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Meditação Avançada
Ensinamentos Tântricos
Nível 1: Começando
Kalachakra
Participando em uma iniciação de Kalachakra
Relação com o Islamismo e o Hinduismo
Shambala
Dzogchen
Pontos Fundamentais
Mahamudra
Material Introdutório Geral
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Compreendendo o Tantra
Alexander Berzin, 2002
Esta é a versão para impressão de: http://www.BerzinArchives.com
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A Explicação Gelug
Ao explicitar o significado do tantra como uma continuidade eterna, a tradição Gelug segue o
Tantra de Guhyasamaja Mais Recente. O aspecto principal da natureza búdica aqui enfatizado é a
vacuidade da continuidade mental – a sua ausência de existir em modos impossíveis. As
continuidades mentais não existem como inerentemente danificadas e impuras por natureza. Nunca
existiram nem nunca irão existir. Não há continuidades eternas de características inatas que, as
acompanhando e através dos seus próprios poderes, as fazem existir desse modo impossível. Porque
esta ausência total é sempre o caso, quando os praticantes compreendem inteiramente este fato,
podem fazer com que as continuidades de confusão e seus hábitos deixem de acompanhar as suas
continuidades mentais de modo a que os seus fatores da natureza búdica possam funcionar
inteiramente como facetas iluminadoras de um Buda. Uma vez que as continuidades mentais
continuam para sempre como continuidades intermináveis, as suas vacuidades permanecem sempre
um fato, permitindo a purificação e a transformação.
O método de purificação refere-se aos estágios da prática com figuras búdicas. Ao contrário de
pessoas comuns, as figuras búdicas não crescem de fetos, não envelhecem e não morrem. Uma vez
que elas estão sempre disponíveis em qualquer forma, a meditação com elas pode formar uma
continuidade interminável. O resultado do processo de purificação é a continuidade interminável da
Budeidade.
Resumindo, através de uma continuidade interminável de prática meditacional de união a figuras
búdicas, os praticantes de tantra alcançam a continuidade interminável da Budeidade, baseada no
fato interminável da vacuidade das suas continuidades mentais. O tantra é chamado veículo
resultante porque a prática de tantra nos envolve no produzir de aparências de nós próprios como
figuras búdicas que se assemelham ao estado resultante da iluminação.
Sumário
A matéria do tantra diz respeito às continuidades intermináveis conectadas com a continuidade
mental. As continuidades incluem fatores da natureza búdica tais como boas qualidades básicas, um
nível de luz clara de experienciar as coisas, a sua atividade de produzir auto-aparências e a sua
vacuidade. As continuidades também incluem figuras búdicas e o estado iluminado. As quatro
tradições do budismo tibetano explicam várias maneiras como as sucessões de momentos destas
continuidades eternas se entrelaçam como bases, caminhos e resultados. Elas compartilham a
característica de que o tantra envolve um caminho de prática com figuras búdicas para purificar
uma base, a fim de atingir a iluminação como resultado. Elas também concordam que as
características físicas das figuras búdicas servem como representações multivalentes e fornecem os
urdumes para entrelaçar os vários temas da prática do sutra. O termo tantra refere-se a esta matéria
intricadamente entrelaçada e aos textos que a discutem.
2 A Autenticidade dos Tantras
Observações Finais
Participar nos rituais das religiões ocidentais tradicionais também fornece muitos dos benefícios
oferecidos pela prática do ritual tântrico. No entanto, muitos ocidentais acham que, para eles, as
ceremónias e os rituais das suas religiões de nascimento têm falta de vitalidade. Dado que tais
pessoas têm menos associações negativas com os rituais tântricos, praticá-los pode oferecer-lhes
uma via mais neutra para o desenvolvimento espiritual. Muitos descobrem que o estilo de
criatividade asiático, que eles aprendem através do ritual tântrico, ajuda-os a encontrar e dar nova
vida à fé tradicional dos seus antepassados.
4 Figuras Búdicas
Para superarem o fascínio, a repulsa ou a confusão sobre a impressionante variedade de figuras
búdicas usadas no tantra e sobre as suas estranhas formas, os ocidentais precisam de compreender o
seu lugar e uso no caminho budista. Precisam também de diferenciá-las dos conceitos ocidentais de
auto-imagens, arquétipos e objetos de oração. Se assim não for, podem confundir a prática do tantra
com formas de psicoterapia ou de religião politeísta devocional e, assim, privarem-se dos benefícios
totais da prática com figuras búdicas.
5 Imageria Tântrica
Examinando os Mal-Entendidos
Um dos aspectos mais perplexos e mais facilmente mal entendido do tantra é a sua imageria
sugestiva de sexo, adoração ao diabo e violência. As figuras búdicas aparecem frequentemente
como casais em união, muitas tendo caras demoníacas, aparecendo de pé rodeadas de flamas, e a
espezinhar seres indefesos debaixo dos seus pés. Os primeiros eruditos ocidentais, vindos
frequentemente de uma herança social victoriana ou missionária, ficaram horrorizados ao ver essas
imagens.
Mesmo hoje em dia, algumas pessoas acreditam que os casais significam a exploração sexual das
mulheres. Outros imaginam que os pares em união representam a transcendência de toda a
dualidade até ao ponto em que não há nenhuma diferença entre o “bem” e o “mal”. Por conseguinte,
pensam que o tantra é imoral e que não só aprova mas até incentiva o uso do álcool e das drogas e o
comportamento hedonista, criminal e despótico. Alguns vão até ao ponto de acusar mestres tântricos
bem-respeitados de conspirar para a conquista do mundo.
Os ocidentais não foram os primeiros a declarar o tantra como uma forma degenerada de budismo.
Quando o tantra chegou originalmente ao Tibete, em meados do século VIII, muitos interpretaram a
imageria literalmente, como concedendo licença livre ao sacrifício ritual de sexo e sangue.
Subsequentemente, nos finais do século IX, um conselho religioso baniu traduções oficiais
adicionais de textos tântricos e proibiu a inclusão de terminologia tântrica no seu Grande
Dicionário (Sânscrito-Tibetano). Um dos incentivos principais que levou os tibetanos a convidar
mestres indianos para a segunda propagação do budismo no Tibete foi o de elucidar os mal
entendidos sobre o sexo e a violência no tantra.
Nem todos os ocidentais que tiveram contato inicial com o tantra acharam a sua imageria perversa.
Parte deles entendeu-a mal de outros modos. Alguns, por exemplo, acharam que a imageria sexual
simbolizava o processo psicológico de integração dos princípios masculinos e femininos dentro de
cada pessoa. Outros, como muitos tibetanos inicialmente, acharam as imagens eróticas. Até nos dias
de hoje, algumas pessoas viram-se para o tantra esperando encontrar novas e exóticas técnicas
sexuais ou uma justificação espiritual para a sua obsessão pelo sexo. Outros acharam as
aterrorizadoras figuras fascinantes pela sua promessa de conceder poderes extraordinários. Tais
pessoas seguiram os passos de Kublai Khan, o conquistador mongol do século XIII, que adotou o
tantra tibetano desejando sobretudo que o fosse ajudar obter vitória sobre os seus adversários.
Assim, os mal-entendidos sobre o tantra são um problema recorrente. A razão pela insistência do
tantra na manutenção dos seus ensinamentos e imagens secretos é a de evitar tais concepções
erradas e não a de esconder algo perverso. Apenas aqueles com suficiente preparação no estudo e
meditação estão em posição de compreender o tantra dentro do seu correto contexto.
Casais em União
Trazer à consciência e integrar os princípios masculinos e femininos são partes importantes e úteis
do caminho para a maturidade psicológica, como ensinado por várias escolas terapêuticas baseadas
nos trabalhos de Jung. Contudo, julgar o tantra budista como a antiga fonte desta abordagem é uma
interpolação. O mal entendido advém da visão de figuras búdicas como casais em união e da
tradução incorreta das palavras em tibetano para casal, yab-yum, como masculino e feminino. Na
verdade, as palavras significam pai e mãe. Assim como um pai e uma mãe em união são necessários
para se produzir uma criança, do mesmo modo o método e a sabedoria em união são necessários
para dar à luz a iluminação.
O método, o pai, representa a bodhichitta e várias outras causas ensinadas no tantra para se obter os
corpos físicos iluminadores de um Buda ou a consciência onisciente da verdade convencional de um
Buda. A sabedoria, a mãe, representa a apreensão da vacuidade com vários níveis da mente, como
causa para a mente iluminadora de um Buda ou para a consciência onisciente de um Buda da
verdade mais profunda. Obter a união da mente e dos corpos físicos de um Buda ou a consciência
onisciente de um Buda das verdades convencionais e mais profundas de todas as coisas, requer a
prática da união do método e da sabedoria. Porque as culturas indianas e tibetanas tradicionais não
compartilham o sentido bíblico de pudor sobre o sexo, não têm tabus sobre o uso da imageria sexual
para simbolizar esta união.
Um nível de significado do pai como método é a consciência de pleno êxtase. A união do pai e da
mãe significa a consciência de pleno êxtase juntamente com o entendimento da vacuidade - ou seja,
o entendimento ou ou compreensão da vacuidade com uma consciência de pleno êxtase. Aqui, a
consciência de pleno êxtase não se refere ao êxtase da liberação orgásmica como no sexo comum,
mas a um estado mental de felicidade plena, conseguido através dos métodos avançados de yoga,
que traz os ventos-energia (lung, rlung; sânsc. prana) para o canal-energia central. Uma sucessão
prolongada de momentos de um tal estado mental é conducente ao alcance do nível mais sutil da
continuidade mental, a nossa continuidade de luz clara - o nível mais eficiente de experienciação
para o entendimento da vacuidade. O abraçar do pai e da mãe, então, simboliza também o aspecto
de pleno êxtase da união do método e da sabedoria, mas não significa de modo algum o uso do sexo
comum como um método tântrico.
Nos estágios finais do caminho da classe mais elevada do tantra, os métodos avançados de yoga,
para atrair os ventos-energia para o canal central, envolvem um homem e uma mulher sentados
numa postura de união. Contudo, longe de ser explorativo, é requerido que ambos os parceiros
tenham atingido o mesmo nível avançado de desenvolvimento espiritual. Isto inclui que ambos
tenham alcançado o nível de controlo das suas energias sutis e das suas mentes de modo a que,
embora as pontas inferiores dos seus canais centrais estejam em contato, ambos evitem a liberação
orgásmica.
Sentar-se em tal postura yóguica desempenhando complexas visualizações e meditando sobre a
vacuidade é feito apenas para se elevar a prática aos níveis mais avançados. Não é feito como
prática principal nem é feito regularmente, e não é certamente uma prática para os estágios iniciais
do caminho.
Além disso, para se evitar toda a possibilidade de misoginia, machismo ou chauvinismo masculino,
um dos votos tântricos é a constante contenção de falar mal das mulheres e de as maltratar.
Não-Dualidade
Qualquer iniciação tântrica requer a tomada de votos de contenção do comportamento destrutivo.
Em todas as classes de tantra, os praticantes recebem os votos bodhisattva de se conterem em
comportamentos que possam prejudicar os outros ou que possam danificar as suas capacidades de
ajudar os outros. A base requerida é a prévia tomada de refúgio (a tomada de uma direção segura
nas suas vidas) e a manutenção de algum nível de votos leigos ou monásticos, tais como a
contenção em matar, roubar, mentir, ter comportamentos sexuais impróprios e tomar intoxicantes. A
iniciação às duas classes mais elevadas de tantra requer também a tomada de votos tântricos, a
contenção de comportamentos que possam danificar o seu progresso espiritual, tal como
negligenciar a manutenção diária da presença mental na vacuidade.
Vacuidade não significa que, na verdade, tudo, incluindo a ética, não existe. Ela nunca nega as
distinções convencionais entre o comportamento destrutivo e construtivo nem o funcionamento da
causa e do efeito comportamental. A não-dualidade, representada pelos casais em união, significa
que categorias tais como “destrutivo” e “construtivo” não existem independentemente umas das
outras. São designadas em relação umas às outras e em relação às suas causas e efeitos. Assim, ir-se
para além do dualismo não significa obter autoridade para dar rédea solta ao comportamento egoísta
ou abusivo nem para revogar a responsabilidade pelas nossas ações. Significa adquirir consciência
da realidade total, com a visão do interrelacionamento e da interdependência de tudo.
Além disso, quando os praticantes tântricos aceitam provar um pouco de álcool e de carne
especialmente consagrada durante certos rituais, isso simboliza a purificação e o uso das energias
sutis nos seus corpos para alcançar a iluminação. Tal como quando se recebe o pão e o vinho
especialmente consagrados numa comunhão cristã, o ato simbólico dificilmente sanciona o abuso
de álcool ou de droga.
Observações Conclusivas
A publicidade e os entretenimentos ocidentais contemporâneos adquirem, em parte, o seu sucesso
do fascínio que a maioria das pessoas tem pelo sexo e a violência. Para algumas pessoas, este
fascínio também as atrai ao tantra. Contudo, a sua atração pode conduzí-las a alvos mais elevados.
Em geral, ver, ouvir ou engajar em sexo e violência excita as energias das pessoas. Os hormônios
fluem e a mente torna-se intensa. A violência não precisa de ser aterrorizadora, ela pode incluir
esportes extremos ou de contato. Algumas pessoas, naturalmente, experienciam aversão ou estão tão
cansadas de tais coisas que nada sentem. Considerem, porém, aqueles que se tornam fascinados ou
obcecados. Se a confusão acompanhar as energias despertadas pelas suas paixões, tais pessoas
podem causar problemas para si ou para os outros, como por exemplo sendo rudes. Se, por outro
lado, as pessoas acompanharem as energias com presença mental, concentração, e discernimento,
elas podem transformar e usar as energias para alvos positivos. O tantra oferece-nos métodos hábeis
para produzir esta transformação, especificamente com o interesse de ajudar os outros. Contudo,
para se colher todos os benefícios da prática tântrica precisamos de uma compreensão mais
profunda dos processos envolvidos.
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O Que é o Tantra?
A palavra tantra significa um eterno continuum. Continuums eternos funcionam em três níveis:
como base, caminho e resultado. No nível da base, o eterno continuum é a nossa mente –
especificamente o seu nível mais sutil conhecido como a clara luz primordial – que dá continuidade
a todas as nossas vidas. Como um feixe de puro laser de meras claridade e consciência, não
adulterado pelas grosseiras oscilações do pensamento conceptual ou das emoções perturbadoras,
está subjacente a cada momento da nossa experiência, quer estejemos acordados ou a dormir. Se a
mente for considerada como um rádio que toca para sempre, seu nível mais sutil é semelhante à
máquina estar simplesmente ligada. Um rádio permanece ligado durante o processo de se deixar
uma estação, estar entre ondas/faixas e sintonizar noutra frequência. Do mesmo modo, a nossa
mente mais sutil nunca desliga e, por isso, é a base para as nossas experiências da morte, bardo (o
estado entre renascimentos) e concepção de uma nova vida. Nem a estação, o volume, e nem o
estático temporário afetam o fato de que o rádio está ligado. Do mesmo modo, nem o estatuto do
renascimento, a intensidade da experiência, e nem as "máculas passageiras" dos pensamentos ou
sensações passageiras afetam a nossa mente de luz clara. Esta mente mais sutil prossegue até à
budeidade e é a base para alcançar a iluminação.
Além disso, cada continuum de luz clara, quer antes quer depois da iluminação, é individual. Todos
os rádios não são o mesmo rádio, embora cada receptor funcione da mesma maneira. Assim não
existe uma mente de luz clara universal ou tantra-base em que cada uma das nossas mentes
participa..
O segundo nível de tantra, o eterno continuum do caminho, refere-se a um método específico para
nos transformarmos num Buda, ou seja, a práticas meditativas que envolvem figuras búdicas. Este
método é às vezes chamado "yoga da deidade". O terceiro nível, o eterno continuum resultante, é a
continuidade sem fim dos corpos búdicos ou Corpuses de um Buda que obtemos com a iluminação.
Ajudar aos demais de maneira completa requer corpos ou corpuses de conhecimento, sabedoria,
experiência, e formas para se adequar a cada ser e cada ocasião. Resumindo, o tantra envolve um
eterno continuum de prática com figuras búdicas para purificar o nosso eterno continuum mental
das suas máculas passageiras, a fim de conseguir, na sua base, o eterno continuum dos Corpuses de
um Buda. Os textos que discutem estes tópicos também são chamados "tantras."
Yoga da Deidade
Existem pessoas que ficam perplexas com a prática tântrica de confiar/depender em deidades, que
algumas línguas traduzem como "deuses". No entanto, estas deidades não são criadores onipotentes
nem seres em estados limitados de renascimento repletos de prazeres celestiais. Em vez disso, são
formas extraordinárias, masculinas e femininas, em que os Budas se manifestam a fim de ajudar
pessoas com variadas inclinações a superar as suas falhas e realizar os seus potenciais. Cada uma
destas figuras búdicas representa ambos o estado totalmente iluminado, mais uma das suas
características específicas, como, por exemplo, a compaixão ou a sabedoria. Avalokiteshvara, por
exemplo, é uma manifestação da compaixão, e Manjushri é uma personificação da sabedoria.
Kalachakra representa a capacidade de lidar com todas as situações a qualquer momento. A prática
meditativa estruturada em torno de uma destas figuras e da característica que ela representa fornece
um foco e uma estrutura clars, permitindo uma progressão mais rápida à iluminação do que a
meditação sem elas.
Aliviar os sofrimentos dos outros o mais rápido possível requer o método mais eficiente de se obter
as faculdades iluminadoras do corpo, palavra e mente de um Buda. A base para obtê-los é a forte
determinação de livrarmo-nos das limitações, e ao mesmo tempo, adquirir o amor e a compaixão
não erráticos, a autodisciplina ética, rigorosa concentração, uma firme compreensão da realidade e
também a habilidade de ajudar os outros de varias maneiras. Quando tivermos chegado a certo
nível, precisamos de combiná-los e aperfeiçoa-los para que dêem os seus resultados. O tantra nos
proporciona esse método, que é a yoga da deidade. Tal como fazer o ensaio final de uma peça de
teatro, imaginamos que, como figuras búdicas, já possuímos a inteira gama destas faculdades
iluminadoras, todas juntas ao mesmo tempo. Fazê-lo age como causa eficaz para integrar estas
qualidades e obter tal forma mais depressa.
Este é um método avançado. Não é possível imaginar que possuimos todos os recursos de um Buda
simultaneamente a não ser que primeiro tivessemos praticado cada um individualmente.
Precisamosaprender e ensaiar cada cena antes de poder ensaiar a peça inteira. Por conseguinte, seria
incorreto e insensato tentar a prática tântrica sem antes ter obtido considerável experiência
meditativa.
Treinar a Imaginação
A prática tântrica usa o poder da imaginação – uma poderosa ferramenta que todos nós possuimos.
Assim, imaginar repetidamente que já alcançamos algum objetivo é um método que nos compele a
alcançá-lo mais depressa. Suponhamos, por exemplo, que estamos desempregados. Se todos os dias
imaginarmos que arranjámos um emprego, obteremos sucesso mais rapidamente do que se
remoermos, com depressão e tristeza, na falta de trabalho. Isto porque mantemos uma atitude
positiva sobre a nossa situação. Com uma atitude negativa, até nos falta a autoconfiança para
procurar emprego. O sucesso ou fracasso na vida dependem da nossa autoimagem e, no tantra, nós
trabalhamos para melhorá-la através de figuras búdicas. Imaginar já sermos um Buda dá-nos uma
autoimagem extremamente potente para destruir hábitos negativos e/ou sentimentos de
incapacidade.
O método tântrico não envolve apenas o poder do pensamento positivo. Ao usar a imaginação, é
essencial sermos prático e manter uma clara distinção entre a fantasia e a realidade. Se não, sérios
problemas psicológicos poderão surgir. Por isso todos os professores e textos enfatizam que um pré-
requisito indispensável para a prática tântrica é um nível estável de compreensão do vazio – a
ausência de maneiras fantasiadas e impossíveis de existir – e do surgir dependente – o surgir de tudo
dependendo de causas e circunstâncias. Todos somos capazes de arranjar um emprego porque
ninguém existe como um "fracasso" completamente incompetente, e arranjar um trabalho depende
de esforço pessoal e da situação econômica.
Algumas pessoas consideram a yoga tântrica da deidade como uma forma de auto-hipnose.
Contudo, imaginar já sermos um Buda, não é uma forma de autoilusão. Cada um de nós possui já os
fatores que nos permitem alcançar esse objetivo : todos nós já temos a "natureza búdica". Ou seja,
porque cada um de nós tem mente, coração, capacidade comunicativa e energia física, já possuímos
todos os materiais naturais /crus necessários para criar as faculdades iluminadoras de um Buda.
Desde que estejamos cientes que na verdade ainda não alcançamos esse estágio, e não nos inflemos
com ilusões de grandeza, podemos trabalhar com estas figuras búdicas sem correr perigos
psicológicos.
No tantra, então, imaginamos que já possuímos a forma, ambientes, habilidades e os prazeres de um
Buda. O corpo físico de um Buda é feito de clara luz transparente, capaz de ajudar os outros sem
cansar, e nunca é deficiente em coisa alguma. Imaginarmo-nos deste modo como uma figura búdica
repleta de ilimitada energia não nos torna "workaólicos" nem mártires incapazes de dizer a palabra “
não”. É claro que os praticantes tântricos também descansam quando estão cansados. Não obstante,
manter este tipo de autoimagem ajuda-nos a expandir os nossos limites. Todos possuímos um
armanezamento quase infinito de energia ao qual temos acesso em casos de emergência. Ninguém
está cansado demais para correr e acudir o seu filho que caiu e se machucou.
Além disso, ao praticarmos o tantra, imaginamos que o ambiente à nossa volta é completamente
puro e conducente para o progresso de todos. Imaginar isto não significa ignorar as questões
ecológicas ou sociais. Porém, para ajudar aos outros e a nós próprios superar a depressão e os
sentimentos de desespero, deixamos de remoer nos aspectos negativos. A motivação
suficientemente forte e os métodos eficazes para transformar as nossas atitudes nos trarão progresso
espiritual, não importa aonde estejamos. Em vez de nos queixarmos incessantemente e sermos uns
profetas de catástrofes, tentamos trazer esperança a nós e ao mundo.
Nós também imaginamos que, agindo como um Buda age, beneficiamos os outros. Sentimos que,
pela nossa maneira de ser, exercemos sem esforço uma influência positiva e iluminadora em todos à
nossa volta. Podemos compreender o que isto significa se estivemos alguma vez na presença de um
grande ser espiritual, como Sua Santidade o Dalai Lama ou a Madre Teresa. A maioria das pessoas,
mesmo se em geral poucoreceptivas, sentem-se inspiradas e são levadas a agir de maneira mais
nobre. Nós imaginamos que temos um efeito semelhante nos outros. A nossa mera presença, ou
mesmo a menção dos nossos nomes, acalma os outros, trazendo-lhes paz mental e alegria, e
estimulando-os a atingir novas alturas.
Finalmente, imaginamos que somos capazes de apreciar as coisas da mesma maneira pura com que
um Buda as aprecia. Nosso modo normal de apreciação é misturado com a confusão, traduzida
muitas vezes como "prazer contaminado". Somos sempre críticos, e nunca estamos satisfeitos.
Ouvimos música, mas não a podemos apreciar totalmente porque estamos sempre pensando que a
reprodução sonora não é tão boa como seria se fosse no equipamento do nosso vizinho. Um Buda,
porém, deleita-se em tudo sem nem um traço de confusão. Nós imaginamos fazer isto, por exemplo,
ao apreciar as oferendas de luz, incenso, comida e assim por diante nos vários rituais.
Usando a Visualização para Expandir as Nossas Capacidades
Muitas figuras búdicas têm múltiplas características físicas numa variedade de cores. Kalachakra,
por exemplo, tem um arco-íris de quatro caras e vinte e quatro braços. No início pode parecer
estranho, mas há razões profundas para isto. Todas as formas imaginadas no tantra têm diversas
finalidades, e cada uma das suas partes e cores tem muitos níveis de simbolismo. Sua complexidade
reflete a natureza do objetivo da transformação em um Buda. Budas precisam manter ativamente na
mente, em simultâneo, a toda a gama das suas realizações e qualidades para usá-las eficazmente ao
ajudar os outros. Além disso, Budas têm de estar atentos às inúmeras características pessoais
daqueles que estão ajudando de modo a fazer sempre o que é adequado.
Este não é um objetivo impossível, porque já mantemos muitas coisas na mente em simultâneo. Se
dirigirmos um carro, por exemplo, nós estamos cientes da nossa velocidade, da distância em que
precisamos parar ou ultrapassar outro veículo, a velocidade e a posição dos carros à nossa volta, às
regras de condução, à finalidade e o objetivo da nossa viagem, os sinais da estrada e assim por
diante. Ao mesmo tempo, coordenamos os nossos olhos, mãos e pés, estamos alertas a ruídos
estranhos do motor, e até podemos ouvir música e manter uma conversa. As visualizações tântricas
ajudam a expandir esta habilidade.
Sem nenhum método, seria muito difícil treinar para mantermos simultaneamente em mente vinte e
quarto insights e qualidades tais como a impermanência, a compaixão, a paciência e assim por
diante. Um dispositivo mnemônico verbal, tal como uma frase composta das letras iniciais de cada
item na lista, é útil para nos lembrarmos deles em ordem. Contudo, representar cada insight e
qualidade de uma forma gráfica, tal como os vinte e quatro braços de uma figura búdica, faz com
que seja muito mais fácil mantermo-nos cientes de todos ao mesmo tempo. Considerem o exemplo
de um professor de uma classe de vinte e quatro crianças. Para a maioria das pessoas seria muito
difícil manter em mente as personalidades e as necessidades especiais de cada criança ao planear
uma lição em casa. Rever uma lista com os seus nomes pode ser um tanto útil, mas estar aíem frente
da classe venod os alunos traz imediata e vividamente à mente todos os fatores necessários para
modificar a lição do dia.
Um mandala, literalmente um universo simbólico, é uma ajuda adicional neste processo de expandir
nossa atenção mental e de ver tudo de maneira pura. Neste contexto, mandala refere-se ao palácio
em que uma figura búdica vive e o terreno à sua volta. Assim como as partes do nosso corpo, cada
característica arquitetural corresponde a um entendimento ou a uma qualidade positiva que
precisamos manter ativamente em mente. Como um palácio, um mandala é uma estrutura
tridimensional. Um mandala feito de pós coloridos ou desenhado sobre pano é como o plano
arquitetural desse edifício. Durante os empoderamentos e a subsequente prática de meditação,
ninguém visualiza o desenho bidimensional, apenas a estrutura que ele representa.
