48), e a velocidade como já denunciamos é uma fonte de mal
entendidos (Morin, 2003).
A tarefa de descobrir o suposto cromossoma foi proposta ao geneticista
Henning Wackerhage, o qual entendeu ser inaceitável tal proposta, e não
somente do ponto de vista ético. “Não há nem haverá nenhum teste para
detectar o gene Ronaldo e seria inaceitável que um patrão analisasse
geneticamente os seus empregados (…) Um grande futebolista necessita de
condições cerebrais, noção da bola, condição física e muitas outras coisas nas
quais entram uns 500 genes, os quais, consoante o indivíduo, seja Pelé ou
Ronaldo funcionam em constelações diversas” (Wackerhage, 2008). Apesar
deste geneticista considerar, ter alguma pertinência a identificação do suposto
cromossoma em modalidades como o Atletismo, não encontra motivos para o
fazer no Futebol. “Quem não tem uma cópia intacta do gene ACTN3,
dificilmente será um velocista de elite” (Wackerhage, 2008). Importa assim
realçar, que sendo possível identificar a “capacidade atlética como o caminho a
percorrer por um jovem promissor para chegar ao topo, mas que está muito
longe de ser fácil (…) o facto de alguém ser um atleta talentoso não significa
que possa vir a tornar-se num futebolista talentoso” (Henning Wackerhage, cit.
por Monteiro, 2008, pp. 48).
Queiroz (2008) torna evidente que o Talento de Jogadores do nível de
Cristiano Ronaldo tem muito de construção e exponenciação, quando afirma o
seguinte; “Cristiano Ronaldo treina-se como nunca vi alguém treinar-se. Às
vezes tenho de mandar pará-lo de treinar-se, por uma questão de gestão do
seu esforço. Pelé disse um dia que a prática é tudo e começo a pensar que leu
essa declaração muitas vezes.” Acrescenta ainda, e continuando a reforçar a
importância da prática para a exponenciação de Talentos no Futebol, que
Cristiano Ronaldo se pudesse “estava sempre com bola nos pés, mas trabalhei
com atletas que na sua folha de serviços nunca contabilizaram uma hora

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

extraordinária. E esse comportamento faz a diferença.” De facto a prática


parece ser um aspecto determinante, para o alcance de desempenhos de
excelência no Futebol. Note-se contudo, que não é nossa pretensão
menosprezar a importância da componente genética. “Nós não podemos pôr
um burro a cantar ópera”, como adverte Leandro Massada (Anexo, 2).
Constatamos, e já evidenciamos que grande parte dos Talentos inicia as suas
práticas ainda em idades bastante precoces, dedicando-lhes bastante tempo.
Evidências que tornam pertinente compreender até que ponto, existe relação
entre esses factos e os níveis de desempenho alcançados. J. L. Starkes &
Ericsson (2003) advertem, e indo de encontro ao embuste dos «fenómenos
imediatos» (Levitin, 2007) que geralmente as pessoas ao se maravilharem com
as performances de desportistas de elite como, Michael Jordan, ignoram o
trajecto que fez, com que estes chegassem a atingir tais níveis de
desempenho, parecendo deste modo fazer sentido a alcunha colocada a um
dos maiores Talentos do Futebol Mundial, Alfredo Di Stéfano, “doble crack, de
nascimento e pelo que aprendeu” (Amadeo Carrizo, s/d, cit. por Lobo, 2007, pp.
173). A este respeito, importa ainda salientar a existência de «Talentos de
Trabalho», os quais se reportam àqueles Jogadores que não apresentando
uma “predisposição” extra para a prática do Futebol, conseguem através de
muito trabalho, superar muitas das suas limitações e exponenciar as suas
virtudes, mostrando-se capazes de expressar desempenhos de grande relevo.
“O indivíduo menos talentoso (…) pode tornar-se talentoso mesmo não tendo
talento se adquirir técnicas de rotina, de repetições, de trabalho. Mas a esses
nós temos dificuldade em variar muito a quantidade de estímulos porque eles
têm dificuldade em aprender, mas eles podem aprender determinados
estímulos. É aquilo que nós verificamos por exemplo nas escolas de futebol
onde não existe futebol de rua, onde não existe proprioceptividade, onde não
existe habilidade pelo treino, as escolas da Suiça, da Áustria ou na Rússia, por
causa do tempo, há pouco futebol de rua, há pouca proprioceptividade, há
pouca habilidade natural, pouco desenvolvimento dessas características, mas
eles se forem estimulados no passe, na recepção, na forma como se
desmarcam, na forma como eles colocam a bola, eles conseguem subverter

379
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

essas dificuldades, têm alguma técnica.” Contudo, como adverte o provérbio,


«por muito que o burro trabalhe, nunca chega a ser cavalo».
Segundo Simões (2007) o sucesso de Talentos em diferentes domínios,
como Rosa Mota ou Einstein, resultam de um processo Ecogenético, este
autor, não tem dúvidas em salientar, que são sobretudo resultado de muito
trabalho. Ao que nós acrescentamos muito e bom trabalho, isto é, com
qualidade.
Levitin (2007) reportando-se ao domínio da música, realça igualmente a
importância da prática e do treino para a proficiência dos Talentos musicais. A
estimulação parece deste modo, ter uma relevância enorme no
desenvolvimento do Talento, somos sobretudo o resultado do ambiente, isto é,
estimulação, da Educação e do treino (Simões, 2007). Advertimos uma vez
mais, que sobretudo, não significa exclusivamente. Não obstante,
consideramos que a possibilidade de através da utilização de estímulos
ambientais, como o treino, independentemente da importância que tenhamos
de reconhecer aos aspectos genéticos, evidencia a importância de se tomar
convenientemente as «rédeas» dos processos de Formação. “Como
educadores, podemos essencialmente influenciar os aspectos do carácter dos
alunos que são «aprendidos».” (Jensen, 2002, pp. 52).
Os treinadores de jovens, vêm-se assim face à responsabilidade de
contribuírem para o desenvolvimento de Talentos, uma tarefa da qual não se
podem demarcar, sendo para tal necessário a desmistificação de alguns mitos,
relacionados com a problemática do Talento, nomeadamente, a crença de que
estes nascem. “No futebol, mais especificamente, existe uma crença muito
difundida de que bons jogadores já nasceram com capacidade inata
privilegiada para o ofício, o que inibe iniciativas mais sistemáticas de aplicação
de conhecimentos científicos à formação e treinamento de jogadores” (Tani,
2004, pp. 245/246). “E eles ao fazerem isso, o próprio treinador que o está a
fazer, está a excluir-se ele mesmo do papel de treino.” (Leandro Massada,
Anexo 2). Entendemos por isso, que um treinador que oriente a sua acção pelo
princípio de que os Talentos surgem por geração espontânea, não acreditam
nas potencialidades do treino, ou seja, não acreditam naquilo que fazem. Uma

380
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

atitude que leva, não somente à não contribuição para a exponenciação dos
Talentos, como ainda, para o “estragar” desses potenciais Talentos (Marisa
Gomes, Anexo 5).
Face ao exposto e de acordo com Howard Gardner (s/d, cit. por Goleman,
2003, pp. 57) “chegou a altura de alargar a nossa noção do espectro de
talentos. A contribuição mais importante que a escola pode fazer para o
desenvolvimento de uma criança, é ajudar a encaminhá-la para a área onde os
seus talentos lhe sejam úteis, onde se sinta satisfeita, e competente.” Esta
afirmação realça o papel da escola, e como tal dos Úteros Artificias, ao nível da
exponenciação de Talentos, salientando a importância de se respeitar a
vocação dos jovens, o que sugere que o Talento não deve ser imposto,
realçando também que este deverá ser desenvolvido num domínio específico
de actividade. Compete aos treinadores criar contextos em que haja uma maior
propensão à ocorrência de “interacções talentosas”. (Araújo, 2004). Um
aspecto que Marisa Gomes (Anexo 5) realça, igualmente como sendo decisivo.
Contextos relacionados, em nosso entendimento, com os ingredientes que
consubstanciam a qualidade da Especificidade Precoce. Levitin (2007) refere
que para se ser basquetebolista, não basta nascer alto, é preciso Aprender o
Jogo e praticar durante anos. Reforçando-se deste modo, a importância da
Aprendizagem do Jogo e contacto prolongado com este processo. De acordo
com Toledo (2004) o fenómeno Pelé resulta, de um processo altamente
complexo, que contempla as premissas evidenciadas anteriormente, Aprender
e praticar, e também tudo o que o envolveu ao longo da sua ontogénese. Ou
seja, a construção e exponenciação daquele que é considerado o maior
Talento do Futebol Mundial, é resultado de um processo de construção
Ecogenético.
Podemos assim depreender que no Futebol o entendimento do Talento não
se pode cingir à componente genética, visto que os Talentos praticam mais, o
que explica o nível de desempenho de excelência que conseguem alcançar (H.
Fonseca, 2006). Importando contudo não ignorar que essa maior quantidade se
relaciona com determinada qualidade, Futebol, o qual confere especificidade e
Especificidade ao Talento, não devendo este ser entendido, como uma

381
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

competência em geral, mas sim uma competência que se manifesta num


domínio específico, o Futebol.
“Pode inferir-se que para se ser jogador de alto nível não basta nascer
talento; torna-se imprescindível treinar. A genética predispõe para algo, mas só
por meio da modificação de atitudes e comportamentos se consegue,
efectivamente sê-lo. Neste sentido, o talento possibilita e potencia a
aprendizagem, mas não pode substituí-la, o que significa que o capital
biológico do jogador necessita de validação posterior. Exprimir talento é algo
que leva tempo e exige treino. A rotina tem que potenciar esse treino em vez
de o suprimir ou substituir. Diríamos que antes de se entregar a um processo
de treino, pode existir talento, mas o jogador só o existe depois disso.”
(Garganta, 2004, pp. 231).
Entendemos que o Talento é potencial (Marisa Gomes, Anexo 5), isto é,
encontra-se latente, sendo o treino no caso do Futebol, determinante para a
sua manifestação. “O potencial é (…) aquilo que estamos a contar que
aconteça, porque sabemos que existe ali qualquer coisa” (Marisa Gomes,
Anexo 5).
De acordo com Malcon Forbes (s/d, cit. por J. Bento, 2004, pp. 11)
“diamantes nada mais são do que pedaços de carvão que fizeram o seu
trabalho com competência.” A analogia dos diamantes com os Talentos no
Futebol é perfeita, visto que também estes, em bruto, apenas dispõem de
potencial (genes) para se tornarem Talentos e porque não «diamantes»,
verdadeiras pedras preciosas para os clubes, necessitando contudo que sobre
eles se desenvolva um trabalho competente, Especificidade Precoce.

382
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

7.2 – A Plasticidade Cultural de uma realidade Plástica, o Corpo:

“O homem distingue-se dos animais pelo facto de nascer prematuro. A sua


personalidade elabora-se, depois do nascimento, numa série de matrizes culturais que
têm tão grande importância para o seu desenvolvimento, como a matriz materna (…)
Quer isto dizer que uma criança, normal por ocasião do nascimento, pode tornar-se
praticamente idiota se as condições de educação forem desfavoráveis.”
(Sivadon, s/d, cit. por Malson, 1988, pp. 90).

“Que desgraça para um homem envelhecer sem nunca ter visto a beleza e a força de
que é capaz o corpo.”
(Xenofonte, 427 -355 A. C., cit. por J. Bento, 2004, pp. 89).

A construção Ecogenética de Talentos torna-se possível, porque somos


organismos dotados de grande plasticidade. “Os organismos (…) mostram um
elevado grau de flexibilidade e de plasticidade internas (…) deixam margem
para variação e flexibilidade, e é essa que habilita os organismos vivos a
adaptarem-se a novas circunstâncias” (Capra, 2005, pp. 262).
De acordo com Dalai-Lama (2006) o Universo rege-se pela lei da
impermanência, a qual estabelece que tudo é susceptível de mudança. Como
salienta Leandro Massada (Anexo 2) a “plasticidade biológica”, não sendo
exclusiva é, uma característica da nossa espécie.
O Desporto é um artefacto Cultural muito válido para intervir sobre a
plasticidade Humana, conferindo ao Corpo um carácter plural e metamórfico
condizente com as especificidades das práticas realizadas (J. Bento, 2004; P.
C. e. Silva, 2007). P. C. e. Silva (2007) evidencia a importância do Desporto
para a plasticidade Corporal, apresentando o Corpo como uma matéria
semiótica, capaz de admitir múltiplas inscrições, mudando a sua identidade
através de um jogo de significados, apresentando o Corpo desportivo como um
“corpo de transformação”.
Actualmente é consensual aceitar-se, que o somatótipo reflecte na sua
essência a forte noção de plasticidade da sua expressão face a forças sempre
cambiantes do ambiente (C. Silva et al., 2004). Importa contudo neste ponto
advertir para a necessidade de ter em consideração, o que foi já referido neste

383
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

trabalho, acerca daquele que é o entendimento que temos do conceito Corpo,


ou seja, contemplando-o como uma inteireza inquebrantável.
“Já foi estudado que o nosso cérebro pode de facto mudar a nível
macroscópico (novos circuitos) e microscópico (novos mecanismos celulares)
(…) Mas para isso é preciso tempo físico e relação verdadeira vivida ao nível
do corpo e da mente.” (Nava, 2003, pp. 121). As possibilidades de plasticidade,
poderão permitir através de uma adequada influência ambiental, um novo
funcionamento mental e concomitantemente também uma nova forma de
funcionamento corporal (corpo-propriamente-dito) (Kandel, 2001). Não
obstante, a relação inquebrantável existente entre cérebro, mente e corpo-
propramente-dito, para uma mais fácil abordagem à problemática da
plasticidade Corporal, devemos ter em consideração que esta se manifesta em
diferentes domínios que contudo, se interrelacionam e influenciam
mutuamente, como aliás será ainda mais evidente na abordagem que iremos
encetar posteriormente nesta dissertação.
A flexibilidade ecológica foi suportada pelo cérebro (Arsuaga, 2007), o que
nos leva a neste ponto nos centrarmos nas alterações que se podem observar
a nível cerebral, sem contudo, e voltamos a frisar, deixarmos de ter como pano
de fundo o que foi sugerido anteriormente (Kandel, 2001; Nava, 2003).
Para Reichholf (1996) o cérebro é um órgão especial, justificando-o referindo
que contrariamente ao tecido muscular, não se pode desenvolver com
estimulação, e que o seu tamanho final se encontra praticamente determinado
à nascença. Este entendimento do cérebro como uma realidade imutável após
o nascimento, foi fortemente influenciado pelos escritos produzidos pelo
neurobiólogos, Santiago Ramón e Cajal, que sugeriam o cérebro com
capacidades de reorganização e de criação de novas conexões entre
neurónios, mas incapaz de formar novos neurónios (Lledo & Gheusi, 2007).
Actualmente sabe-se que a afirmação de Reichholf (1996) não representa a
verdade, como comprovam autores que se têm pronunciado sobre a
plasticidade cerebral (Ansermet & Magistretti, 2008; Berthoz, 2008; Bjorklund,
1997; Capra, 2005; Changeux, 2003, 2007; Chollet, 2007; Damásio, 2003ª,
2003b; Davidson & Irwin, 1999; Ganascia, 1999; Goleman, 2003, 2006; Habib,

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

2003; Jeannerod, 2007; Jensen, 2002; Klingler, 2007; Levitin, 2007; Lledo &
Gheusi, 2007; Mendonza, 1998; Nava, 2003; Simões, 2007; Valente, 2007).
Sobrinho Simões (Anexo 1) considera que “a grande descoberta em termos
de plasticidade neuronal foi, não só que ela era brutal, como se prolongava ao
longo da vida, com especial «força» nos primeiros anos, até ao ano e meio,
dois anos.”
Parece ser aceite actualmente que o cérebro Humano, inclusive no adulto, é
capaz de criar novos neurónios, processo designado de neurogénese, e
também que este órgão apresenta uma forte potencialidade para se
reorganizar. A conclusão geral dos trabalhos desenvolvidos neste âmbito
sugere que a rede neural não é uma estrutura de todo determinada, pelo
contrário sugere que se submete a permanentes alterações (Lledo & Gheusi,
2007).
As provas mais fecundas dos estudos que têm vindo a ser realizados nos
últimos anos, remetem-nos para a surpreendente capacidade que o cérebro
revela para se reorganizar, tendo por base um conjunto de neurónios definitivos
e invariantes à partida (Chollet, 2007).
As ciências que estudam o cérebro têm assim, vindo a debruçar-se sobre a
tentativa de compreensão do processo adaptativo, que este órgão desenvolve
face à informação que recebe, reconhecendo-se actualmente que a estrutura
organizacional do cérebro depende, da interacção de aspectos genéticos e de
aspectos relacionados com o meio ambiente, motivo pelo qual, Changeux
(2003) sugere a existência a nível cerebral, de uma plasticidade epigenética.
Damásio (2003a) adverte que sendo o cérebro um sistema auto-organizado,
necessita que a plasticidade cerebral tenha subjacente estabilidade, a qual é
conferida por estruturas cerebrais que permanecem inalteradas. Em
consonância, Changeux (2007) salienta que apesar do córtex cerebral a nível
macroscópico apresentar muitas invariâncias, na sua anatomia e capacidades,
contempla igualmente uma enorme variabilidade, suportada pela plasticidade
que se observa ao nível das conexões entre neurónios e as sinapses
(Changeux, 2007).

385
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

De acordo com Jensen (2002), foi Marian Diamond neuro-anatomista da


Universidade da Califórnia a pioneira no estudo da plasticidade cerebral, ao
descobrir que o cérebro Humano apresenta uma enorme maleabilidade.
Changeux (2007) refere que a plasticidade é um tema já antigo, remontando à
antiguidade grega, época em que Aristóteles sugeria que o nosso cérebro se
construía através da experiência, tendo a este respeito a plasticidade cerebral
um papel determinante. As investigações levadas a efeito neste domínio,
sugerem que quer as células cerebrais, quer as células nervosas podem mudar
de forma e sofrer alterações a nível morfológico e fisiológico (Valente, 2007).
Esta capacidade evidenciada pelo cérebro, tem vindo a designar-se de
neuroplasticidade, podendo também designar-se em Neurociência, de
plasticidade. Para Changeux (2003) o termo plasticidade designa a capacidade
geral de um neurónio e das suas sinapses para alterarem as suas propriedades
em função do seu estado de actividade. Levitin (2007) refere que a capacidade
dos neurónios mudarem de funções e do cérebro se reorganizar, pode ser
designada de neuroplasticidade. Para Valente (2007), a plasticidade consiste
na propriedade que as sinapses têm de alterar a sua capacidade de criar um
potencial de acção nos neurónios adjacentes. Evidenciando deste modo, a
importância da plasticidade sináptica, nível microscópico, para a plasticidade
cerebral evidenciada a um nível macroscópico. A plasticidade sináptica tem
vindo a despertar o interesse de alguns autores (Ansermet & Magistretti, 2008;
Changeux, 2007; Ganascia, 1999; Klingler, 2007; Valente, 2007), os quais
procuram compreender os fenómenos que lhe estão subjacentes. As sinapses,
locais de transferência de informação entre os neurónios, são constantemente
remodeladas pela experiência dos sujeitos (Ansermet & Magistretti, 2008).
Klingler (2007) apresenta a plasticidade sináptica, como sendo a chave dos
fenómenos de Aprendizagem e de memorização. Valente (2007) refere-se à
hipótese da plasticidade sináptica e da memória que propõe, que as alterações
sinápticas dependentes de actividade neuronal são induzidas nas sinapses
relevantes durante a formação da memória. A plasticidade sináptica, pela
relação que tem com a memória assume-se como determinante para a
consolidação das Aprendizagens (Changeux, 2007). Sabendo-se actualmente,

386
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

que esta varia com o tipo de actividade desenvolvida, e que a Aprendizagem


motora através da exercitação sistemática é capaz de gerar novas sinapses no
córtex cerebral (Jensen, 2002). O que se revela particularmente pertinente para
a abordagem que nos encontramos a efectuar.
A plasticidade que caracteriza o cérebro Humano permite uma Aprendizagem
constante, e uma enorme flexibilidade ao nível das Aprendizagens (Goleman,
2003; Jensen, 2002). O que consequentemente, implica que o cérebro seja
estimulado e seja submetido a um processo de Aprendizagem, para que as
conexões cerebrais se possam alterar (Nava, 2003). Até as estruturas
cerebrais mais estáveis, como os neurónios, se modificam através da
Aprendizagem (Damásio, 2003b).
Independentemente dos níveis de plasticidade cerebral a que nos
reportemos, parece consensual admitir-se que o cérebro é um órgão que
evidencia uma grande plasticidade, e que esta se relaciona de forma muito
estreita com os processos de Aprendizagem, como tal, também com o treino.
Sendo um processo epigenético (Changeux, 2003), a plasticidade cerebral
permite que os estímulos ambientais exerçam a sua influência. “O cérebro
manifesta uma certa plasticidade e é susceptível de sofrer influências diversas,
determinantes para a sua organização funcional, senão estrutural.” (Mendonza,
1998, pp. 78). O cérebro em crescimento e dos adultos é modelado, tendo
como principal influência a experiência do indivíduo (Habib, 2003; Jeannerod,
2007). Destas influências provenientes do ambiente, Goleman (2006) destaca,
que a neuroplasticidade é fortemente influenciada pelas interacções sociais.
Os padrões de plasticidade cerebral não se revelam contudo, idênticos para
todas as estruturas, ou circuitos cerebrais. “Tudo parece apontar para que
circuitos mais arcaicos são mais difíceis de se modificarem do que outros mais
recentes” (Nava, 2003, pp. 128). Este dado é quanto a nós muito relevante,
para a abordagem que temos vindo a efectuar, uma vez que como salientamos
anteriormente, a adopção do bipedismo e suas adaptações consequentes, que
tornam o Futebol aparentemente ContraNatura são, à escala evolutiva
recentes. O que face ao exposto por Nava (2003), parece sustentar a hipótese
de uma possível reversão de alguns dos condicionalismos relacionados com o

387
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Futebol. “As nossas avaliações instantâneas e as primeiras impressões podem


ser educadas e controladas” (Gladwell, 2007, pp. 23).
Outros dados relevantes provêm de estudos (Chollet, 2007), efectuados no
âmbito da reabilitação de indivíduos com limitações a nível motor, os quais
demonstram que o sistema motor pode mobilizar regiões cerebrais, que por se
reportarem a funcionalidades ancestrais, se encontram geralmente inactivas.
Os neurónios preexistentes podem ser activados ou remodelados pela
Aprendizagem, mostrando-se o nosso cérebro capaz de mobilizar redes
neurais que foram preteridas, por contrariarem a evolução (Laroche, 2007).
Nestes processos de suplência, observa-se o desempenho de funções por uma
nova estrutura cerebral, depois da falha ou inibição da estrutura que
normalmente as deveria assegurar, designando-se estes processos de
adaptabilidade cerebral, de fenómenos vicariantes, os quais permitem ao
cérebro evidenciar alguma plasticidade a nível da sua organização funcional
(Mendonza, 1998). Os dados providenciados por este tipo de estudos são, em
nosso entendimento, muito relevantes, podendo por exemplo, explicar porque
motivo indivíduos que apresentam amputação dos membros superiores,
manifestam uma funcionalidade mais próxima dos padrões de funcionalidade
ancestrais a nível dos membros inferiores, e claramente distinta daquela que se
observa na generalidade dos indivíduos. A analogia destes casos com o
Futebol parece-nos, muito pertinente, visto que também o Futebol se
caracteriza por ser uma actividade cuja funcionalidade requerida é, mais
ancestral. A qual face ao exposto, permanece latente no cérebro. Tornando-se
desse modo necessário, que através do treino, se observe o despertar destes
arcaísmos que se encontram latentes. “Há um substrato arqueológico nos
nossos cérebros. Existem partes muito antigas, que se forem activadas, dão-
nos uma visão muito rudimentar e despertam-nos comportamentos mais
instintivos” (Chauvel, 2006, pp. 6).
Ainda no âmbito do estudo da plasticidade cerebral outro dado relevante,
sobretudo para a problemática que nos encontramos a tratar, reporta-se à
relação existente entre precocidade e maior propensão para a plasticidade.

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Sabe-se actualmente, que a plasticidade se verifica ainda no embrião


Humano, prolongando-se até à idade adulta, encontrando-se contudo,
exponenciada durante a infância (Changeux, 2007). Parece aceitar-se de forma
consensual, que a plasticidade cerebral encontra na infância, um período de
especial propensão para o seu desenvolvimento (Caldas, 2007; Davidson &
Irwin, 1999; Goleman, 2003, 2006; Nava, 2003; Simões, 2007). Para Marisa
Gomes (Anexo 5) o facto das Crianças, serem “mais plásticas” e “mais
adaptáveis”, explica-se por não terem conceitos, sendo deste modo mais
genuínos, isto é, menos Aculturados. Simões (2007) salienta que a influência
que o meio exerce no desenvolvimento, é mais significativa nas idades mais
precoces devido à maior plasticidade neuronal observada nesse período.
Sugere-se deste modo a existência de períodos críticos, nos quais a
plasticidade cerebral se encontra aumentada (Nava, 2003). “Nos primeiros
anos de vida a interligação das estruturas cerebrais e respectivas
competências criam como que janelas de oportunidade para processar formas
específicas de conhecimento. Isso ocorre em períodos próprios que têm sido
designados por períodos críticos.” (Caldas, 2007, pp. 14).
Períodos que se relevam de especial importância também, para o
desenvolvimento do reportório motor dos jovens, e para a exponenciação dos
Talentos, “sabemos que o desenvolvimento motor dos humanos nos primeiros
anos é decisivo para a somatização e para o potenciar de determinadas
características. E também sabemos que essa plasticidade existente nos
primeiros anos de vida é decisiva para o desenvolvimento de determinadas
características. As características que vão permitir ser melhores ou não”
(Marisa Gomes, Anexo 5).
A maturação cerebral acontece de forma mais célere até por volta dos quatro
anos, prolongando-se até à adolescência, o que permite à Criança ganhar um
maior controlo das capacidades motoras e sensoriais. À medida que a Criança
se vai desenvolvendo, verifica-se o desenvolvimento motor o que implica não
somente ossos e músculos, mas também a coordenação cerebral (Nava,
2003). Face ao exposto reconhece-se à infância um enorme potencial ao nível
da aquisição de conhecimentos específicos (Caldas, 2007), e também, ao nível

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

do desenvolvimento motor da Criança, dados que em nosso entendimento,


realçam a importância da Aprendizagem do Futebol se verificar em idades
precoces, uma vez que se trata de um domínio específico de actividade que
implica um conhecimento específico e um conveniente desenvolvimento motor.
A ideia de Especificidade Precoce por nós apresentada, adquire ainda mais
sustentabilidade se atendermos ao que refere Goleman (2003), o qual sugere
que a infância, e a adolescência são como janelas de oportunidade críticas
para a aquisição e definição de hábitos emocionais que irão governar as
nossas Vidas, esclarecendo ainda que a enorme plasticidade que se observa
durante a infância no cérebro Humano, significa que as experiências
decorrentes durante esse período, apresentam maior probabilidade para
causarem um impacto duradouro, abrindo e modelando deste modo, caminhos
neurais para o resto da Vida. Factos que se revelam particularmente
pertinentes, face à abordagem que iremos encetar no próximo ponto deste
trabalho, no qual a pertinência destes dados se tornará mais evidente. Ainda a
este respeito Levitin (2007) acrescenta que além de existir, uma maior
propensão na infância para o estabelecimento de novas conexões neurais,
durante os anos intermédios da nossa infância o cérebro inicia a poda das
conexões, retendo assim as mais importantes e utilizadas, o que permite que
os elementos estruturais mais básicos sejam InCorporados ainda muito
precocemente nos nossos cérebros. Uma selectividade, que de acordo com
Marisa Gomes (Anexo 5) se estabelece através do conjunto de vivências que
um indivíduo tem, um aspecto muito relevante e que nos remete para a
necessidade de qualidade subjacente ao processo de Aprendizagem do
Futebol nas idades mais precoces, mas não só, nestas idades.
A formação de novos neurónios, neurogénese, verificando-se nos adultos
(Goleman, 2006; Lledo & Gheusi, 2007; N. Marques, 2008), é mais efectiva e
atinge o seu expoente durante a infância (Goleman, 2006). A plasticidade
cerebral parece deste modo ser muito mais significativa na infância (Davidson
& Irwin, 1999). “É certo que o cérebro se conserva bastante plástico ao longo
de toda a vida, se bem que não na medida espectacular que vimos na infância”
(Goleman, 2003, pp. 249/250). Conforme salienta Sobrinho Simões (Anexo 1),

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

a plasticidade manifesta-se “com especial «força» nos primeiros anos, até ao


ano e meio, dois anos.”
Bjorklund (1997) salienta que a maturação cerebral nos Humanos, é um
processo mais moroso que nas restantes espécies, implicando
concomitantemente que a plasticidade neural se prolongue no tempo. “Uma
importante diferença entre os seres humanos e os outros primatas está no
facto de que as crianças humanas precisam de muito mais tempo para passar
na infância; elas demoram mais tempo para atingir a puberdade e a vida adulta
do que qualquer um dos símios antropóides.” (Capra, 1996, pp. 203). Arsuaga
(2007) refere que o período de desenvolvimento no Homem é o mais longo de
todos os primatas, o qual implica um prolongado período de dependência e de
necessidade de alimentação, assim como de outros cuidados até atingir a
idade adulta. A este fenómeno de maior dependência observada durante os
primeiros anos de Vida na nossa espécie, podemos designar de neotenia, o
qual, pelo facto de se verificar um “nascimento prematuro” na espécie Humana
implica um período de maturação mais alargado, encetando-se o
desenvolvimento posterior em contacto com o mundo e sob forte protecção dos
progenitores (Nava, 2003).
“Não duvido que se isolássemos desde a mais tenra idade duas crianças e se
fizéssemos o mesmo a dois quadrúpedes, estes últimos se mostrariam muito
superiores no que se refere aos meios de satisfazer as suas necessidades e de
tratar da sua própria conservação.” (Itard, s/d, cit por Malson, 1988, pp. 41/42).
O prolongamento da infância na nossa espécie é uma característica muito
peculiar, e embora possa à partida parecer uma desvantagem, revela-se
extremamente útil, uma vez que se repercute numa maior necessidade e
possibilidade de Aprendizagem, algo de que o Homem carece. “De todos os
seres vivos o homem é o que na ocasião do nascimento se mostra mais
incapaz, condição necessária para os progressos ulteriores”. (Wallon, s/d, cit.
por Malson, 1988, pp. 5). Como foi evidenciado anteriormente, o
desenvolvimento cerebral e a maturação deste órgão, observa nas idades mais
precoces um período bastante fértil, mostrando-se extremamente propenso à
Aprendizagem, facto que se encontra relacionado com a necessidade de

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

prolongamento da plasticidade neural, tal como observa Bjorklund (1997).


Habib (2003) refere a este respeito, que é a longa maturação pós-natal
observada na espécie Humana, mais longa que em qualquer outra espécie, e
que permite que as estruturas cerebrais se desenvolvam.
Uma gravidez convencional, decorre durante um período de nove meses,
contudo, o cérebro Humano necessita de mais um ano até complementar o seu
crescimento físico e mais cerca de quatro anos até que a Criança seja capaz
de sobreviver por si mesma (Dunbar, 2006).
Depreende-se deste modo, que quanto mais prolongada for a infância, maior
a possibilidade da espécie ser instruída e de Aprender (Reeves et al., 2006), tal
como se observa na nossa espécie. Se a esta evidência relacionarmos o facto,
do Homem nascer com uma enorme plasticidade e adaptabilidade (Marisa
Gomes, Anexo 5), de possuir “instinto para aprender” (Peter Marler, Charles
Gallistel, s/d, cit. por Changeux, 2003, pp. 52), e de que o cérebro desenvolvido
precocemente cresce de forma mais célere e mais propenso para a mudança,
abre-se um espaço que não deverá deixar de ser aproveitado (Jensen, 2002).
Sendo sobre esta possibilidade que o treino deve intervir, encontrando-se
assim, suficientemente sustentada a importância da Aprendizagem precoce do
Futebol.

392
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

7.3 – Cartografar o Jogo no Corpo:

7.3.1 - Mapas que nos orientam para um Jogar Melhor:

“O que me interessa não é criar um mapa do cérebro, mas compreender como funcionam,
como coordenam as diferentes regiões do cérebro a sua actividade, como originam os
pensamentos a simples descarga neuronal e os diferentes movimentos dos neurotransmissores,
gargalhadas e os sentimentos de intensa alegria e tristeza, e como é que todos estes, por sua vez,
nos levam a criar obras de arte duradouras e com sentido. Estas são as funções da mente e não
me interessa saber onde ocorrem a menos que o «onde» nos possa dizer algo sobre o «como» e o
«porquê». Esta é precisamente uma das pretensões da neurociência cognitiva.”
(Levitin, 2007, pp. 102).

Já neste trabalho evidenciamos que a tendência evolutiva verificada na


espécie Humana teve repercussões muito significativas a diferentes níveis,
tendo sido estas inscritas não somente ao nível da plasticidade do corpo-
propriamente-dito, mas também a nível da plasticidade cerebral, através de
alterações da representatividade cerebral. Com efeito, a motricidade e a
sensibilidade da mão e do pé, são de uma forma padronizada claramente
distintas, encontrando-se as mãos de uma forma geral na nossa espécie, mais
desenvolvidas. Facto que como já salientamos foi comprovado pelos estudos
realizados nos anos 50 por W. Penfield, que conseguiu comprovar que estes se
encontram organizados somatotopicamente, tendo sido designados os
mapeamentos do córtex motor e do córtex sensitivo, respectivamente por
«homúnculo» motor e «homúnculo» sensitivo (Habib, 2003).
O mapeamento do córtex cerebral foi estudado inicialmente no século
passado por Marshall, Woolsey e Bard em 1941, em macacos, e por Penfield e
Rasmussen em 1950, em Humanos. Na representação cortical do sistema
sensório-somático, cada parte do corpo-propriamente-dito, é representada
proporcionalmente à importância relativa da percepção sensorial, sendo a
distorção obtida um reflexo das diferenças de densidade de inervação em
diferentes áreas do corpo-propriamente-dito (Nava, 2003).

393
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Figura 8 – Áreas sensoriais somáticas e Representação cortical somestésica (Adaptado de Nava,


2003).

O mapeamento dos estados emocionais do corpo permite o emergir dos


sentimentos, podendo considerar-se que em termos evolutivos, o aparecimento
dos sentimentos apenas foi possível quando o organismo passou a possuir
mapas cerebrais capazes de representar estados do corpo (Damásio, 2004).
Depreende-se assim, que o mapeamento do corpo é essencial para os
mecanismos subjacentes aos sentimentos, o que se revelará especialmente
relevante, para a abordagem que iremos efectuar mais adiante nesta
dissertação.
De acordo com Mendoza (1998) é possível cartografar, ponto por ponto na
superfície do córtex cerebral uma detalhada representação sensorial e uma
detalhada representação de todo o corpo, o mesmo sucedendo, com a
representação motora do mesmo. Este autor adverte contudo, para a existência
de zonas de «convergência Heterossensorial», ou seja, zonas que recebem
simultaneamente mensagens provenientes de diferentes partes do corpo-
propriamente-dito e também, para o facto de que em movimentos complexos,

394
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

mobilizando diferentes segmentos e grupos musculares, se verifica a


estimulação de diferentes áreas cerebrais, encontrando-se a este nível, e à
semelhança do que sucede a nível sensitivo, a existência de zonas
associativas motrizes capazes de permitir a realização de movimentos
complexos. Assim se percebe a importância do mapeamento cerebral para a
actividade Humana, e de modo particular, para a prática de Futebol. Importa
contudo ter em consideração, que a plasticidade cerebral evidenciada no ponto
anterior, possibilita uma grande variabilidade ao nível da representatividade
cerebral, tanto em termos sensitivos como motores. Sendo esta variabilidade,
resultante da interacção diversa que estabelecemos com o mundo através do
Corpo. Através do contacto com o que nos rodeia, nós vamos “mapeando” tais
realidades circundantes e com as quais interagimos, tal como salienta Marisa
Gomes (Anexo 5). A nossa entrevistada, expressa ainda uma concepção de
interacção Corpórea, da qual partilhamos, uma vez que sugere que o
“mapeamento” não se restringe aos aspectos neuronais, indo para além
destes, o que como adverte requer uma contemplação não superficial deste
conceito.
Apesar da aparente estabilidade e imutabilidade, os mapas corticais da
representação corporal e os mapas corticais sensoriais não são fixos, podendo
ser alterados através da experiência (Nava, 2003). Naqueles que representam
os esquemas padronizados da representação cerebral sensitiva e motora,
designados respectivamente de Homúnculo sensitivo e Homúnculo motor, a
funcionalidade da mão está muitíssimo mais marcada, uma consequência da
evolução da espécie, encontrando-se por isso grande parte do córtex
vocacionado para a mão e também para a fala (Leandro Massada, Anexo 2).
Note-se contudo, que face ao exposto por Nava (2003) estes esquemas
padronizados, não devem ser entendidos como concepções estanques e
comuns a todos os indivíduos pertencentes à nossa espécie. Devemos ter em
consideração que as representações do corpo reais, não ocorrem num mapa
cortical rígido, como os tradicionais diagramas cerebrais nos levam a supor
erradamente (Nava, 2003). Facto que se revela particularmente pertinente, no
que à Aprendizagem do Futebol diz respeito, uma vez que se trata de uma

395
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

actividade aparentemente ContraNatura, como comprovam as representações


cerebrais sensitivas e motoras tipificadas na espécie Humana, ou melhor
dizendo, ao Lado da Natura (Sobrinho Simões, Anexo 1) no sentido em que
explora a plasticidade Corporal que nos caracteriza.
Alguns estudos (Carey, Bhatt, & Nagpal, 2005; Lacourse, Turner, Randolph-
Orr, Schandler, & Cohen, 2004; Merzenich et al., 1983; Mogilmer et al., 1993;
Ramachandran, 1993; Schlaug, Janke, Huang, Steiger, & Steinmetz, 1995) têm
sido realizados tanto em modelos animais como em Humanos, e evidenciam
que a estimulação permite, que se alterem e criem novos mapas neurais.
Merzenich et al. (1983) realizaram um estudo em macacos, no qual induziam a
hiperestimulação de apenas três dedos da mão, tendo concluído, que a prática
reforça e expande a representação cortical destes dedos, os mais solicitados.
Estudos (Mogilmer et al., 1993; Ramachandran, 1993) com um modelo
semelhante, mas aplicado em Humanos permitiram chegar a conclusões
idênticas. Estudos semelhantes levados a efeito na área da música (Schlaulg et
al. 1995), evidenciam a importância do treino ao nível de alterações da
representatividade cerebral. O estudo desenvolvido por Schlaulg et al. (1995)
sugere, que os músicos tendem a ter cerebelos de maiores dimensões e mais
massa cinzenta42, do que o que se verifica em não músicos.
Lacourse et al. (2004) realizaram um estudo laboratorial, no qual os sujeitos
eram submetidos a tarefas motoras de baixa complexidade, tendo concluído
que a prática destas tarefas se repercute em evidentes alterações cerebrais.
Apesar, de se tratar de um estudo laboratorial, adoptando tarefas de baixa
complexidade, o que implica da nossa parte alguma prudência nas
extrapolações que se possam efectuar para o domínio do Futebol, os dados
providenciados por este estudo não devem deixar de ser evidenciados.
Sobretudo se tivermos em consideração que os autores observaram tais
alterações, num estudo que se desenvolveu num período de tempo reduzido, o

42
Massa cinzenta / massa branca: por massa cinzenta entende-se a parte do cérebro que
contém os corpos celulares, os axónios e as dentrites, e é considerada a parte responsável
pelo processamento de informação, enquanto que a massa branca é a responsável pela
transmissão dessa informação (Levitin, 2007).

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

que nos leva a especular sobre os efeitos, possivelmente mais significativos, de


processos de estimulação, treino, mais prolongados no tempo, como sucede na
Formação de Jogadores. Uma Periodização à La Long, que quando dotada de
qualidade se caracteriza por estados emocionais muito próprios, geralmente
propensos a maior efectivação de alterações a nível neural, do que a que se
verifica em laboratório.
Uma das limitações apresentadas e reconhecidas pelos próprios autores,
relacionava-se com a baixa complexidade das tarefas, contudo, de acordo com
Carey et al. (2005) verifica-se que as tarefas motoras complexas induzem
igualmente alterações a nível neural, defendendo mesmo que uma condição
que tem forte impacto sobre a neuroplasticidade é, a complexidade das tarefas
a que os indivíduos são submetidos. Estes dados, por se reportarem a tarefas
de complexidade elevada permitem com maior consistência deduzir, que o
Futebol, pela complexidade de acções que o caracterizam apresenta um
grande potencial para alterar a representatividade cerebral dos Jogadores, e
deste modo, reverter os condicionalismos existentes, como consequência da
representatividade cerebral padronizada da nossa espécie.
Depreende-se destes estudos, que a representação cortical das áreas
somáticas, pode ser alterada ao longo da vida, e que esta se encontra
dependente não somente de aspectos genéticos, que programam o padrão de
conexões neuronais existentes, mas também, das correlações temporais dos
padrões de estímulos que chegam ao córtex provenientes do corpo-
propriamente-dito, ou seja, da Aprendizagem (Nava, 2003). Ou seja, também
dependem do treino enquanto processo de EnsinoAprendizagem. “A
verificação destes factos é de grande importância, pois eles provam que o
exercício de uma função, sobretudo se é repetido de maneira regular e
intensiva, é capaz de modificar, não só na criança mas também no adulto, a
própria forma do cérebro” (Habib, 2003, pp. 48).
Segundo Damásio (2004) a generalidade dos fenómenos relacionados com
correcções adaptativas do estado do corpo induzem mudanças no
mapeamento dos estados do corpo. Sendo o Futebol uma actividade
caracterizada por uma grande aleatoriedade e variabilidade contextual, implica

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

que o Jogador esteja constantemente a reajustar os seus estados do corpo, e


consequentemente, a induzir alterações ao nível do mapeamento desses
mesmos estados, uma tarefa que será tanto mais facilitada quanto mais
familiarizado se encontrar o Jogador com o contexto envolvente. Destes factos
depreende-se, a importância do Princípio Metodológico das Propensões e da
necessidade de criar exercícios que o respeitem, ao longo do processo de
Formação. Os Jogadores ao cartografarem convenientemente o Jogo, e
também de modo particular um determinado jogar poderão, adaptar-se com
mais êxito à variabilidade contextual do Jogo. “O processo de formação tem
que ser um mapeamento” (Marisa Gomes, Anexo 5). Um “mapeamento” que
como sugere a nossa entrevistada, até por volta dos 14 anos dever possibilitar
o mapear de uma determinada “variabilidade cultural”.
Devemos ter ainda em consideração, que o mapeamento de um determinado
jogar, não se estabelece somente “da cabeça para os pés”, mas também no
sentido inverso, como adverte Marisa Gomes (Anexo 5).
Pode designar-se de mapa neural, as relações funcionais materializadas por
uma rede neuronal distribuída e variável e que permite a memorização e
selecção pelos cérebros, de um modelo reduzido e simplificado, neural e físico
da realidade exterior (Changeux, 2003). Os mapas neurais, não se cingem
deste modo, a representar os estados do corpo no córtex cerebral, permitem
também representar o que nos rodeia, através da interacção com essas
realidades, permitindo-nos assim uma gestão mais eficaz dessas realidades.
Damásio (2004) esclarece, que a construção inteira do conhecimento depende
da capacidade de cartografar o que acontece ao longo do tempo, no interior do
nosso organismo, à volta dele, como nosso organismo, numa sessão
incessante e causal.
Após uma dezena de anos, várias experiências demonstraram que a
actividade neuronal responsável pelos movimentos voluntários pode ser
registada nos dispositivos implantados no cérebro (Nicolelis, 2008). Parece
assim plausível, a possibilidade de criação de um mapa de Jogo e de um jogar,
um conjunto de relações funcionais, e no caso, específicas da modalidade, e
Específicas de um determinado jogar, materializadas numa rede neural,

398
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

variável, adaptável e não estanque, capaz de permitir a memorização por parte


do cérebro de um modelo reduzido e simplificado, de um determinado
SupraModelo, o Modelo de Jogo da equipa, uma realidade exterior que através
do treino se pode tornar intrínseca ao Jogador, por via do seu mapeamento, e
pela vivenciação desse jogar.
Devemos ter em atenção, que a dinâmica em grande escala do cérebro é
controlada pela selecção natural de mapas. Os mapas que se encontram
activos quando são obtidos bons resultados são fortalecidos, enquanto que os
mapas que estão activos quando são obtidos maus resultados ficam
enfraquecidos (Goertzel, 2004). Estes dados são de especial relevância, uma
vez que, nos remetem para a necessidade da vivenciação de um determinado
jogar, se pautar pela qualidade intrínseca a esse mesmo jogar e também, para
a necessidade de aquando dessa vivenciação se promover o sucesso e a
eficácia de treino, para que deste modo a cartografia desse jogar, e também do
Jogo de uma forma geral, se verifique de forma mais efectiva.

7.3.2 – Da Paisagem de Jogo, à possibilidade da Bola ser um


prologamento do Corpo:

“o conhecimento factual que é necessário para o raciocínio e para a tomada de


decisão chega à mente sob a forma de imagens”
(Damásio, 2003a, pp. 112).

O mapa do corpo presente no cérebro permite, que nesse mapa os impulsos


oriundos de diferentes partes do corpo, sejam transformados em sentimentos,
criando assim imagens mentais (Holigan, 2000). As imagens mentais são o
substrato da mente, podendo o pensamento ser entendido como um fluxo
contínuo de imagens que se move no tempo, de acordo com as exigências,
interesses e interesses circunstanciais (Damásio, 2003b, 2004).
A utilidade primordial do relato imagético da relação organismo-objecto
consiste em informar o organismo do que se está a passar, ou seja, permite
responder a uma questão que o organismo nunca poderia ter colocado; o que
está a acontecer? (Damásio, 2004).

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Segundo Damásio (2003a, pp. 112), “o conhecimento factual que é


necessário para o raciocínio e para a tomada de decisão chega à mente sob a
forma de imagens”. Assim, o conceito mais ajustado para evidenciar o formato
do conhecimento é, o de imagem mental (J. G. Oliveira, 2004). As imagens não
sendo representações reais da realidade, são uma produção pessoal dessa
realidade e resultam da interacção do organismo com o que o rodeia (Damásio,
2003a, 2003b, 2004).
“Todas essas imagens cerebrais são transitórias, evocações efémeras
correspondem à realidade de uma experiência que no passado foi traduzida em
código durante o processo de aprendizagem.” (Damásio & Damásio, 2007, pp.
138). Ainda segundo Damásio & Damásio (2007) a Aprendizagem, pode em
temos neurológicos, ser definida como sendo um processo através do qual, o
que ocorre ao nível da percepção ou nos diversos tipos de movimento, é
convertido em determinados padrões de actividade cerebral e registado nos
circuitos neurais que foram alterados por essa actividade. As imagens que se
criam nas nossas mentes, ou seja, as representações mentais do mundo que
nos rodeia, resultam de uma complexa, embora não aparente, cadeia de
percepções sensoriais (Levitin, 2007).
De acordo com Damásio (2003a) as imagens, “maravilhosas” construções
cerebrais, parecem ser engendradas por uma maquinaria neural bastante
complexa, de percepção, memória e raciocínio, sendo esta construção por
vezes regulada pelo mundo exterior ao cérebro, ou seja, pelo mundo que se
encontra dentro do nosso corpo, ou à volta dele, com uma pequena ajuda da
memória do passado. Uma memória que deverá ser como tal, enriquecida pelo
treino.
“O facto de que as imagens se formam na perspectiva do organismo é
essencial para a preparação dos movimentos que envolvem os objectos
representados nessas imagens. A perspectiva correcta em relação ao carro
que se aproxima é importante para o organismo preparar o movimento através
do qual será possível escapar-lhe, o mesmo se aplicando à perspectiva em
relação a uma bola que devemos apanhar com a mão (ou com o resto do
Corpo, como sucede no Futebol). É aí e nesse momento que surge o sentido

400
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

automático de capacidade de acção individual. O facto de termos interagido


com um objecto de modo a criar imagens torna mais fácil de conceber a ideia
de que podemos actuar sobre esse objecto.” (Damásio, 2003b, pp. 178).
Face ao exposto, encontramo-nos inteiramente de acordo com J. G. Oliveira
(2004), o qual salienta, que o conceito de imagem mental é nuclear para se
perceber como os indivíduos, e consequentemente as equipas e os Jogadores,
evoluem e comportam perante os problemas colocados pelo treino e pelo Jogo.
Ainda em consonância com este autor, estamos convictos, pelo que foi referido
em relação ás imagens mentais, que estas são os responsáveis pelo
pensamento e acção Humana, inclusive em contextos em que essa acção tem
subjacente a Especificidade de um jogar, como sucede no Futebol. Motivo pelo
qual, os processos de EnsinoAprendizagem do Futebol deverão fomentar a
criação de imagens mentais, do Jogo e do jogar a que se aspira, e para o qual
se pretende formar o Jogador. “Compete ao treinador, através de um trabalho
contínuo dirigido para a Especificidade (Precoce), fazer com que os jogadores
construam / reconstruam padrões mentais que dêem origem a imagens
mentais cada vez mais esclarecidas do modelo de jogo que ele (ou o clube)
pretende implementar.” (Freitas, 2004, pp. 44).
Importa ainda ter em consideração, que contendo as imagens a perspectiva
do corpo que sentimos, então, estas imagens estão nesse mesmo corpo. Ou
seja, são nossas, encontrando-se também o sentido da acção contido no facto
de certas imagens estarem estritamente relacionadas a certas opções de
execução motora, de que resulta o nosso sentido de acção potencial, que
sugere que essas imagens nos pertencem, podendo deste modo, actuar sobre
os objectos que as causaram (Damásio, 2003b). Com base neste
entendimento, pode concluir-se que criando uma paisagem mental de um
determinado jogar, através da vivenciação e “execução motora” desse mesmo
jogar, se torna possível o seu “mapeamento” (Marisa Gomes, Anexo 5), ou
InCorporAcção, ou seja, esse jogar torna-se parte de nós, e nós podemos agir
sobre ele e com ele. “…o processo de treino é um processo de incorporação no
sentido de criação de um corpo centrípeto, que depois na altura da competição
se abre e se liberta.” (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Importa esclarecer que o conceito jogar, se reporta a algo muito para além da
estrutura acontecimental verificada nas imediações da bola.
Damásio (2004) refere existirem duas espécies de imagens de corpo, sendo
que em ambas o mecanismo de produção é idêntico, isto é, em primeiro lugar,
verifica-se uma alteração estrutural transitória do corpo, produzida pela
actividade desencadeada numa região do corpo. Em segundo lugar, o cérebro
constrói mapas dessas alterações em regiões apropriadas para esses
mapeamentos, sendo essa construção efectuada com o auxílio de sinais
químicos transportados pela corrente sanguínea e por sinais electroquímicos
provenientes dos feixes nervosos. Por fim, em terceiro lugar, os mapas neurais
formados com base nestes mecanismos são transformados em imagens
mentais. O fundamento das imagens mentais, que constituem a “corrente
mental”, é uma colecção de mapas cerebrais. (Damásio, 2004). Este autor
esclarece ainda, que das duas espécies de imagens que considera, as
primeiras são designadas, de imagens da carne, e são constituídas por
imagens do interior do corpo, baseadas na representação da estrutura e do
estado visceral e do meio interior, enquanto que o segundo tipo de imagens, se
reporta a componentes particulares do corpo-propriamente-dito, sendo estas
imagens provenientes, de sondas sensoriais especiais, tendo por base a
actividade dos órgãos sensoriais periféricos. Este segundo tipo de imagens
ocorre quando essas partes especializadas são modificadas por objectos
exteriores ao Corpo, resultando deste modo, do contacto físico directo desses
objectos com o corpo. Este autor acrescenta ainda, que no caso do tacto se
observa um contacto mecânico de um objecto com a pele, que por sua vez
modifica a actividade das terminações nervosas, sendo com base neste
processo, que formamos imagens sobre a forma e textura de um objecto. As
imagens mentais provenientes das sondas sensoriais especiais são de especial
relevância, em nosso entendimento, para a familiarização dos jovens com o
Futebol, que deste modo lhes vai «entrando pelos poros da pele», e também
para a familiarização com a bola. Com base nestes mecanismos, parece
tornar-se possível a criação de imagens mentais da bola. Através do contacto
mecânico, especialmente se feito de forma directa, verificado entre os órgãos

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

sensitivos e a bola, torna-se possível a sua representação mental. De forma


metafórica, pode dizer-se que os Talentos do Futebol «vivem com a Bola
dentro da cabeça». O facto do contacto mecânico entre os objectos, no caso a
bola, e os órgãos dos sentidos quando estabelecido directamente com os
órgãos sensoriais periféricos, apresentar um maior potencial ao nível da
possibilidade de criação de imagens, reforça a importância de nos primeiros
anos, se jogar descalço e com o recurso ao menor tipo possível de adornos
supérfluos.
Entendemos com base no que foi referido acima que a bola, pode ser
cartografada no córtex cerebral, e pode ser representada sobre a forma de
imagens mentais, no entanto, pensamos que a plasticidade cerebral poderá
permitir mais que isso, ou seja, pensamos ser possível que a bola seja
Corporalizada, e entendida como um prolongamento ou extensão do próprio
Corpo. Esta nossa especulação, não é quanto a nós, descabida, sobretudo se
tivermos em consideração algumas das descobertas recentemente efectuadas
na área das Neurociências.
Nicolelis (2008) salienta a este respeito algo, que em nosso entendimento é,
bastante contundente, e vai de encontro à sugestão por nós efectuada.
Segundo este autor, graças a uma prática repetida e à plasticidade cerebral,
profissionais de diferentes áreas, desde tenistas, a violinistas ou cirurgiões,
tornam-se mais proficientes nas suas actividades. Acrescenta ainda, que os
objectos que estes profissionais utilizam nas suas actividades, raquetes,
violinos ou bisturis, podem ser parte integrante das representações cerebrais
do corpo, a ponto destes objectos acabarem por ser tratados como qualquer
outra parte do corpo, e como uma extensão do próprio braço, no caso destas
actividades. Embora, se reporte apenas ao contacto de objectos externos com
os membros superiores, consideramos, com base em tudo o que já referimos
acerca da plasticidade ao nível do mapeamento cerebral, que o mesmo se
poderá observar em relação à bola, e à possibilidade desta se tornar numa
extensão ou prolongamento do Corpo do Jogador de Futebol. Motivo pelo qual
sugerimos a possibilidade de Corporalização da bola. Pensamos que este
quadro hipotético, se torna tanto mais verosímil quanto mais precocemente se

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

estabelecer a relação em quantidade de qualidade, dos jovens com a bola,


sobretudo se tivermos em consideração, tudo o que foi sugerido anteriormente
neste trabalho, relativamente à relação entre precocidade e plasticidade, na
qual foi evidente que a infância é o período ao longo da ontogénese, em que a
propensão para actuar sobre a plasticidade cerebral se revela mais
significativa.
A criação de imagens mentais é, uma actividade permanente do cérebro
Humano, podendo estas emergir a nível do consciente, em menor número, ou
a nível do não consciente, as quais são maioritárias. (Damásio, 2003a, 2003b).
Independentemente da origem das imagens mentais que possamos criar,
devemos ter em consideração e segundo as palavras de Damásio (2004, pp.
27) que existe a convicção, “de que os processos mentais se alicerçam nos
mapeamentos do corpo que o cérebro constrói, as colecções de padrões
neurais que retratam as respostas aos estímulos que causam emoções e
sentimentos.” As emoções e sentimentos, dois conceitos importantes nos
próximos pontos desta dissertação, encontram-se assim alicerçados no
mapeamento do Corpo, e como tal terão de ser dimensões contempladas no
treino.

7.4 – Somatização Precoce do Saber - Fazer:

“… às vezes lembro-me de receber a bola e, num curto espaço, com marcações em cima, fintar
um, dois, três adversários e sair a jogar. Tudo em fracções de segundo. Como por magia, ficando,
depois, na minha cabeça, a perguntar-me: mas como foi possível tu teres feito isto?”
(António Oliveira, s/d, cit. por Lobo, 2007, pp. 112).

7.4.1- A importância dos Hábitos num Futebol que tem de ser como o
Inferno, «cheio de boas intenções»!

“… os judeus ortodoxos ensinam os filhos a urinar com as mãos livres. Segundo eles, «é melhor
uma má pontaria do que um mau hábito!»
(Jones, 2006, pp. 214).

Foi por nós já suficientemente salientado neste trabalho, que tanto a


exponenciação de Talentos como a plasticidade, são fenómenos Ecogenéticos

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
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para os quais contribuem inúmeras variáveis, algumas das quais pouco ou


nada compreensíveis, se descontextualizadas. Das múltiplas variáveis a
considerar, a sociogénese dos indivíduos não deverá ser ignorada.
Durante a sociogénese dos indivíduos são adquiridos hábitos muito próprios
da nossa espécie (Jones, 2006), o que nos torna num animal de hábitos, como
é unanimemente sugerido no âmbito da Sociologia. Todas as nossas formas de
agir, pensar e sentir são produto da nossa socialização (Molénat, 2007). Marisa
Gomes (Anexo 5) realça que a diferenciação que contribui para a singularidade
de cada um, “resulta do que a gente vive e daquilo que fazemos mais vezes,
dos hábitos.” Sendo que estas vivências e hábitos, como salienta marcam uma
configuração única a diferentes níveis, em cada um de nós, sendo isto
igualmente observável nas Crianças.
Sendo o hábito fundamental em todo o aprendizado (Lohrey, 2004), torna-se
pertinente uma abordagem em torno deste tema, num trabalho que se reporta
ao treino de jovens e no qual se sugere o treino enquanto processo de
EnsinoAprendizagem.
Importa como ponto prévio definir com rigor, o conceito de hábito, visto que
nem sempre a adopção deste termo se faz tendo em consideração o seu
verdadeiro significado (Carvalhal, 2002). Através do recurso a um dicionário,
verificamos que hábito é, a tendência ou comportamento, geralmente
inconsciente, que resulta da repetição frequente de certos actos (DiciopédiaX,
2006). Carvalhal (2002) apresenta uma definição próxima, na qual contudo se
salienta que o hábito é uma disposição adquirida. Devemos contudo ter em
consideração, que a disposição pode ser definida como um saber fazer, sendo
um conceito mais abrangente que o de hábito (Bordieu, 1998, cit. por
Carvalhal, 2002).
De acordo com McCrone (2002) pode atribuir-se a designação de hábito ou
automatismos, ao conjunto de processos subconscientes que permitem decidir
e reagir rapidamente. Molénat (2007) com base nas ideias de Pierre Bourdieu
sugere, que os hábitos são um conjunto de disposições que guiam as nossas
escolhas em todos os domínios da nossa existência, as quais se manifestam

405
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

sem termos de reflectir sobre estas para efectuar escolhas ajustadas às


circunstâncias.
A criação de hábitos ou automatismos, resulta da criação de imagens
mentais, criadas através da experiência, conscientes ou não, as quais ficaram
gravadas nas memórias, e são utilizadas para decidir e reagir de forma rápida
perante determinada situação (Damásio, 2003b). A habituação consiste, na
diminuição da força de uma determinada resposta por consequência da
repetição do estímulo que a provoca, ao se repetir determinado estímulo, este
perde o seu carácter de novidade e progressivamente deixa de causar reacção
motora (Habib, 2003).
Face ao exposto, e face à definição do próprio conceito, depreende-se que
para a formação de hábitos, a repetição dos mesmos é uma condição
necessária. Segundo Goleman (2006), o robustecimento dos hábitos efectua-
se quanto mais frequentemente uma experiência é repetida, uma vez que
consequentemente, mais densa se torna a conectividade neural resultante
dessa exercitação. “As primeiras conexões feitas num circuito neural são
reforçadas cada vez que a mesma sequência é seguida, até que os caminhos
se tornam tão fortes que passam a ser o percurso automático – e um novo
circuito é instalado” (Goleman, 2006, pp. 231). Segundo Habib (2003) a
habituação se induzida a longo prazo, tal como sugerimos dever suceder numa
lógica de Especificidade Precoce, uma Periodização à La Long, é
acompanhada de modificações não somente funcionais, mas também,
morfológicas ao nível das terminações sinápticas dos neurónios sensitivos. De
acordo com Malson (1988) parece consensual considerar-se, que a aquisição
de hábitos, tanto a nível motor como mental, requisita a repetição para que a
estrutura ou o esquema se instale definitivamente.
A contemplação destas ideias no treino de Futebol é, em nosso entendimento
de especial relevância, e reforça a necessidade dos jovens serem submetidos
a uma elevada quantidade de estímulos relacionados com esta actividade,
sobretudo, se tivermos em consideração, que a habituação se torna mais
efectiva se tal processo decorrer durante a infância. Quando assim acontece o
cérebro cria os seus próprios caminhos automáticos (Gloeman, 2006).

406
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Rui Faria (s/d, cit. por Lourenço & Ilharco, 2007, pp. 145) afirma relativamente
à importância da habituação que “nos treinos, insistimos muito na habituação.
O treino cria o hábito e depois, no jogo, em vez do acto ser pensado, este
surge de forma subconsciente e natural.”
“No início, a relação entre a intenção mental e o acto corporal não está nada
desenvolvida – mentalmente sabemos o que fazer, mas fisicamente somos
incapazes de o executar. Á medida que praticámos, a relação entre intenção e
acto torna-se mais próxima, até que eventualmente o sentimento de diferença
se desvanece. Atingimos uma tal condição que fenomenologicamente não
parece nem puramente mental nem puramente física; trata-se mais de um
género específico de unidade mente-corpo.” (Varela et al., 2001, pp. 56).
Presume-se destas palavras, que o treino é determinante para o
desenvolvimento e aperfeiçoamento das intenções em acto, as quais se
caracterizam por serem processos de tomada de decisão a velocidade elevada.
De acordo com José Mourinho (s/d, cit. por B. Oliveira et al., 2006), através da
Periodização Táctica, procura-se que os Jogadores adquiram um conjunto de
intenções prévias, isto é, representações mentais, relativas à Especificidade de
um determinado jogar, promovendo-se no treino o aparecimento de intenções
em acto, em conformidade com as intenções prévias relativas àquele jogar.
Acrescenta ainda, que é tarefa do treinador reduzir as discrepâncias entre
intenções prévias e intenções em acto, o que se torna possível como
esclarece, treinando em Especificidade, através da Repetição Sistemática, para
que os hábitos relativos a determinado jogar se instalem nos Jogadores.
“Se você quiser aprender música, vá ver um músico e o músico poderá falar
muito sobre música com você, e ainda assim não lhe dará a menor ideia do
que é música. Por isso um bom músico sempre manda o aluno sentar no piano
ou outra coisa semelhante”. (J. Spencer Brown, s/d, cit. por Goswami, 2004,
pp. 275). “Tenho a certeza que para fazer música é preciso muito treino. Por
exemplo, para ser um bom pianista é preciso treinar como o diabo.” (Sobrinho
Simões (Anexo 1). As analogias que se podem estabelecer com o treino de
Futebol são, em nosso entendimento, mais do que evidentes tal como sugerem
as palavras de José Mourinho. Fica evidente, que sendo o hábito um saber

407
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

fazer que se adquire na acção (Carvalhal, 2002; Resende, 2002), torna-se


fundamental que as Crianças desde idades muito precoces, vivenciem o Jogo,
e também um esboço de determinado jogar, Especificidade Precoce, para que
as intenções prévias relativas a esse jogar, se vão paulatinamente enraizando
e transformando em intenções em acto capazes de dotar o Jogador de uma
maior disponibilidade, para em conformidade com determinado jogar se
expressar.
Importa contudo ter em consideração, que para a criação de hábitos relativos
a um determinado jogar, a repetição sistemática pode se revelar insuficiente.
Carvalhal (2002) esclarece que a distinção entre os conceitos, disposição e
hábito, resulta deste último ser uma disposição adquirida cuja Aprendizagem
pode tomar diferentes formas, entre as quais a repetição, que pode contudo
como adverte, não ser suficiente. A efectivação dos hábitos, além de depender
da repetição sistemática deve caracterizar-se por ser um processo intencional,
e activo. Nos Humanos, a chave do ensino reside na intencionalidade (Dunbar,
2006). “Só a acção intencional é educativa.” (V. Frade, 1979, pp. 11). Estas
evidências reforçam a importância, das intenções prévias serem parte
integrante do treino, e também destas, serem estabelecidas à priori, pois
somente desse modo, poderão ser o referencial do processo e como tal
intencionais, por serem o elemento causal do processo. Este domínio das
intenções é evidenciado por Marisa Gomes (Anexo 5) como determinante no
treino de Futebol. “… acredito muito no lado das intenções, naquilo que não se
vê, naquilo que nos liga agora, para além das palavras.” (Marisa Gomes, Anexo
5).
O treino, também o de jovens, deverá deste modo ser um processo aquisitivo,
consubstanciado pela intencionalidade desse mesmo processo, revelando-se
capaz de permitir que a esfera do saber fazer, se transforme em hábito. Para
que o treino seja aquisitivo, as tarefas propostas pelos treinadores deverão
potenciar a propensão de determinados comportamentos ou intenções, que se
pretendem tornar hábitos. Ou seja, o treino aquisitivo requisita a necessidade
de repetição sistemática em Especificidade e o cumprimento do Princípio
Metodológico das Propensões (Carvalhal, 2002).

408
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Estes pressupostos, implicam da parte dos treinadores um tipo de


intervenção, que veja para além daquilo que é directamente observável, ou
seja, os treinadores deverão valorizar o que está subjacente à expressão de
determinados comportamentos, mesmo que por diversos motivos, a eficácia
não acompanhe a qualidade de tais intenções, como sugere Marisa Gomes
(Aenxo 5). Sabe-se que as Crianças apresentam défices circunstanciais, e
estes poderão assumir alguma relevância para a incapacidade das intenções
se revelarem eficazes, não obstante, consideramos que não deverão ser
recriminadas pela intervenção dos treinadores, os quais deverão inclusive, criar
contextos que permitam uma maior propensão para a ocorrência de
determinadas intenções. Ainda que nas idades mais precoces, se fiquem
apenas pelas intenções. ”Quando se admitirá que um movimento desportivo
desinserido ou desajustado («movimento azelha») da resposta correcta é, por
mais suor que exija, uma «TEORIA» … e que uma percepção mental correcta
duma situação é já (antes do gesto) uma prática?” (V. Frade, 1979, pp 12).
“Não é porque os estímulos do envolvimento existem que podemos ter a
garantia de os perceber. Os estímulos, em si, podem não atingir o receptor,
pois não explicam as mudanças cognitivas nos seres humanos uma vez que
eles não possuem intenções.” (V. d. Fonseca, 2007, pp. 72)
Face ao exposto, entendemos que sobretudo na Formação a construção de
jogares e a exponenciação de Talentos, deve partilhar com o «inferno», o facto
de estar cheio de boas intenções, tanto por parte de treinadores como dos
potenciais Talentos, ainda que nestes, nas idades mais precoces as intenções
possam não chegar a se consumarem.
No Futebol, tal como na generalidade das actividades Humanas, os
comportamentos habituais são de grande relevância para a gestão do instante,
e para a relação com o que nos envolve a todo o momento, ou seja, são
determinantes para a gestão do «aqui e agora».
Grande parte do nosso comportamento é baseado em hábitos, os quais são
caracterizados pela não necessidade de reflexão sobre eles, visto que estes
ocorrem predominantemente ao nível do não consciente (Sheldrake, 2004a).
Todos os dias fazemos um conjunto de gestos complexos, alguns dos quais

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

implicam a manipulação de objectos, e analisamos o nosso envolvimento, sem


que tenhamos plena consciência dos mesmos, fazendo-o com base em
processos de recordação (Berthoz, 2008; Mendonza, 1998). Goleman (2006)
acrescenta que quando o organismo se sente sob grande tensão, é a via
inferior, caracterizada pela rapidez e automatismo, que assume o controlo das
nossas acções, favorecendo deste modo o emergir de hábitos automáticos.
Uma vez que estes hábitos enraizados pelos jovens, se tornam “selectivos com
a prática que têm” e que essa Aculturação ou “selectividade resulta daquilo que
a gente faz” (Marisa Gomes, Anexo 5), pode depreender-se, que a
Especificidade na criação de hábitos relativos ao Futebol, é importante para a
actuação dos Jogadores, os quais são obrigados a tomar decisões e a agir,
encontrando-se permanentemente envolvidos em contextos de elevada
adversidade e tensão. Ao desenvolver-se através do treino determinados
hábitos, alicerçados em determinados Princípios de Jogo relativos a um
determinado jogar, torna-se mais fácil aos Jogadores lidarem com a
adversidade contextual que caracteriza o Jogo, sobretudo, se esse processo de
Aculturação contemplar uma grande abrangência de estímulos relacionados
com o Futebol, uma “variabilidade cultural” (Marisa Gomes, Anexo 5). A
actuação dos potenciais Talentos, encontrando-se ancorada em determinadas
regularidades, Princípios de Jogo, que se tornam hábitos através da
Especificidade Precoce, permite-lhes não somente lidar de forma mais
favorável com as vicissitudes e contextos de permanente aleatoriedade
contextual que caracterizam o Jogo, como também lhes permite que desde
idades precoces, de forma tácita percebam que são parte de um todo maior,
que é a equipa. Uma vez que o hábito possibilita, que pensem em função da
mesma coisa ao mesmo tempo (Carvalhal, 2002).
Damásio (2003b) refere que um exemplo importante de automatismos ou
hábitos se observam na execução de aptidões sensório-motoras, como andar
de bicicleta ou nadar (Jogar Futebol), das quais não temos consciência dos
conhecimentos relacionados com a aquisição dessa aptidão, mas cujo
desempenho, através de execuções múltiplas se vai progressivamente
aperfeiçoando. Acrescenta ainda, que o facto destas aptidões poderem ser

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

adquiridas com pouco ou nenhum exame consciente constitui, uma grande


vantagem no desempenho rápido e eficaz de numerosas tarefas quotidianas.
Esclarecendo que quando dispensamos um exame consciente na execução de
algumas tarefas, se observa a automatização de parte substancial do nosso
comportamento, libertando-nos em termos de atenção e tempo, para executar
e planear tarefas mais complexas e para criar soluções para os problemas. “Na
maior parte do tempo, estamos simplesmente a funcionar com piloto
automático” (Gladwell, 2007, pp. 65).
A automatização assume deste modo, grandes vantagens para a acção dos
Jogadores, visto que além de lhes permitir gerir problemas de grandeza e
complexidade superiores, lhes permite também aceder a níveis de criatividade
mais elevados, por se tornarem capazes de criar soluções de ordem de
complexidade mais elevada, para os problemas que o Jogo vai colocando.
Além disso, o facto do hábito permitir uma libertação ao nível da atenção
necessária, é de especial relevância, para a gestão da Fadiga Táctica dos
Jogadores. Como consequência da aquisição de hábitos relativos a um jogar,
observa-se a economização do sistema nervoso central (Carvalhal, 2002).
À semelhança de Damásio (2003b) também McCrone (2002) salienta que
através do hábito, se observa uma redução substancial do tempo das decisões
e respectivas reacções, apontando para uma diminuição na ordem dos 500 a
200 milésimos de segundo. O que na urgência temporal que caracteriza a
acção dos Jogadores se torna decisivo. Gladwell (2007) com base em estudos
desenvolvidos com profissionais de diferentes áreas, nomeadamente,
enfermeiros, pessoal das unidades de cuidados intensivos, bombeiros, entre
outras pessoas que tomam decisões sob pressão, evidencia que nestas
actividades, tal como no Futebol, é impossível em determinadas situações
ponderar todas as opções disponíveis, sendo assim necessário decidir e actuar
com uma rapidez e eficácia quase instantâneas. Não obstante, e
paradoxalmente, a aquisição de hábitos requer tempo (Goleman, 2003), o que
em nosso entendimento, reforça a importância das Crianças começarem a
Jogar precocemente e de serem submetidas a um processo de habituação a
um determinado jogar, a longo prazo, ou seja, a uma Periodização à La Long,

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

que lhes permita paulatinamente adquirir hábitos de complexidade crescente.


Uma prova evidente de que a alteração e ou aquisição de hábitos requer
tempo, são os casos relatados por Malson (1988) que evidenciam ainda, a
necessidade de tempo para a alteração de hábitos.
Os processos de automatização, em nosso entendimento, têm uma grande
aplicabilidade e revelam-se extremamente úteis no Futebol. “A automatização
também tem grande valor nos desempenhos motores tecnicamente complexos.
Uma parte da técnica de um virtuoso musical pode permanecer inconsciente,
permitindo que este se concentre nos aspectos mais elevados da concepção
de uma determinada peça e possa assim orientar a actuação de forma a
exprimir certas ideias. O mesmo se aplica a um atleta (Jogador).” (Damásio,
2003b, pp. 341). Em conformidade Berthoz (2008) salienta que desempenhos
que implicam uma elevada destreza motora, como a realização de figuras
acrobáticas ou tocar de forma virtuosa violino, são realizados de forma
automatizada, isto é, sem que se verifique um controlo contínuo da
consciência.
Os hábitos ou automatismos são apelidados por McCrone (2002) de
«atalhos», os quais são criados pelo cérebro com o objectivo de reduzir tempo
às nossas decisões, sendo que este mecanismo apenas se torna possível,
quando o cérebro experimentou essa situação ou situações semelhantes e as
codificou como hábitos ou automatismos. Reforçando-se deste modo a
importância, não somente da necessidade de repetição sistemática, mas
também desta se verificar em regime de Especificidade. Importa a este
propósito salientar que Damásio (2003b) ao evidenciar que os processos não
conscientes exercem sobre nós uma grande influência, esclarece, que mesmo
quando a consciência se encontra ausente existe especificidade. De facto,
somos da opinião, que todos os níveis do fazer e do saber implicados no Jogo
e no treino, incluindo os que se encontram fora da consciência, se devem
nortear pela Especificidade, no caso dos jovens, Especificidade Precoce. A
noção de hábito é fundamental no treino, uma vez que é através deste, que se
conseguem edificar os Princípios de Jogo de um determinado Modelo de Jogo
(Freitas, 2004).

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

O que se pretende, é desenvolver um saber fazer Corpóreo, induzido pela


acção e aquisição de hábitos em regime do entendimento, de uma determinada
relação mente – hábito (B. Oliveira et al., 2006).
“O corpo e a mente podem ser juntos. É possível desenvolver hábitos em que
o corpo e a mente se encontrem perfeitamente coordenados. O resultado é
uma mestria que não é apenas conhecida do próprio meditador individual mas
que é visível para os outros (…) Associamos tipicamente um tal estado (…)
com as acções de um especialista tal como um atleta (Jogador) ou um músico.”
(Varela et al., 2001, pp. 55).43

7.4.2 - Old Traford é o «Teatro dos Sonhos» no Mundo do Futebol um


«Teatro de Emoções» Somaticamente MARCADAS.

“Uma boa aprendizagem não evita as emoções, abraça-as.”


(Jensen, 2002, pp. 122).

Os automatismos ou hábitos, além de permitirem uma redução quantitativa


ao nível do tempo das respostas, são igualmente úteis por fornecerem
indicadores qualitativos acerca do que os induz. Permitem, separar o
ameaçador do não ameaçador, o que consequentemente determina que a
repetição dos estímulos que os provocam não seja emocionalmente neutra
para os nossos cérebros (Levitin, 2007). De acordo com Jensen (2002), os
acontecimentos emocionalmente marcados são sujeitos a processamento
preferencial. Por sua vez Damásio (2004), adverte para o facto de poucos ou
mesmo nenhuns objectos manterem inocência emocional, sendo difícil
imaginar objectos emocionalmente neutros. “As emoções desencadeiam as
mudanças químicas que alteram as nossas disposições, comportamentos e,
em ultima análise, as nossas vidas. Se as pessoas e as acções são o conteúdo

43
O título original da obra de M. Silva (2008); “Do Pé como Técnica ao Pensamento Técnico
dos Pés dentro da caixa preta da Periodização Táctica”, elucida de forma sublime, este saber
fazer Corpóreo implicado no Jogo.

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

das nossas vidas, as emoções são os contextos e os valores que prezamos.”


(Jensen, 2002, pp. 119).
As emoções impelem a acção, são impulsos para agir (Goleman, 2003) e
podem classificar-se como qualificadores para as nossas ideias e acções
(Damásio, 2003a). Embora durante muito tempo entendida como parasitária
em relação à Aprendizagem, o papel das emoções nos processos de
EnsinoAprendizagem é determinante (Jensen, 2002). De acordo com Damásio
(2003b) experiências realizadas no âmbito da Aprendizagem, fornecem novas
provas sobre o papel do corpo-propriamente-dito nas emoções, tendo sido
demonstrado que a recordação de novos factos, é reforçada pela presença de
determinados níveis de emoção durante as Aprendizagens.
Parece deste modo sustentada a afirmação que sugere, que a “ boa
aprendizagem não evita as emoções, abraça-as.” (Jensen, 2002, pp. 122).
Todas as emoções desencadeiam múltiplas respostas químicas e neurais,
que alteram o meio interior, o estado das vísceras e o estado dos músculos,
durante um determinado perfil, sendo deste modo, que se conseguem realizar
certas posturas do corpo e certos padrões de comportamento específicos
(Damásio, 2004). O que enfatiza em nosso entendimento, a importância das
emoções ao nível da Aprendizagem Motora, e de modo particular, ao nível da
Aprendizagem do Futebol.
“Para além da «viagem neural» do seu estado emocional até ao cérebro, o
organismo também faz uma «viagem química» paralela. As hormonas e os
péptidos libertados no corpo durante a emoção alcançam o cérebro por via
sanguínea e penetram nela activamente. Não só pode o cérebro construir,
nalguns dos seus sistemas, uma imagem neural múltipla da paisagem do
corpo, como a construção dessa imagem pode ser também influenciada
directamente pelo corpo. Não é apenas um conjunto de sinais neurais que
confere ao organismo o seu carácter num dado momento, mas também um
conjunto de sinais químicos que alteram o modo como os sinais neurais são
processados” (Nava, 2003, pp. 47).
Face ao exposto, relativamente à importância das emoções na
Aprendizagem, e da relação entre estas e o Corpo, torna-se pertinente aludir à

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

hipótese dos marcadores – somáticos apresentada por Damásio (2003a). Este


autor esclarece, que as tomadas de decisão e consequências dessas mesmas
decisões, induzem no organismo uma sensação visceral ou sinal emocional,
que pode ser agradável ou desagradável e que por conseguinte, impele o
organismo a aproximar-se ou a afastar-se dessa opção. Por se tratar de uma
sensação corporal, este autor atribui a este fenómeno o termo técnico de
estado somático, e porque o estado «marca» uma imagem, designa-o de
marcador. Sugerindo deste modo, a hipótese de marcador-somático. A
hipótese do marcador-somático, coloca o Corpo no centro da questão do
pensamento Humano (Nava, 2003).
Para Damásio (2003a) estes mecanismos não tomando decisões, são de
extrema relevância para o auxílio das mesmas, uma vez que nos protegem de
prejuízos futuros, e aumentam a eficiência, celeridade e precisão do processo
de decisão, ao efectuarem uma triagem através de um processo automático,
que reduz consideravelmente o número de opções de escolha, permitindo
assim, seleccionar a decisão final, escolhendo-a dentro de um lote mais restrito
de alternativas.
“Não é fácil ser actor no futebol. Para além de todas as capacidades, da
preparação e dos conhecimentos é talvez necessário algo mais. Talvez seja
precisa muita imaginação. Porque o caminho nem sempre é regular e a direito.
Existem por vezes obstáculos e nem sempre a melhor solução para os
ultrapassar surge na cabeça dos actores de forma óbvia. Então, é preciso criar
uma «deixa» que não vem no guião” (J. Oliveira, 2004, pp. 238). Esta deixa
pode, em nosso entendimento, ser um marcador – somático, o qual num
contexto de grande aleatoriedade, sustentado de memórias emocionalmente
carregadas, vivenciadas anteriormente através do fazer permite aumentar a
eficiência e precisão do jogar, pela diminuição de informação que se torna
necessário tratar.
A criação de marcadores – somáticos, através da vivenciação de um
determinado jogar, ou seja, dos Princípios de Jogo que o sustentam, imbuída
de carga emocional e respectiva sentimentalidade possibilita que aquando do
surgimento de situações e contextos semelhantes, a tomada de decisão seja

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
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mais célere por diminuição da quantidade de informação a descodificar,


permitindo-nos deste modo antecipar, ou pelo menos viver o Jogo de forma
antecipada relativamente aos adversários.
A Periodização Táctica, através do SupraPrincípio da Especificidade permite
que os Jogadores vivenciem nos treinos, situações próximas das que
procurarão encontrar na Competição, motivo pelo qual se revela profícua na
criação de marcadores – somáticos, e consequentemente, na melhoria da
capacidade de antecipação e do desempenhos dos Jogadores.
A este respeito Damásio (2004) salienta, que confere especial valor às
emoções e sentimentos ligados às consequências futuras das decisões, uma
vez que estas constituem uma antecipação da consequência das acções, ou
seja, efectuam uma espécie de previsão do futuro. Podendo este papel
antecipatório das emoções e sentimentos ser parcial ou completo, consciente
ou não consciente.
Devemos ter em consideração que; “os marcadores-somáticos são um caso
especial do uso de sentimentos que foram criados a partir de emoções
secundárias. Estas emoções e sentimentos foram ligados, por via da
aprendizagem, a certos tipos de resultados dos futuros ligados a determinados
cenários.” (Damásio, 2003a, pp. 186). O que reforça a ideia de que o treino,
assim como a intervenção do treinador, não devem ser emocionalmente
neutros, procurando despertar deste modo nos Jogadores sentimentos que
vivenciados num contexto de Especificidade, permitam marcar esse jogar, isto
é, Somatizar ou “mapear” esse jogar. Para Marisa Gomes (Anexo 5), tudo na
Formação deverá ser concebido como um processo de mapeamento, onde não
são apenas as emoções positivas e o prazer a interferir, mas tudo o que
mapeamos e que não nos deixa emocionalmente indiferentes. A nossa
entrevistada salienta ainda, que a ausência de neutralidade emocional é
determinante para a alteração comportamental dos Jogadores.
Um aspecto relevante para esta dissertação, subordinada à temática da
Formação de Talentos no Futebol, relativamente à hipótese dos maçadores –
somáticos prende-se com o facto, da formação destes, apesar de cessar
apenas aquando da morte ter durante a infância e a adolescência um período,

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
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em que se constitui o conjunto crítico e formativo de estímulos para os


emparelhamentos somáticos, os quais se formam maioritariamente durante o
processo de Educação e de socialização (Damásio, 2003a). Uma informação
de grande pertinência, capaz de reforçar a importância da iniciação Precoce
das Crianças na prática de Futebol, para que deste modo possam Somatizar o
Jogo, e um determinado jogar através da Especificidade Precoce, e Somatizar
ainda desde muito jovens a paixão que o Jogo desperta. Ao ponto de neles se
entranhar depois de inicialmente se estranhar, por ser uma actividade
aparentemente ContraNatura. Damásio (2003a) esclarece ainda, que os
marcadores-somáticos além de actuarem de forma oculta, isto é, sem
necessidade da sua percepção consciente, podem também ser úteis a níveis
de decisão superiores, tendo assim mais de uma via de acção, uma através da
consciência, cujo padrão neural quando tornado consciente se constitui como
um sentimento e a outra via fora da consciência.

7.4.3 – A necessidade de desenvolver a Inteligência Intuitiva.

“Penso que é uma espécie de intuição. Nem sequer temos tempo para pensar nisso. É mais um
sentimento que nos faz agir de imediato. Uma reacção, uma decisão que tomamos num instante.”
(Nistelrooy, 2006).

Quando os marcadores-somáticos actuam de forma oculta, ou seja, fora da


consciência, podem através deste mecanismo oculto ser a fonte daquilo que
designamos de intuição, o misterioso mecanismo, que nos permite chegar a
uma solução sem raciocinar, com vista a essa solução (Damásio, 2003a,
2004). Duarte Araújo (2005) entende a intuição, como sendo um processo não
consciente de descoberta de soluções para uma determinada situação, ainda
que esta, não se consiga explicar, o que vai de encontro ao que sugere
Damásio (2003a, 2004). Intuição “é aquilo a que eu chamo sensibilidade” como
afirma Marisa Gomes (Anexo 5) que acrescenta ser um processo que nos
remete para o subconsciente e que resulta do que fomos mapeando ao longo
da Vida, sendo capaz de condicionar os nossos comportamentos, mesmo que
nem sempre tenhamos tal percepção.

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Os Talentos do Futebol mundial são, no entendimento de Valdano (2002, pp.


10); “artistas de criação dinâmica que não saberiam explicar o que são capazes
de fazer.”
Fazer algo intuitivamente é, “perguntarmos ao jogador porque é que fizeste
isto, e ele nem saber (…) não saber explicar”, como afirma Marisa Gomes
(Anexo 5), que salienta que esta dimensão do saber fazer, se pode classificar
de “intensidade máxima”.
Face ao exposto, depreende-se que o Futebol tem muito de intuição, sendo
assim um Jogo intuitivo, tal como comprovam afirmações recorrentes do
género; “não sei como marquei aquele golo”; “foi por instinto”; “foi com o pé que
estava mais à mão”, entre muitas outras, que apesar de proferidas com base
no empirismo de quem vivencía ou vivenciou o Jogo, parecem ter
sustentabilidade do ponto de vista científico.

“Há momentos em que tento obter informação antecipadamente. Muitas


vezes se estamos a defender, eu já estou a pensar como poderemos atacar.
Tento ganhar tempo. Tento ganhar tempo através da antecipação. Mas, de
uma forma geral, quando recebo a bola, o instinto assume o controlo.” (Henry,
2006).

“Normalmente 70% 80% dos passes são calculados, tem ideia de fazer o
passe, 20% 15% você faz na intuição.” (Kaká, 2006).

“Penso que é uma espécie de intuição. Nem sequer temos tempo para
pensar nisso. É mais um sentimento que nos faz agir de imediato. Uma
reacção, uma decisão que tomamos num instante.” (Nistelrooy, 2006).

De acordo com Goleman (2006), a intuição tem actualmente dados


consistentes a apoiarem a sua importância. “Se confiava no instinto, acertava
muito mais vezes. Como a ciência cognitiva nos diz, sabemos mais do que
somos capazes de traduzir em palavras” (Goleman, 2006, pp. 153). Daí que
declarações, como as que referimos e transcrevemos anteriormente, não

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

devam ser alvo de escárnio, chacota e menosprezo, como não raras vezes se
verifica, sendo utilizadas para ridicularizar os Talentos do Futebol,
considerando-os como ignorantes, quando na verdade o que sucede é, que
estes Jogadores são Inteligentes de uma forma alternativa, um saber tácito,
mas não somente, que é também Somatizado e como tal Corpóreo, o qual não
pode ser aferido por testes de QI. Isto é, possuem um tipo de Inteligência
Intuitiva, própria da actividade que praticam, o Futebol, um saber que não se
expressa verbalmente, mas sim com o Corpo através da relação com os outros
e com a bola. Segundo Marisa Gomes (Anexo 5) a aquisição desta Inteligência
Intuitiva resulta, de tudo o que vivemos, e não menos importante do que ainda
se vai viver (futuro o elemento causal), e é determinante para a interacção
entre os Jogadores e o emergir de uma determinada Cultura de Jogo, adquirida
pela prática sem que se observe perda da singularidade de cada Jogador.
Devemos ter em consideração que a intuição, é a chave do sucesso de
muitas decisões, uma vez que ao nível do não consciente se encontra
fundamentada uma poderosa fonte de informação (Menezes, 2006).
Na intuição, “resposta de tiro rápido”, o sentimento parece preceder ou
ocorrer em simultâneo com o pensamento, e assume o controlo das nossas
acções em situações de urgência, mobilizando-nos para de forma instantânea
fazermos face às emergências (Goleman, 2003), o que vai de encontro ao que
referimos acima, acerca da manifestação do comportamento habitual em
situações de pressão e stress emocional consideráveis. Segundo Menezes
(2006b), quando necessitamos de tomar decisões de forma rápida, em
contextos de stress emocional, utilizamos o lado não consciente do cérebro,
uma faceta que se pode revelar como sugere, extremamente benéfica.
Recorremos à intuição quando o cérebro tem necessidade de avançar com um
palpite sobre o que existe no mundo real, fazendo-o de forma muito célere e
em regra de forma não consciente (Levitin, 2007).
A Inteligência Intuitiva é um tipo de Inteligência subtil e não consciente de
conhecimentos, que em colaboração com a mente emocional possibilita uma
leitura abrangente da realidade que percepcionamos (N. Lima, 2006).

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Capra (2005) contrapondo o pensamento racional, ao conhecimento intuitivo,


esclarece que este último se baseia na experiência directa, não intelectual da
realidade, em decorrência de um estado de percepção consciente, tendendo a
ser holístico, sintetizador, e não-linear.
“A mente emocional é muito mais rápida do que a mente racional, entrando
em acção sem «pensar» por um instante no que vai fazer. A sua rapidez exclui
a reflexão deliberada e analítica que é característica da mente racional.”
(Goleman, 2003, pp. 312).
A necessidade de tomar decisões de forma bastante rápida, em situações de
grandes constrangimentos contextuais, e sob enorme tensão emocional é
característica do Jogo, como já fomos salientando. O que sustenta a ideia de
que as intuições têm no Futebol, uma grande relevância para a gestão do aqui
e agora, o que nos leva a considerar o Futebol como uma actividade intuitiva,
ainda que não exclusivamente, o que é um aspecto muito relevante, como
evidenciaremos mais adiante. Não obstante tal advertência, Samulski & Greco
(2004) salientam que tanto Jogadores como treinadores de Futebol
reconhecem, que a maior parte das decisões durante os jogos são tomadas de
forma não consciente, intuitiva e espontânea. Marisa Gomes (Anexo 5)
evidencia que tal como os Jogadores, também os treinadores se socorrem da
intuição, “sensibilidade”, para tomarem decisões a diferentes níveis, seja na
gestão do «aqui e agora» implicada na Competição, como ao nível do
planeamento e operacionalização do treino.
Apesar do potencial que reconhecemos à Inteligência Intuitiva, ao nível da
tomada de decisões no Jogo, consideramos pertinente salientar, que esta por
si só se revela insuficiente para a expressão de mestria de um jogar, por se
tratar de um grau de complexidade básico da nossa relação com o que nos
rodeia, permitindo apenas a sobrevida (Caraça, 2005), e não uma expressão
sublime da experiência do Viver, ou no caso do Jogar. Contudo, sobre estes
aspectos iremos nos pronunciar com mais pormenor mais adiante.
Menezes (2006a) adverte que apesar da intuição, funcionar como um meio
poderoso para a tomada de decisões, existem situações em que nos pode
atraiçoar. Uma vez que, a intuição se pode revelar perniciosa, deverá procurar-

420
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

se através do treino minimizar tal tendência. Consideramos que tal se torna


possível, através da criação de situações de Aprendizagem caracterizadas por
uma grande variabilidade de qualidade, ou seja, de Jogo, para que os
Jogadores sejam confrontados constantemente com situações de grande
variabilidade, à semelhança do que sucede no Jogo. Além disso, essa
variabilidade sendo de qualidade, deverá reportar-se a um determinado jogar,
Especificidade, para que os Jogadores perante situações de adversidade
ancorem as suas intuições em bases sólidas, os Princípios de Jogo. Por fim,
consideramos que a educabilidade da intuição específica do Futebol deverá
desenvolver-se ainda precocemente, e se possível alicerçada no esboço de um
jogar, Especificidade Precoce. A nossa sugestão aponta para o
desenvolvimento das competências relacionadas com a intuição, o que não é
de todo inverosímil. Como salienta N. Lima (2006), a intuição é uma faculdade
psicológica flexível e não estática, acrescentando, que como tal pode ser
treinada.
Das várias traições que a Intuição nos pode fazer, Menezes (2006a,) destaca
uma que nos parece particularmente pertinente, sobretudo, tendo em
consideração o que dissemos já nesta dissertação, acerca da importância de
seleccionar Talentos em função do potencial relativo à qualidade de Jogo e não
atendendo a morfótipos padronizados.
Menezes (2006a) alerta-nos para o embuste, intuitivo, relacionado com o
perfil morfológico. Conforme evidencia, muitas vezes sentimo-nos influenciados
pela aparência das outras pessoas, tendo esta enorme influência sobre o
nosso comportamento, ao ponto de despoletar situações de discriminação, de
prejuízo e de benefício. Pensamos, que o que foi referido poderá ajudar-nos a
compreender, porque motivos os treinadores preterem, nas suas escolhas, tal
como evidenciamos, Talentos em potencial e com potencial em detrimento de
jovens de qualidade vulgar, mas com perfis de Atletas.
É esta falácia intuitiva que permite explicar a razão pela qual, “pessoas
totalmente medíocres acabam por ocupar posições de grande
responsabilidade.” (Menezes, 2006a, pp. 21).

421
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

7.4.4 – Atender à NeuroQuímica do Prazer para aceder a um Futebol


Prazenteiro.

“… a pesquisa demonstrou que as recompensas e as punições são essenciais para «fixar» um


episódio a fim de que este passe a ser uma parte lembrada da narrativa pessoal.”
(Pribram, 2004, pp. 21).

Depois de efectuada uma incursão em torno da intuição, voltaremos àqueles


que são os mecanismos que lhe poderão estar subjacentes, a hipótese do
marcador – somático (Damásio, 2003a). São já vários os autores (Ganascia,
1999; Goleman, 2003; Habib, 2003; Jensen, 2002; Nava, 2003), a referirem-se
favoravelmente a esta hipótese, que pretende estabelecer a ligação entre
processos cognitivos, emocionais e físicos (Berthoz, 2008). Habib (2003)
refere-se à hipótese dos marcadores - somáticos, como sendo um quadro
teórico, que apesar de carecer de confirmação experimental se revela bastante
sedutor. Berthoz (2008), salienta que esta hipótese, resulta do retomar e
aprimorar por parte de António Damásio, das ideias de James, muito criticadas
na sua época, advertindo contudo, para o facto da hipótese dos marcadores –
somáticos ser actualmente, ainda objecto de debate.
Parece contudo que a confirmar-se esta hipótese, algo que Damásio (2003a),
fez já na sua obra, os marcadores – somáticos poderão explicar muitas das
tomadas de decisão dos Jogadores. “Os conhecimentos de que dispõe o atleta
(Jogador) conduzem-no prioritariamente, a orientar-se para certos cenários e
em abandonar os outros.” (Faria & Tavares, 1996, pp. 37).
O privilegiar de determinadas opções ao nível da tomada de decisão em
detrimento de outras, torna relevante o papel das emoções, ao nível da
«marcação» de memórias decorrentes de vivências passadas, e
consequentemente ao nível da Aprendizagem. A este nível, a memória a que
recorremos é, a memória implícita, a qual nos permite a Aprendizagem do
saber fazer e aquisição de perícias motoras à partida não acessíveis à
consciência (Nava, 2003; Valente, 2007). Trata-se de um tipo de memória
caracteristicamente automática, formada e evocada sem se encontrar
dependente da consciência, e através de múltiplas repetições de determinados

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

acontecimentos, as quais possibilitam acções, incluindo as acções motoras


mais perfeitas (Nava, 2003).
Os processos mnésicos encontram-se fortemente relacionados com as
emoções. As emoções influenciam o modo, como percepcionamos o Mundo, a
forma como processamos informação e ainda o modo como a armazenamos,
assim como a quantidade de recordações que temos quando acedemos a essa
informação (Phelps, 2007).
Devemos a este respeito ter em consideração, que ao tratarmos a temática
das emoções e da efectivação de traços mnésicos, que estes não deverão se
encontrar dissociados da ideia de recompensa ou de punição, e do prazer ou
desprazer que se lhes encontram associados (Damásio, 2003b). A hipótese
dos marcadores – somáticos remete-nos deste modo, para a importância da
recompensa e da punição nos processos de EnsinoAprendizagem.
“… a pesquisa demonstrou que as recompensas e as punições são
essenciais para «fixar» um episódio a fim de que este passe a ser uma parte
lembrada da narrativa pessoal.” (Pribram, 2004, pp. 21). Emoções intensas
associadas a determinados acontecimentos, informações e recordações do
passado, são acompanhadas de um conjunto de alterações químicas, em que
se observa a libertação de neurotransmissores, que relevam no cérebro a
importância e significado dos acontecimentos que os despoletaram (Jensen,
2002). “As etiquetas neuroquímicas associadas às memórias marcam-nas por
importância, e temos tendência a codificar as coisas como importantes em
função da emoção que sentimos, quer seja positiva ou negativa.” (Levitin, 2007,
pp. 205). Tal como também evidencia Marisa Gomes (Anexo 5).
Da química das emoções, uma das hormonas que se encontra mais
associada ao prazer, e consequentemente ao reforço das Aprendizagens que
desencadeiam sensações agradáveis é, a dopamina (Damásio, 2003b), por
este motivo encontra-se associada à memória de longo prazo, assegurando
que as experiências pessoais mais relevantes, sejam remetidas para este tipo
de memória (Scheich, 2007). O que vai de encontro ao que salienta Jensen
(2002) quando sugere que este tipo de “auto – recompensa”, reforça os
comportamentos desejados. O sistema dopaminérgico auxilia deste modo, a

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

codificação de traços mnésicos (Levitin, 2007). Ao nível cerebral o sistema


dopaminérgico, encontra-se associado a algumas formas de Aprendizagem
(Valente, 2007).
De acordo com Scheich (2007), a dopamina cria no organismo uma sensação
de bem-estar, designado de feedback positivo, o qual nos confere a sensação
de que fomos bem sucedidos, sendo este feito premiado pelo cérebro. Os
comportamentos em que a experiência é sentida como recompensadora e
agradável dependem da libertação de dopamina (Damásio, 2003b), a qual
encontrando-se associada ao bem-estar, se repercute como já salientamos, no
bem pensar e actuar (Damásio, 2004). Importa ainda salientar, que quando nos
sentimos bem sucedidos, nos sentimos igualmente motivados para encarar
novas situações e desafios, com o intuito de obter mais sucesso, podendo
considerar-se este, o mecanismo básico responsável pela experiência do
sucesso (Scheich, 2007). Observa-se como que uma Somatização do sucesso;
“não é somente um problema de inteligência, aí é um problema de afecto (…)
Porque há aqui um problema muito curioso. (há uma somatização do sucesso)
exactamente, e do gostarem de nós, que eu acho que é muito importante.”
(Sobrinho Simões, Anexo 1).
A sensação de prazer que é despoletada no organismo, e que o impele no
sentido de obter mais prazer, parece-nos um aspecto muito relevante, o qual
poderá ajudar a perceber e compreender os mecanismos neurais e químicos,
que poderão estar subjacentes aos estados de fluxo, observados nos Talentos.
Relembramos, que o estado de fluxo, tal como procuramos evidenciar, é um
traço muito característico do Futebol de Rua. Neste Futebol, as Crianças
encontravam-se, pelo prazer que este despertava, imbuídas de um estado de
êxtase, prazer, de SupraMotivação e superação que lhes permitia aceder a
níveis de desempenho de excelência. Encontrando-se a criação de marcadores
– somáticos positivos, aqueles que se encontram associados a
comportamentos recompensadores (Damásio, 2003a), exponenciada em
contextos emocionais de prazer, e sendo os marcadores – somáticos de
grande relevância para a tomada de decisão no Futebol, deverá procurar-se

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

nos pretensos Úteros Artificiais, despertar o estado de prazer característico do


Futebol de Rua.
Para tal, uma premissa essencial é entender que o treino não pode ser
castigo, devendo no caso de treino de jovens, mas não somente, proporcionar
às Crianças uma relação prazenteira com o Jogo. Competindo ao treinador,
criar no treino contextos, isto é, jogos que permitam aceder ao prazer, ao
sucesso, sem contudo alienar a necessidade de permanente desafio e de
atender ao Sentido da Divina Proporção. Além disso, a intervenção do treinador
não deverá ser emocionalmente neutra.”O treinador não pode ignorar nem
desperdiçar este aspecto emocional na implementação das suas ideias de
jogo” (Freitas, 2004, pp. 39), e também no despertar do prazer nos jovens.
Com uma intervenção emocionalmente gratificante, e claro está, pertinente e
com a criação de contextos em que os jovens vivenciem o Jogo com prazer, a
paixão pelo Jogo poderá ser exponenciada pela sobrestimulação
dopaminérgica. Consequentemente, pelo que foi referido anteriormente, poderá
observar-se a Somatização do Jogo e do sucesso nos jovens, o que poderá
favorecer a criação de Talentos “Campeões”. Num contexto em que os jovens
vivenciem o Jogo, à semelhança com o que sucedia no Futebol de Rua, onde a
quantidade de qualidade aliada ao prazer, nos levam a designá-lo como a
maior fábrica de marcadores – somáticos do Futebol, a “marcação” do Jogo,
pelos estados emocionais que o caracterizavam, encontrava-se favorecida. Ao
recuperarmos o Futebol de Rua, pretendemos através dos Úteros Artificiais,
fazer com que o que inicialmente se apresentava como estranho para a
Criança, vá sendo “marcado” no Corpo pelos estados emocionais que cria,
procurando deste modo, que o Futebol se vá entranhando na Criança,
reforçando-se assim, a possibilidade de Somatização Precoce do Jogo.
Procura-se gravar no Corpo experiências relativas a um determinado jogar,
procurando associá-las a sentimento e emoções que favoreçam a tomada de
decisões, tendo como ferramenta o recurso aos marcadores – somáticos (B.
Oliveira et al., 2006).
Uma ideia que parece reforçada pelo facto, de estudos recentes, apesar de
efectuados em ratos sugerirem, que um estilo de vida caracterizado por uma

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

actividade diária natural, complementada com a realização de exercício físico,


contribui para que neurotransmissores, como a dopamina, se desenvolvam de
forma mais equilibrada e conveniente para o desenvolvimento (Teuchert-Noodt,
2007).
Estes dados suportam a ideia por nós evidenciada, de que o problema
relativamente ao início da prática do Futebol, não se centra no quando, mas
sim no como. A alternativa que apresentamos em relação ao como,
designámo-la de Especificidade Precoce, e caracteriza-se por uma elevada
quantidade de qualidade de Jogo, alicerçada na construção e desenvolvimento
paulatino de um esboço de um jogar, o qual gradativamente se vai
complexificando, permitindo que em simultâneo se construam e exponenciem
Talentos, jogares e equipas de qualidade. Os dados do estudo acima referido,
corroboram aquilo que sugerimos nesta dissertação, ou seja, que Mais Futebol,
não colide com a ideia de Mais Criança, pelo contrário, a ideia de Mais Futebol,
desde que em qualidade, abraça a ideia dum desenvolvimento mais
harmonioso e integro da Criança, permitindo assim o respeito pelo postulado,
Mais Criança.
Para Changeux (2003), parece evidente que a formalização específica de
sinais de recompensa e de punição, ao longo do desenvolvimento cerebral,
permite uma correlação mais adequada com os comportamentos de
Aprendizagem durante o desenvolvimento. Corroborando deste modo, a
pertinência da Especificidade Precoce e da intervenção em conformidade por
parte do treinador.
Ainda no que se refere à neuroquímica comportamental, defendemos que o
processo deve estimular as hormonas relacionadas com o prazer. Por este
motivo, parece-nos particularmente pertinente aludir para o que refere Paulo
Cunha e Silva (Anexo 4), quando sugere que o corpo centrípeto, mais
associado ao treino é endorfínico, enquanto que o corpo centrífugo, mais
associado à Competição, é adrenalínico. Com base no que já fomos
evidenciando, consideramos pertinente advertir, que de acordo com o modo
como entendemos o processo, no qual treinar é Competir, a interpretação das
analogias efectuadas por Paulo Cunha e Silva (Anexo 4), se deve fazer com

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

cuidado. O modo aparentemente dicotómico com que o nosso entrevistado


apresenta o corpo centrípeto (aquele que acumula, sugerido por isso mesmo
como conotado com o treino) e o corpo centrífugo (aquele que se dissipa,
sugerido por isso, como conotado com a Competição), poderá sugerir uma
consequente dicotomia entre o treino e a Competição, algo que não se
coaduna com o modo como concebemos o processo. Entendemos por isso,
que tanto no treino como na Competição, ambos os corpos se devem encontrar
implicados, ainda que aceitemos que pela tensão emocional, mais marcada da
Competição, o corpo adrenalínico, centrífugo, se manifeste de forma mais
evidente na Competição. Até porque, como salienta Marisa Gomes (Anexo 5)
na Competição o lado emergente está mais presente, é mais real, e por isso se
torna adrenalínico, “dá pica”.
Por outro lado, aceitamos que o corpo centrípeto se expressa de forma mais
predominante no treino, lugar por excelência para assimilação de um jogar, e
por isso, tendencialmente mais aquisitivo, acumulativo, isto é, mais endorfínico.
Repare-se que sugerimos ser “tendencialmente” mais aquisitivo, o que quanto
a nós faz toda a diferença, visto que o treino não deverá ser exclusivamente
endorfinico, devendo permitir a expressão do lado emergente e dissipativo dos
Talentos. Uma vez que face ao que temos vindo a evidenciar, somente deste
modo, se poderá caracterizar como sendo um processo de qualidade, capaz de
dar Vida a um jogar prazenteiro tanto para quem o Joga, como para quem o
observa.

7.4.5 – PréRepresentar o jogar através da operacionalização de Jogos


Cognitivos.

“Uma pré-representação que foi seleccionada como representação global no seio do espaço de
trabalho pode permanecer activa, de uma maneira autónoma, e resistir às modificações da
estimulação periférica durante tanto tempo que recebe sinais de recompensa positivos.”
(Changeux, 2003, pp. 107).

Changeux (2003) apresenta uma hipótese na qual procura explicar, de entre


várias coisas, o que poderá estar subjacente ao saber fazer e à forma como

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

construímos o conhecimento, relevando a este respeito a importância do


reforço na aquisição de conhecimentos.
A aquisição de conhecimentos nas Crianças segundo este autor, é um
processo epigenético e dinâmico, que faz intervir jogos cognitivos entre o
organismo e o mundo exterior, manifestando-se a realidade através da
produção daquilo a que designa por “pré-representações” ou “modelos
internos”, que são permanentemente actualizados em função de sanções
positivas ou negativas, provenientes do mundo exterior, assim como de auto-
avaliações internas. Observando-se que durante o desenvolvimento das
Crianças, o tratamento consciente dos conhecimentos tornar-se-ía
progressivamente «reflexivo», sendo as acções externas substituídas
paulatinamente por computações internas e as acções automáticas por
simulações diferidas, realizando-se a aquisição do conhecimento e respectivo
tratamento através de cálculos tácitos realizados ao nível dos cérebros
individuais. Acrescentando ainda relativamente à hipótese das pré-
representações, que a actividade espontânea desempenha a este nível um
papel central. As pré-representações, corresponderiam aos estados de
actividade dinâmicas, espontâneas e transitórias de um conjunto de neurónios
capazes de formar combinações múltiplas, cuja variabilidade resulta em parte
das modalidades dos respectivos desenvolvimentos (Changeux, 2003). O que
reforça a necessidade de uma vivenciação contextualizada, isto é, em
Especificidade dos comportamentos que desejamos desenvolver através do
treino, desde idades muito precoces, devendo para tal, as tarefas propostas
pelos treinadores se caracterizarem pela qualidade, assumindo-se assim como
jogos cognitivos, capazes de criar pré-representações do Jogo, e de um
determinado jogar.
“Uma pré-representação que foi seleccionada como representação global no
seio do espaço de trabalho pode permanecer activa, de uma maneira
autónoma, e resistir às modificações da estimulação periférica durante tanto
tempo que recebe sinais de recompensa positivos. Se a avaliação for negativa
ou se os processos de atenção automantido vêm a fazer falta, esta pré-
representação pode ser reactualizada ou substituída, por meio de um processo

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
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de tentativa e erro, por uma outra combinação discreta de neurónios do espaço


de trabalho. Os esquemas não seleccionados são reprimidos por conexões
inibidoras a longa distância, mas podem ser reactivados se as circunstâncias
mudarem, de forma independente ou fazendo parte de uma nova combinação
de neurónios” (Changeux, 2003, pp. 107/109).
Entendemos, que embora não devendo ser confundidas, a hipótese dos
marcadores – somáticos (Damásio, 2003a) e a hipótese das pré-
representações (Changeux, 2003), apresentam alguns pontos em comum, e
cujas repercussões e extrapolações para o Futebol são semelhantes. As
implicações que a hipótese sugerida por Changeux (2003) tem, ao nível da
intervenção dos treinadores, foram já cabalmente sugeridas e sustentadas por
Campos (2007). Contudo, consideramos que as valências desta hipótese, à
semelhança do que sucede com a dos marcadores – somáticos, não se deve
cingir ao domínio da intervenção do treinador, devendo assim ser alargada, à
necessidade de criar contextos que permitam vivenciar o Jogo de forma
recompensadora, através de jogos cognitivos, e também à necessidade desses
mesmos jogos, permitirem uma vivenciação dos Princípios de Jogo,
subjacentes ao esboço de um determinado jogar, que possibilite aos Jogadores
um sentimento de bem estar, recompensador, que os leve não somente a
assimilar continuamente esse jogar, Somatizando-o, mas também fazendo-o
evoluir consequentemente para níveis de complexidade e de mestria mais
elevados.

7.5.1- Para além do SABER – FAZER:

“O nível tácito corresponde ao grau de complexidade mais básico na relação com o mundo
exterior, o nível da subsistência física. Cabem aqui todas as «intuições» sobre o modo como
manter-se vivo e alimentar-se, bem como reproduzir-se, isto é, os gostos e os afectos. É o nível
fundamental do conhecimento em termos de sobrevivência”
(Caraça, 2005, pp. 183).

Apesar de anteriormente termos evidenciado a importância dos


automatismos, ou do saber fazer ao nível das tomadas de decisão, sobretudo
em contextos de urgência decisória como sucede no Futebol, devemos ter em

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
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consideração, que tal forma de decisão se restringe a um nível elementar da


acção Humana. “O nível tácito corresponde ao grau de complexidade mais
básico na relação com o mundo exterior, o nível da subsistência física. Cabem
aqui todas as «intuições» sobre o modo como manter-se vivo e alimentar-se,
bem como reproduzir-se, isto é, os gostos e os afectos. É o nível fundamental
do conhecimento em termos de sobrevivência” (Caraça, 2005, pp. 183). Não
obstante a relevância destes processos, em sistemas complexos urge a
necessidade de ir para além deste nível de sobrevida, ou seja, deste saber
fazer, com o intuito de alcançar níveis de existência mais sublimes. Assim,
apesar de grande parte do nosso comportamento se basear em hábitos, os
quais emergem em grande parte ao nível do não consciente, sempre que é
necessário escolher sem o domínio dos automatismos, torna-se necessária a
existência da consciência para suportar qualquer escolha (Sheldrake, 2004a).
Segundo Goleman (2006), parece ter se formado uma ideia errónea, de que
não temos direito de escolha no quotidiano, pois tanto o que sentimos, como o
que pensamos e fazemos acontece de forma automática. Contudo, “a ideia de
que é tudo feito «em automático» é deprimente” (Ochsner, s/d, cit. por
Goleman, 2006, pp. 121).
Já anteriormente evidenciamos, que o que se pretende através do processo
de treino, é desenvolver um saber fazer Corpóreo, induzido pela acção, e
aquisição de hábitos em regime do entendimento de uma determinada relação
mente – hábito (B. Oliveira et al., 2006). Ou seja, a partir da intencionalidade
subjacente ao EnsinoAprendizagem de um jogar, isto é, em Especificidade
(Precoce), ir além do saber fazer, acedendo à dimensão de um saber sobre um
saber fazer. É aquando desta passagem, ou momento que se estabelece a
relação mente – hábito, no qual se observam no organismo os níveis mais
sublimes de expressão Corpórea, ou seja, de harmonia entre corpo-
propriamente-dito e mente. “O corpo e a mente podem ser juntos. É possível
desenvolver hábitos em que o corpo e a mente se encontrem perfeitamente
coordenados. O resultado é uma mestria que não é apenas conhecida do
próprio meditador individual mas que é visível para os outros (…) Associamos

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

tipicamente um tal estado (…) com as acções de um especialista tal como um


atleta (Jogador) ou um músico.” (Varela et al., 2001, pp. 55).
Sendo plausível, em nosso entendimento, uma total aplicabilidade destas
ideias para os processos de treino no Futebol, tanto a nível sénior como ao
nível da Formação, o que se pretende na Periodização Táctica, e como tal na
Periodização à La Long é, que um determinado jogar seja assimilado não
somente ao nível do saber fazer, mas também ao nível do saber sobre um
saber fazer (Tamarit, 2007), capaz de conferir a um determinado jogar uma
dimensão consciente, uma Consciência Táctica, e não apenas algo
circunscrito à esfera do automatismo.
Devemos ter em consideração, que no Futebol se colocam aos Jogadores um
conjunto de problemas cuja resolução de forma eficaz depende de
conhecimentos específicos e da interacção das experiências e vivências dos
diferentes Jogadores, implicando deste modo, o desenvolvimento interactivo de
um conjunto de saberes, dos quais resulta a acção propriamente dita (J. G.
Oliveira, 2004). “A qualidade do jogo depende do conhecimento que os
jogadores têm do que querem, do que sabem, daquilo que não sabem, do que
podem e não podem fazer.” (Garganta & Oliveira, 1996, pp. 8). De acordo com
V. Frade (1989) estes saberes podem ser concretizados considerando-se, um
saber fazer e um saber sobre um saber fazer. O Fenómeno Complexo Futebol
requisita deste modo, dois domínios do saber, o «saber fazer» e o «saber
sobre um saber fazer» (Tamarit, 2007). “O «futebol» é um-saber-fazer, é um
hábito que se adquire na acção. O ensinar a jogar não é só da esfera do saber
fazer, tem a ver com o entendimento da relação mente hábito, é um saber-
sobre-um-saber-fazer.” (Carvalhal, 2002, pp. 62). Depreende-se deste modo, a
necessidade de contemplação desta dimensão no processo de treino, para a
evolução do nível de Jogo, evolução consubstanciada pela evolução dos
jogares e dos Talentos que os Corporalizam.
No Futebol, sendo a Inteligência um auxílio determinante, torna-se
fundamental pensar sobre o que se faz, com o intuito de se poder perceber
como se faz e como pensa, ou qual a distância a que nos encontramos de tais
intentos, e quais as razões para tal. Deste modo, “o verdadeiro treino”, vai além

431
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

da criação de um saber fazer, devendo permitir desenvolver igualmente um


conhecimento sobre o saber fazer44 (Garganta, 2004), mas sobretudo, em
nosso entendimento, o desenvolvimento de um saber sobre o saber fazer.
Rui Faria (s/d, cit. por Lourenço & Ilharco, 2007, pp. 145) esclarece a este
respeito o seguinte; “nos treinos, insistimos muito na habituação. O treino cria o
hábito e depois, no jogo, em vez do acto ser pensado, este surge de forma
subconsciente e natural. No entanto, durante o jogo, também existe espaço
para o raciocínio devido à imprevisibilidade que obriga a que se tenha que
decidir num determinado momento. Mas tentamos pensar o máximo nos treinos
de forma a reduzir a imprevisibilidade.” Destas declarações depreende-se, que
à semelhança do que sucede na generalidade das actividades Humanas,
também no Futebol, há necessidade de ir mais além do que o saber fazer. A
adequação motora, induzida pelo saber fazer revela-se insuficiente, devendo
encontrar-se subordinada à dimensão Táctica para que se consubstancie num
saber sobre um saber fazer (Lopes, 2007).
O saber sobre um saber fazer, como esclarece J. G. Oliveira (2004, pp.
41/42), “implica dois tipos de conhecimentos. Por um lado, um conhecimento
táctico-técnico abrangente, que funciona como uma cultura táctica de jogo,
permitindo entender, perceber e expor a opinião acerca do que pode e deve ser
feito. Por outro lado, um conhecimento que está relacionado com uma auto e
hetero-interpretação de um projecto de jogo colectivo e que permite a evolução,
colectiva e individual, através da interacção entre a cumplicidade e a
divergência das interpretações e acções dos Jogadores.” No Futebol o saber
sobre um saber fazer pode considerar-se, a dimensão que permite tornar
comum o que à partida é diferente e elevar o jogar e os Jogadores, para níveis
de complexidade e de mestria continuamente mais evoluídos. Ainda que como
sugere Marisa Gomes (Anexo 5), a expressão de tal sincronia interactiva entre
os Jogadores, se possa manifestar e se manifeste a um nível subconsciente.
A ideia de tornar comum e de interacção como veremos mais adiante, é de
enorme relevância, e entronca na definição de consciência. Motivo pelo qual,

44
Conhecimento sobre o saber fazer fazer, remete quanto a nós, para o entendimento de Jogo,
assunto a abordar mais adiante.

432
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

encontrando-se este saber sobre um saber fazer subordinado, à


SupraDimensão Táctica (Lopes, 2007), o designamos de Consciência Táctica.
A Consciência Táctica, um saber sobre um saber fazer, tem como principal
valia numa modalidade colectiva como o Futebol, permitir a sincronia de
pensamentos entre os elementos de uma equipa. O saber sobre um saber
fazer, é o domínio do saber que permite que os Jogadores pensem em função
da mesma coisa ao mesmo tempo (Carvalhal, 2002).
M. Silva (2008) adverte contudo para algo pertinente, ao salientar a
necessidade de um determinado Modelo de Jogo se apresentar como a
referência colectiva a partir da qual, os Jogadores analisam e interpretam o
Jogo, conferindo-lhe significado individual e categorizando deste modo os
dados significativos do contexto. Face ao exposto, depreende-se que este
processo deve ser congruente com o caminho delineado para a equipa para
que se crie uma lógica comum, e mais que isso uma Cultura comportamental
comum, uma Táctica, a qual tem subjacente a consciencialização de um
determinado Modelo de Jogo.
Sobrinho Simões (Anexo 1) salienta a este respeito, algo bastante pertinente,
ao considerar que o Futebol apesar de ser uma actividade que contempla a
dimensão intuitiva, tem algo, que considera ainda mais relevante, e que se
relaciona com o facto de ser uma modalidade colectiva, colocando deste modo
outros problemas, nomeadamente ao nível da organização, implicando da parte
dos Jogadores muita Inteligência Comunicacional e Negocial.

7.5.2. - Futebol um local de «ALDRABÕES», Conscientes!?

“…há, no Maradona, no Garrincha, elementos engraçadíssimos de, se você quiser, inteligência


negocial, capacidade de enganar o outro. Vamos vender-lhe laranjas caríssimas porque o «gajo»
está convencido que está a comprar umas laranjas muito boas”.
(Sobrinho Simões, Anexo 1).