Compromisso
Muitas pessoas têm medo de compromisso com qualquer coisa – quer com um parceiro, uma
carreira ou com um caminho espiritual. Temendo perder a sua liberdade, abordam qualquer
compromisso com indecisão e hesitação. Outros sentem que um compromisso é uma obrigação
moral, e que se o quebrarem serão más pessoas. Não querendo tomar uma decisão errada nem
arriscar serem maus, têm dificuldade de dar qualquer grande passo na vida. Ainda outros
consideram os compromissos como temporários e participam neles apenas se houver uma cláusula
de escape, tal como um divórcio. Fazem compromissos sem seriedade e quebram-nos facilmente
assim que experienciam inconveniência.
Tais atitudes são um obstáculo ao progresso espiritual, especialmente quando aplicadas ao nosso
compromisso à prática tântrica, a um mestre espiritual ou à manutenção dos votos. Um caminho do
meio é necessário. Por um lado, seria insensato apressarmo-nos com qualquer coisa antes de termos
seriamente examinado as consequências. Por outro lado, na vida temos que tomar algumasdecisões,
senão nunca chegaremos a lugar nenhum. A maneira de superar a indecisão é avaliar honestamente
a nossa capacidade e seriedade em fazer um compromisso, saber claramente a quê que nos estamos
comprometendo, e compreender profundamente a relação entre compromisso e liberdade.
Precisamos de tempo e sabedoria.
Correspondendo a diferentes níveis de compromisso, há duas maneiras de estar presente em uma
iniciação:odemos ou assistir comoparticipante ativo ou então somente como um observador
interessado. Os participantes ativos tomam todos os votos associados à prática, tentam fazer as
visualizações o melhor que podem e, assim, receber realmente o empoderamento.
Subsequentemente modelam as suas vidas de acordo com as recomendações dos seus votos e
engajam pelo menos nos níveis iniciais da meditação tântrica. Se recebermos um empderamento
anuttarayoga da tradição Gelug, por exemplo, começamos uma prática meditativa diária conhecida
como a yoga em seis sessões. Aqueles que não se sentem prontos para tomar tal passo assistem
como observadores e não recebem o empoderamento.
Não há vergonha ou culpa envolvida em ser um observador. É muito mais sensato assistirmos desta
maneira do que fazermos um compromisso prematuro que mais tarde lamentamos. No entanto, os
observadores interessados não precisam apenas de se sentar confortavelmente e prestar atenção à
cerimónia como a um divertido espetáculo antropológico. Há uma grande oportunidade de ganhar
muito da experiência. Ambos participantes e observadores, então, acham a iniciação mais
significativa quando compreendem de antemão os fatos fundamentais acerca do tantra.
Escolher um Sistema Tântrico
Suponhamos que já temos uma perspectiva budista básica, uma base funcional de introvisão, e uma
crença e confiança na eficácia e necessidade dos métodos do tantra anuttarayoga. Se sentirmos que
estamos prontos para receber o empoderamento, ou que gostaríamos de assistir a um como
observador interessado a fim de fazer uma conexão forte para futura participação, a pergunta
seguinte é: que sistema anuttarayoga escolher? O menu é enorme, numa língua estrangeira, e a
maior parte de nós carece de um relacionamento próximo com um professor espiritual a quem
poderíamos pedir conselho. Às vezes, porém, não temos muita escolha visto que mestres
qualificados raramente vêm à nossa área local e ainda mais raramente dão um empoderamento desta
classe mais elevada.
Antes de se receber uma iniciação, a consideração mais importante diz respeito às qualificações do
professor. Se uma pessoa não qualificada der iniciação a um sistema tântrico no qual temos grande
interesse, não haverá benefícios. Qualquer pessoa treinada em rituais pode recitar e seguir os
movimentos de uma cerimónia de iniciação, mas, sem as qualificações adequadas, um charlatão não
nos dá nada. Mesmo se o professor for adequado, a nossa escolha de sistemas tântricos é às vezes
ditada pelo que outros pediram e organizaram. A disponibilidade, contudo, não é o melhor critério
para a escolha de um sistema tântrico de meditação. Às vezes a nossa prioridade é estabelecer uma
ligação próxima com o professor, e não necessariamente com a figura búdica para quem ele ou ela
está dando o empoderamento. O melhor, porém, é encontrar o professor certo e o sistema tântrico
certo. Para determinar se esse sistema seria o de Kalachakra, precisaríamos conhece-lo mehor.
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A Propagação de Kalachakra
Ao tomar a decisão de receber o empoderamento de Kalachakra, é útil saber a origem destes
ensinamentos e a história da sua propagação. Nós teremos então a confiança de que os seus métodos
foram testados e provados efectivos pelo passar do tempo.
De acordo com a tradição, Buda ensinou o Tantra de Kalachakra há mais de dois mil e oitocentos
anos na atual Andhra Pradesh, no Sul da India. Os governantes da terra nórdica de Shambhala foram
a audiência principal e preservaram estes ensinamentos no seu país. No século X, dois mestres
indianos, em expedições separadas, tentaram alcançar Shambhala. No caminho, cada um
experienciou uma visão pura dessa terra em que recebeu a transmissão do empoderamento de
Kalachakra e ensinamentos. Cada um espalhou estes ensinamentos na India, com apenas ligeiras
diferenças na sua apresentação. Um dos últimos sistemas de tantra a emergir historicamente,
Kalachakra depressa alcançou proeminência e popularidade nas universidades monásticas da
planície Gangética central e, pouco depois, nas de Caxemira. Por fim, surgiram quatro estilos de
prática. Mestres destas áreas ensinaram Kalachakra em Burma do Norte, na Península Malay e na
Indonésia, mas este tantra tornou-se extinto nestas áreas pelo século XIV.
Juntamente com tradutores tibetanos, professores indianos também transmitiram o Kalachakra ao
Tibete. Houve três transmissões principais entre os séculos XI e XIII, com cada linhagem passando
uma mistura diferente de aspectos das quatro versões indianas e introduzindo ligeiras diferenças
adicionais devido à tradução. As linhagens, combinando diferentes componentes destas três
transmissões, foram transmitidas até ao presente primeiro através das tradições Sakya e Kagyu, e
depois também através da Gelug. Visto que a escola Nyingma do budismo tibetano apenas transmite
textos indianos que chegaram ao Tibete e foram traduzidos antes dos inícios do século IX, não há
nenhuma linhagem direta Nyingma de Kalachakra. Contudo, mestres Nyingma mais tardios
receberam, e conferiram, de outras linhagens, especialmente da do movimento Rimey ou não-
sectário do século X, o empoderamento de Kalachakra e comentários escritos sobre todos os
aspectos dos ensinamentos. Além disso, há um estilo Kalachakra de dzogchen, ou prática da grande
perfeição.
Entre as quatro tradições tibetanas, Kalachakra é mais proeminente dentro da Gelug. O estudo,
prática e rituais de Kalachakra primeiro receberam atenção especial no século XV em Tashilhunpo,
o mosteiro dos primeiros Dalai Lamas e mais tarde dos Panchen Lamas no Tibete Central. A
meados do século XVII espalhou-se ao que os manchu logo chamaram de "Mongólia Interior",
onde os mongóis construíram a primeira universidade monástica especificamente dedicada a
Kalachakra. Pelos meados do século XVIII haviam faculdades de Kalachakra na corte imperial
manchu em Beijing, depois em Tashilhunpo, Amdo (nordeste do Tibete) e na chamada "Mongólia
Exterior". Durante o século XIX os tibetanos e os mongóis da Mongólia Interior e Exterior
transmitiram Kalachakra aos mongóis buriates da Sibéria e eles, por sua vez, no começo do século
XX, transmitiram aos mongóis calmiques do rio Volga e ao povo túrquico siberiano de Tuva. Tal
como nas outras áreas mongóis e Amdo, grandes setores dos mosteiros principais de cada uma
destas regiões devotaram-se à prática de Kalachakra.
Este entusiasmo dos mongóis, do povo de Amdo e de Tuva por Kalachakra é talvez devido à
identificação dos seus países com a lendária terra nórdica de Shambhala. Por mais de um século
muitos russos também abraçaram esta crença, em consequência do seu contato com os buriates e os
calmiques. Madame Blavatsky e Nikolai Roerich, por exemplo, deram a Shambhala um papel
proeminente na teosofia e no agni yoga, as tradições esotéricas que cada um respectivamente
fundou. Agvan Dorjiev, o enviado buriate do XIII Dalai Lama à corte imperial russa, convenceu o
último czar, Nicolau II, a aprovar a construção de um templo de Kalachakra em St. Petersburgo ao
explicar-lhe a ligação da Rússia com Shambhala.
Kalachakra também recebeu atenção proeminente nos institutos médicos e astrológicos de todas as
quatro tradições do budismo tibetano dentro do próprio Tibete, Mongólia e outras partes da Ásia
Central. Isto porque os cálculos para compilar o calendário tibetano e determinar as posições
planetárias, uma parte grande da astrologia tibetana e uma certa porção do conhecimento médico
tibetano derivam dos ensinamentos internos e externos de Kalachakra. O calendário mongol, tal
como os sistemas astrológicos e médicos, derivaram subsequentemente dos tibetanos. Assim,
Kalachakra é o equivalente budista do "santo padroeiro" destas ciências.
Shambhala
Como Shambhala desempenha um papel proeminente no sistema de Kalachakra, a maior parte das
pessoas sente a curiosidade de saber o que Shambhala realmente é e onde se encontra. É sem dúvida
de uma distorção da palavra "Shambhala" que o escritor romântico ocidental James Hilton
desenvolveu o mito de Shangri-la – um paraíso secreto na Terra. Embora possa haver um lugar
neste mundo representativo de Shambhala, esse não é o legendário reino. Shambhala não pode ser
encontrada neste planeta nem em nenhum outro mundo distante. É, porém, um reino humano em
que tudo é conducente à prática espiritual, particularmente a de Kalachakra.
Os mestres de meditação escreveram textos-guia, em sânscrito e tibetano, para alcançar Shambhala.
Eles descrevem a viagem como sendo física apenas até certo ponto. O temporário residente deve
subsequentemente repetir milhões de mantras e de outras práticas especiais para atingir o objetivo
final. A viagem a Shambhala, então, é principalmente espiritual. O objetivo de se receber a iniciação
de Kalachakra não é chegar a Shambhala nem lá renascer, mas, como todas as outras práticas
budistas mahayana, ou do "vasto veículo", é o de se alcançar a iluminação aqui e agora para o
benefício de todos. O empoderamento planta as sementes que nos permitem alcançar este objetivo e
ajuda a purificar alguns dos obstáculos internos mais óbvios que impediriam a sua realização.
Avaliando a Nossa Preparação para Receber o Empoderamento
Suponhamos que desenvolvemos um interesse por Kalachakra baseado em sabermos algo sobre os
conteúdos especiais dos seus ensinamentos, sua história e relação à paz mundial. Ainda temos que
decidir se estamos realmente prontos para receber o empoderamento e embarcar na sua prática, ou
se é melhor atender, com apreciação, como um observador bem informado. O mais razoável é
basear a nossa decisão no nosso nível de preparação. Embora centenas de milhares de prostrações,
repetições do mantra de Vajrasattva de cem-sílabas e assim por diante sejam extremamente úteis, a
preparação principal é a prática do lam-rim – os modos graduados de comportamento,
comunicação, pensar e sentir, que conduzem à iluminação.
O primeiro passo é tomar a direção segura, saudável e positiva na vida indicada pelos Budas, seus
ensinamentos e a comunidade dos que estão bem-avançados nessa direção. Traduzida geralmente
como a "tomada de refúgio", esta é a direção do trabalho pessoal para a superação de problemas e o
desenvolvimento das qualidades necessárias para beneficiar os outros tão inteiramente quanto
possível. Seguir esta direção na vida significa conduzir a nossa vida com base na compreensão das
leis de causa e efeito comportamentais e na confiança nelas. Para evitarmos sofrimentos e
problemas, nós deixamos de agir destrutivamente, e para experienciar a felicidade, nós agimos de
uma maneira construtiva.
A mais importante preparação para o tantra é esforçarmo-nos por desenvolver as três atitudes
principais do caminho interior, ou perspectivas sobre a vida: renúncia, bodhichitta e a compreensão
da vacuidade. A renúncia é a vontade de abandonar os problemas e suas causas, e é baseada numa
forte determinação de nos libertarmos do sofrimento que eles criam. Por exemplo, ao estamos
totalmente desgostosos de estarmos sozinhos e frustrados, estamos dispostos e determinados a
desistir não só dos nossos relacionamentos doentios com os outros, como também dos traços
negativos da nossa personalidade e auto-imagem confusa e distorcida que causam tanta insatisfação
nas nossas relações. Bodhichitta é um coração decidido a alcançar a iluminação – superando todas
as limitações e realizando todos os potenciais – para o bem de todos. É motivado pelo amor e pela
compaixão por todos os seres, e por um sentido de responsabilidade de lhes ajudar, tanto quanto
possível, a superar os seus problemas e a alcançar a felicidade duradoura. O vazio significa uma
ausência de maneiras fantasiadas de existir.
Normalmente, imaginamos que nós, os outros e todos os fenômenos existem de maneiras
impossíveis, que não estão de acordo com a realidade. Mentalmente, fabricamos fantasias de vários
níveis de sutileza e projetamo-las em nós e em tudo e todos à nossa volta. Por exemplo, a um certo
nível imaginamos que nascemos para fracassar, que nunca conseguiremos ter sucesso em
estabelecer ou manter uma relação satisfatória com alguém, e que a outra pessoa ou circunstâncias
externas nunca estão em falha quando as coisas correm mal. A um nível mais sutil, estamos
preocupados conosco, pensando que existimos como um "eu" sólido dentro da nossa cabeça, que
tememos que ninguém irá gostar e todos irão rejeitar. Confundindo estas fantasias com a realidade,
agimos impulsionados pela ignorância e pela insegurança que ela gera. Mesmo antes do surgimento
de qualquer conflito, nós estamos tão nervosos e acanhados que asseguramos o fracasso do nosso
relacionamento. O nosso comportamento não só acumula e reforça um padrão de potenciais
cármicos para que problemas amadureçam em relacionamentos futuros, como também provoca o
amadurecimento de potenciais passados na forma das atuais rejeições.
Antes de ingressarmos na prática tântrica, temos de compreender que pelo menos os níveis mais
grosseiros das nossas projeções não se referem a algo real. Ninguém nasce um fracasso e nenhum
relacionamento está destinado a fracassar. Esta compreensão vem de uma perspectiva sobre a
realidade, ou "visão correta" da vacuidade, correspondendo a pelo menos um dos sistemas
mahayana de asserções filosóficas que Buda ensinou – ou o chittamatra ou então um dos vários
sistemas madhyamaka. De acordo com estes sistemas, não só nós como também tudo é vazio de
existir em maneiras fantasiadas. Os sistemas diferem principalmente quanto ao nível de sutileza de
fantasia a que se dirigem.
Como preparação adicional para o tantra, são precisos fé e confiança nos métodos tântricos em
geral, e particularmente nos da sua classe mais elevada, anuttarayoga, como constituindo os meios
mais eficientes e eficazes para alcançar a iluminação. Quem já tem esta convicção - a perspectiva
dos três principais caminhos e um conhecimento do lam-rim - é chamado um "recipiente adequado"
para receber o empoderamento de Kalachakra. Nós mesmos devemos avaliar se estamos
suficientemente preparados.
Sumário da Iniciação
O processo da iniciação dura vários dias, com o primeiro dia sendo uma ceremônia de preparação,
seguida geralmente por dois ou três dias do empoderamento em si. A parte mais importante do
início do processo é a tomada de refúgio, dos votos do bodhisattva e dos votos tântricos. Sem todos
estes três, nós na verdade não podemos receber o empoderamento, embora possamos observá-lo e
retirar grande benefício. O empoderamento em si envolve um complexo processo em que
imaginamos que nos transformanos numa série de formas especiais, entramos na mandala da figura-
búdica Kalachakra, e ali experienciamos uma sequência de purificações e o despertar e realçar de
potenciais para o futuro sucesso na prática. A mandala é um enorme palácio com vários andares,
dentro e à volta do qual estão 722 figuras, incluindo um casal principal no centro. O mestre
conferenciando o empoderamento aparece simultaneamente como todas estas figuras, não apenas
como a figura central. Assim, durante todo o processo nós visualizamos a nós próprios, ao nosso
professor e aos nossos arredores de maneira muito especial.
Os estágios da iniciação são extremamente intricados e, sem familiaridade, as visualizações
envolvidas podem ser bastante confusas. Mas se, como recipientes adequados, nós tomarmos os
votos com toda a sinceridade e pelo menos sentirmos, com grande fé, que todas as visualizações
estão realmente ocorrendo, podemos ter confiança de que estamos recebendo o empoderamento.
Com esta base segura, o passo seguinte é procurar mais instrução e depois tentar, tão sinceramente
quanto possível, viajar todo o caminho à iluminação como apresentado no Kalachakra Tantra.
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O Significado de Tantra
A palavra tantra (rgyud) significa um continuum eterno. Existem três níveis de tais continuums:
1. o continuum eterno de base: é o continuum mental individual (fluxo-mental) de cada ser
limitado (ser senciente), com todos os seus fatores de natureza búdica (khams de-bzhin
snying-po) que tornam a iluminação possível;
2. o continuum eterno do caminho interior: é a continuidade das práticas Mahayana com
figuras búdicas (yi-dam, deidades tântricas), que podem ser utilizadas sempre, visto que as
figuras búdicas nunca ficam cansadas; tambem não envelhececem e nunca morrem;
3. o continuum eterno resultante é a continuidade interminável dos corpuses (corpos)
iluminadores de um Buda.
A prática do continuum do caminho interior purifica as manchas fugazes do continuum de base de
uma pessoa, transformando-o no continuum resultante. Os textos que discutem estes tópicos
também são chamados de tantras.
As Classes do Tantra
As três linhagens de budismo tibetano do Novo Período de Tradução – ou seja, Sakya, Kagyu e
Gelug – dividem o tantra em quatro classes:
1. kriya (prática ritual de uma figura búdica), que enfatiza práticas de rituais exteriores, como
abluções, dieta e jejum;
2. charya (prática comportamental de figura búdica), que salienta igualmente o comportamento
externo e os métodos interiores;
3. ioga (prática integrada de figura búdica), que enfatiza a utilizacao de métodos interiores de
ioga;
4. anuttarayoga (prática integrada incomparável de uma figura búdica), que ensina métodos de
práticas interiores especiais e mais avançados.
A linhagem Nyingma, do Antigo Período de Tradução, transmite seis classes de tantra, ou seja: as
mesmas primeiras três e, outras tres que correspondem a estágios progressivamente mais avançados
de anuttarayoga:
4. mahayoga (prática muito integrada de figura búdica), que enfatiza a visualizacao;
5. anuyoga (prática integrada subsequente de figura búdica), que enfatiza o trabalho com
sistemas de energia sutil;
6. atiyoga (prática supremamente integrada de figura búdica) ou dzogchen (rdzogs-chen, a
grande perfeição), que enfatiza o nível mais sutil de atividade mental (mente).
Preliminares
Todas as classes de tantra requerem que se atinja um nível de proficiência spiritual com práticas
preliminares (sngon -'gro, "ngondro") como preparação, antes se de embarcar nos seus caminhos.
Estas incluem a obtenção de um nível de estabilidade nas práticas preliminares partilhadas em
comum com a prática sutra de um bodhisattva, como tambem o completar de um certo número de
práticas especiais não compartilhadas com o sutra.
Preliminares Partilhadas
As práticas preliminares partilhadas em comum com a prática sutra do bodhisattva incluem a
obtenção dos quatro pensamentos que encaminham a mente para o Dharma (blo-ldog rnam-bzhi).
Elas são a apreciação:
1. do precioso renascimento humano,
2. da morte e a impermanencia,
3. das leis da causa e efeito comportamentais (Sânsc. karma),
4. das desvantagens dos renascimentos incontrolavelmente recorrentes (Sânsc. samsara).
Todas as classes de tantra exigem uma base estável nas outras práticas sutra do bodhisattva. O
tantra, na verdade, é um método para combinar e praticar simultaneamente todas elas. As práticas
do sutra incluem:
a direção segura (refúgio);
uma determinação de ser livre (renúncia),
a auto-disciplina ética,
a concentração,
a sabedoria (shes-rab, Sânsc. prajna) do vazio (Sânsc. shunyata, vacuidade),
o amor e compaixão,
bodhichitta (um coração dedicado à obtenção da iluminação e ao ajudar os demais),
as outras atitudes de vasto alcance (Sânsc. paramita, perfeições) de generosidade, paciência
e perseverança entusiastica.
Preliminares Não-Partilhadas
Para purificar forças negativas internas (sdig-pa, Sânsc. papa, potenciais negativos) e acumular
forças positivas (bsod-nams, Sânsc. punya, potencialidades positivas, méritos), a prática do tantra
também exige pelo menos um certo número de preliminares especiais que não são compartilhadas
com a prática sutra. Na maior parte das vezes, elas incluem cem mil repetições de:
1. prostraçoes, feitas juntamente com um verso para a tomada de direção segura e que tambem
reafirma a motivação bodhichitta;
2. o mantra de cem sílabas de Vajrasattva (rDo-rje sems-pa), para purificação;
3. oferendas da mandala, simbólicas de se dar tudo para a obtenção da iluminação e o benefício
dos demais;
4. um verso ou mantra de guru-ioga (bla-ma'i rnal-'byor, "lamay neljor"), para integrar o nosso
corpo, fala, e mente com os dos mestres espirituais - que para nós são budas.
Mantras (sngags), que são palavras e sílabas repetidas em sânscrito.A etimologia do termo sânscrito
significa "proteger a mente" de negatividades. A mandala (dkyil-'khor) é o símbolo de um universo.
Cem mil ou mais repetições também podem ser exigidas para várias outras práticas preliminaries
não-compartilhadas. A tradição Gelug, por exemplo, conta as prostraçoes e os versos de direção
segura e bodhichitta como duas práticas preliminaries distintas, acrescentando normalmente mais
quatro. Isto torna o número total de preliminares em nove:
1. o mantra de Samayavajra (Dam-tshig rdo-rje), para purificação dos elos próximos especiais
(dam-tshig, Skt. Samaya) que temos com nossos mestres espirituais;
2. oferendas de sementes de sésamo a Bhuji Vajradaka (Za-byed rdo-rje mkha-'gro), feitas num
fogo para queimar as forças negativas dos nossos continuums mentais;
3. oferendas de tigelas de água;
4. fazer tabuletas de barro votivas (tsa-tsa), imprimindo nelas alguma figura búdica ou mestre
da linhagem.
Todas as tradições tibetanas exigem as preliminaries básicas do sutra, tais como a direção segura e o
que a tradição Gelug chama de "os três principais caminhos interiores mentais" (lam-gtso rnam-
gsum) que são: a renúncia, bodhichitta e a compreensão correta do vazio. No minimo, precisamos
ser capazes de gerar estes caminhos interiores mentais de uma maneira artificial (bcos-ma), quer
dizer, trabalhar até atingirmos um estado conceitual correto deles. Isto se faz com uma base numa
linha de raciocínio válida. Para ser sincero, não e necessario que um caminho interior mental seja
não-conceptual e para que nós o sentamos a um nível emocional.
Antes de receber uma iniciação, a tradição Gelug recomenda que se tenha pelo menos começado a
prática de cem mil repetições de cada uma das preliminares especiais, com a condição de que
siguamos continuando a faze-las depois. As tradições não-Gelug recomendam que se complete pelo
menos um conjunto de cem mil repetições de cada uma destas praticas preliminares especiais antes
de se receber uma iniciação. No entanto, todas as tradições salientam a continuação da prática das
preliminares especiais como parte constante da prática diária.
Empoderamento
A visualização de nós próprios como figuras búdicas exige primeiro que se receba um
empoderamento. Um empoderamento permite-nos ter sucesso na nossa prática:
estabelecendo, como uma fonte viva de inspiração (byin-rlabs, bênçãos), um vínculo estreito
com um mestre tântrico;
ligando-nos com a tradição viva, que ja vem desde o proprio Buda;
atribuindo votos, que precisaremos manter de uma forma pura, para moldar de maneira
adequada o nosso comportamento e práticas;
purificando ainda mais uma variedade de forças negativas interiores;
ativando os fatores da nossa natureza búdica;
reforçando esses fatores, deixando assim um legado (sa-bon, “plantando sementes"), nos
nossos continuums mentais a partir da experiência consciente de estados mentais e insights
especificos durante o ritual – tais como a consciência gozoza do vazio (em anuttarayoga
Gelug), ou das nossas naturezas búdicas (em tradicoes não-Gelug).
Na verdade, nós não receberemos um empoderamento a menos que
tenhamos respeito e confiança no método tântrico, idealmente ja tendo uma boa
compreensão do mesmo;
tenhamos plena confiança, com base em provas indiscutíveis, que os nossos mestres
tântricos possuem a capacidade de conduzir-nos corretamente no caminho tântrico;
nos sintamos muito inspirados pelos nossos mestre tântricos;
recebamos e prometamos manter puros os votos conferidos;
participemos ativamente no processo de visualização, o melhor que pudermos;
obtenhamos experiências conscientes dos estados mentais ou insights específicos descritos
pelos nossos mestres tântricos durante a cerimônia, ao nível a que formos capazes.
Permissão Subsequente
Depois de recebermos o empoderamento para uma determinada figura búdica, podemos também
receber uma permissão subsequente para a figura:
para fortalecer ainda mais os fatores de natureza búdica anteriormente activados;
para “regar” as sementes anteriormente plantadas;
para reafirmar os nossos votos.
A maior parte das permissões subsequentes contêm pelo menos três partes:
1. elevação (byin-rlabs, benção) do corpo;
2. elevação da fala;
3. elevação da mente.
Em geral podemos distinguir uma permissão subsequente de um empoderamento pelos itens rituais
usados na cerimônia. Geralmente os empoderamentos têm a representação de uma mandala (a
residência de uma figura búdica) colocada dentro de uma estrutura semelhante a um palácio
construída sobre uma base. Os participantes recebem fitas vermelhas para tapar os olhos, que
colocarão nas suas testas durante partes da cerimônia. Tambem receberão cordas para amarrar em
torno dos seus braços, e duas “ palhetas” de erva kusha para colocarem sob os seus travesseiros e
colchões para assim poder analisar os sonhos que tiverem durante a noite.
Permissões subsequentes não usam nenhuns destes itens. Especialmente nas tradições Gelug, Kagyu
e Nyingma, a sua marca reveladora é uma torma na mesa ao lado do mestre tântrico. Coroando a
torma está uma gravura pintada da figura búdica colocada sobre um pau com uma pequena
sombrinha sobre a pintura. Durante a cerimônia, o mestre tântrico põe de leve esta torma em cima
das cabeças dos discípulos, ao mesmo tempo que toca um sino ritual.