Reforçando a importância do saber sobre um saber fazer, e indo de encontro


ao que foi referido anteriormente, Sobrinho Simões (Anexo 1) afirma que um
Talento, “tem que ter muita inteligência comunicacional, por estranho que

433
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

pareça, mas tem que ter. Quer de si para os outros, quer dos outros para si;
isto é, o jogador de futebol que seja um fora de série tem que perceber o que
os outros estão a pensar, e tem que induzir nos outros estímulos que os levem
a pensar de outra maneira. E portanto há, no Maradona, no Garrincha,
elementos engraçadíssimos de, se você quiser, inteligência negocial,
capacidade de enganar o outro. Vamos vender-lhe laranjas caríssimas porque
o «gajo» está convencido que está a comprar umas laranjas muito boas”.
Na transcrição anterior evidenciam-se, dois aspectos determinantes em
nosso entendimento, e que como verificaremos mais adiante, se encontram
exponenciados pela actividade consciente; o tornar comum um conjunto de
princípios e normas de acção, Princípios de Jogo, e a tentativa de dissimular
com mestria, um determinado plano estratégico de acção. Este último aspecto,
o qual se reporta à micro dimensão do detalhe é determinante para a
expressão qualitativa dos jogares e dos Talentos. Em conformidade com
Sobrinho Simões (Anexo1), Valdano (1997, pp. 36) refere que “o bom jogador é
um grande mentiroso”, é alguém que faz bluff com todo o Corpo (Valdano,
2002).
Importa neste ponto salientar, que a mentira é um processo que se
desenvolve ao nível da via superior (Goleman, 2006), podendo mesmo definir-
se como sendo uma falsificação consciente, que permite que quem mente o
saiba, mas não necessariamente quem recebe o discurso (Changeux, 2003).
As Inteligências evidenciadas nas palavras acima transcritas, Inteligência
Comunicacional e Negocial, reportam-nos para os domínios da criatividade,
respectivamente, para a criatividade convergente, no sentido em que tem um
referencial comum, um Modelo de Jogo, para o qual todos os comportamentos
deverão convergir, e para a criatividade divergente, no sentido que permite com
base nos padrões de convergência assimilados, recriar e fazer evoluir um
determinado jogar, tanto a nível Individual como Colectivo. Sendo determinante
considerar também a articulação entre estes dois tipos de criatividade, o que
permite a AutoHetero Evolução de Jogadores e jogares, uma componente
fundamental no treino de qualidade e, que implica envolver conscientemente os
Jogadores na fabricação de um jogar, fazendo com que estes sintam

434
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

necessidade de solucionar problemas, que permitam a evolução através da


aquisição não somente de um saber fazer, mas também, de um saber sobre
um saber fazer, se possível criativo, a Consciência Táctica.
De acordo com Paulo Cunha e Silva (Anexo 4) vivemos numa permanente
tensão entre estes dois pólos, a necessidade de dissipação e de organização.
Para tal sugere a existência de dois tipos de corpos, um centrífugo, que busca
a excitação e outro centrípeto, que procura acumular. Advertindo ainda, que é
com base nestes dois pressupostos, acumular e libertar, que nos organizamos,
não sendo possível permanecer perenemente numa destas dimensões. Em
nosso entendimento, e com base no exposto por Sobrinho Simões (Anexo 1),
os Jogadores, assim como os jogares, têm igualmente de viver nesta tensão
permanente, capaz de permitir que o todo deixe que a parte se expresse, sem
lhe retirar a sua singularidade e até brilhantismo (dimensão centrífuga) sem
perda de pertença a um todo maior, ao qual pertence (dimensão centrípeta).
“Apesar de tudo, o que distingue de forma única o futebolista genial é a sua
capacidade de ser um solista numa orquestra.” (Sobrinho Simões, Anexo 1).
Pelé (2006c, pp. 91) refere acerca de Didi, algo que evidencia que o Talento
pode se expressar pela capacidade de engano e de mentira, sem ignorar a
dimensão colectiva e organizativa do Jogo, segundo afirma, “Didi era muito
inteligente. Era o nosso maestro. Estava sempre a alertar-nos: «Presta atenção
para onde vais chutar a bola!» Por vezes, era demasiado perspicaz. Fingia que
ia cruzar a bola para um dos lados do campo; e acabava por cruzá-la para o
outro. Por vezes, isso confundia-nos. E gritava: «Seus idiotas, estou a tentar
baralhar o adversário!»”
Uma vez que este saber se funda, ou deverá fundar num determinado jogar,
tendo assim subjacente como SupraDimensão a Táctica, entendemos que
somente o treino que contempla a Especificidade permite, alcançar o saber
sobre um saber fazer, o qual consiste em tornar consciente um determinado
jogar, isto é, fazer emergir a Consciência Táctica de um determinado jogar,
sem hipotecar ou amestrar a «aldrabice», uma dimensão da expressão criativa
e como vimos consciente dos Talentos no Futebol.

435
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

7.5.3. – Descoberta Guiada como uma dimensão da fenomenotécnica do


treinar:

“…trata-se de fazer com que o jogador, o profissional globalmente e por ele mesmo «descubra»,
sentindo e fazendo-o em cada situação concreta, e assim, aprendendo algo de novo, apreendendo-
o transformando-se; não tanto em função do que o treinador ordena ou prescreve, mas em função
de um resultado que emerge da intencionalidade operante de um jogador concreto numa situação
específica.”
(Lourenço & Ilharco, 2007, pp. 254).

O treino para ser aquisitivo, e como tal, permitir aceder à esfera do saber
sobre um saber fazer, necessita de cumprir o SupraPrincípio da Especificidade
para que deste modo, se estabeleça a relação mente e hábito, determinante
para passar do saber fazer ao saber sobre um saber fazer (Carvalhal, 2002;
Tamarit, 2007).
Pinto (1996) evidenciando a importância do treino enquanto processo de
EnsinoAprendizagem, salienta que este deverá ser consciente, uma vez que
utiliza procedimentos e exercícios que visam alcançar determinados objectivos
(intenções prévias relativas a um jogar), procurando desenvolver os
comportamentos que se pretendem evidenciar em Competição. Acrescentando
que deverá contudo ser igualmente intencional. Em complementaridade, de
acordo com M. Silva (2008), é necessário que o papel do treinador seja
interventivo ao longo do desenvolvimento e concretização do projecto de jogo a
que aspira, para que esse jogar se crie de forma efectiva.
Face aos pressupostos evidenciados pelos autores anteriores, consideramos
pertinente aludir para a necessidade de contemplar o conceito de descoberta
guiada no treino de Futebol, uma dimensão que julgamos relevante, na
fenomenotécnica do treinar.
A descoberta guiada consiste numa dimensão metodológica, que procura
impelir o Jogador a descobrir por si próprio o caminho, sob a orientação e
pistas do líder (Lourenço & Ilharco, 2007). Fazendo deste modo jus ao
provérbio chinês que sugere, que se alguém tem fome em vez de se lhe dar um
peixe, é fundamental ensiná-lo a pescar.

436
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Entendemos ser fundamental, nortear o processo de treino por esta premissa


para que os Jogadores assimilem as ideias do treinador. É que apesar da
concepção de um determinado jogar, ser uma criação do treinador, esta só faz
sentido e se edifica se os Jogadores lhe derem Vida, uma vez que os
Princípios de Jogo subjacentes a esse jogar, ainda que de forma esboçada,
como sugerimos para as idades mais precoces, são inúteis sem pessoas,
Jogadores. O desenvolvimento de um jogar deve emergir primeiramente na
cabeça dos Jogadores (Vítor Frade, 2003 in Martins, 2003).
Tal como sugerimos no ponto anterior, o que se pretende com a repetição
sistemática em regime de Especificidade ou Especificidade Precoce, no caso,
não é mais do que criar a habituação a um jogar. No entanto, para que esse
hábito se consume como Cultura, ou seja, para que se manifeste como uma
regularidade, é necessário que o treino seja aquisitivo, permitindo assim a
consciencialização e mais que isso a InCorporAcção desse hábito, como mais
adiante evidenciaremos.
Na Periodização Táctica, logo também na Periodização à La Long, o que se
procura é que os Jogadores potenciem a qualidade de um jogar e do seu
Talento, através do aumento da consciencialização das intenções prévias dos
treinadores, de modo a possibilitar aquilo a que temos vindo a designar de um
saber sobre um saber fazer. O vivenciar de dinâmicas, em Especificidade,
permite um alargamento qualitativo da paisagem e versatilidade mental que o
Jogador possui do jogo, ou seja, é daqui que resulta o incremento de uma
determinada Cultura comportamental. A qual resulta da coexistência
AutoHetero, na qual um determinado Modelo de Jogo rege as interacções
individuais (M. Silva, 2008).
Para que se observe a consciencialização de um determinado jogar, o
treinador tem de ser um manipulador de consciências, isto é, tem de ser capaz
de cativar e persuadir os Jogadores para aquelas que são as suas intenções,
através da vivenciação do seu jogar, isto é pela operacionalização dos
Princípios de Jogo, que dão corpo ao jogar a que aspira. “…trata-se de fazer
com que o jogador, o profissional globalmente e por ele mesmo «descubra»,
sentindo e fazendo-o em cada situação concreta, e assim, aprendendo algo de

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

novo, apreendendo-o transformando-se; não tanto em função do que o


treinador ordena ou prescreve, mas em função de um resultado que emerge da
intencionalidade operante de um jogador concreto numa situação específica.”
(Lourenço & Ilharco, 2007, pp. 254). Por este motivo Marisa Gomes (Anexo 5)
tal como já salientamos, afirma acreditar “muito no lado das intenções, naquilo
que não se vê, naquilo que nos liga agora, para além das palavras”.
De acordo com Tavares (1998), quando falamos em Aprendizagem e de
formação de elementos TácticoTécnicos do Jogo, é importante que os
Jogadores percebam o que se encontra subjacente a tal processo para que
deste modo, possam apreciar e interpretar melhor as consequências das suas
opções. O que reforça a importância, de impelir e responsabilizar os Jogadores
através do fazer, do treinar, ainda em idades precoces, para a necessidade de
serem críticos face às suas acções, às dos colegas, e à relação entre ambas.
Entendemos, que o incutir desta forma de estar ao longo da Formação,
permitirá dotar os Talentos duma maior Inteligência de Jogo, mais abrangente
e cuja preponderância de determinadas características, poderá ser mais ou
menos relevante em diferentes momentos da sua carreira, tanto enquanto
Jogador, como inclusive depois do término das respectivas carreiras. Momento
em que muitas vezes, terão de se socorrer de valências distintas das que se
encontravam habituados a utilizar ao nível da Inteligência. Uma Inteligência,
que ao ser específica, não somente de um jogar, mas também de uma
determinada actividade o Futebol, se revela especialmente importante, e
quando devidamente solidificada, possibilita que continuem a ter sucesso
naquilo que fizeram durante anos, ainda que no exercício de funções
diferentes, Treinadores, Directores, Empresários, Cronistas …
A este respeito Sobrinho Simões (Anexo 1) salienta que o que se encontra a
ser discutido a este nível é, até que ponto poderá ser importante o
desenvolvimento de estratégias Inteligentes, para diferentes momentos da
Vida, e diferente exercício de funções. Tratando-se como esclarece, não
somente de um problema relacionado com a especificidade da Inteligência,
mas também com os timings, aspectos que refere, serem determinantes em
actividades que tal como o Futebol, têm um período de vida curto. Advertindo

438
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

para o facto, de que os mecanismos utilizados pelos Talentos de diferentes


áreas, e que foram muito “successful” em determinado período podem ser
totalmente desadequados para a Vida adulta e para a velhice, o que implica
uma reorganização enorme, que é tanto mais difícil quanto mais “successful”
tiver sido a fase inicial.
“Porque você às vezes, precisa, aos 20 anos, de certas características para
desempenhar determinadas funções e há outras (…) e não só dos jogadores
de futebol como de qualquer actividade que tenha um período de vida curto.
Com os artistas de palco é a mesma coisa, sobretudo com os bailarinos. Neles
isso é impressionante; nos ginastas é impressionante, e até nos jogadores de
xadrez é impressionante (…) os mecanismos que eles utilizaram e que foram
muito successful na fase em que eram ginastas ou jogadores de xadrez,
podem ser totalmente desadequados para a vida adulta e para a velhice …
(implica uma reorganização muito grande e que nem sempre é fácil) e tanto
mais difícil quanto mais successful tiver sido a fase inicial.” (Sobrinho Simões,
Anexo 1).
Em nosso entendimento, enfatiza-se deste modo, não somente a
necessidade dos Jogadores consciencializarem um determinado jogar, como
também, a necessidade de desenvolverem uma consciência mais ampla
(alargada, como veremos mais adiante) do Fenómeno em que se encontram
inseridos, o Futebol. Devendo quanto a nós, tal consciencialização verificar-se
à La Long, durante os anos em que se submeteram a processos de Formação.
Pensamos que deste modo, se poderão criar Talentos sustentados em bases
sólidas, relativas a um jogar, ao Jogo, e ao Fenómeno, podendo desse modo,
desmistificar-se o preconceito pejorativo em torno dos Talentos no Futebol, os
quais são não raras vezes apontados de «heróis de pés de barro».
Não obstante a importância da descoberta guiada a este nível, o qual em
nosso entendimento não deverá ser desconsiderado, sobretudo nas idades
mais precoces, no que se reporta à construção de um determinado jogar, numa
lógica de Periodização à La Long, as valências desta estratégia de intervenção
revelam-se igualmente pertinentes para o emergir de jogares e Talentos de
qualidade.

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Através da descoberta guiada, procura-se que os Jogadores percebam e


acreditem num determinado Modelo de Jogo, fazendo-o por crença própria (B.
Oliveira et al., 2006). Coloca-se deste modo ao treinador o desafio, de permitir
o enraizar das intenções subjacentes ao seu jogar, nos Jogadores, para que
estes o Corporalizem e consequentemente manifestem esse conjunto de
intenções inicialmente exclusivas do treinador, como Cultura comportamental,
extensível aos diferentes Eu’s que compõem a equipa.
Para Pinto & Garganta (1996) o processo de treino deverá ter como
referencial um determinado Modelo de Jogo, e a aquisição do respectivo saber
sobre esse saber fazer, acrescentando ainda, que tal se torna tanto mais
exequível, quanto mais precocemente estiverem presentes estas preocupações
ao longo do processo. Corroborando deste modo, a necessidade dos
processos de Formação atenderem à Especificidade Precoce.
“É preciso provar-lhes que estamos certos (…) o trabalho táctico que
promovo não é um trabalho em que de um lado está o emissor e do outro o
receptor. Eu chamo-lhe a «descoberta guiada», ou seja, eles descobrem
segundo as minhas pistas. Construo situações de treino para os levar por um
determinado caminho. Eles começam a sentir isso, falamos, discutimos e
chegamos a conclusões. Mas, para tal, é preciso que os futebolistas tenham
opiniões próprias. Muitas vezes parava o treino e perguntava-lhes o que é que
eles sentiam em determinado momento. Respondiam-me, por exemplo, que
sentiam o defesa direito muito longe do defesa central. Ok, vamos então
aproximar os dois defesas e ver como funciona. E experimentávamos, uma,
duas, três vezes, até lhes voltar a perguntar como se sentiam. Era assim até
todos, em conjunto, chegarmos a uma conclusão. É a esta metodologia que
chamo «descoberta guiada».” (José Mourinho, s/d in Lourenço & Mourinho,
2005, pp. 26/27).
Torna-se necessário ter em consideração que na fenomenotécnica que é o
treinar, é imprescindível que os Jogadores, ainda em idades precoces se
envolvam na construção de um jogar. Sendo para isso determinante a
qualidade da interacção e intervenção do treinador, assim como a vivenciação
do jogar ou esboço do jogar a que se aspira, a qual deve caracterizar-se pela

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Especificidade Precoce, consubstanciada pela emocionalidade e


sentimentalidade referente a um determinado jogar, para que deste modo os
Jogadores possam ser cativados e consequentemente consciencializem esse
jogar. De acordo com um outro ditado chinês; “diz-me e eu esquecerei, ensina-
me e eu lembrar-me-ei, envolve-me e eu aprenderei”.

7.5.4.1 - Periodização Táctica e Neurociências de encontro à


necessidade de uma concepção FENOMENOLÓGICA da Consciência no
Futebol:

“As consciências humanas não têm consciência dos caracteres físicos e biológicos dos
fenómenos humanos. As ciências naturais não têm consciência da sua inscrição numa cultura,
numa sociedade, numa história. As ciências não têm consciência do seu papel na sociedade. As
ciências não têm consciência dos seus princípios ocultos que comandam as suas elucidações. As
ciências não têm consciência de que lhes falta uma consciência.”
(Edgar Morin, in Ciência com Consciência, cit. por V. Frade, 1979, pp. 4).

Face a tudo o que foi referido, torna-se pertinente esclarecer um pouco


melhor os processos subjacentes à actuação, consciente ou não, dos
Jogadores. Como ponto prévio, importa ter em consideração que o cérebro
enquanto parte de um todo maior e em perfeita harmonia e articulação com as
restantes partes, desse todo maior, o Corpo, cumpre um papel fundamental, ao
longo de todo o processo de exponenciação de Talentos e de jogares. Isto de
acordo com uma determinada concepção de treino, de Jogo e de entendimento
do Fenómeno Futebol, tornando-se deste modo evidente, a proximidade
existente entre Periodização Táctica, e como tal Periodização à La Long e as
Neurociências (Tamarit, 2007). Sendo este mais um dos motivos pelo qual,
esta concepção metodológica se assume como uma transgressão
relativamente à “norma do treinar” (B. Oliveira et al., 2006).
Para perceber a relação existente entre o saber-fazer e o saber sobre o saber
fazer, devemos ter em consideração as relações existentes entre a dimensão
consciente e não consciente. Segundo Berthoz (2008) para que possamos
compreender esta relação necessitamos de uma teoria geral do funcionamento
cerebral. Depreendendo-se deste modo, que tais processos implicam a acção

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

conjunta e orquestrada de toda a estrutura cerebral, a qual não se deve cingir


às interacções que se estabelecem dentro da caixa craniana, mas muito além
disso. Torna-se deste modo pertinente a adopção de uma abordagem
fenomenológica em torno desta temática (Berthoz & Petit, 2006).
Assim, importa ter em consideração que não devemos negar nem ignorar o
facto, de que se produzem nos nossos organismos operações não conscientes
que se imbricam com o nosso consciente (Changeux, 2003), o que realça a
complementaridade existente entre estas duas dimensões da vida mental, as
quais quando em devida sintonia, permitem um aumento da capacidade de
actuação dos indivíduos. A atenção consciente é indispensável para a
Aprendizagem de tarefas motoras, observando-se que as áreas corticais se
encontram activas durante o período de Aprendizagem, sendo estas
seguidamente desacopladas de forma progressiva, ao se tornarem em
automatismos, momento em que os indivíduos adquirem uma capacidade para
se expressarem de forma única num determinado domínio de execução
(Berthoz, 2008). Consideramos que este facto é, de especial relevância para a
Aprendizagem no Futebol, evidenciando também a relação existente entre o
saber sobre um saber e o saber fazer, o qual sucede e tem por base o primeiro.
“Normalmente, a complementaridade do sistema límbico e do neocórtex, da
amígdala e dos lóbulos pré-frontais significa que todos eles são parceiros de
parte incerta na vida mental. Quando estes parceiros interagem bem, a
inteligência emocional aumenta e o mesmo acontece à capacidade intelectual.”
(Goleman, 2003, pp. 59).
Levitin (2007) salienta que nos últimos anos, os estudos que se têm vindo a
realizar no âmbito da música têm providenciado avanços muito significativos,
ao nível da compreensão dos processos conscientes e não conscientes, e dos
mecanismos que os suportam. Parecendo actualmente ser evidente, que a via
superior é utilizada para reorganizar a via inferior (Goleman, 2006). De forma
bastante consensual, pode com base nos dados providenciados pelas
Neurociências, considerar que tanto processos não conscientes como os
conscientes, são determinantes para os processos de tomada de decisão.
Existem evidências empíricas que indicam, que as emoções e os sentimentos

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

se encontram neurologicamente baseados em estruturas cerebrais envolvidas


na regulação e representação do estado do Corpo, mostrando também que as
emoções e os sentimentos, não são um “luxo” dos quais possamos prescindir,
visto que têm um papel muito importante nos processos da consciência e da
tomada de decisões (Damásio 2007).
Damásio (2003b) esclarece, que nos tornamos conscientes quando os
nossos organismos constroem e manifestam internamente uma forma
específica de sabedoria sem recurso a palavras, sendo esta sabedoria
acompanhada da representação interna e saliente do objecto que a motivou. “A
forma mais simples sob a qual este conhecimento emerge é o sentimento de
conhecer”. (Damásio, 2003b, pp. 200).
Apesar de se tratar de uma problemática muito actual, a consciência é ainda
uma das grandes questões que se encontram por responder no âmbito
científico, assumindo-se deste modo como um problema difícil, “Hard Problem”,
como ratificou a conferência de Arizona (Amoroso, 2004). A problemática da
consciência, esteve durante um longo período de tempo relacionada com a
Filosofia, seguindo um período bem mais recente, em que cognitivistas,
neurologistas e psicólogos, desenvolveram investigações com o intuito de
identificar os mecanismos cerebrais implicados na emergência da consciência
(Philipon, 2008).
A utilização que geralmente se faz na actualidade do conceito de consciência,
fornece uma descrição inadequada e confusa, devendo este conceito ser
entendido, como sendo o processo de estar alerta, que quando inclui o
presente e o passado, pode ser utilizado como sinónimo de mente (Amoroso,
2004). Importa a este respeito esclarecer, que mente e consciência não são
sinónimos, uma vez que a consciência é o processo que permite o
enriquecimento da mente através, da possibilidade de saber acerca da sua
própria existência. Um dos méritos da consciência reside na possibilidade,
desta aumentar o alcance da mente, melhorando concomitantemente a Vida do
organismo cuja mente tem maior alcance (Damásio, 2004).
No que se refere à etiologia da palavra consciência, K. Pribram (2004)
esclarece que o conceito provém de conscire, que significa fazer ciência em

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InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

conjunto, ou adquirir conhecimento em conjunto, ou seja, como refere é aquilo


que podemos partilhar ao nível do conhecimento, um entendimento igualmente
partilhado também por Sheldrake (2004a). Também o Futebol, sendo uma
modalidade colectiva, em nosso entendimento, contempla necessariamente
este lado, fazer ciência em conjunto. Relembramos a este respeito, que “o Jogo
de Qualidade tem demasiado Jogo, para ser Ciência, mas é demasiado
científico para ser só Jogo” (V. Frade, 2006). As definições de consciência
acima apresentadas, entroncam em muito do que fomos sugerindo acerca do
saber sobre um saber fazer, e de modo especial acerca da possibilidade de
tornar comum um determinado Modelo de Jogo. Justificando-se deste modo, e
frisamos uma vez mais, a aplicação do conceito Consciência Táctica, para
designar o saber sobre um saber fazer.
Em conformidade com os autores anteriores A. Goswami (2004) entende que
a consciência é o mediador para a interacção entre diferentes cérebros, sendo
isso possível através da via intencional. Um entendimento, que reforça a
importância da contemplação da intencionalidade nos processos de
exponenciação de Talentos e de jogares, visto que com base no que nos
sugere este autor, é a consciência, Consciência Táctica, o mediador necessário
para que os Jogadores pensem em função da mesma coisa, ao mesmo tempo.
Para Berthoz (2008), o estado de consciência corresponde, do seu ponto de
vista, à capacidade de tomar decisões estratégicas. Uma concepção de
consciência que em nosso entendimento, reforça a pertinência da adopção do
conceito de Consciência Táctica no Futebol, uma actividade que implica uma
permanente necessidade de tomar decisões estratégicas. De acordo com
Dunbar (2006) a consciência tal como a experimentamos, não é mais do que a
propriedade emergente da actividade eléctrica a nível cerebral, resultante da
troca de mensagens electroquímicas entre neurónios interligados. Acrescenta
ainda, que se trata de uma faculdade, que se torna possível por possuirmos
uma teoria da mente, a qual nos permite dar um passo atrás relativamente às
experiências imediatas, sendo ainda a faculdade que nos permite perguntar,
“como é que sei que sei que algo é verdade?” (Dunbar, 2006, pp. 74),

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InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

permitindo também e de modo paradoxal, pelo que já evidenciamos, saber


mentir.
Para Damásio (2003b), a manifestação da consciência ao mais altos nível,
pode considerar-se uma função caracteristicamente Humana. A consciência
parece assumir-se como a base de todo o ser (A. Goswami, 2004). Factos
suportados segundo Changeux (2003), pela evidente maior expansão
anatómica observada na nossa espécie comparativamente a espécies
aproximadas, ao nível do córtex pré-frontal e pelo aumento em cerca de 70 por
cento das conexões possíveis entre neurónios desta zona cerebral.
A localização das áreas cerebrais que nos permitem saber que somos “nós
próprios” (consciência) é controversa (Jensen, 2002). Em conformidade
Edelman (2008) salienta que uma das principais controvérsias em torno da
problemática da consciência, reside na sua precisa localização, acrescentando
contudo, e tendo por base as ideias de Chez Stanislas Dehaene e Jean-Pierre
Changeux, que a localização da consciência é mais subtil, não sendo
constituída por grupos de neurónios, mas sim por regiões inteiras, ao nível do
córtex pré-frontal. Berthoz (2008) vai mais longe ao advertir, que a acção
consciente resulta de uma competição entre diferentes mecanismos do sistema
nervoso, da espinal-medula e do córtex cerebral. Implicando deste modo, o
Corpo.
De uma forma geral, os estudos realizados neste domínio sugerem a
existência de populações de neurónios mais ou menos bem definidas, contudo,
recentemente foram localizados ao nível do lobo temporal mediano, neurónios
extremamente selectivos (Philipon, 2008). Quiroga et al., (2008) desenvolveram
na Universidade de Leicester uma investigação que comprova, a existência ao
nível do lobo temporal mediano, uma zona implicada nos mecanismos da
memória, de neurónios individuais activados nos processos de percepção
consciente. Evidenciando-se deste modo, a relação existente entre memória e
a consciência.
Um dado pertinente, relativamente ao modo como emerge a actividade
consciente, é sugerido por Koch (2007) o qual sugere, a existência de um
grupo único de neurónios em determinadas regiões do cérebro, que disparam

445
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

de maneira específica para cada experiência consciente. Tsien (2008)


observou nos seus estudos que os neurónios são activados por grupos,
designados de “neural cliques” ou pandilhas neuronais45, que se encarregam
de captar e armazenar os múltiplos aspectos associados a um determinado
acontecimento, desde os de carácter mais abstracto aos pormenores mais
concretos. Koch (2007) reconhece a existência de outras hipóteses com
argumentos igualmente sustentáveis do ponto de vista científico, salientando
contudo que uma das premissas fundamentais da biologia universal é, a
especificidade. “Uma lição universal da biologia é que os organismos criam
artefactos específicos, e isso vale também para o cérebro. As células nervosas
desenvolveram uma miríade de formas e funções, além de padrões específicos
de conexões entre elas.” (Koch, 2007, pp. 80). Muito pertinente, sobretudo se
tivermos em consideração o que temos vindo a realçar acerca da
Especificidade e da Especificidade Precoce.
Este autor sugere, que a consciência não é uma propriedade holística
extensível a um grande número de neurónios, uma vez que entende, que são
grupos específicos de neurónios que medeiam, ou produzem mesmo
experiências conscientes distintas. Esclarece, que se encontra demonstrado,
que grupos específicos de neurónios expressam os tipos de percepção que
compõem as nossas experiências quotidianas, sendo que os neurónios
constituem redes capazes de gerar consciência, unicamente nos contextos
específicos em que são criados. Reforçando e corroborando deste modo, muito
do que temos vindo a sugerir.
Para Koch (2007), a sua explicação radica fundamentalmente no facto da
base da consciência ter subjacente diferenças qualitativas, e não quantitativas
observadas ao nível da actividade neuronal. Acrescenta, que o que realmente
importa não é o número total de neurónios, como sugerem algumas
perspectivas, mas sim a complexidade informacional que estes comportam. Por
esta razão sugere, que uma rede específica de neurónios é necessária para
uma percepção específica.

45
Pandilhas neuronais: são grupos de neurónios especializados em armazenar diferentes
aspectos da vivência.

446
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Podemos depreender, que tal como sucede no treino, também a nível da


consciência a ênfase deverá ser colocada não na quantidade, mas sim na
qualidade dos processos que lhes estão subjacentes.
“O cérebro funciona não por força de suas propriedades gerais, mas porque
os neurónios estão conectados em padrões incrivelmente específicos e
idiossincráticos. Esse padrões reflectem o acumulo da informação que um
organismo armazenou no curso de sua vida, incluindo a de seus ancestrais,
com informação representada nos genes. Não é crucial que um número
suficiente de neurónios esteja activo em conjunto, mas que os neurónios
específicos estejam activos.” (Koch, 2007, pp. 82).
Em nosso entendimento, e como fomos salientando a perspectiva
apresentada por Koch (2007), corrobora muito do que referimos anteriormente
acerca da importância da Especificidade, e da Especificidade Precoce ao nível
do desenvolvimento da Consciência Táctica. Trata-se deste modo, da prova de
que os conhecimentos providenciados pelas Neurociências, são de enorme
relevância para o treino de Futebol, e que além disso, os conhecimentos desta
área entroncam em muitas das ideias propostas pela Periodização Táctica, e
pela Periodização à La Long.

7.5.4.2 - Consciência um conceito Subjectivo e Plural, num Fenómeno


Plural:

“Qualquer experiência da consciência – desde a mais terra-a-terra até à mais elevada – tem uma
certa coerência e, ao mesmo tempo, um alto grau de privacidade, o que significa que existe
sempre do ponto de vista particular. A experiência da consciência é inteiramente subjectiva.”
(Dalai-Lama, 2006, pp. 113),

Damásio (2003b) refere existirem dois níveis de consciência, a consciência


nuclear e a consciência alargada, as quais se encontram em interdependência
completa. Esclarece que a consciência nuclear se fundamenta na produção do
processo neural e mental, capaz de combinar quase concomitantemente
representações de um objecto, de um organismo e da relação entre ambos,
encontrando-se a emergência de cada um dos padrões e a sua harmonização

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

no tempo dependentes, das contribuições de regiões individuais do cérebro, as


quais trabalham em perfeita cooperação. Já a consciência alargada, o “apogeu”
da consciência, segundo o mesmo autor, implica a actuação de todo o cérebro.
Trata-se de uma função prodigiosa, que quando se manifesta ao seu mais alto
nível, é uma função caracteristicamente Humana.
Nava (2003) com base na sugestão de Damásio (2003b) refere, que se pode
concluir das suas ideias que a consciência nuclear, ou primária, é mais do que
tomar conhecimento do estado do meio interno, uma vez que também consiste
em tomar conhecimento das interacções do organismo com o mundo objectal
externo. Enquanto que a consciência alargada, ou superior, corresponde a um
estado caracterizado, pela consciência de ter consciência, correspondendo não
somente ao entendimento que se sente agora, mas também de que se está a
sentir isso, nesse momento. De acordo com Edelman (2008) a consciência
primária, como a designa, reporta-se ao estado que permite dar conta da
presença de coisas no mundo, de ter imagens mentais sem se acompanhar de
um sentido do próprio ser, do seu presente e do seu futuro. Por outro lado a
consciência superior, segundo o mesmo autor, permite a entrada em jogo de
sistemas simbólicos, e consequentemente uma complexidade incrível, sendo
este tipo de consciência própria da nossa espécie.
Changeux (2003) apresenta um conceito epigenético de consciência,
salientando que esta integra informações e conhecimentos do quotidiano, as
memórias sociais (incluindo as que se criam no seio da equipa) e culturais
próprias do indivíduo com comportamentos fundamentais da espécie
(Princípios de Jogo), enquadrados pelos respectivos invólucros genéticos. O
fenómeno da consciência depende de influências familiares, sociais e culturais
as quais actuam sobre o raciocínio, o que explica a subjectividade inerente a
este fenómeno (Berthoz, 2008). Reforçando a ideia de que a consciência é
uma construção subjectiva, Dalai-Lama (2006, pp. 113) esclarece que qualquer
“experiência da consciência – desde a mais terra-a-terra até à mais elevada –
tem uma certa coerência e, ao mesmo tempo, um alto grau de privacidade, o
que significa que existe sempre do ponto de vista particular. A experiência da
consciência é inteiramente subjectiva.”

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Uma vez que os fenómenos da consciência são, uma construção


Ecogenética que decorre ao longo da ontogénese, e que se repercutem numa
grande subjectividade ao nível da sua manifestação, isto parece relevar a
importância de ao longo da sociogénese dos indivíduos, no caso Jogadores, os
processos relacionados com a consciência serem contemplados no sentido do
seu desenvolvimento. Uma necessidade em nosso entendimento extensível, ao
desenvolvimento da Consciência Táctica, que como tal, deverá ser
preocupação dos processos de Formação.
A consciência, e de modo mais rigoroso a consciência alargada, permite dar
significado mais profundo, e até hermenêutico a um determinado conjunto de
planos de acção, enquanto que a consciência nuclear nos auxilia na gestão do
aqui e agora, o que se assume de especial relevância no Futebol. “O
pensamento deliberado é uma ferramenta maravilhosa quando se tem o luxo
do tempo, a ajuda do computador e uma tarefa claramente delineada, e os
frutos deste tipo de análise podem preparar o cenário para o reconhecimento
imediato.” (Gladwell, 2007, pp. 145). Note-se contudo, que esta consciência
alargada não se caracteriza apesar de tudo, pelo imediatismo dos
automatismos, contudo, consideramo-la igualmente pertinente e útil na tomada
de decisões no Futebol, nomeadamente, nos momentos em que se observam
tempos mais alargados para a resolução de problemas, como por exemplo nas
vulgarmente designadas «bolas paradas», momentos em que são concedidos
aos executantes períodos de decisão de menor urgência, permitindo-lhes deste
modo socorrer-se da consciência nuclear, e também da alargada, para
desenvolver um determinado plano de acção. Por exemplo, quando um
Jogador se prepara para marcar um livre directo poderá, em função da posição
da bola, do posicionamento da barreira, dos adversários, dos companheiros de
equipa, do Guarda-Redes e de muitos outros aspectos, optar por determinada
decisão ou reajustá-la em função do contexto acontecimental que caracterizam
aquele momento, tudo isto tendo em consideração, a configuração e
interpretação do contexto naquele momento, implicando deste modo, a
consciência nuclear. Por outro lado, também a consciência alargada poderá ser
relevante nas opções e decisões tomadas no Futebol. Repare-se por exemplo,

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na situação em que se verifica a marcação de uma grande penalidade. Tanto o


Jogador que se prepara para marcar como o Guarda-Redes, poderão tomar as
suas decisões, naquele momento, com base em conhecimentos que nos
reportam para o passado. O Guarda-Redes poderá optar por adivinhar e
antecipar a acção do Jogador, escolhendo um lado com base num conjunto de
dados, que lhe poderão indicar qual a maior propensão que o Jogador tem ao
nível da colocação da bola, o mesmo podendo suceder com o Jogador que vai
tentar converter a grande penalidade. Este poderá optar por direccionar o
remate para um determinado lado, por considerar com base em conhecimentos
de episódios anteriores, que se trata daquele em que a resposta do Guarda-
Redes se encontra mais condicionada.
“A consciência alargada ultrapassa o aqui e agora da consciência nuclear,
tanto na direcção do futuro como na do passado. O aqui e agora permanece
claro, mas está ladeado pelo passado, pela quantidade de passado que for
necessária para iluminar efectivamente o agora, e, de forma não menos
importante, está ladeado pelo futuro antecipado.” (Damásio, 2003b, pp. 227).
Em conformidade Marisa Gomes (Anexo 5) salienta que a nossa acção resulta
não somente do que fazemos, mas também das tendências que evidenciamos
em relação ao que podemos vir a fazer.
Também Nava (2003) realça que a consciência alargada é o que nos permite
ir para além da gestão do aqui e agora. Ao estabelecer a ligação entre o
passado e o futuro, a consciência alargada torna-se determinante no Futebol,
no sentido de conferir congruência e coerência a todo o processo, uma vez que
afere o grau de aproximação entre as intenções prévias do treinador, uma
quantificação qualitativa estabelecida à priori, Quantificação à Priori, que nos
remete para o passado, e o elemento causal do processo, a construção desse
jogar e dos Talentos que sustentam esse jogar, o que nos remete para o futuro
a que se aspira.
Temos vindo a evidenciar e sugerir para a generalidade dos processos
relacionados com a tomada de decisão, sejam eles conscientes ou não, a
necessidade destes se desenvolverem precocemente. À semelhança do que
sucede com a criação de automatismos também no desenvolvimento da

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
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consciência a precocidade parece revelar-se importante. É legítimo considerar-


se, que as redes de neurónios envolvidos nas fases sucessivas do
desenvolvimento da consciência, são estabelecidas progressivamente nos
primeiros anos de vida da Criança (Changeux, 2003). O que sustenta de forma
ainda mais evidente, a importância do desenvolvimento da Consciência
Táctica, ao longo do processo de Formação de Talentos.
Damásio (2003b) adverte, para um aspecto que consideramos pertinente,
segundo este autor, Inteligência e consciência alargada não são sinónimos,
visto que a primeira consiste na capacidade de manipular o conhecimento, de
modo a que as respostas possam ser planeadas e executadas. Ou seja é
operativa, como sugere Paulo Cunha e Silva (Anexo 4). Enquanto que a
consciência alargada é um pré-requisito da Inteligência, que consiste em tornar
o organismo ciente da maior gama possível de conhecimentos. A este respeito,
consideramos pertinente salientar que Paulo Cunha e Silva (Anexo 4) ao
sugerir que Cultura é diferente de Inteligência, realça que a “Cultura é a
capacidade de convocarmos a memória de forma inteligente”, apresentando
uma concepção de Cultura que em nosso entendimento, entronca em muito do
que é sugerido pelo conceito de consciência alargada. Advertindo contudo, que
“no limite, não conseguimos separar inteligência da Cultura” Estas
salvaguardas, permitem-nos distinguir estes conceitos, e também perceber as
relações que entre estes se podem estabelecer. No que se refere à
Inteligência, Damásio (2003b) como se depreende, sugere uma concepção
funcional deste conceito o que se revelará especialmente importante, na
abordagem que realizaremos mais adiante neste trabalho, em que será
abordada a problemática da Inteligência.

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

7.5.5. – A necessidade de um Futebol Sentido, e a necessidade de dar


sentido aos Sentimentos desse Futebol:

“… os sentimentos orientam os esforços conscientes e deliberados da auto-conservação e


ajudam-nos a fazer escolhas que dizem respeito à maneira como a auto-preservação se deve
realizar. Os sentimentos abrem a porta a uma nova possibilidade: o controlo voluntário daquilo
que era automático.”
(Damásio, 2004, pp. 96).

Foi por nós anteriormente evidenciado que os marcadores – somáticos


podem ter duas vias, uma fora da consciência, intuição, e outra através da
consciência. A este respeito devemos ter em consideração, que quando os
estados corporais desencadeados por determinadas emoções, são convertidos
em sentimentos estes se tornam conscientes (Damásio, 2003a). Quando a
experiência emocional é vivida para além do nível subcortical, não consciente,
e para além do domínio do corpo-propriamente-dito, isto é, quando é vivida a
um nível cortical consciente, observa-se a mentalização dessas emoções o que
permite lhes atribuir um significado (Nava, 2003). Quando tal sucede, consuma-
se a relação mente hábito, uma vez que são remetidas para a mente essas
experiências emocionais, subjacentes a um determinado saber fazer,
procedendo-se à mentalização desse mesmo saber fazer, o que
consequentemente se repercute no desenvolvimento de um saber sobre um
saber fazer.
Para o emergir dos sentimentos, a natureza serviu-se do que já dispunha, no
caso dos sentimentos, serviu-se das emoções, assim, no princípio foi a
emoção, e no princípio desta esteve a acção (Damásio, 2004). Parece deste
modo evidente a relação existente entre emoção e sentimento, e não menos
relevante o facto de no primado se encontrar a acção, enfatizando deste modo,
a necessidade do vivenciar de um determinado jogar imbuído de emoções para
fazer emergir a sentimentalidade subjacente e Específica desse jogar. A
contemplação da sentimentalidade é, uma necessidade inerente à construção
de um jogar (Freitas, 2004), a qual pode ser operacionalizada e emergir,
através da descoberta guiada. É esta dimensão da intervenção que possibilita,
pensar e sentir um determinado jogar, e consequentemente, InCorporar esse

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jogar (Lourenço & Ilharco, 2007), em suma, a descoberta guiada permite


aceder mais facilmente à InCorporAcção de um jogar.
“É então possível sair do circuito fechado corpo-emoção-corpo para atingir
uma espiral mais complexa e elaborada, mutuamente interactiva, permitindo
um crescimento sem fim: corpo-emoção-cérebro-corpo-emoção-cérebro, em
que cada nível que se atinge é mais diferenciado, mais adaptado e
enriquecedor para o ser humano.” (Nava, 2003, pp. 96). Conclui-se, que a
aquisição de um saber sobre um saber fazer, permite aceder a níveis de
complexidade mais elevados e enriquecedores, os quais implicam um
engendrar harmonioso, holístico e orquestrado das partes que constituem o
Corpo. O que no caso do Futebol significa, que a aquisição do saber sobre um
saber fazer, implica o Corpo no verdadeiro sentido conferido a este conceito
neste trabalho, o que se expressa como tal, na InCorporAcção desse saber.
Este, ao permitir ir mais além do que a esfera do saber fazer e da gestão do
imediato, possibilita a evolução de jogares e Talentos aspirantes a níveis de
complexidade permanentemente crescentes e em constante enriquecimento.
Facto que implica que estas realidades, o jogar e o Talento sejam entendidos
como potencialidades dinâmicas, abertas e como tal dotadas da possibilidade
de constante evolução, e não menos importante também de involução.
Para que uma emoção seja conhecida e um sentimento seja sentido, é
necessária a transformação da emoção numa imagem mental, ou seja, num
sentimento, e uma posterior aplicação da consciência nuclear (Nava, 2003).
São os sentimentos, que rotulam as nossas vivências e estabelecem as
relações entre o passado, o presente e o futuro, influenciando o raciocínio e a
tomada de decisões. “Os sentimentos colocam carimbos nos mapas neurais,
um carimbo em que se pode ler «Preste atenção!»”. (Damásio, 2004, pp. 204).
O que vai de encontro à definição de consciência apresentada por Amoroso
(2004) a qual apresentamos anteriormente e que sugere, a consciência como
um processo de estar alerta, o qual implica a mente quando se observa a
inclusão nesses alertas da realidade presente e do passado.
A relação dos sentimentos com a consciência é de grande preponderância ao
nível dos processos da mente, encontrando-se deste modo, fortemente

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implicada nos processos de tomada de decisão. “…os sentimentos orientam os


esforços conscientes e deliberados da auto-conservação e ajudam-nos a fazer
escolhas que dizem respeito à maneira como a auto-preservação se deve
realizar. Os sentimentos abrem a porta a uma nova possibilidade: o controlo
voluntário daquilo que era automático.” (Damásio, 2004, pp. 96). De acordo
com Berthoz (2008), contrariamente ao que se sugeriu durante anos, sabe-se
hoje, que os processos não conscientes que controlam o movimento e os
reflexos sensoriomotores ao nível da espinal-medula podem ser controlados.
Segundo este autor, podemos controlar estes processos conscientemente e
regular esses reflexos subjacentes à acção motora, facto que implica um
controlo consciente sobre essas acções. Ou seja, implica o saber sobre o saber
fazer. A consciencialização do movimento é possível (Berthoz, 2008), e para tal
o emergir dos sentimentos é determinante, inclusive para aceder a formas
criativas de tomada de decisão (Damásio, 2004). Os sentimentos, são um
fenómeno importante para os seres vivos complexos, pois permitem dar um
testemunho sobre a Vida, à medida que ocorrem ao nível da mente, tendo
também por isso um papel determinante no comportamento social. As
emoções, assim como os sentimentos que se lhes seguem, são componentes
essenciais nas experiências sociais, pela relevância que assumem ao nível da
tomada de decisões nestes contextos (Damásio, 2004). Estes dados são de
extrema relevância no Futebol, e vão de encontro à necessidade de tornar
comum um determinado jogar, e de decidir em contextos onde o colectivo se
encontra implicado, reforçando deste modo a necessidade da sentimentalidade
e da emotividade serem dimensões implicadas no treino e de tomarem um
determinado sentido, o da Especificidade relativa a um jogar, uma vez que
somente deste modo, a tomada de decisões num contexto social, como uma
equipa, se manifesta qualitativamente.
“Tudo passa pelo modelo que pretendemos. Modelo, no fundo, é o
entendimento da complexidade que é o jogo e a identidade do treinador em
função desse jogo. É olhar para o jogo, modelá-lo entre indivíduos pensantes, o
que se pretende é que exista uma linguagem comum. Isto só se consegue se
todo o processo de treino e de jogo for concebido numa perspectiva de

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organizar comportamentos que criem essa linguagem comum. Tem de se


pensar o jogo a cada minuto e a cada segundo.” (Rui Faria, s/d, cit. por
Lourenço & Ilharco, 2007, pp. 94).
Também por estes motivos, e apesar do prolongamento em termos de tempo
implicado na tomada de decisões (Changeux, 2008; McCrone, 2002), os
processos de decisão conscientes, assumem-se de extrema relevância no
Futebol, uma modalidade colectiva que requisita uma elevada Inteligência
Comunicacional (Sobrinho Simões, Anexo1).
Em termos evolutivos após o emergir das emoções observou-se o emergir
dos sentimentos, que posteriormente numa combinação frutífera de memórias
do passado, imaginação e raciocínio, levaram à emergência da capacidade de
antecipação, de previsão de problemas e à possibilidade de criar soluções
inovadoras e não estereotípicas (Damásio, 2004). A relação dos sentimentos
com o emergir da consciência possibilitou, aceder a dimensões relevantes para
as decisões implicadas no Futebol, nomeadamente, a capacidade de
antecipação, previsão de problemas, isto é, o desenvolvimento do pensamento
estratégico, e ainda o acesso a formas subliminares de criatividade. De acordo
com Lourenço & Ilharco (2007) a actuação do ser Humano, resulta do pensar
sentindo e do sentir pensando. Também nós consideramos, que a actuação
subliminar dos Talentos resulta do pensar sentindo, e do sentir pensando,
motivo pelo qual, entendemos que a esfera do saber sobre um saber fazer, isto
é, da Consciência Táctica implica a aspiração a um Futebol, ou melhor
dizendo, a um jogar sentido, uma vez que é, a sentimentalidade inerente à
vivenciação de um jogar que permite aceder ao saber sobre esse saber fazer.
Note-se no entanto, que não devemos ignorar que o Futebol implica
diferentes saberes, nomeadamente, o saber fazer e o saber sobre esse saber
fazer, sendo a interacção destes determinante. “São necessários estes dois
tipos de processamento para o funcionamento do cérebro de um bom decisor.”
(Damásio, 2003a).
A este respeito devemos reter, “que este lado de identificação formal (saber
sobre um saber fazer) não resolve os problemas porque o «jogar» decorre no
domínio do «saber-fazer» e por isso não basta que os jogadores compreendam

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
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o que têm de fazer se não o conseguem concretizar ao nível de


comportamentos. Neste sentido, o entendimento comum do jogo serve para
potenciar o desenvolvimento de uma cultura comportamental.” (M. Silva, 2008,
pp. 44).
“Este facto revela que o sistema não consciente está profundamente
entretecido no sistema de raciocínio consciente, que a rotura do primeiro
conduz a uma perturbação do segundo. Porém, na situação de uma pessoa
sem qualquer doença neurológica, em que tanto os sistemas não consciente
como consciente se encontram presentes e normais, é bem evidente que a
componente consciente aumenta o alcance e a eficácia do sistema não
consciente. A consciência permite que o jogador (ou treinador) descubra se a
sua estratégia é correcta e, se não for, permite-lhe corrigir essa estratégia.
Para além disso, a consciência permite que o jogador represente o contexto de
jogo e decida” (Damásio, 2003b, pp. 343/344). Elucidativo parece-nos.

7.6 – Acção Corporalizada, a Inteligência de Jogo como um Saber


Corpóreo (InCorporAcção):

“O movimento é a própria essência da realidade.”


(Bergson, s/d, cit. por P. C. e. Silva, 1999, pp. 57).

7.6.1 – Um novo entendimento do agir a «PercepAcção»:

“Como vemos, a percepção é já, de certa forma, acção, porque o corpo se encontra
comprometido com o mundo quando percepciona: como que o antecipa.”
(P. C. e. Silva, 1999, pp. 57).

Durante muitos anos o cérebro foi concebido como um órgão no qual se


podiam estabelecer diferentes áreas, às quais se encontravam destinadas
determinadas funções, tendo sido esta corrente conhecida como a perspectiva
frenológica do cérebro. A frenologia remonta ao século XIX, e foi sugerida de
forma revolucionária para a época por Franz Josef Gall, trata-se de uma teoria
que concebe de forma inatista, localizacionista, autónoma e independente as
funções cerebrais, encontrando-se actualmente refutada, não tendo deste

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
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modo mais aceitação (Changeux, 2003; Damásio, 2004; Ganascia, 1999;


Mendonza, 1998). Actualmente com base na pesquisa que efectuamos, parece
unânime considerar-se que a actuação do cérebro Humano implica a acção
concertada entre diferentes áreas cerebrais, que funcionando de modo
associativo, permitem a expressão de diversas funções.
Note-se contudo, que face à necessidade de se entender o Corpo como uma
inteireza inquebrantável, consubstanciada pelas relações existentes entre
cérebro, mente e corpo-propriamente-dito, parece igualmente urgir a
necessidade de ter um entendimento, relativamente aos processos cognitivos
que extravase a implicação exclusiva do cérebro em tais fenómenos. Assim,
não devemos para tal ignorar que o cérebro é um mecanismo clássico, que
actua como um processador da fenomenologia somática (corpo-propriamente-
dito) e sensorial com complementos mentais numenais de Inteligência de nível
elementar e princípio cosmológico (Amoroso, 2004). Por este motivo, Berthoz &
Petit (2006), referem que a compreensão da actividade cognitiva deve atender
a uma concepção fenomenológica e ao facto do cérebro ser
fundamentalmente, um órgão de acção.
Uma vez que a mente é, constituída por ideias acerca do nosso corpo-
propriamente-dito, esta é por conseguinte feita de imagens, representações e
pensamentos relativos a partes do nosso corpo em acção espontânea ou, no
processo de resposta a objectos exteriores ao corpo-propriamente-dito
(Damásio, 2004). O que implica a necessidade da concepção da mente e da
percepção, terem de ir mais além da noção de que tudo se processa dentro da
cabeça, sendo para tal necessário entender estes processos de uma forma
mais ampla e abrangente, uma vez que o entendimento convencional de que a
mente se encontra dentro da cabeça, fornece uma ideia falsa do
relacionamento que estabelecemos com os nossos corpos, o que reitera de
forma evidente a necessidade de ampliar os domínios da mente (Sheldrake,
2004b).
Devemos sublinhar, e tendo em consideração o que foi referido
anteriormente, também acerca da consciência, que esta surge quando
conhecemos, e só podemos conhecer quando também representamos a

457
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

relação entre objecto e o organismo (Damásio, 2003b). Um determinado


objecto pode criar uma resposta corporal subsequente relativa ao seu valor
emocional, sendo o sistema somatossensorial activado novamente, pouco
tempo depois. Tornando praticamente inevitável e evidente o processamento
Corporal, independentemente do que estejamos a fazer ou a pensar, sendo
deste modo muito provável que a mente não possa ser concebível sem
incorporação (Damásio, 2003a). Uma concepção partilhada também por outros
autores (Berthoz, 2008; Varela et al., 2001). Foi sugerido por nós
anteriormente, com base em Damásio (2004), que para o emergir dos
sentimentos a Natureza serviu-se do que já dispunha, ou seja, das emoções,
do mesmo modo que no princípio da emoção esteve a acção. Encontrando-se
a acção no início deste processo é a partir desta que construímos a nossa
percepção do Mundo (Berthoz, 2008), implicando a capacidade de acção
necessariamente um Corpo, que actua no espaço e no tempo, não fazendo
sentido sem esse Corpo (Damásio, 2003b).
Varela et al. (2001) reconhecem que a percepção e a acção, se encontram
ligados de um modo meramente contingente, tendo evoluído conjuntamente.
Uma das principais ideias defendida por estes autores consiste no reiterar de
que a rede neural não funciona como uma rua de sentido único da percepção
para a acção, mas pelo contrário, que percepção e acção, sensorium e
motorium, se encontram interligadas na qualidade de padrões sucessivamente
emergentes e mutuamente seleccionadores, tendo neste processo o corpo um
papel determinante. “Como vemos, a percepção é já, de certa forma, acção,
porque o corpo se encontra comprometido com o mundo quando percepciona:
como que o antecipa.” (P. C. e. Silva, 1999, pp. 57). Opinião igualmente
partilhada por Berthoz & Petit (2006), para os quais o pensamento não se
encontra antes da acção, nem esta antes do pensamento, visto que a acção
contém todo o pensamento. A este respeito, torna-se pertinente esclarecer o
conceito de “potencial de preparação motriz” (Revoy, 2006), momento em que
se observa no cérebro um aumento significativo ao nível da estimulação
neuronal, o qual precede a sensação de decidir e a execução do movimento
propriamente dito. Revoy (2006) servindo-se dos estudos de Benjamin Libet

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

(1983) e de Ângela Sirigu (2004) evidencia que parece claro, que a execução
de um determinado gesto é iniciada antes dos sujeitos terem consciência do
mesmo. Este autor acrescenta ainda, que as pesquisas levadas a efeito por
Ângela Sirigu (2004) evidenciam, que a tomada de consciência é gerada
directamente pelo desencadeamento não consciente, o que nos permite
compreender a razão pela qual, o nosso cérebro inicia os movimentos antes de
tomarmos consciência da intenção de os realizar. Gladwell (2007, pp. 17)
reportando-se a estudos realizados com jogadores de cartas salienta, que
estes “apercebiam-se do sistema de jogo, antes de se aperceberem que já se
tinham apercebido; começavam a fazer os ajustamentos necessários, antes de
estarem conscientes dos ajustamentos que supostamente deveriam ter feito.”
Por este motivo Paulo Cunha e Silva (Anexo 4) sugere que “antes de fazermos
já estamos a fazer. No momento em que se percebe, já se começa a agir,
antes de se agir de facto.” O nosso entrevistado acrescenta ainda, que sendo
uma concepção atrevida e radical, há já dados “arrepiantes” que o parecem
comprovar. Esclarecendo também, que “na via motora há dois neurónios, um
primeiro neurónio cujo corpo celular está na circunvolução frontal ascendente,
que é o neurónio da vontade e o segundo neurónio, o neurónio motor que está
no corno anterior da medula e que é o neurónio cujo axónio, vem até ao
músculo proporcionar a contracção. E portanto, o normal é que primeiro exista
a vontade da pessoa se mexer e depois a pessoa se mexa (…) Há dados
estranhíssimos que revelam que o segundo neurónio se pode estimular antes
do primeiro. Portanto como se a acção fosse anterior ao pensamento da acção
e à vontade da acção (…) uma espécie de antecipação da acção por parte dos
músculos”. Um entendimento que como salienta, inverte todos os paradigmas
da Neurofisiologia e que implica uma nova noção de cognição, percepção e de
acção, revertendo deste modo a linearidade convencional e o princípio de
causalidade entre percepção e acção.
Revoy (2006) esclarece que esses processos cerebrais não conscientes, se
desenrolam com base na funcionalidade das zonas frontais, as quais
anteriormente tinham memorizado os padrões motores implicados numa
determinada tarefa, estimulando posteriormente o córtex parietal, responsável

459
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

entre outras tarefas pela supervisão da execução das tarefas motrizes,


encontrando-se por sua vez, incumbido da estimulação do córtex motor, que
depois de activado permite a consumação da acção. Deste modo, o córtex
motor selecciona a natureza do movimento e estimula as estruturas
responsáveis pela sua execução, verificando-se que quando o córtex motor é
estimulado pelo córtex parietal no sentido de agir, se origina o potencial de
preparação motriz, indicando assim, que a execução do gesto acaba de ser
lançada (Ângela Sirigu, 2004, cit. por Revoy, 2006). Durante este processo de
diálogo cortical, os neurónios trocam informação ao ensejo da consciência,
conforme esclarece Revoy (2006). Este autor acrescenta que desencadeado o
potencial de preparação motriz, o córtex motor informa o córtex parietal da
natureza do movimento seleccionado, sendo precisamente através da
recepção desta informação, por parte do córtex parietal que se gera no sujeito
a consciência do movimento a realizar. Pode afirmar-se que este processo
ocorre, quando se observa concordância entre o córtex motor e o córtex
parietal relativamente à natureza precisa do gesto a realizar (Revoy, 2006).
A especulação efectuada anteriormente por Paulo Cunha e Silva (Anexo 4),
parece encontrar-se sustentada pelos trabalhos desenvolvidos por Tsien
(2008), que através das suas experiências proporcionou os primeiros dados
experimentais, acerca do modo como a informação é codificada e ordenada,
indo de encontro à hipótese apresentada por Paulo Cunha e Silva (Anexo 4).
As observações de Tsien (2008) sustentam a ideia, que o cérebro apresenta
como princípio universal, a organização hierárquica e por categorias (sem a
rigidez convencional que caracteriza estes dois conceitos). Sugerindo ainda,
que ao nível dos processos cognitivos, e de modo particular ao nível da
memória, o número de padrões de activação neuronal que se pode gerar é
quase ilimitado, sendo tal possibilidade idêntica ao número de experiências que
um organismo pode viver. Com base nestes dois pressupostos, podemos inferir
acerca da aquisição de um jogar, que também este deve obedecer a um
princípio universal de organização hierárquica ou se quisermos deshieráquica
(Paulo Cunha e Silva, Anexo 4), que simultaneamente contempla a
variabilidade subjacente à vivênciação de um jogar, que é tanto mais rico e

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

enriquecedor, quanto mais comportar a variabilidade. Os dados de Tsien


(2008), sustentam muito do que temos vindo a sugerir, uma vez que realçam
que o processo que permite paulatinamente, passar do esboço, como se
observa nas idades mais precoces, para a verdadeira Especificidade de um
jogar, deve contemplar a vivenciação de uma determinada variabilidade
comportada por uma determinada Cultura. A qual, carece de uma
Vivenciação/InCorporAcção Hierarquizada dos Princípios de Jogo, de
modo a categorizar essa variabilidade dentro de um determinado jogar, que
como tal, e apesar de dever expressar variabilidade, se torna identificável.
Também Berthoz & Petit (2006), reconhecem a pertinência da “mudança de
paradigma” neste domínio, evidenciando a urgência de reinventar uma nova
“fenomenologia e fisiologia da acção”, o que implica a necessidade das
ciências cognitivas congregarem para o estudo da cognição, esforços de
disciplinas aparentemente heterogéneas como as Neurociências, a Filosofia, a
Matemática e a Biologia Molecular (Pombo & Mendonça, 2008):
Os aspectos salientados anteriormente revestem-se de particular pertinência
para uma actividade como o Futebol, em que pela urgência de tempo ao nível
da tomada de decisões se torna necessária a fusão entre percepção e acção.
Facto que em nosso entendimento requisita uma nova forma de conceber o
treino e o ser, entidade Biológica, que joga. Convencionalmente o modo como
se concebe o treino de futebol exacerba a dimensão física, tal como
evidenciam B. Oliveira, et al. (2006). Paulo Cunha e Silva (Anexo 4) salienta a
este respeito que tomamos erradamente os órgão efectores do movimento
como “implicados passivos”, contudo, por muito perturbante que tal possa
parecer, como refere, eles são capazes de agir por iniciativa própria, sendo
inclusive capazes de condicionar os mecanismos de decisão que
convencionalmente entendemos que deveriam mandar neles. A Periodização
Táctica, e como tal a Periodização à La Long, revelam-se também a este nível
transgressoras, uma vez que colocam o enfoque na operacionalização desta
fenomenologia inerente à acção Humana e na necessidade de entender os
órgãos efectores do movimento como estruturas Inteligentes.

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Figura 9 – Córtex Cerebral 1, Adaptado de Les Dossiers De La Recherche Nº 30, Février, 2008, pp.50.

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InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Figura 10 – Córtex Cerebral 2, Adaptado de Les Dossiers De La Recherche Nº 30, Février, 2008, pp.51.

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

7.6.2 – Acção Corporalizada (InCorporAcção):

“O que esta formulação pretende transmitir é que a reflexão não se exerce só sobre a
experiência, mas que a reflexão é ela própria uma forma de experiência”.
(Varela et al., 2001, pp. 54).