Se recebermos uma permissão sem qualquer empoderamento prévio, só poderemos visualizar a
figura búdica à nossa frente ou em cima das nossas cabeças. Não sera permitido imaginar-nos como
a figura. Se, no entanto, tivermos recebido um empoderamento para uma figura búdica de uma
determinada classe de tantra - por exemplo, Avalokiteshvara de Mil Braços (sPyan-ras gzigs
Phyag-stong) para kriya tamtra ou Kalachakra (Dus-'khor) para anuttarayoga - podemos nos
visualizar como qualquer outra figura dessa classe ou mais baixa, como a Tara Branca (sGrol-dkar),
apenas com a permissão subsequente para essa outra figura. Neste caso, ja não há necessidade de
um empoderamento completo para a Tara Branca.
Recolha de Mantras
Depois de recebermos um empoderamento para uma figura búdica específica, também podemos
receber uma recolha de mantras para essa figura, quer tenhamos recebido a sua permissão
subsequente ou não. Para uma cerimônia de recolha de mantras, as vogais e consoantes (a-li ka-li)
do alfabeto sânscrito são escritas com pó coloridos na superfície de um espelho metálico,
geralmente com cada letra num quadrado separado numa grade. Durante o ritual, o mestre tântrico
lê, uma a uma, a localização, na grade, da consoante e vogal para cada sílaba do mantra principal da
figura - por exemplo, as coordenadas vertical e horizontal do quadrado que a contem. Depois de
cada sílaba, um assistente tira algum pó colorido do espelho e usa-o para escrever a sílaba na
superfície de outro espelho metálico. Através do ritual, obtemos firme convicção na exactidão dos
mantras.
Votos
Os votos (sdom-pa) estabelecem os limites além dos quais prometemos não transgredir. Eles são
formulados em termos de dois tipos de "acções indescritíveis" (kha-na ma-tho-ba) que prometemos
evitar.
1. Ações naturalmente indescritíveis (rang-bzhin-gyi kha-na ma-tho-ba) são naturalmente
destrutivas (mi-dge-ba, não-virtuosas), como matar.
2. acções indescritíveis proibidas (bcas-pa'i kha-na ma-tho-ba) são ações eticamente neutras
(lung ma-bstan, não especificadas) proibidas pelo Buda como prejudiciais para certos tipos
de praticantes. Um exemplo é comer depois do meio dia, o que é proibido para monges ou
monjas porque tende a fazer mais sonolenta a mente para a meditação da noite.
Na tradição Gelug, praticantes que pretendem receber um empoderamento ou permissão
subsequente têm de ter previamente tomado e mantido puramente algum nivel de votos
pratimoksha (libertação individual), leigos ou monásticos. Se não o tiverem feito, deverão receber
algum nível de votos pratimoksha leigos durante a cerimônia. As tradições não-Gelug exigem que
se tome e se mantenham puramente pelo menos os votos de refúgio, que também poderão ser
tomados pela primeira vez durante a cerimônia.
Cada empoderamento, permissão subsequente e recolha de mantras implica fazer os votos de
bodhisattva, que são a abstenção de acções erradas (nyes-pa), que nos impediria de ser o mais
prestáveis aos outros quanto possível. Por exemplo, suponham que, a fim de atrair estudantes, nós
nos gabamos, enquanto que criticamos outros, por causa do nosso apego à obtenção de dinheiro,
amor, fama ou atenção. Fazemos votos para nos abstermos de tal comportamento errado, dado que
nos impede de ser capaz de ajudar os outros efetivamente. Isso ocorre porque as nossas prioridades
são egoístas.
Empoderamentos, permissões subsequentes e recolhas de mantras para as duas classes mais
avançadas de tantra implicam também a tomada de votos tântricos, para nos restringirmos de ações
erradas que nos impedem de ter sucesso na nossa prática tântrica. Por exemplo, suponham que
pensamos mal dos nossos professores e achamos que são pretensiosos, hipócritas e incompetentes.
Essa atitude cria obstáculos no seguimento das práticas que eles nos ensinam. Isto porque, pensando
deste modo, não temos confiança nas instruções que eles nos dão. Sem confiança, não podemos
praticá-las eficazmente e ganhar realizações. Essa confiança vem de uma análise aprofundada da
qualificação do professor antes de se receber uma cerimônia iniciatória da pessoa, por forma a
estarmos livres de indecisão e dúvida.
Não recebemos votos pela primeira vez assistindo a um mero empoderamento ou cerimônia de
permissão subsequente. Para receber votos, precisamos tomá-los conscientemente e prometer
mantê-los tão puramente quanto possível. Prometemos manter os votos pratimoksha para o resto
desta vida. Por outro lado, prometemos manter os votos de bodhisattva e tântricos durante todas as
nossas vidas até atingirmos a iluminação.
A Rapidez do Tantra
As três primeiras classes do tantra são muito mais rápidas do que os métodos do sutra, porque
através das suas práticas é possível aumentar a duração das nossas vidas e, dentro de uma vida
prolongada, alcançar a iluminação. No entanto, seguindo os métodos do anuttarayoga, é possível
atingir a iluminação dentro da duração normal da nossa vida. Na verdade, até poderiamos atingir a
iluminação dentro do período de três anos e três fases da lua (lo-gsum phyogs-gsum) - uma fase da
lua sendo da lua nova à lua cheia ou da lua cheia à lua nova.
O período de três anos e três fases da lua não deve ser tomado muito literalmente nem usado como
publicidade falsa ou propaganda de marketing para seduzir pessoas para a prática de anuttarayoga.
Ele deriva da apresentação Kalachakra da contagem de um tipo especial de respirações de vento-
energia sutis (rlung, Sânsc. prana) durante uma vida de cem anos e simplesmente representa um
tempo muito curto. Por razões propícias, os retiros de grande aproximação decorrem por essa
duração, tal como os retiros de formação básica em tantra de anuttarayoga nas tradições não-Gelug.
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Visualização
Alexander Berzin
Morelia, Mexico, Setembro de 1998
Traduzido por Rosa Frazão
Como Visualizar
Muitas pessoas dizem, “Bom, eu não consigo visualizar. Então como posso utilizar esses métodos?”
Na realidade, se investigarmos por um minuto, perceberemos que todos temos poderes
imaginativos. Por exemplo, tente se lembrar como sua mãe ou seu melhor amigo, não importa qual,
se parece. Por favor, faça isso por um momento. Todos somos capazes de lembrar como nossos
entes mais queridos se parecem. Portanto, somos capazes de visualizar.
Lembro-me que certa vez estava na Índia com uma amiga que realmente tinha problemas em
visualizar. Estávamos em uma longa viagem de ônibus, juntos em um dia muito quente, e ela sofria
com calor e sede. Então comecei a, de certo modo, torturá-la dizendo, “Nossa, não seria ótimo se
tivéssemos nove laranjas geladas? Imagina como seria refrescante o sabor. E o cheiro?” E de
repente ela descobriu que conseguia visualizar e imaginar muito bem uma laranja. Portanto, todos
somos capazes; é apenas uma questão de treinamento.
Outra utilização da imaginação no sutra é quando imaginamos um Buda na nossa frente como
objeto de concentração para ganharmos concentração perfeita. O caminho sutra é dividido em
Hinayana e Mahayana, o “modesto veículo da mente” e o “vasto veículo da mente”. Nas escolas
Hinayana, a maneira usual de desenvolver concentração é focar na respiração, o que utiliza a
consciência sensorial. Focamos na sensação física do ar entrando e saindo do nariz. O Mahayana,
entretanto, mostra que precisamos considerar o propósito para o qual estamos usando a
concentração. Usamos a concentração para sermos capazes de focar concentradamente na realidade
e permanecermos focados em sentimentos de amor e compaixão. Portanto, o que queremos ser
capazes de fazer é concentrar com nossa consciência mental e não com a consciência sensorial.
Assim, no Mahayana, o método preferido para desenvolver concentração é num Buda imaginário.
Quando imaginamos um Buda, imaginamos uma figura do Buda muito pequena em nossa frente, na
altura dos olhos, a uma distância de aproximadamente um braço e imaginamos que essa figura não é
concreta, mas feita de luz e viva. Imaginamos que há um pouco de corporalidade – algum peso para
a luz. Isso é apenas um pequeno truque para manter a imagem estável. Se pensarmos muito na
imagem sendo apenas luz, ela tende a flutuar muito facilmente. O importante em trabalhar com esse
tipo de prática de visualização é que não focamos olhando para a frente, como se tivéssemos
olhando o Buda em nossa frente. Ao invés disso olhamos para o chão e imaginamos algo na altura
da sobrancelha. Tente por um momento. Agora, enquanto olha para o chão, você pode se concentrar
onde está sua mão e imaginar que sua mão está lá, mesmo que você não a esteja vendo. Você
consegue? Então é possível. Isso é o que fazemos quando visualizamos uma figura na nossa frente.
Mas não estamos apenas imaginando uma maçã na nossa frente, estamos imaginando um Buda. Isso
é muito significativo, porque no Budismo, como você sabe, temos a tendência de fazer muitas
coisas ao mesmo tempo. Focando no Buda para ganharmos concentração também focamos nas
qualidades do Buda. Isso nos ajuda a manter nossa concentração perfeita nessas qualidades. Além
do mais, ao nos concentrarmos no Buda, nossa concentração é acompanhada de uma forte tomada
de refúgio. Em outras palavras, “Essa é a direção segura que quero tomar na minha vida”. Podemos
acompanhar nossa concentração com um intuito de desenvolver bodhicitta também, em outras
palavras, “Quero me tornar um Buda, como essa figura que estou imaginando, para beneficiar a
todos.” Se conseguirmos desenvolver concentração perfeita na figura do Buda, tendo em mente as
qualidades do Buda, e quisermos seguir a direção segura que o Buda indica e nos tornarmos um
Buda para ajudar a todos – se isso é o pacote em que estamos nos concentrando– então trará muito
mais benefícios do que simplesmente nos concentrarmos nas sensações do ar entrando e saindo do
nariz. Esse é um método vasto. Por isso é chamado “Mahayana”, um veículo vasto de treinamento
por técnicas vastas.
“Clareza” e “Orgulho”
Quando imaginamos essas figuras, precisamos trabalhar dois aspectos simultaneamente, que são em
geral traduzidos como “clareza” e “orgulho”, o que pode ser enganoso. Um dos maiores problemas
que nós ocidentais encontramos quando lidando com o Budismo é que a maioria dos termos
traduzidos podem levar ao engano.
Primeiro, “clareza” não significa o que geralmente entendemos por clareza. A palavra traduzida
como clareza aqui não significa “em foco”, mas sim “fazer alguma coisa aparecer ou a aparição de
algo”. Isso quer dizer que nossas mentes fazem com que uma imagem realmente apareça. Essa é
uma parte da história, fazer uma imagem aparecer. Quando trabalhamos com essas figuras, o que
tentamos fazer é focar no que nossas mentes fazem aparecer e, à medida que nossa concentração se
desenvolve, o foco, os detalhes irão então automaticamente melhorar. Não há necessidade de
esforço para que todos os detalhes apareçam e que tudo fique em foco. Para começar, o que
precisamos é uma imagem grosseira de alguma coisa aparecendo, mesmo que seja apenas uma bola
de luz.
O segundo aspecto, “orgulho”, não significa arrogância. Significa, sim, sentirmos que realmente
somos essa figura búdica ou sentirmos que algo realmente está presente, na nossa cabeça ou na
nossa frente, por exemplo. Esse é um uso especial da palavra orgulho, como no caso encontrado no
capítulo sobre perseverança alegre no livro O Caminho do Bodisattva de Shantideva. Lá, esse
mestre budista indiano escreveu:
Devo triunfar sobre tudo
E nada deve triunfar sobre mim!
Como o filho espiritual de um Leão Triunfante,
Devo manter esse orgulho.
Seres errantes dominados pelo orgulho
São perturbados: eles não tem orgulho;
Pois aqueles que tem o orgulho, não caem sob poder do inimigo
Ao invés disso, tem poder sobre o inimigo, o orgulho...
Mas aqueles que se agarram ao seu orgulho para triunfar
Sob o inimigo, o orgulho,
São os detentores do orgulho, os heróis triunfantes.
E aqueles que matam o inimigo, o orgulho,
Mesmo este sendo gigantesco,
Concedem então todo o fruto do triunfo
Aos seres errantes,o que quer que desejem.
Portanto, se estamos visualizando algo em nossa frente, tal como um Buda, não só fazemos alguma
coisa aparecer, como realmente sentimos que esse Buda está efetivamente ali, com as qualidades de
um ser iluminado.
Esses dois aspectos, conforme os descrevemos – que algo está aparecendo e sentimos que está
realmente ali – são comuns com o sutra, como quando imaginamos um Buda em nossa frente para
nos concentrarmos. Porém, conforme já comentamos, a função principal de imaginarmos essas
figuras búdicas no tantra é imaginarmos que nós somos essas figuras.
Podemos entender o que significa “manter o orgulho da deidade” analisando a palavra tibetana que
é traduzida como “orgulho”. ngagyel (nga-rgyal). Essa palavra é formada por duas silabas, a
primeira, nga, significa “eu”, e a segunda, gyel, literalmente significa “triunfar”. Quando falamos de
orgulho como uma emoção aflitiva, o que realmente significa é considerarmo-nos triunfantes ou
melhores que os outros – em outras palavras “auto-importancia”. Nesse contexto, entretanto, o
termo significa “triunfar sobre o eu” – ou seja, triunfar sobre o conceito comum de nós mesmos, no
sentido de superarmos e nos livrarmos desse conceito. Isso significa não sentirmos mais que temos
todas essas limitações, as falhas do nosso “eu” ordinário, como confusão, não conseguirmos
compreender as coisas e assim por diante. Ao invés disso imaginamos que realmente temos as
qualidades da figura búdica – que somos Manjushri por exemplo, que temos clareza mental e
consciência discriminativa; somos capazes de entender tudo.
Podemos ver através desse exemplo o quanto a palavra “visualização” é enganosa, porque nos leva
a pensar que a única coisa envolvida é realmente ver a imagem. Estamos treinando nossa
imaginação, então não estamos só imaginando a figura no sentido dela aparecer, mas estamos
imaginando como seria se realmente fossemos aquela figura com todas as suas qualidades. Por
exemplo, sentimo-nos como Chenrezig, sentimos que temos amor e compaixão. Portanto, o uso da
imaginação aqui é bastante amplo.
Entre imaginar que algo está realmente aparecendo, e imaginar que temos as qualidades daquilo que
está aparecendo, o mais importante é sentirmos que temos as qualidades. Só precisamos de uma
vaga imagem para nos ajudar a manter o foco, mas colocamos nossa energia em tentarmos sentir
como se tivéssemos, por exemplo, consciência discriminativa e clareza mental. Então, conforme
nossa concentração vai aumentando, os detalhes da imagem vão automaticamente ficando mais
claros.
Resumo
Resumindo, essa tem sido nossa avaliação do processo de visualização, o uso da imaginação no
Budismo. Como podemos ver é um método muito útil e muito sofisticado de prática. Em todos os
níveis de trabalho, desde o nível mais simples, como quando imaginamos como uma pessoa jovem
e atraente irá se parecer quando tiver 80 anos, até o nível mais sofisticado, a visualização nos ajuda
a superar nossas emoções destrutivas e consequentemente nossos problemas e dificuldades.
Permite-nos usar plenamente nosso potencial e ajudarmos mais os outros. Apesar da imaginação
não ser de modo algum um método fácil, ele é muito eficaz para alcançarmos a liberação e
continuarmos até nos tornarmos Budas.
Perguntas
Pergunta: Seguindo o seu último raciocínio, devemos concluir que a natureza búdica em si também
é vazia?
Alex: Sim, tudo é vazio de modos impossíveis de existência. O que quer que seja que exista
efetivamente, ou seja, o que quer que seja validamente cognoscível, não possui nada internamente
que estabeleça sua existência. Algo que seja encontrável dentro de um objeto é uma maneira
impossível de estabelecer que o objeto existe, porque não existe nada encontrável dentro de alguma
coisa. O que a vacuidade nega é a maneira impossível de existência, pela qual haveria algo dentro,
concreto e encontrável, que por si só estabelecesse sua existência e consequentemente desse uma
identidade concreta, permanente, que nunca foi e nunca fosse afetada por nada. Portanto, a única
coisa que podemos dizer, se tivermos que dizer algo sobre o que estabelece a existência das coisas,
é somente rótulo mental.
Isso não significa que o rótulo mental os cria, uma vez que podemos rotular mentalmente alguém
como um monstro, mas isso não faz da pessoa um monstro. O que estabelece a existência de alguma
coisa é que ela é meramente o objeto de referência de nomes e conceitos, validado por uma
cognição valida do objeto ao qual nos referimos. Esse fato diz respeito a tudo, inclusive à natureza
búdica, iluminação, Budas e até a vacuidade em si. Obviamente, temos que pensar profundamente
sobre isso para entendermos e compreendermos que é verdade.
Nós temos a tendência de questionarmos, talvez de um ponto de vista científico ocidental, “O que
faz com que eu seja eu?” E podemos dizer, “Bem, é o padrão genético dos cromossomos nas minhas
células; é o meu genôma único. É algo dentro de mim que faz com que eu seja eu”. Mas o Budismo
diria “Ei! Olhe mais de perto. Esses cromossomos e genes são feitos de moléculas, e as moléculas
são feitas de átomos, que são feitos de partículas subatômicas, que por sua vez são feitas de campos
de energia. Onde está alguma coisa encontrável?” Não há nada concreto dentro dos cromossomos
que os faça cromossomos.
Portanto, existimos como essa pessoa que somos porque as pessoas nos concebem, pensam sobre
nós, nos rotulam e nos chamam pelo nosso nome; e é um rótulo correto. E é só isso! Nada mais é
necessário para estabelecer nossa existência. É o que queremos dizer com “apenas rótulo mental”. O
Budismo tem toda uma argumentação bastante complicada sobre como saber que um rótulo ou um
nome está correto. Mas de novo, só porque eu chamo aquela almofada de cachorro não faz dela um
cachorro. Mas formas válidas de saber é outro tópico muito grande nos estudos budistas e não
podemos entrar nisso hoje.
Pergunta: Não temos nada do que um Buda é; mal podemos imaginar o que isso significa ou o que
isso pode ser. O que quer que pensemos o que é ser um Buda é só uma projeção de nossas mentes.
Portanto, se eu só posso projetar isso, quando eu visualizo uma figura búdica ela é uma mera
projeção. Como posso saber se essa projeção da figura búdica é correta ou incorreta? Em outras
palavras, devo simplesmente confiar em minha natureza búdica – isto é, por causa da minha
natureza búdica, a maneira como eu projeto a figura búdica na minha frente está correta?
Alex: Eu acho que a abordagem Sakya sobre a inseparabilidade do samsara e nirvana pode nos
ajudas com essa pergunta. De acordo com o sistema Sakya, o samsara e nirvana não são só
inseparáveis – compreendendo que samsara e nirvana têm muitos níveis diferentes de significado –
como também os níveis de base, caminho e resultado também são inseparáveis. Portanto, quando
vemos alguém como um Buda, o nível básico é a natureza búdica, o potencial que permitirá
alcançar o estado de Buda. O nível resultante, o nível final, é o estado efetivo de Buda que as
pessoas podem obter e que agora existe em potencial. O caminho para irmos da base ao resultado
são nossos diferentes níveis de conceitualização cada vez mais apurados, e realização desse estado
de Buda.
Portanto, quando estamos vendo alguém como um Buda, esses três aspectos estão inseparavelmente
misturados. Durante o caminho, nossa conceitualização do que é o estado de Buda, que está na base
do nível fundamental – os fatores da natureza búdica – é só uma aproximação do resultado, o estado
de Buda. É natural que o nível do caminho seja apenas uma aproximação; não poderia ser diferente.
É claro que precisamos validar nossa aproximação de acordo com as várias descrições de um Buda
que lemos. Não queremos ter uma aproximação, digamos, de um Buda onipotente como na
descrição de Deus Todo Poderoso na Bíblia. Essa não é uma qualidade de Buda. Se nossa
conceitualização é baseada nas verdadeiras descrições das escrituras e assim por diante, poderemos
trabalhar de maneira válida com ela, mesmo sendo uma aproximação.
Pergunta: Como podemos trabalhar com essas figuras búdicas quando temos essa barreira cultural
tão forte no que diz respeito às suas iconografias originais – Tibetana, Indiana, ou o que seja. Por
serem tão estranhas e tão alheias a nós, à nossa cultura e forma de enxergar, não consigo me
relacionar com elas. Portanto, seria válido que quando eu tentasse desenvolver compaixão, que ao
invés de visualizar Chenrezig, eu visualizasse um rosto que fosse significativo para mim – um rosto
cheio de compaixão ou amor ou sabedoria ou o que seja?
Alex: Bem, temos que ser um pouco cuidadosos aqui. Primeiro, todas essas figuras búdicas também
eram alheias à cultura tibetana, ainda assim os tibetanos conseguiram, com o tempo, sentir-se
confortáveis com elas. Ser de uma cultura diferente não é uma barreira inerente. Segundo, essas
figuras não devem ser consideradas só pela aparência. Elas são usadas em um método muito
sofisticado. Todos os braços, rostos e assim por diante representam muitos níveis diferentes de
significado e carregam um profundo simbolismo. Eles representam, por exemplo, diversas
realizações diferentes que estamos tentando ter simultaneamente em nossas mentes. Tentar ter 24
insights simultâneos em nossa mente é muito difícil se fizermos isso de maneira abstrata, não só
conceitualmente, mas também não conceitualmente. Estamos falando de amor, paciência,
compreensão e assim por diante. Mas se representarmos esses 24 insights ou qualidades de maneira
gráfica como 24 braços,é muito mais fácil imaginarmos tudo isso ao mesmo tempo. Assim sendo, a
visualização dessas figuras com vários braços e varias faces é um dispositivo para nos ajudar a
manter todas as coisas que elas representam simultaneamente em nossas mentes.
Portanto, temos que ser muito cuidadosos para não jogarmos fora um dos principais propósitos
dessas figuras, que é ter todos esses braços, pernas e faces. Entretanto, quando a iconografia dessas
figuras foi de um país para o outro – da Índia não só para o Tibete, mas também para a China e
Japão – as características faciais, por exemplo, mudaram de indianas para chinesas. Algumas roupas
também mudaram. A mudança mais dramática foi que Avalokiteshvara mudou de sexo e se tornou
uma mulher na China. Ele era um homem na Índia e no Tibete. Portanto, existem algumas coisas
que podem ser adaptadas em um nível superficial, mas temos que ser muito cuidadosos. Fazer
qualquer adaptação cultural, como meus professores sempre disseram, requer um conhecimento
muito completo tanto da cultura original quanto da cultura para a qual estamos indo e, logicamente,
um conhecimento completo do Budismo. Isso requer um conhecimento muito vasto; não só
profundo, como vasto.
Pergunta: Entendo que existem duas maneiras de se dissolver uma visualização, e quero saber se
isso é correto. Uma é, por exemplo, quando visualizamos Vajrasattva no topo de nossa cabeça, no
fim da nossa prática ele se dissipa e se dissolve em luz e vai para o nosso coração, certo? Esse é um
tipo de dissolução. A outra é como com o campo de mérito, onde uma figura se dissolve na outra.
Isso está correto?
Alex: Existem muitas maneiras diferentes de dissolver uma visualização. Uma delas certamente é
dissolver a visualização em nosso coração. Isso tem vários propósitos no que diz respeito à
compreensão de como as aparências vêm da clara luz da mente e assim por diante. Algumas vezes
as visualizações, conforme você disse, colapsam em si próprias e então podem tomar dois rumos:
ou se dissolvem na vacuidade ou se dissolvem em nós. Algumas vezes as visualizações se
expandem até ficarem do tamanho do universo e então se dissolvem. Algumas vezes as
visualizações vão para um campo búdico. Portanto, existem muitas maneiras diferentes e cada uma
delas tem seu propósito específico.
Dedicação
Vamos então dissolver nossa sessão com uma dedicação – que é outra maneira de dissolvermos uma
aparência. Pensamos que qualquer entendimento, insight ou força positiva que possamos ter
ganhado nesta noite cresça cada vez mais. Particularmente, o que discutimos nesta noite não foi
fácil; é bastante sofisticado. Portanto esperamos que nosso entendimento torne-se cada vez mais
profundo à medida que ouvimos as gravações ou lemos as transcrições e tentamos compreender
cada vez mais, se estivermos interessados em fazer isso. Que possamos obter cada vez mais
benefícios a partir da integração desses ensinamentos na nossa prática e na nossa personalidade,
para que eles possam nos ajudar a superar dificuldades e realizar mais e mais nosso potencial de
ajudar da melhor maneira a todos. E que tentemos juntar todos os pedaços do quebra cabeça do
Dharma, para que compreendamos mais e mais, e possamos obter mais e mais benefícios dos
ensinamentos e práticas.
Tome por exemplo o conselho de ver o professor espiritual como um Buda quando ele está
ensinando – o que, por sinal, é uma prática somente para discípulos muito avançados, não para
iniciantes. É para praticantes que já deram a direção segura do refúgio em suas vidas e que visam o
ideal bodhicitta de se tornarem Budas para beneficiar todos os seres. Para esses praticantes, então, é
de muito benefício enxergar o professor espiritual como um Buda enquanto recebem os
ensinamentos. Mas o que isso significa?
Precisamos juntar as peças do quebra cabeça do Dharma. Isso significa mudar de nível quântico, do
nível comum para o da natureza búdica, o nível da figura búdica. Lembre-se, samsara e nirvana
inseparáveis. O professor tem defeitos, mas também qualidades, inseparavelmente. Um é o nível
grosseiro; o outro é o nível mais sutil. O nível sutil são as boas qualidades. Assim como na
meditação, só focamos no nível sutil por diversas razões benéficas, da mesma forma, enquanto
recebemos ensinamento ajustamos o foco no nível mais sutil do professor, no que se refere a esse
nível quântico mais sutil de ser um Buda. Isso nos permitirá focar e apreciar as boas qualidades do
professor enquanto estivermos recebendo um ensinamento, o que nos ajudará a ter uma mente mais
aberta e receptiva para entendermos o que o professor está dizendo. Focar nos problemas grosseiros
do professor enquanto escutamos os ensinamentos nos distrai do que ele está dizendo. Isso não
ajuda em nada quando estamos escutando os ensinamentos.
Não obstante, considerando o professor como um Buda enquanto escutamos os ensinamentos, em
outras palavras, focando nesse nível quântico mais sutil, não significa que perdemos nossa
habilidade discriminativa de diferenciar o que o professor diz de correto e o que ele diz de incorreto.
É isso. Ver um nível quântico diferente não impede o funcionamento da consciência discriminativa.
Desta forma, precisamos juntar as peças do quebra cabeça do Dharma para realmente entender em
um nível mais profundo alguns dos ensinamentos mais complicados.
Que a nossa compreensão e nosso processo de juntar as peças cresçam mais e mais, para que
realmente possamos beneficiar os seres da melhor forma.
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Resposta
Definições e Conotações dos Termos Pertinentes Traduzidos
Alex: Para responder sua questão, vamos primeiramente olhar o significado do termo original em
Sanscrito, adhisthana e como ele é tradicionalmente traduzido para o Chinês e para o Tibetano:
“Adhisthana” em Sanscrito significa, literalmente e no seu uso mais geral, uma “posição
perto de alguém”, normalmente um governante, e implica uma posição de poder ou
autordade. Então, nesse sentido, é uma posição de alto escalão que um governante confere a
alguém. Ao recever essa posição, a pessoa fica mais próxima de ter as qualidades do
governante que a confere.
A tradução chinesa, sheshou, transforma o termo em um substantivo verbal – a “ conferência
de uma posição que alguém toma ou detem”.
A tradução tibetana, byin-gyis-brlabs, comumente abreviada como byin-rlabs (pronunciada
“chinlab”) efatiza o processo que ocorre com a conferência de tal posição. A primeira sílaba,
byin, é algumas vezes explicada como significando clareamento e algumas vezes como
“habilidade”, enquanto rlabs conota “poder” e brlabs, derivando do verbo rlob-pa, significa
transformar, especificamente transformar em um estado melhor. Então, byin-gyis-rlabs, é
comumente definida em tibetano como uma “transformação por meios de um clareamento,
em um estado de possessão de poder e habilidade.” Ou a conferência de tal transformação.
Embora “rlabs” também seja a palavra tibetana para ondas, explicações tradicionais não se
referem a esse significado da palavra.
Então, em alguns casos eu tenho traduzido o termo para o inglês como uma melhoria ou
enobrecimento. A tradução “inspiração”, que eu tenho mais frequentemente usada, conota a
força que traz tal transformação ou melhoria.
O termo sânscrito original e essas várias traduções dele que citei, então, se referem à posição de
elevada habilidade e poder de conferência por alguém ou por algo, e que lembram a posição da
pessoa ou da coisa que confere. Também estão conotados os processos de transformação que traz
alguém a essa posição (nominalmente, uma “melhoria”), a ação que gera a transformação
(nominalmente, a conferência), a força que gera essa transformação (nominalmente, inspiração), e
como a transformação ocorre (nominalmente, por meio de um clareamento).
Resposta
Alex: O processo pelo qual a inspiração ocorre, explicado acima, é exatamente o mesmo quer se
refira à inspiração de um professor espiritual, de um fundador da linhagem ou de uma só
personagem, ou mesmo de uma linhagem espiritual inteira – que vem desde Buda Shakyamuni até
nosso professor espiritual. Lembre, não existe tal coisa como uma inspiração encontravelmente
existente que passa como uma bola de futebol, de uma pessoa para outra, seja vinda diretamente de
Buddha ou de nosso mestre para nós ou através de uma linha de sucessivos professores até chegar
em Buda. Por causa disso, a distância no espaço ou no tempo entre eles e nós é irrelevante. O
processo inspiracional simplesmente ocorre, surgindo com dependência em todas as causas e
condições relevantes. Nenhuma conexão encontravelmente existente ligando nossas mentes com
quaisquer deles existe.
Como mencionado acima, uma das causas cruciais para o processo inspiracional ocorrer é o amor, a
compaixão, e as preces que a pessoa inspiradora fez - se a pessoa inspiradora é o nosso professor
espiritual, um mestre da linhagem, ou Buda Shakyamuni. Essas preces foram feitas para serem
capazes de beneficiar todos os seres limitados nas dez direções e nos três tempos – passado,
presente, futuro. Por causa desse vasto escopo Mahayana, então, se aceitamos que essas preces
realmenteajudaram a amadurecer as boas qualidades atingidar por essas pessoas, devemos também
aceitar que a influência iluminada dessas preces continuam a possuir o poder e a habilidade de nos
beneficirar, ainda agora , na forma de inspiração.
Shantideva, em Engajando no Comportamento do Bodhisattva (sPyod-‘jug, Skt.
Bodhisattvacharyavatara) (IX 35-37) indica esse ponto claramente:
Assim como uma jóia que reraliza desejos
E uma árvore que concede desejos realiza os desejos,
Da mesma forma, através do poder dos discípulos de serem disciplinados e das preces,
A Forma Iluminada do Triunfante aparece.
Por exemplo,assim como quando um curador garudikafalece
Após produzir um tipo de poste de madeira curadora,
Isso ainda pode pacificar veneno e coisas do tipo,
Mesmo quando um longo tempo tenha passado desde sua morte.
Então, também, quando um bodhisattva passou para o nirvana
Após ter produzido o poste curador (corpo) de um Triunfante
De acordo com o comportamento (caminho) do bodhisattva,
Isso ainda pode realizar tudo que precisa ser feito.
Resposta
Alex: Primeiro de tudo, precisamos diferenciar os vários tipos de força positiva. Se a força positiva
advinda de ações construtivas não é dedicada à liberação ou à iluminação, então é uma força
positiva construtora do samsara. Se é dedicada à obtenção da iluminação ou liberação, é uma força
positiva construtora da liberação, e se é dedicado à nossa obtenção da iluminação, é uma força
positiva construtora da nossa iluminação. Apenas a força positiva construtora do samsara é uma
força cármica. Os dois últimos tipos são os tão conhecidos “construtores puros” e não são
fenômenos samsáricos cármicos.
Além disso, força positiva amadurece de muitas formas: nossa experiênciade felicidade, nossa
experiência dos cinco fatores agregados de uma situação de renascimento, nossa inclinação de agir
de uma forma a lembrar nossas ações construtoras prévias que construiram essa força, a experiência
dos outros agindo em relação a nós como nós agimos, nossa experiência de determinado tipo de
ambiente, e assim por diante. Em adição, existe a força positiva que amadurece na obtenção (thob-
pa) de uma realização (rtogs-pa). Vamos deixar de lado esse ultimo tipo de amadurecimento de
força postiva por agora e considerar os outros tipos de amadurecimento primeiro.
Quando falamos sobre a inspiração agindo como causa para a ativação e o fortalecimento de uma
tendência de alguma qualidade que as vezes já temos , como a compaixão, não acredito que nenhum
dos três tipos de força postiva – construtora de samsara, construtora de liberação ou construtora de
iluminação – está diretamente envolvida. Esses três tipos de força positiva estão envolvidos,
entretanto, quando consideramos a força positiva que amadurece em nosso sentimento de querer
ajudar alguém, motivado por compaixão. Podemos aplicar nossa compaixão na busca de algum
objetivo samsárico, como quando nosso ato construtivo de ajudar alguém é motivado primeiramente
pelo desejo de que essa pessoa goste de nós. Ou podemos aplicar nossa compaixão na busca de
liberação ou iluminação, como quando nosso ato construtivo de ajudar alguém é motivado por
renúncia ou bodhichitta.
Assim como no caso de receber inspiração, o amadurecimento da tendência para o fator mental que
constitui uma boa qualidade e o amadurecimentos de uma força positva também ocorrem como
fenômenos que surgem dependentemente. Em outras palavras, qual tendência para que uma
determinada boa qualidade amadureça e qual força cármica para que o sentimento de querer fazer
algum tipo determinada ação amadureça depende de uma vasta multidão de causas e condições.
Ninguém tem controle sobre esse processo: nem nós, nem nosso professor, e nem mesmo o próprio
Buda Shakyamuni.
No caso da nossa tendência para uma boa qualidade, a inspiração meramente causa alguma
tendência de amadurecimento intermitente para que uma delas amadureça no desenvolvimento ou
melhoria dessa boa qualidade. A boa qualidade que desenvolve ou fortalece no nosso contínuo
mental será similar à boa qualidade da pessoa que nos inspira.
Porém, existem inumeráveis tendências para fatores mentais positivos e fatores de natureza búdica
em nosso contínuo mental que nos capacitam a desenvolver boas qualidades que se assemelham
àquelas dos professores espirituais e dos Budas. Existem também inumeráveis forças positivas ou
potenciais para agir mais uma vez de maneira similar a formas construtivas que já fizemoss antes.
Além disso, cada uma dessas tendências, fatores, e potenciais pode amadurecer em uma coleção de
diferentes resultados dependendo de vários fatores que podem afetar sua força. Qual deles
amadurece, quando amadurece, a força com que amadurece, a forma com que o amadurecimento
acontece, quanto tempo aquilo que amadurece fica manifesto no nosso contínuo mental, como
aquilo que amadurece muda de momento para momento, e assim por diante, depende de vários
fatores mentais adicionais acompanhando nossa experiência em cada momento. Eles também
dependem de circunstâncias externas nas quains nos encontramos em cada momento. Nenhum
desses fatores pode ser estabelecido como existindo pelo poder de alguma coisa encontrável de seu
próprio lado. O amadurecimento simplesmente ocorre com dependência na interação de todos eles,
e certamente não dependendo do poder de apenas um deles, como a intenção de Buda.
Quando consideramos a força positiva que pode amadurecer na obtenção de uma realização, a
inspiração pode causar uma tendência de amadurecimento intermitente para que a consciência
discriminativa amadureça em um alto grau desse fator mental; possibilitando, assim, a realização. A
análise desse tipo de amadurecimento é a mesma que já tínhamos aplicado em relação à compaixão.
Força positiva, entretanto, pode também ser amadurecida e melhorada pela inspiração, de forma que
essa traga a obtenção em si. De novo, a obtenção de qual realização e assim por diante surge com
dependência em muitos fatores, também de forma similar à análise que fizemos acima. De novo,
qual dos três tipos de força positiva – construtora de samsara, construtora de liberação, construtora
de iluminação – é ativada, depende de fatores motivacionais que acompanham nossa meditação ou
qualquer prática que precipite a obtenção daquela realização.
No caso de realizações que são simplesmente entendimentos profundos ou insghts sobre vários
temas, como impermanência, os defeitos do samsara, e assim por diante, não existe ordem
progressiva inata. As várias apresentações deles, como no lam-rim caminho gradual para
iluminação, sugerem muitas ordems progressivas benéficas, mas praticantes também podem ganhar
insights em ordens que difiram dessas. No caso dos cincos caminhos mentais – construção (o
caminha da acumulação), aplicação (o caminho da preparação), visão (o caminho da visão),
habituação (o caminho da meditação), e não mais treinar (o caminho do não mais aparender) –
existe uma ordem progressiva inata. Cada um dos cinco caminhos mentais pode apenas ser obtido
na base da obtenção do caminho mental imediatamente prévio. O mesmo acontece com relação ao
estágio da geração (bskyed-rim) e o estágio da consumação da prática do tantra anuttaryayoga.
Mais uma vez, devemos entender que não existe uma ordem progressiva estabelecida pelo poder de
algo do lado da realização em si ou no lado da obtenção ou no lado do contínuo mental que tem a
habilidade de os obter. É claro, então, que precisamos entender o surgimento dependente e a
vacuidade de causa e efeito com o objetivo de começar a entender como a inspiração ajuda a
fomentar o amadurecimento de forças cármicas.
Resposta
Alex: A explicação de como a tranformação de melhoria funciona através da recitação de mantras é
a mesma de como funciona através do guru-yoga. Aqui, entretanto, precisamos adicionar algumas
coisas do que eu acabei de explicar sobre itens enobrecedores que não são parte dos nossos corpo –
nesse caso, os sons dos mantras.
Mantras são exemplos de fala iluminada, proferida por Buda, aparecendo nos tantras na forma de
várias figuras de Buda. Como fala iluminada, o som do mantra foi enobrecido pela compaixão,
amor, bodhichitta, preces e realização da vacuidade de Buda. Então, mantras são sons inspiradores
e, como Kawa Peltseg os definiu, eles têm aspecto característico de possuir um certo poder ou
habilidade. Mas, como explicamos antes, não existe nada encontrável no lado do som do mantra
que, pelo seu próprio poder, estabeleça a existência desse poder e habilidade. O poder e habilidade
surgem com dependência de inumeráveis outras causas e condições.
Quando repetido por alguém com crença confiante no poder dos mantras, a recitação do mantra
pode ativar e fortalecer tendências para várias boas qualidades, como compaixão e consciência
discriminativa. Essa ativação e fortalecimento é muito facilitada se, precedendo e acompanhando a
recitação do mantra, também praticarmos um tipo apropriado de meditação, como uma de
visualização, análise, e assim por diante. Além disso, dependendo da motivação que acompanha a
recitação – samsárica, de renúncia, ou de bodhichitta – a força positiva correspondente para a
obtenção de uma realização é realçada.
Se você pergunta se a recitação de um mantra acompanhada por descrença no poder dos mantras
pode trazer resultados positivos, eu duvido que possa. Se a recitação é acompanhada por hesitação
indecisa que é mais inclinada na direção da crença confiante no seu poder, então a recitação traz um
resultado mais fraco do que quando acompanhada por completa crença confiante.
Todas as pessoas na linhagem da transmissão oral do mantra precisam ter obtido resultados dessa
recitação? Não. A habilidade inspiradora do mantra e o poder surgem com dependência apenas no
fato de que foi proferido originalmente por Buda. Claro, quaisquer realizações pelos membros da
linhagem de transmissão oral do mantra irão aumentar a habilidade inspiradora e o poder do mantra,
mas tal fortalecimento não é necessidade. Os membros da linhagem precisam meramente assegurar
a precisão das palavras e sílabas do mantra, sem omitir ou adicionar nada.
O mesmo é verdadeiro no caso da transmissão oral das palavras de um pronunciamento escritural
tanto de Buda como de um mestre espiritual subsequente. Afinal, nada do que o Buda proclamou foi
escrito na mesma época de Buda. Transcrições escritas das palavras de Buda começaram apenas
séculos depois. Então, a única maneira de assegurar a precisão dessas palavras iluminadas era cada
geração de discípulos ouvi-las recitadas pela geração prévia que as tinha memorizado, baseado no
fato de essa pessoa ter ouvido-as ser recitadas por alguém de um geração anterior a dela. E para isso
funcionar corretamente, a cadeia de pessoas transmitindo as palavras iluminadas, tanto um mantra
quanto um pronunciamento escritural, precisa ser inquebrável durante todo o caminho até a fonte
das palavras, o Buda. Então, por exemplo, com a permissão de Sua Santidade o Décimo Quarto
Dalai Lama, eu passei adiante a transmissão oral da linha especial de Serkong Dorjechang da
Essência de Explicação Excelente dos Significados Interpretáveis e Definitivos (Drang-nges legs-
bshad snying-po) de Tsongkhapa para o Segundo Serkong Rinpoche. Eu fiz isso baseado somente
no fato de eu ter recebido sua transmissão oral de meu professor, o Primeiro Serkong Rinpoche. Eu
nunca tinha verdadeiramente estudado o o texto,muito menos ter ganhado quaisquer realizacões
sobre o seu significado.
E o que dizer sobre a recitar um mantra sem ter recebido sua transmissão oral ou ter recebido de
alguém que não recebeu verdadeiramente de uma transmissão oral autêntica? Eu acho que nesse
caso, pode haver algum poder inspiracional, mas será mais fraco do que se recebêssemos de um
linhagem inquebrável de transmissão. Por exemplo, Shantideva escreveu no Engajando no
Comportamento do Bodhisattva (VIII 118): “...através de sua grande compaixão, o Guardião
Avalokiteshvara elevou ( o poder de) seu próprio nome para dissipar os medos e anseios dos seres,
(como timidez) na frente de uma audiência”. “Elevou” aqui é o termo chinlab. Mas novamente,
devemos evitar pensar que o poder do mantra é estabelecido por alguma coisa encontrável dentro do
som do mantra.
O que dizer se a transmissão oral do mantra ocorre com a pronúncia errada ou se nós a
pronunciamos incorretamente? Eu acho que nesse caso, não há diferença no poder e na habilidade
de recitá-los nesses casos inacurados. Afinal, os tibetanos não pronunciam certas palavras dos
mantras da mesma forma que os indianos o fazem. Por exemplo, tibetantos pronunciam a palavra
sânscrita “vajra” como “bendza” e os mongols a pronunciam como “ochir”. Apesar disso, não
podemos dizer que os tibetanos e mongóis recitando os mantras enquanto dizem vajra como
“bendza” ou “orchir” não tiveram nenhuma realização ou que suas realizações foram menores do
que as dos indianos pronunciando “vajra” como “vajra”. A habilidade inspiracional introduzida por
Buda nos sons do mantra é ainda transmitida apesar da deformação de sua pronúncia. Isso porque
ainda existe uma transmissão inquebrável do mantra. Afinal, a transmissão oral dos textos
originalmente escritos em sânscrito é considerada inquebrável mesmo quando a transmissão é
continuada com a recitação dos textos traduzidos, como em tibetano ou chinês. A linha de
transmissão é como o contínuo mental de um indivíduo: nenhum momento é o mesmo ou
totalmente diferente do momento anterior. Cada momento surge apenas com dependência no
momento anterior como uma continuidade inquebráve disso, com nada encontrável passando de
momento a momento para estabelecer a existência da continuidade.
O que dizer se nós ou alguem mais inventa um mantra e nós o recitamos enquanto geramos
compaixão? Sua recitação poderia ajudar-nos a manter o foco na compaixão, mas se sabemos que
isso não deriva do Buda, nós certamente não ganharemos a inspiração de Buda. Essa é a razão pela
qual, embora possamos nos visualizar na forma de Maria no Cristianismo como uma ajuda para nos
focar no amor e compaixão, é totalmente inapropriado chamar isso de uma prática tantrica budista.
Além disso, é extremamente desrespeitável para o Cristianismo fazer isso, uma vez que líderes
cristãos não aprovariam tal prática e provavelmente a considerariam herética. Porém, este não é o
mesmo caso dos tantras budistas usando as mesmas figuras dos tantras Hindus, como Sarasvati. Isso
é porque o uso dessa figura nos tantras budistas deriva de um Buda e o Hinduismo aceita Buda
como uma encarnação de Vishnu. Então, hindus não acham esse uso desrespeitoso.
E o que dizer se temos crença confiante de que o mantra inventado por alguém realmente deriva de
Buda e recitamos o mantra inautêntico? Esse caso lembra o exemplo de um monge tibetano cuja
mãe o pediu que trouxesse, ao voltar, um dente do Buda, quando ele foi fazer um perigrinação na
India. O monge esqueceu o pedido da mãe, mas lembrou-se finalmente logo antes de chegar em
casa. Em desespero para não desapontar sua mãe, ele pegou o dente de um cão que encontrou no
chão, o limpou, e o embrulhou em um lindo tecido e presenteou aquilo a sua mãe, declarando que
era um dente do Buda. A mãe tinha creça confiante de que aquilo ela realmente o dente do Buda, e ,
através da inspiração disso, atingiu muitas realizações espirituais.
No mesmo exemplo, a mãe foi inspirada por Buda meramente através de sua crença confiante, sem
que essa inspiração fosse transmitida através do dente do cachorro. Similarmente, creio que se nós
acreditarmos confiantemente que um mantra deriva de Buda, quando de fato não, essa nossa crença
confiante no Buda nos trará inspiração. O mesmo poderia ser verdade se recebêssemos a
transmissão oral de um mantra autêntico, pensando que a transmissão foi inquebrável, quando de
fato não foi.
Resposta
Alex: Primeiro de tudo, é importante entender o termo técnico envolvido aqui, ngo-sprod, que você
citou na sua tradução comum como “ apresentar”. O termo verdadeiramente significa “ conhecer
cara a cara”. A inspiração de um mestre dzogchen pode agir como uma das causas para a força
positiva construtora de iluminação amadurecer no nosso contínuo mental em nossa obtenção de
uma realização de rigpa, profunda consciência. Essa consicência pura, primordialmente imaculada,
tem subjazido cada momento de nossa experiência sem início. A realização dessa consciência pura é
o encontro com ela, cara a cara, de tal forma que essa consciência pura “saiba sua própria face”, o
que significa que agora estamos completamente conscientes de sua verdadeira natureza subjacente.
A ocasião de nosso encontro com rigpa cara a cara pode ser precipitado por nosso mestre dzogchen
explicando sobre rigpa em palavras – seja no contexto de uma cerimonia ritualística ou fora desse
contexto – ou mesmo com ele ou ela fazendo um gesto sem dizer nada. Mas, uma vez que outros
podem ouvir tais palavras ou ver tais gestos sem experenciar, como um resultado, um encontro cara
a cara com rigpa, nosso próprio encontro com rigpa cara a cara surge com dependência em muitos
fatores adicionais, incluindo a inspiração de nosso mestre dzogchen.
O fator adicional mais importate é que precisamos construir uma quantidade enorme de força
positiva construtora de iluminação através de ter feito com sucesso, em vidas passadas e ou nessa
vida, as práticas compartilhadas e não compartilhadas (ngondro), e desenvolvido pelo menos um
nível avançado de concentração, propósito de bodhichitta, e compreensão conceitual correta da
vacuidade. No mais, precisamos ter recebido empoderamentos tantricos, tomado os votos
relacionados, e atingido um certo grau de sucesso na prática de visualização e recitação de mantra
no estáfio de geração (bskyed-rim) e nas práticas envolvendo os ventos de energia e canais de
energia (rtsa-rlung) do estágio de consumação. Sobre tal base de enorme força positiva construtora
de iluminação e profunda consciência construtora de iluminação, bem como pelo poder da
inspiração do mestre dzogchen e sem nenhum esforço adicional, podemos vir a conhecer rigpa cara
a cara. Esse encontro cara a cara, entretanto, precisa proceder através dos estágios usuais da
meditação dzogchen: primeiro acessar e reconhecer o alaya de hábitos (bag-chags-kyi kun-gzhi),
então o rigpa fulgurante (rtsal-gyi rig-pa) e finalmente o rigpa essencial (ngo-bo’i rig-pa).
O processo com que a inspiração gera uma transformação de melhoria para ajudar a permitir-nos
encontrar rigpa cara a cara é o mesmo que já explicamos em relação a outros exemplos do poder da
inspiração. Nesse caso, as próprias realizações do mestre dzogchen são em si inspiradoras e, em
adição, o mestre age como um condutor para a inspiração da linhagem inteira, indo até Buda, para
ter um impacto em nós. Mas, claro, isso ocorre sem nada encontrável, com existência estabelecida
de seu próprio lado, passando de Buda para um mestre e para outro, e então para nós – nem uma
“inspiração” encontravelmente existente nem uma “realização” encontravelmente existente.
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O Significado de Mandala
A palavra tibetana para “mandala”, dkyil-‘khor, significa literalmente “aquilo que circunda um
centro.” Um “centro” é, aqui, um significado e “aquilo que o circunda” - mandala - é um símbolo
redondo que representa o significado. No entanto, nem todas as mandalas são redondas.
Há muitos tipos de mandalas, usadas para várias finalidades nas práticas budistas do sutra e do
tantra. Vamos agora examinar alguns deles.
Mandala Externa
Uma mandala externa (phyi’i dkyil-‘khor) é uma representação de um sistema de mundo. É usada
como uma oferta feita a um professor espiritual quando se pede para dar um ensinamento, para
conferir um conjunto de votos ou para conferir um empoderamento tântrico. Similarmente, é usado
como uma oferenda de apreciação no final do ensinamento, dos votos ou da ceremônia de
empoderamento (iniciação tântrica).
A mandala oferecida pode consistir de uma tigela de fundo achatado segurada com o lado de baixo
em cima, com três montes de grãos crus ou jóias, colocadas umas sobre as outras sobre a sua
superfície e contida dentro de anéis concêntricos progressivamente mais pequenos. É coroada com
um diadema ornamental.
Alternativamente, a oferta da mandala pode ser feita com as mãos em mudra, com os dedos
entrelaçados numa determinada forma.
Discos-Mandala Simbólicos
A prática tântrica inclui a visualização de vários discos-mandala redondos simbólicos. O mais
comuns são os discos-mandala do sol e da lua, representando, respectivamente, a compreensão da
vacuidade e o objetivo da bodhichitta, de alcançar a iluminação para sermos da melhor ajuda a
todos os outros.
Os cinco elementos externos e corpóreos - terra, água, fogo, vento e espaço - são representados
frequentemente pelos discos-mandala simbólicos com as formas e as cores determinadas pela
convenção budista. Por exemplo, um disco-mandala amarelo e quadrado representa o elemento
terra.
No sistema Kalachakra, discos-mandala redondos simbólicos de quatro corpos celestiais envolvidos
em eclipses - a lua, o sol, Rahu e Kalagni (os nós, do norte e do sul, da lua) - representam quatro
gotas de energia sutil dentro do corpo sutil. Estas são as gotas-energia do estado acordado, do
estado de sonho, do estado de sono profundo e do quarto estado ou estado supremo.
Palácios-Mandala
A maioria dos sistemas de figuras búdicas inclui um palácio-mandala, chamado frequentemente um
palácio imensuravelmente magnífico (gzhal-yas khang), onde residem as figuras búdicas do
sistema. A estrutura dos palácios modela a dos antigos palácios indianos, embora os telhados
sugiram uma influência chinêsa. Os palácios são quadrados, na maior parte com dois, mas
ocasionalmente com mais de dois, andares e têm portões que conduzem aos salões de entrada de
cada lado e uma passagem sob um arco além de cada portão. As paredes têm camadas multiplas em
espessura e, no topo, têm bordas e outras características estruturais complexas decoradas e cobertas
de jóias.
Cada característica arquitetural representa um aspecto particular do caminho à iluminação. Com
respeito ao mandala de Vajrabhairava, por exemplo, os quatro lados do palácio significam as quatro
verdades nobres, as cinco cores do chão e das camadas das paredes representam os cinco tipos de
consciência profunda e assim por diante.
Mandala do Corpo
Diversos sistemas de figuras búdicas do anuttarayoga tantra, tanto dos tantras pai quanto dos tantras
mãe têm mandalas do corpo (lus-dkyil). Um mandala-corpo consiste de uma rede de figuras búdicas
arranjadas dentro do nosso próprio corpo enquanto figura búdica e para as quais várias partes dos
nossos corpos samsáricos impuros serviram como a sua causa obtentora (nyer-len-gyu rgyu). A
causa obtentora de algo é aquilo a partir do qual obtemos o item seu sucessor e, assim, cessa de
existir quando o seu sucessor surge. Por exemplo, a massa de pão, ao cozer [e se tornar] em pão,
deixa de existir como massa de pão. Similarmente, no sistema de Guhyasamaja, por exemplo, o
nosso agregado impuro da forma serve como causa obtentora para a forma pura de um Vairochana
surgir em vez dele.
Nos sistemas de figuras búdicas do anuttarayoga tantra-mãe que têm mandalas-corpo, tais como
Chakrasamvara, Vajrayogini e Chittamani Tara, as figuras surgem [a partir] de partes do corpo-
energia sutil, ou seja, dos canais-energia, como suas causas obtentoras. Nos sistemas anuttarayoga
tantra-pai que têm mandalas-corpo, tais como Guhyasamaja, as figuras surgem de partes do corpo
grosso, tais como os agregados, elementos, sensors cognitivos e membros, como suas causas
obtentoras. Nos sistemas anuttarayoga tantra, designados como não-duais na tradição Sakya, que
têm mandalas-corpo, tais como Hevajra, partes tanto do corpo sutil como do corpo grosso servem
como causas obtentoras para as figuras búdicas.