Devemos ter em consideração que para se formar a percepção de um


objecto, o organismo utiliza sinais sensoriais especializados e provenientes dos
ajustamentos do Corpo, os quais são necessários para que a percepção ocorra
(Damásio, 2003b).
Varela et al. (2001) defendendo um novo entendimento da corporalidade,
sugerem uma concepção de cognição que nos parece particularmente
interessante e pertinente, face ao que pretendemos sugerir. Deste modo,
entendem a cognição enquanto acção corporalizada. “O que sugerimos é uma
transformação da natureza da reflexão de uma actividade abstracta e
descorporalizada para uma reflexão corporalizada (atenta) ilimitada. Por
corporalizada entendemos uma reflexão na qual o corpo e a mente são postos
juntos. O que esta formulação pretende transmitir é que a reflexão não se
exerce só sobre a experiência, mas que a reflexão é ela própria uma forma de
experiência – e que essa forma reflexiva de experiência pode ser executada
com a atenção / consciencialização.” (Varela et al., 2001, pp. 54). Face ao
exposto, esta concepção poderá apresentar-se como uma boa forma, de
ampliar os domínios da mente (Sheldrake, 2004b). Varela et al. (2001)
evidenciam, que a intenção subjacente à ideia de cognição como acção
corporalizada, consiste precisamente em tentar ultrapassar a visão
convencional que opõe o interior ao exterior, optando por uma abordagem
diferente, que toma o estudo da cognição não como recuperação ou projecção,
mas como acção corporalizada.
Esclarecem ainda, que o significado de acção corporalizada procura, através
do termo corporalizada destacar em primeiro lugar, que a cognição depende de
dois tipos de experiência, que surgem do facto de se ter um corpo-
propriamente-dito e de várias capacidades sensoriomotoras, e em segundo
lugar, que estas capacidades sensoriomotoras individuais se encontram

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

mergulhadas num contexto biológico, psicológico e cultural, bastante mais


abrangente. O que vai de encontro ao que sugere Damásio (2003b) quando se
refere ao uso da palavra soma, não raras vezes, um termo invocado de forma
excessivamente restrita, associando-se os termos somático ou
somatossensorial ao tacto ou a sensações musculares ou articulares, mas que
contudo, vai para além de tal entendimento, uma vez que compreende a
combinação de subsistemas, em que cada um dos quais transmite sinais
acerca do estado de diversos aspectos do corpo-propriamente-dito. Parece-nos
deste modo, que os termos Somatização, Mapeamento (Marisa Gomes,
Aenxos 5) ou Incorporação, ou como sugerimos InCorporAcção46 o qual
adoptamos preferencialmente nesta dissertação são bastante próximos,
podendo mesmo ser entendidos como sinónimos, desde que a concepção de
Corporalidade que lhes está subjacente seja a correcta. O que implica um
entendimento de Corpo enquanto inteireza inquebrantável. Importa ainda
evidenciar, que com base no que referem Varela et al. (2001) as capacidades
sensoriomotoras encontram-se imbricadas com um conjunto de dimensões
bastante abrangente. O que em nosso entendimento evidencia, que a acção
corporalizada é um fenómeno altamente complexo, de cariz Ecogenético.
Varela et al. (2001), justificam ainda a utilização do termo acção, referindo que
este procura evidenciar que os processos sensórios e motores, percepção e
acção são fundamentalmente inseparáveis na cognição vivida. Tal como já
vimos ser igualmente sugerido por outros autores (Berthoz, 2008; Berthoz &
Petit, 2006; Damásio, 2003b; P. C. e. Silva, 1999). Torna-se pertinente neste
ponto salientar, a importância do conceito “acto” para a compreensão da acção
Humana, devendo o seu entendimento ir para além daquilo que é directamente
observado. Este conceito reporta-se, a um acto realizado por um homem, com
o seu corpo-propriamente-dito, quando esse homem tem uma determinada
intenção, procurando realizar essa intenção efectuando um tipo de trabalho que
procura responder às exigências que essa intenção requisita. Tal entendimento

46
InCorporAcção: optamos por redigir deste modo, com o intuito de evidenciar que a
incorporação resulta de um processo fenomenológico em que a cognição é um fenómeno
Corpóreo, resultante da acção, nomeadamente da “acção corporalizada” (Varela, et al., 2001).

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

implica uma concepção dinâmica de Corpo, na qual, este se encontra orientado


para a acção, encontrando-se esta por sua vez articulada com a percepção,
implicando assim o entendimento do Homem, como um ser activo e em
interacção com o Mundo (Berthoz & Petit, 2006).
A cognição vivida, isto é, um saber implicado e expresso pela acção é um tipo
de cognição fundamental para a gestão do aqui e agora, e como tal
determinante em actividades como o Futebol. Motivo pelo qual sugerimos, que
também nesta actividade percepção e acção não devem ser dissociadas,
devendo como tal ser contempladas desde idades precoces no treino, um
processo de vivenciação de um jogar e como tal de InCorporAcção desse
mesmo jogar.
O facto de tomarmos a cognição como acção corporalizada implica, que a
Inteligência deva deixar de ser considerada, como a capacidade de resolver
problemas, para passar a ser entendida como a capacidade de penetrar num
mundo de significação compartilhado (Varela et al., 2001), apresentando-se
deste modo, uma visão hermenêutica, mais gregária, funcional e operacional
de Inteligência. Devemos ainda ter em consideração, que a racionalidade é
configurada e modulada, como fomos sugerindo, por sinais do corpo-
propriamente-dito, inclusive quando executa as distinções mais sublimes e age
em conformidade com elas (Damásio, 2003a).
Varela et, al. (2001) salientam que considerar-se a cognição como acção
corporalizada, implica uma visão das capacidades cognitivas como que se
encontrando inextrincavelmente ligadas a histórias que são vividas, motivo pelo
qual como salientam, tal concepção de cognição, apesar de colocar alguns
problemas, permite simultaneamente especificar os caminhos que deverão ser
seguidos para as respectivas resoluções. Acrescentam ainda que a
intencionalidade da cognição, segundo este prisma, consiste no carácter
directo da acção da formulação que apresentam, fornecendo
concomitantemente um meio para especificar essa intencionalidade. Estes
dados são em nosso entendimento, de extrema relevância para o treino de
Futebol, uma vez que sugerem que a Especificidade da intencionalidade se
reporta à vivenciação, isto é, à acção corporalizada das intenções prévias

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
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relativas a um determinado jogar. Ou seja, trata-se igualmente de um saber


que se adquire e expressa pela acção, e mais que isso, pela Especificidade
dessa acção ou conjunto de acções, o que reforça o que temos vindo a sugerir
acerca da importância da Especificidade ao longo de todo o processo de treino.
De encontro às ideias acima apresentadas (Varela et al., 2001), e
sustentando o que foi por nós sugerido, Caraça (2005) salienta que é a
memória Corporal, que permite o emergir da intencionalidade. Para Paulo
Cunha e Silva (Anexo 4) a Cultura consiste em sermos capazes de convocar a
memória de forma Inteligente. Assim, o entendimento de Corpo e de
Corporalidade em conformidade com os cânones por nós apresentados,
implica uma concepção de memória também ela mais abrangente, a qual nos
permite aceder e expressar de forma facilitada uma determinada Cultura, isto é,
um jogar.
Entendemos que a memória, é um processo e não uma competência
singular, que como tal não tem uma localização única, encontrando-se as
moléculas de peptídeos que armazenam e transferem informação, em
circulação por todo o Corpo (Jensen, 2002), em conformidade Tsien (2008)
considera que o processo “mnemotécnico” como o designa é, uma actividade
complexa, uma verdadeira sinfonia de comunicação entre células nervosas,
que resulta do trabalho concertado de um variado número de células. Este
neurocientista comprovou, através de estudos realizados em ratos, que a
corrente linear de sinais entre cada célula nervosa não é suficiente para
explicar a forma como o cérebro cria e armazena recordações, o que remete
para uma abrangência Corpórea destes processos, o qual vai para além da
visão convencional de memória, enquanto fenómeno localizado exclusivamente
ao nível do cérebro.
De acordo com Damásio & Damásio (2007) o cérebro não se limita a arquivar
palavras, partituras e ilustrações, mas também execuções. Esclarecem que o
cérebro arquiva “receitas” para a reconstrução momentânea de formas de
execução de tudo o que é sequência no tempo e no espaço. Destas formas de
execução estes autores destacam, as sequências de movimentos do próprio,
nomeadamente as musculares (proprioceptivas). De onde se depreende que o

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
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músculo não se cinge à sua função estritamente mecânica, podendo ser


considerado como um órgão que além de efector é, também um órgão sensível
e Inteligente, reforçando-se deste modo a necessidade da educabilidade da
proprioceptividade, como se depreende das palavras de Leandro Massada
(Anexo 2) e Luísa Estriga (Anexo 3). A memória muscular é deste modo,
também uma forma de memória (Levitin, 2007) havendo como tal necessidade
de ao longo da ontogénese dos indivíduos, através da acção, marcar o
músculo com memórias úteis e Específicas. Além dos movimentos acima
referidos Damásio & Damásio (2007), acrescentam, que podemos arquivar e
reconstruir movimentos em relação a outros, e movimentos que são aptidões
motoras, nos quais englobam a prática de Futebol. Reforçando deste modo, a
importância e evidenciando a possibilidade de desenvolver traços mnésicos
próprios da actividade, e mais do que isso, a possibilidade de igualmente e
ainda em idades precoces, desenvolver uma memória em Especificidade
(Precoce) de um determinado jogar. H. Fonseca (2006) reforçando esta ideia,
explicita na sua abordagem que a memória muscular, induzida pela exercitação
e pelo treino, é mais perene que a memória convencional.
Damásio & Damásio (2007, pp. 140) esclarecem ainda, que a “memória
cerebral arquiva não só estruturas físicas, mas também as relações dessas
estruturas físicas ou dos seus símbolos, no tempo e no espaço.”
O cérebro não é um simulador lógico do mundo, um órgão de representação
(Berthoz & Petit, 2006), como tal não efectua uma imagem precisa do mesmo,
pelo contrário, inventa o mundo e faz escolhas a partir de regras implícitas que
foram integradas ao longo da evolução, podendo deste modo considerar-se
que a nossa representação do mundo, apesar de imperfeita resulta, da
necessidade de cada indivíduo ter de optar e fazer escolhas aquando da
confrontação com a realidade (Berthoz, 2008). A nossa concepção do mundo,
ainda que imperfeita, é condicionada pela acção que exercemos sobre o
mundo e que este exerce sobre nós, resultando de um processo de construção
individual e único, apesar de estabelecido em interacção com os outros, e que
decorre ao longo da ontogénese dos indivíduos. Trata-se deste modo de um
fenómeno Ecogenético, que leva a que cada indivíduo tenha a sua própria

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
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percepção do mundo, decorrente da vivenciação única que tem do mesmo. Em


nosso entendimento, a subjectividade com que cada um percepciona, cria e
recria a realidade, tem repercussões consideráveis em modalidades colectivas,
como o Futebol. Uma vez que cada Jogador concebe e age sobre o mundo de
forma única, em função do modo como o percepciona, tornar comum uma
realidade, isto é, um jogar é, um grande desafio. Enfatizando-se deste modo, a
necessidade da Consciência Táctica ser contemplada no processo de treino,
uma vez que é esta que permite tornar comum, com base num determinado
referencial (Modelo de Jogo) uma realidade que deve ser partilhada (um jogar)
por diferentes mundos (Jogadores).
Podemos assim concluir, que a cognição não é uma representação, mas sim
uma acção corporalizada e também, que o mundo que cognoscemos não se
encontra preestabelecido, mas que pelo contrário é actuado por intermédio da
nossa história de acoplamento estrutural (Varela, et al., 2001). São deste
modo, mais do que suficientes as evidências do ponto de vista científico que
sustentam que o movimento e a cognição se relacionam de forma muito
próxima (Jensen, 2002). Um pressuposto que entendemos ser muito relevante
para o treino de jovens, por sustentar a ideia por nós apresentada, de que
através de Mais Futebol, se pode aceder a Mais Criança e Mais Educação.
Facto que se torna ainda mais evidente se, se considerar, que as vivências
Corporais são determinantes na formação do aparelho psíquico, e que a sua
estruturação se estabelece à custa das vivências Corporais da infância (Nava,
2003).

7.6.3 – Inteligência Corpórea, um processo de delegação que necessita


de uma Articulação de Sentido:

“Podemos dizer que metaforicamente, o treino obriga o cérebro a descer (…) a vir até à periferia
(…) a articular-se melhor com as extremidades”
(Paulo Cunha e Silva, Anexo 4).

Já anteriormente evidenciamos a necessidade de no treino de Futebol, se


atender ao que sugere a nova “fenomenologia e fisiologia da acção” (Berthoz &

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

Petit, 2006), assim como de reverter aquilo que se pode considerar a norma do
treinar (B. Oliveira et al., 2006). Relembramos também, que de acordo com
Paulo Cunha e Silva (Anexo 4) se tem revelado uma falácia conceber os
órgãos efectores do movimento como “implicados passivos”, visto que parece
haver dados que sugerem, que são capazes de agir por iniciativa própria e de
inclusive condicionar os mecanismos de decisão que supostamente os
deveriam controlar.
Face ao exposto, torna-se pertinente ter em consideração que o exercício
físico, não é exclusivamente “trabalho muscular”, até porque, grande parte do
cérebro se encontra envolvida em movimentos complexos (Jensen, 2002).
“Estudos detalhados do organismo físico, a partir dessa perspectiva, mostram
que as distinções convencionais entre nervos, músculos, pele e ossos são
frequentemente muito artificiais e não reflectem a realidade física. Todo o
sistema muscular do organismo está coberto de tecidos conjuntivos que
integram os músculos num todo funcional, e que não podem ser separados,
física ou conceptualmente, do tecido muscular, das fibras nervosas e da pele.
Segmentos desse tecido conjuntivo estão associados a diferentes órgãos (…)
Como o sistema muscular é um todo integrado, uma perturbação em qualquer
de suas partes propagar-se-á a todo o sistema, e, como todas as funções
corporais são sustentadas por músculos, cada enfraquecimento do equilíbrio
do organismo reflectir-se-á no sistema muscular de modo específico.” (Capra,
2005, pp. 339)
Com base neste entendimento Leandro Massada (Anexo 2) afirma que, “as
nossas estruturas podem-se tornar em alguns «minicérebros» (…) nas nossas
estruturas tendinosas, esqueléticas e miotendinosas fundamentalmente,
músculo, tendão e o próprio osso, temos sensores que estão ligados ao
cérebro, à proprioceptividade, sensores ligados à tensão, ligados ao
movimento, que nos indicam em que posição espacial estão determinadas
áreas. Nós temos esses sensores nos ligamentos, temos esses sensores nas
estruturas musculares, quase que nós podemos dizer que temos milhões de
«minicérebros». Ora, se essas estruturas estiverem a ser estimuladas muito
rapidamente e se forem estimuladas precocemente e se forem continuamente

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O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
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estimuladas, esses «minicérebros» que estão, por exemplo, ligados à


proprioceptividade (…) aí, a hiperparticipação desses milhões de
«minicérebros» permite, por exemplo, em termos de adaptabilidade desportiva,
diminuir drasticamente o número de lesões. E se permite diminuir
drasticamente o número de lesões, em termos de motricidade, em termos
motores, praticamente se o músculo for estimulado pode quase transformar-se
em «minicérebros»”. Acrescenta ainda que tal como sucedeu com as mãos,
pela evolução cultural da espécie, também os pés se estimulados
precocemente podem constituir-se como dois cérebros.
Estas evidências remetem-nos para a possibilidade de entendermos a
Inteligência como algo Corpóreo, capaz de se desenvolver precocemente, e em
muito devido à influência do treino. Entendemos também, que o conceito de
Inteligência, com base no que foi sugerido, vai além da fenomenologia
processual que se desenvolve ao nível do cérebro, visto que também o corpo-
propriamente-dito, é capaz de processar informação e de efectuar uma
percepção Inteligente do Mundo.
Partindo do pressuposto que o Corpo é uma inteireza inquebrantável, algo
que já evidenciamos suficientemente, consideramos ajustado entender a
Inteligência como um fenómeno Corpóreo, daí que o designemos de
Inteligência Corpórea. Paulo Cunha e Silva (Anexo 4) salienta que a ideia de
Inteligência Corpórea remete, para uma concepção de corpo, na qual este
apresenta, como sugere, uma consciência de Si, uma “consciência periférica”,
que não se cinge aos sistemas motores, indo inclusivamente até ao nível do
funcionamento celular. Apresentando uma noção que consideramos muito
interessante, sugere ainda que neste processo ou entendimento de cognição
observa-se como que uma “delegação” por parte dos sistemas Inteligentes, ou
melhor dizendo, dos sistemas que vulgarmente concebemos como os únicos
Inteligentes, nas partes ou fragmentos, conferindo-lhes uma “franja” de
capacidade muito relevante ao nível da tomada de decisão.
Com base nesta nossa sugestão entendemos ser possível, cerebralizar o
músculo, assim como outras estruturas, e também corporalizar o cérebro, como
aliás ficou demonstrado pela possibilidade por nós evidenciada do cérebro

471
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

formar mapas dos estados do corpo. Podemos ainda, e de modo não menos
relevante, «muscular» o cérebro, utilizando o termo «muscular» de acordo com
o entendimento convencional, no sentido de evidenciar a possibilidade de o
desenvolver através do treino. Uma vez que como salientamos, trata-se de um
órgão que além de sensitivo e Inteligente, permite pela plasticidade que o
caracterizam desenvolver as suas potencialidades através do treino. Paulo
Cunha e Silva (Anexo 4) concorda que o treino favorece a “descentralização”
ou cerebralização do músculo e simultaneamente a corporalização do cérebro.
Sem contudo, ignorar a necessidade de consolidação Específica da relação
entre estes processos, salientando a este respeito, que a prática precoce
favorece a “delegação” pelo cérebro, o que confere às partes que se encontram
na periferia, uma maior responsabilização que passa pelo “assumir a sua
capacidade prestativa (…) de parte inteligente e auto-suficiente”, falando assim
do “todo melhor que o todo fala de si”.
“…porque o jogo reclama uma actividade cerebral, como todas as
actividades do dia-a-dia, e se antes de ser uma preocupação física é uma
inexorabilidade táctica, consciente ou não, a sua transformação deve ser uma
preocupação diária e permanente do treinador. Antes de atingir o músculo deve
preocupar-se com o cérebro.” (Gaiteiro, 2006, pp. 122). E também com os
«minicérebros» e com os mecanismos de “delegação”.
A ideia de cerebralizar o corpo e «muscular» o cérebro, poderá evidenciar
uma perspectiva dualista, o que não se pretende neste trabalho. “Não quero
ser acusado de assumir uma atitude «mecanicista», a pior injúria que se pode
fazer a um intelectual contemporâneo” (Laborit, 1987, pp. 81). Motivo pelo qual
advertimos, que tanto ou mesmo mais importante que treinar as duas
dimensões que evidenciamos, é treinar e desenvolver as conexões que são
estabelecidas entre ambas. Como esclarece Castelo (1998), educar o Corpo
não é somente exercitar o músculo, mas também habituar o cérebro a
comandar o corpo. “Podemos dizer que metaforicamente, o treino obriga o
cérebro a descer (…) a vir até à periferia (…) a articular-se melhor com as
extremidades” (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4). Uma articulação que dá sentido
à acção Humana e que no treino de Futebol, deverá ser uma “articulação de

472
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

sentido” que se reporta à Especificidade de um determinado jogar, e à


vivenciação de diferentes níveis de complexidade desse mesmo jogar.
A educabilidade ou treinabilidade das relações entre o cérebro e a periferia,
são determinantes para o desenvolvimento conveniente da proprioceptividade,
a qual é relevante para a expressão qualitativa dos Talentos e para a
diminuição da incidência de lesões, tal como evidenciam Leandro Massada
(Anexo 2) e Luísa Estriga (Anexo 3).

7.6.4 - Inteligência de Jogo, de jogo e Entendimento de Jogo47:

“Um enorme espanto e uma desmedida admiração perante aquilo que se deve chamar a
«inteligência do movimento»: nenhum jogador tem tempo para pensar, para analisar, para
estabelecer um diagrama da situação. Um jogador corre mais depressa do que pensa. Mas a
corrida que faz, a finta que engendra e o passe que efectua são formas de pensamento”
(E. P. Coelho, 2004).

“O jogo joga-se fundamentalmente com a cabeça. A mente tem de estar


sempre presente em relação a tudo, e o jogo tem de começar por ser um
fenómeno pensado. O cérebro não está isolado dos pés; as coisas não
acontecem dessa forma. Os pés funcionam num processo que passa pela
mente. Tudo passa pelo modelo que pretendemos.” (Rui Faria, s/d, cit. por
Lourenço & Ilharco, 2007, pp. 94).
O Futebol implica como parece ser evidente, a mente, o cérebro e o corpo-
propriamente-dito, em suma, implica o Corpo enquanto inteireza
inquebrantável. Motivo pelo qual sugerimos que requisita uma Inteligência
Corpórea, que consideramos específica da actividade, e mais que isso, uma
vez que tudo “passa pelo modelo”, trata-se também de uma Inteligência
específica em Especificidade, no sentido em que se encontra sustentada na
Especificidade de um determinado jogar.

47
Remetemos para o ponto 3.2 da presente dissertação (ver nota de rodapé nº 2), um
esclarecimento acerca da distinção entre o conceito de Jogo (letra maiúscula) e o de jogo (letra
minúscula).

473
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

A sugestão que fazemos relativamente à possibilidade do Futebol se


expressar a partir de uma Inteligência Corpórea, depois de tudo o que foi por
nós sugerido, não parece causar muito espanto. Paulo Cunha e Silva (Anexo 4)
reconhece que o Futebol tem uma “sintaxe e gramática” própria, tal como as
restantes modalidades, com as quais partilha, contudo, um “alfabeto motor”
comum, mas de “ortografia” diferente.
Varela et al. (2001), afirmam de forma categórica que a essência da
Inteligência reside de forma exclusiva na Corporalidade. Parecendo aceitar-se
a ideia de que a resolução de problemas de natureza diversa requer, uma
Inteligência cinestésico-corporal (Celso Antunes, 2006), a qual como já
justificamos, designaremos de Inteligência Corpórea.
Parece igualmente plausível, conceber a Inteligência como uma faculdade
específica e não generalista. O conhecimento é algo específico e contextual,
não preexistindo em nenhum lugar ou forma, mas actuando em situações
particulares (Varela et al., 2001). As vias neurais que distinguem as
competências ao nível do pensamento são específicas, ou seja, a Inteligência é
uma faculdade específica, o que por conseguinte coloca em causa a ideia de
que o Talento é uma qualidade generalista (Gardner, 2005; Jensen, 2002). Um
aspecto pertinente e que entronca no que sugerimos, aquando da abordagem à
problemática da construção de Talentos.
O facto da Inteligência ser específica, torna necessário que os jovens sejam
confrontados com situações de Aprendizagem o mais próximo possível da
realidade (Jensen, 2002). Reforçando-se deste modo a necessidade dos
jovens desde idades precoces, serem submetidos a estímulos que respeitem a
essência das actividades em que se encontram envolvidos. O que se aplica
como é óbvio, também à prática de Futebol.
Uma vez que a Inteligência é, uma faculdade que se desenvolve atendendo
às peculiaridades das diversas actividades em que se encontra implicada,
consideramos que também o Futebol, pelas particularidades que apresenta
requisita uma Inteligência própria desta actividade. Não obstante, não devemos
radicalizar e ser totalizantes quando efectuamos a apologia por uma
Inteligência de Jogo, uma vez que esta tem subjacente um determinado “corpo

474
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

branco” (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4). Ou seja, a Inteligência de Jogo, tem
subjacente como as demais uma base comum, uma Inteligência, que sendo
mais genuína se encontra à partida por Aculturar, podendo tornar-se mais
propensa para o emergir da Inteligência de Jogo, caso a acção coporalizada o
privilegie. Daí que se possa também considerar como uma Inteligência ao Lado
da Natura.
Gaiteiro (2006, pp. 122) sugere que esta, não se trata de uma Inteligência
qualquer, mas sim específica e que se encontra “subjacente ao jogar futebol,
um saber que se concretiza na acção.”
“Um enorme espanto e uma desmedida admiração perante aquilo que se
deve chamar a «inteligência do movimento»: nenhum jogador tem tempo para
pensar, para analisar, para estabelecer um diagrama da situação. Um jogador
corre mais depressa do que pensa. Mas a corrida que faz, a finta que engendra
e o passe que efectua são formas de pensamento” (E. P. Coelho, 2004).
A Inteligência de jogo reporta-se às ligações que os Jogadores estabelecem
entre si e ao modo como preenchem o Jogo, sendo uma faculdade que não se
vê (nem se avalia com testes de QI), mas que se expressa por indicadores
relacionados sobretudo, com o modo como os Jogadores criam contextos e se
ajustam a estes, e ainda com o modo intencional com que se relacionam
(Marisa Gomes, Anexo 5). O que implica que o fomento da Inteligência de
Jogo, através da vivenciação de um determinado jogar tenha subjacente um
Padrão de Conexões.
Uma vez que o Jogo, é uma actividade que se concretiza na acção (Gaiteiro,
2006; M. Silva, 2008), tal como a sua Aprendizagem, a solução e o futuro do
Futebol passam pela Inteligência em acção (J. A. Santos, 2004), isto é, pela
acção corporalizada, ou seja, pelo fomento da Inteligência Corpórea específica
do Futebol, a qual designaremos de Inteligência de Jogo, e que resulta da
InCorporAcção do Jogo e de modo particular de um jogar.
Um dos aspectos mais relevantes da Inteligência de Jogo, em nosso
entendimento, e enquanto Inteligência em acção resulta do seu carácter
operativo e funcional (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4), uma necessidade
inerente a esta actividade. São também estas características que permitem

475
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

destrinçar este conceito de Entendimento de Jogo. Por entendimento,


consideramos o corpus teórico relativo a uma determinada matéria. Motivo pelo
qual sugerimos, que o Entendimento de Jogo se encontra mais relacionado
com a dimensão teórica do Jogo, e não com a praxis. Ou seja, contrariamente
à Inteligência de Jogo, é um saber inoperacional, que não se expressando em
campo, tem também lugar no Fenómeno multidimensional que é o Futebol. O
Entendimento de Jogo é aquele que se manifesta por exemplo, através das
opiniões de Jornalistas, Comentadores, Sociólogos, Historiadores, entre outros,
quando se pronunciam sobre o Futebol. Enquanto que a Inteligência de Jogo,
abarcando o Entendimento de Jogo, vai mais além, reportando-se à esfera do
fazer e observa-se, de modo mais evidente nos Jogadores pela expressão dos
seus desempenhos, mas também pelos treinadores, os quais, embora de modo
diferenciado também têm de evidenciar um saber operacional, que lhes permita
a partir do Entendimento de Jogo, agir e adoptar estratégias que permitam
solucionar os problemas que o Jogo, a Competição e o treino colocam. Marisa
Gomes (Anexo 5) concorda com a necessidade de diferenciar os conceitos de
Entendimento de Jogo e Inteligência de Jogo, esclarecendo que apenas os
Jogadores e treinadores podem revelar Inteligência de Jogo, por serem parte
integrante de um contexto, um “nicho ecológico” em que, e contrariamente ao
que sucede com os Cronistas ou Jornalistas, podem interferir no lado
emergente.
Nesta dissertação, numa fase inicial levantamos uma suspeição acerca da
possibilidade do Futebol requisitar uma Inteligência específica, expressa por
um saber Corpóreo, o que face ao que expusemos neste ponto parece fazer
todo o sentido.
Importa considerar que a Inteligência de Jogo, compreende a Inteligência de
Jogo propriamente-dita, um conceito mais abrangente, e que se reporta à
Inteligência específica da actividade, o Futebol, daí Jogo com letra maiúscula.
Compreendendo também o Entendimento de Jogo e ainda a Inteligência de
jogo, com letra minúscula. A qual se refere, à Inteligência implicada na
expressão de um determinado jogar, ou seja, uma Inteligência Aculturada e
subordinada a um determinado Modelo de Jogo. O que confere à Inteligência

476
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

de Jogo, um carácter de Especificidade e que como temos evidenciado deverá


desenvolver-se ainda precocemente, Especificidade Precoce.
Não devemos contudo ignorar que sendo a Inteligência de Jogo
multidimensional, compreendendo as Inteligências a que aludimos
anteriormente, é igualmente consubstanciada por muitas outras Inteligências;
Social, Emocional, Negocial, Comunicacional, e muitas outras cognitivas ou
não.
O Talento de Jogadores como Pelé resulta de tudo isto, e pode considerar-se
como sendo um “saber corporal” (Toledo, 2004) desenvolvido, “a partir de uma
relativa liberdade, improvisação, experimentação, disposições e estratégias
acomodadas às regras, às brechas na moldura institucional e associadas às
outras práticas culturais contíguas da cultura popular, tais singularidades
acrescentaram modulações corporais e qualidades sensíveis à memória
colectiva e corporal do jogo.” (Toledo, 2004, pp. 152). Em suma, trata-se de um
saber que se desenvolve através de um processo Ecogenético, que como tal
tem em consideração, as relações múltiplas existentes em torno do Fenómeno
AntropoSocialTotal Futebol, cujas repercussões se manifestam de diferentes
formas no Corpo.

7.7 – InCoporAcção/Somatização, o «ENTRANHAR» prevalecente da


Inteligência de Jogo:

“Se procurar um antecedente do golo que fiz aos ingleses, encontro-o ali; fintei sete e vacinei-
os.
Ah!, também tenho um antecedente do outro golo nos Cebollitas, aquele da mão de Deus. No
Parque Saavedra fiz um golo com a mão (…) Sei que não está certo fazer isso, mas uma coisa é
dizê-lo a frio e outra, muito diferente, é tomar a decisão no calor do jogo. Queres chegar à bola e a
mão vai sozinha.”
(Maradona, 2005, pp. 57).

Depois de apresentarmos a Inteligência, e de modo particular a Inteligência


de Jogo como algo Corpóreo, torna-se mais fácil compreender a ideia de
InCorporAcção ou Somatização dessas faculdades.

477
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

No domínio clínico, do qual é originário, de uma forma geral concebe-se o


termo, psicossomático ou Somatização como sendo o fenómeno que consiste
em tomar como doença física uma doença emocional (Goleman, 2003).
Contudo, quando ao longo desta dissertação utilizamos este conceito, não o
fizemos de acordo com este entendimento.
Tal como adverte Sobrinho Simões (Anexo 1), “o conceito de psicossomática
é muito operacional, significa que há coisas que se pensam e se repercutem no
soma, mas as moléculas e os mecanismos do pensamento são exactamente
os mesmos dos que existem no resto do corpo.” Esta concepção de
Somatização/InCorporAcção, entronca em dois aspectos determinantes daquilo
que consideramos ser a Inteligência de Jogo. Em primeiro lugar por se tratarem
também de conceitos operacionais e em segundo lugar por serem igualmente
fenómenos que implicam um entendimento do Corpo enquanto inteireza
inquebrantável.
O uso da palavra soma, a qual provém do grego e significa «corpo» é
contudo, frequentemente invocada de forma excessivamente redutora.
Associando-se os termos somático ou somatossensorial ao tacto ou a
sensações musculares ou articulares, no entanto, vai para além de tal
entendimento, sendo uma combinação de subsistemas, em que cada um dos
quais transmite sinais acerca do estado de diversos aspectos do corpo-
propriamente-dito (Damásio, 2003b). Trata-se assim de um conceito bem mais
abrangente, que consideramos poder aplicar-se como fomos pontualmente
justificando, a uma actividade como o Futebol.
Caraça (2005), indo de encontro ao que foi sugerido acima por Damásio
(2003b), refere que a cada interacção e relação com o meio corresponde um
registo no interior desse organismo. “… o estado vivencial é sempre
«incorporado» - isto é, embutido em determinado campo de sensação” (Capra,
1996, pp. 228). Uma vez que como foi já salientado, a interacção activa dos
organismos com a realidade envolvente, acção corporalizada, é já uma forma
de cognição, e observa-se a InCoporAcção/Somatização dessa acção
Corporalizada, que se expressa como Inteligência Corpórea.

478
O Futebol como a Coca-cola, «primeiro estranha-se depois entranha-se»! A Importância da
InCorporAcção Precoce do Jogo na Exponenciação de Talentos

A InCorporAcção/Somatização dos saberes implicados num Fenómeno


AntropoSocialTotal como o Futebol, pelas múltiplas conexões e influências que
com este interactuam, confere um carácter Ecogenético ao processo de
InCorporAcção/Somatização da Inteligência de Jogo. Facto suportado por
Samulski & Greco (2004), que referem que estudos parecem evidenciar a
existência de diferenças interculturais no modo como os jovens assimilam e
percepcionam o Jogo, ou seja, no modo, como o InCorporam ou Somatizam.
A ideia de InCoporacção/Somatização por nós apresentada, procura não
somente evidenciar que os saberes implicados no Jogo e que consubstanciam
a Inteligência de Jogo são Corpóreos, mas também, que se observa através da
InCoporAcção/Somatização desses saberes, o respectivo «entranhar», o qual
permite que estes se tornem prevalecentes. Entendendo-se o tornar
prevalecente, como um processo de consolidação a partir de uma dinâmica
caótica (Varela et al., 2001). Um tipo de dinâmica que como já explicitamos
caracteriza o vivienciar do Jogo e dos jogares. Um tipo de vivenciação e
experiência, que por esse motivo permite que tal como a Coca-Cola, também o
Futebol (Inteligência de Jogo, Inteligência de jogo e Entendimento de Jogo)
depois da estranheza inicial (aparentemente ContraNatura mas na verdade ao
Lado da Natura), se entranhe (InCorporAcção/Somatização).

479
Evidências Conclusivas

8. Evidências Conclusivas:

“… quero-te como és, um jogo simples cheio de mistérios grandes. Digo-o em semana
perdedora: o futebol é apaixonante.”
(J. Valdano, 1998, pp.174).

Depois de tudo o que foi salientado no presente estudo podemos concluir que
o Futebol é, inquestionavelmente, um Fenómeno Social Total, podendo mesmo
considerar-se que no nosso espaço geográfico, comparativamente a outros
fenómenos e a outras modalidades desportivas é, um Fenómeno Social Mais
Total. Este facto tem sobre o fenómeno repercussões muito diversas, pelas
múltiplas relações que o Futebol estabelece com as diferentes instâncias
sociais, tendo por conseguinte reflexos muito evidentes no fascínio que o
Futebol desperta nas populações, desde idades muito precoces, o que se
reflecte nos processos de Formação e no modo como as Crianças iniciam a
prática do Futebol. A este respeito, observam-se na sociedade actual
alterações muito profundas que têm vindo a reflectir-se, no modo como os
jovens descobrem o Jogo. O Futebol de Rua é uma realidade decadente, que
contudo consideramos conveniente recuperar, o que torna pertinente a
recriação dessa mesma realidade nos locais em que os jovens iniciam a prática
de Futebol, que como tal se devem assumir como Úteros Artificiais.
Devemos ainda ter em consideração, que sendo o Futebol um fenómeno que
influencia e se vê influenciado pela sociedade, não fica imune aos males de
que esta padece, e para os quais devemos nos encontrar devidamente
alertados para uma intervenção mais qualitativa.
Sendo evidente que o Futebol é um Fenómeno Social Total, consideramos
que a devida expressão deste fenómeno, apenas se observa se este conceito
for complementado pelo prefixo Antropo. Assim sugerimos para o Futebol a
classificação de Fenómeno AntropoSocialTotal, por entendermos que só deste
modo se atende à verdadeira complexidade inerente ao Futebol, uma
actividade que contempla toda a complexidade Humana, na qual se pode
observar a expressão de diversas categorias antropológicas. Concluímos
ainda, que para dar respostas à complexidade inerente a uma actividade

481
Evidências Conclusivas

Humana como o Futebol torna-se imprescindível, não somente uma


abordagem que atenda ao lado Humano, mas também uma abordagem
científica qualitativa, sistémica, capaz de apreender a complexidade do mundo
vivo.
Nesta pesquisa salientamos ainda, que sendo o Futebol um Fenómeno
AntropoSocialTotal, este representa em termos de Hominização uma actividade
ContraNatura, que como tal requisita da parte de quem o pratica uma grande
adaptabilidade, que por ser possível e se manifestar sobre a plasticidade que
caracteriza a espécie, se pode classificar de forma mais correcta como um
Fenómeno ao Lado da Natura.
Ficou evidente neste estudo, que a possibilidade do Futebol se revelar como
uma actividade ao Lado da Natura é tanto mais exequível, quanto mais
precocemente as Crianças se submeterem a processos de Aculturação ao
Jogo e ao jogo. O facto da precocidade ser determinante é, uma das
conclusões mais pertinentes desta dissertação, a maior adaptabilidade
evidenciada nos primeiros anos de Vida explica-se, pela maior plasticidade
Corporal que caracteriza este período da Vida. Não obstante a necessidade de
uma iniciação precoce, concluímos que essa iniciação deverá fazer-se
considerando tal processo, como um processo de EnsinoAprendizagem, que
como tal justifica a devida racionalização. Devendo esse processo ter em
consideração muitas das actividades de infância realizadas por aqueles, que
posteriormente se revelaram como Talentos de expressão mundial. Actividades
que tinham por base maioritária, o Futebol de Rua, uma actividade que como
evidenciamos comporta práticas sustentadas do ponto de vista científico, mas
que os jovens, mais tarde Talentos, de forma espontânea e tácita realizavam e
que posteriormente reconheceram como determinantes.
Concluímos deste modo, que os processos de Formação, de construção e
exponenciação dos Talentos, devendo centrar-se no Futebol de Rua, deverão
através da racionalização do mesmo elevar essa realidade para um nível de
complexidade maior, capaz de desenvolver o Talento atendendo
simultaneamente a uma determinada Cultura de Jogo, isto é, um jogar. Uma

482
Evidências Conclusivas

racionalização que deste modo, poderá afastar-se do anarquismo exacerbado


do Futebol de Rua, sem contudo hipotecar as suas potencialidades.
Concluímos com base no que fomos recolhendo ao longo desta pesquisa,
que o Talento é uma realidade potencial, que como tal evolui e na qual se
encontram implicadas inúmeras dimensões, uma realidade plural,
consubstanciada pela manifestação singular de cada Talento, uma realidade
que contempla a criatividade e uma realidade que comporta as idiossincrasias
da realidade envolvente, daí que o consideremos como um processo de
construção e de desenvolvimento Ecogenético. Uma realidade
(ECO)ANTROPOSOCIALTOTAL.
Concluímos ainda que o processo que permite o despoletar do Talento, deve
permitir que esse Talento se Aculture paulatinamente a uma determinada
variabilidade cultural, motivo pelo qual fazemos a apologia da Especificidade
Precoce. Um conceito que possibilita, além do reverter dos condicionalismos
antropológicos desencadeados pela Hominização, o fomentar das relações
Corpóreas implicadas no Jogo, e de modo particular num determinado jogar, e
ainda o fomento da Inteligência de Jogo. Um tipo de Inteligência, à qual apenas
acedem os intervenientes do processo que podem intervir sobre o lado
emergente deste. A Inteligência de Jogo, concluímos ainda ser
consubstanciada por diferentes saberes, por uma Inteligência Corpórea,
adquirida através de um processo de InCorporAcção que decorre ao longo de
vários anos. Uma InCorporAcção que fazendo-se precocemente e atendendo a
uma lógica de Especificidade Precoce deverá possibilitar, o “entranhar”
prevalecente de um jogar, depois do “estranhar” inicial. Concluímos assim, que
o Talento deve emergir de um processo que tendo como referencial uma
determinada qualidade, uma determinada complexidade, isto é, um
determinado jogar, tem necessariamente de cumprir com o Princípio da
Especificidade, no caso Precoce. Por se tratar de um processo de Formação
que implica a Periodização dessa complexidade, desse Táctico, ao longo de
vários anos, designámo-lo de Periodização à La Long, a qual tendo subjacente
as directrizes da Periodização Táctica, deve orientar a operacionalização desse
jogar independentemente do escalão, pelo seguinte referencial padronizado:

483
484
Evidências Conclusivas

Quadro 1 - Morfociclo Padrão, Adaptado de B. Oliveira et al., (2006)


Evidências Conclusivas

Concluímos que tendo como referencial o quadro apresentado anteriormente,


Morfociclo Padrão48, se torna possível a operacionalização de um processo de
qualidade, capaz de aceder a um jogar igualmente de qualidade. Não obstante
o facto do processo que permite o parir de um jogar, dever ter a nível
metodológico uma lógica comum, sendo o Futebol uma actividade de
expressão plural, na qual cada jogo influencia e é influenciado pelo Jogo, como
foi por nós salientado, entendemos que a ideia de um jogar de qualidade não
deverá ser concebida como uma realidade única, mas sim plural, por
considerarmos que a qualidade colectiva, tal como a individual no Futebol se
pode manifestar de múltiplas formas.

48
Morfociclo Padrão: a coloração verde corresponde, à complexidade inerente ao Jogo
(Competição). Para um conveniente entendimento do significado do algoritmo subjacente à
simbologia das cores, que na verdade se constitui como «algo que dá ritmo» à construção de
um jogar, deve entender-se que o emergir do verde resulta do que esta dimensão comporta, o
azul e o amarelo, que devidamente conjugados e nuanciados permitem a expressão qualitativa
de um jogar, verde. “Assim, fracciona-se o «jogar» (todo = verde) em níveis de organização
que se constituem nas partes representadas por: branco + verde claro + azul + verde escuro +
amarelo + amarelo claro = verde.” (M. Silva, 2008, pp. 94/95). Importa ainda salientar que o
branco, «cada um pinta como quizer» (sem entrar em desvarios) e que o amarelo claro resulta
da junção do branco com o amarelo, e se reporta à necessidade de treinar e recuperar, de
forma mais recreativa, mas sempre em Especificidade, daí que não deixe de ser amarelo, ou
seja, não deixa de representar um determinado nível de organização do jogar. Atente-se ainda,
que é da correcta calibragem das cores sugeridas, que resulta a devida operacionalização do
Princípio Metodológico da Alternância Horizontal em Especificidade.

485
Evidências Conclusivas

Aquém e Além das Evidências Conclusivas:

“O Talento é uma distinção que tem mil formas de mostrar-se…


Ás vezes exibe-se com a bola nos pés;
Outras com um movimento, e pode ser que esteja numa disputa...! ou,
… no modo como cria condições (as melhores) para os outros!
Mas o seu poder sempre desequilibra!”
(Jorge Valdano, s/d, adaptado por V. Frade, 2006).

“Subjacente à selectividade comportamental dos sistemas auto-organizativos, o


«cordão umbilical» que reúne o «genético» e o nicho ambiental … não só «barriga – da –
mãe», «barriga – da família» e «barriga – da – sociedade»!!!”
(V. Frade, 1979, pp. 8).

Resultante de um conjunto de acontecimentos, contemporâneos à data limite


de entrega das Monografias na época normal, acontecimentos esses
imponderáveis, como o falecimento de um familiar do autor, o lançamento de
artigos na imprensa pertinentes para a temática em questão, a possibilidade de
possuir um documento que sintetiza algumas das principais ideias que Pepe
Guardiola, futuro treinador de uma das mais conceituadas equipas a nível
mundial, o FC Barcelona, tem para a construção de um jogar de qualidade e,
face à possibilidade desta dissertação ser entregue em época de recurso, foi
por nós decidido complementar a presente pesquisa com os acrescentos que
de seguida se apresentam.
Entendemos, que por se tratar de um acrescento qualitativo tal decisão se
torna pertinente. Além de que, sendo um documento sobre Futebol, o facto de
permanecer em aberto até à sua impressão reflecte, o entendimento que
procuramos evidenciar com o conceito de Modelo de Jogo. Ou seja, uma
realidade que como salienta M. Silva (2008), é uma realidade em aberto, cuja
configuração se encontra dependente do contexto em que se insere, e do
modo como as particularidades desse contexto evoluem, caracterizando-se por
conseguinte, por ser uma realidade em permanente construção e criação ou
recriação, não na configuração matricial, como já se tornou evidente.

486
Evidências Conclusivas

Face ao exposto, o presente estudo funciona como uma metáfora da


construção de um jogar, que como tal, poderia permanecer inacabado.
Competindo-nos e também a quem a contemplar no futuro, fazer-lhe
acrescentos e criticá-la, de modo a que o conhecimento que nela se encerra
não estagne, mas pelo contrário, se vá adequando à realidade altamente
mutável de cada época, e se vá ajustando à informação massiva que cada vez
mais dispomos nos nossos dias.
Para a elaboração deste ponto, socorrer-nos-emos de fontes muito recentes,
algumas das quais não publicadas, mas às quais tivemos acesso, encontrando-
se as seguintes indexadas em anexos:
ƒ Anexo 6: “Após conversa com Guardiola – Esboço de uma ideia de
jogo.” Por Nuno Amieiro (Não Publicado), 14 de Abril de 2008.
ƒ Anexo 7: “Viva a brincadeira”. Por Carlos Neto, in Notícias Magazine
de 1 de Junho de 2008, pp. 56/57.
ƒ Anexo 8: “PRIMEIRA LINHA” – Entrevista a José Mourinho, in Jornal
de Negócios de 30 de Maio de 2008, pp. 4 – 7.

Ao longo desta dissertação salientamos a necessidade da iniciação da prática


proporcionada desde idades precoces, ser balizada por um jogar de qualidade,
capaz de aspirar e se orientar pela intenção de aceder ao Rendimento
Superior. Apesar de entendermos que a expressão qualitativa de um jogar e
dos Talentos se poder expressar de diferentes formas, pensamos existirem
traços caracterizadores ou padrões comportamentais, que deverão servir de
referencial para a edificação de uma Concepção de Jogo de qualidade. Motivo
pelo qual, não queremos deixar de salientar alguns dos aspectos que
consideramos mais condizentes com a realidade e necessidades do
Rendimento Superior, muitos dos quais, contrastantes com o que é dominante
e com o que é dado a conhecer aos jovens desde idades muito precoces.
Jovens que pela elevada capacidade de absorção dos estímulos envolventes,
procedem à InCorporAcção de jogares canhestros, visto que “ninguém tem
necessidade daquilo que desconhece” (V. Frade, 2006). Como tal, urge que as
Crianças vivenciem e consequentemente procedam à InCorporAcção de

487
Evidências Conclusivas

jogares de qualidade, capazes de elevar consequentemente a qualidade do


Jogo e dos Jogadores.
O esboço de um jogar de qualidade deverá em nosso entendimento ter
subjacentes as directrizes apresentadas por J. G. Oliveira, Amieiro, & Frade
(2008), muitas das quais corroboradas por Pepe Guardiola (cit. por Nuno
Amieiro, Anexo 6), e que seguidamente se apresentam.

Quadro 2 – Princípios Fundamentais, Culturais e tipos de Princípios a ponderar no esboço de um


jogar de Qualidade, Adaptado de J. G. Oliveira, Amieiro, & Frade (2008) Apresentação efectuada no
“Curso Superior de Especializacion” realizado em Barcelona.

488
Evidências Conclusivas

Quadro 3 – Princípios de Jogo Específicos, a considerar no esboço de um jogar de Qualidade,


Adaptado de J. G. Oliveira, Amieiro, & Frade (2008).

No Quadro 2, podem observar-se os traços que caracterizam Jogadores e


equipas de qualidade, os quais foram na generalidade salientados ao longo da
presente dissertação. Ainda neste quadro efectua-se um esclarecimento acerca
do conceito Princípio de Jogo, da existência de diferentes níveis de
organização dos mesmos, SubPrincípios e SubPrincípios dos SubPrincípios,
assim como a necessidade destes revelaram uma organização fractal, relativa
a um determinado jogar. São ainda apresentados os vários tipos de Princípios

489
Evidências Conclusivas

de Jogo, que podem ser considerados na construção de um jogar, os Princípios


Fundamentais, os Princípios Específicos ou Culturais, e os Princípios
Específicos relacionados com o Modelo de Jogo. Importa ter em consideração,
que os dois primeiros tipos devem constituir-se como padrões comportamentais
comuns a todos os jogares. Enquanto que os Princípios Específicos se
relacionam, com a Especificidade de um determinado jogar, ou seja, de um
determinado Modelo de Jogo. Contudo, com base no Quadro 3 apresentamos
para os quatro Momentos de Jogo considerados, Organização Ofensiva,
Transição Defesa – Ataque, Organização Defensiva e Transição Ataque –
Defesa, aqueles que se devem assumir como os Grandes Princípios a
contemplar na construção de um jogar aspirante ao Rendimento Superior, e
capaz de potenciar devidamente os Talentos. Assim num nível mais macro,
sugerimos que todos os jogares se devem balizar pelos seguintes Grandes
Princípios de Jogo, tendo em vista os objectivos sugeridos:

ƒ Organização Ofensiva: Posse e Circulação de Bola;


ƒ Transição Ataque – Defesa: Pressão Sobre o Portador da Bola e
Sobre o Espaço Próximo;
ƒ Organização Defensiva: Zona Pressionante;
ƒ Transição Defesa – Ataque: Tirar a Bola da Zona de Pressão.

Importa neste ponto salientar, que decidimos considerar deste modo os


quatro Momentos de Jogo para facilitar o seu tratamento sistematizável, no
entanto, não se pode ignorar, que devendo ser o Jogo e cada jogar entendidos
enquanto Inteirezas Inquebrantáveis, existe entre estes um fluxo e fluidez
interactiva, que não pode ser ignorada, não fazendo sentido, qualquer um dos
Momentos sem a relação com os demais. Como aliás já evidenciamos.
É igualmente pertinente evidenciar, que o facto de entendermos deverem ser
estas as grandes premissas a considerar, por todo e qualquer jogar aspirante a
um futuro de qualidade, tal não implica que se hipoteque, a pluralidade, que
deve caracterizar o Jogo. Por definição, os Princípios, são isso mesmo, ou
seja, indicam um começo, são um ponto de partida, cuja infinitude

490
Evidências Conclusivas

configuracional a que se pode chegar é diversa, e é fortemente condicionada


por tudo o que envolve o Modelo de Jogo que Corporalizam, nomeadamente,
as intenções de quem idealiza e operacionaliza o processo, e a este nível de
forma especial o treinador, também as Especificidades de cada “nicho
ecológico”, e tudo o resto inclusive o conteúdo latente que se encontra Dentro
da Caixa Preta da Periodização Táctica (M. Silva, 2008). Assim, a
manifestação dos vários níveis de organização dos Princípios de Jogo, em
função das idiossincrasias de cada realidade, far-se-á de forma muito diversa.
Como forma de complementar os Princípios de Jogo, sugeridos
anteriormente, e de modo a sustentar de forma mais efectiva o esboço de um
jogar de qualidade, servir-nos-emos da síntese efectuada por Nuno Amieiro, de
uma entrevista realizada pelo mesmo, a Pepe Guardiola, recém contratado
para exercer o cargo de Treinador do F.C. Barcelona. Este documento
encontra-se em anexos (Anexo 6), onde pode ser integralmente consultado. O
que seguidamente iremos fazer é, apresentar um conjunto de ideias, muitas
das quais contrastantes com o entendimento convencional de Jogo, e que se
podem depreender deste documento, podendo quanto a nós constituir-se como
SubPrincípios e SubPrincípios dos SubPrincípios, dos Princípios de Jogo
sugeridos anteriormente. Sendo estes capazes de consubstanciar jogares de
qualidade, assentes em Dinâmicas Colectivas que permitem expressar jogares
de dominância ofensiva.
Como ponto prévio devemos ter em consideração, que tal como para
Guardiola, também para nós, toda a Organização Colectiva deve ser
ponderada “em função de como querer atacar e o como atacar”. O facto de
fazermos a apologia de um jogar de cariz dominantemente ofensivo, justifica-se
por entendermos, que é fundamental que os jovens desde idades muito
precoces se submetam a processos de Aculturação a jogares com esta
dominância uma vez que sendo os referenciais, o Rendimento Superior, e a
Formação de Jogadores Campeões, para lhes aceder é preciso ganhar, e tal
só se torna possível se houver golos e uma Cultura de Risco devidamente
InCorporada. Além disso, conforme salienta José Mourinho (s/d in Lourenço &
Mourinho, 2005, pp. 84), para os Jogadores se evidenciarem, serem cobiçados

491
Evidências Conclusivas

pelas grandes equipas e se valorizarem economicamente (o que para a


Formação no nosso país, se revela muito pertinente nos nossos dias), é
fundamental que as equipas joguem um tipo de Futebol atractivo e de cariz
marcadamente ofensivo, ou como refere, é importante jogar como “equipa
grande”. “Para conseguirmos realizar algum dinheiro com jogadores no final da
época, temos de jogar de forma a que eles possam dar nas vistas. Temos,
pois, de jogar como uma equipa «grande».”
Esclarecidos os motivos que nos levam a sugerir, uma Escola de Futebol de
Ataque, chamemos-lhe assim, importa advertir que tal não implica que se
descure a Organização Defensiva da equipa, implica sim, que esta tal como a
Organização Ofensiva, e os Momentos de transição, sejam equacionadas em
função das intenções que temos para o nosso jogar.
Fazendo uma síntese das ideias de Pepe Guardiola, podemos considerar o
seguinte:

1. Obsessão de ter a bola sabendo o que fazer com esta:


ƒ Circular para criar desequilíbrios no adversário (tal como sugerido
no Quadro 3).
ƒ Tirar partido dos Extremos em posse.

2. Preocupações aquando da perda da posse ou em Organização


Defensiva:
ƒ Fecho da Equipa (Campo Pequeno).
ƒ Basculações (interacção comportamental da equipa em bloco).
ƒ Assegurar Coberturas Defensivas.

3. Atacar, ponderando a possibilidade de perda da posse de bola,


mas como?
ƒ Jogo Posicional.
ƒ Equilíbrios defensivos assegurados nos primeiros momentos de
construção.
ƒ Coberturas Ofensivas no último terço do terreno.

492
Evidências Conclusivas

ƒ Preenchimento dos espaços interiores.

4. Em construção para iniciar ou dar continuidade, o que fazer?


ƒ PROVOCAR COM BOLA PARA APROVEITAR O HOMEM LIVRE/
PROVOCAR PARA ATRAIR isto é, em construção, o Jogador em posse
conduzir a bola para de seguida jogar no homem livre – repetindo-se esta
acção numa espécie de “efeito dominó”. Uma acção que tem o intuito, de
provocar sucessivas situações de 2x1, o que permite atacar o espaço, tocar a
bola mais facilmente e explorar o espaço aberto disponível para os Extremos.
ƒ Dinâmica que deve, nos primeiros momentos de construção, ser
iniciada por acção dos Defesas Centrais, os quais deverão sair a jogar por
dentro. Uma iniciativa que deve ser equilibrada pelo sector defensivo,
sobretudo, através da acção do Defesa Lateral do mesmo lado, que deve
fechar por dentro.
ƒ Como dinâmica alternativa, a equipa poderá sair a jogar por fora,
mas somente se o Defesa Lateral puder, receber na frente do seu adversário
directo.
ƒ Posicionamento dos Jogadores do sector defensivo:
- Defesas Centrais abertos pelos “bicos” da área.
- Defesas Laterais totalmente abertos e profundos, quase sobre a linha de
meio campo.
ƒ Construir desde trás, implica que os Jogadores do sector defensivo
revelem, muita qualidade em posse de bola. Por isso Pepe Guardiola afirma
“Gastem dinheiro com os defesas, sobretudo com os centrais!!”. Face ao teor
da presente pesquisa, alertamos, para a necessidade de na Formação, se
conceberem perfis para estes Jogadores condizentes com tal funcionalidade, e
dos processos permitirem o exponenciar de tal funcionalidade e adaptabilidade.

5. Quando temos bola, a nossa preocupação tem de ser os


adversários e nunca os colegas. O que é que isto implica?!
ƒ “Obsessão” pelo Jogo Posicional: com base num ajustado Jogo
Posicional, cada Jogador possui um mapa do jogar da equipa, que lhe permite

493
Evidências Conclusivas

a qualquer momento ter a noção de onde se encontram os colegas. Como tal,


esta deixa de ser uma preocupação, passando assim, a ter apenas de gerir o
posicionamento dos adversários, esse sim imprevisível à partida.

6. A importância do TERCEIRO HOMEM:


ƒ Trata-se de uma subdinâmica comportamental relativamente
simples, que se revela contudo difícil de contrariar por parte de quem defende,
revelando-se determinante na construção de situações de finalização.
ƒ Consiste no seguinte; quem está em posição avançada em relação
à bola pede para dar de caras, com quem está de frente para o jogo.
ƒ Os Jogadores de costas para o jogo, (fruto da posição relativa face
à bola) funcionam como “estações de ligação” com os colegas que se
encontram de frente para o jogo. “Estações de ligação” ou “pontes”49 muitas
vezes criadas para o “homem livre”, tendo por base a subdinâmica “provocar
para atrair”.
ƒ Por exemplo, o Pivot está em posse e o Ponta de Lança pede a
bola não com a intenção de ficar com ela e rodar, mas para dar a um dos
Médios Interiores.
ƒ Ainda relativamente a esta ideia do TERCEIRO HOMEM, devemos
ter em consideração tudo o que foi referido, no ponto 4.7.1.6.2, da presente
dissertação; “Criatividade, com TRÊS ou mais, ainda é melhor?!”, em que
evidenciamos a importância do terceiro elemento para o emergir da
criatividade, com base no problema dos três Corpos apresentado por Poincaré.

7. Criar Condições para os Extremos implica:


ƒ Atender às subdinâmicas subjacentes ao “homem livre” e ao
“TERCEIRO HOMEM”, as quais não raras vezes são complementares.

49
Consideramos mais ajustado a adopção do termo instâncias em alternativa a “estações de
ligação” ou “pontes”, por contemplar a imprevisibilidade contextual e consequente adequação
comportamental, que caracterizam o Jogo.

494
Evidências Conclusivas

ƒ São estas subdinâmicas que proporcionam condições facilitadores


e mais propensas, para jogar apoiado desde trás, para jogar triangulado50, e
para tocar a bola de modo a permitir que esta vá de dentro para fora, até aos
Extremos.
ƒ Extremos devem encontrar-se bem abertos e em ponta, para que
a partir das subdinâmicas referidas, usufruam de mais espaço para receber e
encarar a baliza adversária de frente.
ƒ Caso o Extremo pontualmente procure posições interiores, deverá
ser o Defesa Lateral do mesmo lado, a garantir a máxima largura, de modo a
proporcionar que a equipa possa ter sempre alguém por fora, bem aberto e
muita gente por dentro.
ƒ O facto da bola entrar num dos Extremos, não implica que o outro
deva fechar. Muitas das vezes deverá continuar aberto, dependendo do
seguimento dado á bola; linha de fundo (fecha) ou espaços interiores (mantém-
se aberto).

8. Jogo Posicional:
ƒ Em cada momento da Organização Ofensiva, e em função da posição
da bola, cada Jogador tem que saber como se posicionar e em que espaços
deve jogar.
ƒ Entenda-se a posição de um Jogador não como um ponto do espaço,
mas uma área desse espaço.
50
Jogo triangulado: apesar de ser apresentado no documento que se encontra em anexo este
conceito, e de nós já anteriormente o termos utilizado, achámos que sendo o triângulo uma
figura geométrica fechada, tal como o losango, mais do que triangulado, o jogo deverá ser
sobretudo, «Dabliguado» (W), ou seja, consubstanciado por interacções geométricas, que
respeitando a importância da estruturação dinâmica em diagonais, permitem a formação de
triângulos imaginários abertos. Que como tal por não terem vértices unidireccionais e de
convergência única, comportam e conferem possibilidade de abertura às condições diversas
que o jogar apoiado pode expressar, não estereotipando, consequentemente o modo como a
equipa toca a bola e a faz chegar aos Extremos. Relembramos que para a Periodização
Táctica, e como tal para a Periodização à La Long, o Jogo é; “muito mais a arte das
trajectórias, do que a teoria dos alvos” (B. Oliveira et al., 2006), daí a relevância do jogar
«Dabliguado» e da noção de instâncias.

495
Evidências Conclusivas

ƒ Assegurar sempre posicionamentos diagonais em relação à bola.


ƒ Assegurar Defesas Laterais e Extremos em linhas diferentes.
ƒ Assegurar sempre gente bem aberta (Campo Grande e Largo).
ƒ Gestão oportuna do “timing” de saída do Jogador quando funciona
como “ponte” para o “terceiro homem”, isto é, quando vem pedir para dar de
caras.