Os acima são exemplos de mandalas-corpo de figuras búdicas suportadas. Alguns sistemas
anuttarayoga, tais como Guhyasamaja, têm também uma mandala-corpo que suporta, contendo um
palácio para o qual partes do corpo bruto serviram como suas causas obtentoras.
Somente as mandalas do corpo em sistemas anuttarayoga-mãe servem como bases a partir das quais
um empoderamento do vaso pode ser conferido.
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Shambala
O Uso da Lenda de Shambhala para o Controle da Mongólia ensaio curto
Envolvimento russo e japonês com o Tibete pré-comunista: O papel da lenda de
ensaio médio
Shambhala
A Ligação Nazi com Shambhala e Tibete ensaio médio
Crenças Estrangeiras Incorretas sobre Shambhala ensaio longo
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A Propagação de Kalachakra
Ao tomar a decisão de receber o empoderamento de Kalachakra, é útil saber a origem destes
ensinamentos e a história da sua propagação. Nós teremos então a confiança de que os seus métodos
foram testados e provados efectivos pelo passar do tempo.
De acordo com a tradição, Buda ensinou o Tantra de Kalachakra há mais de dois mil e oitocentos
anos na atual Andhra Pradesh, no Sul da India. Os governantes da terra nórdica de Shambhala foram
a audiência principal e preservaram estes ensinamentos no seu país. No século X, dois mestres
indianos, em expedições separadas, tentaram alcançar Shambhala. No caminho, cada um
experienciou uma visão pura dessa terra em que recebeu a transmissão do empoderamento de
Kalachakra e ensinamentos. Cada um espalhou estes ensinamentos na India, com apenas ligeiras
diferenças na sua apresentação. Um dos últimos sistemas de tantra a emergir historicamente,
Kalachakra depressa alcançou proeminência e popularidade nas universidades monásticas da
planície Gangética central e, pouco depois, nas de Caxemira. Por fim, surgiram quatro estilos de
prática. Mestres destas áreas ensinaram Kalachakra em Burma do Norte, na Península Malay e na
Indonésia, mas este tantra tornou-se extinto nestas áreas pelo século XIV.
Juntamente com tradutores tibetanos, professores indianos também transmitiram o Kalachakra ao
Tibete. Houve três transmissões principais entre os séculos XI e XIII, com cada linhagem passando
uma mistura diferente de aspectos das quatro versões indianas e introduzindo ligeiras diferenças
adicionais devido à tradução. As linhagens, combinando diferentes componentes destas três
transmissões, foram transmitidas até ao presente primeiro através das tradições Sakya e Kagyu, e
depois também através da Gelug. Visto que a escola Nyingma do budismo tibetano apenas transmite
textos indianos que chegaram ao Tibete e foram traduzidos antes dos inícios do século IX, não há
nenhuma linhagem direta Nyingma de Kalachakra. Contudo, mestres Nyingma mais tardios
receberam, e conferiram, de outras linhagens, especialmente da do movimento Rimey ou não-
sectário do século X, o empoderamento de Kalachakra e comentários escritos sobre todos os
aspectos dos ensinamentos. Além disso, há um estilo Kalachakra de dzogchen, ou prática da grande
perfeição.
Entre as quatro tradições tibetanas, Kalachakra é mais proeminente dentro da Gelug. O estudo,
prática e rituais de Kalachakra primeiro receberam atenção especial no século XV em Tashilhunpo,
o mosteiro dos primeiros Dalai Lamas e mais tarde dos Panchen Lamas no Tibete Central. A
meados do século XVII espalhou-se ao que os manchu logo chamaram de "Mongólia Interior",
onde os mongóis construíram a primeira universidade monástica especificamente dedicada a
Kalachakra. Pelos meados do século XVIII haviam faculdades de Kalachakra na corte imperial
manchu em Beijing, depois em Tashilhunpo, Amdo (nordeste do Tibete) e na chamada "Mongólia
Exterior". Durante o século XIX os tibetanos e os mongóis da Mongólia Interior e Exterior
transmitiram Kalachakra aos mongóis buriates da Sibéria e eles, por sua vez, no começo do século
XX, transmitiram aos mongóis calmiques do rio Volga e ao povo túrquico siberiano de Tuva. Tal
como nas outras áreas mongóis e Amdo, grandes setores dos mosteiros principais de cada uma
destas regiões devotaram-se à prática de Kalachakra.
Este entusiasmo dos mongóis, do povo de Amdo e de Tuva por Kalachakra é talvez devido à
identificação dos seus países com a lendária terra nórdica de Shambhala. Por mais de um século
muitos russos também abraçaram esta crença, em consequência do seu contato com os buriates e os
calmiques. Madame Blavatsky e Nikolai Roerich, por exemplo, deram a Shambhala um papel
proeminente na teosofia e no agni yoga, as tradições esotéricas que cada um respectivamente
fundou. Agvan Dorjiev, o enviado buriate do XIII Dalai Lama à corte imperial russa, convenceu o
último czar, Nicolau II, a aprovar a construção de um templo de Kalachakra em St. Petersburgo ao
explicar-lhe a ligação da Rússia com Shambhala.
Kalachakra também recebeu atenção proeminente nos institutos médicos e astrológicos de todas as
quatro tradições do budismo tibetano dentro do próprio Tibete, Mongólia e outras partes da Ásia
Central. Isto porque os cálculos para compilar o calendário tibetano e determinar as posições
planetárias, uma parte grande da astrologia tibetana e uma certa porção do conhecimento médico
tibetano derivam dos ensinamentos internos e externos de Kalachakra. O calendário mongol, tal
como os sistemas astrológicos e médicos, derivaram subsequentemente dos tibetanos. Assim,
Kalachakra é o equivalente budista do "santo padroeiro" destas ciências.
Sumário da Iniciação
O processo da iniciação dura vários dias, com o primeiro dia sendo uma ceremônia de preparação,
seguida geralmente por dois ou três dias do empoderamento em si. A parte mais importante do
início do processo é a tomada de refúgio, dos votos do bodhisattva e dos votos tântricos. Sem todos
estes três, nós na verdade não podemos receber o empoderamento, embora possamos observá-lo e
retirar grande benefício. O empoderamento em si envolve um complexo processo em que
imaginamos que nos transformanos numa série de formas especiais, entramos na mandala da figura-
búdica Kalachakra, e ali experienciamos uma sequência de purificações e o despertar e realçar de
potenciais para o futuro sucesso na prática. A mandala é um enorme palácio com vários andares,
dentro e à volta do qual estão 722 figuras, incluindo um casal principal no centro. O mestre
conferenciando o empoderamento aparece simultaneamente como todas estas figuras, não apenas
como a figura central. Assim, durante todo o processo nós visualizamos a nós próprios, ao nosso
professor e aos nossos arredores de maneira muito especial.
Os estágios da iniciação são extremamente intricados e, sem familiaridade, as visualizações
envolvidas podem ser bastante confusas. Mas se, como recipientes adequados, nós tomarmos os
votos com toda a sinceridade e pelo menos sentirmos, com grande fé, que todas as visualizações
estão realmente ocorrendo, podemos ter confiança de que estamos recebendo o empoderamento.
Com esta base segura, o passo seguinte é procurar mais instrução e depois tentar, tão sinceramente
quanto possível, viajar todo o caminho à iluminação como apresentado no Kalachakra Tantra.
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Guerras Santas no Budismo e Islamismo: O
Mito de Shambhala
(versão abreviada)
Alexander Berzin
Novembro de 2001, revista em Dezembro de 2006
[Ver também a versão completa.]
Sumário
Frequentemente, quando as pessoas pensam no conceito muçulmano da jihad ou guerra santa,
assocíam-no à conotação negativa de uma campanha moralista de destruição vingativa em nome de
Deus para outros converter através da força. Podem admitir que o cristianismo teve um equivalente
com as cruzadas, mas geralmente não vêem o budismo como tendo qualquer coisa semelhante. De
fato, dizem que o budismo é uma religião de paz e não tem a expressão técnica de guerra santa.
Contudo, um exame cuidado dos textos budistas, particularmente da literatura do Tantra de
Kalachakra, revela níveis externos e internos de batalhas que poderiam facilmente ser denominados
de “guerras santas”. Um estudo imparcial do islamismo revela o mesmo. Em ambas as religiões, os
líderes podem explorar as dimensões externas da guerra santa para vantagens políticas, econômicas
ou pessoais, usando-as para inflamar as suas tropas para a batalha. Os exemplos históricos a
respeito do islamismo são bem conhecidos; mas não devemos ser ingénuos sobre o budismo e
pensar que esteve imune a este fenômeno. Não obstante, em ambas as religiões, a ênfase principal
está na batalha espiritual interna contra a nossa própria ignorância e atitudes destrutivas.
Análise
Imageria Militar no Budismo
O Buda Shakyamuni nasceu numa guerreira casta indiana e frequentemente usou imageria militar
para descrever a viagem espiritual. Ele era O Triunfante que derrotou as forças demoníacas (mara)
do não-apercebimento, das visões distorcidas, das emoções perturbadoras e do comportamento
cármico impulsivo. Shantideva, o mestre budista indiano do século VIII d.C. usou repetidamente a
metáfora da guerra em Engajando no Comportamento do Bodhisattva (Guia do Estilo de Vida do
Bodissatva): os verdadeiros inimigos a derrotar são as emoções e as atitudes perturbadoras que se
encontram escondidas na mente. Os tibetanos traduzem o termo sânscrito arhat, um ser liberado,
como o destruidor do inimigo, alguém que destruiu os inimigos internos. Destes exemplos,
pareceria que no budismo a chamada para uma “guerra santa” seria simplesmente uma questão
espiritual interna. O Tantra de Kalachakra, contudo, revela uma dimensão externa adicional.
A Lenda de Shambhala
De acordo com a tradição, em 880 a.C., em Andhra, no sul da India, Buda ensinou o Tantra de
Kalachakra a Suchandra, o visitante Rei de Shambhala e ao seu séquito. O Rei Suchandra levou os
ensinamentos para o seu reino nórdico, onde floresceram a partir dessa altura. Em 176 a.C., sete
gerações de reis após Suchandra, o Rei Manjushri Yashas reuniu os líderes religiosos de Shambhala,
especificamente os sábios brâmanes, a fim de fazer uma profecia e de lhes prevenir: daqui a
oitocentos anos, em 624 d.C., uma religião não índica surgirá em Meca. Devido a uma falta de
unidade entre os povos dos brâmanes e à negligência do correto seguimento dos preceitos das suas
escrituras védicas, muitos irão aceitar essa religião, no futuro distante, quando os seus líderes
ameaçarem uma invasão. Para evitar esse perigo, Manjushri Yashas uniu o povo de Shambhala em
uma única “casta-vajra” conferindo-lhe o empoderamento de Kalachakra. Pelo seu ato, o rei tornou-
se o Primeiro Kalki - o Primeiro Possessor da Casta. Ele compôs então O Tantra de Kalachakra
Abreviado, que é a versão presentemente existente do Tantra de Kalachakra.
Os Invasores Não-Índicos
Como a fundação do islamismo data de 622 d.C., dois anos antes da data predita em Kalachakra, a
maioria dos eruditos identifica a religião não-índica com essa fé. As descrições dessa religião em
outras partes dos textos de Kalachakra, como o abate de gado ao recitar o nome do seu deus, a
circuncisão, mulheres veladas e preces [feitas com a orientação do crente] em direção à sua terra
santa, cinco vezes por dia, reforçam a sua conclusão.
Aqui, o termo sânscrito para não-índico é mleccha (Tib. lalo), significando alguém que fala numa
língua não-sânscrita incompreensível. Tanto os hindus como os budistas aplicaram esse termo a
todos os estrangeiros que invadiram o norte da India, começando com os macedónios e os gregos na
época de Alexandre, o Grande. O outro termo sânscrito principal usado é tayi, que deriva do termo
persa para os árabes, usado, por exemplo, em referência aos árabes que invadiram o Irã em meados
do século VII d.C..
A análise adicional da imagem que Kalachakra pinta dos invasores não-índicos indica que as
descrições foram muito provavelmente baseadas nos ismaelitas de Multan, no final do século X
d.C., combinado com alguns aspectos dos muçulmanos maniqueístas do fim do século VIII. Os
ismaelitas de Multan, enquanto vassalos dos ismaelitas Fatimidas no Egito, estavam a desafiar os
sunitas Abássidas em Bagdá e os seus aliados sunitas Ghaznavid, no Afeganistão Oriental, para
supremacia no mundo islâmico.
Conclusão
Assim como os críticos do budismo poderiam concentrar-se nos abusos do nível externo da batalha
espiritual de Kalachakra e rejeitar o nível interno, e isto seria injusto ao budismo como um todo, o
mesmo é verdade relativamente aos críticos anti-muçulmanos da jihad. Aqui, o conselho dos tantras
budistas a respeito do professor espiritual pode ser útil. Quase todos os professores espirituais têm
uma mistura de boas qualidades e defeitos. Embora um discípulo não deva negar as qualidades
negativas do professor, insistir nelas apenas irá causar raiva e depressão. Se, em vez disso, o
discípulo focalizar nas qualidades positivas do professor, irá ganhar inspiração para seguir o
caminho espiritual.
O mesmo pode ser dito sobre os ensinamentos budistas e islâmicos a respeito das guerras santas.
Ambas as religiões assistiram a abusos das suas chamadas para uma batalha externa, quando forças
destrutivas ameaçavam a prática religiosa. Sem negar nem insistir nesses abusos, podemos obter
inspiração focalizando nos benefícios do empreendimento de uma guerra santa interna em qualquer
dos credos.
Sumário
Frequentemente, quando as pessoas pensam no conceito muçulmano da jihad ou guerra santa,
assocíam-no à conotação negativa de uma campanha moralista de destruição vingativa em nome de
Deus para outros converter através da força. Podem admitir que o cristianismo teve um equivalente
com as cruzadas, mas geralmente não vêem o budismo como tendo qualquer coisa semelhante. De
fato, dizem que o budismo é uma religião de paz e não tem a expressão técnica de guerra santa.
Contudo, um exame cuidado dos textos budistas, particularmente da literatura do Tantra de
Kalachakra, revela níveis externos e internos de batalhas que poderiam facilmente ser denominados
de “guerras santas”. Um estudo imparcial do islamismo revela o mesmo. Em ambas as religiões, os
líderes podem explorar as dimensões externas da guerra santa para vantagens políticas, econômicas
ou pessoais, usando-as para inflamar as suas tropas para a batalha. Os exemplos históricos a
respeito do islamismo são bem conhecidos; mas não devemos ser ingénuos sobre o budismo e
pensar que esteve imune a este fenômeno. Não obstante, em ambas as religiões, a ênfase principal
está na batalha espiritual interna contra a nossa própria ignorância e atitudes destrutivas.
Análise
Imageria Militar no Budismo
O Buda Shakyamuni nasceu numa guerreira casta indiana e frequentemente usou imageria militar
para descrever a viagem espiritual. Ele era O Triunfante que derrotou as forças demoníacas (mara)
do não-apercebimento, das visões distorcidas, das emoções perturbadoras e do comportamento
cármico impulsivo. Shantideva, o mestre budista indiano do século VIII d.C. usou repetidamente a
metáfora da guerra em Engajando no Comportamento do Bodhisattva (Guia do Estilo de Vida do
Bodissatva): os verdadeiros inimigos a derrotar são as emoções e as atitudes perturbadoras que se
encontram escondidas na mente. Os tibetanos traduzem o termo sânscrito arhat, um ser liberado,
como o destruidor do inimigo, alguém que destruiu os inimigos internos. Destes exemplos,
pareceria que no budismo a chamada para uma “guerra santa” seria simplesmente uma questão
espiritual interna. O Tantra de Kalachakra, contudo, revela uma dimensão externa adicional.
A Lenda de Shambhala
De acordo com a tradição, em 880 a.C., em Andhra, no sul da India, Buda ensinou o Tantra de
Kalachakra a Suchandra, o visitante Rei de Shambhala e ao seu séquito. O Rei Suchandra levou os
ensinamentos para o seu reino nórdico, onde floresceram a partir dessa altura. Shambhala é um
reino humano e não uma pura terra budista, onde todas as circunstâncias são conducentes à prática
de Kalachakra. Embora uma posição real na terra a possa representar, Sua Santidade o XIV Dalai
Lama explica que Shambhala existe simplesmente como um reino espiritual. Apesar da literatura
tradicional descrever a viagem física até lá, a única forma no entanto de a alcançar é pela prática
intensa da meditação de Kalachakra.
Em 176 a.C., sete gerações de reis após Suchandra, o Rei Manjushri Yashas reuniu os líderes
religiosos de Shambhala, especificamente os sábios brâmanes, a fim de fazer uma profecia e de lhes
prevenir: daqui a oitocentos anos, em 624 d.C., uma religião não índica surgirá em Meca. Devido a
uma falta de unidade entre os povos dos brâmanes e à negligência do correto seguimento dos
preceitos das suas escrituras védicas, muitos irão aceitar essa religião, no futuro distante, quando os
seus líderes ameaçarem uma invasão. Para evitar esse perigo, Manjushri Yashas uniu o povo de
Shambhala em uma única “casta-vajra” conferindo-lhe o empoderamento de Kalachakra. Pelo seu
ato, o rei tornou-se o Primeiro Kalki - o Primeiro Possessor da Casta. Ele compôs então O Tantra de
Kalachakra Abreviado, que é a versão presentemente existente do Tantra de Kalachakra.
Os Invasores Não-Índicos
Como a fundação do islamismo data de 622 d.C., dois anos antes da data predita em Kalachakra, a
maioria dos eruditos identifica a religião não-índica com essa fé. As descrições dessa religião em
outras partes dos textos de Kalachakra, como o abate de gado ao recitar o nome do seu deus, a
circuncisão, mulheres veladas e preces [feitas com a orientação do crente] em direção à sua terra
santa, cinco vezes por dia, reforçam a sua conclusão.
Aqui, o termo sânscrito para não-índico é mleccha (Tib. lalo), significando alguém que fala numa
língua não-sânscrita incompreensível. Tanto os hindus como os budistas aplicaram esse termo a
todos os estrangeiros que invadiram o norte da India, começando com os macedónios e os gregos na
época de Alexandre, o Grande. O outro termo sânscrito principal usado é tayi, que deriva do termo
persa para os árabes, usado, por exemplo, em referência aos árabes que invadiram o Irã em meados
do século VII d.C..
O Primeiro Kalki descreveu adicionalmente a religião não-índica do futuro como tendo uma linha
de oito grandes professores: Adão, Noé, Abraão, Moisés, Jesus, Mani, Maomé e Mahdi. Maomé
virá a Bagdá na terra de Meca. Esta passagem ajuda a identificar os invasores dentro da comunidade
islâmica.
Maomé viveu entre 570 e 632 d.C. na Arábia. Bagdá, contudo, foi construída somente em
762 d.C. como a capital do Califado Abássida árabe (750 – 1258 d.C.).
Mani foi um persa do século III que fundou uma religião eclética, maniqueísmo, que tal
como o zoroastrismo, a religião iraniana mais antiga, enfatizava uma batalha entre as forças
do bem e do mal. Dentro do islã, Mani teria sido aceite talvez como um profeta - embora não
seja claro que ele o tivesse alguma vez sido - somente pela herética seita islâmica
maniqueísta, que se encontrava entre alguns oficiais no início da corte Abássida em Bagdá.
Os califas abássidas perseguiram severamente os seus seguidores.
Eruditos budistas do atual Afeganistão e do subcontinente indiano trabalharam em Bagdá
durante a última parte do século VIII d.C., traduzindo textos sânscritos para o árabe.
Mahdi será um futuro soberano (iman), descendente de Maomé, que irá conduzir os fiéis a
Jerusalem, restaurar a lei e a ordem alcorânica e unir os seguidores do islamismo num único
estado político antes do apocalípse do fim do mundo. Ele é o equivalente islâmico de um
messías. O conceito de Mahdi tornou-se proeminente somente durante o período inicial
Abássida, com três reivindicadores ao título: um califa, um rival em Meca e um mártir, em
cujo nome foi conduzida uma rebelião anti-Abássida. Contudo, o conceito de Mahdi como
um messias não apareceu até ao final do século IX d.C..
A lista dos profetas dos xiítas ismaelitas é a mesma que se encontra em Kalachakra, apenas
menos Mani. Os ismaelitas são a única seita islâmica que considera Mahdi como um profeta.
A seita xiíta ismaelita era a seita oficial do islamismo seguido em Multan (atualmente Sindh
setentrional, no Paquistão), durante a segunda metade do século X. Multan era um aliado do
Império Fatímida Ismaelita centrado no Egito e que desafiava os abássidas na supremacia do
mundo islâmico.
Desta evidência, podemos postular que a descrição Kalachakra dos invasores não-índicos foi
baseada nos ismaelitas de Multan nos finais do século X d.C., misturada com alguns aspectos dos
muçulmanos maniqueítas dos finais do século VIII. Os compiladores desta descrição teriam sido
muito provavelmente mestres budistas vivendo sob o regime Shahi hindu, no Afeganistão Oriental e
Oddiyana (Swat Valley, no atual noroeste do Paquistão). Os mosteiros budistas na região de Cabul,
do Afeganistão, tal como Subahar, tinham padrões arquiteturais semelhantes àqueles da mandala de
Kalachakra. Oddiyana foi uma das regiões principais em que o tantra budista se desenvolveu. Além
disso, Oddiyana tinha contato próximo com Cachemira, onde floresceu o tantra budista e hindu
Shaivite. Uma importante rota de peregrinação budista ligava os dois. Assim, devemos examinar as
relações budisto-muçulmanas no Afeganistão Oriental, Oddiyana, e Cachemira, durante o período
Abássida, para compreendermos o contexto dos seus ensinamentos na história e guerras santas.
Conclusão
Assim como os críticos do budismo poderiam concentrar-se nos abusos do nível externo da batalha
espiritual de Kalachakra e rejeitar o nível interno, e isto seria injusto ao budismo como um todo, o
mesmo é verdade relativamente aos críticos anti-muçulmanos da jihad. Aqui, o conselho dos tantras
budistas a respeito do professor espiritual pode ser útil. Quase todos os professores espirituais têm
uma mistura de boas qualidades e defeitos. Embora um discípulo não deva negar as qualidades
negativas do professor, insistir nelas apenas irá causar raiva e depressão. Se, em vez disso, o
discípulo focalizar nas qualidades positivas do professor, irá ganhar inspiração para seguir o
caminho espiritual.
O mesmo pode ser dito sobre os ensinamentos budistas e islâmicos a respeito das guerras santas.
Ambas as religiões assistiram a abusos das suas chamadas para uma batalha externa, quando forças
destrutivas ameaçavam a prática religiosa. Sem negar nem insistir nesses abusos, podemos obter
inspiração focalizando nos benefícios do empreendimento de uma guerra santa interna em qualquer
dos credos.
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Análise
Introdução
No islão, no cristianismo e no judaismo a conversão significa o abandono da religião anterior pela
adoção de uma nova fé. O incentivo é a convicção de que a nova religião é mais verdadeira do que a
anterior. Embora seja frequentemente permitido que os convertidos misturem elementos não
doutrinais das suas culturas nativas, de fato eles precisam de reconhecer a nova religião como a
única que é verdadeira. Isto resulta da convicção no princípio de “Uma Verdade, Um Deus” destas
religiões bíblicas. Idealmente, esta convicção é obtida através do estudo das suas doutrinas ou por
uma epifania. Algumas pessoas, contudo, mudam de religião por razões menos profundas, tais como
vantagens econômicas ou sociais, ou para efeitos de casamento com alguém de outra fé.
Por vezes, os zelotas converteram outros à força para as suas religiões - uma ação extrema
permitida oficialmente somente em determinados casos. Por exemplo, a conversão à força de
inimigos é um meio de neutralizar e terminar a sua destruição. É também supostamente um método
para salvar os “pecadores” do inferno e para os conduzir ao céu. Programas de reabilitação para
prisioneiros, seja para se tornarem membros produtivos das sociedades ocidentais, seja para se
tornarem quadros em estados comunistas, têm o mesmo objetivo. Podíamos também descrever as
ações de alguns governos para disseminar o comunismo, o capitalismo ou até a democracia, como
exemplos de conversão forçada para acabar com a exploração.
Muitas pessoas, especialmente os idealistas recém-chegados ao budismo, gostariam de acreditar que
o budismo esteve imune ao fenómeno da conversão, em especial da conversão forçada. Dividindo o
mundo no bem contra o mal, e com imagens de inquisições, de missionários malévolos e da
conversão pela espada, vêem a conversão forçada como algo só feito pelo lado mau. Contudo, antes
de moralmente condenarmos outras religiões ou governos por este fenómeno durante os capítulos
negros da sua história, precisamos de examinar objetivamente se o budismo também foi vulnerável
à prática da conversão forçada. Senão, o anseio desesperado por uma religião perfeita e a projeção
romântica de um paraíso de Shangrilá no Tibete, por exemplo, poderá transformar-se num desânimo
e desilusão, como quando nos apercebemos da má conduta de um professor que tinhamos pensado
ser um Buda.
Evidências da História Tibetana
É verdade que, em princípio, o budismo não é uma religião propagandista. Também é verdade que
nem a história tibetana nem a mongólica viram conversões forçadas em massa das populações
conquistadas ao budismo ou a uma das suas seitas. Mesmo quando os regentes dessas terras
declararam o budismo como religião de estado; puderam ter imposto e recolhido taxas ao seu povo
para suportar os mosteiros, como no caso do rei tibetano Relpachen (Ral-pa-can) no início do
século IX d.C. Porém, nem os regentes nem os seus conselhos religiosos forçaram a população a
aceitar e a praticar as crenças budistas. O budismo espalhou-se entre as pessoas comuns lenta e
naturalmente.
Não obstante, existem numerosos exemplos de conversão forçada, de mosteiros tibetanos, de uma
seita budista para outra, e do reconhecimento de um tulku (mestre espiritual reencarnado) como
sendo de uma escola diferente da do seu predecessor. O motivo não expresso tem geralmente sido o
de neutralizar a oposição política ou militar, como foi indubitavelmente o caso, no século XVII
d.C., do reconhecimento de um príncipe mongol como a reincarnação Gelugpa do mestre Jonangpa,
Taranatha. Taranatha era o conselheiro real da oposição durante uma guerra civil.
E mais, Padmasambhava e diversos mestres tibetanos posteriores usaram os seus superiores poderes
extrafísicos para oprimir e “domesticar” espíritos malévolos, tais como Nechung. Forçando os
espíritos a aceitar o budismo, obrigaram-lhes a jurar proteger o Dharma. De fato, converteram e
reabilitaram os espíritos, os quais se transformaram em protetores do Dharma.