9. Relutância relativamente a Trocas Posicionais:


ƒ A existência de trocas posicionais, pode hipotecar uma lógica crucial,
que consiste, em a equipa dever ter sempre muita gente por dentro e alguma
gente por fora. Para deste modo poder, circular a bola explorando os
Extremos, aparecer na área de frente e ainda para defender se houver perda
da posse.
ƒ Deve evitar-se com base neste entendimento, a entrada dos Médios
Interiores no espaço do Extremo quando este baixa. Os Médios Interiores
devem jogar por dentro para “tocar”, para fazer coberturas ofensivas aos
extremos e para atacarem a área. Não devendo também baixar a pedir a bola
aos Jogadores do sector defensivo, para evitar ficar com toda a equipa
adversária entre a bola e a baliza). No mínimo, os Médios Interiores devem
procurar receber entre a linha avançada e a linha média adversárias, devendo
à semelhança dos Extremos, revelar como qualidade o facto de serem
pacientes. Estas sugestões, fazem todo o sentido, sobretudo tendo em
consideração o que referimos anteriormente, quando evidenciamos que a
dinâmica desejada pressupõe que os Médios Interiores surjam como “homem
livre” ou “terceiro homem”.
ƒ Esta relutância, relativamente a trocas posicionais, quanto a nós
revela-se pertinente, não somente pelo exposto acima, mas também, porque
com base neste pressuposto, se depreende a importância de desde idades
precoces, os jovens se Aculturarem, numa Lógica de Especificidade Precoce, à
Especificidade funcional de determinada posição. Por este motivo, defendemos
que a Especificidade Posicional deve ser exponenciada desde idades
precoces. O que implica, da parte de quem lidera os processos de Formação,

496
Evidências Conclusivas

um conhecimento ajustado do Jogo, e de modo particular de um determinado


jogar, para que seja capaz de definir um perfil para cada posição, condizente
com a dinâmica desejada, e ainda, a capacidade de detectar, face às
características que cada jovem revela, ou pode vir a revelar, qual a posição que
mais se lhe ajusta. “O futebolista talentoso, além de confiança, necessita de
uma posição onde as suas virtudes se sintam cómodas. Creio nos especialistas
antes de acreditar nos polifuncionais” (J. Valdano, 1998, pp. 26).
ƒ Não obstante, o que acabamos de salientar, importa evidenciar
igualmente que há Talentos, cuja singularidade é serem polivalentes. Nesses
casos há que explorar essa qualidade, competindo contudo a quem dirige o
processo identificá-la. Como se pode ler no Anexo 6, Pepe Guardiola, não
gosta “de trocas posicionais. Ainda que face às características de um ou de
outro jogador possa tê-las em conta”. O Modelo de Jogo deverá é ter abertura,
capaz de lhe permitir expressar a polivalência que alguns Jogadores
manifestam como singularidade.

10. Pivot, o «FAROL», o mais Posicional de Todos, como deve jogar:


ƒ Muito posicional.
ƒ Sempre a solicitar a recepção da bola.
ƒ Garantindo sempre posicionamentos diagonais relativamente à bola.

Apesar de Pepe Guaridola, não se pronunciar sobre a Especificidade


funcional dos Guarda-Redes, entendemos que estes não deverão ser
ignorados na construção de um jogar. Uma equipa é, constituída por onze
Jogadores, e não dez mais um que se limita a acções de defesa da baliza.
Deste modo, entendemos que o Guarda-Redes deverá ser parte integrante da
Organização Colectiva nos quatros Momentos de Jogo. Face ao esboço de
jogar que temos vindo a fazer apologia, consideramos que o conveniente
entendimento da Especificidade funcional deste Jogador, implica de modo
contrastante com o habitual, que:
ƒ Face ao perfil pretendido, se pondere como treinar os Guarda-Redes,
em função de um determinado jogar. O que implica, reajustar a Metodologia a

497
Evidências Conclusivas

adoptar para o treino destes Jogadores, sem que esta ignore o caminho que se
pretende que seja seguido, pelo Guarda-Redes e pela equipa.
ƒ Aquando da análise dum Jogo (Competição), se identifique qual a sua
influência e como potenciar as suas acções no jogar da equipa.
ƒ Todos os intervenientes no processo tenham um entendimento comum,
da funcionalidade pretendida para este Jogador (preocupação que deverá ser
extensível às demais posições).
ƒ A exponenciação do Talento se verifique à La Long, num processo que
se desenvolve durante 10 anos ou mais, para que a manifestação efectiva de
Talento se verifique antes dos 28 / 30 anos, idades em que convencionalmente
se diz, serem os Guarda-Redes “confirmados”.
ƒ A adopção de situações de treino, seja condizente, com a funcionalidade
desejada para este Jogador, nos quatro Momentos de Jogo, de modo a que a
sua intervenção, nesse jogar seja devidamente contextualizada e se evidencie
como algo de concreto e intencional no jogar da equipa, capaz de se
manifestar como um saber fazer e também como um saber sobre um saber
fazer.
ƒ As situações de treino, sejam situações reais, isto é, fractais de um
determinado jogar, em que a propensão para a intervenção do Guarda-Redes
se encontre potenciada. Estas situações deverão permitir:
- Um ajustado entendimento da relação mente hábito.
- Muitas repetições (propensões), devidamente orientadas.
- Confronto com oponentes.
- Tensão emocional o mais aproximada possível à verificada na Competição.
- Jogo de Posição.
- A presença do Prazer.
ƒ Se coloque o primado da sua intervenção e Aculturação na decisão.
Tendo para isso, de ser capaz de em cada instante analisar e efectuar uma
leitura do Jogo correcta, e balizada pelo jogar de que é parte prestativa. Deste
modo, e pela posição “privilegiada” que têm em campo, serão capazes de
orientar bem os restantes Jogadores.

498
Evidências Conclusivas

ƒ Se reconheça que o Talento de um Guarda-Redes se manifesta pela


qualidade de antecipação que apresentam, a qual se encontra alicerçada no
que foi referido no ponto anterior. Um Guarda-Redes talentoso, utiliza para as
suas acções um critério diferente, não é condicionado pelo atacante,
condiciona-o, por acções como; não se atirar, manter a percepção da situação,
esperar pelo que o Jogador vai fazer, condicionar essa acção pelo seu
posicionamento e postura, e agir em conformidade. Em suma, dominam os
timings das suas intervenções, por isso, as acções realizam-se no momento
certo para interceptar a bola.
ƒ A sua acção não se restrinja à defesa da baliza, assim, além de
possuírem qualidades inerentes à especificidade das suas acções em Jogo,
deverão evidenciar qualidade a jogar com os pés, para que quando a equipa se
encontra em posse, seja mais uma solução de passe, e para que a equipa
possa através da sua intervenção ter uma grande possibilidade de dar
continuidade a essa posse de bola.
ƒ A sua acção previna situações perigosas. Temos salientado que numa
Escola de Ataque, a Cultura de Risco se encontra subjacente. Por este motivo,
entendemos, que nas equipas com tais aspirações, quando a equipa se
encontra em Organização Ofensiva, este Jogador deverá jogar adiantado, pois
ao fazê-lo, possibilita que estas equipas, com pretensões a jogar no meio
campo adversário, o façam com maior segurança, pois apesar de
proporcionarem a outra metade do campo para o adversário explorar aquando
da conquista da bola, esses cerca de cinquenta metros, são encurtados pelo
posicionamento e correcta leitura das instâncias do Jogo, por parte do Guarda-
Redes.

Além dos referenciais de acção evidenciados, poderíamos sugerir muitos


outros, contudo, o que consideramos mais importante reter é, que o Guarda-
Redes deverá ter um padrão comportamental condizente com Princípios
Específicos de um determinado jogar. Como tal, a sua funcionalidade num
jogar deverá ser contemplada nos quatro Momentos de Jogo, e como é óbvio,

499
Evidências Conclusivas

na operacionalização dos mesmos, devendo essa Aculturação efectuar-se


desde idades precoces.

Neste ponto, importa contudo ter em consideração que tanto ou mais


relevante, que o lado conceptual do jogar é, a operacionalização do mesmo. A
este nível a intervenção do treinador é, determinante. Conforme Vítor Frade
(2003 in Martins, 2003, cit. por M. Silva, 2008, pp. 51) esclarece, “o treinador
assume-se no «no comando exterior ao sistema regulado» ou seja, é o
responsável por conceber e regular a evolução do projecto de jogo da equipa.”
Daqui se depreende, que o jogar a que se aspira é, inicialmente um projecto do
treinador, o qual tem por tarefa transmitir e cativar os Jogadores, para que o
assimilem e expressem como uma Cultura comum. Ainda de acordo com o
mesmo autor “…«o papel do treinador é para interferir» no sentido de
«catalisar» a concretização do processo.”
Pode deste modo inferir-se que compete ao treinador um papel de enorme
relevância, na liderança do processo. Motivo pelo qual, consideramos
pertinente fazer referência a uma entrevista de José Mourinho: “PRIMEIRA
LINHA” publicada pelo Jornal de Negócios de 30 de Maio de 2008, a qual pode
ser consultada em anexos (Anexo 8), encontrando-se sublinhados os aspectos
que consideramos mais relevantes da mesma.
Com base nas declarações deste treinador, procuraremos evidenciar um
conjunto de referências para a condução de processos de treino no Futebol,
cujos objectivos são, liderar tem em vista o sucesso. José Mourinho, foi já alvo
de um estudo de caso, na temática da liderança, tendo deste resultado uma
obra; LIDERANÇA - As lições de Mourinho, da autoria de Lourenço, L., &
Ilharco, F. (2007), e cuja consulta é por nós aconselhada, não somente, por
efectuar uma análise em complexidade da temática em questão, mas também
por efectuar uma análise bastante pormenorizada do processo de liderança de
José Mourinho. Aquilo que procuraremos fazer de seguida é, com base na
entrevista acima referida, efectuar um micro estudo de caso, que nos permita
reconhecer algumas das bússolas que o timoneiro (treinador) deve ter em
consideração na condução do processo, para que o caminho lhe permita

500
Evidências Conclusivas

chegar, onde efectivamente pretende, isto é, ao futuro a que aspira. A


informação providenciada pelos estudos de caso, deve constituir-se como uma
fonte de informação a considerar em estudos como o presente, tal como
salienta M. Silva (2008). Segundo Vouga (2005), trata-se de estudos que
recorrem a métodos qualitativos, que através das descrições que apresentam e
das conclusões que deles advêm, se podem considerar formas válidas de
pesquisa científica.
Como ponto prévio importa salientar, antes de efectuarmos o levantamento
dos aspectos mais relevantes da entrevista que se encontra em anexos (Anexo
8), e sendo a temática dominante do presente estudo, o Talento, que a
qualidade da liderança é uma dimensão determinante para o Talento se
expressar. Conforme afirma José Mourinho (Anexo 8), “um jogador inserido
numa equipa boa e estruturada consegue, em regra, exteriorizar as suas
capacidades. Mas se esse mesmo jogador for inserido num grupo caótico,
anárquico, sem níveis de confiança e exigência e sem uma boa liderança, ele
acaba por ser, normalmente, um jogador fracassado cuja qualidade acabará
por ser posta em causa. É preciso criar condições de sucesso para que as
pessoas possam exteriorizar as suas competências.”
Face ao exposto consideramos pertinente atender aos seguintes aspectos,
em torno do conceito (operativo) de liderança:
ƒ Aplicabilidade prática, sem ignorar a importância de conhecimentos
teóricos: “A minha liderança é um caso muito prático, muito objectivo e
direccionado (…) Eu acho que a teoria está ligada à prática (…) Eu acho que é
uma relação intima. Sempre me preocupei em exercer a minha liderança (…) E
fazê-lo de uma forma natural e espontânea e não teorizada. A minha liderança
é no terreno. Não digo que este campo mais teórico (…) seja novo para mim,
porque leio e estudo sobre o tema. Mas a teoria foge um bocadinho daquele
que é o meu exercício da liderança.” Torna-se assim evidente, que a liderança
é um processo eminentemente operativo, que contudo carece de uma
aproximação efectiva e contextualizada entre a teoria e a prática. Uma vez que
é nesta última, que se centra a actividade do treinador. O qual “tem de ser na
realidade o indivíduo que aproxima tudo que é favorável ao crescimento

501
Evidências Conclusivas

qualitativo do processo, no sentido do futuro a que se aspira” (Vítor Frade,


2003 in Martins, 2003, cit. por M. Silva, 2008, pp. 51). “Para aqueles que têm
um martelo como ferramenta, todos os problemas são pregos” (Markn Twain,
s/d, cit. por J. Bento, 2004, pp 58). O problema é que a resolução dos
problemas do Futebol, não passa pela loja das ferragens, mas sim no terreno,
implicando muitas outras “ferramentas”.
ƒ Processo Contextualizado: “Sempre me preocupei em exercer a minha
liderança de uma forma muito específica consoante o local de trabalho, a
população alvo e os objectivos. (…) acho que o mais importante é não
perdermos a noção de que a liderança se exerce num determinado grupo e os
grupos são todos diferentes, bem como os elementos de cada grupo também
são diferentes. O mais importante é estudarmos ao pormenor aqueles que
lideramos para que a nossa liderança possa ser mais eficaz.” Depreende-se
deste modo, que o contexto em que o jogar se constrói, implica o conhecimento
de cada uma das partes que o constitui, e o entendimento do Modelo enquanto
realidade aberta, ainda que na sua estrutura matricial inalterável. O Modelo de
Jogo revela-se assim, uma circunstancialidade, que como tal se expressa num
determinado contexto, cuja identificação em plenitude é um “impossível
necessário” (J. Bento, 2004). Trata-se duma impossibilidade, uma vez que não
se conhece por inteiro as realidades que nele se encontram implicadas, como
por exemplo os Jogadores, e duma necessidade imprescindível, pois é através
do conveniente e não convencional entendimento de Modelação, ou seja é
através da Metamodelização (Paulo Cunha e Silva, Anexo 4), que se torna
possível configurar uma lógica à volta da qual o processo vai existir, acontecer
e evoluir. “O Modelo é qualquer coisa que não existe em lado nenhum mas que
contudo a gente espera encontrar” (V. Frade, 2006).
ƒ Autenticidade e Coerência: “Sinto-me um líder. (…) Aqueles que não
se sentem assim, dificilmente serão bons treinadores. No meu caso, eu
costumo dizer que em campo sou eu próprio. Não tento ser aquilo que não sou,
não tento pôr em prática teorias que alguém um dia desenvolveu. Tenho que
ser eu próprio e exercer a minha liderança de forma natural. Aqueles que

502
Evidências Conclusivas

trabalham comigo sabem que eu sou muito espontâneo na minha forma de


liderar. (…) É muito importante que a nossa identidade se mantenha.”
ƒ Resiliência alicerçada no Optimismo: “Encaro os problemas que o
dia-a-dia me coloca na profissão (…) Não digo com naturalidade mas com um
sorriso, porque há problemas que são de facto sérios, mas encaro-os sempre
de frente e tento solucioná-los. (…) Só tenho forças. E a tendência é para
melhorar. E quando tenho alguma fraqueza, tento escondê-la.” O que implica
um conhecimento profundo e sincero, das potencialidades e debilidades por
parte de cada líder. “Para os pessimistas os lírios pertencem à família das
cebolas. Para os entusiastas optimistas as cebolas pertencem à família dos
lírios.” (Edgar Wallace, s/d, cit. por, J. Bento, 2004, pp. 186).
ƒ Aculturação Emocional, para dar resposta e não sucumbir à
elevada Tensão existente no Rendimento Superior: “A vida de treinador,
como eu a vivo, é de uma responsabilidade e pressão enormes. E eu tenho
que estar preparado para essa pressão. Li recentemente umas coisas de
Daniel Goleman que são interessantes (…) a minha vida é uma constante
tensão, desde os treinos, os jogos, os media e a sociedade. E não é fácil gerir
tudo isso. Por isso, revejo-me muito mais numa pessoa que é emocionalmente
resistente, preparada e adaptada para agir em situações difíceis”. Foi por nós,
já suficientemente evidenciado, nesta dissertação o quanto é pertinente a
Aprendizagem emocional assim como a precocidade com que esta se verifica,
motivo pelo qual nos escusaremos a fazer mais comentários sobre, a
importância da Inteligência Emocional no Futebol.
ƒ Liderar com Prazer: “Não sei como é que me hei-de qualificar. Mas
aquela que é a minha motivação é fazer uma coisa de que gosto muito que é
ser treinador.” Também já foi por nós suficientemente evidenciada, a
importância do prazer no Futebol, e a influência que o prazer exerce sobre o
alcance de desempenhos de excelência.
ƒ InCorporar a Cultura de Risco e um Competidor Ambicioso:
conforme afirma José Mourinho (Anexo 8) ser treinador é “uma profissão com
uma natureza muito competitiva, tal como a minha natureza. Gosto de competir
e de ganhar, gosto de correr risco e de medir forças. Nesse sentido, sou

503
Evidências Conclusivas

fundamentalmente uma pessoa que vive no seu habitat natural. (…) Sinto-me
cada vez mais forte perante a pressão. Gosto de desafios altos. Se os outros
não trouxerem pressão à minha vida, eu vou à procura dela. Não quero nem
gosto de desafios pequenos. Por isso, o meu próximo desafio vai ser daqueles
em que todos dirão: «ele vai ter que ganhar». E é esse o nível de expectativa
que me alimenta e me fascina».” Depreende-se deste modo, que tal como os
Jogadores, também os treinadores, para chegarem e se manterem a TOP, têm
de se revelar competidores ambiciosos e adoptar uma Cultura de Risco, para
que possam dar uma conveniente resposta, ao lado adrenalinico mais
emergente da Competição, e que no fundo, confere sentido à actividade de um
treinador. “E é esse o nível de expectativa (e de excitação) que me alimenta e
me fascina (…) É viciado na adrenalina? Sou. É o meu habitat natural. É a
minha própria essência.” Face ao exposto, os treinadores lideres não deverão
desconsiderar, o que é referido no anúncio da GALP, no presente momento em
que decorre o Europeu de Futebol; “a ambição é uma energia positiva”.
ƒ Aprender Sempre, Não Estagnar, Evoluir sustentado em Princípios
coadunando-os com o contexto: “Vamos sempre aprendendo. Mas
fundamentalmente, acho que o mais importante é não perdermos a noção que
a liderança se exerce num determinado grupo e os grupos são todos
diferentes, bem como os elementos de cada grupo também são diferentes. (…)
O «eu» treinador do Porto era diferente do «eu» treinador do Chelsea e o «eu»
treinador do Chelsea será diferente com toda a certeza do próximo treinador
que terei de ser. É muito importante que a nossa identidade se mantenha. Mas,
caso a caso, é preciso analisar bem e definir claramente os princípios que
serão mais importantes para que possamos ser líder eficaz. (…) A liderança é
depois algo que se vai aprendendo a exercer.”
ƒ Munir-se de Conhecimentos e Competências Multidisciplinares:
“Estamos numa época em que o conhecimento é importante. E é importante
que as pessoas sejam competentes, tenham muita qualidade e estejam
focadas naquela que é a sua missão. Quanto maior for o nível de
conhecimento e de competências, mais fácil será exercer a liderança. (…)
Conhecimento gera competência e entre esta e a liderança eu acredito que não

504
Evidências Conclusivas

há uma grande distância. (…) Numa era de conhecimento, ninguém se pode


limitar única e exclusivamente à sua área de intervenção.” Evidenciando deste
modo, a necessidade dos treinadores se munirem de conhecimentos de
diferentes âmbitos, para que o exercício da sua profissão se exerça com
competência. José Mourinho, corrobora ainda o lema postulado por Abel
Salazar, adoptado e adaptado por V. Frade (1985) para o Futebol, por nós já
apresentado e que sugere, que “quem só sabe de Futebol, nem de Futebol
sabe”, quando afirma, “que um bom treinador não pode perceber só de futebol”.
ƒ Tranquilidade e Concentração no Exercício da Actividade: “Preciso
de tranquilidade, de concentração.” O que face às exigências verificadas a
nível do Rendimento Superior, implica um isolamento não autista, isto é, sem
perda de percepção da realidade envolvente. Ainda que tal atitude de
alheamento, seja por vezes deturpada e signifique, sobretudo no nosso país,
marginalização, ostracismo e consequentemente um contexto pouco propenso
à manifestação do potencial. Independentemente da pressão verificada, para
que tal atitude se altere, os lideres terão de ter muito bem definidas quais as
suas prioridades e aquilo que lhes confere a devida estabilidade emocional.
“Por isso, fecho-me um bocado nesse meu mundo que é a minha família e os
meus centros de interesse. A minha vida social é extremamente limitada, para
não dizer nula. Mas custa-me que se pense que em Portugal não há pessoas
competentes, por que as há. Mas para que possam sobressair têm que estar
bem integradas.”
ƒ Clarividência Conceptual e no Fazer: “Enquanto treinador, sou uma
pessoa fácil. É muito, muito fácil trabalhar comigo. Não porque seja permissivo
ou porque não seja ambicioso. Mas sim porque comigo é tudo muito claro e
objectivo, sem margem para dúvidas. Por isso, basta que as pessoas tenham
disponibilidade e abertura para «me seguirem».”
ƒ Aceitação Tácita e não impositiva aos Colaboradores: “Eu não digo
para me seguirem, mas as pessoas seguem-me e isso é uma diferença
fundamental. Eu não exerço poder. Se lidero um determinado grupo, faço-o
porque esse grupo me aceita de facto enquanto líder e não por exercer o poder
que me é atribuído.”

505
Evidências Conclusivas

ƒ Líder e Treinador a tempo inteiro, porque a Vida é Inteireza


Inquebrantável: “Eu não vejo futebol. Eu analiso o futebol. Não consigo ser
apenas um espectador.” A Vida é um todo, como tal não consegue separar a
Vida pessoal da profissional, tal como também evidenciam Lourenço & Ilharco
(2007).
ƒ Saber Gerir e Provocar Conflitos: “Não consigo explicar de forma
muito objectiva como é que faço a gestão dos conflitos porque muitas vezes
sou eu que os provoco. (…) só conheço uma maneira de gerir conflitos: é
sendo honesto na análise e nas decisões, ser equidistante. Quando chego a
um clube das primeiras coisa que prometo é a honestidade.” Esta honestidade,
como se depreende assenta na coerência e equidade. Note-se, que a
equidade, não implica tratar todos por igual, mas sim ser de igual modo
coerente para com todos, respeitando e atendendo à singularidade de cada
um. Conforme esclarece Araújo (2008), o segredo do sucesso num processo
de liderança, não passa por tratar todos por igual, mas sim com justiça; “Fair,
but not equal”. De realçar ainda, que até na operacionalização da liderança,
José Mourinho não ignora a importância da Especificidade. “No Chelsea
costumava fazer um exercício que eu sabia que só funcionava num quadrado
de 30x30 e com grupos de 8 jogadores mas eu fazia quadrados de 20x20 com
grupos de 12. Sabia que o resultado ía ser catastrófico, mas era importante
criar dúvidas e tensões.”51
ƒ Perceber quem são os Verdadeiros Aliados e os Elementos mais
Influentes em cada Grupo: “Quando existe um capitão instituído e aceite pelo
grupo, que tem carisma e uma relação especial com os adeptos. Não vejo
necessidade de o treinador chegar a modificar o que está a funcionar bem. No
Chelsea havia um capitão instituído e aceite por todos de forma equilibrada, o

51
Disciplina Táctica: é o conceito adoptado por B. Oliveira et al. (2006), para designar o modo
como é contemplada a subdimensão, liderança na operacionalização de um jogar, de acordo
com a Periodização Táctica. Para um esclarecimento conveniente deste conceito, sugerimos a
consulta da obra de B. Oliveira et al. (2006), na qual são dados exemplos que se reportam ao
modo de operacionalizar esta subdimensão da fenomenotécnica do treinar, que face ao
desenvolvimento do mesmo poderá implicar, uma RePeriodização do jogar, no sentido de
atingir os objectivos pretendidos, conforme também se esclarece na obra aconselhada.

506
Evidências Conclusivas

John Terry. Mas eu tinha também os meus capitães. No futebol há sempre o


capitão que leva a braçadeira e o capitão que é a face oculta do treinador
dentro do grupo e disso eu não abdico. Nem sempre o da braçadeira é o meu
capitão. E em caso de divergência o meu capitão é sempre mais importante
que o capitão oficial.” Para que o treinador consiga, detectar quais os
Jogadores com perfil, para serem a extensão da sua liderança no seio do
grupo, têm tal como já evidenciamos, de conhecer muito bem cada Jogador,
para além do habitual capitão, ter um Capitão ou mais Capitães que sem
braçadeira o auxilie nas funções de liderança.
ƒ Estabelecer Objectivos Ambiciosos, Mas Realistas: “Um bom líder é
aquele que atinge objectivos. Mas devemos formulá-los de acordo com o
potencial do nosso grupo. Os objectivos têm que ser ambiciosos mas
atingíveis.”
ƒ Conferir Tempo aos Intervenientes no Processo para se
Aculturarem ao Líder, tendo em vista Sempre o Melhor para o Grupo: “…
temos que dar oportunidade às pessoas para provarem que têm capacidade
para se adaptarem a uma nova filosofia, a uma nova liderança, a um novo
estilo diferente do antecessor. Eu gosto de o fazer, sentindo nas mãos o poder
e autonomia de mudar se as pessoas revelarem que não têm essa capacidade.
É para mim doloroso chegar ao final da época desportiva e dizer a um jogador
que não conto mais com ele. É doloroso, mas faço-o quando tenho a convicção
de que é o melhor para o grupo e para cada instituição.”

Como se torna evidente, face ao exposto ao longo do presente estudo,


muitas das competências que um líder deve evidenciar no exercício das suas
funções, podem ser potenciadas pelos processos de Formação de Jogadores.
Competências, que ao serem adquiridas em idades ainda precoces, permitem
em nosso entendimento, uma construção mais robusta dos Talentos, mas não
menos importante, permite ainda a exponenciação de um conjunto de
valências, que poderão ser-lhes úteis, aquando do abandono, nomeadamente,
quando optam por enveredar pela carreira de treinadores.

507
Evidências Conclusivas

Depois de efectuadas as referências às ideias, que quanto a nós poderão,


Corporalizar um jogar de qualidade e também, as que poderão contribuir para
uma condução (liderança) bem sucedida do processo que permite a sua
expressão, não devemos ignorar, que para que possa ser possível dar Vida a
uma Concepção de Jogo, desde idades precoces, torna-se determinante o
respeito por duas condições fundamentais; uma operacionalização em
Especificidade (Precoce) respeitando as premissas do Morfociclo Padrão (ver
Quadro 1), e a necessidade de criar Úteros Artificiais, capazes de «parir»
jogares e Talentos de qualidade.
Não queremos concluir esta dissertação, sem evidenciar, que uma das
potencialidades e riquezas das lógicas que contemplem a Especificidade
Precoce, como tal operacionalizadas de acordo com o postulado da
Periodização Táctica, no caso da Formação Periodização à La Long, passa
pelo reconhecimento da possibilidade de através de um processo padronizado,
respeitando o Morfociclo Padrão já por nós apresentado, e balizado por
determinados referenciais de qualidade, permitir o “parir” de diferentes jogares
e Jogadores aspirantes ao Rendimento Superior, que contudo podem
expressar de forma diversa Princípios de Jogo, que no nível macro são
idênticos, mas dos quais emergem, em níveis mais micro, nuances Específicas
de uma determinada Cultura de Jogo, que deve através da sua
operacionalização permitir a respectiva aquisição ou InCorporAcção paulatina
de modo a que, o que era inicialmente um esboço de um jogar, adquira
contornos de complexidade cada vez maiores e se revele efectivamente como
um jogar de qualidade.
Além destes aspectos metodológicos, torna-se igualmente importante para o
parto de jogares e Talentos de qualidade, o respeito pelo ser que joga, ou seja,
pela Criança, e pelos seus direitos de cidadania. Após o presumível término da
presente pesquisa, tomamos conhecimento de um artigo de Carlos Neto,
publicado na revista Notícias Magazine, de dia 1 de Junho de 2008, que
marcava a data correspondente ao Dia Mundial da Criança, e que se revelou
de enorme pertinência. Motivo pelo qual, o remetemos para os anexos (Anexo

508
Evidências Conclusivas

7) onde se encontram sublinhados os aspectos mais pertinentes e com maior


transfere para o presente estudo.
Trata-se de um artigo, que corrobora, através da opinião de um especialista
na área, muito do que referimos na presente dissertação acerca da
necessidade de criar, Úteros Artificiais, capazes de colmatar o empobrecimento
dos contextos educativos a que as Crianças são submetidas nos nossos dias.
Conforme se pode ler (Anexo 7), o Artigo 31º “que consagra o direito da
criança a brincar e a actividades de lazer, assume uma importância vital num
tempo de grandes mudanças sociais e de tendências alarmantes de
normalização de atitudes, pensamentos e acções.” Por este motivo, Carlos
Neto ao salientar ser “preocupante a redução de oportunidade de jogo
(espontâneo ou exploratório)”, reforça a importância de brincar e de jogar numa
época que tende para a homogeneização, para o eclipse da família enquanto
instância educativa, e para alterações muito significativas nas paisagens
urbanísticas. “É um problema não só do sistema educativo mas também dos
estilos educativos fomentados pelas famílias e dos constrangimentos
existentes na vida urbana.” Inequivocamente, estamos perante um problema
social com profundas repercussões nos processos educativos, logo também na
Formação de Jogadores. Uma vez que como evidenciamos anteriormente, o
Modelo, no caso o Modelo de Jogo, e a sua operacionalização são
condicionados pelo contexto, estes não podem ignorar tais problemas sociais,
devendo deste modo, reconhecer no contexto em que se manifestam quais os
constrangimentos que podem hipotecar os seus intentos. Ao fazê-lo, deparar-
nos-emos com a necessidade de recriar nos clubes, aquilo que sugerimos
serem os Úteros Artificiais.
Partindo do pressuposto, de que a “experiência informal de jogo e aventura
na infância tem efeitos comprovados no desenvolvimento do sistema
morfológico, orgânico e nervoso.” E fazendo nossas as palavras de Carlos
Neto, “defendemos que uma criança saudável é aquela que tem os joelhos
esfolados por correr, perseguir, saltar, cair, lançar, agarrar, pontapear, lutar (a
brincar), trepar, nadar, equilibrar-se, sujar-se, jogar futebol, etc”.

509
Evidências Conclusivas

“Voltávamos para casa cobertos de lama, depois de cada sessão. Sinto-me


feliz quando me lembro de como chegava a casa todo sujo, por ter estado a
jogar à bola, e a minha mãe me mandava tomar banho (…) Gostava de ver a
água suja a escorrer-me pelo corpo.” (Pelé, 2006c, pp. 37). Em suma, a
Criança é saudável quando se liberta da lógica maquínica e tem a possibilidade
de experienciar um conjunto de vivências que lhes permitam crescer de facto, e
dar valor à Vida.
No seguimento, Carlos Neto realça a necessidade de uma “mudança de
paradigma”, que implica a necessidade de adoptar “uma nova cultura”, que
promova a qualidade de Vida das populações e proporcione as respostas
adequadas aos problemas que se colocam às sociedades actuais. Referindo,
que é nos dias de hoje uma preocupação crescente em várias cidades do
mundo, a ponderação de políticas publicas para a infância e para a vida
familiar, com o intuito de incrementar o nível de qualidade de vida nos centros
urbanos.
Não se reportando de forma concreta ao Futebol, deixa implícita a
necessidade de criação de estruturas análogas, àquilo que sugerimos serem os
Úteros Artificiais, as quais têm por objectivo, “promover o jogo e a aventura na
infância e na juventude”. No caso dos Úteros Artificiais, onde se operacionaliza
atendendo a uma lógica de Especificidade Precoce, a promoção de tais
intentos deve fazer-se, tendo como referencial um jogar de qualidade.
Não obstante, a necessidade de reestruturação das estruturas e dos espaços
onde poderão ser recriadas tais estruturas, ou de modo particular os Úteros
Artificiais, é salientado por Carlos Neto a necessidade de algo mais. Essas
reestruturações são bastante profundas pois como refere, “implicam a
existência de uma nova filosofia politica e atitude cultural”. Analogias?! Muitas e
todas elas pertinentes, em nosso entendimento. Assim, para além do Útero
Artificial, é necessário um Espírito muito peculiar, que Cruyff (2002) classifica
como o “espírito primogénito” do Futebol, isto é, torna-se necessária uma
Placenta Artificial que nutra esses pretensos úteros.
Reportando-nos à Formação no Futebol, a nova “atitude cultural” que urge
ressuscitar implica o reconhecimento de que a “criança tem a sua cidadania

510
Evidências Conclusivas

própria, que passa por uma necessidade fundamental: o acesso ao espaço e a


oportunidades de jogo”. O que como adverte Carlos Neto exige, da parte dos
adultos, o respeito “escrupuloso” pelo que foi referido anteriormente, sob pena
de se hipotecar o desenvolvimento futuro das sociedades e da Humanidade.
“Não esqueçamos que o segredo do homem é a sua própria infância.” (J.
Bento, 2004, pp. 111).
Na continuação do artigo, pode ler-se algo que consideramos muito relevante
e pertinente. “Brincar/jogar é um sonho que se torna realidade mas que
rapidamente se esquece. A criança não tem nada a aprender, o que deveria
era ter condições para manifestar o que sabe.” Carlos Neto alude deste modo,
para o que V. Frade (1979, pp. 8) refere ser, “a evidência duma espécie de
PARADOXO DA APRENDIZAGEM”. Ou seja, conforme esclarece trata-se da
“necessidade de ter já em si uma representação daquilo que apreende!” Tal
entendimento, implica reconhecer e partir do pressuposto, que as Crianças não
são seres inferiores ou «atrasados mentais», mas sim seres que apresentando
défices circunstanciais possuem um enorme potencial, cuja exponenciação
face à plasticidade que os caracteriza, se encontra favorecida. Além disso, as
palavras de Carlos Neto, supratranscritas reforçam a necessidade de criar
contextos propensos, que permitam às Crianças aprenderem, manifestando o
que sabem. Daí que defendamos que o processo de EnsinoAprendizagem no
Futebol resulta, do emergir de uma Cultura AnarcoGregária, em que com base
naquilo que cada um sabe, se aprende, e se coloca em sintonia com o que os
outros sabem.
Importa ainda salientar que tal processo requisita, na sua operacionalização a
contemplação da dimensão aleatória do Jogo, devendo esta contudo encontrar-
se subordinada e condicionada pela futuro a que se aspira, e que deve ser
quantificado à priori, o Modelo de Jogo. “Entenda-se que brincar é conseguir
este diálogo intrinsecamente motivado perante situações de incerteza mas
objectivo na intenção e na direcção tomada” Ou seja, a brincar a brincar,
constrói-se um jogar, e começa o Talento a despoletar.
Face ao exposto, e com base nas extrapolações efectuadas, neste ponto, das
ideias de Pepe Guardiola e de Carlos Neto, o que se pretende com a

511
Evidências Conclusivas

Especificidade Precoce é, Formar Campeões, numa Cultura de Risco,


marcadamente ofensiva, tendo por base um processo que respeite o melhor do
Mundo, as Crianças. Concluímos que o processo de Formação, se balizado por
uma lógica de Especificidade Precoce, por permitir mais facilmente aceder ao
Rendimento Superior, e por respeitar o ser que joga, a Criança, possibilita a
longo prazo ir mais além. Em suma, se devidamente concebido o Futebol é, tal
como o conveniente entendimento da Periodização Táctica, um Fenómeno
AntropoSocialTotal, que «primeiro se estranha e depois se entranha» e … logo,
logo, ganha-se! Talentos, Pessoas e jogares de qualidade!

512
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546
Anexo 1 (Entrevista a Manuel Sobrinho Simões)

10 – Anexos

Anexo 1: Entrevista a Manuel Sobrinho Simões


Director do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do
Porto (IPATIMUP)
Instalações do Gabinete de Anatomia Patológica do Hospital de S. João (Porto)
Entrevista realizada por Jorge Maciel, 1 de Fevereiro de 2008

Jorge Maciel (J. M.) - Uma vez que é uma pessoa que viaja bastante pelo
mundo, qual é a percepção que tem do futebol enquanto fenómeno
social?

Manuel Sobrinho Simões (M. S. Simões) - A percepção que tenho do


futebol não é tanto por viajar pelo mundo. É mais pela leitura dos meios de
comunicação social, pela televisão e, no fundo, pela envolvente mais
comunicacional, porque viajo pelo mundo a trabalhar. O futebol é, de facto, um
fenómeno de dimensão mundial. Vi-o sempre de uma forma muito mais global
do que a de qualquer outro desporto, embora tenha aqui um viés porque sou
um aficionado do futebol e portanto leio provavelmente mais notícias de futebol
do que das outras modalidades. É, indiscutivelmente, o desporto que, em
termos mundiais, mais concilia aspectos desportivos com aspectos comerciais,
assim como com elementos “do” espectáculo e até “da” política.

(J. M.) - Já viu assim alguma situação curiosa ou caricata, algum


episódio, alguma história…

(M. S. Simões) - Não, porque… (lá está, nem tem tempo) exactamente.
Apesar de sair muitas vezes para o estrangeiro, a única vez que me lembro de
ter ido, ou as únicas vezes que me lembro de ter ido ao futebol durante essas
minhas saídas profissionais foram no Brasil, no Rio de Janeiro e em São Paulo,
por causa da vontade de ir ao Maracanã, e para ir ver a final do Campeonato
Paulista.

I
Anexo 1 (Entrevista a Manuel Sobrinho Simões)

(J. M.) - Numa intervenção que tem nas conferências “Despertar para a
Ciência” da fundação Calouste Gulbenkian em 2005, aborda a temática da
Epigenética e da Ecogenética. Diferencia de uma forma muito significativa
estes conceitos ou eles são sinónimos?

(M. S. Simões) - Não de uma forma significativa. A Epigenética é para nós


um conceito mais operacional. A Ecogenética tem a ver mais com a extensão
da Epigenética para níveis que nós sabemos que existem mas que ainda não
conhecemos bem. Isto é, falamos em Epigenética, por exemplo, quando temos
uma enzima que faz a metilação ou a acetilação de uma proteína que, por
exemplo, reprime ou desreprime gene X ou Y, e a gente usa a palavra
Ecogenética quando acha que, quem sabe, por exemplo, as modificações
provocadas pelo exercício físico condicionam alterações citoplasmáticas, que
por sua vez vão condicionar alterações enzimáticas …(é mais especulativo) …
é verdade.

(J. M.) - Lembro-me também que nessa conferência reporta-se aos


exemplos de Einstein, Rosa Mota como talentos de diferentes áreas e que
evidencia que, apesar de serem fruto de uma interacção dos seus genes
com o ambiente, são sobretudo fruto de muito trabalho. Isto é valido para
a generalidade das actividades humanas, incluindo o futebol?

(M. S. Simões) - Acho que sim. Conheço mal algumas actividades artísticas
mais “intuitivas” e não sei portanto se, para criar música, é preciso muito treino.
Tenho a certeza que para fazer música é preciso muito treino. Por exemplo,
para ser um bom pianista é preciso treinar como o diabo. Não sei se para
escrever numa pauta uma coisa genial é preciso muito treino. Se excluirmos as
actividades artísticas “intuitivo-criadoras”, tudo o resto é sobretudo suor. (Mas o
futebol também se engloba aí, se calhar) …tem uma componente. Mas depois
o futebol tem outra coisa que ainda é mais importante para mim do que estes
dois exemplos que lhe dei que é o problema de ser uma modalidade colectiva,

II
Anexo 1 (Entrevista a Manuel Sobrinho Simões)

que põe outros problemas de organização. (uma criatividade mais colectiva…)


exactamente.

(J. M.) - Aqui se depreende então que o talento é sobretudo construção.

(M. S. Simões) - Não tenho dúvida nenhuma.

(J. M.) - Inclusive a importância do treino, da educação, todos os


factores exógenos…

(M. S. Simões) - E isso vai ser cada vez mais óbvio à medida que nós
conhecemos melhor os genes, por estranho que pareça. Isto é, a descoberta
da genética… (a qualidade dos genes) exactamente. A descoberta do genoma
veio-nos permitir perceber muito bem de onde é que nós vimos, em termos de
espécie, em termos de seres humanos … mesmo em termos de origem da
vida, mas não nos ensina nada para onde é que nós vamos.

(J. M.) - Pegando agora na metáfora que utilizou, acha que um talento no
futebol é mais um “Super-homem”, um “Popeye” ou um “Tarzan”?
Lembro que o “Tarzan”, refere, é um homem mas que é criado e treinado
por macacos…

(M. S. Simões) - Mas era muito só o físico, não era? O “Tarzan” e o “Popeye”
são sobretudo físicos no sentido da sobrevivência. Há, no caso do Tarzan, as
dificuldades do meio ambiente. No caso do Popeye, há competição com uns
tipos maiores do que ele. Eu penso que um jogador de futebol genial… (é um
bocado de todos) é um bocado de todos e tem uma coisa que tem que ter…
que não está evidente nem no Tarzan nem no Popeye, que é…tem que ter
muita inteligência comunicacional, por estranho que pareça, mas tem que ter.
Quer de si para os outros, quer dos outros para si; isto é, o jogador de futebol
que seja um fora de série tem que perceber o que os outros estão a pensar, e
tem que induzir nos outros estímulos que os levem a pensar de outra maneira.

III
Anexo 1 (Entrevista a Manuel Sobrinho Simões)

E portanto há, no Maradona, no Garrincha, elementos engraçadíssimos de, se


você quiser, inteligência negocial, capacidade de enganar o outro. Vamos
vender-lhe laranjas caríssimas porque o “gajo” está convencido que está a
comprar umas laranjas muito boas, … e isso não está presente nem no Super-
homem, nem no Tarzan.

(J. M.) - Eu referi-me ao caso do Tarzan nesse aspecto, no facto do


futebol requisitar, em termos de funcionalidade por assim dizer, uma
funcionalidade mais ancestral e mais próxima daquela que é evidenciada
pelos primatas, uma vez que o trem inferior e o trem superior se
encontram menos diferenciados do que na espécie humana. Até que
ponto isto pode levar a que nós possamos considerar o futebol, de certa
forma, como uma actividade contra natura.

(M. S. Simões) - Não sei…Mas acho demasiado elaborada essa sua


analogia porque…quer dizer…isso pôr-se-ia mais para mim em relação a
algumas actividades físicas individuais. Apesar de tudo, o que distingue de
forma única o futebolista genial é a sua capacidade de ser um solista numa
orquestra. Portanto, ser um solista numa orquestra não pode ser contra natura,
percebe? Agora, em termos sociais… (sem perder aquela dimensão
antropológica) pois. Percebe, aí é que eu acho que… Não me refugiaria muito
numa interpretação demasiado extremista dos aspectos físicos (não, nem é
esse o objectivo. É mais em termos da representatividade cerebral e como isso
poderá…) Mas eu aí não sei…

(J. M.) - Nesta mesma intervenção refere-se à influência que o meio


exercer ainda em idades muito precoces e muito por causa da
plasticidade neuronal.

(M. S. Simões) - Exactamente, isso está demonstrado e o Damásio sabe


muito mais disso do que eu. Essa influência é impressionante. E daí que ache
que a grande descoberta em termos de plasticidade neuronal foi, não só que

IV
Anexo 1 (Entrevista a Manuel Sobrinho Simões)

ela era brutal, como se prolongava ao longo da vida, com especial “força” nos
primeiros anos, até ao ano e meio, dois anos.

(J. M.) - Daí é que eu considero que este contra natura é de certa forma
muito flexível se devidamente estimulado. Esse determinismo não existe.

(M. S. Simões) - Pois não. Mas não é contra natura. Se você quiser, é ao
lado da natura. Quer dizer, porque você agora vai poder desenvolver… (uma
flexibilidade dentro desta…) exactamente, mas não é necessariamente contra.

(J. M.) - Se calhar esta precocidade de estímulos explica a razão por que
pessoas que nascem, por exemplo, com os membros superiores
amputados, fruto da talidomida e dos efeitos perversos da talidomida que
foram imponderados, explica, de certa forma a razão pela qual eles
conseguem ter uma funcionalidade praticamente normal, diga-se assim,
conferindo ao trem inferior uma funcionalidade que convencionalmente
se dá e que culturalmente se atribui aos membros superiores.

(M. S. Simões) - Exactamente. É a expressão da capacidade de superação


das limitações físicas pelo treino e pela operacionalização. É verdade. Acho
que é um bom exemplo.

(J. M.) - E aqui podemos estabelecer muitas relações, se calhar, com o


futebol, que requisita bastante… (mas não necessariamente com o futebol)
Sim, mas com actividades que requisitem uma funcionalidade diferente.

(M. S. Simões) - Eu sei, mas você sabe que hoje em dia, uma das coisas que
os treinadores fazem, e você deve conhecer isso melhor que eu, é treinar os
defesas laterais nos lançamentos, e eles são tipos excepcionais como
lançadores…portanto, eles transformam os lançamentos de linha lateral em
verdadeiros cantos. Fazem treino específico do trem superior.

V
Anexo 1 (Entrevista a Manuel Sobrinho Simões)

(J. M.) - Em termos de regras até há um constrangimento para os


jogadores. Eles não podem jogar com as mãos, excepto os guarda-redes
não é?

(M. S. Simões) - Mas fazem os lançamentos das linhas laterais com as


mãos…

(J. M.) - Sim, exacto, mas se calhar é uma regra que se calhar devia ser
alterada …

(M. S. Simões) – Não sei, isto tem muita graça… e é uma discussão
interessantíssima. Outra coisa a ter em conta, não se esqueça, é o problema
do equilíbrio e do centro de gravidade etc. E portanto, … (Estão implicados. O
corpo é um todo não é?) estão implicados…

(J. M.) - É exactamente isso que nós queremos evidenciar na


monografia, a “inteireza inquebrantável”. Não há cérebro, há um corpo
com “C” grande…

(M. S. Simões) - Mesmo quando a gente falava em psicossomática. O


conceito de psicossomática é muito operacional, significa que há coisas que se
pensam e se repercutem no soma, mas as moléculas e os mecanismos do
pensamento são exactamente os mesmos dos que existem no resto do corpo…
(a ideia de somatização vai num sentido dum corpo todo, um corpo com “c”
maiúsculo e não o corpo propriamente dito como refere António Damásio)
exactamente. (e isso é uma coisa que vai estar devidamente explicito…)

(J. M.) - Estes fenómenos de adaptabilidade, como o caso da talidomida,


considera que podem ser considerados como uma somatização de uma
nova funcionalidade, que pode ter repercussões em termos estruturais?

VI
Anexo 1 (Entrevista a Manuel Sobrinho Simões)

(M. S. Simões) - Não sabemos… quer dizer, está agora a pôr um problema
que é dos mais discutidos de toda a hereditariedade moderna, que é a
hereditariedade dos caracteres adquiridos. Portanto, agora esqueça a
talidomida e a funcionalidade “excessiva” etc, porque… o que quero dizer é que
o filho de uma pessoa que se desenvolveu extraordinariamente por ter de se
adaptar a condições adversas, isto é, desenvolveu, funcionalidades e
operacionalidades que não estavam presentes porque tinha um defeito, que é
um defeito de nascença, de que ele não teve “culpa”, o filho dessa pessoa sairá
com potencialidades genéticas distintas por causa da adaptação do pai? Não
sei se esse é um exemplo bom para a discussão que é… até que ponto nós
herdamos caracteres adquiridos? Isto é, se você for um excelente pianista
porque se treinou imenso, será que os seus filhos vão ser melhores pianistas?
E houve muita gente que se atreveu a dizer que isso era impossível. Mas hoje
sabemos que há alguma hereditariedade “adquirida”, isto é, há transmissão de
características epigenéticas. Você tem possibilidade de imprimir coisas - e aqui
estamos em plena epigenética - você tem possibilidades de imprimir coisas nos
seus espermatozóides, e a sua futura mulher tem possibilidade de imprimir
coisas no seu óvulo, que podem ser consideradas como uma espécie de
marcas transmissiveis para a sua progenia, portanto, para os seus filhos.
Ninguém sabe com precisão como é que isto se passa, mas vai haver
mudanças, quer dizer, a espécie humana não está só a evoluir por selecção
genética, que evoluiu pouco porque passámos a ter os diagnósticos pré-natais
e sempre que há alterações, mesmo translocações equilibradas, a maior parte
das mulheres prefere interromper a gravidez. Mas a espécie humana pode
estar a evoluir através de processos no âmbito da chamada “hereditariedade
epigenética”.

(J. M.) - Se nós repararmos na infância dos talentos de futebol, aquilo


que se verifica é que há um conjunto de brincadeiras e de evidências
corpóreas, e lá está corpóreas como um todo, que estão relacionadas
com o contacto precoce com bolas, com evidências muito diversas do

VII
Anexo 1 (Entrevista a Manuel Sobrinho Simões)

âmbito corporal. Considera que isto poderá ser determinante na selecção


de talentos?

(M. S. Simões) - Não sei. Essa é a tal coisa… eu não percebo nada disso.

(J. M.) - Mas face à plasticidade corporal poderá haver a possibilidade…

(M. S. Simões) - Não sei, não faço a mínima ideia…

(J. M.) - É uma questão que está em aberto ainda…

(M. S. Simões) - Claro. Mas eu não sei. Não sei nada disso. A grande
discussão é saber … porque isto põe problemas interessantíssimos, por
exemplo, sobre políticas de escolas de jogadores. Se você achar que se puser
as crianças todas em contacto com a bola e com exercícios físicos adequados
pode começar a fazer gerações de futebolistas está a seguir uma via discutível
mas com muito interesse. Por exemplo, na Europa de Leste, fizeram algumas
tentativas na ginástica. Estamos a falar de selecção e treino de miúdos.
(algumas um bocado aberrantes) Não sei mas a ideia era essa. Não faço a
mínima ideia se tudo o que se disse é verdade ou se o que aconteceu, nesses
miúdos, foi um conjunto excepcional de características e circunstâncias … os
genes deles, a educação dos pais, a necessidade de se afirmarem num meio…
(um meio mais favorável porque lhes eram propiciadas condições que aos
outros não … em termos de alimentação) exactamente, é uma coisa muito
darwiniana, selecção natural pura. Isso depois… isso era o que estava a dizer
no princípio Jorge, isso é ciência mesmo, há gente que sabe muito disso. Não
faço a mínima ideia se é verdade…

(J. M.) - Em termos deste tipo de vivências, não só do futebol,


nomeadamente o futebol de rua, mas um conjunto de actividades que
dantes se viam nas ruas, estão cada vez mais a eclipsar-se. E há uma
tendência para as brincadeiras serem cada vez mais pré-formatadas nos

VIII
Anexo 1 (Entrevista a Manuel Sobrinho Simões)

miúdos e apelarem menos à criatividade e à diversidade de estímulos,


podendo-os levar no futuro a serem mais fechados. Isto pode tender a
uma generalização da sociedade?

(M. S. Simões) - Não sei. Mas isso que você está a dizer é verdade e outra
coisa que também é homogeneizadora é a comunicação social com estímulos
poderosíssimos como, o “branding”. Acho que até mais limitante do que os
miúdos não brincarem nas ruas é a influência espantosa das marcas. E
portanto os miúdos quererem todos comprar o mesmo tipo de sapatilhas,
beberem os mesmos iogurtes…, mas ao mesmo tempo há uma outra realidade
que é a Internet que veio abrir outro tipo de horizontes eu não sei… está a ver,
essas são as tais coisas que eu não sei.

(J. M.) - Lá está, a tal Internet que nos vai levar para a tal geração do
pulgar, do maior sedentarismo. Até que ponto a perpetuação disto pode
ter algumas alterações em termos sociais e mesmo estruturais?

(M. S. Simões) - Não sei… Acho que é uma pergunta muito boa, mas não
sei. Mas de certeza que há gente que já pensou nisso.

(J. M.) - Esta tendência… lá está, não sabe, mas pode contrariar por
assim dizer ou mesmo hipotecar a antropodiversidade.

(M. S. Simões) - Não sei… não faço a mínima ideia. Por um lado há uma
coisa, em relação à antropodiversidade, que você tem que considerar que é
nós curamos muito mais patologias hoje. Portanto há muitos miúdos que há 50
anos morreriam antes de ter filhos e que agora sobrevivem e têm filhos. O
desenvolvimento da medicina pura e dura tem aumentado a esperança média
de vida e tem permitido chegar à idade da procriação, miúdos com alterações
genéticas que de outra maneira não teriam filhos. Morriam antes. Portanto aí
há uma força no sentido da diversificação. Se os comportamentos se tornarem
todos muito homogéneos, muito sedentários, muito determinados pelas

IX
Anexo 1 (Entrevista a Manuel Sobrinho Simões)

marcas, e se a globalização fizer com que isto não só se passe na Europa e


nos Estados Unidos, mas também na Índia, China, Brasil e Rússia, é verdade
que a miudagem vai ser formatada (e num caso extremo hipoteca-se a
antropodiversidade, por assim dizer…) não sei. (Se tal se verificar, a tendência
será uma involução, por assim dizer…nesse sentido talvez) talvez, não sei.
Mas é capaz. Não sei.

(J. M.) - Também numa entrevista que deu há cerca de um ano,


publicada a 27 de Janeiro do ano passado na revista Pública, e como hoje
já fez questão de referir, a vida é muito atarefada, a falta de tempo é uma
constante. Diz mesmo que se reflecte na leitura, na alimentação, … assim
pode dizer-se que também padece do «mal da pressa» …

(M. S. Simões) - Mas muito. Você ponha…, como dizem os meus internos
brasileiros, “bote muito nisso”.

(J. M.) - De que forma é que isto pode afectar as crianças desde muito
novas?

(M. S. Simões) - Afecta logo as crianças através da insuficiente


disponibilização dos pais. Eu acho que é o pior problema. Quer dizer, a criança
que ainda não está nessa fase, “da pressa”, percebe que os pais estão. E
agora são ambos profissionais enquanto que há duas gerações não eram,
portanto, há problemas. Os pais não estão em casa, os pais têm muito menos
tempo para serem verdadeiramente exemplares, os pais chegam a casa
cansadíssimos e, de facto, houve uma substituição dos pais pela escola e
pelos tempos de acompanhamento extra-escolar.

(J. M.) - Acha que há mesmo uma somatização da pressa nas nossas
sociedades?

X
Anexo 1 (Entrevista a Manuel Sobrinho Simões)

(M. S. Simões) - Não sei, mas se…. (há comportamentos que indiciem isso?)
isso há.

(J. M.) - E há potencial patológico?

(M. S. Simões) - Isso há, penso que sim mas, é a tal coisa, não sei… Se
você ler os tipos bons da área das neurociências eles dizem que sim, com as
expressões mais variadas; quer dizer, não sei se até com expressões que
podem ser classificadas como doença, mas com alterações gravíssimas de
cansaço, de perda da atenção, fibromialgias, hiperactividade, … (os problemas
de ansiedade dos próprios miúdos) que são no fundo, semelhantes aos dos
pais, eles têm-nos por um aspecto mimético, não é que eles tenham razões
objectivas para isso. Os miúdos mantêm, apesar de tudo, uma boa
performance, mas não é aí que está o problema; o problema é muito mais eles
verem a vida “desgraçada” dos pais e dos avós. Os avós agora também já
trabalham…

(J. M.) - Esse aspecto do mimetisto acho que é muito importante e é


fundamental, se calhar nas crianças, porque é uma base de aprendizagem
enorme para eles e, o facto do contexto ser assim, obriga-as, por assim
dizer, a serem assim. Os comportamentos deles manifestam-se…

(M. S. Simões) - É verdade. Não tenho dúvida que se tiver que identificar um
aspecto negativo da evolução da sociedade, no que diz respeito à organização
familiar, parte dele é resultado dessa pressa.

(J. M.) - Pode-se dizer ou especular acerca de alguns indícios que


existem na sociedade, por exemplo, o facto de haver cada vez mais partos
prematuros poderá haver alguma associação…

(M. S. Simões) - Não sei, não sei…Não estou a dizer que não há nada, mas
não sei.

XI
Anexo 1 (Entrevista a Manuel Sobrinho Simões)

(J. M.) - Também na mesma entrevista refere, isto em termos mais


pessoais, que é uma pessoa extremamente competitiva, e que desde
muito cedo foi habituado a ser reconhecido e a ser gratificado pelo
mérito. Acho que isto são aspectos determinantes na personalidade que
tem hoje e no estatuto que consegui alcançar?

(M. S. Simões) - Penso que sim, mas não tenho a certeza, quer dizer, não fiz
nenhuma experiência, não tenho nenhuma capacidade de comparar isto com
alternativas, percebe? E não sei se a receita que funcionou para mim
funcionará, por exemplo, para os meus filhos, não tenho a certeza. O que sei é
que, em relação às personalidades como a minha, a competição, o ganhar e
perder, é um percurso que faz sentido, em termos de formação da
personalidade. Agora não sei se não haveria outra alternativa melhor. Esse é o
grande problema quando você estuda percursos individuais.

(J. M.) - Acho que focou aí um aspecto muito interessante que foi o
ganhar e perder. Se calhar às vezes aprende-se bastante a perder. Uma
coisa que se nota é que grande parte dos jogadores que atingiram um
nível muito elevado têm momentos na vida marcantes, alguns deles se
calhar até traumatizantes para a generalidade das pessoas mas que eles
conseguiram superar e talvez isto tenha sido muito importante para a
construção da personalidade deles, e a resiliência que eles conseguiram
evidenciar aí, até que ponto pode ser importante para eles mais tarde
virem a…

(M. S. Simões) - Não sei, mas acho que, de novo, é uma boa pergunta. E é
provavelmente verdade, não sei se já há dados sobre isso, mas acho que é
muito interessante pensar a influência no jogador de futebol de um problema
que não nos acontece a nós, académicos, que é o da limitação física por lesão.
E há alguma imprevisibilidade de qual vai ser a retoma. E quando é joelhos e
tornozelos, eles têm medo porque conhecem histórias de alguns colegas em

XII
Anexo 1 (Entrevista a Manuel Sobrinho Simões)

que depois a coisa não funcionou. E portanto isso é evidente… a maneira


como isso os tocou, a maneira como as pessoas encaram a adversidade,
provavelmente é determinante da forma como eles vão, ou não, evoluir mais
tarde e como vão responder a outros estímulos.

(J. M.) - Isto mesmo também para as crianças, numa sociedade cada vez
mais competitiva e apressada, se calhar também pode ser…

(M. S. Simões) - Pode… mas aí ainda é mais complicado e eu não sei nada
disso mesmo.

(J. M.) - Em termos de exemplo eu acho que em Portugal temos um


exemplo fantástico em termos de resiliência no futebol, o caso do
Cristiano Ronaldo. Fazendo um apanhado assim muito rápido... Morreu o
pai, teve problemas com a família, ameaças de morte e, se repararmos ele
está cada vez a crescer mais e a crescer mais e, se calhar acha que é
através do apanhado de exemplos como este que se pode inferir uma
coisa e especular?

(M. S. Simões) - Não sei… de qualquer maneira não sei se ele não seria
sempre assim muito sério. Quando você agora vai a um caso muito concreto,
não faço a mínima ideia. E não sei se haverá muita coisa escrita sobre isso.

(J. M.) - E seria interessante fazer estudos de caso, por exemplo…

(M. S. Simões) - É, mas não será nada fácil porque você não pode arranjar
controlos adequados. É o que lhe dizia há bocado. Os casos de sucesso ou
insucesso manifesto são sempre muito difíceis de ser avaliados do ponto de
vista científico pela sua especificidade … (e complexidade de tudo o que o
envolve) exacto, complexidade enorme (é uma fenomenologia) é. Por exemplo,
que é verdade que o Ronaldo… eu sigo muitas vezes os jogos ingleses, e ele,
perante uma situação de, por exemplo, assobios do público, reage pela positiva

XIII
Anexo 1 (Entrevista a Manuel Sobrinho Simões)

querendo demonstrar «ah, estão a assobiar, vão ver». Isso é verdade. É


verdade também que ele tem 22 anos e, parte do seu sucesso, nesta altura, é
porque é um superdotado físico, um talento físico, quer dizer, corre mais do
que os outros, tem uma capacidade elástica maior que os outros, portanto não
precisa de estratégias muito inteligentes, para castigar quem o assobia. A
dúvida aqui está: e se, agora, ele precisasse de ser muito inteligente. Será que
o tipo que está irritado, porque o estão a assobiar tem uma boa estratégia, ou
faz uma burrice? Ao Quaresma acontece-lhe muito isso.

(J. M.) - Será que ele é inteligente de uma outra forma?