Evidências do Kalachakra
Embora seja difícil, com base nas escrituras budistas, justificar formas brutais e óbvias de conversão
forçada tais como essas; há referências textuais àcerca de formas mais sutis de conversão no
budismo? A literatura Kalachakra fornece uma fonte reveladora para investigação. Surgiu em
Caxemira e na India Setentrional, nos finais do século X d.C. e inícios do século XI, quando os
exércitos invasores muçulmanos estavam conquistando terras a oeste com populações
principalmente budistas e hindus. A respectiva análise da história foi também sem dúvida inspirada
por experiências da região entre o Afeganistão Oriental e Caxemira, durante os dois séculos
precedentes, e descreveu as relações inter-fé entre as três religiões dali.
De acordo com a narrativa tradicional, o rei Suchandra de Shambhala recebeu os ensinamentos do
Kalachakra Tantra diretamente do próprio Buda, no sul da India, e levou-os consigo de retorno à sua
terra no norte. Sete gerações mais tarde, o seu sucessor Manjushri Yashas reuniu os sábios brâmanes
de Shambhala no palácio tridimensional do mandala de Kalachakra, que os seus antepassados
tinham construído no parque real. Desejava acautelar os brâmanes sobre uma futura religião não-
índica que iria surgir na terra de Meca. Muitos eruditos identificam essa religião com o islão, dado
que o ano profetizado para a sua fundação é somente dois anos após o começo do calendário
islâmico. Para facilidade de discussão, vamos aceitar provisoriamente a sua conclusão, embora
necessitemos de qualificar esta identificação com base nas formas do islamismo messiânico que os
formuladores dos ensinamentos de Kalachakra muito provavelmente encontraram. Elas teriam sido
a forma do ismaelismo oriental xiita prevalecente em Multan (Sindh do Norte, Paquistão) durante o
final do século X d.C., talvez com uma mistura da chamada “heresia” xiita maniqueísta.
Manjushri Yashas descreveu que os seguidores da religião não-índica iriam cortar o pescoço do
gado ao recitarem o nome do seu Deus Bismillah (arábico para “em nome de Allah”), e de seguida
comer a carne. Disse aos brâmanes para registrarem como as pessoas ao seu redor estavam
cumprindo a sua religião védica. Eles precisavam de corrigir mal-entendidos e práticas degeneradas,
particularmente o sacrifício de touros para os seus deuses e subsequente comer a sua carne. Se
assim não fosse, os seus descendentes não veriam nenhuma diferença entre a religião dos seus
antepassados e a dos estrangeiros, e iriam abraçar a última, facilitando a conquista da sua terra por
estrangeiros. Além disso, os brâmanes deveriam acabar o costume de recusar o casamento entre
grupos diferentes ou até comer ou beber com membros de outras castas. Se as crenças religiosas
causarem divisões internas e as pessoas não puderem cooperar face a um perigo, a sociedade poderá
não sobreviver a uma ameaça externa.
Com base na lógica dos seus argumentos, Manjushri Yashas convidou os brâmanes a reunirem-se
com as restantes pessoas de Shambhala, no mandala de Kalachakra, a fim de receberem o
empoderamento, e formarem uma “casta-vajra”. Inicialmente, os brâmanes recusaram e fugiram em
direção à India. O rei viu que se os seus líderes espirituais se fossem embora, o povo de Shambhala
tomaria isso como um sinal de que a formação de uma casta seria errada, e continuariam assim com
os seus costumes auto-destrutivos. Por conseguinte, Manjushri Yashas usou os seus poderes
psíquicos para atrair os brâmanes de volta ao mandala. Examinando mais profundamente a
sabedoria do rei e vendo a sua verdade, os líderes brâmanes passaram a partir daí a aceitar o seu
conselho e assim Manjushri Yashas conferiu à população o empoderamento de Kalachakra. Por ter
unido os povos numa única casta-vajra, o rei tornou-se o Primeiro Kalki de Shambhala - o Primeiro
“Possessor da Casta”.
A Questão da Conversão
Este primeiro empoderamento em massa foi um exemplo de conversão forçada ao budismo dos
brâmanes e da população inteira de Shambhala? Os empoderamentos maciços de Kalachakra que se
seguiram, e que continuam hoje, são também exemplos de conversões secretas? As ações do
Primeiro Kalki são consistentes com a autoridade das escrituras e com o precedente histórico?
Deixem-nos analisar criticamente o relato textual do evento, tentando evitar os extremos de
esconder a evidência a fim de o budismo parecer inocente e agradável, ou de a exagerar a fim de o
budismo parecer evangelista e intolerante.
Conclusão
Várias perguntas importantes permanecem. O retrato que Kalachakra traça da conversão ao
budismo no reino mítico de Shambhala é uma mera descrição do que possa ter sido benéfico e
necessário no Afeganistão e no subcontinente indiano, do século IX ao século XI d.C., ou é um
conselho válido indefinidamente? Dado que a sabedoria universal nos membros de todas as
religiões reafirma os valores espirituais dos seus credos a fim de prevenir ameaças às suas
sociedades, a defesa ideal seria convencer tantas pessoas quanto possível a praticar o budismo?
Seria difícil defender esta posição, quer em referência apenas ao período histórico acima
mencionado quer como conselho geral, sem ser chauvinista. A conclusão imparcial, então, é admitir
que o tom da lenda de Shambhala é certamente chauvinista, embora compreensível, dadas as
circunstâncias da época. Contudo, não significa que os professores budistas de hoje em dia
necessitem ser chauvinistas ao apresentarem o budismo a audiências não-budistas.
Ao apresentar o budismo a audiências não-budistas, Sua Santidade o XIV Dalai Lama enfatiza
sempre que não está tentando obter conversos. Não está desafiando ninguém a uma competição de
debate, com o vencido sujeito a adotar as asserções do vencedor. Ele explica que está simplesmente
tentando educar os outros sobre o budismo. A paz entre sociedades diferentes vem da compreensão
dos sistemas de crenças, uns dos outros. Educar os outros é algo extremamente diferente de os
tentar converter. Se os outros encontrarem algo de valor no budismo, são livres de o adotar, sem
nenhuma necessidade de se tornarem budistas. Para aqueles que estão fortemente interessados,
podem continuar a aprofundar os seus estudos e até se podem tornar budistas, mas só depois de um
longo período de reflexão profunda. Contudo, para a maioria, Sua Santidade acautela fortemente
contra mudanças de religião.
Na afirmação de ter a verdade mais profunda, o budismo não é diferente das outras religiões ou
sistemas filosóficos. Não obstante, a asserção dos budistas não é uma reivindicação exclusivista à
“verdade única”. O budismo também aceita verdades relativas - coisas que são verdades
relativamente a determinados grupos ou a determinadas circunstâncias. Desde que as nossas
perspectivas não sejam agressivamente antagónicas, as nossas relativamente verdadeiras crenças
podem funcionar como passos em direção à verdade mais profunda tal como o budismo a define.
Podem também funcionar como passos em direção à verdade mais profunda que outras religiões
ensinam. Desde que a asserção da verdade mais profunda dos budistas não seja chauvinista e não
represente falsamente uma política missionária, pode beneficiar aqueles para quem se adequa.
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As Questões
O Tantra de Kalachakra Abreviado alerta contra uma futura invasão, por um povo não-índico, que
seguirá a linha dos profetas: Adão, Noé, Abraão, Moisés, Jesus, Mani (o fundador do maniqueísmo,
uma religião principalmente iraniana), Maomé e Mahdi (o messias islâmico). Para ir de encontro à
ameaça, o rei de Shambhala uniu os hindus e os budistas numa casta com a iniciação de Kalachakra.
Como uma sociedade unida, o povo de Shambhala poderia então no futuro seguir um rei-messias
budista, derrotar as forças invasoras e estabelecer uma nova idade dourada.
Este artigo analisa:
a identidade dos invasores não-índicos;
as profecias de um messias e de um apocalipse no islão, no hinduismo e no budismo;
o contexto cultural da descrição dos profetas não-índicos;
o contexto histórico da resposta budista à ameaçada invasão;
a prática tântrica budista que a invasão e a batalha representam.
Questões Essenciais
Um dos temas principais nos ensinamentos de Kalachakra é o paralelo entre o mundo físico, o
corpo humano e a prática tântrica budista. De igual modo, os invasores de que Kalachakra nos
alerta, e que serão derrotados pelas forças de Shambhala, têm níveis de significado históricos,
fisiológicos e meditativos. Aqui, iremos nos concentrar no primeiro e no último dos três.
Externamente, os invasores de expressão não-índica referem-se aos seguidores das formas
messiânicas do islão dos finais do século X d.C. - especificamente, xiitas ismaelitas – que irão
afirmar ter o messias Mahdi como seu líder político e espiritual. Mahdi irá unir e governar o mundo
islâmico, restaurar a pureza islâmica e converter o mundo inteiro ao islão antes da vinda de Dajjal (a
versão muçulmana do Anticristo), da Segunda Vinda de Cristo (que é um profeta muçulmano), do
apocalipse e do fim do mundo.
No final do século X, os árabes sunitas da soberania abássida de Bagdá e seus vassalos temiam ser
invadidos pelos impérios islâmicos com tais ambições. Especificamente, temiam uma invasão dos
seus principais rivais, o Império Fatímida Ismaelita do Egipto e seus vassalos de Multan (Norte do
Sindh, Paquistão). Tal medo era o clima predominante da época, devido à crença difundida e
segundo a qual o mundo iria acabar quinhentos anos após Maomé - no começo do século XII d.C.
Assim, a imagem que a literatura Kalachakra dá dos invasores não-índicos deriva muito
provavelmente da experiência dos budistas do Afeganistão Oriental e Oddiyana (Swat Valley,
Noroeste do Paquistão) durante o final do século X. Vivendo sob o regime shahi hindu e
estendendo-se entre Multan e Bagdá, esses budistas teriam partilhado o medo dessa invasão com os
seus vizinhos muçulmanos. Esse medo ter-se-ia tornado ainda mais intenso quando, no ano 976
d.C., o Afeganistão Oriental caiu sob o regime dos ghaznávidas sunitas, aliados dos abássidas.
Embora a imagem das crenças dos invasores apontem para os ismaelitas multaneses desse período,
a inclusão de Mani, como um dos profetas não-índicos, talvez mostre uma confusa mistura do
xiismo ismaelita com o xiismo maniqueísta. Este último era uma forma herética do Islão que os
tradutores budistas afegãos e indianos teriam encontrado enquanto trabalhavam para os abássidas
sunitas, em Bagdá, no final do século VIII d.C.
De acordo com o verso de Kalachakra, os invasores serão da casta asura, o que significa que eles
serão seguidores de deuses invejosos, que irão rivalizar e ameaçar os deuses dos brâmanes de
Shambhala. Depois de conquistarem a região da India, à volta de Deli, este grupo não-índico será o
invasor de Shambhala. Este aspecto da profecia de Kalachakra talvez revele um extrato da posterior
narrativa textual, em que a experiência da frustrada invasão de Caxemira, em 1015 ou 1021 d.C,
pelos ghaznávidas, foi mesclada com uma versão anterior.
Embora Oddiyana fosse um dos centros principais do tantra budista, Caxemira era a residência do
tantra shaivite, budista e hindu. As duas formas de tantra competiam uma com a outra. Assim, para
tornar mais compreensível à audiência hindu o perigo de uma invasão, Kalachakra serviu-se da
análise hindu do mundo material, segundo a qual consiste de três constituintes ou características de
matéria primordial - sattva (força mental), rajas (elemento da paixão) e tamas (escuridão). Os
sábios autores dos Vedas têm a característica constituinte de sattva, enquanto que os avatars
(encarnações) de Vishnu têm a característica dos rajas. Os profetas dos invasores não-índicos têm a
característica constituinte primordial de tamas, significando que serão destrutivos relativamente à
cultura indiana.
Para enfrentar a ameaça, as diversas castas de Shambhala precisam deixar de evitar o contato social
umas com as outras. Necessitam de formar uma harmoniosa frente unida, transformando-se numa
casta vajra no mandala de Kalachakra. Só quando todos os membros da sociedade cooperarem uns
com os outros é que Kalki, o messias pan-índico, conseguirá travar uma invasão conduzida por
Mahdi, o ameaçador messias não-índico.
Isto não foi uma chamada para conversão massiva ao budismo. Na chamada para a unidade de
Kalachakra, o budismo estava simplesmente respondendo à estabelecida política hindu e
muçulmana de incluir seguidores de outras religiões sob a sua proteção. Os hindus já tinham
reconhecido Buda como o nono avatar de Vishnu, tornando deste modo todos os budistas em bons
hindus. Kalachakra, por sua vez, identificava agora os primeiros oito avatares como emanações de
Buda, tornando deste modo todos os hindus em bons budistas.
Tanto os hindus como os budistas reconheceram Kalki como o profetizado messias para derrotar um
grupo de invasores não-índicos e para marcar o início de uma nova idade dourada.
Consequentemente, o rei budista de Shambhala argumentou que os hindus também se podiam juntar
aos budistas aceitando o seu sucessor, vinte e cinco gerações no futuro, como o Kalki profetizado
nas suas próprias escrituras, que nascerá em Shambhala como o décimo e ultimo avatar de Vishnu.
Os muçulmanos ortodoxos, que também temiam uma invasão pelo exército de um “messias
enganador” que iria afirmar ser Mahdi, o verdadeiro messias, também seriam bem-vindos à aliança
da frente unida de budistas e hindus. A lei muçulmana, naquele tempo, aceitava budistas e hindus
como “povos do livro”, e assim incluía sob sua lei seguidores das duas religiões que viviam entre
eles. Similarmente, o budismo poderia incluir muçulmanos na sua visão de unidade, dado que os
seus ensinamentos incluíam temas em comum aceites por ambos.
No nível alternativo da prática tântrica budista, os invasores representam as forças do não-
apercebimento (ignorância), das emoções perturbadoras, do comportamento destrutivo e das forças
cármicas negativas que daí advêm. As castas em conflito, necessitando de se unirem em uma casta
vajra, representam os ventos-energia em conflito do corpo sutil, necessitando de se dissolverem ao
nível de energia e mente de “luz clara” mais sutil. As forças de Shambhala representam a resultante
bem-aventurada compreensão da verdadeira natureza da realidade (vacuidade) com a mente de luz
clara, que tem então o poder de superar a ignorância que ameaça trazer o sofrimento a todos.
Conclusão
O budismo, como retratado na literatura Kalachakra, não era anti-hindu, anti-muçulmano ou anti-
cristão. Estava simplesmente respondendo ao espírito da época no Médio Oriente e partes do sul da
Ásia, no final do século X d.C. Face ao medo generalizado de uma invasão, de uma batalha
apocalíptica e do fim do mundo, e da preocupação popular com a vinda de um messias, Kalachakra
apresentou a sua própria versão da profecia. Para enfrentar a ameaça, recomendou uma política já
seguida pelo hinduismo e pelos soberanos muçulmanos abássidas. A política era mostrar que o
budismo também tinha as portas doutrinais abertas para incluir outras religiões dentro da sua esfera.
A harmonia religiosa entre o povo é a base essencial que uma sociedade multicultural necessita a
fim de enfrentar uma ameaça de invasão. Juntar outros numa mandala de Kalachakra simboliza este
compromisso de cooperação.
A forma como Kalachakra apresenta os profetas não-índicos e as profecias de uma futura guerra
contra seus seguidores deve ser compreendida neste contexto histórico e cultural. Apesar da política
recomendada, nem os líderes budistas nem os mestres daquele tempo lançaram realmente uma
campanha para atrair hindus e muçulmanos para o seu rebanho. Ninguém organizou nenhuma
iniciação a Kalachakra com tal objetivo em mente. Não obstante, certos grupos hindus e
muçulmanos criaram ressentimentos à chamada de Kalachakra para a união e identificaram o futuro
rei budista de Shambhala como o falso messias profetizado nos seus próprios textos.
Quando várias religiões partilham uma crença num verdadeiro messias vencendo um falso messias
numa batalha apocalíptica, e os membros dessas religiões vivem próximos uns dos outros, dois
possíveis resultados podem surgir. Várias dessas religiões podem tentar unir-se para enfrentar um
falso messias em comum, declarando que partilham o mesmo verdadeiro messias. Alternativamente,
podem identificar o verdadeiro messias dos outros como o seu próprio falso messias profetizado. A
história mostra que as duas políticas podem conduzir à suspeita e ao conflito.
Resumindo, a principal finalidade dos ensinamentos de Kalachakra sobre a história era a de
descrever os futuros eventos de uma forma em paralelo aos estágios avançados da prática de
meditação Kalachakra. Eles não refletem nem moldam a atual visão budista da presente situação
mundial. O Tantra de Kalachakra Abreviado afirma claramente: “a batalha com o senhor dos
invasores não-índicos está seguramente dentro do corpo dos seres [re]encarnados. Por outro lado, o
(nível de batalha) exterior é, de fato, uma forma ilusória. (Assim,) a batalha com os invasores não-
índicos, no caso de Meca, não é (realmente) uma batalha”.
O Uso da Lenda de Shambhala para o
Controle da Mongólia
Abril 2003
Alexander Berzin
Esta é a versão para impressão de: http://www.BerzinArchives.com
/web/pt/archives/advanced/kalachakra/shambhala/exploitation_shambala_legend_mongolia.html
A Guerra de Shambhala
No início, o regime comunista mongol tolerou o budismo, uma vez que os líderes monásticos, tais
como Darva Bandida, advogavam um retorno aos antigos princípios budistas de simplicidade.
Semelhante ao Movimento de Renovação da Fé, dirigido pelos buriates na União Soviética, o
monge mongol tentou reconciliar o budismo com a teoria comunista. O erudito buriate Jamsaranov
apoiou Bandida (Pandita) nos seus esforços e, a partir de 1926, os movimentos do Puro Budismo e
da Renovação da Fé ganharam ímpeto na Mongólia.
Stalin ganhou o controlo da União Soviética em 1928. Quando começou, em 1929, as suas
campanhas de coletivização e anti-religiosas, o regime comunista mongol seguiu o exemplo. Em
1929, o VII Congresso do Partido condenou os movimentos budistas de reconciliação e proibiu
formalmente a instalação de um IX Jebtsundamba, embora a reincarnação tivesse sido encontrada
no Tibete. Inspirado pelo exemplo de Stalin, o partido foi mais longe e, de 1930 a 1932, forçou uma
política de coletivização fanática e de perseguição à religião. Muitos monges, apoiados pelos
intelectuais buriates que tinham fugido para a Mongólia a fim de evitarem a política de Stalin,
insurgiram-se. Alguns procuraram a ajuda do Panchen Lama.
O IX Panchen Lama tinha estado na China desde 1924, devido a uma disputa com o XIII Dalai
Lama. O Panchen Lama estava insistindo na [obtenção de uma] autonomia relativa de Lhasa,
isenção de impostos e o direito de ter as suas próprias forças armadas. O Governo Nacionalista
Chinês tinha-lhe fornecido soldados, mas o Dalai Lama não o deixava voltar ao Tibete,
desconfiando das intenções chinesas. Os rebeldes mongóis pediram ao Panchen Lama que invadisse
a Mongólia com o seu exército chinês, a fim de libertar o seu povo do comunismo, proteger a sua
fronteira do norte contra os soviéticos e, sob suserania chinesa, instalar o IX Jebtsundamba.
Compararam o Panchen Lama e as suas tropas chinesas ao rei de Shambhala e ao seu bravo exército
que iriam derrotar as forças bárbaras. Embora o Panchen Lama enviasse uma carta aprovando a
revolta, nunca foi à Mongólia nem nunca enviou apoio militar. Não obstante, a rebelião e as
batalhas selvagens que se seguiram tomaram o nome de “A Guerra de Shambhala”.
Entretanto, o Japão atacou em 1931 o norte da China, e fundou Manchukuo, em 1932, com base nos
territórios da Manchúria e da Mongólia Interior Oriental que controlava há muitos anos. Stalin tinha
a paranóia de que o Japão iria usar o budismo para penetrar ainda mais na Ásia, fazendo causa
comum com os budistas em Buriátia e na Mongólia Exterior. Assim, despachou em 1932 o exército
soviético para a Mongólia não só para terminar a rebelião e a Guerra de Shambhala, como também
para corrigir o “desvio esquerdista” do Partido Comunista Mongol. Sob direção soviética, o Partido
decretou uma Nova Mudança Política de 1932 a 1934, diminuindo a sua perseguição ao budismo.
Até permitiram a reabertura de um certo número de mosteiros. Stalin achava que se alienasse os
budistas de mais, eles iriam voltar-se mais depressa para o Japão. Contudo, o budismo na Mongólia
não recuperou.
Em 1893, por exemplo, Piotr Badmaev, médico mongol buriate, submeteu um plano ao Czar
Alexandre III para submeter partes do Império Qing sob influência Russa, incluindo o Tibete e a
Mongólia Exterior e Interior. Ele propôs que a ferrovia transiberiana fosse estendida desde a terra
buriate de origem, no lago Baikal, através da Mongólia Exterior e Interior, até Gansu, China, junto à
fronteira tibetana. Quando terminada, ele organizaria, com ajuda buriate, uma revolta no Tibete que
iria permitir à Rússia anexar o país. Badmaev propôs também estabelecer, na Ásia, uma companhia
comercial russa. O Conde Sergei Yulgevich Witte, ministro das finanças russo, entre 1882 e 1903,
apoiou os dois planos de Badmaev, mas o Czar Alexandre não aceitou nenhum deles.
[Ver Mapa]
Com a morte de Alexandre, Badmaev tornou-se o médico pessoal do seu sucessor, Czar Nicolau II
(czar de 1894 a 1917). Depressa o novo czar aprovou a criação de uma companhia comercial. No
entanto, o seu objetivo era a costa pacífica, onde a Rússia e o Japão competiam para o controlo do
Porto Artur, um porto liberto de gelo na extremidade do sul da Manchúria. Primeiro, o Japão
conquistou o Porto Artur, mas depressa a Rússia obteve o seu controlo. O Czar aumentou a ferrovia
transiberiana através do norte da Manchúria até Vladivostok e ligou-a ao Porto Artur. Contudo,
Nicolau não levou a cabo as propostas de Badmaev a respeito do Tibete.
[Para mais pormenores, ver: O Uso da Lenda de Shambhala para o Controlo da Mongólia.]
No início, Dalai Lama e seus ministros estavam hesitantes mas, com o seu regresso a Lhasa,
Dorjiev convenceu Dalai Lama a se voltar para a Rússia para dela ter proteção. Argumentou que a
Rússia era o Reino Nórdico de Shambhala, a terra lendária que salvaguardava os ensinamentos de
Kalachakra, e que o Czar Nicolau II era a encarnação de Tsongkhapa, o fundador da tradição Gelug.
Como prova, chamou a atenção para a proteção que o Czar dava à tradição Gelug entre os buriates,
calmuques e turcos tuvanos, no império Russo. Influenciado pelo seu argumento, Dalai Lama
despachou-o, em 1900, de regresso à Rússia.
Naquele tempo, o príncipe Esper Ukhtomski era o líder do Departamento Russo das Crenças
Estrangeiras. O príncipe estava profundamente interessado na cultura “lamaísta” e mais tarde
escreveu diversos livros sobre ela. Convidou Dorjiev a encontrar-se com o Czar, sendo esta a
primeira de várias audiências que Dorjiev teve em nome de Dalai Lama. Nos anos seguintes,
Dorjiev viajou várias vezes, indo e vindo entre o Czar e o Dalai Lama. Contudo, nunca conseguiu
obter para o Tibete apoio militar dos russos.
Em Sturm über Asien (Tempestade sobre a Ásia) (1924), o agente secreto alemão Wilhelm Filchner
escreveu que entre 1900 e 1902 havia, em São Petersburgo, um grande interesse em integrar o
Tibete na Rússia. Contudo, esse interesse parece ter sido limitado aos esforços de Dorjiev, com o
apoio de Badmaev e de Witte. O explorador sueco Sven Hedin, um admirador fervoroso da
Alemanha, teve uma audiência com Czar Nicolau II no caminho de regresso à Europa, da sua
segunda expedição tibetana (1899-1902). Mais tarde, escreveu que teve a impressão que o príncipe
Ukhtomski estava pressionando o Czar para transformar o Tibete num protectorado russo. Porém, as
escritas do príncipe não revelam tal interesse.
Intrigas entre o Japão, a Rússia, a Grã-Bretanha e a China, e o
Seu Efeito no Tibete
Ekai Kawaguchi, um sacerdote zen japonês, visitou o Tibete de 1900 a 1902 para compilar textos
budistas sânscritos e tibetanos. No seu regresso através da India Britânica, ele indicou falsamente
uma presença militar russa no Tibete a Sarat Chandra Das, um espião indiano ao serviço dos
ingleses que tinha visitado o Tibete em 1879 e em 1881. Naquela altura, o Japão estava se
preparando para a guerra contra a Rússia, sobre a Manchúria. Tinha recentemente assinado a
Aliança Anglo-Japonesa (1902-1907) com a Grã-Bretanha, sob a qual ambos os lados concordaram
permanecer neutrais se o outro estivesse em guerra. Fomentando a discórdia entre a Inglaterra e a
Rússia, parece que o sacerdote japonês estava tentando assegurar-se que a Grã-Bretanha não iria
apoiar a Rússia na guerra que se aproximava. Provavelmente tinha também esperança de que os
protestos britânicos sobre o Tibete iriam desviar a atenção da Rússia, relativamente à Manchúria.
No seu livro Três Anos no Tibete, publicado em Benaras pela Sociedade Teosófica, em 1909,
Kawaguchi relatou que tinha ouvido falar dos panfletos de Dorjiev, em tibetano, mongol e russo,
propagando que a Rússia era Shambhala e o Czar a encarnação de Tsongkhapa. No entanto, nunca
os tinha visto pessoalmente. Kawaguchi também falou sobre uma Aliança Budista Nipo-Tibetana,
mas nenhum dos lados fez planos para a implementar.
O relatório de Kawaguchi, e mais tarde o seu livro, tornaram-se muito conhecidos entre as
autoridades britânicas, na India. Charles Bell, oficial político britânico em Sikkim, por exemplo,
citou-o em Tibete: Passado e Presente (1924). Escreveu que Dorjiev tinha influenciado o Dalai
Lama para o lado da Rússia, dizendo-lhe que a Rússia controlava e protegia parte da Mongólia
(Buriátia), que cada vez mais russos estavam adotando o budismo tibetano, e que era provável que o
Czar também o adotasse.
Lord Curzon, vice-rei britânico da India na altura do relatório de Kawaguchi, era extremamente
paranóico [a respeito] dos russos. Temendo o domínio e o monopólio russo do comércio tibetano,
ordenou a invasão britânica ao Tibete, com a Expedição Younghusband (1903-1904). Juntamente
com Dorjiev, Dalai Lama fugiu para Urga (Ulaan Baatar), a capital da Mongólia. Após ter sido
derrotado, o regente tibetano assinou, em 1904, a Convenção de Lhasa, reconhecendo o controlo
britânico de Sikkim e concedendo relações comerciais britânicas e a presença de tropas e oficiais
em Lhasa para proteger o acordo comercial.