(M. S. Simões) – Claro, mas isso só lhe serve enquanto tiver vinte e tal anos,
não é? O problema é quando ele for mais velho. Estamos aqui a discutir não só
as coisas que são boas para eles, enquanto jogadores de futebol, mas depois
enquanto seres vivos aos 40 anos. E eu não sei se ele desenvolveu estratégias
inteligentes para essa fase ulterior, não sei.

(J. M.) - Aí está a apontar para um aspecto que também considero


importante que é a especificidade da inteligência ou melhor, das
inteligências.

(M. S. Simões) – Exactamente, da especificidade da inteligência e do timing.


Porque você às vezes, precisa, aos 20 anos, de certas características para
desempenhar determinadas funções e há outras… E isso tem muita graça, e
levar-nos-ia muito longe, porque o grande problema das sociedades modernas
é a longevidade, e nós termos perdido o respeito pelos anciãos, e portanto há
aqui um grande problema. As pessoas cultivam o físico e o cabelo branco é
uma coisa chata, a pessoa veste-se de uma maneira desportiva e tal, mas
estamos a ficar cada vez mais velhos. Portanto, há aqui um contra-senso.

(J. M.) - Mas esse aspecto da sociedade a envelhecer, não significa que
… por exemplo o facto de ter pegado, n a ideia do timing das inteligências

XIV
Anexo 1 (Entrevista a Manuel Sobrinho Simões)

pode até ser, muito interessante para o futuro, e para a fase de depois da
carreira dos jogadores de futebol?

(M. S. Simões) - Claro, claro, e não só dos jogadores de futebol como de


qualquer actividade que tenha um período de vida curto. Com os artistas de
palco é a mesma coisa, sobretudo com os bailarinos. Neles isso é
impressionante; nos ginastas é impressionante, e até nos jogadores de xadrez
é impressionante. (e realça a adaptabilidade que nós podemos ter) claro, o que
não quer dizer é que sejam … os mecanismos que eles utilizaram e que foram
muito successful na fase em que eram ginastas ou jogadores de xadrez,
podem ser totalmente desadequados para a vida adulta e para a velhice …
(implica uma reorganização muito grande e que nem sempre é fácil) e tanto
mais difícil quanto mais successful tiver sido a fase inicial.

(J. M.) - Se calhar isso explica o fracasso que muito dos grandes
talentos tiveram depois de deixarem de jogar … por exemplo Garrinchas,
Maradaonas, temos o caso mais recente de um ex. jogador da Juventus
que se tentou suicidar, Pessoto.

(M. S. Simões) - Há aí um elemento que pode não ser só de inteligência, há


um elemento de decepção afectiva, não é? Quer dizer, a perda das luzes da
ribalta, não será também importantíssima? E aí, depois, não é somente um
problema de inteligência, aí é um problema de afecto. Mas eu não sei nada
disso, mas você por exemplo fale com o Júlio Vaz, ou com esses tipos que
lidam com a maneira como a pessoa de repente perde a importância. Porque
há aqui um problema muito curioso. (há uma somatização do sucesso)
exactamente, e do gostarem de nós, que eu acho que é muito importante. Quer
dizer, o tipo que estava habituado a chegar à cervejaria e toda a gente vinha
pedir autógrafos e pagar-lhe um copo, depois o “gajo” entra e é um ex. jogador.
Deve ser horrível. Mas os políticos também têm isso, atenção. Os políticos, se
são inteligentes, começam a preparar precocemente a sua saída, porque é
muito … é uma desabituação, sobretudo numa sociedade muito mediatizada,

XV
Anexo 1 (Entrevista a Manuel Sobrinho Simões)

como é a actual. Antigamente não era assim. O Salazar, ninguém o conhecia


fisicamente, de perto. O Salazar aparecia pouco e depois desapareceu, mas
ele próprio não se mostrava, não aparecia nas revistas. Imagine um tipo que
costumava ser um habitué dos «Prós e Contras» e que, de repente, deixa de
ser convidado, deve apanhar um susto para a vida dele.

XVI
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

Anexo 2: Entrevista a Leandro Massada


Professor Auxiliar da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
Instalações da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
Entrevista realizada por Jorge Maciel, 14 de Março de 2008

Jorge Maciel (J.M.) - Sendo o professor uma pessoa do desporto que já


passou por diversas modalidades, qual a percepção que tem do futebol
enquanto um fenómeno social em termos de comparação, há algumas
diferenças face a outras modalidades?

Leandro Massada (L. Massada) - Praticamente podemos considerar que,


em termos de influência, o futebol é um caso único, não é só no nosso país,
mas mais no nosso país, em relação às outras modalidades desportivas. As
outras modalidades desportivas nós, neste momento, em termos de influência,
em termos sociais e de maior projecção social, não há qualquer sombra de
dúvida que o futebol é muitíssimo mais “atractivo” para as pessoas, até pela
rivalidade existente dos regionalismos. Essas rivalidades estimulam a
apetência que têm as pessoas em relação ao futebol. O futebol permite
também que os indivíduos ao fim-de-semana e durante à semana possam
libertar-se dos stresses emocionais e, portanto, teoricamente, aquilo que nós
verificamos, na prática, é que nas outras modalidades os êxitos são muitíssimo
mais fugazes, isto quer dizer que as pessoas são faladas ocasionalmente,
mesmos os campeões do mundo são falados por um período muito curto de
tempo. São aproveitados, às vezes por influências sociais, para fazer uns
reclames, mas passando aquele período de 2/3 meses são esquecidos,
passam ao esquecimento. Neste momento os “Lopes”, os Carlos Lopes, os
“Mamedes”, os “Castro”, as “Auroras Cunnha” e a Rosa Mota se não andassem
na política estavam esquecidos, enquanto no futebol não. O futebol, pelas
rivalidades, pelas guerras, pelos hinos, pelas bandeiras, por tudo o que o
envolve tem uma influência muitíssimo mais marcada na sociedade do que
qualquer modalidade desportiva e vai continuar assim para sempre.

XVII
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

(J.M.) - ...É utilizado muito por isso, até na política.

(L. Massada) - Fundamentalmente por causa disso, pela influência que tem,
pelo mediatismo que tem, pela forma de libertação muitas vezes do stress
emocional das pessoas que através do futebol se podem libertar. Outras vezes
o próprio futebol em si, muitas vezes não é valorizado nesse aspecto, mas
serve como forma de afirmação de determinadas regiões. Por exemplo, se nós
repararmos aqui o caso de Guimarães/Vizela, em que os indivíduos de
Guimarães são extremamente aguerridos em relação à defesa do Guimarães e
os de Vizela com as lutas politicas que tinham nós vamos encontrar, por
exemplo, um número muito elevado de indivíduos de Vizela ligados ao F.C.
Porto e o próprio clube tem ligações ao F.C. Porto, porque é uma forma de
contrariar o domínio que o Guimarães teve sobre Vizela. Isto verifica-se noutras
situações, por exemplo em Mondim de Bastos que é uma terra incluída no
distrito de Vila Real. Em Vila Real o núcleo influenciado pelo tempo do
Salazarismo continua a ser os benfiquistas da era dos anos 50 e Mondim de
Bastos é um núcleo de portistas. Quer dizer, o aparecimento do núcleo de
portistas em Mondim de Bastos traduz a guerra que há, em termos políticos do
domínio do Vila Real sobre o Mondim de Bastos e isso serve de contra-
corrente. Portanto futebol é utilizado em todos os aspectos e, a influência que
tem sobre nós é extremamente importante.

(J. M.) - Na conferência que proferiu na semana passada acerca das


lesões no futebol de elite, não tem duvidas, e aliás defendia nas aulas que
nós somos sobretudo função. Partindo deste pressuposto pode
depreender que o talento é sobretudo construção?

(L. Massada) - Não, não é bem assim. O talento em princípio é genético. Nós
não podemos pôr um burro a cantar ópera. O talento é genético, portanto o
indivíduo nasce já com determinadas características para determinadas áreas,
para a música, para a matemática, etc, que depois se forem bem “treinados”,

XVIII
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

isto é, se os estímulos posteriores ao seu nascimento forem executados de


forma repetida e se o indivíduo, também se aproveita das suas características
genéticas do indivíduo nessa altura, esse talento poderá ser aproveitado em
termos do indivíduo para a área em que se encontra vocacionado. Mas há um
aspecto que é extremamente importante, portanto, o conceito fundamental a ter
em mente é: «se queres ser campeão olímpico escolhe os teus pais», às vezes
até se pode dizer e muitas vezes nós dizemos “ele tem a cara da mãe ou tem a
cara do pai” “ele é bom como a mãe, ele é mau como o pai”, portanto as
características genéticas são extremamente importantes. As características
sociais do meio onde a criança se vai desenvolver e as influências que depois
vai sofrer em termos de estímulo, e o estímulo neste caso é o treino, pode fazer
emergir esse talento ou pode mantê-lo num estado de inconsciência. Mas há
outro aspecto que também é, extremamente importante e que se tem verificado
nos últimos anos na nossa sociedade. O aspecto do indivíduo ser talentoso e
depois ser estimulado, viver num meio ambiente que o possa estimular e
depois ser estimulado por meios externos, “pelos treinadores da área do
talento”, esse indivíduo vai ter ou não, na minha opinião, expressão a nível da
sociedade e valorizar-se profissionalmente se tiver uma coisa que é
fundamental, se ele tiver capacidade de sofrimento, se ele tiver carácter, os
aspectos psicológicos vão ser extremamente importantes. Não há talento sem
genética; não há talento sem estímulo depois funcional e não há talento que
possa emergir se esse indivíduo não tiver um objectivo, e esse objectivo tem a
ver fundamentalmente com os aspectos psicológicos dessa própria pessoa. Se
o indivíduo tiver capacidade de tolerância à dor, se o indivíduo for persistente,
se o indivíduo tiver determinados objectivos, esse pode fazer emergir todo o
talento... se ele não tiver nada disso e a sociedade neste momento está a
fazer, esse mesmo grupo de indivíduos que estão desinteressados esse talento
nunca emerge.

(J. M.) - Então a resiliência é uma característica muito importante para


um talento emergir...?

XIX
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

(L. Massada) - É muito importante, fundamental.

(J. M.) - Aliás há provas disso no desporto, é o caso do Cristiano


Ronaldo...

(L. Massada) - Temos indivíduos no desporto que passaram nestes últimos


anos e temos verificado isso. Indivíduos fabulosos, com características
genéticas e funcionais que nós nem sequer lhes ensinamos a fazer nada e eles
conseguem, com dados inatos e motores, e resolvem problemas
momentaneamente na actividade desportiva em milésimos de segundos, coisa
que indivíduos não conseguem fazer mesmo muito bem treinados. E o que se
verifica é que apesar de haver um talento inato nesses indivíduos, muitas das
carreiras desses indivíduos chegam a determinada altura e param
completamente. Essa paragem, logicamente que podem estar muitos factores
incluídos dentro disso, mas essa paragem deve-se fundamentalmente a
indivíduos que são “inertes”, que deixam passar “laissez faire, laissez passer”...
Deixa passar! Não têm estímulos, não tm ambição. São indivíduos que em
termos desses aspectos psicológicos que são extremamente importantes e
continua-se a dizer que o melhor indivíduo em todos os aspectos não é só
aquele que tem melhores capacidades intelectuais, não é sem duvida aquele
que tem melhores capacidades funcionais, é aquele que consegue conciliar as
duas vertentes. E uma das vertentes fundamentais é a capacidade de trabalho,
a capacidade de tolerância à dor, sacrifício, o objectivo. Aquele indivíduo que
não tiver objectivo não chega lá!

(J. M.) - Tem de ser um ser competitivo e...

(L. Massada) - ...com objectivos!

(J. M.) - Sendo um defensor das ideias lamarckistas pode dizer-se que não fará
muito sentido alguém estar num treino orientado por uma premissa que seja

XX
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

aquela, de que o talento só nasce, ou seja, para estar no treino, concorda comigo
que é importante que um treinador reconheça potencial ao treino, no sentido de
induzir alterações e permitir a manifestação do talento, o tal talento inato que vai
precisar? Não será um contra-senso encontrar-se pessoas no treino que
acreditam que o talento só nasce e não é preciso fazer quase nada?

(L. Massada) - Não! Não! O fundamental é o indivíduo ter a percepção de


que quem procura talentos e encontra talentos verificar que os indivíduos mais
talentosos têm de trabalhar mais do que os outros. Eles trabalhando mais do
que os outros podem aperfeiçoar qualidades motoras e intelectuais que eles
com mais facilidade conseguem aprender e transmitir isso nas áreas deles.
Estamos a falar de talentos não só do futebol como de todas as outras áreas.
Teoricamente se nós encontramos um talento, logicamente que a capacidade
de, quando explicamos a um determinado grupo um determinado tipo de
exercício nós vamos ver que os indivíduos talentosos fazem muitíssimo mais
rápidos e mais perfeitos. E esses indivíduos se forem estimulados com um
número mais diversificado de estímulos, melhor para eles e eles aprendem
mais rapidamente e transmitem isso para as suas áreas com mais facilidade.
Portanto, o talentoso tem até, teoricamente, necessidade de trabalhar mais. Se
trabalhar mais, logicamente ganha uma amplitude muito mais variada de
situações que vão ser importantes para o futuro. O indivíduo menos talentoso
não precisa de aprender tanta variabilidade em relação às áreas que ele
domina, mas ele pode tornar-se talentoso mesmo não tendo talento se adquirir
técnicas de rotina, de repetições, de trabalho. Mas a esses nós temos
dificuldade em variar muito a quantidade de estímulos porque eles têm
dificuldade em aprender, mas eles podem aprender determinados estímulos. É
aquilo que nós verificamos por exemplo nas escolas de futebol onde não existe
futebol de rua, onde não existe proprioceptividade, onde não existe habilidade
pelo treino, as escolas da Suiça, da Áustria ou na Rússia, por causa do tempo,
há pouco futebol de rua, há pouca proprioceptividade, há pouca habilidade
natural, pouco desenvolvimento dessas características, mas eles se forem
estimulados no passe, na recepção, na forma como se desmarcam, na forma

XXI
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

como eles colocam a bola, eles conseguem subverter essas dificuldades, têm
alguma técnica. Agora, quando surgem situações de jogo, ou situações sociais,
de stress, falando fora do desporto, que sejam diferentes daquilo a que eles
estão habituados a fazer, têm mais dificuldade, menos criatividade.

(J. M.) - O treino ao longo do processo ontogenético pode condicionar, pode


aculturar a manifestação de características filogenéticas?

(L. Massada) - A repetição, a função pode estimular os chamados factores


filogenéticos, isto é, há determinados factores funcionais que nascem connosco
e que foram transmitidos ao genoma, por serem caracteres úteis e esses
caracteres filogenéticos podem ser melhorados e aumentados se o indivíduo
for estimulado em termos de função. Se não for não há expressão desses
genes. Portanto, o papel do treino é sempre extremamente importante, nem se
pode hiper valorizar o dizer; “se queres ser campeão escolhe os teus pais”;
nem se pode dizer; “eu de um pinheiro faço um jogador de futebol”, que havia
essas duas correntes. As duas são fundamentais: aproveitar as características
de um determinado indivíduo, tenha-as ou não e ser for talentoso melhor; mas
o desenvolvimento dos caracteres filogenéticos, os caracteres marcados no
genoma e ligados à função, só poderão ter expressão correcta se esse
indivíduo for treinado, for estimulado em termos funcionais, desde o início do
nascimento. A função, é de tal maneira importante que as articulações só se
formam no indivíduo dentro do período fetal, se dentro da água - o líquido
amniótico - as articulações só se formam se o feto começar a fazer
movimentos. Portanto, a função é extremamente importante, quer num acto de
vida intra-uterina, quer depois quando a criança nasce e começa a adoptar o
bipedismo, o estímulo da função é que o vai desenvolver. Desenvolver em
termos de funcionalidade e a expressão genética dos seus genes ligados ás
características genéticas da população, neste caso dos primatas, e as
características genéticas adquiridas pela função, pelos chamados caracteres
filogenéticos, só poderão ter expressão, quer o genético puro, quer o
filogenético ligado à função, se esse miúdo for sujeito à funcionalidade. Isto

XXII
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

para dizer que o aspecto do treino, o aspecto da função do professor na área


do desporto, o aspecto do professor em relação à musica no treino da música,
o aspecto da função do professor noutras áreas é extremamente importante.
Não podemos só estar à espera que o gene vá determinar tudo. Neste
momento o que nós podemos dizer é 50% da genética e 50% da função, pelo
menos no desporto.

(J. M.) - O Professor falou nos tais genes filogenéticos. Esses encontram-se
mais latentes ou culturalmente não se manifestam porque culturalmente a
funcionalidade não os desperta? Por exemplo no caso da talidomida evidencia-
se que há uma funcionalidade que na generalidade das pessoas parece estar
meia latente e adormecida, e no entanto, desperta porque essas pessoas
sentiram essa necessidade e se adaptaram, tiveram uma funcionalidade
diferente.

(L. Massada) - O que acontece nessas situações em indivíduos que nascem


com aplasias ou com afasias, ou que nascem com amputações dos membros,
aí o que acontece, fundamentalmente está ligado a factores que estão ligados
ao crescimento da massa muscular, dos tendões, à forma como essas
estruturas são estimuladas. O que eu quero dizer com isto é que, por exemplo,
numa criança com poliomielite, essa criança, sendo normal e que lhe atinja
uma porção dos membros, o acto de haver uma atrofia muscular vai fazer com
que os ossos cresçam menos desse lado. Mesmo que o miúdo seja
relativamente activo e temos miúdos com poliomielite. E temos miúdos com
poliomielite, felizmente cada vez menos. Mas se a paralisia infantil atingir um
só membro, o que acontece? Mesmo que o miúdo seja activo e funcionalmente
adapte padrões de marcha diferentes a manquitolar, a claudicar, e que faça
cargas intensas no membro afectado, o membro não cresce. O membro não
cresce porque, a acção das massas musculares é fundamental para o
crescimento do membro inferior. Eu estou a dizer isto, porque nós podemos
transportar esta ideia para um indivíduo que nasceu por exemplo sem
membros inferiores. Ele ao nascer sem membros inferiores, ele vai ao fim de

XXIII
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

uns anos adaptar-se nos membros superiores, criando um trabalho de força e


funções dos membros inferiores que seriam praticamente impossíveis de nós
podermos pensar que um indivíduo normal conseguiria adquirir, mas este
consegue adquirir essas funções. Ele consegue transportar para os membros
superiores algumas das facetas mecânicas que ele necessita para poder suprir
a falta dos membros inferiores. Eles conseguem deslocar-se no solo, às vezes
sem membros inferiores, a uma velocidade brutal, eles conseguem fazer
gestos, “pinos” com os membros superiores de uma maneira que praticamente
é incontrolável. O contrário também é importante. Um miúdo que nasça sem
braços, ele ao fim de uns anos consegue utilizar os membros inferiores em
gestos que vão suprir a falta dos membros superiores. Mas isso não tem nada
a ver com a genética, isso tem a ver fundamentalmente com a função. A função
de determinadas áreas ao permitir que de forma interactiva e repetida que
determinados músculos e determinadas articulações façam um tipo de trabalho
que não estava programado, pode permitir a essas articulações, poderem
desenvolver qualidades motoras para as quais não estão programadas
geneticamente. Aí, fundamentalmente o que actua é a função.

(J. M.) - E esta funcionalidade mais ancestral, que estas pessoas com
talidomida conseguem conferir aos pés, pode ter repercussões a nível da
representatividade cerebral?

(L. Massada) - Teoricamente, numa fase assim tão curta da existência não
há possibilidades disso, teoricamente! O que eu quero com isto dizer é que,
enquanto que a funcionalidade da mão está muitíssimo marcada no córtex
cerebral, e isso desenvolveu-se com a espécie. Grande parte do córtex está
vocacionada para a mão e para a fala; em relação ao membro inferior, vamos
imaginar um miúdo que nasce sem membros superiores e que começa a fazer
um tipo de trabalho com os membros inferiores que lhe permite pintar, agarrar
objectos e lhe permite fazer um tipo de actividades de preensão do pé como se
tivesse uma mão, teoricamente poderia acontecer aquilo que aconteceu em
relação às mãos. Isto é, vamos imaginar que agora tínhamos um grupo de

XXIV
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

miúdos que nasciam em determinadas áreas e que nasciam todos sem mãos.
Provavelmente, sendo a natureza de tal maneira perfeita, que o que iria
acontecer, se tivéssemos gerações e gerações de miúdos que nascessem sem
mãos, ao fim de muitas gerações, a capacidade genética que o indivíduo tinha
de poder de nascer com um determinado tipo de características funcionais dos
mesmos inferiores que lhe permitissem a acção de garra aí, eu tinha quase a
certeza absoluta que isso iria acontecer. Havia a capacidade, e isso já está
demonstrado, de que alguns caracteres ligados à função, se forem
considerados úteis para a espécie, poderão ser inscritos no genoma. Isso já
está demonstrado, e verifica-se por exemplo com o bipedismo: como somos
obrigados a trabalhar com o joelho em extensão, a rótula tem tendência a sair.
Isso, o que é que acontece? O bordo externo da tróclea femural, está mais
saliente e mais projectada para a frente, para quê? Para evitar que a rótula
saia. Quando nós nascemos, nascemos já com esse dado no fémur, o que não
acontece com os outros primatas. E isso só começou a acontecer, a partir do
momento em que nós começamos a trabalhar com o joelho em extensão. Nós
temos essa expressão, nascemos com esse dado no fémur, mas ele só se
exprime na sua totalidade se o miúdo fizer actividade física, se começar a
andar. Se não começar a andar esse dado filogenético ligado ao trabalho do
joelho em extensão e para evitar que a rótula luxe, só se estabelece se o miúdo
começar a andar. Se por algum motivo o miúdo tiver uma paralisia infantil, se
tiver uma paralisia cerebral e não seja estimulado a andar, essa expressão do
bordo externo da rótula não se exprime na sua totalidade e a probabilidade do
miúdo, mesmo sentado, ao fazer movimentos, a rótula pode sair, pode ficar
instável. Portanto o que quero dizer, e voltando ao que falávamos à pouco, se
tivermos um grupo de mil miúdos que nascessem sem braços, e estamos a
falar de um filme de ficção cientifica, e isso iria ser transmitido às gerações
seguintes, eu tinha quase a certeza absoluta que, tal como aconteceu ao
Homem em relação a outras facetas biomecânicas, ao fim de algumas
gerações, os miúdos que nascessem já tinham os pés a actuarem como as
mãos.

XXV
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

(J. M.) - Essa permeabilidade do genoma a este conjunto de adaptações e de


adaptabilidade, a qual permite a manifestação de uma plasticidade no Homem e
não só, em diferentes tecidos, pode considerar-se uma característica da nossa
espécie, apesar de não exclusiva?

(L. Massada) – Não. A plasticidade biológica e a forma como os nossos tecidos


trabalham, a forma como contraem massa muscular, os picos de tensão que eles
geram, a deformabilidade do osso, os potencias eléctricos que se verificam no osso,
por exemplo quando o osso é sujeito a deformações, desenvolvem-se os potenciais
eléctricos, e isso tem tudo a ver com a forma de crescimento do osso, com a forma
como ele se adapta, a sua morfologia em relação às cargas que ele sofre. Isso verifica-
se em todos os animais! Os chamados picos de tensão intra-óssea.

(J. M.) - ...Sim, não estava a dizer que é uma característica exclusiva, mas pelo
menos uma característica da nossa espécie, mesmo que não exclusiva.

(L. Massada) - Não é uma exclusiva da nossa espécie.

(J. M.) - ... Mas é característica!?!

(L. Massada) - É uma das nossas características, mas todos os outros animais que
perderem determinado tipo de actividade funcional, em termos locomotores, têm
características na ultra-estrutura do tendão, do músculo e do osso. As características
biomecânicas e biótipas que eles têm são semelhantes às nossas. Os picos de tensão
intra-ósseas, quando um osso é sujeito a uma deformação plástica desenvolve
potenciais eléctricos no seu seio. Esses potenciais eléctricos são iguais no peru, no
cavalo, no Homem, por muito que as pessoas fiquem horrorizadas.

(J. M.) - Eu acho que não percebeu, eu referi que “não exclusivo ao Homem”...

(L. Massada) - Não é exclusivo dele, é exclusivo de todos os animais..

XXVI
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

(J. M.) - ... É uma característica dos seres vivos, por assim dizer.

(L. Massada) - Nós, essas adaptações temos verificado, por exemplo, em relação à
funcionalidade, em relação aos outros animais. Há animais, por exemplo os cães os
quais são fundamentalmente os exemplos que nós verificamos com mais facilidade,
que nascem alguns sem as duas patas, ou que por um traumatismo são obrigados a
andar a três patas, eles conseguem ter uma funcionalidade através da hipertrofia, a
atrofia de uns e a hipertrofia de outras estruturas esqueléticas, conseguem compensar
essas alterações mecânicas fisiológicas. Portanto, eles conseguem ter alguma
funcionalidade e desenvolver funcionalidades que não tinham quando, por algum
motivo, sofrem de algum género de insuficiência motora. O animal, e nós não somos
diferentes deles, uma vez que todos os animais vertebrados derivam de uma espécie
comum. E, portanto, essas variações que se verificaram ao fim de milhões de anos
determinaram que houvesse uma divergência dos ramos da árvore. Mas ao fim e ao
cabo, muitas das nossas características mecânicas e da funcionalidade, não estamos a
falar em termos cerebrais, mas em termos de trabalho, dos factores que gerem o
músculo, o tendão e o osso, são factores que são comuns a todas as espécies de
animais.

(J. M.) - E a manifestação da plasticidade, acha que é tanto mais facilitada,


quanto mais precocemente for estimulada?

(L. Massada) - É fundamental. Logicamente que sim. É o que eu tenho dito: a


expressão de determinados genes filogenéticos ou ontogenéticos só se exprimem na
sua totalidade se esses estímulos forem efectuados o mais cedo possível.

(J. M.) - Uma vez que o futebol requisita uma funcionalidade mais ancestral, no
sentido daquilo que estivemos a falar, daí que se torne pertinente que os miúdos
começarem (quanto mais cedo melhor) uma sentimentalidade maior ao objecto
com que contacta, como o caso da bola, uma gestualidade mais refinada se
calhar quanto mais precocemente....

XXVII
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

(L. Massada) - ...quanto mais precoce melhor para os miúdos, porque aí a questão é
a intensidade e a repetição das cargas. A intensidade e a repetição das cargas se
forem feitas de acordo com a idade cronológica que o indivíduo tem, esses podem ser
estimulados relativamente cedo. O grande problema que nós podíamos pôr aqui é, se
o excesso de intensidade das cargas tem um efeito deletério. Nós sabemos que as
cargas fisiológicas estimulam o crescimento. Por exemplo, num caso particular é que o
excesso de cargas determina muitas vezes o atraso do crescimento. Ora, portanto, em
relação aos estímulos, quanto mais precocemente a espécie for estimulada, melhor e
mais rapidamente desenvolve qualidades motoras e qualidades cerebrais. Agora, o
estímulo deve estar dependente da intensidade das cargas, da qualidade das cargas e
da resposta que o indivíduo tem em relação a essas cargas. No caso da actividade
motora, ela, neste caso, é fundamental que elas não sejam de tal maneira intensas que
levem ao patológico. E o patológico é quando nós estamos a fazer muitas “asneiras”,
as quais aparecem com claudicação, com dor. A própria natureza diz, que nós
estávamos a fazer mal. Agora, nos miúdos, desde que os estímulos sejam feitos de
acordo com a idade cronológicas que eles apresentem, melhor; melhor é para eles.

(J. M.) - Esta adaptabilidade, pode-se dizer que é um saber corpóreo por
assim dizer, ou somatizado, por todo o corpo? Uma inteligência corporal
por assim dizer. O jogador de futebol, no caso, mais do que processar
informação ao nível do cérebro processa ao nível do corpo, no sentido de
soma, de uma globalidade não só cá em cima, mas de todo o corpo,
inclusive a inteligência dos músculos, o músculo como um órgão
pensante e não só como um órgão efector de movimento.

(L. Massada) - As nossas estruturas podem-se tornar em alguns “mini


cérebros”, claro que se pode pôr isso, porque nós, nas nossas estruturas
tendinosas, esqueléticas e miotendinosas fundamentalmente, músculo, tendão
e o próprio osso, temos sensores que estão ligados ao cérebro, a
proprioceptividade, sensores ligados à tensão, ligados ao movimento, que nos
indicam em que posição espacial estão determinadas áreas. Nós temos esses
sensores nos ligamentos, temos esses sensores nas estruturas musculares,

XXVIII
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

quase que nós podemos dizer que temos milhões de “minicérebros”. Ora, se
essas estruturas estiverem a ser estimuladas muito rapidamente e se forem
estimuladas precocemente e se forem continuamente estimuladas, esses
“minicérebros” que estão, por exemplo, ligados à proprioceptividade, isto é, à
forma como o indivíduo faz o movimento, à cinemática do movimento. Nós
sabemos que os miúdos que treinam desde muito jovens, essa
proprioceptividade, esses sensores que estão ligados nas articulações, nos
músculos e nos tendões, essa proprioceptividade onde não há participação
consciente, é uma participação inconsciente e que nos informa
momentaneamente esses milhões de cérebros ao nosso cérebro, ao sistema
nervoso central, ao computador central e que nos informa da posição espacial
da perna, do joelho, do tornozelo, da anca, e que nos informa se o pulmão está
a respirar ou se não está a respirar, se o coração bate ou não está a bater, e
na qual nós não temos participação consciente e aí, a hiperparticipação desses
milhões de “minicérebros” permite, por exemplo, em termos de adaptabilidade
desportiva, diminuir drasticamente o número de lesões. E se permite diminuir
drasticamente o número de lesões, em termos de motricidade, em termos
motores, praticamente se o músculo for estimulado pode quase transformar-se
em “minicérebros” e em estímulos quase como que reflexos.

(J.M.) - Lá está, a tal funcionalidade mais dos pés, se calhar pode


permitir que os pés também se tornem dois cérebros.

(L. Massada) - Pode acontecer ser isso. Em termos teóricos podemos


considerar isso.

(J. M.) -O futebol pode considerar-se, face à tendência evolutiva da


espécie, um fenómeno aparentemente ContraNatura, uma vez que pede
aos pés uma funcionalidade mais refinada, coisa que culturalmente foi
sempre condicionada?

XXIX
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

(L. Massada) - Eu não acho. Acho que é mais ContraNatura as modalidades


desportivas que implicam mais a utilização das mãos. As mãos libertaram-se
do apoio, com o bipedismo, mas tudo o que elas permitem são os movimentos
delicados e a exploração do mundo e curiosamente, se nós formos ver em
relação à articulação do ombro, a articulação do ombro não está, em termos
biomecânicos, não foi construída para trabalhar com a mão acima do nível da
cabeça. Ora se ela não está construída para trabalhar com a mão acima do
nível da cabeça, e nós verificamos isso se colocarmos a mão acima do nível da
cabeça notamos que temos menos força do que quando ela está para baixo,
teoricamente todas as modalidades desportivas em que impliquem o
movimento da mão acima do nível da cabeça, estamos a trabalhar
ContraNatura, pelo menos em relação á biomecânica do ombro. O acto do
futebol, o correr, o saltar, o deslocamento lateral, o pontapear, de certeza
absoluta, são gestos implicados e semelhantes a todos os gestos, que
inicialmente foram utilizados pelos nossos antepassados. O acto de correr, o
acto de saltar, o acto de pontapear o animal que pudesse vir a persegui-lo, era
um gesto que provavelmente seria utilizado numa fase inicial.

(J. M.) - Mas os gestos técnicos mais refinados por assim dizer, quando
se vê um…

(L. Massada) - Agora, logicamente, os movimentos finos, os movimentos


mais “coordenados” estão localizados no hemisfério cerebral esquerdo e estão
relacionados com a motricidade ou com a expressão motora da mão. No pé
não, os movimentos são muito mais “grosseiros”. Logicamente que depois, no
futebol, utilizarmos movimentos mais finos como o controle de bola, a
utilização, por exemplo, do jogo de futebol sem chuteiras, em que o pé apoia
no solo em posições biomecânicas totalmente diferentes sem o apoio do
sapato. Como se verifica por exemplo, num jogo de futebol na raça negra em
África, é provável que a essa alteração da motricidade do pé não vai
condicionar num momento curto, alterações numa melhoria da motricidade
enquanto representação cerebral dos movimentos finos, mas aí tem a ver,

XXX
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

fundamentalmente, com a habilidade e com a aprendizagem de novas técnicas


motoras determinadas pela utilização do, neste caso dos membros, com gestos
para os quais não estavam programados de uma forma tão marcada.

(J. M.) - O professor falou agora na adopção do bipedismo que, sendo


uma característica muito peculiar da nossa espécie, representa para o
futebol algumas incompatibilidades em termos anatómicos.

(L. Massada) - Em toda a nossa espécie, em toda a nossa gestualidade, se


nós verificamos a história dos animais, é uma história de milhões ou biliões de
anos, e a nossa história é uma história de 300.000 anos. Portanto, o bipedismo,
conforme nós o aceitamos habitualmente, o perfeito, apesar de ter uma história
mais ou menos dentro de um 1/3 milhões de anos, em que apareceram os
primeiros Homo e depois é que começaram a colocar-se de pé, com a
extensão progressiva da anca, com a extensão progressiva do joelho, só
acerca de 300.000 anos é que o Homo Sapiens Erectus, conforme nós o
vemos agora, é que houve a sua expressão na sua magnitude. Portanto, nós
somos um animal ainda relativamente imperfeito em tudo, e todas essas
articulações que sofreram grandes modificações para obtermos esta nova
posição espacial, este padrão locomotor, são articulações que sofrem e
degeneram com muito maior facilidade. Essa degenerescência, não tem nada a
ver com o futebol, tem a ver com duas características fundamentais. Então aí
entram outra vez a funcionalidade, e a genética. Há indivíduos com padrões
genéticos de degenerescência mais precoce do que outros, por exemplo a
artrose nas várias articulações tem uma certa influência genética, e que depois
essa influência poderá ser marcada ou mais ampliada pela funcionalidade, isto
é, a partir do momento em que começam a haver as alterações degenerativas
no nosso corpo, e como nós começamos a envelhecer, a partir do momento em
que nascemos, mas normalmente a nossa degenerescência começa a partir
dos trinta anos de idade, as articulações que forem hiper solicitadas, quer seja
no futebol, quer seja em qualquer modalidade desportiva, quer seja em
qualquer actividade funcional, trabalhadores com actividades profissionais

XXXI
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

manuais relativamente intensas, essas articulações degeneram com muito


maior facilidade, e aqui o aspecto de praticantes de futebol, o dizer que o
futebol é uma actividade que possa ou não implicar o envelhecimento ou a
degenerescência com maior precocidade do que outra actividade física….
(agora, há maior propensão no caso ao nível da pélvis por exemplo, em que é
preciso ter cuidado no treino) lógico. Há determinadas áreas que é quase,
como em termos motores há uma maior concentração de forças conforme a
função que o indivíduo realiza. Se o indivíduo fizer contorcionias da coluna
como os halterofilistas ou os lutadores de luta greco romana há alterações na
coluna vertebral, na dorso lombar. Se for andebolista, o salta e remata ou
qualquer modalidade desportiva que implique o salto e remate sendo o membro
superior que remata e o membro inferior que apoia e que salta e, portanto, no
futebol o gesto desportivo e a concentração de esforços mecânicos actua
fundamentalmente na coluna dorso lombar cujo movimento de torção, devido
aos deslocamentos, às fintas, os remates e os saltos, o cabeceamento que é
muito agressivo e não só ao cérebro pelos microtraumatismos cerebrais que
provoca o impacto d bola na cabeça pode provocar lesões no cérebro.
Microlesões, e discute-se neste momento se no futebolista não poderá surgir
um quadro semelhante ao boxeur, que é a encefalopatia crónica, devido aos
cabeceamentos a velocidades elevadas em objectos como a bola pesada, mas
a área de maior concentração de forças está relacionada com o gesto
desportivo, no caso do futebol o remate, o salto, o deslocamento lateral, os
movimentos de torção que provocam hipersolicitação da coluna dorso lombar e
numa das zonas mais hipersolicitadas onde aqueles apresentam alterações
degenerativas mais marcadas, a zona da pélvis, fundamentalmente nas coxo-
femurais, a artrose do joelho que está demonstrado nos futebolistas devido às
alterações biomecânicas que o desporto condiciona nos futebolistas que
determina que o joelho sofra demasiadas forças e a artrose no futebolista é
muito mais frequente do que nas outras actividades profissionais e a nível do
pé, fundamentalmente do primeiro dedo, o halux rígido é muito frequente,
portanto há áreas localizadas, neste caso e em todos os casos de actividades

XXXII
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

desportivas tem a ver com a concentração de esforços mecânicos depende do


gesto que a modalidade solicita.

(J. M.) - Há no futebol, por vezes, uma tendência para considerar que o
jogador deve responder a um determinado morfótipo padronizado. Sendo
o futebol uma modalidade, tal como as outras, onde deve haver um
entendimento plural, onde a antropodiversidade se deve demonstrar, fará
algum sentido isto, de seleccionarem um tipo ideal de jogador, se calhar
os “Garrinchas” que o professor fala, dos “Romários “não
corresponderiam muito a esse estilo.

(L. Massada) - Não. Os morfótipos, quer dizer, se um indivíduo fizer um tipo


de actividade física, se o indivíduo escrever sempre de determinada forma, se
um indivíduo andar de determinada forma ele vai adquirir uma tecnopatia. A
forma como ele escreve, a forma como ele anda, a forma como ele salta, a
forma como ele corre, etc. Portanto há uma tecnopatia ligada à função, e ligada
às características genéticas do indivíduo. Isso vai adquirir. Agora escolher
morfótipos para o futebol é um erro porque, nós vamos precisar de indivíduos
com fibras muscular tipo I, vamos precisar de indivíduos com fibras muscular
tipo II e ainda de indivíduos com fibra muscular de tipo misto. Não vamos pôr,
por exemplo, na baliza, na baliza podemos pôr por exemplo, um fundista, mas
teoricamente, para movimentos explosivos, podemos predispor determinado
morfótipo, um indivíduo com fibra muscular tipo II, velocidade e força,
movimentos explosivos. Mas isso é teórico porque nós vamos ter, por exemplo,
no meio campo, geralmente, indivíduos, por exemplo, com características
defensivas, podemos optar, teoricamente por miúdos que tenham fibra
muscular do tipo I, de resistência, por exemplo, estou a falar no caso do F.C.
Porto, um médio-defensivo como o Paulo Assunção, que é um indivíduo que
anda quilómetros e quilómetros sempre ao mesmo ritmo, mas vamos ter
determinadas zonas onde vamos necessitar de indivíduos com fibras muscular
tipo II, velocidade e força. Portanto, teoricamente, seria impensável apanhar
um determinado grupo de indivíduos e escolhe-los pelos tipos de forças, pelos

XXXIII
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

tipos de características de fibras musculares que eles têm. Agora que, neste
momento, e nós verificamos isso. Porque é que as equipas portuguesas neste
momento são eliminadas com mais facilidade ao nível das Taças dos
Campeões? Porque o campeonato português é de tal maneira tão pouco
competitivo que a velocidade e a força não são treinadas nos termos que
deveriam. Isso significa que, indivíduos que dentro do nosso país têm
características de grandes jogadores, quando jogam em jogos internacionais,
essas característica desaparecem.

(J. M.) - Não sendo tão específico nos termos do tipo de fibras musculares, fará
sentido seleccionar ou excluir um jogador só porque ele é “gordo” ou
“baixinho”? Se calhar os “Maradonas”…

(L. Massada) - Não! Não! Teoricamente, desde que o indivíduo, é aquilo que penso
em todas as modalidades desportivas, se tivermos uma equipa para competir pelo
campeonato é uma coisa, e uma equipa para a manutenção é outra, mas se tivemos
um gordinho com características genéticas de alguma habilidade, características de
velocidade e força, características que o indivíduo veja que possam ser adaptadas à
actividade que o individuo pretende fazer, eu acho que neste momento é um erro, e as
escolas portuguesas têm feito isso, eliminar indivíduos baixos ou relativamente baixos
no Voleibol e Basquetebol. Acho que é um erro. Nós devemos aproveitar as nossas
características genéticas e depois melhorá-las substancialmente. Quer dizer, se no
andebol não temos indivíduos com possibilidade de apanhar os indivíduos com 2
metros de altura com velocidade e força, pelo menos não eliminamos indivíduos com
1.70 metros, mas o treino, o papel do treino, vai permitir que esses indivíduos de 1.70
metros tenham uma velocidade e força mais elevada do que os indivíduos de 2 metros.
E se nós lhe melhorarmos, as características mecânicas velocidade e força, vamos
poder dar-lhe características que poderão até ultrapassar as características do
indivíduo mais alto. Aí, o papel do treino é fundamental.

(J. M) - E a biomecânica tem de ser entendida como um plural, e não como uma
única biomecânica...

XXXIV
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

(L. Massada) - ...E eles ao fazerem isso, o próprio treinador que o está a fazer, está a
excluir-se ele mesmo do papel de treino. Ao estar a eliminar determinados miúdos...

(J.M.) - Lá está, era aquilo que eu dizia, até que ponto fará sentido alguém estar
no treino se está a seleccionar. Não acredita naquilo que faz...

(L. Massada) – Exacto. Isso é que é importante!

(J. M.) - Na conferência salientou uma coisa bastante importante, pelo menos
para o tema da minha monografia, que é as vivências do futebol de rua; o futebol
de rua e as vivências que lhe estão associadas. Até que ponto, isto pode ser
relevante na construção de um talento, no caso do futebol?

(L. Massada) - É fundamental, porque quando os indivíduos que fazem actividade


desportiva e que se unem ao fim de uns anos quando já têm 50/55 anos, como eu, e
que dizem; “no nosso tempo é que era assim ou assado...”. O que se verifica, no outro
dia joguei à bola nuns jogos de brincadeira e reparei que agora os miúdos têm
muitíssimo mais força e velocidade do que se tinha no meu tempo. Mas nós, nessa
altura, éramos tecnicamente mais perfeitos, resolver problemas momentâneos no
momento do jogo, nós resolvíamos com mais facilidade, etc… Quando analisámos
grandes atletas, dos melhores atletas do mundo que nunca mais passaram no
desporto em Portugal, por exemplo no hóquei em patins, o Livramento o Adrião,
campeões do mundo, quando verificamos, por exemplo, indivíduos no futebol como o
caso do Eusébio, o Coluna, toda aquela equipa do Benfica, os violinos do Sporting e
Futebol Clube do Porto, de andebol de sete, grandes campeões que se verificaram em
todas as modalidades desportivas. Verificámos que há uns 10, 20, 30 anos, as lesões
graves do joelho, as lesões ligamentares, as lesões de entorse do tornozelo, eram
muitíssimo menos frequentes do que aquelas que se verificam agora. Portanto, tendo
começado a iniciar a prática desportiva desde os 14 até aos 30 anos de idade, com
carga de treinos bi-diários, com pulsações de 36 por minuto, a ser treinado por
treinadores das escolas russa e jugoslava, conta-se pelos dedos as lesões dos
indivíduos que jogaram andebol comigo na selecção nacional e no Futebol Clube do

XXXV
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

Porto durante 17 anos, lesões graves do joelho e do tornozelo.

(J. M.) -E confirma um bocado daquilo, que eu depreendi da conferência que é,


o empobrecimento do reportório motor pela não existência do futebol de rua leva
a um aumento da incidência de lesões…

(L. Massada) - A proprioceptividade, o hábito dos miúdos fazerem actividade


desportiva na rua, o hábito dos miúdos na praia, de jogarem futebol na praia durante 3
meses e em areia incerta, determinava um aumento tal da proprioceptividade entre
esses miúdos, que as lesões graves deles eram pouco frequentes. Actualmente há
uma diminuição dessas vivências, o treino é muito mais mecanizado, os miúdos são
mais robotizados e depois o que é que acontece muitas vezes, a alteração das
estruturas que não estão adaptadas às cargas, a alteração do binómio extensores –
flexores, rotadores internos - rotadores externos vai determinar que o número de lesões
nestes últimos anos tenham aumentado significativamente, quer as lesões agudas
pelas alterações da proprioceptividade, quer as lesões crónicas. As lesões crónicas
aumentaram significativamente porque as crianças ao não terem esses estímulos
demasiado precocemente, não têm as estruturas esqueléticas adaptadas às cargas
que eles vão sofrer nos anos a seguir. Paradoxalmente as cargas aumentaram do
volume em indivíduos que não têm as estruturas preparadas, porque começaram a
fazer actividade desportiva demasiado tarde, ou não têm aquela preparação do futebol
de rua, da proprioceptividade, do treino na praia, que é extremamente importante.

(J. M.) - Falou agora do treino cada vez mais mecânico. Isso pode levar a um
futebol cada vez mais homogeneizado?
É aquilo que se verifica, se você já reparar nisso, nas equipas do centro da Europa, a
Suíça, os suíços, não é aquela mistura com outros indivíduos brasileiros mas se você
vir os suíços, os austríacos e no norte da Europa, os noruegueses e os suecos, o
futebol está muito mecanizado. Porquê? Porque os miúdos não fazem o treino da
proprioceptividade, a habilidade motora não é desenvolvida, e eles fazem o
desenvolvimento de técnicas, em especial a recepção do passe, do cabeceamento,
que são técnicas monótonas e aplicados a todos eles. A individualidade também tem

XXXVI
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

um aspecto cultural, a individualidade é mais característica dos latinos, mas mesmo


que haja aspectos culturais, se houvesse indivíduos talentosos, que os há de certeza
absoluta, e se esses fossem estimulados, como são, por exemplo, estimulados no
Brasil, pelas condições sociais, o brincar na rua, de certeza absoluta, mesmo no centro
da Europa, ou no norte da Europa, nós teríamos de certeza absoluta o aparecimento
de talentos. Cada vez estão mais a rariar e o que se verifica é que em Portugal é que,
nas cidades onde os miúdos deixaram de ir para a rua, as escolas têm agora mais
dificuldades em encontrar talentos, e onde se encontra mais talentos ainda é na zona
de Lisboa onde têm influência dos miúdos da raça africana que continuam a brincar na
rua, na zona da Amadora, toda aquela zona ali nós encontramos, que é um feudo de
miúdos que vão para as escolas do Benfica e do Sporting e que são miúdos que
geneticamente, têm alguma carga motora e que depois são desenvolvidas pela
actividade que os miúdos fazem na rua.

(J. M.) - O professor falou agora dos africanos e há pouco falou no


continente africano onde eles muitas vezes jogam descalços. Vê-se que
muitos dos talentos de futebol são fruto das dificuldades por que
passaram, jogavam futebol descalços quando eram mais novos. Isto pode
ter implicações em termos da sensibilidade que eles desenvolvem nos
pés? Uma maior ou menor sensibilidade?

(L. Massada) - O que se verifica é que a adaptação do ser humano, em


relação ao uso de luvas ou do não uso de luvas, do vestimento ou não
vestimento ou de usar a protecção do sapato ou a não protecção do sapato,
não tem assim grande influência. Teoricamente, o pé foi feito para andarmos
descalços (o Professor diz que o calçado ideal para a prática desportiva seria o
jogarem descalços. Se calhar às vezes no treino fazê-lo não seria…) Mas o
que é que acontece? Desde que haja uma alteração biomecânica, por exemplo
de alguma estrutura, em que haja uma anomalia dos eixos mecânicos
fisiológicos, o que é que verificamos? É que a natureza, ao fim de 6 meses a
um ano, um ano e meio consegue compensar muitas dessas alterações. Isto o
que é que quer dizer? Se um pé que está habituado a andar descalço, e de um

XXXVII
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

momento para o outro começa a ser protegido pela acção do calçado, por
muitas alterações biomecânicas que surjam, pela diminuição de um
determinado jogo articular, pelas articulações que trabalham de uma forma
mais marcada, outras de forma menos marcada o que se verifica é que,
teoricamente, em termos biomecânicos, ao fim de um ano um ano e meio a
natureza habitua-se a isso, habitua-se a essa nova mecânica. Quer isto dizer
que o indivíduo que nasça e que ande descalço, em que a sua cultura não usa
sapatos, nas primeiras fases há um período de adaptação e que depois,
curiosamente, o que se verifica é que quando eles deixam de usar sapatos e
voltam a andar descalços não conseguem fazer isto. (já faz parte deles por
assim dizer, o calçado).

(J. M.) - Refere, num dos livros, que a utilização do «tapping» no


tornozelo ainda não se encontra comprovada, e que parece estar
relacionada com o aumento de lesões. Depreende-se daqui que não faz
muito sentido os miúdos, desde muito cedo, começarem a ligar os pés
nos clubes, uma prática que muitas vezes é generalizada.

(L. Massada) - Isso aí é conforme o conceito das pessoas e a experiência de


cada um. Há estudos que neste momento que, dizem que o «tapping» e o
«strapping» da articulação diminuem a gravidade das lesões. Há outros que
dizem que não. Portanto, teoricamente, há quem acredite que não diminuem as
entorses, mas, por exemplo, que diminuem a gravidade das mesmas quando
elas aparecem. Isso parece que é verdade, mas o «tapping» ou o «strapping»
da articulação, neste caso específico do tornozelo, poderá ser utilizada porque
a compressão da zona afectada, desde que não seja muito intensa, dá uma
sensação de maior estabilidade em termos emocionais e menos sensação de
dor (mas numa modalidade como o futebol em que há o contacto do pé com a
bola, poderá perder alguma sensibilidade…) Teoricamente, se restringir a
mobilidade de uma articulação outras têm de ser sobrecarregadas. Portanto no
caso, mesmo havendo estudos a dizer que há alguma protecção no caso de
haver o «tapping», no caso de haver imobilizações do tornozelo penso que

XXXVIII
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

essas imobilizações não deverão ser rígidas, não ser funcionais e permitam,
uma mobilidade quase normal do tornozelo para lhes permitir com que os
movimentos normais das articulações possam ser feitas.

(J. M.) - Agora, para terminar, o professor refere que o desporto em geral
não é uma fábrica de deficientes. Pode se dizer que a prática do futebol,
desde que balizada por determinadas orientações, no caso porque não
pegar em muito do que se fazia no futebol de rua, pode ser indicada sem
qualquer reserva à generalidade das crianças? Não vê qualquer potencial
patológico?

(L. Massada) - Não. Nós verificamos que todos os atletas de alta competição
campeões do mundo, no caso específico do futebol e de todas as modalidades
desportivas, mesmo sendo sujeitos muitas vezes devido aos traumatismos das
cirurgias repetitivas, quer a nível dos joelhos quer a nível das ancas, o que nós
verificamos é que ao fim de um ano, ano e meio após o abandono da pratica
desportiva a maior parte dos sintomas desaparecem. Qualquer que seja a
modalidade desportiva, mesmo naquelas potencialmente agressivas como o
halterofilismo, em que os indivíduos fazem arrachés de 200 quilos, o que é que
se verifica? Que mesmo havendo essa incidência da chamada falsa artrose do
desportista, com alterações degenerativas das articulações hipersolicitadas, os
futebolistas, ao fim de um ano, ano e meio de abandonarem a prática
desportiva são indivíduos normalíssimos em todos os aspectos. Normalíssimos
não só, em relação à incidência de patologias. Em termos esqueléticos eles
deixam de ser assintomáticos, nós verificamos isso, que a maior parte deles
continuam a fazer pratica desportiva através de treinadores, e nós não vemos
treinadores mancos. Teoricamente até seria uma vergonha para eles, andarem
a treinar mancos. E depois voltam, ao fim de uma ano, ano e meio, volta tudo à
normalidade, em termos de stresses mecânicos os sintomas desaparecem na
maior parte das articulações. E uma coisa que é extremamente importante, é
que um campeão olímpico, um campeão do mundo de futebol aos trinta anos
que abandonou a prática desportiva, deixou de fazer actividade desportiva, ele

XXXIX
Anexo 2 (Entrevista a Leandro Massada)

tanto volta à normalidade, que a probabilidade de ele desenvolver um enfarte


do miocárdio é igual à de um indivíduo sedentário, ao fim de um ano, ano e
meio, a possibilidade de ele voltar a ter um enfarte do miocárdio por não fazer
actividade desportiva volta, como se ele nunca tivesse feito desporto. Portanto,
em termos teóricos o que se tem demonstrado, e que nós temos verificado isso
é que os estudos científicos podem dizer, há aumento disto, aumento daquilo,
mas na prática nós vamos ver campeões olímpicos, campeões mundiais de
todas as modalidades desportivas, sejam elas da natação, sejam elas da
ginástica desportiva, do pólo aquático, qualquer que seja a modalidade
desportiva são indivíduos normalíssimos, são referências da própria sociedade.
E se essas referências fossem referências de indivíduos traumatizados, de
indivíduos mancos, de indivíduos com deficiência, logicamente que o desporto
não seria tão idolatrado como é actualmente (Então é deixar as crianças
praticarem) fazer actividade desportiva normalmente.

XL
Anexo 3 (Entrevista a Luísa Estriga)

Anexo 3: Entrevista a Luísa Estriga


Professora e Aluna de Doutoramento na FADEUP
Instalações da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
Entrevista realizada por Jorge Maciel, 20 de Abril de 2008

Jorge Maciel (J. M.) - Tendo vindo a tentar entender até que ponto a
especificidade do processo de treino se relaciona com a maior ou menor
incidência de lesões nos desportistas, no caso, mais no andebol
feminino. A que conclusões tem chegado, e com base no que tem lido, o
que é que é sugerido?

Luísa Estriga (L. E.) - Porque é que há tantas lesões? É isso que me estás a
perguntar?

(J. M.) - Ou se há alguma coisa que indique...

(L. Estriga) - Sobre isto quero dizer-te que talvez eu não tenha entendido
bem a tua questão. Mas para esclarecer, a especificidade do treino tem tudo a
ver com as patologias específicas de cada modalidade, particularmente no que
diz respeito às de sobrecarga (overuse). Mas se quiseres ir mais longe também
interfere, e muito, na re(abilitação) desportiva pós lesão (pós alta médica). Há
um outro domínio que decorre da especificidade da carga inerente ao próprio
jogo. E há algumas diferenças, por exemplo, entre homens e mulheres
relativamente à incidência lesional. Incidência é o número de lesões por 1000
horas de prática ou por 1000 horas de jogo. Deste ponto de vista não há
grandes diferenças entre os homens e mulheres, em especial quando
estudadas as competições internacionais mais importantes (seniores). Mas
existem diferenças metodológicas e amostrais que limitam a comparação entre
estudos. Por exemplo, é difícil comparar um campeonato regional com o mais
alto nível de prática, fundamentalmente por causa do modelo de jogo, estamos
a falar de modelo de jogo e modelo(s) de atleta(s) completamente diferentes.
Aquilo que me parece é, que de facto há aqui uma especificidade de um

XLI
Anexo 3 (Entrevista a Luísa Estriga)

padrão lesional associado à especificidade de uma determinada modalidade,


indiscutivelmente. No caso do andebol há lesões que são específicas da
prática da modalidade, tem a ver com os padrões motores. No caso da lesão
do cruzado, as mulheres lesionam-se 4 a 10 vezes mais que os homens a
praticar a mesma modalidade. E lesionam-se sem oposição, quando o andebol
é considerado um desporto de contacto; e é por ser um desporto de contacto e
de invasão que se encontra uma taxa de lesões traumáticas superior a outras
modalidades. Mas é um facto que a lesão mais grave é a lesão do cruzado, o
que leva muitas vezes ao abandono da carreira desportiva de atletas muito
jovens, estamos a falar de por vezes potenciais talentos com 16, 17, 18, 19
anos. O facto da lesão ocorrer usualmente sem contacto e quase sempre em
jogo, numa mudança de direcção e enquanto estão em determinadas posições,
ou seja quando estão em determinadas funções em jogo, levanta-nos algumas
questões. Porquê só em jogo? Porquê naquela idade? Isto tem a ver com a
especificidade, no meu ponto de vista. Agora quer isto dizer que as preparamos
mal, até aquela fase em que a exigência defensiva aumenta? Porque ainda que
faça uma mudança de direcção sem contacto, eu fiz uma mudança de direcção
para ultrapassar a defesa, se isso traduz-se num aumento da velocidade, se
traduz num superior afastamento dos membros inferiores, que aumenta o
stress do ligamento cruzado é outra questão. E que é que os autores têm
verificado? Neste momento, qual a grande dúvida? Ainda não é claro, quais
são os factores de risco, ou seja, há muitos factores de risco e parece que eles
interagem. Quando se estuda um único factor, por exemplo, a força muscular,
não se encontra relação entre os níveis de força, ou os desequilíbrios entre os
quadricípetes e isquio tibiais e a ocorrência de lesão, quer dizer que
provavelmente existem vários factores que se influenciam uns aos outros e
depois não se conseguem isolar; não se consegue perceber qual o factor
determinante, são um conjunto de factores que possivelmente interagem. Se
calhar há pessoas que estão mais em risco que outras. O que a mim me
parece claro é, que há idades de risco é, há posições de risco, posições que
tem a ver com as funções de jogo, com a especificidade, do que é o jogo.

XLII
Anexo 3 (Entrevista a Luísa Estriga)

(J. M.) - E essas funções e essas posições, se calhar, são tanto mais de
risco quanto menos especificidade for contemplada no processo de
treino.

(L. Estriga) - Agora, qual a grande preocupação dos primeiros anos da


formação? É a prevenção. É olhar para o treino e pensar, como é que eu posso
prevenir. As orientações focam a importância do treino na melhoria dos níveis
de força e correcção de desequilíbrios, mas num contexto específico. Mas mais
importante é o controlo neuromuscular e a proprioceptividade. Relativamente
às mulheres, por questões anatómicas, elas fazem as mudanças de direcção e
recepções de forma diferente do homem, o que leva os autores a sugerir que é
nas situações especificas, dinâmicas e contextualizadas, o problema do
alinhamento dos membros inferiores deve ser corrigido.
Não sei se me estás a entender... (estou). E então, começou-se por se fazer
isto em idade sénior, tendo-se observado uma diminuição da incidência lesional
no LCA. Eu tenho algumas dúvidas sobre a forma como estes estudos têm sido
feitos, mas as orientações actuais apontam para que se comece a fazer
prevenção antes desta idade, durante a formação, antes de chegarem à “fase
crítica”, em idade e escalão (modelo de jogo).

(J. M.) - Ou seja, vai de encontro com aquilo que eu procuro defender,
que a especificidade deve de facto ser um requisito do treino, mas não do
treino só a nível do rendimento superior, também na formação, aí se
calhar é tanto mais fundamental e faz cada vez mais sentido, visto que os
miúdos e as miúdas, cada vez começam mais cedo a procurar a prática
formal das modalidades, e nesse sentido a necessidade de prevenir,
porque as lesões quando surgem, pelo que disse, são aos 17, 18, 19 anos,
quando elas...

(L. Estriga) - Já passaram alguns anos até chegar lá...

XLIII
Anexo 3 (Entrevista a Luísa Estriga)

(J. M.) - Ou seja, há uma habituação, e uma adaptação do corpo que não
é talvez a mais ajustada, para a especificidade da actividade que eles vão
desempenhar.

(L. Estriga) - Para entenderes isso, eu teria de entrar em algumas questões


do processo de treino, nos escalões de formação, que eu acho que estão
desajustados, o tem a ver com a especificidade. Eu acho que se treina pouco e
pouco específico, não é em função da equipa sénior, do que são os padrões
seniores, mas é o especifico que é o próprio jogo daquela idade. Eles chegam
ao jogo e têm uma exigência diferente daquela que têm no treino, mas isso não
é relevante porque estamos a falar de infantis e iniciadas, quando ainda não
têm grandes dificuldades em ultrapassar a oposição que encontram no jogo
formal. As raparigas) não têm grande dificuldade e isso acaba por passar
despercebido aos treinadores, mas quando chegam às juvenis e juniores aí sim
é diferente, os problemas que se lhe apresentam são diferentes. (Ou seja,
depreende-se aí que...) Se calhar há uma má preparação para os problemas
de jogo, mais que tudo.

(J. M.) - Além de para o próprio jogo, também para o jogo em termos de
gerais para a competição, sobretudo. O que eu depreendo daí é que se
calhar o treino, além de não contemplar uma determinada especificidade
de jogo ou de um jogar de uma determinada equipa para o qual, se calhar
os jovens já deviam ser preparados, também não contemplam, pelo que
tenho visto ao longo da pesquisa que tenho feito na minha monografia,
que é a competição que é fundamental na formação dos miúdos. Ou seja,
o treino desde as idades mais precoces deve contemplar, para fazer
sentido a tal lógica de especificidade, a competição. E se calhar é esse o
grande défice que acontece na formação e se calhar os próprios quadros
competitivos serem desajustados, porque de um momento para o outro
há um choque, por assim dizer, para o qual não estão preparados, e no
entanto quando passam a seniores tem de se confrontar com eles.

XLIV
Anexo 3 (Entrevista a Luísa Estriga)

(L. Estriga) - Eu acho que no andebol, nós temos uma estrutura de


competição desajustada, não é uma questão do quadro competitivo, é o próprio
jogo que não está ajustado aos 10, 12 anos, ou seja, a lógica de ter um jogo
formal nos 10, 11 e 12 anos. Nos bambis aos 10 anos jogam 5x5, óptimo
trabalho, muito bem. Quando passam dos bambis para os infantis jogam 7x7.
Tu deste didáctica aqui, e deves perceber a dificuldade que é para os miúdos
de 10 anos jogar 7x7. O que é que acontece, ainda por cima tens treinadores
que fazem sistema defensivo 6:0, então, tu “no outro lado” basta teres um ou
outro que remate mais ou menos de primeira linha e resolvem este problema e
como tal vão “devagar, devagarinho” até ao ataque. E quando há contra
ataque, é só uma ou duas que são mais evoluídas para aquele nível e que
resolvem o jogo. Normalmente o jogo de infantis, erradamente, é muito
suportado em duas ou três, todas as outras (e exclui todas as outras). E
mesmo assim, se formos ver a frequência com que fazem mudança de
direcção e para que lado a fazem, é pequena. E depois tens o treino que é
muito pouco específico. Quando elas chegam às seniores, aos juniores
seniores, como são escalões mais evoluídos, e então nas seniores, e muitas
das miúdas lesionam-se. São miúdas que jogam nos juniores e como são
melhores juniores passam rapidamente a jogar nas seniores. Como temos
poucas praticantes em Portugal, as melhores passam lá para cima. Então elas
têm de aprender a resolver problemas que não estavam habituadas, e já não é
só aqui que se coloca o problema, é que tudo o resto, é que isto é um todo não
é? Se tem a ver com isso, porque é que elas não se lesionaram antes disso?
Algumas delas tiveram a menarca aos 12 anos. Lesionam-se aos 18 porquê?
(Porque é aí que tem as exigências...) as exigências competitivas. É uma
especificidade diferente. O jogo é diferente, e eu não tenho dúvidas que é.
Porque apanham seniores que jogam há muitos anos, que tem muitos anos de
prática e que lhe tiram, por exemplo o lado forte. No andebol, lembraste das
fintas? Fazes finta para o lado de forte, as miúdas fazem finta para o lado de
“fora” na formação e resolvem aquilo facilmente e habituam-se, mecanizam
aquilo. Chegam às seniores não têm esse lado forte, porque elas tiram, e agora
ir para o outro lado? Claramente, não estão preparadas para isso e basta um

XLV
Anexo 3 (Entrevista a Luísa Estriga)

toque que elas ficam desequilibradas. Há muitas lesões que têm a ver com
isso.

(J. M.) - Quando focou, o facto das miúdas não jogarem, e do jogo ser
suportado em duas ou três, e mesmo assim elas não terem propensão
para determinados comportamentos que seria a mais desejada, tanto em
jogo como no treino, isso evidencia muito a importância de jogos
reduzidos no treino.

(L. Estriga) -…no treino e nessas idades, até na própria competição devia
ser um jogo reduzido, porquê? Por causa do espaço, para perceberem qual a
lógica do espaço, no andebol. Aquilo até é demasiado espaço...

(J. M.) – Também, pela gestão do tempo de decisão e tudo isso...

(L. Estriga) - Tudo! Isso é outro dos aspectos determinantes. Eu acho que há
aqui uma quebra grande, e não tenho dúvidas nenhumas. E que o problema
está no treino, está. E que o problema está na formação até ali, está. Não
tenho dúvidas.

(J. M.) - Em relação àquilo que falou, lá está, o corpo é um todo, e esse
processo de treino ao longo de anos durante a formação, se calhar
desajustado, vai se repercutir a esse nível, no todo também. Até que
ponto esta plasticidade que o treino induz numa adaptabilidade, até que
ponto, isto é tanto mais possível quanto a especificidade for
contemplada, e de que forma isso se revela tanto no cérebro como no
músculo como nas relações entre ambos, que talvez seja o mais
importante.

(L. Estriga) - Isso é uma pergunta pertinente, mas de difícil resposta. Do


ponto de vista muscular, e conheces o biodex. Do ponto de vista muscular,
temos a dizer que se os isquíotibiais forem fracos comparativamente aos
quadrícipetes o risco de lesão do cruzado está aumentado. Então é de esperar

XLVI
Anexo 3 (Entrevista a Luísa Estriga)

que com a prática as atletas chegassem aos 17, 18 anos mais desequilibradas,
que isso fosse um factor. Estás a acompanhar o meu raciocínio? Nós
verificamos, que elas são mais desequilibradas nos primeiros anos e quando
entram. Quer dizer, que elas se tornam mais equilibradas com a prática. Ainda
assim têm valores abaixo dos valores de referência, mas todas elas têm. Todas
elas têm níveis, o rácio entre isquíotibiais e quadrícipetes inferior àquilo que é
proposto na literatura. Factor de risco todas têm, mas é curioso que só algumas
se lesionam, e é quando estão a fazer determinada função (lá está, porque se
calhar há uma adaptação mecânica...); agora, os músculos são muito
importantes. São muito importantes na estabilização do joelho, são
determinantes para tudo. Os músculos do trem inferior, e olhando só para
esses, e esses são importantes na estabilização activa do joelho para a função,
daquelas posições. Eles falham, falha a parte muscular e falha a parte
ligamentar. Quer dizer que eles são expostos a algo, que ocorre no jogo que eu
não consigo reproduzir no treino, ou mais que isso, não consigo prevenir no
treino. O que levanta sérias questões, mesmo do ponto de vista muscular. Se
isso é tão importante, também ao nível de propriocepção. Se depois há algo
que tem a ver com o inconsciente, que tem a ver com o como é que eu decido,
a percepção que eu tenho da situação e como é que eu decido, naturalmente
que deve ter. Fadiga não é, porque elas lesionam-se em qualquer altura, não
se lesionam no final do jogo nem no final... (Final das épocas, nem.. ) Não! Não
há uma relação entre uma fadiga e isto. Há provavelmente um problema de
controlo muscular, neuromuscular. Hoje a grande orientação está no controlo
neuromuscular.

(J. M.) - Daí a necessidade de entender o músculo e os tecidos que


sustentam o movimento não somente como efectores, mas se calhar
como estruturas inteligentes, por assim dizer. Que conseguem captar o
contexto e adaptar-se, em função da experiência motora.

(L. Estriga) - É nessa lógica que faz sentido que, eles estejam a investir
neste momento na prevenção nos escalões de formação nessa questão

XLVII
Anexo 3 (Entrevista a Luísa Estriga)

inteligente. Um dos factores, que parece contribuir é o desalinhamento do


membro inferior. Porque é que ele acontece num determinado jogo, num
determinado contexto em função de determinada posição e não aconteceu
antes? Quer dizer que não treinei especificamente, a especificidade suficiente
para o tipo de defesa que me vai aparecer nas séniores. Mas, porque é isto
aconteceu precisamente naquela idade, mais naquele lugar. Quer dizer que
falhou aqui alguma coisa, e é o controlo neuromuscular, é. A que nível,
ninguém sabe muito bem.

(J. M.) - Uma vez que lida mais com jovens do sexo feminino se calhar
não tem tanta percepção, mas provavelmente também tem, porque vê o
andebol masculino, também tem um filho percebe o que é que se passa
com ele. O facto, de cada vez menos as vivências dos miúdos irem no
sentido da variabilidade e do enriquecimento do repertório motor, por
exemplo quando andavam descalços, brincavam na rua saltavam, até que
ponto isto também ser um aspecto importante ou pode levar a uma maior
prevenção, por uma educabilidade desses neurotransmissores e das
estruturas propcioceptivas. Até que ponto isto, pode interferir na maior
propensão de lesões, a diminuição destas vivências?

(L. Estriga) - No caso feminino é claro, mas nós não temos muitos padrões
de comparação vou-te explicar porquê. Porque o boom da participação da
mulher no desporto é mais recente. (Pois, por isso é que se calhar não há uma
percepção tão grande.) É difícil, mas parece que o número de lesões não tem
vindo a aumentar. Houve um boom de lesões, particularmente quando se
começaram a ver mais jovens na prática desportiva. Entendes o que eu estou a
dizer? (Se calhar houve um descurar do treino...) É difícil estar a avaliar isso,
mas eu não tenho dúvidas que essas vivências motoras enriquecedoras, e de
alguma forma também de exploração motora que as crianças hoje não têm, de
descoberta, não têm essa possibilidade, eu acho que é limitador e tanto mais
limitador, quanto mais eles entram num processo de especialização, de

XLVIII
Anexo 3 (Entrevista a Luísa Estriga)

mecanização de determinadas soluções, para um jogo que exige outro tipo de


soluções, que é isso que eu acho que acontece.

(J. M.) - Lá esta, especialização versus especificidade.

(L. Estriga) - É diferente, eu concordo contigo, ou seja, nós incorremos numa


especialização sim, e o maior problema não é ser especialização, é o tipo de
especialização, que é a mecanização de um padrão motor que não
corresponde àquilo que depois acontece em jogo. Eu fazer “esquerda-direita-
esquerda” sem oposição, ensinar isto quando chego ao jogo, e tenho um
defensor em que o esquerda-direita-esquerda não serve... (é esterilizar o jogo).
É isso que acontece, é isso que tem vindo a acontecer, e é o que tens no
andebol, e eu não sei o que vai acontecer nos próximos anos, mas o jogo de
andebol está a evoluir muito ao mais alto nível. Ou seja, é um jogo mais rápido,
maior número de decisões, menos tempo para decidir, menos jogadores
envolvidos nas decisões, isso é o que está a acontecer ultimamente. Se isto se
vai traduzir num maior número de lesões, por exemplo? Se calhar vai. Mas só
vai se o treino não preparar para aquele tipo de jogo que está a haver agora.
Agora, as raparigas é possível que tenha a ver com isto, é possível.
Depois há muitas coisas curiosas, há uma atleta da selecção nacional que
rompeu o cruzado, e eu perguntava-lhe: “mas porque achas que rompeste o
cruzado?” e ela: “ na verdade eu não entendo bem, porque foi na altura que eu
estava mais forte fisicamente, foi na altura que fazia mais musculação”. Humm!
Mais musculação é, curioso, ela fazia mais musculação, mas não quer dizer
que aquela musculação que ela fazia tivesse, transfere directo para as
exigências, antes pelo contrário. Antes pelo contrário. Se calhar aquela
musculação, que é descontextualizada da prática, induziu exactamente o
contrário, menos estabilização do joelho. (E não é só isso)...até alteração no
padrão muscular, provavelmente, estou eu a especular.

(J. M) - E até das próprias estruturas perceptivas do movimento. Porque


o musculou hipertrofiou, mas não o educou, ou educou de uma forma

XLIX
Anexo 3 (Entrevista a Luísa Estriga)

contraproducente, para aquilo que era desejado, para a especificidade


que ela...

(L. Estriga) - Pode até ter induzido em desequilíbrios. Elementos de


destabilização a nível do joelho, por ter musculado músculos que ela não
(alterações biomecânicas que...) Exactamente! Isto é, neste momento a grande
maioria da investigação centra-se nas questões neuromusculares, também da
prevenção de lesões a nível do cruzado. Isto é muito especulativo.

(J. M.) - Mas contudo, implica um entendimento diferente daquilo que se


tem vindo a fazer.

(L. Estriga) - Claramente, e acho que também é um salto, hoje em dia os


grandes investigadores nesta área da prevenção dizerem, que a prevenção
tem de ser o acima de tudo, e que esta educação motora, ou seja, que esta
educação motora, esta educação neuromuscular se quiseres deve contar
desde o início. Mas, eu só consigo corrigir isto, repara, eu só consigo corrigir
isto, e isto é tanto mais importante quanto maior é a velocidade, porque quando
elas são mais novinhas, elas fazem isso a menor velocidade, o problema é
quando aumenta a velocidade como deves imaginar.

(J. M.) - E a interferência contextual da maior oposição.

(L. Estriga) - Exactamente, por isso quanto mais cedo eu começar este
reeducação, com estas preocupações do ponto de vista neuromuscular, e da
orientação do membro inferior na realização de determinadas situações. Mas,
eu também só consigo corrigir se for dentro daquela especificidade que ocorre
no jogo. Se eu estiver a fazer, a corrigir o alinhamento do membro numa
situação em que ela está na posição frente à baliza, não faz muito sentido.

(J. M.) - Podemos então, desta conversa, até ao momento, ter pelo
menos três pontos-chave, que talvez entronquem naquilo que eu defendo

L
Anexo 3 (Entrevista a Luísa Estriga)

ser a especificidade precoce, ou seja, já contemplada desde muito cedo,


que são: a necessidade de competição no treino, ou de uma estrutura
análoga àquela que eles vão encontrar no jogo, contemplar isso nos
treinos; a necessidade de variabilidade em termos de reportório motor em
especificidade e em especificidade em função não só do jogo que se
pretende para aquela equipa, mas também da própria estrutura, do padrão
motor por assim dizer, daquela modalidade, ou seja, variar dentro daquele
jogo; e a necessidade de educar o músculo, atendendo também aos
aspectos neuromotores, não só em termos da atrofia, da carga, do treino
convencional, por assim dizer.

(L. Estriga) - É como tu dizes, o mais importante nisto tudo é a


especificidade. E tem a ver com as especificidades do jogo de andebol, e a
especificidade do jogo engloba isso, é variabilidade, é competição é uma
competição contextualizada. Ela é específica, sendo especifica (específicas da
modalidade, e do jogo daquela equipa, mais do que...) ok, eu percebo o que
estás a dizer, mas eu, não tenho dúvidas que a competição é um factor
determinante, até por questões motivacionais, e isto tem… Não é preciso mais,
se eu juntar a esta especificidade, se quiseres do ponto de vista dos problemas
que o jogo coloca, e da resolução juntando com competição, obviamente que, a
especificidade passa por isto tudo.

(J. M.) - E lá está, o talento para mais tarde vir a afirmar-se tem de ter
esta competição, tem de ter a capacidade de superação e isso tem de ser
contemplado, senão, se ele se vê de um momento para o outro deparado
com uma situação para a qual não consegue dar resposta, pode ser a
frustração total e além…

(L. Estriga) – Eu tenho alguma dificuldade, em imaginar um treino em que


não tenha competição, um exercício que não tenha competição.

LI
Anexo 3 (Entrevista a Luísa Estriga)

(J. M.) - Competição pode ser muito vasto, agora aquela competição
deve estar não só ajustada aquela pessoa, aquele grupo no caso, neste
caso são jovens e crianças na formação, e também ajustado aquilo que o
treinador pretende para aquele grupo. Daí a especificidade não só da
actividade, mas do jogar que se pretende.

(L. Estriga) - A especificidade entra em linha de conta com várias questões,


nomeadamente em relação à idade, às características que aquele grupo tem
em particular… Isto é, muito complexo.

(J. M.) - Em termos da especificidade, esta especificidade implica um


entendimento do jogo como algo plural, ou seja, eu tenho esta equipa,
face a estes jogadores eu posso pretender este tipo de jogar, se tiver
outra equipa e tiver outro tipo de jogadores ou outro treinador pode ter
outra concepção de jogo completamente diferente, logo um concepção de
treino diferente, logo é um entendimento plural. Agora isto vai implicar
também, diferentes tipos de inteligências corpóreas, lá está a educação
do músculo e dos receptores, dos fusos neuromuscular, dos complexos
de golgi, tudo isso, uma educação diferente para aquele jogar. O que vai
também implicar diferentes anatomias para aquele jogar. Porque se eu
tenho um jogo, no caso do andebol, que aposta mais em mudanças de
direcção, que aposta mais no confronto e isto pode determinar os tipos
de comportamentos por parte da equipa. Vou querer que os meus
jogadores, tenham uma adaptabilidade tal, que lhes permita dar a
resposta a essas exigências da mesma forma que isso, se calhar vai ter
implicações em termos biomecânicos, ou seja, a especificidade vai
permitir contemplar inteligências diferentes, para aquele jogar implica um
conhecimento diferente para se jogar aquele jogo e isso vai ter
repercussões na anatomia dos próprios jogadores, que vai variar se
calhar em função das posições que ocupam em campo e também da
própria biomecânica dos próprios jogadores.

LII
Anexo 3 (Entrevista a Luísa Estriga)

(L. Estriga) - Eu percebo o que estás a dizer. No contexto do andebol, nós


temos infantis, naquelas idades, eles começam entre 9, 10 anos mais ou
menos, no futebol não é bem assim, por isso estamos a falar de algo que é à
partida diferente e não temos “excesso” de miúdos. O que acontece é que
dentro daqueles que temos, temos que tomamos decisões em função do que
são os problemas de jogo, ou seja, do jogo que vou ter no fim de semana, e
tomo as decisões de acordo, com a função que ele irá ter no jogo. E prepara-se
os miúdos para esse jogo. Não quer dizer que não tenham de passar todos por
uma série de aprendizagens, que não haja ali uma especificidade que é mais
global, que é mais pluridisciplinar se quiseres, mais multivariada no início. Eu
acho que é mais... se isso se traduz em características anatómicas, há aqui um
aspecto em que não tenho dúvidas, a altura é algo que é geneticamente
determinado, e se tu tiveres um atleta grande tendes a colocá-lo em
determinadas posições e depois, a partir disso, há alguma especificidade, mais
neuromuscular, relativamente às solicitações que o jogo coloca, à
especificidade das suas intervenções, se calhar sim. Mas, parece-me que o
que marca de facto, todos esses padrões que estás a dizer é o treino
associado à função. Costuma-se dizer que a função faz o órgão, e eu não
tenho dúvidas que a função que ele vai desempenhar tem muita a ver com isto.
E na formação tem muito mais a ver com a capacidade de jogar, com o saber
jogar, com entendimento que eu tenho do jogo, ou ser capaz de resolver os
problemas de jogo mais depressa, do que propriamente o facto, de ser muito
alto… Acontecem situações de excepção. Tens um atleta muito alto e canhoto
e como há poucos canhotos na população e pensas assim: “bem este é
canhoto, vamos ver se ele dá alguma coisa a lateral direito, e vais colocá-lo
perante uma série de problemas que têm a ver com aquela função para ver se
ele se adapta e se consegue evoluir naquela posição. Se ele não evoluir ali,
então vamos “encostá-lo na ponta”, mesmo que seja alto. Senão acaba por ser
excluído.

(J. M.) – Mas, o que eu estava a tentar dizer é que a existência de uma
concepção de um modelo de jogo, e isto, modelo de jogo cada equipa

LIII
Anexo 3 (Entrevista a Luísa Estriga)

pode ter um, poderá indicar diferentes... ou seja, não pode levar a que nós
entendamos os jogadores de uma forma estanque, ou seja, este jogador
para este jogar pode ter uma adaptabilidade diferente do que aquele
jogador se submetido a um processo que contemple, outro modelo de
jogo e aí a especificidade vai contemplar diferentes inteligências, próprias
daquele jogar, diferentes anatomias próprias daquele jogar e diferentes
biomecânicas, próprias também daquele jogar.

(L. Estriga) - Nos seniores eu acho que isso é, indiscutível, em função do


modelo de jogo que o treinador tem na cabeça, ele vai tentar, se lhe for dada
essa possibilidade, encontrar peças para aquele modelo de jogo, para a ideia
que ele tem de jogo. Ele tem um modelo de jogo e vai tentar que eles façam
aquilo que ele pretende. Se não tiver hipóteses de outras atletas, vai dentro
daquele grupo tomar decisões, “eu acho que este consegue fazer isto como eu
quero aqui, ou ali”. Nos miúdos nós temos outro problema, não é só o modelo
de jogo que temos como problema na formação. É o modelo de treino. Como é
que eles pensam o treino, e esse é o grande problema, porque depois já não
sei o que é que influencia mais o quê, se é o modelo de treino que influencia
mais o modelo de jogo, ou se é o modelo de jogo que influencia mais o modelo
de treino, entendes, ou se é a lógica de ganhar a qualquer preço, que já não
tem a ver com modelo de jogo ou modelo de treino, tem a ver com a lógica do
ganhar, que é outra lógica que nós temos, isso é outro problema. Isso tem a
ver com os treinadores, com a formação dos treinadores, com o perfil dos
treinadores. Da concepção que aquele treinador tem, naquele contexto de
formação, dos miúdos, entendes o que eu estou a dizer? Há treinadores que
não estão muito preocupados com o modelo de jogo, eles querem é ganhar e o
modelo se calhar é isso, o modelo que eles encontram no jogo é só, pela lógica
do ganhar. E tu nos infantis tens jogadores que aqui em Portugal, jogam na
lógica de “jogadas” no ataque. Por exemplo, posso jogar com base
fundamentalmente em jogadas e como tal “bloqueia não sei onde e não sei
como”, até marcarem golo e se calhar até ganham, mesmo que não percebem
o que estão a fazer. Como o outro lado, ainda não consegue resolver aqueles

LIV
Anexo 3 (Entrevista a Luísa Estriga)

problemas, não consegue porque são miúdos ainda muito imaturos, aquilo
resolve e ele é o “maior lá da terra dele”, ou do “clube dele”, da “quinta dele”,
porque até ganhou, e foi campeão nacional de infantis. Mas para se jogar
daquela maneira, perguntas como é que treinei, treinei com jogadas, cai por
terra tudo aquilo que estávamos a dizer. Isto traduz-se no modelo de jogo
alicerçado na lógica do ganhar. Ele vai criar um modelo de jogo para aquela
lógica do ganhar (para aquele nível é suficiente, mas...) mas sem estar
preocupado com o resto. Não tem se calhar capacidade para perceber, a outra
dimensão, e a importância que isso tem. (Tudo isto vai reforçar a necessidade
da especificidade precoce.) Agora, quando estamos nos seniores é diferente.

(J. M.) - Mas aquilo que eu penso que se verifica, é que através da
contemplação da especificidade, o que acontece é que se olha para o
Homem que joga como um ser plural. Ou seja, o facto de haver
especificidade no processo de treino e no jogo em termos gerais, ou seja,
o facto do futebol e o andebol permitirem que haja diferentes jogares,
além de pelo facto que já conversamos, poder permitir diferentes
inteligências, diferentes anatomias e diferentes biomecânicas, vai permitir
que também a expressão dos Homens que jogam seja muito diversa. Ou
seja, a antropodiversidade, quanto a mim só é possível, ou à partida só se
expressa devidamente se contemplada no treino a especificidade.

(L. Estriga) - Estamos de acordo.

(J. M.) - E isso tanto mais válido, quanto mais precoce for essa
especificidade no jogar.

(L. Estriga) - Estou de acordo contigo.

LV
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

Anexo 4: Entrevista a Paulo Cunha e Silva


Doutorado em Ciências do Desporto e Mestre em Medicina Desportiva,
Professor da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
Instalações da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
Entrevista realizada por Jorge Maciel, 22 de Abril de 2008

Jorge Maciel (J. M.) - Há vários autores que têm sugerido para o futebol
a aplicação do conceito “fenómeno social total”, de Marcel Mauss. Nós
contudo, apesar de concordarmos com a aplicabilidade deste conceito,
consideramos pertinente para o futebol, que ele deve ser complementado
com o prefixo “antropo”. Entendemos que só assim o futebol se expressa
na verdadeira complexidade do fenómeno que é. Por entendermos que
além de ser um fenómeno exclusivo do Homem, comporta toda a
complexidade do Homem. Até que ponto acha pertinente este
preciosismo, ou não?

Paulo Cunha e Silva (P. C. e Silva) - Eu não creio que seja um preciosismo,
até porque aquilo que verificamos é que a sociologia é cada vez mais também
uma antropologia, ou seja, é difícil concebermos uma sociologia que exclua o
indivíduo da sua centralidade absoluta. Cada vez mais o entendimento das
sociedades, da sua organização e do seu funcionamento, é um entendimento
que não pode desprezar o indivíduo na sua radicalidade participativa. O
indivíduo é seguramente alguém que condiciona a sociedade. É claro que há
depois mecanismos de balanço entre o indivíduo e a sociedade, um regime de
trocas aberto entre o indivíduo e a sociedade, são sistemas abertos. Acho que
uma sociologia atenta ao Homem, uma sociologia humanística se quiser, não
pode deixar de ser uma antropossociologia, e portanto, nesse sentido, essa
extensão até ao futebol, acho que pode ser absolutamente pertinente. Mas aí
atrevia-me a falar também e a pôr ainda um outro prefixo que seria o de
bioantropossociologia, portanto, acho que o futebol é uma
bioantropossociologia, no sentido de que não dispensa a natureza biológica do
Homem e a convoca e por isso é que o futebol é um sistema de camadas

LVII
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

múltiplas, é um fenómeno de boneca russa, (de casca de cebola) ou de casca


de cebola se quiser, em que há uma situação de mundos dentro de mundos,
dentro de mundos. Portanto, os nossos colegas bioquímicos dirão: “bom que o
futebol também é um conjunto de acontecimentos bioquímicos”. Acontecimento
até no sentido epistemológico do termo, é qualquer coisa que aparece, e que
se manifesta e se evidencia e subitamente nos convoca para a sua diferença.
Um acontecimento é qualquer coisa, digamos, que de certa forma consegue
rasgar a pele da realidade e impor-se, a partir da sua diferença e da sua
capacidade de provocar perplexidade em quem o observa. Há também o valor
estético e se quisermos continuar a prolongar essa locomotiva de sufixos e
prefixos… (as extensões são tantas… lá está, se calhar está tudo subordinado
à dimensão Homem). No meu doutoramento falo um bocado sobre isso, sobre
o lugar do corpo, e a tese fundamental é exactamente essa: se todas as
disciplinas se encontram no corpo para o tentar entender, é possível que
partindo do lugar do corpo consigamos entender melhor as outras disciplinas.
Portanto, o corpo é um óptimo local de observação, e o corpo aqui é no sentido
Humano, (não no sentido do corpo-propriamente-dito), não no sentido da carne
exclusivamente, mas no sentido do corpo Humano.

(J. M.) - A complexidade que acabou de evidenciar implica algumas


dificuldades em termos da categorização, da definição de algumas
categorias antropológicas, pelo menos segundo o entendimento de
Aristóteles e que pelos vistos veio a ser perpetuado ao longo de vários
séculos. No entanto, actualmente há quem defenda que o processo de
categorização deve ser entendido de uma forma mais flexível, por assim
dizer, não tão estanque, com fronteiras mais indistintas. Se calhar, nós
apenas com este entendimento de categorização é que podemos
estabelecer algumas relações com o futebol, ou só deste modo
conseguimos abarcar toda a complexidade existente entre o futebol e o
Homem e as relações entre estes. Não sei se me fiz perceber…

LVIII
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

(P. C. e Silva) - O futebol, além de já o termos designado como fenómeno


social e antropossocial complexo, e bioantropossocial complexo, ou fenómeno
bioantropossocioestético complexo se quiser, é um sistema também... e repare
o futebol é muitas coisas, pode ser, digamos, desde aquilo que nós vemos,
desde o jogo no relvado, até àquilo que se diz na televisão, por exemplo.
Futebol é tudo isso. Mesmo se nos cingirmos ao jogo, ao futebol na sua
nuclearidade, só o jogo já é extremamente sensível às condições iniciais,
mesmo sob o ponto de vista das dinâmicas do caos, das teorias da
complexidade e das teorias do caos. E que é um sistema extremamente
sensível às condições iniciais é exactamente isso, é um sistema cuja evolução
temos imensa dificuldade em perceber, se não tivermos em atenção que é feito
a partir da soma de todas essas complexidades. E a soma de todas essas
complexidades, produz uma complexidade, ainda maior. Portanto, o nosso
dilema também essencial é o seguinte: como compreender uma coisa que à
partida é incompreensível? Ou seja, como compreender o incompreensível?
Como compreender o incomensurável, aquilo que não podemos medir? Eu falo
um bocadinho disso. Todo o treinador, no limite, desejaria ser o deus Laplace.
Sabe quem é o deus Laplace? O deus Laplace é um personagem que estaria
situado num ponto de observação especial do Universo e que, por estar situado
nesse ponto especial de observação, conseguiria compreender o movimento
dos astros. Mas um senhor que se chama Poincaré disse que isso seria
impossível, porque os sistemas astrológicos são também, tão sensíveis às
condições iniciais e essa sensibilidade depende do facto de haver sempre mais
do que três variáveis. Sempre que há mais do que três variáveis a capacidade
que elas têm de se implicar e condicionar a evolução das outras é muito
grande. Nós temos sempre a ideia de que quando aparece o terceiro elemento,
esse terceiro introduz o caos no sistema, mesmo sob o ponto de vista
relacional, as pessoas falam no «ménage à trois», no terceiro elemento ou no
amante como se fosse a figura que viesse introduzir o caos na relação, porque
de facto ele faz com que aquele sistema que estava a funcionar bem, numa
lógica de bipolaridade, comece agora a funcionar numa lógica que deixa de ser
controlável, não é? Agora, os meios de modelização contemporâneos, de

LIX
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

metamodelização se quiser, permitem entender o comportamento desses


sistemas caóticos, porque justamente não vivem angustiados na circunstância
de descobrirem uma variável muito precisa, ou seja, vivem satisfeitos com a
possibilidade das variáveis serem variáveis flutuantes, digamos assim, de não
serem precisas. (por isso é que vivem e progridem, digamos assim…
Contemplam a criatividade.) Contemplam a criatividade, porque a pior coisa
que podia acontecer ao futebol era, tentarmos meter o futebol num tubo de
ensaio e vermos como funciona, e esse já não é o futebol que desejamos, quer
dizer, o futebol que nós vamos meter num tubo de ensaio já não é um futebol
que nós queremos estudar, é um futebol num tubo de ensaio. E portanto, é
fundamental ter em atenção essa situação, ou seja, que as variáveis em estudo
são sempre variáveis complexas, que se implicam mutuamente e que podemos
não ter a capacidade de as categorizar de uma forma muito definitiva e muito
eficaz, mas podemos olhar para o todo a partir da identificação de
idiossincrasias na parte. E é por isso que aí a teoria dos fractais também
funciona bem porque permite identificar segmentos do jogo, comportamentos
invariantes e comportamentos autoreferentes, que depois se vão prolongar em
todo o jogo. E portanto, nós relativamente ao futebol, podemos de certa forma
dizer, que na evolução do jogo nenhum treinador consegue ser o deus Laplace,
porque se não ele tinha a chave do resultado no início do jogo e sabia o que
iria acontecer. (Por isso é que o jogo tem fascínio) Tem fascínio porque joga-se
fundamentalmente nessa dimensão invariante. Mas apesar de tudo, há uma
equipa que é tendencialmente vencedora e outra que será tendencialmente
perdedora, e por isso é que há apostas, e apesar dessas apostas poderem ser
subvertidas, há tendências. As três equipas que ficam quase sempre na frente
do campeonato acabam por ser quase sempre as mesmas. Esse caos é um
caos que cai num território de regularidade, cai num território de possibilidades,
cai numa bacia de atracção. E portanto o que nós devemos construir é essa
bacia de atracção.

(J. M.) - Curiosamente está a tocar em pontos que evidencio na


monografia e nós tivemos essa preocupação, em encontrar algumas

LX
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

categorias antropológicas e, curiosamente, fomos ao facto do futebol e o


Homem serem sistemas complexos, e encontrar relações entre eles, acho
que há traços em comum, ao facto de, por exemplo, contemplar a
criatividade, lá está, através da existência de estruturas dissipativas, da
possibilidade de emergir de novas formas de organização, de novas
complexidades, o facto de serem fenómenos auto-organizados também, e
tudo o que está envolto da matemática da complexidade, achamos que
todos os conceitos são aplicáveis ao futebol, e ao Homem, enquanto
actividade. Curiosamente falou nos fractais e no número três acaba por
ser curioso, porque entendo que no futebol, se calhar, o fractal, o
exercício deverá ser um fractal do jogo, do jogar da equipa.

(P. C. e Silva) - Sim, aliás já escrevi isso. O exercício e o treino devem ser
um fragmento daquilo que irá acontecer.

(J. M.)- Contudo, este número três pode ter alguma pertinência (porquê
o número três, isso é que eu não percebo)… três elementos em
interacção. Para contemplar a criatividade se calhar só a partir do terceiro
é que isso se torna mais evidente.

(P. C. e Silva) - Sim, claro, porque senão um sistema bipolar, ou seja, um


sistema que se faz com dois elementos, é um sistema que tende até
autoanular-se, porque um pode ser o elemento mais e o outro menos e,
portanto, se não há a introdução do terceiro elemento, a capacidade de
evolução do sistema pode ficar condicionada e a criatividade do sistema
também muito condicionada. Um sistema criativo é um sistema que tem a
capacidade de incorporar um novo, não sucumbir perante o novo. É por isso
que a nossa organização biológica é fractal nesse sentido porque ela… repare,
o coração por exemplo, é considerado um órgão regular não é? O coração bate
e nós esperamos que ele bata com alguma regularidade. A pior coisa que
alguém gostaria de sentir é uma fibrilação ventricular que é quando o coração
começa a bater de forma descoordenada, uma situação de disritmia neste

LXI
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

caso, porque mesmo nos fenómenos de taquicardia o coração bate com


alguma regularidade. Agora, as novas análises, nomeadamente as análises
espectrais dizem que todos os intervalos entre os QRS, que os intervalos entre
aquelas pontas do electrocardiograma, são diferentes, não há nenhum intervalo
idêntico, portanto o coração está numa situação de protodisritmia permanente.
E qual é a vantagem disso? A vantagem disso é ele estar preparado em todas
as circunstâncias, em todos os minutos para incorporar uma situação diferente,
uma adversidade qualquer, interna ou externa, medo ou uma coisa qualquer,
portanto, tem uma flexibilidade e uma capacidade de incorporar o novo muito
maior do que aquela que teria se tudo tivesse sido programado, por exemplo,
(na fronteira do caos) Sim na fronteira do caos, e também é assim que funciona
o sistema imunológico, tem também essa capacidade… se o sistema
imunológico tivesse sido condicionado para fabricar anticorpos para todos os
antigenios que havia naquele momento, quando surgisse um novo vírus ele
sucumbiria e nós morríamos imediatamente. E, portanto, como tem esta
capacidade de sintetizar para uma franja e para uma zona fluida, ele consegue
perceber que há qualquer coisa que não é bem aquilo, mas que é parecido
com aquilo e, portanto, tem essa capacidade de se adaptar.

(J. M.) - Daqui e face à possibilidade de nós podermos ter alguma


liberdade em encontrar categorias, pela conversa já podemos depreender
que o facto de o Homem e o futebol congregarem o acto social é uma
categoria em comum à partida, o facto de serem sistemas complexos,
autoorganizados, tudo o que os envolve, a criatividade que vem por
arrasto, e também a existência de inteligências entendemos nós que é
comum ao Homem e que também é uma necessidade para o futebol.
Estas inteligências, se calhar, levam-nos à…

(P. C. e Silva) - É engraçada a forma como você fala no plural. São de facto
isso, inteligências. Há múltiplas inteligências, podemos até falar numa espécie
de inteligências de superfície, inteligência do pé como se a inteligência tivesse

LXII
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

descido até ao pé, e debaixo do calcanhar se organizasse um pequeno


cerebelo.

(J. M.) - Se calhar até é possível educar o músculo nesse sentido, e as


próprias estruturas do movimento. A inteligência, lá está, no sentido
plural, deve ser entendido como algo específico e fundamentalmente
contextual e também operacional. Concorda com estas…

(P. C. e Silva) - Sim, concordo. A inteligência deve ser operativa neste caso,
e portanto, no caso do jogo e do desporto a operacionalidade da inteligência é
fundamental. Eu trabalhei um pouco em torno desses dois conceitos, não sei
se viu, que são o corpo centrífugo e o corpo centrípeto, que são dois conceitos
que tentam explicar justamente mecanismos, por um lado, de concentração e
de organização, e depois mecanismos de desconcentração e de libertação. (e
pensamento convergente e pensamento divergente…) Sim podemos ir por aí,
mas é mais a ideia do corpo centrípeto e do corpo centrífugo, e portanto, a
ideia que desenvolvi é que durante o treino o corpo tem um comportamento
centrípeto, no sentido de acumular, e durante a competição tem um
comportamento centrífugo, no sentido de libertar. Fui buscar de facto duas
categorias antropossociais se quiser: a ideia de vigilância e punição de
Foucault, que é um antropólogo fundamental e que escreveu uma obra muito
importante que se chama “vigiar e punir” e a do Elias & Dunning na busca da
excitação, e portanto, todos os corpos se organizam a partir destes dois
pressupostos, ou seja, todos os corpos desejariam ser sempre centrífugos,
mas o problema é que se fossem todos centrífugos acabavam por se dissipar,
ou seja, no limite todas as pessoas gostariam de estar sempre a drogar-se
porque isso, deve proporcionar sentimentos fantásticos, mas o problema é que
se se drogassem sempre nunca se drogariam, ou seja não faria sentido. O
corpo percebe isto e existe nesta tensão entre a necessidade de acumular e de
se organizar e a necessidade de se abrir e de se dissipar. E é por isso que o
processo de treino é um processo de incorporação no sentido de criação de um
corpo centrípeto, que depois na altura da competição se abre e se liberta. A

LXIII
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

competição está muitas vezes ligada à exaustão e ao êxtase e, portanto, um


corpo seria, neste caso, um corpo adrenalínico e o outro corpo um corpo
endorfínico, ou seja, também falo um bocadinho disso, a circunstância de haver
uma dimensão adrenalínica dentro do corpo que é a dimensão do risco, e de
haver uma dimensão endorfínica que é a dimensão do prazer, digamos assim.
Mas isso para tentar distinguir o corpo radical do corpo virtual. Neste caso, a
ideia do corpo viver nesta tensão entre centrípeto e centrífugo é essencial para
a sua manutenção e para a sua organização.

(J. M.) - E não só do indivíduo, no caso de uma equipa, mas também da


própria equipa não é? Vai viver entre esses dois pólos, resultando das
vivências entre esses dois pólos, resultantes de cada singularidade que
compõe a equipa.

(P. C. e Silva) - A equipa é uma colectividade feita de singularidades. Eu


acho, que a coisa mais errada que os especialistas em futebol dizem é de uma
forma muito definitiva: “a equipa é um todo”. Sim, é um todo, mas é um todo
feito de partes e essas partes são fundamentais, ou seja, não é um todo
homogéneo, é um todo absolutamente diferente do que é um todo… é um
mosaico fluído que é também uma imagem da biologia e da parede da
membrana celular, é um mosaico, mas fluído e portanto só faz sentido que
esse todo seja um todo mutante, que não seja um todo cristalizado. A pior
equipa é a equipa muito una, muito coesa, muito dirigida, com muitos
objectivos, muito fechada sobre si própria. (como o professor Vítor Frade diz, é
a ordem dos cemitérios…) Sim, acho que essa é uma expressão muito feliz, e
portanto, uma equipa que não tenha essa franja de incorporação do novo, é
uma equipa que sucumbe perante o primeiro novo que o adversário lhe coloca,
e portanto não evolui. (Face à adversidade, não evolui, nem consegue revelar
criatividade) Mas mesmo sob o ponto de vista morfológico, quando o jogador
está no seu campo, ele tem sobretudo comportamentos centrípetos, quando
passa para o campo do adversário passa a ter comportamentos absolutamente
centrífugos… (se calhar é a oposição que lhe induz essa necessidade…) Mas

LXIV
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

ele vive sempre nessa dualidade, nunca se confina com uma só circunstância,
quer ser centrípeto e quer ser centrífugo ao mesmo tempo, porque ele precisa
de se reorganizar. Mesmo um atacante tem que voltar atrás e tem que ter
períodos defensivos. Viu o filme do Zidane, que se chama “Zidane, um retrato
do século XXI”? É de um videasta contemporâneo importante que se chama
Douglas Gordon e de um cineasta francês que se chama Phillipe Parreneau, e
eles colocam vinte e tal câmaras que o filmam só a ele, num jogo da Liga
Espanhola, o Real Madrid-Villareal, e só filmam o Zidane, e o Zidane que é um
atacante aparece na maior parte do filme em posições completamente
alienadas. Durante a maior parte do tempo ele está numa postura
completamente alienada. Ele precisa dessa alienação para depois, precisa
desses momentos de centrifugação para se conseguir reorganizar.

(J. M.) - É muito curioso isso porque, até que ponto jogadores que
parecem distantes de um momento para o outro ressurgem…

(P. C. e Silva) - Renascem das cinzas, são uma espécie de “Fénix”, dão a
ideia de que estão mortos, de que estão numa espécie de letargia, que estão a
hibernar, e subitamente aquilo dispara.

(J. M.) - O professor falou há pouco de uma coisa, lá está, talvez o


confronto vá levar à necessidade de superação e da tal divergência. O
professor também defende que a relação entre a acção e a percepção,
que é mediada pelo corpo, é fundamental e, se calhar, nessa oposição aí
está um bom exemplo desse processo de cognição por assim dizer…

Eu até defendo uma coisa um bocado mais atrevida e radical que é o


seguinte: eu defendo que a percepção é já acção, ou seja, antes de fazermos
já estamos a fazer. No momento em que se percebe, já se começa a agir de
facto. Aliás há dados engraçados (Alain Berthoz recentemente lançou um livro
que vem precisamente confirmar isso, mesmo alguns autores como por
exemplo os do livro “Mente Corpórea” evidenciam isso mesmo, e acho que a

LXV
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

extrapolação desses dados para o desporto em geral e para o futebol em


particular, é muito pertinente. Lá está, vai de encontro a uma inteligência
corpórea) Pois, isso… há dados que eu acho, que ainda não estão confirmados
mas que são um bocadinho arrepiantes, que dizem o seguinte: na via motora
há dois neurónios, um primeiro neurónio cujo corpo celular está na
circunvolução frontal ascendente, que é o neurónio da vontade e o segundo
neurónio, o neurónio motor que está no corno anterior da medula e que é o
neurónio cujo axónio, vem até ao músculo proporcionar a contracção. E
portanto, o normal é que primeiro exista a vontade da pessoa se mexer e
depois a pessoa se mexa, não é? Portanto, que o primeiro neurónio se
estimule e que envie informação para o segundo neurónio, que depois se
estimula e envia a ordem até ao músculo. Há dados estranhíssimos que
revelam que o segundo neurónio se pode estimular antes do primeiro. Portanto
como se a acção fosse anterior ao pensamento da acção e à vontade da
acção, está a perceber? Havia uma espécie de antecipação da acção por parte
dos músculos. Isto é engraçado e é perturbante, e vem inverter todos os
paradigmas da neurofisiologia.

(J. M.) - E se calhar em contextos de grande imprevisibilidade na tomada


de decisão são esses mecanismos que vão explicar porque é que um
jogador toma uma determinada decisão, e a importância de educar esse
mesmo processo…

(P. C. e Silva) - Educar, digamos, essa inteligência periférica, educar essa


(inteligência descentralizada) descentralizada, é uma boa expressão.

(J. M.) - E é isso mesmo que nós tentamos evidenciar com o conceito de
somatização, não somente o processo de informação passar pelo cérebro
e pela mente, sem dissociar do corpo, mas o facto do músculo e as
estruturas relacionadas com o movimento estarem implicadas nessa
tomada de decisão, por vezes não consciente.

LXVI
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

(P. C. e Silva) - Não é que eles não estivessem sempre implicados, mas nós
olhamos para eles como implicados passivos, ou seja, eles fazem aquilo que
os outros mandam fazer. Agora, será muito perturbante se se vier a confirmar
que eles fazem por iniciativa própria e portanto são decisores activos e que
depois convencem os outros que deviam mandar neles, que a decisão foi (ou
que nós entendemos que devíamos mandar neles…) E portanto, isso é curioso
e é perturbante e vem inverter todos os paradigmas de uma relação. (implica
uma reorganização acerca do que é a cognição…) Do que é cognição, do que
é acção, do que é percepção, e esta lógica linear e este princípio de
causalidade entre percepção e acção passaria a ser um bocadinho invertido.

(J. M.) - E lá está, vai de encontro àquela ideia de uma inteligência


corpórea…

(P. C. e Silva) - Sim, de uma inteligência corpórea como se houvesse essa


deslocalização, como se o corpo tivesse uma espécie de consciência de si que
não se fica só nos sistemas motores, vai até ao funcionamento celular quase,
como se houvesse uma delegação, ou seja, os sistemas inteligentes do corpo
delegam nos pequenos fragmentos uma franja de capacidade de decisão muito
importante. Isso até é importante na sua tese antropossociológica, porque é um
modelo interessante até para a organização das próprias sociedades e,
sobretudo, para a fundamentação de uma teoria geral da delegação. Faz
sentido delegar se as partes tiverem a capacidade de se autorganizarem. Claro
que isso depois vai justificar todas as descentralizações, até as políticas.

(J. M.) – Face a essa inteligência corpórea, e face a essa inteligência


específica podemos requisitar para o futebol, por assim dizer, uma
inteligência específica, mas plural simultaneamente.

(P. C. e Silva) - Sim, mas também não devemos ser assim tão totalizantes
nesse sentido. Eu falei também a esse respeito numa espécie de dois corpos,
um corpo branco que chamei protocorpo, e depois um corpo pintado que seria

LXVII
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

mais um corpo aculturado. Portanto, o corpo motor, nesse sentido, seria uma
espécie de protocorpo, um corpo antes do corpo, e o corpo desportivo seria um
corpo mais pós-moderno, no sentido de que é um corpo feito da sobreposição
de vários fragmentos não é? Cada modalidade tem a sua sintaxe e a sua
gramática, mas usa o mesmo alfabeto, é uma espécie de alfabeto motor
comum. A ortografia do futebol é diferente da ortografia do andebol, apesar do
alfabeto motor ser comum às várias modalidades motoras. Agora, reivindicar
para o futebol uma radicalidade absoluta parece-me exagerado.

(J. M.) - Nem pode sair da dimensão antropológica, ou seja, partindo do


pressuposto da tal dimensão antropológica, da possibilidade de, face
àquilo que é o Homem, se calhar, o tipo de conhecimento e o tipo de
tomada de decisão implicados no futebol, até pelos conflitos que tem em
termos de hominização, vai implicar uma inteligência diferente das outras
modalidades e que é diferente, se calhar, de jogo para jogo, de equipa
para equipa, da forma de jogar de cada equipa…

(P. C. e Silva) - Não. Com certeza que é diferente, agora o que estou a dizer
é que o futebol partilha com as outras modalidades esse mesmo corpo branco,
esse mesmo protocorpo.

(J. M.) - Lá este a tal categorização da inteligência também não pode ser
estanque…

(P. C. e Silva) - Claro. Até podemos dizer que esse protocorpo que é um
corpo pré-cultural, é um corpo… não quero dizer sem inteligência, mas é um
corpo com uma inteligência que não foi culturalizada. Qual é a distinção
fundamental entre a inteligência e a Cultura? É essa, passa justamente por aí.
A Cultura é a capacidade de convocarmos a memória de uma forma inteligente,
enquanto que a inteligência pode dispensar a memória, a inteligência é a
capacidade de resolvermos uma situação, mas podemos resolvê-la quase sem
memória.

LXVIII
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

(J. M.) - Se calhar a Cultura vai requisitar mais uma consciência alargada
e a inteligência pode requisitar a consciência alargada ou mais nuclear,
mas também o não consciente e o inconsciente…

(P. C. e Silva) - E uma consciência histórica digamos assim, no sentido


daquilo que já foi produzido, não da história no sentido grave mas daquilo que
já aconteceu, que já foi produzido. A Cultura tem a capacidade de requisitar
aquilo que já aconteceu, enquanto que a inteligência eventualmente é a
capacidade de convocar a pessoa para um momento e para a situação.

(J. M.) - Mas até que ponto esses acontecimentos não poderão também
condicionar a prestação da inteligência.

(P. C. e Silva) - Claro que condiciona porque depois, no limite, não


conseguimos separar inteligência de Cultura, ou seja, não conseguimos
embotarmo-nos culturalmente e agirmos só como se fossemos só seres
inteligentes sem Cultura.

(J. M.) - Vai tudo dar um bocado ao mesmo e, se calhar, justifica a


pertinência de num estudo como este em que se tenta evidenciar que
tudo está articulado, que tudo tem relações, se calhar definir categorias
para fazer uma análise de conteúdo acaba se calhar por não fazer muito
sentido.

(P. C. e Silva) – Pois eu acho que não faz. Acho que a análise de conteúdo é
muitas vezes uma falácia das ciências moles, ou uma insuficiência das ciências
moles, perante o determinismo das ciências duras. E portanto, há situações,
em que a análise de conteúdo não funciona de todo.

(J. M.) - Estivemos a falar da possibilidade das próprias estruturas que


efectuam movimentos anteciparem, por assim dizer, as estruturas que

LXIX
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

processam a informação. Pode-se dizer que a relação entre estes pode


ser considerada uma somatização de um saber?

(P. C. e Silva) – Nas várias fases e nos vários momentos há sempre uma
determinada consciência corporal, ou seja, apesar das representações
corporais acontecerem tendencialmente no córtex cerebral, há uma espécie de
consciência periférica, se quiser dizer, e essa consciência periférica não pode
ser suprimida.

(J. M.) - A educabilidade entre a inteligência mais periférica e a


inteligência mais central desenvolve-se tanto mais, quanto mais
precocemente for estimulado…

(P. C. e Silva) – Isso acho que sim, seguramente, não é?

(J. M.) - E aqui o papel do treino e a qualidade do treino acaba por ser
determinante e, se calhar o sentido do treino, não só no sentido da
hipertorfia…

(P. C. e Silva) – Podemos dizer que metaforicamente, o treino obriga o


cérebro a descer, ou seja, a vir até à periferia. O treino é uma espécie de
qualquer coisa que obriga o cérebro a articular-se melhor com as
extremidades, com a periferia.

(J. M.) - Este facto da importância da precocidade que é uma coisa que
nós sugerimos, desde que alicerçada numa determinada qualidade do
processo, é possível porquê? Pela maior plasticidade que existe durante
este período, na infância, ou não? Ou é também pelo facto de haver um
enraizar comportamentos que é menos notório, ou seja, há um corpo
mais branco, mais um protocorpo na infância do que propriamente na
idade mais adulta.

LXX
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

(P. C. e Silva) – Claro, portanto, aquele ditado popular que diz que «burro
velho não aprende línguas» também é isto e é um bocadinho pertinente não é?
(mas não aprende por que se calhar também já aprendeu algumas) Também, e
porque é menos plástico, ou seja, o burro velho tem menos plasticidade que o
mais novo nesse sentido e portanto tem também uma maior dificuldade em
incorporar o novo, e também porque a sua capacidade de espanto, espanto
aqui num sentido antropossociológico ou até biológico, um espanto biológico,
ou seja, as pessoas mais velhas têm uma capacidade menor para se
espantarem com aquilo que vêem, porque o novo tem uma capacidade menor
em condicioná-las.

(J. M.) - Em todo este entendimento de inteligência que temos vindo a


falar tem subjacente uma complexidade enorme, que se vai repercutir em
termos de alterações tanto ao nível das estruturas efectoras do
movimento como a nível cerebral. Até que ponto pode haver alteração da
representatividade cerebral pela maior ou menor influência do treino?

(P. C. e Silva) – Com certeza, ou seja, o treino é um mediador da relação do


corpo com o exterior. E o que é o treino? É a capacidade de… enfim sob o
ponto de vista da fisiologia do exercício, de a lesão se transformar em
adaptação. É a capacidade de o obrigar à reorganização. Eu tenho contestado
um conceito da fisiologia que é a ideia da homeostasia, e tenho dito que o
treino não é um sistema homeostático. Porquê? Porque depois do treino nunca
se volta ao ponto de partida. Se se voltasse ao ponto de partida não havia
crescimento e portanto não havia enriquecimento, não havia educação e o
treino não fazia sentido. E portanto, o objectivo do treino é forçar e levar um
pouco mais longe para que essa alteração se transforme em adaptação e que
quando o corpo for solicitado em situações formativas do tipo anterior, esteja
mais preparado para lhes responder do que estaria anteriormente.

(J. M.) - Um dos paradigmas que acho que é a prova, mais do que
evidente de que o treino pode fazer muito, ou pode actuar sob a

LXXI
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

plasticidade dos indivíduos é o caso daqueles indivíduos que nascem


sem os membros inferiores ou sem os membros superiores, por exemplo,
e que, fruto das necessidades e do processo de aculturação ganham uma
funcionalidade tal que conseguem mesmo sem mãos superar as
limitações que têm…

(P. C. e Silva) – Há pouco falamos naquela questão da delegação, de que o


cérebro delega e o cérebro mais eficaz é aquele que teria uma maior
capacidade de delegação. Neste caso havia uma espécie de delegação (de
suplência) e de uma delegação supletiva como disse nos membros que
existiam e que estavam disponíveis para a acção.

(J. M.) - Esta inteligência, este saber que se vai adquirindo ao longo de
um processo que é complexo e ao longo do tempo através da acção e da
vivenciação, e do passar pelas situações, implica um percurso individual
mas não isolado, que é único. Entendemos nós assim que se trata, de um
processo ecogenético, uma construção individual ecogenética, onde são
muitas as variáveis ou as dimensões que estão a interagir.

(P. C. e Silva) - E que tem a ver sobretudo com isso, ou seja, com a
capacidade que os Humanos têm em inscrever o espaço e aquilo que se passa
à sua volta dentro de si, e em transformar essa ecogenética numa epigenética,
percebe o que quero dizer com isto? Transformar uma ecogenética numa
epigenética, que foi uma coisa que me surgiu agora, seria: o meio tem a
capacidade de se inscrever dentro de nós, mas essa capacidade de inscrição
seria uma capacidade transmissível epigenéticamente, ou seja, fora do sistema
genético. E hoje em dia há uma quantidade muito grande de estudos que falam
disso, até mesmo em termos da capacidade de transmissibilidade que existe
por exemplo no ambiente ecogenético mais pequeno e mais próximo que é o
ambiente citoplasmático. Portanto, o próprio ambiente citoplasmático teria esta
capacidade de transmissão epigenética, e o que tem a ver com esta
capacidade que temos de adquirir e de incorporar informação que não está só

LXXII
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

padronizada e organizada no DNA e temos também a capacidade de a


transmitir. De resto, há mecanismos de transmissão à distância da cultura que
são coisas que já estão estudadas, que passariam por isso, por essa
capacidade de transmissão epigenética.

(J. M.) - Como distingue epigenética de ecogenética? Ou não distingue?

(P. C. e Silva) - São coisas diferentes. Epigenética são mecanismos de


transmissibilidade fora dos genes. Ecogenética é a capacidade que o meio tem
de nos influenciar. Portanto diria que a ecogenética é um sistema aferente, a
epigenética é um sistema eferente. Através da ecogenética recebemos, através
da epigenética transmitimos.

(J. M.) - Acho importante este esclarecimento porque o professor


Sobrinho Simões também faz distinção entre os dois e não os entende
como sinónimos, e de uma forma mais generalista refere que ecogenética
é por assim dizer mais especulativa, no sentido em que a dimensão que
está contemplada, e que pode interagir, é de tal forma grande, que se
calhar nós não conseguimos controlar.

(P. C. e Silva) - É um conceito que até é utilizado até pelas ciências sociais.

(J. M.) – A distinção é pertinente porque, lá está, é um conceito


relativamente recente…

(P. C. e Silva) – Mas, é um conceito que tem sido um bocadinho abastardado


pelas ciências sociais, e fala-se numa ecogenética social que é a capacidade
do meio e o ambiente condicionar a evolução dos sistemas, mas não só a nível
genético, no sentido da genética, do DNA, da genética pura, da genética
molecular, mas da genética no sentido da transmissibilidade de qualquer coisa.

(J. M.) - Que até mesmo os genes são permeáveis a tais influências…

LXXIII
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

(P. C. e Silva) - Essa ideia da epigenética parece-me mais precisa. É


transmissibilidade daquilo até que o próprio Dawkins chama de memes, que
são estruturas que estariam fora do DNA e fora do núcleo celular e que eram
estruturas transmissíveis à própria célula no momento de divisão, no momento
da fecundação.

(J. M.) - Os dois conceitos são muito importantes na construção de


talentos que é, um ponto que nós vamos aflorar e lá está, o tentar
encontrar determinados padrões subjacentes a determinados
comportamentos, dentro da impossibilidade até de os poder determinar
todos, acaba por ser importante porque, face ao conceito de ecogenética
e à tal maior especulação ou menor como sugere, o professor Sobrinho
Simões em que a situação é mais dúbia, não se sabe em concreto
determinar, é talvez um conceito que melhor se aplica à construção de um
talento.

(P. C. e Silva) - Sim, tem a ver com isso, tem a ver com o que ele transporta
e com o que o meio lhe pode fornecer. E da relação entre os dois.

(J. M.) - Face àquilo que fomos dizendo ao longo da entrevista, pode-se
depreender que a prática, não só do futebol, mas no caso do futebol e
sobretudo em idades precoces, desde que respeitando o ser que joga,
neste caso as crianças, com particularidades muito próprias. Dentro da
permeabilidade da dimensão “antropo”, ao lado da natura, permite que …

(P. C. e Silva) - Mas eu gostaria, que não ficasse com a ideia de que entre
Natura e Cultura há uma cisura. A Cultura é uma extensão da Natura, ou seja,
a Cultura é a Natura do Humano se quiser. Acho que isso é importante, a
Cultura é a Natura do Humano. Repare, passando da questão ecogenética
para a questão ecológica propriamente dita, é por isso que sou muito céptico
da ecologia numa perspectiva simplista estilo: “vamos salvar o planeta, o

LXXIV
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

Homem”. O que dizer quando se separa uma Cultura Tecnológica de uma


Cultura da Natureza, se a tecnologia é uma extensão da Natureza. Quem
produziu a tecnologia é o Homem e o Homem é um produto da Natureza,
portanto, a extensão tecnológica é um produto da Natureza, um produto
naturalmente mais sofisticado, mas um produto que não vive uma separação
essencial da própria Natureza.

(J. M.) - Porque, lá está, se calhar a sociedade ainda não conseguiu


abolir com todo o pensamento que vem desde o pensamento clássico
para as novas teorias do pensamento, para o pensamento complexo.
Tudo aquilo que ainda nos afecta, mesmo que inconscientemente e
manifesta-se em algumas atitudes, ainda é um reflexo de tudo aquilo que
nós fomos durante séculos perpetuando, e torna-se difícil alterar.

(P. C. e Silva) - Precisamos dessa fragmentação para nos organizarmos,


quer dizer, precisamos de partir, dividir, separar. Só partindo, dividindo,
separando é que nos conseguimos organizar. Temos medo do todo, ficamos
inibidos com a fragrância do todo, com a complexidade do todo, com a forma
como o todo se apresenta à nossa frente. Por isso temos necessidade de o
cortar aos pedacinhos para ver se o entendemos. O problema é que se
cortarmos o todo, mutilamos o todo. Como sabemos, a relação entre as partes
é mais importantes que a soma das partes.

(J. M.) - Agora, para terminar, e pegando numa das ideias principais que
fui retendo na entrevista, o facto do treino, começando precocemente,
talvez até por aquilo que fomos dizendo, levar à tal descentralização, ou à
tal cerebralização e aculturação do músculo e também, simultaneamente
à corporalização do cérebro, no sentido em que há uma alteração da
representatividade cerebral, e mais do que isso, à solidificação num
determinado regime motor, se quisermos, específico, à consolidação das
relações entre estes que é o mais importante…

LXXV
Anexo 4 (Entrevista a Paulo Cunha e Silva)

(P. C. e Silva) - Sim, é aquela história de que o cérebro delega, mas depois a
periferia também adquire um pouco mais de responsabilidade, é um sistema de
“governence” biológico, ou seja o cérebro promove essa delegação para a
periferia mas a periferia tem que assumir as suas responsabilidades, e assumir
as suas responsabilidades é assumir a sua capacidade prestativa, ou seja, é
assumir a sua capacidade intelectual (se manifestar enquanto parte de um
todo…) e de parte inteligente e auto-suficiente. Mais uma vez regressamos aos
fractais. Os fractais, de facto, são fragmentos que transportam dentro de si as
qualidades do todo, ou seja, são fragmentos em que o todo delegou as suas
características. São fragmentos que falam do todo melhor do que o todo fala de
si.