No final de 1909, Dalai Lama regressou por pouco tempo a Lhasa, mas as tropas chinesas depressa
chegaram. No início de 1910, Dalai Lama fugiu para a India, onde ficou em Darjeeling, a sul de
Sikkim, sob proteção britânica. Ali, tornou-se amigo de Sir Charles Bell, que o influenciou sobre a
modernização.
Mais tarde, em 1913, ocorreu a primeira ceremónia pública no Templo Kalachakra, em São
Petersburgo – uma oração de longevidade para comemorar o aniversário do tricentenário da Casa
dos Romanov. Dalai Lama enviou presentes de congratulação e espalhou-se o boato de que ele tinha
reconhecido Alexis, o Sucessor Aparente, como um bodhisattva que iria iluminar os não-budistas do
norte. No entanto, nenhuma ajuda militar dos Romanovs era adquirível.
Após ter afastado as forças chinesas de algumas seções de Kham (sudeste do Tibete), os tibetanos
negociaram a Convenção de Simla de 1914, com os ingleses. Dado que os ingleses não apoiavam a
independência completa do Tibete, Dalai Lama chegou a um acordo. Os ingleses garantiam a
autonomia tibetana apenas sob suserania chinesa nominal. Além disso, os ingleses concordaram que
não iriam anexar o Tibete e que também não iriam permitir que a China o fizesse.
Yajima Yasujiro, um veterano da Guerra Russo-Japonesa, veio a Lhasa e, de 1913 a 1919, treinou as
tropas e serviu de conselheiro relativamente à defesa contra os chineses. Aoki Bunkyo, um
sacerdote budista japonês, traduziu manuais de exército do japonês para o tibetano. Ajudou também
a desenhar a bandeira nacional tibetana, adicionando aos símbolos tradicionais tibetanos um sol
nascente com raios de luz à sua volta. Este padrão de desenho incluia as bandeiras da cavalaria e da
infantaria japonesas da altura e tornou-se mais tarde o desenho para a bandeira da marinha e do
exército japoneses, durante a segunda guerra mundial.
Japanese Navy and Army Flag
Tibetan National Flag
Contudo, Dalai Lama não teve sucesso na obtenção de apoio militar adicional japonês. Em 1919, o
exército japonês tornou-se profundamente envolvido na supressão de um movimento para a
independência da Coreia, anexada pelo Japão em 1910. Entretanto, na década de 1920, o Japão
voltou a sua atenção para a Manchúria e para a Mongólia e permaneceu apenas interessado no
Tibete relativamente aos estudos eruditos budistas. Os últimos japoneses deixaram o Tibete em
1923, quando o grande terremoto de Kanto destruiu Tokyo e Yokohama.
No ano seguinte, os ingleses estabeleceram uma força policial em Lhasa. Ocorreu um conflito entre
a polícia e as forças armadas tibetanas, resultando na morte de um polícia. Tsarong puniu
severamente o criminoso, mas a facção anti-modernização no governo tibetano usou isto como um
pretexto para colocar Dalai Lama contra ele. Disseram que Tsarong tinha agido sem consentimento
de Dalai Lama e acusaram as forças armadas de conspirarem para tomar o governo. Dalai Lama
despromoveu Tsarong, em 1925, da sua posição como comandante-chefe do exército e, em 1930,
demitiu-o do gabinete. Assim, o principal proponente tibetano para uma aliança com o Japão foi
silenciado.
Em Dezembro de 1933 faleceu Dalai Lama. O Tibete não retomou contato com o Japão até 1938,
altura em que Tsarong reapareceu desempenhando um papel na expedição oficial dos alemães,
aliados do Japão contra a propagação do comunismo internacional.
Esforços para Obter Tolerância ao Budismo, na Rússia e
Mongólia Comunistas
A Revolução Russa de 1917 estabeleceu a União Soviética. Inicialmente, Lenin não forçou a
política comunista anti-religião. Face ao alastrar da guerra civil, a consolidação do seu poder teve a
maior prioridade. Mesmo quando o regime comunista se tornou estável, durante a década de 1920, o
estado não tinha infra-estruturas para substituir os sistemas educacionais e de saúde que os
mosteiros budistas facultavam em Buriátia, Calmúquia e Tuva. Por tal motivo, o partido comunista
tolerou o budismo durante esse período.
Mais tarde, em 1921, com a ajuda do Exército Vermelho Soviético, Sukhe Batur expulsou Ungern
da Mongólia. Limitou os poderes de Jebtsundampa e permitiu que o Exército Soviético mantivesse
o controlo. Os russos usaram o pretexto de que a União Soviética garantia a independência da
Mongólia e a protegia de outra agressão chinesa. O Exército Soviético permaneceu até a morte do
Jebtsundampa, em 1924, e à declaração da República Popular da Mongólia, que se seguiu logo
depois.
Também outros russos achavam que o comunismo e o budismo poderiam ser compatíveis um com o
outro. Nikolai Roerich (1874-1947), por exemplo, era um teosofista russo que viajou pelo Tibete,
Mongólia e região Altai da Ásia Central, entre 1925 e 1928, em busca de Shambhala. Ele concebia a
residência legendária dos ensinamentos de Kalachakra como um reino de paz universal. Devido à
sua ligação com Barchenko e ao interesse comum em Kalachakra, Roerich alterou a sua viagem em
1926 e visitou Moscovo. Dali, enviou uma carta, através de Chicherin, Ministro do Estrangeiro
soviético, ao povo soviético. Lembrando-nos das cartas de Blavatsky, pelos mahatmas dos
himalaias, Roerich também disse que a carta era dos mahatmas himalaicos. A carta elogiava a
Revolução por eliminar, entre outras coisas, “a miséria da propriedade privada”, e oferecia “ajuda
em forjar a unidade da Ásia”. Como oferta, entregou, [em nome] dos mahatmas, um punhado de
solo tibetano para polvilhar na sepultura do “nosso irmão, Mahatma Lenin”. Embora não houvesse
nessa carta nenhuma menção a Shambhala, ela promoveu o mito teosófico da ajuda benevolente,
pelos mestres da Ásia Central, no estabelecimento da paz mundial, desta vez de acordo com a
missão messiânica de Lenin.
[Ver: Incorretas Crenças Estrangeiras sobre Shambhala.]
Mediante a influência de Bokii, o OGPU patrocinou o regresso de Roerich à Ásia Central para
continuar com os seus contatos. Mais tarde, em 1926 e em 1928, o OGPU patrocinou também duas
expedições a Lhasa, conduzidas por oficiais calmuques mongóis disfarçados de peregrinos. O seu
propósito principal era recolher informação e explorar as possibilidades para a continuação da
propagação do comunismo internacional, na Ásia Central, e para a expansão da esfera do poder da
União Soviética. Assim, os oficiais calmuques propuseram ao XIII Dalai Lama que, em troca da sua
aliança, a União Soviética garantiria a independência do Tibete e protegeria o país dos chineses.
Durante este período, os líderes budistas na União Soviética e Mongólia tentaram também ajustar o
budismo ao comunismo, demonstrando as similaridades entre os dois sistemas de crença. A partir de
1922, o Templo Kalachakra de Leninegrado (São Petersburgo) tornou-se o centro para o
Movimento de Renovação da Fé. Liderado por Dorjiev, o movimento era uma tentativa de reformar
o budismo para que este se adaptasse à realidade soviética, comunalizando o estilo de vida dos
monges de acordo com o budismo antigo. No Primeiro Conselho de Todos os Budistas Unidos da
URSS, em 1927, Dorjiev salientou também a similaridade entre o pensamento budista e comunista
no trabalho para o bem-estar do povo. Assim, como proseguimento à primeira expedição da OGPU
a Lhasa, Dorjiev enviou uma carta ao XIII Dalai Lama elogiando a política soviética para com as
suas nacionalidades minoritárias. Disse que Buda era na verdade o fundador do comunismo, que
Lenin tinha um grande respeito pelo Buda, e que o espírito do budismo vivia em Lenin. Dorjiev
estava uma vez mais tentando usar a sua influência para convencer Dalai Lama a virar-se para a
União Soviética, como tinha previamente tentado, ao associar a Rússia a Shambhala e o Czar
Nicolau a Tsongkhapa.
Mais cedo, nesse mesmo ano, a conquista japonesa da Manchuria e da Mongólia Interior e o
estabelecimento do estado-fantoche de Manchukuo também instigaram a decisão de Stalin. Estava
preocupado de que o Japão tentasse mobilizar os budistas da Buriátia e da Mongólia Exterior para o
seu lado, como partes de um império budista. Além disso, Stalin precisava da Mongólia como um
estado-tampão entre a União Soviética e o crescente Império Japonês. Assim, durante os dois anos
seguintes, Stalin ordenou os mongóis a moderarem o seu programa anti-religioso de modo a não
arrastarem a sua população budista para o campo japonês. Sob a Nova Mudança Política, o partido
comunista mongol permitiu até a reabertura de diversos mosteiros. Armado com a propaganda desta
aprovação oficial do budismo, o OGPU planeou outra expedição ao Tibete no inverno de 1933-
1934. No entanto, a expedição nunca se concretizou porque Stalin depressa mudou de ideias e
tomou gradualmente uma posição mais severa relativamente ao budismo.
Em 1933, o Japão expandiu Manchukuo, anexando Jehol (Chengde) ao sul. Jehol tinha sido a
capital de verão dos manchus, os quais tinham tentado fazer dela o centro do budismo tibetano e
mongol sob o regime da sua Dinastia Qing. No final desse ano, Stalin encerrou o Templo de
Kalachakra, em São Petersburgo, para ceremónias públicas. Entretanto, Stalin deu início à sua
severa perseguição, na União Soviética e na Mongólia, quando Kirov, segundo membro [na escala
de importância dentro do Politburo], foi assassinado em 1934. Isto marcou o início do Grande
Expurgo.
Introdução
Muitos membros superiores do regime nazi, incluindo Hitler, mantinham crenças ocultas bizantinas.
Entre 1938 e 1939, impelidos por essas crenças, os alemães enviaram uma expedição oficial ao
Tibete, a convite do governo tibetano, para assistir às celebrações do Losar (Ano Novo).
O Tibete tinha sofrido uma longa história de tentativas de anexação pelos chineses e de falhas
britânicas de prevenir a agressão ou proteger o Tibete. Sob Stalin, a União Soviética perseguiu
severamente o budismo, especificamente a forma tibetana praticada entre os mongóis dentro das
suas fronteiras e do seu satélite, a República Popular da Mongólia (Mongólia Exterior). Pelo
contrário, o Japão apoiava o budismo tibetano na Mongólia Interior, que tinha anexado como parte
de Manchukuo, o seu estado-fantoche na Manchúria. Alegando que o Japão era Shambhala, o
governo imperial estava tentando ganhar o apoio dos mongóis, sob seu domínio, para uma invasão
da Mongólia Exterior da Sibéria com o propósito de criar uma confederação pan-mongol, sob
proteção japonesa.
O governo tibetano estava explorando a possibilidade de também obter a proteção do Japão face à
situação instável. O Japão e a Alemanha tinham assinado um Pacto Anti-Commintern, em 1936,
declarando a sua hostilidade mútua em relação à propagação do comunismo internacional. O
convite para a visita de uma delegação oficial da Alemanha Nazi foi prolongado neste contexto. Em
Agosto de 1939, logo após a expedição alemã ao Tibete, Hitler quebrou o seu pacto com o Japão e
assinou o Pacto Nazi-Soviético. Em Setembro, os soviéticos derrotaram os japoneses que tinham
invadido, em Maio, a Mongólia Exterior. Subsequentemente, dos contatos japoneses e alemães com
o governo tibetano nada se veio a materializar.
[Para mais pormenores, veja: O Envolvimento Russo e Japonês com o Tibete Pré-Comunista: O
papel da Lenda de Shambala.]
Vários escritores sobre o oculto do pós-guerra afirmaram que o budismo e a lenda de Shambhala
desempenharam um papel no contato oficial entre a Alemanha e o Tibete. Vamos examinar essa
questão.
A Suástica
A suástica é um antigo símbolo indiano de boa sorte imutável. “Suástica” é um aportuguesamento
da palavra sânscrita svastika, que significa o bem-estar ou a boa sorte. Usada por hindus, budistas e
jainistas durante milhares de anos, também se tornou difundida no Tibete.
A suástica também apareceu na maioria das outras culturas antigas do mundo. Por exemplo, a sua
variação anti-horário [no sentido contrário à direção em que os ponteiros do relógio se movem],
adotada pelos nazis, também é a letra “G” no sistema de escrita rúnico medieval, do norte da
Europa. Os Mações Livres tomaram a letra como um símbolo importante, dado que “G” poderia
representar God [Deus], o Grande arquiteto do universo, ou a Geometria.
A suástica também é o símbolo tradicional de Thor, o Deus nórdico dos Relâmpagos e do Poder
(Thor em escandinavo, Donner em alemão, Perkunas em Báltico). Por causa desta associação com
o Deus dos Relâmpagos, os letões e os finlandeses tomaram a suástica como insígnia para suas
forças aéreas, quando se tornaram independentes depois da Primeira Guerra Mundial.
Nos finais do século XIX, Guido von List adotou a suástica como emblema para o movimento Neo-
Pagão da Alemanha. No entanto, os alemães não usaram a palavra sânscrita suástica, mas em vez
disso chamaram-na “Hakenkreutz”, significando “cruz enganchada”. Derrotaria e substituiria a
cruz, assim como o neo-paganismo derrotaria e substituiria o cristianismo.
Compartilhando o sentimento anti-cristão do movimento neo-pagão, a Sociedade de Thule também
adotou a cruz enganchada como parte do seu emblema, colocando-o num círculo com um punhal
alemão vertical nele sobreposto. Em 1920, por sugestão do Dr. Friedrich Krohn, da Sociedade de
Thule, Hitler adotou a cruz enganchada num círculo branco como símbolo central da bandeira do
Partido Nazista. Hitler escolheu o vermelho para cor de fundo a fim de competir contra a bandeira
vermelha do Partido Comunista rival.
Os investigadores franceses Louis Pauwels e Jacques Bergier, em Le Matin des Magiciens (O
Despertar dos Mágicos) (1962), escreveram que Haushofer convenceu Hitler a usar a cruz
enganchada como símbolo do Partido Nazista. Eles postularam que isso foi devido ao interesse de
Haushofer pela cultura indiana e tibetana. Esta conclusão é muitíssimo improvável, dado que
Haushofer só conheceu Hitler em 1923, e uma vez que a bandeira nazi apareceu pela primeira vez
em 1920. É mais provável que Haushofer tivesse usado a presença da suástica, difundida na India e
no Tibete, como evidência para convencer Hitler de que esta região era o local dos antepassados da
raça ariana.
O Ahnenerbe
Sob a influência de Haushofer, Hitler autorizou Frederick Hielscher, em 1935, a estabelecer o
Ahnenerbe (Departamento para o Estudo da Herança Ancestral) com o coronel Wolfram von
Sievers como diretor. Entre outras funções, Hitler encarregou-o de pesquisar runas germânicas e as
origens da suástica, e situar a origem da raça ariana. Tibete era o candidato mais prometedor.
Alexander Csoma de Körös (Körösi Csoma Sandor) (1784-1842) era um erudito húngaro obcecado
pela busca das origens do povo húngaro. Com base nas afinidades linguísticas entre o húngaro e as
línguas turcomanas [ou túrquicas], achava que as origens do povo húngaro se encontravam no
“reino de Yugurs (Uighurs)”, no Turquistão Oriental (Xinjiang, Sinkiang). Ele acreditava que se
conseguisse chegar a Lhasa, lá iria encontrar as chaves para localizar a sua terra de origem.
O húngaro, o finlandês, as línguas turcomanas [ou túrquicas], o mongol e o manchu pertencem à
família das línguas uralo-altaicas, também conhecidas como a família turaniana, da palavra persa
Turan para Turquistão. A partir de 1909, os turcos tiveram um movimento pan-turaniano liderado
por uma sociedade conhecida como os Jovens Turcos. Em 1910, a Sociedade Turaniana Húngara
depressa a seguiu e, em 1920, o mesmo aconteceu com a Aliança Turaniana da Hungria. Alguns
eruditos acreditam que as línguas japonesa e coreana também pertencem à família turaniana. Assim,
em 1921, a Aliança Nacional Turaniana foi fundada no Japão e, nos finais da década de 1930, a
Sociedade Turaniana Japonesa. Haushofer estava sem dúvida ciente destes movimentos, que
procuravam as origens da raça turaniana na Ásia central. Encaixava bem com a Sociedade de Thule
que tambem lá procurava as origens da raça ariana. O seu interesse pela cultura tibetana deu um
peso adicional à candidatura do Tibete como chave para a descoberta de uma origem comum para as
raças arianas e turanianas e para a obtenção do poder de vril que os seus líderes espirituais
possuíam.
Haushofer não era a única influência no interesse de Ahnenerbe pelo Tibete. Hielscher era amigo de
Sven Hedin, o explorador sueco que tinha conduzido expedições ao Tibete em 1893, em 1899-1902
e em 1905-1908, e uma expedição à Mongólia em 1927-1930. Favorito dos nazis, Hitler convidou-o
a pronunciar o discurso de abertura dos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936. Hedin envolveu-se na
Suécia em atividades de propaganda pró-nazi e fez numerosas missões diplomáticas à Alemanha
entre 1939 e 1943.
Em 1937, Himmler transformou o Ahnenerbe numa organização oficial associada às SS (Alemão:
Schutzstaffel, Equipa de Proteção) e selecionou o professor Walther Wüst, presidente do
Departamento de Sânscrito da Universidade de Ludwig-Maximilians, em Munique, como seu novo
diretor. O Ahnenerbe teve um Tibet Institut (Instituto do Tibete), que foi renomeado de Sven Hedin
Institut für Innerasien und Expeditionen (Instituto de Sven Hedin para Ásia Interior e Expedições)
em 1943.
Introdução
Muitos mitos estrangeiros cresceram em volta da legenda de Shambhala encontrada na literatura de
Kalachakra. Alguns foram espalhados para ganhar apoio militar ou político, tal como a identificação
da Rússia, da Mongólia ou do Japão como Shambhala. Outros apareceram dentro de movimentos
ocultistas e misturaram idéias budistas com conceitos de outros sistemas de crenças. Vários até
organizaram expedições para encontrar a terra legendária.
Dois círculos surgiram entre as versões ocultistas. Um deles considerava Shambhala como um
paraíso utópico cujo povo virá salvar o mundo. O escritor britânico, James Hilton, encaixa-se neste
círculo. O seu trabalho de1933 Lost Horizon [Horizonte Perdido], descreve Shangrila como um
paraíso espiritual situado num vale inacessível e secreto no Tibete. Shangrila é indubitavelmente
uma corrupção romântica de Shambhala. O outro círculo descreveu Shambhala como uma terra de
poderes malévolos. Vários relatos do pós-guerra sobre a ligação entre o nazismo e o ocultismo
apresentam esta interpretação. É importante não se confundir qualquer uma destas distorções com o
próprio budismo. Deixem-nos traçar o fenômeno.
Teosofia
A Madame Helena Blavatsky (1831-1891) nasceu na Ucrânia filha de aristocracia Russa. Dotada
com poderes extrasensoriais, viajou pelo mundo em busca de ensinamentos ocultos e secretos, e
passou muitos anos no subcontinente indiano. De 1867 a 1870, ela estudou budismo tibetano com
mestres indianos, muito provavelmente das regiões culturais tibetanas dos Himalaias indianos,
durante a sua suposta estadia no Mosteiro de Tashilhunpo no Tibete.
Blavatsky encontrou o budismo tibetano numa altura em que a erudição europeia oriental estava
ainda na sua infância e em que poucas traduções ou narrativas estavam disponíveis. E mais, ela teve
a oportunidade de aprender somente fragmentos desconjuntados dos seus vastos ensinamentos. Nas
suas cartas privadas, escreveu que como o público ocidental tinha naquela altura pouca
familiaridade com o budismo tibetano, ela decidiu traduzir e explicar os termos básicos com
conceitos mais popularmente conhecidos do hinduísmo e do ocultismo. Por exemplo, ela traduziu
três dos quatro mundos-ilhas (quatro continentes) em volta de Monte Meru como as ilhas perdidas
desaparecidas de Hiperbórea, da Lemúria e da Atlântida. Do mesmo modo, apresentou as quatro
raças humanóides mencionadas no Abhidharma e nos ensinamentos de Kalachakra (nascidos por
meio de transformação, umidade e calor, ovos, e úteros) como as raças destes mundos-ilhas. A sua
convicção de que os ensinamentos esotéricos de todas as religiões do mundo formam um corpo de
conhecimento oculto reforçou a sua decisão de traduzir desse modo e ela tomou a iniciativa de
demonstrar isso nas suas escritas.
Juntamente com o coronel americano espiritualista Henry Steel Olcott, Madame Blavatsky fundou a
Sociedade Teosófica em 1875 em Nova Iorque. As suas sedes internacionais mudaram para Madras,
na Índia, pouco depois. Quando o seu colega Alfred Percy Sinnett identificou a teosofia com o
budismo esotérico em Esoteric Buddhism [Budismo Esotérico] (1883), Blavatsky refutou a sua
alegação. De acordo com as suas Letters of H. P. Blavatsky to A. P. Sinnett [Cartas de H. P.
Blavatsky a A. P. Sinnett], que foram publicadas postumamente, a posição de Blavatsky era que a
teosofia transmitia “os ensinamentos ocultos secretos de trans-Himalaia”, e não os ensinamentos do
budismo tibetano. Não obstante, através de suas escritas, o oeste veio primeiro a associar
Shambhala com o ocultismo e muitos subsequentemente confundiram esta ligação com os
verdadeiros ensinamentos do budismo.
Em 1888, Blavatsky mencionou Shambhala na sua obra principal, The Secret Doctrine [A Doutrina
Secreta], os ensinamentos que ela disse ter recebido telepaticamente dos seus professores no Tibete.
Ela escreveu numa carta que, embora os seus professores fossem “ byang-tzyoobs” ou “tchang-
chubs” (Tib: byang-chub, Sânsc: bodhisattva) reencarnados, ela tinha-os chamado “mahatmas”
dado que esse termo era mais conhecido pelos ingleses na Índia.
A origem tibetana dos ensinamentos em The Secret Doctrine [A Doutrina Secreta], Blavatsky
afirmou, é The Stanzas of Dzyan [As Estâncias de Dzyan], o primeiro volume dos comentários aos
sete fólios secretos de Kiu-te. “Kiu-te” transcreve “ rgyud-sde” tibetano, que significa “divisão
tantra” que é o título da primeira seção do Kangyur, as traduções tibetanas das palavras de Buda.
“Dzyan” transcreve o sânscrito “ dhyana” (Jap. zen), significando estabilidade mental. Blavatsky
estava ciente que The Kalachakra Tantra [O Tantra Kalachakra] era o primeiro artigo na divisão
tantra do Kangyur, uma vez que ela mencionou esse fato num dos seus apontamentos. No entanto,
ela explicou que os sete fólios secretos não faziam realmente parte do Kiu-te publicado, e assim nós
não encontramos qualquer coisa similar às Stanzas de Dzyan nessa coleção.
Não está claro até que ponto Blavatsky realmente estudou os textos de Kalachakra diretamente. O
primeiro material ocidental sobre o tópico foi um artigo de 1833 entitulado “Note on the Origins of
the Kalachakra and Adi-Buddha Systems” [Observações sobre as Origens dos Sistemas de
Kalachakra e de Adi-Buddha] pelo pioneiro erudito húngaro Alexander Csomo de Körös (Körösi
Csoma Sandor). De Körös compilou o primeiro dicionário e gramática tibetana numa língua
ocidental, o inglês, em 1834. O Tibetan-Russian Dictionary and Grammar [Dicionário e Gramática
Tibetano-Russa], de Jakov Schmidt depressa seguiu em 1839. A maioria do conhecimento de
Blavatsky sobre o Kalachakra, contudo, veio do capítulo intitulado “The Kalachakra System” [O
Sistema de Kalachakra] em Buddhism in Tibet [Budismo no Tibete] (1863), por Emil Schlagintweit,
como evidenciado pelo empréstimo de muitas passagens desse livro nas suas obras. Seguindo o seu
princípio de tradução, no entanto, ela rendeu Shambhala em termos de conceitos semelhantes ao
hinduísmo e ocultismo.
A primeira tradução inglesa de The Vishnu Purana [O Vishnu Purana], por Horace Hayman
Wallace, tinha aparecido em 1864, três anos antes da suposta visita de Blavatsky ao Tibete. De
acordo com essa obra, ela explicou Shambhala em termos da apresentação hindu neste texto: é a
vila onde o futuro messias, Avatar de Kalki, irá aparecer. Blavatsky escreveu que o Kalki é “
Vishnu, o Messias no Cavalo Branco dos bramanes; o Buda Maitreya dos budistas; Sosiosh dos
parsis; e Jesus dos cristãos”. Ela também afirmou que Shankaracharya, o fundador de Advaitya
Vedanta do início do século IX, “ainda vive entre a Irmandade de Shamballa, do outro lado dos
Himalaias”.
Noutro lugar, ela escreveu que quando Lemúria se afundou, parte do seu povo sobreviveu em
Atlântida, enquanto que parte dos seus eleitos migrou para a ilha sagrada de “Shamballah” no
deserto de Gobi. No entanto, nem a literatura de Kalachakra nem The Vishnu Purana, mencionam
Atlântida, Lemúria, Maitreya ou Sosiosh. Contudo, a associação de Shambhala com eles continuou
entre os seguidores de Blavatsky.
A localização de Blavatsky de Shambhala no deserto de Gobi não é surpreendente visto que os
mongóis, incluindo a população buryat da Sibéria e os kalmyks da região mais baixa do Volga, eram
fortes seguidores do budismo tibetano, particularmente dos seus ensinamentos de Kalachakra.
Durante séculos, os mongóis em toda parte acreditaram que a Mongólia é o Reino Nórdico de
Shambhala e Blavatsky tinha sem dúvida conhecimento das crenças dos buryat e dos kalmyk na
Rússia
Blavatsky também poderia ter recebido confirmação da sua localização de Shambhala no deserto de
Gobi [a partir] das escritas de Csoma de Körös. Numa carta de 1825, ele escreveu que Shambhala é
como uma Jerusalém budista estendida entre 45 e 50 graus de longitude. Embora ele achasse que
Shambhala seria provavelmente encontrada no deserto de Kizilkum no Cazaquistão, o deserto Gobi
também caía dentro das duas longitudes. Mais tarde, outros também o situariam dentro destes
parâmetros, porém ou no Turquistão Oriental (Xinjiang, Sinkiang) ou nas montanhas de Altai.
Embora a própria Blavatsky nunca afirmasse que Shambhala era a fonte de The Secret Doctrine [A
Doutrina Secreta], mais tarde vários teosofistas fizeram esta ligação. Proeminentemente entre eles
estava a Alice Bailey em Letters on Occult Meditation [Cartas sobre Meditação Oculta] (1922).