(J. M.) - E não se justifica a ideia de hierarquia, mas sim de uma rede, de
uma teia…

(P. C. e Silva) - De uma sinergia, pelo contrário de uma deshierarquia, no


sentido que não há, que não é uma anarquia, mas é uma deshierarquia.

LXXVI
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

Anexo 5: Entrevista a Marisa Gomes


Treinadora da equipa técnica do Escalão de Sub-12 do Futebol Clube do Porto
Instalações da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
Entrevista realizada por Jorge Maciel, 30 de Abril de 2008

Jorge Maciel (J.M.) - Há quem esteja no treino e acredite que os talento


nascem, não será isso uma falsa premissa para quem está no treino?
Será o ponto de partida, de que não se acredita naquilo que se faz?

Marisa Gomes (M. Gomes) – O talento é, no meu entendimento, uma


predisposição que as pessoas têm para fazer determinadas coisas. No entanto,
se não existir um meio propício para que isso aconteça, as coisas não
acontecem. O que é que eu quero dizer com isto? Há pessoas mais propensas,
face às suas características, para jogar futebol, outras para jogar andebol,
outras para fazer ginástica. Face às suas características. No entanto, se um
miúdo tiver uma predisposição enorme para jogar futebol e nunca jogar, com
certeza que não vai ser um talento, um expertise. Porque a prática, o meio não
estimula o desenvolvimento desse talento. Sucede do mesmo modo noutras
modalidades e noutras actividades. Os bons são aqueles que têm uma
predisposição e que depois têm um meio propício ao desenvolvimento dessa
predisposição. E o meio propício, sobretudo no futebol, passa por ser um
processo muito longo porque tem uma característica muito particular. Enquanto
que nas actividades que solicitam mais o trem superior estamos quase que
predisposto para o fazer. No futebol é precisamente o contrário. E sabemos
que o desenvolvimento motor dos humanos nos primeiros anos é decisivo para
a somatização e para o potenciar de determinadas características. E também
sabemos que essa plasticidade existente nos primeiros anos de vida é decisiva
para o desenvolvimento de determinadas características. As características
que vão permitir ser melhores ou não.

(J.M.) – Ou seja, o talento é sobretudo construção, ou sobretudo, tem


muito de construção.

LXXVII
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

(M. Gomes) – O talento é uma predisposição que se vai desenvolvendo ao


longo do tempo porque o talento pode ter uma predisposição mas se não se
manifestar, não é talento. Vemos muitos jogadores que acabam por ter boas
capacidades mas que com o tempo deixam de as manifestar. Se deixam de as
manifestar, deixam de ser talento. Agora, uma das características que o talento
tem de ter é a singularidade. Sabemos e reconhecemos que aquilo que faz
com que um seja melhor que o outro é qualquer coisa que ele tem que os
outros não têm. Um central para ser melhor que o outro tem que ter qualquer
coisa que o outro não tem. O talento marca-se pela singularidade. E essa
singularidade não é igual para todos. A singularidade de um ponta de lança que
tenho é totalmente diferente da de outro. No entanto, são dois talentos
diferentes e é aí que nós temos de gerir. Para quê? Para promover um meio e
uma evolução, uma formação que permita que cada um destes talentos se
desenvolva. Porque dentro da posição, do futebol e do jogo existe a
necessidade de se manifestar e de se interagir de determinadas formas. Agora,
o treinador é que tem de ter esse trabalho. Num meio como o jogo de futebol,
isso é determinante.

(J.M.) – E se partir do princípio que não tem muito a fazer, no fundo não
está a fazer nada, porque não acredita naquilo que faz.

(M. Gomes) – Pior do que não estar a fazer nada, está a estragar! Está a
estragar! Mas isso também acontece no contrário porque vemos miúdos em
escalões mais baixos que tinham um potencial enorme e que até o conseguem
manifestar por diversas razões mas depois acabam por desaparecer. Porquê?
Porque temos de ver a evolução do jogador como a evolução das espécies. A
analogia que eu faço é essa. É que as espécies vão evoluindo ao longo do
tempo mas esse talento tem que ter determinadas condições para se
manifestar. E nós sabemos que a extinção de vários animais aconteceu quase
sempre devido a uma questão: o estarem com determinadas características
demasiado adaptadas às coisas (ao contexto). Então, à mínima variabilidade
desapareceram. Acontece o mesmo com o talento no futebol. Se o jogador for

LXXVIII
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

um talento e o manifestar apenas como regularidade, ao mudar o contexto (e


às vezes basta mudar de treinador) e mudando de solicitações, o jogador
acaba por morrer.

(J. M.) – O talento tem de ser uma realidade potencial, porque se


desenvolve, é uma realidade plural, porque se expressa de formas
diversas e além disso, tem de contemplar a criatividade, não pode ser um
talento formatado…

(M. Gomes) – A criatividade tem de fazer parte do talento. Eu tenho muitas


dúvidas em relação àqueles miúdos que jogam apenas num «registo». Falo em
miúdos porque em cada idade a manifestação do talento é diferente, face às
características, face às debilidades, face à maturação, face a tudo isso. O que
é importante é distinguir neles qualquer coisa que eles têm e que com o
crescimento não desaparece. Por isso é que às vezes vemos miúdos que nas
escolas e infantis são muito rápidos e que se dizem talentos (e que suportam o
jogo nisso), suportando o jogo nisso e com o crescimento a velocidade
relativiza-se e deixam de ser talentos. Portanto, o talento é uma predisposição
que tem de se manifestar. Agora, se sou um talento com determinadas
características preciso de condições para o desenvolver. Imagina: se sou um
animal adaptado para estar em climas quentes e se vou para um clima frio,
acabo por morrer. É a mesma coisa com os jogadores e às vezes basta
transitar de um escalão para o outro e sobretudo, mudar de treinador. Porque
os talentos não se restringem aos jogadores é também ao treinador. O
treinador deve reconhecer a singularidade dos jogadores, fazer com que as
relações entre os jogadores se manifestem de forma a que esse talento se
manifeste e cresça! (E potencie a equipa). Devido àquilo que digo aos meus
miúdos: “não adianta ter talento”, ele tem de se mostrar, tem de ser emergente.
O potencial é isto mesmo: é aquilo que estamos a contar que aconteça porque
sabemos que existe qualquer coisa. Mas se não emergir, se não se expressar,
não tem qualquer tipo de validade.

LXXIX
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

(J. M.) – E para se expressar é fundamental, até pela manifestação ser


muito diversa, a necessidade de uma lógica comum, e quanto mais cedo
melhor. Talvez daí resulte a necessidade de uma Especificidade Precoce,
uma Especificidade que lhe vá permitindo aculturar-se a determinada
forma de jogar, mas ao mesmo tempo, que não hipoteque a evolução do
Eu, do talento.

(M. Gomes) – Para mim, a Especificidade Precoce tem de ser vista como um
processo cultural, como nas sociedades. Os bebés nascem com determinadas
predisposições e ao longo do processo vão passando por tudo aquilo que
fazem e pelo que são sujeitos e vão assim adquirindo determinadas coisas. Um
bebé nascendo no calor ou no frio, é diferente por aquilo que vão vivenciando.
Num processo de treino é exactamente a mesma coisa. Agora, essa cultura
nas idades mais baixas tem de ser uma cultura muito bem entendida porque
não vamos dizer a um bebé o impossível… Isto da cultura tem muito que se lhe
diga porque um bebé nasce e sabemos que até aos dois anos tem uma grande
capacidade para absorver o maior número de estímulos possíveis. Só que
depois vai-se tornando selectivo. Aliás, o envelhecimento é isso mesmo. Nós
sabemos que, por exemplo, os idosos têm uma capacidade de adaptação
muito baixa. Essa selectividade vai acontecendo ao longo da vida e portanto, o
envelhecimento é exactamente isso. É a diferenciação. (a poda neural).
Exactamente! Essa diferenciação resulta do que a gente vive e daquilo que
fazemos mais vezes, dos hábitos. Um idoso que tenha tido uma profissão no
campo tem uma configuração, a todos os níveis, totalmente diferente de um
que tenha sido professor. Pela prática que teve, pelos hábitos que tem, por
tudo isso. E a criança é igual.
No jogo, essa Especificidade Precoce tem que ser do seguinte modo: quando
a criança começa a jogar temos que lhe dar a entender o que é o jogo. O jogo
não é um conjunto de jogadores ali a jogar. Porquê? Porque quando os miúdos
são pequeninos, não existe uma representatividade como nos adultos. (a
capacidade de abstracção deles é mais condicionada). E porquê? Porque é
que os miúdos não têm capacidade de abstracção? Porque eles não têm

LXXX
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

conceitos… Falamos em circular a bola e não existe um conceito formado. Mas


eles não precisam saber isso, eles precisam é de fazer… (e vivenciar.)
Porquê?! Porque isso é que vai marcar… por isso é que o treinador nas idades
mais baixas tem que ser uma aposta clara nos escalões de formação e não nos
juniores nem nos juvenis. Também tem de ser nestes escalões mas sobretudo
cá em baixo. Porquê? Um treinador que não entenda jogo e a essência do
jogo, a trabalhar com estes miúdos é matar muitos talentos. Por exemplo, está
provado que os bebés têm, até aos 4 anos, capacidade de aprender muitas
línguas. Só que depois, pelo padrão da estimulação do que vão ouvindo e
sentindo, pela maneira como falam para eles, vão-se tornar selectivos a um
idioma. Isto é que é cultura. E é como no jogo, no ensino do jogo. Os miúdos
estão ali e não sabem jogar. Óptimo! Vamos então dar-lhes essa noção e com
isso, eles vão-se tornando selectivos com a prática que têm. No entanto, o jogo
é uma coisa muito complexa e todo o treinador que nas escolas está a pedir
“passa daqui para ali e daqui para acolá” ou então, está a querer formatar um
jogo…isto é, está a reduzir a variabilidade e está a ser castrador a qualquer
talento. Já está provado por vários estudos que os bebés vão-se acostumando
ao que ouvem. E eu acho piada às pessoas… Por exemplo: tenho uma
sobrinha de um ano e digo à minha mãe para ela ouvir o máximo de línguas
possíveis. E sabes o que é que a minha mãe me diz? A minha mãe, a minha
irmã e as minhas tias dizem-me: “então, ela não sabe português e vai saber
outras línguas?!” Como se isto fosse uma construção por etapas: primeiro o
português e depois as outras línguas. Não! A selectividade resulta daquilo que
a gente faz e portanto, se ela for ouvindo várias línguas agora, a cultura dela
vai ser muito mais abrangente. É a mesma coisa no jogo.

(J. M.) – Tem bases para isso… dentro do jogo ou dentro das línguas...
(Exactamente…dentro de tudo…) Dentro de determinada qualidade no
caso do jogo, variar dentro do jogo… o problema é que muitas vezes
confundem-se as coisas…

LXXXI
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

(M. Gomes) - Costumo dizer o seguinte: nós, humanos, somos expressão


daquilo que somos - o lado das características, da genética, do biológico - e
depois, em cada passo que a gente dá, em casa passo mesmo, vamos
mapeando. Nós somos um mapa daquilo que vivemos e o que vivemos não é
só o que é sentido pelo corpo. Por exemplo, eu nunca fui às Maldivas mas
tenho uma representação do que são as Maldivas. Agora, se eu for lá, a minha
representação das Maldivas vai mudar. O jogo é a mesma coisa.

(J. M.) – O jogo tem que ser mapeado e o exercício se calhar…

(M. Gomes) - O processo de formação tem que ser um mapeamento. Agora,


o mapeamento sobretudo até aos 14 anos tem que ser num sentido de
privilegiar uma variedade cultural. O que é que é isto!? (Cultural dentro do jogo)
Sem dúvida! A variabilidade cultural… o jogo tem que ser uma variabilidade
cultural.

(J. M.) - …até para contemplar a diversidade do talento e as diversas


formas de se expressar. A antropodiversidade quanto a mim é um
requisito fundamental para o jogo e se calhar, está cada vez mais em
extinção esse conceito e cada vez mais homogeneizados, o jogar e os
jogadores.

(M. Gomes) - Porquê?! Porque nós adultos normalmente temos uma ideia de
jogo… É a mesma questão da minha mãe, temos uma ideia de jogo e que ele
se constrói do 1 para 1, do 2 contra 2, do 3 contra 3 e o jogo não é nada disso.
A gente põe os miúdos a jogar 4 contra 4 e 5 contra 5 e eles jogam com maior
ou menor qualidade de jogo. E interferir no jogo com estes miúdos é que é
determinante. Trata-se de intervir no jogo através do jogo.

(J. M) – Exacto… eu penso que muitas das vezes a tarefa mais complexa
e mais difícil de um treinador é procurar, através dos exercícios escusar-
se. Ou seja, evitar ao máximo através dos exercícios que vai criando, para

LXXXII
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

aquilo que pretende, participar no treino e a intervenção dele fazer-se


quase só com exercícios, quase não tem necessidade de intervir, deixá-lo
jogar…

(M. Gomes) – Mas eu acho que o treinador tem de intervir durante o treino.
Agora, o jogo, o exercício tem que ser entendido como um nicho ecológico. Isto
é, temos um conjunto de jogadores e vamos promover um nicho ecológico que
permita desenvolver esta variabilidade cultural, que é o nosso jogo. Quando
digo jogo é o jogo que resulta dos jogadores estarem em ligação entre eles.
Depois, os exercícios têm que ser estimuladores de qualquer coisa. Quando
estive com os mais pequeninos, miúdos com 4/5 anos e adorava trabalhar com
eles. Porquê!? Porque a minha intervenção no jogo tinha que ser através de
jogo, através da bola. E aprendi imenso com isso…

(J. M.) - …e se calhar aí a intervenção do treinador passa por fazê-los


vivenciar, e se calhar nem tanto no intervir no sentido da oralidade de…
(não pode ser através da oralidade…) é eles fazerem e criarem
propensões e determinados contextos que lhes permitam vivenciar aquilo
que ele pretende e daí a complexidade de criar exercícios…

(M. Gomes) - Isso das propensões tem de ser de cima a baixo. Tem que ser
sempre e a todos os níveis. Só que com esses miúdos os conceitos são nossos
e como os miúdos (como já dissemos) não têm capacidade de abstracção, isso
é óptimo porque só fazendo acontecer é que a coisa resulta…

(J. M.) – É óptimo, mas acaba por ser uma faca de dois gumes, porque
tanto pode dar para o óptimo como pode dar para o péssimo, depende do
contexto a que eles forem submetidos desde idades muito precoces. Lá
está a absorção deles é menos selectiva.

(M. Gomes) – É óptimo para um treinador de qualidade. Porque eu prefiro


trabalhar com aqueles miúdos. Porquê? Porque não tenho que desmontar

LXXXIII
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

conceitos. (são mais genuínos) São mais plásticos. Costumo dizer que os
miúdos pequeninos são mais plásticos porque são mais adaptáveis. Eu punha
miúdos de 4/5 anos a jogar com duas balizas laterais e havia circulação de
bola. Agora, nunca falei em circulação de bola porque eles nem sequer sabiam
o que era a palavra circulação. Mas faziam, jogavam, viviam. Do mesmo modo
que para intervir nesse jogo, tinha de ser consoante aquilo que eu queria. Por
exemplo, se queria que eles desaglomerassem. A aglomeração nestes miúdos
resulta de quê?! Da única coisa concreta que existe para eles. A única coisa
que existe concreta no jogo é a bola… e o jogo para eles é a bola. E portanto,
eles jogam. Como? Com a bola. Eles não se ligam aos colegas, nem ao
adversário e até a baliza às vezes não existe para eles. E por isso, este lado da
inexistência de conceitos é que os torna tão plásticos. E quando falo em
conceitos não é só em termos conceptuais. Entendo conceito em termos
conceptuais e também em termos corpus, na capacidade de realização.

(J. M.) – O mapear desses conceitos passa pela interiorização pela


corporalização desse… da somatização.

(M. Gomes) - Exactamente! A prova disso são os miúdos pequeninos de 4/5


anos. Essa mapeação dos conceitos não resulta só da cabeça para os pés,
também resulta dos pés para a cabeça. São esses miúdos que pomos a jogar
desde trás. Temos é que fazê-lo colocando a bola em determinadas condições.
Falávamos à bocadinho dos contextos e por exemplo, nesses miúdos tinha
alguns que não gostavam de jogar. E não gostavam de jogar porquê?! Porque
tinham mais dificuldades. O que é que eu fazia?! Em condições em que ele
estava quase sempre sozinho, porque não lhe passavam a bola e interagia
pouco no jogo, metia a bola nele, sobrestimulava-o, fazia com que o contexto
fosse propício à sua participação. Ainda que ele inicialmente cometesse muitos
erros. Mas com o tempo, com a continuidade, as coisas acabam por emergir.

(J. M.) – E aí vai uma coisa muito importante que é, ele sentir prazer…

LXXXIV
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

(M. Gomes) - Sem dúvida! Nós sentimos prazer porquê?! Porque fazemos
qualquer coisa…

(J. M.) – Que reconhecemos que somos bem sucedidos e gostamos de o


fazer. E acho que é fundamental, apesar das teorias mais relacionadas
com o talento e a expertise sugerirem, que nem sempre a prática possa
contemplar o prazer. Eu acho, e tendo por base muito do que se sabe
sobre as emoções, que o prazer associado à experiência, à vivência de
qualquer coisa é fundamental para a interiorizar…

(M. Gomes) - Sem dúvida! Não é só as emoções positivas e o prazer mas


tudo o que está envolvido. É aquilo que dizia do mapeamento. Tudo o que
fazemos é interiorizado por nós. Vamos a uma cidade nova ou lemos um livro
novo e o nosso território, o nosso mapa, vai-se alargando. E o nosso mapa não
se restringe à nossa pele mas é mapeado na nossa pele também… E as
emoções positivas são determinantes para tudo, não só para adquirir como
para perder. Até acho que é o mais importante. Para mudar alguns
comportamentos nalguns jogadores, por exemplo, tinha um lateral que puxava
sempre a bola para dentro…

(J. M.) – Há uma necessidade de os fazer sentir ainda mais, porque eles
já o têm, e para substituir, por assim dizer, eles têm…

(M. Gomes) - ...Eu não queria que ele substituísse, queria que ele tivesse
mais essa opção. Como que é que tive que fazer?! Tive que fazer duas coisas.
Primeira: dificultar-lhe o puxar a bola sempre para dentro, ou seja, as vezes em
que o fazia, nalgumas perdia a bola e isso comportava algum risco. Do mesmo
modo que fazia com que houvesse sempre um apoio na lateral. Se quero dizer
ao meu jogador para ele abrir mais vezes por fora e não há um extremo viável
para receber a bola, este contexto é propício!? Não é propício. Portanto, isto
aqui é decisivo. Um treinador tem que ser um alquimista! Para criar estes
contextos. Mas para criar os contextos é preciso saber os objectivos. É para

LXXXV
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

tornar propício a quê? A quê?! (Uma concepção que é quantificada à priori, e


não). E tendo em conta a evolução do processo. Porque o lado emergente não
é só do jogador. É do jogador, da equipa e ao longo do próprio processo.
Existem vários planos ou vários níveis desta emergência. A realidade é isso
mesmo. A realidade é aquilo que emerge mas aquilo que emerge é também
aquilo que a gente consegue ver dessa realidade e portanto, o jogo é isso tudo.
Eu vou ver um jogo e tu vais ver o mesmo jogo. Para mim é uma coisa e para ti
é outra. Face a quê? Face ao teu mapeamento e face ao meu.

(J. M.) – Vemos o jogo com conceitos que são corpóreos. Nesse sentido
o treino é um processo de ensino e de aprendizagem corpóreo, acima de
tudo.

(M. Gomes) - Para mim, o treino é um processo de adaptabilidade.


Treinamos para quê? Para nos tornarmos mais aptos para. Agora, para quê?
Para jogar. Que jogar? E tendo em conta o contexto que tu tens porque não é
fazer um jogar no plano ideológico e descurar daquilo que a gente tem, é o lado
emergente. Se não considerarmos o lado emergente não vivemos a realidade,
é uma irrealidade. Não existe, só se for na nossa cabeça. O treino serve para
nos tornar mais capazes para, adequar-se. E o adequar-se é reconhecer que o
melhor jogador não é aquele que está limitado àquilo que faz. Voltando ao
exemplo que estávamos a falar à bocadinho: se é um animal que só vive em
calor e está num país em que o clima está a mudar, logo, vai estar mais
propício a extinguir-se. Ou se adaptam e vão evoluindo. E o treino é um
processo comportamental e de desenvolvimento de relações. E esse
desenvolvimento de relações é fazer com que o mapa dos jogadores seja cada
vez mais aperfeiçoado, os torne cada vez mais capazes para jogar. Agora,
jogar implica um adversário (um adversário em termos colectivos) e colegas e a
resolução de problemas. Porque uma das coisas que ouço muito falar é na
“necessidade de competição”, “a necessidade de competição”. A competição é
essencial como é o treino para preparar essa competição e para gerir essa
competição… (Mas que competição e que treino…) É isso que estou a dizer.

LXXXVI
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

Competir, mas como? O lado que a competição nos dá e que o treino não nos
consegue dar é o seguinte: no meu treino e no meu processo existe, em termos
macro, uma filosofia e portanto, no padrão de problemas que colocam as
equipas umas às outras reconhecemos um padrão de problemas. Que, se
calhar, é diferente de um treinador que trabalha ao lado. Porquê!? Porque ele é
um treinador diferente, os comportamentos são diferentes e os problemas são
muito diferentes contra outra equipa. Agora, eu tenho que reconhecer como
treinadora que se vou jogar contra escolas, o padrão de problemas é uma coisa
e se vou jogar contra a equipa mais velha o padrão de problemas é outro. E
portanto, sei perfeitamente quando vou jogar contra as escolas vou ter um
padrão de problemas que a minha equipa vai ter que resolver e contra os mais
velhos é um padrão diferente que vamos ter que resolver. É esta variabilidade
que não consigo ter no treino, mesmo que queira modelar as coisas não
consigo. E, a competição tem uma coisa que é, a equipa tem que ser capaz de
dar resposta agora, no momento. O lado emergente da competição, é mais real
e é mais decisivo.

(J. M.) - Porque não dá para fazer restart game…

(M. Gomes) - Por isso é que o treinador tem uma intervenção muito menor
que no processo de treino. O lado inopinado acaba por ser mais relevante. Até
porque começamos o jogo e sabemos como vamos jogar porque há uma
cultura. Existem os padrões que nos ajudam e salvaguardam dentro daquilo
que a gente quer, ou da maneira como nos relacionamos para resolver os
problemas, dentro de uma determinada lógica. Mas existe o outro lado, o
reconhecer como é que o adversário joga, o superar dos padrões da equipa
adversária e contrariar as dificuldades que nos coloca a equipa adversária no
desenvolvimento do nosso jogo. Isso é o lado que o treinador não consegue
modelar. E esse lado é aquilo que dá pica à competição e é isso que os faz
crescer porque o lado da descoberta emergente está mais presente.

LXXXVII
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

(J. M.) - Daí a necessidade de por vezes em alguns miúdos, que se


revelam talentos num determinado contexto, se calhar, separá-los por
níveis. Porque se calhar muitas vezes, os estímulos a que se vão
habituando são de tal modo já conhecidos que eles já conseguem
resolver os problemas daquele nível. E então, porque não passá-los para
um nível acima?

(M. Gomes) – Eu não sei que considerações de níveis estás a fazer, mas…
(nível de qualidade.) Exactamente, tem que ser de qualidade…

(J. M.) – Por exemplo, um infantil do primeiro ano, que já resolve muito
bem os problemas dentro daquele contexto, dentro daquela equipa,
porque não passá-lo para um escalão superior?

(M. Gomes) – A questão dos níveis reside no seguinte, é aquilo que


estávamos a falar da pica. Nós sentimos um gozo enorme, quando temos uma
dificuldade e conseguimos superá-la. Seja no que for. (De certeza que eles
preferem ganhar por 3-2 do que ganhar por 11-0…) Desde que a dificuldade
seja condizente. Nós sentimos um gozo enorme. É o lado da auto-superação
em que não há maior gozo. Isso é que eu chamo de doping, o lado da auto-
superação. E o talento sente necessidade de desafio…

(J. M.) E nas crianças sobretudo, porque eles sentem… (E nos adultos)
… eu penso que nas crianças por não terem… Lá está, se calhar nos
adultos menos, porque o adulto habitua-se pelo contexto que o envolve, e
em Portugal isso é mais evidente, se calhar a acomodar-se mais um
bocado… (Mas se o processo o levar à auto-hetero superação) em
Portugal como há um pessimismo generalizado, o adulto vai se acomodar
um bocado a isso. Enquanto que nas crianças, o sentimento de
superação é ainda mais genuíno. Não tem nada a estorvar ainda.

LXXXVIII
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

(M. Gomes) – Sim, mas no adulto também depende do processo de treino e


depende da cultura imposta. Porque nós somos adultos e quando nos auto-
superamos, seja no que for, ficamos numa alegria enorme. É uma sensação de
bem-estar e de confiança e porquê? Porque transcendemo-nos. Este lado da
transcendência, da auto-superação, que no futebol é auto-hetero superação, é
que faz crescer. Isto é que é formação. Agora, é por isso que questiono: que
competição?! Sei que a minha equipa, por exemplo, está a ter algumas
dificuldades individuais em termos defensivos e por isso, vou jogar contra as
escolas que jogam muito à base de simulação e não vou jogar contra os mais
velhos. Porque estes sobredominam o jogo e obrigam-nos a uma organização
mais colectiva, mais consistente. Hà que saber estas coisas para regular o
processo, para saber que a minha equipa está em auto-hetero superação. A
aprendizagem é isto e a formação é isto. O processo de treino, a
adaptabilidade é tornarmo-nos mais capazes, num crescimento evolutivo
contínuo. (Face a situações novas.) Exactamente. E neste lado contínuo, de
crescimento contínuo, conta uma coisa muito importante, sobretudo nos
maiores. Para que o crescimento seja contínuo é imprescindível que haja um
processo de desempenho de qualidade e de recuperação, que é decisivo. Sinto
muito isto com os meus infantis porque se treino num dia determinadas coisas
e o processo foi bastante aquisitivo, e portanto, foi bastante desgastante e não
sei gerir isto, no treino seguinte não recupero. Face a isto, no dia seguinte não
vou ter qualidade evolutiva. E por mais que exista uma prática, um treinador
tem que saber gerir isto tudo…

(J. M.) - E pelo mapeamento dessa última sessão que foi menos
conseguida, se calhar, eles vão até regredir. Porque sentiram e
vivenciaram coisas que fizeram antes bem, mas que no treino a seguir,
por não estarem devidamente recuperados fizeram com mais erros,
interiorizaram esses mesmo erros e se calhar, vai constituir-se como um
estorvo para o jogo seguinte.

LXXXIX
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

(M. Gomes) – Sim, mas repara a interiorização não se faz de uma só vez.
(exacto) Faz-se com a continuidade e é por isso que se fala em hábitos.

(J. M.) – Daí a necessidade da regularidade da qualidade ser algo que


tem de caracterizar o processo.

(M. Gomes) – Exactamente, por isso é que falamos em adaptabilidade.


Primeiro, porque não é uma coisa estanque. Segundo, porque exige que haja
uma certa continuidade. É muito fácil habituarmo-nos a fazer uma coisa
mecânica, uma coisa fechada mas o futebol e o jogo não são nada disso.
Então, o processo de treino não tem de ser nada disto. Portanto se queremos
sobredeterminar a variabilidade, o lado inopinado tem que estar sempre
presente. Por isso é que falamos em contextos. Agora, isto carece de
capacidade para o fazer. Por exemplo, quando abordo qualquer um conceito
novo no treino, como o virar o jogo após três toques, as rotações posicionais,
como já fiz este ano. Quando abordo uma coisa nova, mesmo que haja dois
dias de recuperação, no treino seguinte sinto que os jogadores estão
cansados. E como é que eu sinto? Ou no tipo de decisões que eles tomam e aí
é um cansaço mais profundo. Ou então no detalhe e na frescura com que eles
realizam as coisas. Naquele ajuste da intenção prévia e da intenção em acção.
É aí que se manifesta o cansaço das aquisições novas. Porque os padrões
motores estão-se a (re)construir, novas redes estão-se a formar e a organizar.
Então, por exemplo, sinto quando o adversário simula que vai para a direita e
ele vai e a meio percebe que o adversário não vai mas ele não tem capacidade
para adaptar. E por isso é que a recuperação é importante, para ter qualidade
de desempenho. É neste lado da intenção prévia para a intenção em acção
que eu noto o cansaço dos meus miúdos. E noto no processo de treino porque
como faço situações só de variabilidade, então, isso é muito evidente. No
entanto, se fizer uma situação fechada, isso não se manifesta. Claro, porque é
fechado. Mas para mim tudo o que seja fechado, não é que não seja aquisitivo,
mas não permite a auto-transcendência nas situações. Então prefiro realizar
três minutos em que eles se transcendam nem que seja uma só vez ou duas

XC
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

do que fazer dez minutos em que não hajam condições para que isso possa
acontecer. Porque o talento não se manifesta.

(J. M.) – Há pouco tivemos a falar do talento se calhar, ter… falamos que
o talentos por vezes desaparece, ou quase que desaparece, aquando da
passagem de um escalão para outro. Para mim, a noção de talento vai,
muito de encontro à necessidade de inteligência de jogo. Daí a
necessidade desta inteligência, ter timings diferentes, no sentido em que
por exemplo, ele nos infantis por ser mais alto, por ser aparentemente
mais forte do que os outros, se vai socorrer dessas valias, para aquela
idade, mas contudo, ele só é talento se depois quando passar para os
iniciados ou juvenis, quando essas diferenças se esbatem, ele consegue,
fruto de uma adaptabilidade que desenvolveu, dar respostas socorrendo-
se de outros atributos.

(M. Gomes) – Por isso é que tem de se ver e perceber o jogo e o talento
porque ninguém consegue olhar e ver um talento se não perceber o jogo.
Sobretudo na formação. Na formação é muito mais difícil. Tu falas em
inteligência de jogo porquê? Porque a inteligência de jogo ou aquilo que se diz
inteligência de jogo, recorre àquilo que para mim é fundamental num talento. O
que é? É o tipo de ligações que os jogadores fazem entre si e depois o modo
como eles preenchem o próprio jogo. Eu vejo o jogo assim: existe um conjunto
de jogadores que se estiverem parados, não há jogo. E se estiverem com um
adversário e eles estiverem desconectados entre si ou separados entre si, não
há jogo. Ás vezes até nem precisa de haver adversário. Há jogo mesmo sem
haver adversário, desde que haja ligação entre os jogadores. Por isso, é que as
partes do jogo não são os jogadores, são as ligações entre os jogadores! E o
que é isso das ligações? É aquilo que existe e que se fala como sendo
comunicação e que se fala em inteligência. Porque a inteligência leva-nos para
aquilo que não se vê. Ou para aqueles indicadores em que vemos qualquer
coisa e dizemos “este miúdo tem qualquer coisa que os outros não têm”. (a
inteligência de jogo, não se mede com teste de QI, mas sim pelo jogar).

XCI
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

Exactamente! Pelo jogar. (pelas respostas que eles dão ao jogo, ao contexto
que se vai criando no jogo) Sobretudo no modo como criam contextos. E no
modo como são capazes de se ajustarem aos contextos. Por isso é que dizia
que, para mim, um talento em qualquer escalão seja demasiado adaptado não
é um verdadeiro talento, por mais sucesso ou insucesso que tenha. Isto é, não
tem esta adaptabilidade contextual nas relações que estabelece com os outros.
Por isso, para mim, nunca vai ser um talento (tende a morrer). Exactamente,
tende a morrer. (não contempla a criatividade, estagna e morre). Exactamente.
Porquê? Porque a auto-hetero superação resulta disso. (e que é também uma
auto-hetero inteligência) Sem dúvida. Essa adaptabilidade é inteligente. Por
isso é que falamos de inteligência, no tipo de ligações. A inteligência é o quê?
É o modo como nos ajustamos. É o lado estratégico, o lado táctico. Quando
falo de táctico aqui é o intencional. Por isso é que às vezes vejo jogadores que
ninguém dá um chavo por eles apesar do modo intencional como eles se
relacionam com os outros, mesmo que muitas vezes não tenham sucesso
porque são pequeninos, são derrubados ou até porque a própria equipa não
joga com eles. (quem tem percepção, e quem conhece o jogo, consegue
identificar ali, o que eles têm, e valorizar o que têm) Exactamente. Por isso é
que eu às vezes vejo alguns jogadores no jogo e digo “este jogador é
fantástico”, é super inteligente. Nós temos um caso desses nos infantis, um
lateral direito que eu acho que é uma coisa fantástica na maneira como ele
resolve os problemas e se relaciona com os outros. Nesta qualidade de
intenções. No entanto, se falar nisto a outras pessoas, passam a olhar para ele
e o que é que dizem? Primeiro, só o analisam quando tem bola. Segundo, só
analisam o comportamento em si. E não analisam… (o que está subjacente a)
Porque o difícil não é ver aquilo que acontece mas ver para além daquilo que
acontece. (ou que poderia acontecer, o que está subjacente àquilo que
acontece) Exactamente. Subjacente e posterior àquilo que acontece.

(J. M.) – Só se analisa, muitas vezes aquilo que é palpável, no Futebol.

XCII
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

(M. Gomes) – Aí está, porquê? Por isso é que digo que há necessidade de
reequacionar o jogo de outra maneira.

(J. M.) – Muitas vezes, no treino sinto que o miúdo vai a fazer uma coisa
fantástica, mas no entanto, não saiu. Não sai, mas aquilo, acho que é…
tem que se dar valor. (Exacto.) Porque aquilo mais tarde vai sair. E há
pormenores desse tipo que se calhar ninguém detecta, que são mesmo
fundamentais, e é isso que os vai distinguir. Mesmo eles errando, se
calhar se déssemos um reforço negativo, ele nunca mais o iria fazer.

(M. Gomes) – Ou então tens de fazer o seguinte: tens de promover um


contexto em que isso aconteça muitas vezes. Criar um contexto. Por isso é que
falo em alquimia porque tenho, por exemplo, um ponta de lança cuja
singularidade é a sua capacidade de rematar à baliza. Esse ponta de lança…
(ele não tem de perder isso, ele tem é que ganhar outras coisas) Exactamente.
Agora, como é que eu vou fazer? Ponho três defesas, ponho dois defesas,
ponho a jogar contra a equipa mais forte ou na equipa mais forte?! Depende do
objectivo, depende da necessidade dele e depende de como a gente vai
revelar isso no desenvolvimento colectivo. E este lado individual e colectivo não
se separam. São comuns. São comuns! Se estiverem contextualizados são a
mesma coisa. Este individual nunca deixa de ser colectivo nem este colectivo
deixa de ser individual. Por isso é que falamos da variabilidade cultural. As
pessoas dizem: «ah, tem que ser criativo ou tem de ser diferente». Não tem
que ser diferente tem que ser é uma variabilidade cultural. Tem que haver um
lado aberto para haver um crescimento do treinador. Porque o treinador tem de
aprender com os jogadores. (exactamente). E os jogadores têm que aprender
com o treinador. Como é que eles aprendem com o treinador? Primeiro, é
através do exercício. Fazê-lo de modo a provocar determinadas coisas e levá-
lo a ter sucesso e fazê-lo crescer com isso, mais cedo ou mais tarde. E depois,
ter capacidade para ver se «não está a acontecer isto», na própria competição
ou em situações de treino, e ajustar. É saber, por exemplo, que o meu pivot
não está a ter sucesso porque está a ir muito para frente e então, meto um

XCIII
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

pivot, que naturalmente tende a jogar mais atrás. Através desta escolha e nesta
situação estou a influenciar não só este jogador mas e sobretudo o
desenvolvimento colectivo.

(J. M.) – Eu por exemplo defendo que a inteligência de jogo, passa não
só pelo jogador, mas também pelo treinador, nesse sentido, em que ele
também tem de tomar decisões e tem que se ajustar a contextos. Só que a
inteligência de jogo, também é no fazer, que num jogador é mais
observável, embora também tenha intenções, O treinador também o
expressa, contrariamente ao que se observa por exemplo nos cronistas,
nos jornalistas, que opinam, mas não revelam inteligência por não terem
que interferir sobre o jogo.

(M. Gomes) – Porque o treinador e os jogadores, fazem parte de… (de um


sistema) De um contexto. Costumo chamar-lhe contexto. E este lado
emergente depende deles. Um cronista e um jornalista, não conseguem mexer
neste lado emergente e um treinador e um jogador têm de o fazer. Sobretudo
nos jogadores e treinadores de Top, este lado é decisivo.

(J. M.) – Mas pode-se também distinguir, entendimento de jogo, dos


cronistas, de uma inteligência, porque a fazem, porque decidem, porque
agem…

(M. Gomes) – Do mesmo modo que temos treinadores que não sabem
conscientemente o que fazem… mas fazem! Desenvolvem um processo que se
forem a explicar nem sabem muito bem porque é que fazem. (mas fazem) E
alguns até o fazem com muita qualidade, com muita coerência.

(J. M.) – É a tal fenomenotécnica do treinar, que se calhar tem muito de


intuição. E a intuição não é, o acaso, não é…

XCIV
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

(M. Gomes) – O que é a intuição? (é um saber que se vai adquirindo…) É


aquilo que te ia dizer. A intuição é aquilo que eu chamo de sensibilidade. E a
sensibilidade resulta de quê? Do nosso subconsciente e daquilo que nós…
(nós fomos adquirindo e…). Exactamente. Nem só vivências, depende do
nosso mapa. (E das reflexões que vamos fazendo sobre essas vivências.) Do
nosso mapa. E tudo o que a gente mapeia nem sempre é perceptível. Imagina
que aquilo que a gente vive vai mapeando e nós temos o lado visível desse
mapeamento que é a pele mas para além da pele nós temos muitas coisas cá
dentro. E essas coisas cá dentro, é que são o lado subconsciente, o lado da
intuição. É tu saberes que, se calhar não meteste um miúdo porque aconteceu
qualquer coisa que interferiu.

(J. M.) – Ou que se calhar no treino te deu um indicador que, «eh, pá se


calhar ele pode dar», e de um momento para o outro, sem te lembrares
disso (sem dúvida), quase espontaneamente dizes «salta do banco e vai
lá para dentro»

(M. Gomes) – Sem dúvida. Agora a questão é mais do que isso. Dou-te um
exemplo: no início desta época tinha uma activação para o jogo e acontecia
que entravamos sempre mal no jogo. Uma vez, duas vezes e pensei: ”não
pode ser coincidência”. Aconteceram três vezes e aí tive a certeza de que
alguma coisa estava mal. Era a predisposição para o jogo. O que é que
acontecia? Acontecia que havia uma predisposição para o jogo na qual não
conseguia tocar no lado subconsciente. Foi isso o que eu conclui. E tocar no
lado subconsciente, ao nível da auto-hetero superação, é naquele nível que a
gente não sabe porque é que fazemos aquilo. É naquele nível em que estamos
a jogar e não sabe porque é que meteu o calcanhar mas meteu! Isso só é
conseguido com o quê? Com muita intensidade, aquilo a que chamo de
intensidade máxima. Isto é que é intensidade máxima. É perguntarmos ao
jogador «porque é que fizeste isso?» E ele nem saber, não saber explicar.
(mas fez) E olha para trás e até consegue explicar. Mas isto aqui é necessário
acontecer no jogo (e no treino). No treino, eu já nem falo nisso! Já só falo neste

XCV
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

caso concreto, na predisposição para o jogo. O que é que eu fiz? Coloquei


oposição. Coloquei uma oposição modelada com os jogadores suplentes que
passaram a interferir. Este lado da auto-hetero superação fez com que
começássemos a entrar no jogo com muita mais qualidade. E este lado da
intuição e este lado da sensibilidade, este lado do viver tem de estar presente.
Por isso é que dizemos que é subconsciente. Resulta de quê? De qualquer
coisa… (do que já se viveu, de tudo o que foi interiorizado) E de tudo o que se
vai viver. Porque a maneira como eu me relaciono com os meus colegas tem
de acontecer ao nível subconsciente e por isso é que é uma variabilidade
cultural, sem perder a individualidade deles. Mas, se tu reparares, com a
prática, com o tempo, mesmo que o treinador não diga nada, não faça nada,
existe uma cultura que resulta daquilo. O lado emergente do sincronismo.
Porque o subconsciente vai adquirindo, vai antecipando, vai modelando por
aquilo que se vive.

(J. M.) – …e vai interferindo no comportamento manifesto de cada um, e


vai tender para uma convergência de um padrão comum…

(M. Gomes) – Sem dúvida (sem deixar de lado, o plano individual, que
também é fundamental.) Não é fundamental. Existe, ele está lá! (está lá).
Porque, um extremo que recebe a bola e vai sempre no um contra um, os
médios interiores, inconscientemente, não se aproximam para receber pois ele
não esperam que ele vá passar. Um pivot que passa quase sempre de
primeira, os colegas estão predispostos para receber de primeira. Naturalmente
e espontaneamente porque existe o lado de ligação subconsciente. E quanto
maior for a oposição, a exigência e a necessidade de fazer aquilo com
intensidade, mais forte se estabelecem estas ligações. É quando há um
entrosamento, que costumo dizer que há uma fusão na qual nem sentimos a
bancada, não ouve o treinador. O treinador tem de fazer parte desta fusão. Não
é estando sempre a berrar no banco mas dizendo determinadas coisas (quase
uma telapatia). Exactamente. Vendo as coisas da maneira como elas são para
os jogadores e interferindo nos pontos certos. Sobretudo, no caso da

XCVI
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

competição em que interfere no tirar ou no mexer e no ajustar das coisas. E no


treino é exactamente a mesma coisa. Ao fazer as equipas, ao fazer o plano de
treino… Se quero treinar organização defensiva, intersectorial, do defesas com
o pivot. Agora, tenho dois pivots. Qual é que eu pus? Coloquei aquele que me
cumpria com aquilo que achava que era prioritário para ele (e para aquele
exercício), para aquele exercício. Porque do outro lado, na outra equipa, estava
a treinar o meio campo e o ataque, com os objectivos de circular a bola e virar
o jogo. E neste lado existem forças antagónicas ao outro, que fez o quê? Fez
com que houvesse oposição muito forte, o exercício foi muito… (proveitoso)
Claro, para ambos. Custa-me a crer em treinadores que querem treinar a
defesa numa equipa e a defesa na outra…

(J. M.) – Lá está, se calhar vai um bocado de encontro àquilo que eu


defendo que é, não atender à fractalidade do jogo, pode se tornar numa
fatalidade.

(M. Gomes) – Sem duvida, sem duvida alguma que é uma fatalidade. E o
pior é que não é uma fatalidade para o treinador. É uma fatalidade para os
jogadores e equipa. Porque pior do que um treinador chegar ao treino e dar
uma bola ao miúdos e pô-los a jogar, são os treinadores que exigem que eles
façam outras coisas ou então que os concentram demasiado em aspectos
abstractos. E isto é uma tentação e reconheço isso. O querermos que os
miúdos façam determinadas coisas. Miúdos e graúdos. E quando esse lado os
ocupa, isto é, ele ia a fazer aquilo mas já não vai fazer ou não o faz com a
mesma espontaneidade. Não lhe sai, não é subconsciente, não existe uma
fusão subconsciente na concretização dessas coisas, então, aí há dedo do
treinador. E já começa a ser um constrangimento. O saber, gerir isto é decisivo.
É difícil? É mas é decisivo.

(J. M.) - Mas é a chave. A relação e o tipo de relação que se vais


estabelecendo. Ao longo da entrevista, fomos vendo que a inteligência de
jogo é uma inteligência Corpórea. Até que ponto, o facto de ser

XCVII
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

reconhecer isto, levou à necessidade de ir para uma nova licenciatura?


Foi o facto, de na ciências do desporto ainda não se contemplar
devidamente esse lado, ou porquê de…

(M. Gomes) – Foi pelo seguinte: eu acredito muito no lado das intenções,
naquilo que não se vê, naquilo que nos liga agora para além das palavras. E
procurei a neurofisiologia porquê? Porque acho que preciso de entender bem
este lado do mapeamento. Por exemplo, estive no futebol e reconheço que
faço coisas e gestos, tenho uma sensibilidade com os pés que normalmente as
mulheres não têm. O que é normal face ao mapeamento que eu tive da minha
prática. (e também pelo que se vê) Sem duvida também pelo que vejo. E não é
só nisto, estende-se na própria vida. Dou aulas a idosos e acho incrível
perceber que todas as pessoas expressam os hábitos que viveram ao longo da
sua vida sobretudo a parte do trabalho. Portanto, é assim: somos uma espécie
mas dentro da espécie existe uma determinada variabilidade e dentro dessa
variabilidade existe um mapeamento. A palavra que eu encontrei é mesmo,
mapeamento. Nós somos aquilo que fazemos e que queremos fazer.

(J. M.) – Esse mapeamento vai de encontro à minha ideia de


somatização, são se calhar sinónimos até…

(M. Gomes) – Exactamente. Somatização, exactamente! E uma somatização


que não se restringe a neurónios, que vai muito para além disso. Do mesmo
modo que o conceito não se restringe à ideia, vai muito para além disso e está
inscrito em cada parte do nosso corpo. (Um saber Corpóreo. Corpóreo com C
maiúsculo). E que o corpo, não se… (é um EcoCorpo) Exactamente. O
individual não se restringe a nós. Porque não vivemos sem circunstâncias. Eu
posso estar aqui e até posso me isolar de tudo mas isso não é vida, isso não é
jogo, isso não é nada. (É um artificialismo). Em conversas com os amigos,
costumo dar uma ideia que é a seguinte: o nosso mundo é como uma laranja.
Vivemos no interior da laranja! E a laranja tem vários gomos e é o exemplo
claro do fractal. É exactamente um fractal. Essa laranja não vive sem

XCVIII
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

circunstâncias. Se tu vives perto de uma lâmpada azul, a tendência da tua


laranja é ficar com uma tonalidade próxima. Ou consequente desse azul. Se a
tua laranja vive perto de uma lâmpada preta, as coisas vão ser diferentes. E
repara, as pessoas falam muito do lado dos sentidos mas os sentidos não é só
o que a gente vê, ouve e sente. Este lado da laranja é exactamente para dizer
o quê? Nós estamos exactamente no centro da laranja, na parte da semente
que está lá dentro. E o modo como nós vemos a realidade é através dos
gomos. E portanto, se a tua lâmpada é azul, tu estando no centro dos gomos, a
tendência é tu não veres o azul, vai ver através e de acordo com a cor da tua
laranja. (Temos um invólucro).

(J. M.) – Temos um invólucro, que vai aumentando e que vai sendo
criado ao longo da ontegénese, por assim dizer. Porque no início
possivelmente é muito ténue, e daí a maior permeabilidade e maior
plasticidade, mas que depois se vai tornando cada vez mais difícil de
chegar lá ao núcleo…

(M. Gomes) – É porquê? Porque nós somos um ser que nasce com uma
plasticidade enorme. Se calhar somos o ser com mais capacidade de
adaptabilidade. E por isso é que somos plásticos…

(J. M.) – Por isso é que temos necessidade de uma infância mais
prolongada, daí a importância do treino contemplar isso e aproveitar essa
hipótese. Porque se a infância está prolongada, então há que aproveitar.

(M. Gomes) – Mas a infância é um conceito criado por nós. (também) É a


mesma coisa que a idade adulta. São conceitos criados por nós. Até que ponto
esses conceitos são correctos? Existem adultos que são mais crianças do que
algumas crianças. E existem crianças mais adultas que alguns jovens. Esse
lado dos estádios, são criados por nós. E este lado cultural que vamos vivendo
ao longo da vida, leva-nos a ser seres mais uniformizados. Porque repara
numa coisa: o envelhecimento é a rigidez, é a perda desta elasticidade. E nós

XCIX
Anexo 5 (Entrevista a Marisa Gomes)

vamos adquirindo hábitos e os hábitos são o que nos liga. Porque os hábitos
são o modo como a gente se inscreve no contexto. E então, são a prova
evidente de que não vivemos isolados e por isso é que se fala em sociologias,
em psicologias mas tudo reside no mesmo, no Homem. E o Homem não é
Homem sem circunstâncias, nem é Homem sem outros Homens. (somos nós e
as nossas circunstâncias, havia quem dissesse isso, e faz todo o sentido.)
Porquê? É aquilo que te dizia há bocado sobre o jogo. Nós enquanto seres
estáticos e isolados não existimos. Nós somos um fractal daquilo que vivemos
e da maneira como nos inscrevemos no sítio onde vivemos. E acho que isso é
o cerne desta questão.

C
Anexo 6 (Após conversa com Guardiola – “Esboço de uma ideia de jogo”)

Anexo 6: Após conversa com Guardiola – “Esboço de uma ideia de


jogo”
Entrevista realizada e analisada por Nuno Amieiro, Licenciado em Desporto
pela Faculdade de Desporto da Universidade do Porto.
Barcelona, 14 de Abril de 2008.

Como ponto prévio importa perceber que o Guardiola é completamente


“obcecado” com o ter a bola, com o como a circular para criar desequilíbrios no
adversário, com o como fazer chegar a bola aos extremos e deles tirar o
máximo proveito. Toda a organização é pensada em função de como querer
atacar e o como atacar é muito influenciado pela paixão que tem em jogar com
extremos.

Facilmente se percebem inúmeras semelhanças com a forma de pensar o


jogo de Cruyff, treinador que ele não esconde ser a sua maior influência. Com
uma diferença curiosa: Guardiola refere que tem também algumas
preocupações com o momento defensivo (fecho da equipa, basculações,
coberturas, etc…), ao contrário de Cruyff que apenas se preocupava com a
organização ofensiva, que não treinava sequer os aspectos defensivos. De
qualquer modo, diz, o importante é atacar pensando já na possibilidade de
perder a bola. Daí as suas preocupações em termos de jogo posicional com o
equilíbrio defensivo nos primeiros momentos de construção, com as coberturas
ofensivas no último terço, com o ter sempre muita gente nos espaços
interiores, etc.

Vou tentar agora descrever uma das ideias mais curiosas e interessantes do
Guardiola. Aliás, foi o tê-la ouvido por terceiros que me fez ir a Barcelona
conversar com ele! Porquê? Porque constatar uma série de treinadores
espanhóis encantados com uma prelecção sua onde supostamente defende a
ideia de, em construção, o jogador em posse conduzir a bola para de seguida
jogar no homem livre – repetindo-se esta acção numa espécie de “efeito
dominó” – é, à primeira vista, inquietante, estranho … sobretudo contrastante

CI
Anexo 6 (Após conversa com Guardiola – “Esboço de uma ideia de jogo”)

com a ideia que temos do estilo de jogar de Guardiola e do Barça de Cruyff!!


Foi esta aparente contradição que serviu de “motor de arranque” para a nossa
conversa…
A ideia base é a seguinte: como princípio fundamental para iniciar e/ou dar
continuidade à construção Guardiola quer o PROVOCAR COM BOLA PARA
APROVEITAR O HOMEM LIVRE. Entende-se provocar no sentido de atacar o
espaço. E esta acção enquanto primeira acção dos defesas centrais em
primeiros momentos de construção é muito importante para ele (perceba-se
que a acção enquanto princípio de jogo não se esgota aqui, mas é neste
momento onde ela assume, para ele maior relevância). Parta-se do princípio
que a linha defensiva tem superioridade numérica sobre a linha avançada
adversária quando a bola está no GR – imagine-se que o adversário está
estruturado em 1.4.2.3.1 frente ao 1.4.3.3 do Guardiola. A equipa faz campo
grande com 3 avançados bem dentro do último terço, o triângulo de ½ campo
bem subido, os centrais abertos pelos “bicos” da área e os laterais totalmente
abertos e profundos, quase sobre a linha do meio campo. A bola entra num
central e estes estarão normalmente em 2x1 com PL adversário. Eles podem ir
trocando a bola entre eles e inclusivamente com os laterais e ir tentando subir
um pouco, isso não é relevante para o caso (tal como a possibilidade de nessa
circulação inicial aparecer um homem do triângulo livre entre linhas adversárias
pois é óbvio que nessa caso a bola de entrar imediatamente). Como à partida a
equipa adversária está fechada e é difícil encontrar homem livre, aquilo que vai
acontecer é que um central vai atacar o espaço em condução para com isso
atrair sobre si um adversário. Se for o PL adversário, ele passará ao outro
central e ele atacará o espaço já com o PL batido; se o adversário que vier for
um médio criou-se um homem livre que, ao receber a bola vai gerar
instabilidade no bloco adversário. A partir daí tendencialmente será mais fácil
“tocar” ou, se houver espaço livre pode repetir-se a mesma lógica de “provocar
para atrair”, pensando sempre, sucessivamente, em termos de criar situações
de 2x1… Para além disso, com adversários de qualidade, se a bola entra no
interior da equipa, a equipa fecha os espaços interiores e isso permite-nos
aproveitar os extremos com espaço. Portanto, aquilo que se pretende é que os

CII
Anexo 6 (Após conversa com Guardiola – “Esboço de uma ideia de jogo”)

centrais saiam a jogar por dentro. Guardiola não quer que se saia a jogar por
fora, pelos laterais, na medida em que essas zonas são zonas onde o
adversário vai pressionar (a entrada da bola no lateral é muitas vezes indicador
de pressão) e onde é mais fácil pressionar. Mas ele adverte: “Gastem dinheiro
com os defesas, sobretudo com os centrais!!”. Tem consciência de que os
defesas têm de ser muito bons em posse. Transportando esta ideia para a
formação, muito cuidado com o perfil de defesa que define como modelo de
prospecção e formação.
Outro aspecto interessante que ele não se cansa de salientar é que quem
tem a bola (e julgo também que o mesmo se aplica àqueles que a podem
receber) deve centrar a sua atenção nos adversários próximos, isto é, deve
estar preocupado em ver os adversários e não tanto em procurar os colegas…
esses ele sabe onde estão!! Daí que ele tenha ideias concretas, perfeitamente
definidas para o posicionamento dos jogadores à medida que o jogo se vai
desenvolvendo… jogo posicional, claramente outra “obsessão” sua!
Dois pormenores que Guardiola salienta: a linha defensiva deve equilibrar a
iniciativa do central, sobretudo o lateral desse lado, fechando por dentro; a
equipa pode sair por fora se o lateral receber na frente do seu adversário
directo.
Ainda no que diz respeito à lógica onde se alicerça a construção de situações
de finalização, uma segunda ideia muito querida para Guardiola prende-se com
o chamado TERCEIRO HOMEM. Segundo ele, Cruyff era quase que obcecado
com esta ideia que acaba por ser uma dinâmica comportamental relativamente
simples mas que também é difícil de contrariar por parte de quem defende.
Tal como referi, a ideia simples: quem está em posição avançada em relação
à bola pede para dar de caras … com quem está de frente para o jogo.
Por exemplo, o pivô está em posse e PL pede a bola não com a intenção de
ficar com ela e rodar, mas para dar a um dos interiores. No fundo, trata-se de
olhar para quem está de costas para o jogo (fruto da posição relativa face à
bola) como “segundo pivôs” ou se quisermos “estações de ligação”, “pontes”
com colegas que estão de frente para o jogo, muitas vezes “pontes” para o
homem livre que se cria com a dinâmica do “provocar para atrair”.

CIII
Anexo 6 (Após conversa com Guardiola – “Esboço de uma ideia de jogo”)

Tanto o princípio subjacente ao “homem livre” como o princípio subjacente ao


“terceiro homem” (que, muitas vezes, acabam por se complementar), parece-
me acabam por ser dinâmicas, ou melhor, subdinâmicas que procuram criar as
melhores condições de jogo aos apaixonados pelos extremos: tentam criar
condições facilitadoras que, jogando apoiado desde trás, jogando triangulado,
“tocando”, se consiga levar a bola dentro para que depois vá para fora na
direcção dos extremos bem abertos e em ponta, recebendo com algum espaço
e a encarar a baliza adversária de frente.

Guardiola, como já referi, dá enorme importância ao jogo posicional da


equipa. Em cada momento de organização ofensiva, e em função da posição
da bola, cada jogador tem que saber como se posicionar, em que espaços
deve jogar. Entenda-se a posição de um jogador não um ponto do espaço, mas
uma área desse espaço.
Quer sempre posicionamentos diagonais em relação à bola, laterais e
extremos em linhas diferentes, sempre gente bem aberta e considera muito
importante o “timing” de saída do jogador quando funcionar como “ponte” para
o terceiro homem, isto é, quando vem pedir para dar de caras.
Não gosta de trocas posicionais. Ainda que face às características de um ou
de outro jogador possa tê-las em conta (deu o exemplo de Henry no Barça que
pode alternar PL/Ext), não gosta mesmo nada de trocas. Porque o jogador de
futebol normalmente não é muito inteligente e porque as trocas podem ajudar a
inverter uma lógica que para ele é crucial: a equipa dever ter sempre muita
gente por dentro e alguma gente por fora. Para quê? Para “tocar”, para
aparecer na área de frente e para defender se houver perda da posse. Por isso
não gosta absolutamente nada da entrada dos médios interiores no espaço do
extremo quando este baixa. Eles devem jogar por dentro para “tocar”, para
fazer coberturas ofensivas aos extremos e para atacarem a área. Também não
gosta que estes baixem a pedir bola aos defesas (ficando com toda a equipa
adversária entre a bola e a baliza). No mínimo, eles devem procurar receber
entre a linha avançada e a linha média adversárias. E diz que eles devem ser

CIV
Anexo 6 (Após conversa com Guardiola – “Esboço de uma ideia de jogo”)

um pouco como os extremos: pacientes. E faz sentido. A dinâmica desejada


pressupõe que os médios surjam como “homem livre” ou “terceiro homem”!
E se há jogador que, para Guardiola, deve ser muito posicional é o pivô, a
sua posição enquanto jogador. Nem a simples saída em profundidade para que
um médio venha receber no espaço criado lhe agrada. Muito posicional,
sempre a oferecer-se, sempre a procurar posicionamentos diagonais em
relação à bola. Quer os extremos sempre abertos, ainda que em determinados
momentos possam procurar posições interiores. Se isso acontecer
normalmente é o lateral que vai garantir a máxima largura. O princípio é
simples: sempre alguém por fora, bem aberto; sempre muita gente por dentro.
O simples facto de a bola chegar a um extremo não significa que o lado
contrário tenha que fechar. Muitas vezes tem é que continuar bem aberto!
Depende do seguimento que se dá à bola: a linha de fundo ou espaços
interiores.

CV
Anexo 7 (“Viva a brincadeira”. Por Carlos Neto, in Notícias Magazine de 01 de Junho de 2008, pp.
56/57.)

Anexo 7: “Viva a brincadeira”. Por Carlos Neto, in Notícias Magazine de


01 de Junho de 2008, pp. 56/57.

CVII
Anexo 7 (“Viva a brincadeira”. Por Carlos Neto, in Notícias Magazine de 01 de Junho de 2008, pp.
56/57.)

CVIII
Anexo 8 (“PRIMEIRA LINHA” – Entrevista a José Mourinho”, in Jornal de Negócios de 30 de Maio
de 2008, pp. 4 – 7.)

Anexo 8: “PRIMEIRA LINHA” – Entrevista a José Mourinho”, in Jornal de


Negócios de 30 de Maio de 2008, pp. 4 – 7.

CIX
Anexo 8 (“PRIMEIRA LINHA” – Entrevista a José Mourinho”, in Jornal de Negócios de 30 de Maio
de 2008, pp. 4 – 7.)

CX
Anexo 8 (“PRIMEIRA LINHA” – Entrevista a José Mourinho”, in Jornal de Negócios de 30 de Maio
de 2008, pp. 4 – 7.)

CXI
Anexo 8 (“PRIMEIRA LINHA” – Entrevista a José Mourinho”, in Jornal de Negócios de 30 de Maio
de 2008, pp. 4 – 7.)

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