Helena Roerich, nas suas Collected Letters (1935-1936) [Cartas Coletados (1935-1936)], também
escreveu que Blavatsky era uma mensageira da Irmandade Branca de Shambhala. Além disso, ela
relatou que em 1934 o Regente de Shambhala tinha chamado de volta ao Tibete os mahatmas que
tinham transmitido os ensinamentos secretos a Blavatsky.
Ossendowski e Agharti
No livro de 1922 Beasts, Men and Gods [Bestas, Homens e Deuses], Ferdinand Ossendowski
(1876-1945), um cientista polonês que passou a maior parte da sua vida na Rússia, escreveu sobre
as suas viagens recentes à Mongólia Exterior durante as campanhas do Barão von Ungern-
Sternberg. Ossendowski relatou que vários lamas mongóis lhe tinham falado de Agharti, um reino
subterrâneo debaixo da Mongólia, governado pelo Rei do Mundo. No futuro, quando o
materialismo arruinar o mundo, irá haver uma guerra terrível. Nessa altura, o povo de Agharti virá à
superfície ajudar a terminar a violência. Ossendowski relatou que ele convenceu Ungern da sua
história e que, subsequentemente, Ungern mandou missões em busca Agharti duas vezes,
conduzidas pelo Príncipe Poulzig. As missões falharam e o Príncipe nunca retornou da segunda
expedição.
Kamil Gizycky era um engenheiro do exército polonês que também lutou contra os Bolcheviques na
Sibéria e depois se juntou às forças de Ungern na Mongólia. Não fez menção nenhuma de Agharti
na sua narrativa dos eventos da altura, Poprzez Urjanchej i Mongolie [Através de Urankhai e da
Mongólia] (1929). Interessantemente, relatou que Ossendowski ajudou o Barão Louco oferecendo-
lhe a fórmula para fazer gás venenoso.
Embora os textos de Kalachakra nunca descrevam Shambhala como um reino subterrâneo, o
relatório de Ossendowski paralela claramente a narrativa de Kalachakra do regente Kalki de
Shambhala vindo ajudar o mundo terminar uma guerra apocalíptica. No entanto, o aparecimento de
Agharti aqui é digno de atenção. O nome não aparece na literatura de Kalachakra nem nas obras da
Madame Blavatsky.
O autor francês Joseph-Alexandre Saint-Yves d' Alveidre primeiro popularizou a legenda de Agharti
(Agharta, Asgartha, Agarthi, Agardhi) no seu romance Mission de l’Inde en Europe [Missão da
Índia na Europa], escrita em 1886. Ele descreveu-a como um reino subterrâneo com uma
universidade que é um repositório de conhecimento secreto. Localizado originalmente em Ayodhya
Índia, foi mudada para um lugar secreto debaixo dos Himalaias 1800 anos antes de Cristo. O seu
rei, um “mahatma”, guarda os seus segredos e não os revelou, dado que eles iriam permitir as forças
do Anticristo de construir armas poderosas. Quando as forças malignas tiverem sido destruídas, os
mahatmas irão revelar seus segredos para o benefício da humanidade.
Saint-Yves d' Alveidre pode ter, de fato, retirado vários elementos da sua história da discussão de
Kalachakra sobre Shambhala. O número 1800 aparece repetidamente como um motivo na literatura
de Kalachakra e os textos clássicos relatam que os líderes de Shambhala possuíam o conhecimento
para construir armas para derrotar as forças do invasor. Não obstante, o autor francês claramente
escreveu um trabalho de ficção.
Em Ossendowski und die Wahrheit [Ossendowski e a Verdade] (1925), Sven Hedin, o explorador
sueco do Tibete, rejeitou as asserções de Ossendowski ter ouvido de Agharti através dos lamas
mongóis. Ele escreveu que o cientista polonês tinha tirado o mito de Agharti de Saint-Yves d'
Alveidre e o tinha moldado à sua história a fim de atrair a leitura de um público alemão já
familiarizado, a um certo nível, com o oculto. Hedin admitiu, contudo, que o Tibete e o Dalai Lama
eram os protetores do conhecimento secreto.
Uma explanação adicional, no entanto, poderia ser que Ossendowski usou o mito de Agharti para
obter o favorecimento de Ungern. Ungern teria sem dúvida identificado as forças materialísticas do
Anticristo, que Agharti iria ajudar a derrotar, como os bolcheviques, contra quem ele estava lutando.
Visto que Sukhe Batur estava a mobilizar as suas tropas com a promessa de Shambhala, Ungern
poderia igualmente usar a estória de Agharti para seu próprio proveito. Se este fosse o caso,
poderíamos de aqui traçar a versão da legenda de Shambhala que descreveu Shambhala
desfavoravelmente.
A Conexão Calmuque
O relatório por Pauwels e Berger que no fim da guerra, os russos encontraram em Berlim um grande
número de cadáveres de soldados de raça Himalaia, vestidos em uniformes nazistas, que tinham
cometido suicídio, também precisa ser posto à prova. A implicação não-falada é que os russos
encontraram os cadáveres dos adeptos Tibetanos-Agharti que estavam ajudando a causa nazista e
que, como Haushofer, cometeram o suicídio ritual.
Primeiro, o hara-kiri era um costume japonês dos samurais, que muitos soldados japoneses na
Segunda Guerra Mundial seguiram para evitar a captura. Os seguidores do budismo tibetano,
contudo, consideram o suicídio um ato extremamente negativo com consequências terríveis em
vidas futuras. Nunca é justificável. O relatório atribui incorretamente costumes japoneses aos
tibetanos. Segundo, quaisquer soldados de origem Himalaia encontrados em uniforme nazista
seriam muito provavelmente mongóis da Cálmúquia, e não tibetanos. E mais, os calmuques lutarem
no exército alemão não prova que apoiavam a ideologia nazista; e ademais também não prova que
apoiava suas crenças no budismo tibetano. Deixem-nos examinar os fatos históricos,
suplementando-os com informação obtida de entrevistas com calmuques vivendo em Munique,
Alemanha, que tinham participado em muitos dos eventos descritos abaixo.
Os mongóis da Calmúquia são praticantes da forma tibetana de budismo e têm uma longa história
de associação com alemães. Um grande grupo deles migrou para o oeste da região Dzungaria do
Turquistão Oriental entre 1609 e 1632. Estabeleceram-se na Rússia ao longo do Baixo Volga, onde
(este rio) desemboca no mar Cáspio. Lá, continuaram o seu modo de vida nomade seguindo a gado.
Em 1763, a Czarina Catarina II a Grande convidou quase trinta mil alemães a estabelecerem-se na
região do Volga ao norte dos calmuques. Queria que eles cultivassem a terra fértil e a protegessem
dos “tártaros”. Tentou forçar o cristianismo e a agricultura aos calmuques, fazendo com que muitos
fugissem de volta a Dzungaria em 1771. Por fim, porém, aqueles que permaneceram na Rússia
foram aceitos, especialmente porque que eram soldados excelentes. Durante as Guerras
napoleonicas (1812-1815), por exemplo, o exército russo teve um regimento calmuque. Durante o
século seguinte, os soldados calmuques estiveram em destaque em divisões por todo o Exército
Czarista.
Embora os estilos de vida e os costumes dos alemães agrários do Volga e dos calmuques nomades
seguidores de gado fossem bastante diferentes, estes vizinhos chegaram gradualmente a respeitar
uns aos outros. Os alemães, de fato, mostrarram interesse nos calmuques. Já em 1804, Benjamin
Bergmann publicou um trabalho de quatro volumes sobre a sua língua e religião, intitulado
Nomadische Streifereien unter der Kalmüken in den Jahre 1802 und 1804 [Migrações Nómades
entre os Calmuques no ano 1802 e 1804]. Sven Hedin passou pela Calmúquia numa das suas
primeiras expedições a Dzungaria e expressou grande admiração pelo seu povo.
Depois da Revolução Comunista em 1917, muitos calmuques permaneceram leais às forças
Czaristas e continuaram a lutar no lado Russo Branco, especialmente sob os generais Vrangel e
Deniken. Antes de o Exército Vermelho ter chegado à península da Criméia no final de 1920, cerca
de vinte famílias calmuques fugiram através do Mar Negro com Vrangel e estabelecendo-se em
Varsóvia na Polônia e em Praga, na Tchecoslováquia. Um número muito maior saiu com o Deniken,
com a maioria estabelecendo-se em Belgrado, na Sérvia, e números menores em Sofia na Bulgária e
em Paris e Lyon na França. Os refugiados calmuques em Belgrado construíram lá um templo
budista em 1929. Os comunistas puniram severamente os calmuques que ficaramatrás, decapitando
dez mil.
Em 1931, Stalin coletivizou os calmuques, fechou os mosteiros budistas e queimou os textos
religiosos. Deportou para a Sibéria todos os monges e todos os seguidores de gado que possuíam
mais de quinhentos carneiros. Em parte devido à política de coletivização de Stalin, rompeu-se uma
grande fome de 1932 a 1933. Aproximadamente sessenta mil calmuques morreram.
Depois de Hitler ter invadido a União Soviética em Setembro de 1941, Goebbels convidou vários
calmuques proeminentes de Belgrado, Paris e Praga a Berlim para ajudarem com uma campanha de
propaganda. Os nazistas desejavam obter o apoio dos calmuques para o lado alemão contra os
Russos e nunca mandaram nenhuns dos que estavam sob o seu domínio para os campos de
concentração. Assim, Goebbels organizou este núcleo em um comitê para livrar os calmuques do
regime comunista. Nesta conexão, ajudou-lhes a imprimir um jornal na língua calmuque e usou-os
para transmitir notícias no rádio em calmuque dirigidas a Calmúquia.
Quando a 16a Divisão Panzer nazista sob Field Marshal Mannstein conquistou a Calmúquia nos
inícios de 1942, foram acompanhados por três membros deste comitê. Varios calmuques de
Belgrado também participaram na invasão, tendo-se juntado ao exército alemão após a ocupação
nazista da Sérvia em Abril de 1941. O povo da Calmúquia saudou o exército alemão com manteiga
e leite, a oferta tradicional para dar as boas-vindas a convidados, como libertadores do regime
opressivo de Stalin. Os alemães disseram que iriam desmontar as coletivas e que iriam dividir e
privatizar a terra. Permitiram que os calmuques praticassem o budismo uma vez mais. Em resposta,
os calmuques exumaram os textos religiosos que tinham enterrado para sua preservação e
construíram um templo provisório. Em Novembro e em Dezembro de 1942, contudo, o exército
vermelho retomou a Calmúquia e destruiu tudo que as pessoas tinham reconstruído.
As tropas alemãs convidaram os calmuques a recuarem e a continuarem a luta com eles. Cerca de
cinco mil juntaram-se às forças armadas nazistas, formando o Corpo de Cavalaria Voluntário
Cálmuco. Somente algumas mulheres e crianças os acompanharam. As tropas calmuques lutaram
com o exército nazista atrás das linhas, especialmente em torno do mar de Azov. A maioria da
população calmuque, no entanto, permaneceu em Calmúquia. Em Dezembro de 1943, Stalin
declarou-os todos colaboradores dos alemães e deportou a todos para a Sibéria. Só regressaram
durante a era de Khruschev, entre 1957 e 1960.
No início do outono de 1944, face à iminente invasão russa da Sérvia, muitos calmuques de
Belgrado fugiram para Munique, na Alemanha, para evitar a perseguição comunista. Foram
acompanhados por vários monges e um professor budista erudito. No final de 1944, as tropas da
cavalaria calmuque que sobreviveram na Rússia, juntamente com as suas famílias, retraíram com o
exército alemão. Cerca de dois mil foram para Silésia, na Polónia e quinhentos para Zagrebe, na
Croácia, onde foram re-organizados para lutar contra os adversários.
Assim, embora vários calmuques estivessem na Alemanha e nos territórios conquistados pelos
nazistas nos meses finais da guerra, apenas alguns estavam na área de Berlim, ainda engajados em
trabalho propagandista. Os soldados calmuques em uniformes nazistas estavam na Polônia e na
Croácia, e não na Alemanha. Embora vários monges calmuques fizessem rituais budistas nas
barracas e casas calmuques no território dominado pelos nazistas, eles rezavam pela paz e pelo
bem-estar de todos os seres. Não havia nenhun tibetano entre eles, e eles não conduziram
ceremonias “ocultas” para uma vitória nazista, como alguns relatos ocultistas pós-guerra relatam.
Após a guerra, os calmuques que estavam em países da Europa Ocidental foram enterrados em
acampamentos para pessoas desalojadas na Áustria e na Alemanha, especialmente na área de
Munique. Liberados em 1951, estabeleceram-se primeiro em Munique. Mais tarde nesse ano, a
Fundação de Anna Tolstoy realojou a maioria deles em New-Jersey, EUA. Tito entregou os que
estavam na Sérvia aos soviéticos, que prontamente os deportaram para a Sibéria.
Conclusão
A história de Kalachakra sobre Shambhala tem ativado as imaginações de muitas figuras políticas
estrangeiras e autores ocultistas. Distorcendo a lenda original e interpolando idéias permeadas de
fantasia, incorporaram o mito nos artigos que escreveram para servir aos seus próprios propósitos.
Atribuir estas distorções à intenção original dos ensinamentos de Kalachakra seria fazer uma
injustiça ao budismo. Futuras pesquisas poderão revelar mais sobre estes assuntos.
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Meditação Avançada - Dzogchen
Pontos Fundamentais
Introdução ao Dzogchen ensaio médio
Os Principais Aspectos da Doutrina Dzogchen ensaio médio
Breve História do Dzogchen transcrição curta
Breve História do Dzogchen em Forma Gráfica pequena tabela
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Introdução ao Dzogchen
Alexander Berzin
Setembro de 1995, revisado em Maio de 2002 e Julho de 2006
[Background: Comparação Introdutória das Cinco Tradições Tibetanas de Budismo e do Bon.]
A Necessidade de Dzogchen
Dzogchen (rdzogs-chen, a grande perfeição) é um sistema avançado de prática Mahayana que
conduz à iluminação. Encontra-se principalmente nas tradições Nyingma e Bon, mas também
aparece como prática suplementar em algumas das tradições Kagyu, tais como Drugpa, Drikung
(Drigung) e Karma Kagyu. Aqui, vamos falar de dzogchen de acordo com a escola Nyingma.
[Veja: Breve História do Dzogchen.]
Para alcançar a iluminação, precisamos de eliminar para sempre dois grupos de obscurecimentos:
obscurecimentos emocionais (nyon-sgrib) - aqueles que são emoções e atitudes
perturbadoras e que impedem a liberação;
obscurecimentos cognitivos (shes-sgrib) – aqueles relacionados com todos os conhecíveis e
que impedem a onisciência.
Estes obscurecimentos trazem-nos, respectivamente, o sofrimento da existência incontrolavelmente
recorrente (samsara) e a incapacidade de melhor ajudarmos os outros. São porém momentâneos
(glo-bur), e apenas obscurecem a natureza essencial (ngo-bo) da mente e limitam o seu
funcionamento. Na sua essência, a mente (atividade mental) é por natureza pura de todas as máculas
momentâneas. Este é um aspecto importante da sua natureza búdica.
Em geral, para eliminar os dois grupos de obscurecimento são necessárias a bodhichitta (byang-
sems) e a cognição não-conceptual do vazio (stong-nyid, Sânsc. shunyata, vacuidade) - a natural
ausência, na mente, de máculas momentâneas, e a sua ausência de impossíveis maneiras de existir
(como intrinsecamente contaminada com máculas). Bodhichitta é uma mente e coração que visa a
iluminação, com a intenção de a alcançar e, desse modo, beneficiar todos os seres tanto quanto
possível. A eliminação dos obscurecimentos também requer um nível de mente (ou atividade
mental) mais conducente à causa desta eliminação. A prática Dzogchen conduz-nos a esse nível.
Sem e Rigpa
A atividade mental ocorre a dois níveis; com consciência limitada (sems) e consciência pura (rig-
pa). Como muitos estudantes ocidentais já estão familiarizados com os termos tibetanos, vamos
usá-los para facilitar a discussão.
Sem é a atividade mental limitada por máculas momentâneas.
Rigpa é atividade mental vazia de todas as máculas momentâneas de obscurecimento.
O sem pode ser conceptual ou não-conceptual e, em qualquer dos casos, é sempre contaminada.
Rigpa, por outro lado, é exclusivamente não-conceptual, numa maneira mais pura do que o não-
conceptual sem, e nunca é contaminada por qualquer dos dois grupos de obscurecimentos.
Uma vez que a atividade mental, limitada ou pura, é naturalmente vazia de máculas momentâneas,
rigpa é o estado natural de sem. Deste modo, rigpa, com a sua natureza essencial de ser vazia de
todas as máculas, pode ser reconhecida como a base de cada momento da nossa cognição.
Dzogchen, então, é um método de prática ancorado na bodhichitta e na cognição não-conceptual do
vazio, que nos permite reconhecer rigpa e permanecer para sempre no seu nível de atividade mental
livre de todos os obscurecimentos. Desta forma, a "grande perfeição" (dzogchen) de rigpa, de todas
as qualidades iluminadoras para beneficiar os outros, torna-se inteiramente operacional.
A atividade mental de clara luz não está necessariamente ciente do vazio da sua própria
natureza; por exemplo, a mente de clara luz experienciada no momento da morte comum.
Mesmo quando Kaydrub Norzang-gyatso (mKhas-grub Nor-bzang rgya-mtsho), o mestre
Gelug do século XV, explica que a atividade mental de clara luz faz surgir naturalmente uma
aparência cognitiva parecida à que surge na cognição não-conceptual do vazio; no entanto,
ela não surge automaticamente com a compreensão do vazio, tal como na morte comum.
Além disso, mesmo quando a profunda consciência reflexiva (rang-rig ye-shes) da sua
própria natureza vazia é apresentada como uma qualidade natural da clara luz, como nos
sistemas Sakya e Kagyu, ainda assim nem sempre está operacional, tal como na morte
comum. Portanto, a prática anuttarayoga visa conseguir, na meditação, a clara luz cognitiva
que está totalmente ciente da sua própria natureza de clara luz do objeto.
Rigpa, por outro lado, está inatamente ciente da sua própria natureza vazia. Quando nós
obtemos acesso a rigpa, rigpa está automática e totalmente ciente da sua própria natureza.
Em termos dzogchen, rigpa reconhece a sua própria face (rang-ngo shes-pa).
A Descoberta e O Salto
A literatura dzogchen inclui muita discussão sobre as etapas da prática chamadas a descoberta
(khregs-chod, “tekcho”) e o salto (thod-rgal, “togel”). Estas são práticas extremamente avançadas,
equivalentes às etapas finais do estágio completo do tantra anuttarayoga.
Na etapa da descoberta, depois de termos sido conduzidos pelos nossos mestres dzogchen a
reconhecer rigpa, nós conseguimos o acesso a rigpa-essência e, deste modo, conseguimos parar todo
sem, visto que os ventos-energia sutis se dissolvem automaticamente. Ou seja, somos capazes de
parar todos os níveis mais grosseiros da atividade mental - os níveis em que ocorrem as máculas
momentâneas das emoções e atitudes perturbantes e a cognição conceptual. Com isto, alcançamos a
mente do caminho interior da visão e nos tornamos aryas. A menos que sejamos praticantes a quem
tudo acontece de uma só vez, ainda não somos capazes de permanecer para sempre ao nível de
rigpa-essência. Após a meditação, revertemos ao sem.
Na etapa do salto, ganhamos cada vez maior familiaridade com rigpa-essência. Os momentos de
sem são a condição imediatamente precedente (de-ma-thag rkyen) para que a nossa experiência seja
composta de cinco fatores agregados (phung-po, Sânsc. skandha). Quanto mais frequentemente e
por mais tempo formos capazes de permanecer em rigpa-essência, tanto mais enfraqueceremos a
força da condição imediatamente precedente na experiência dos cinco agregados.
[Veja: Esquema Básico dos Cinco Fatores Agregados de Experiência.]
Sem uma forte condição imediatamente precedente, os nossos cinco agregados desvanecem,
incluindo os nossos corpos normais, e nós surgimos sob a forma de um corpo de arco-íris (‘ja’-lus).
Isto ocorre porque uma das qualidades naturais de rigpa é o estabelecimento espontâneo da
aparência da luz do arco-íris de cinco cores.
O corpo de arco-íris é a causa obtentora (nyer-len rgyu) que se transforma no rupakaya (gzugs-sku,
corpo-forma) de um Buda. Em geral, no tantra anuttarayoga (excluindo Kalachakra), a causa
equivalente para um rupakaya é um corpo ilusório (sgyu-lus) no tantra-pai ou um corpo-luz (‘od-
lus) no tantra-mãe. O equivalente em Kalachakra é uma forma-vazia (stong-gzugs). Embora às
vezes dzogchen use os termos corpo-luz e forma-vazia para o corpo de arco-íris e, em geral, o
anuttarayoga use às vezes corpo de arco-íris para corpo-luz, os tipos de corpos alcançados e os
métodos para os alcançar permanecem distintos no anuttarayoga, Kalachakra e dzogchen.
Mahayoga
A prática mahayoga enfatiza o equivalente ao estágio de geração no anuttarayoga, em que
trabalhamos com a imaginação - ou seja, conceptualmente. Embora rigpa esteja para além das
palavras e conceitos, nós no entanto, antes de conseguirmos o seu acesso, dependemos de uma ideia
de rigpa que usamos como fac-símile para representar rigpa na meditação.
Nos visualizamos como uma figura búdica (yidam, deidade), por exemplo Vajrasattva. Esta
visualização atua como causa para a luz de arco-íris de cinco cores, qualidade natural de rigpa, [que
neste caso] aparece na forma de um Vajrasattva de corpo de arco-íris e, por fim, como a rede de
formas iluminadoras, ou rupakaya, de um Buda. Embora a natureza de rigpa seja a de estabelecer
espontâneamente aparências com a luz de arco-íris de cinco cores, no entanto, sem uma causa
precedente como modelo, não é provável que estabeleça a aparência de um rupakaya.
Além disso, nos visualizamos como um par em união, experienciando simultaneamente o
surgimento de uma consciência altamente bem-aventurada (lhan-skyes bde-ba chen-po) – uma
consciência bem-aventurada que surge em simultâneo com cada momento de rigpa. Isto atua como
uma causa para a eliminação dos obscurecimentos que impedem o estabelecimento espontâneo da
qualidade natural de rigpa – a bem-aventurança.
Anuyoga
A prática anuyoga enfatiza em geral o equivalente à prática do estágio completo nos estágios do
tantra anuttarayoga, antes da aquisição da consciência de clara luz e de uma mente do caminho
interior da visão. Assim, envolve o trabalho com o sistema de energia sutil com seus ventos-energia,
canais energéticos e gotas-energia (rtsa-rlung-thig-le). Tal prática, em certo sentido, "lubrifica" o
sistema de energia sutil de tal forma que, na etapa da descoberta, os ventos-energia se dissolverão
automaticamente com mais facilidade .
[Para mais pormenores, veja: As Facetas Principais de Dzogchen.]
Mahamudra
Um dos métodos principais de meditação mahamudra, na tradição Karma Kagyu, é o de considerar
os momentos de pensamento conceptual como o dharmakaya (chos-sku) - a rede de consciência
onisciente búdica que tudo abrange. Se dharmakaya for comparado ao oceano, então os momentos
de pensamento conceptual serão como as ondas do oceano. Quer o oceano esteja calmo ou
turbulento, as ondas não deixam de ser água. Assim, sem conscientemente procurarmos acalmar as
ondas nós enfocamos no oceano, que nas suas profundezas nunca está perturbado,
independentemente do tamanho das ondas na sua superfície. Por conseguinte, o processo conceptual
naturalmente se acalma.
Na tradição Gelug/Kagyu, de mahamudra, consideramos os momentos de pensamento conceptual
como nuvens passageiras que temporariamente obscurecem o céu. Surgem e desaparecem no céu,
mas não são da natureza do céu.
Ambos, mahamudra e dzogchen, lidam com o nível mais sutil de atividade mental; mahamudra tem
acesso a ele dissolvendo os ventos-energia e os níveis mais grosseiros da atividade mental,
enquanto que dzogchen tem acesso a ele reconhecendo-o dentro dos níveis mais grosseiros, ou seja,
sem.
Observações Conclusivas
Dzogchen é uma prática extremamente avançada e difícil. Quando descrito como sem esforço
(‘bad-med), isso não significa que, como principiantes, não necessitemos de fazer nada - apenas
sentar, relaxar e tudo acontecerá de uma só vez. Sem esforço se refere ao fato de que os
pensamentos desaparecem automaticamente, em simultâneo com seu surgimento: não precisamos
de nos esforçar para os fazer desaparecer. Não obstante, precisamos de reconhecer e compreender
este fato. Sem esforço também se refere a quando nós compreendemos rigpa-essência; nessa altura,
com base na prévia prática mahayoga e anuyoga, os ventos-energia se dissolvem sem esforço e uma
aparência de nós próprios surge sem esforço como um corpo de arco-íris com o aspecto de uma
figura búdica.
Assim, embora a literatura dzogchen fale principalmente sob o ponto de vista do estágio resultante e
daqueles a quem tudo acontece de uma só vez, nós necessitamos de recolher as causas para o
sucesso antes de podermos praticar dzogchen com sucesso. Ou seja, não podemos prescindir da
prática das preliminares comuns e incomuns, do recebimento do empoderamento, de manter os
votos apropriados e de praticar meditação mahayoga e anuyoga uma série de vezes.
No entanto, podemos praticar agora uma fac-símile da meditação dzogchen para nos
familiarizarmos com o método. Focalizar no surgir, permanecer e desaparecer simultâneos dos
pensamentos, a qualquer nível que possamos, é útil para a superação da ansiedade, preocupação,
raiva e assim por diante. Contudo, precisamos de tentar evitar nos enganarmos com o pensamento
de que este é realmente o nível mais profundo da meditação dzogchen. Precisamos de tentar evitar o
erro de pensar que tudo já é perfeito e que, por isso, não há nenhuma necessidade de mudar padrões
destrutivos nas nossas atitudes ou comportamentos.
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Hierarquia e Descentralização
Antes de examinarmos as similaridades e as diferenças entre as cinco tradições tibetanas,
precisamos de nos lembrar que nenhum dos sistemas tibetanos forma uma igreja organizada como,
por exemplo, a igreja católica. Nenhuma delas é, em termos de organização, centralizada dessa
maneira. Os líderes das tradições, abades e assim por adiante, são principalmente responsáveis por
conceder as ordenações monásticas e por transmitir as linhagens de transmissões orais e de
empoderamentos tântricos (iniciações). O interesse principal deles não é a administração. A
hierarquia afeta principalmente o lugar onde as pessoas se sentam nas grandes ceremonias rituais
(pujas); em quantas almofadas elas se sentam; a ordem em que lhes é servido o chá; e assim por
diante. Por várias razões geográficas e culturais, o povo tibetano tende a ser extremamente
independente e cada mosteiro tende a seguir os seus próprios costumes. Os lugares remotos dos
mosteiros, as distâncias enormes entre eles e as dificuldades em viajar e comunicar reforçaram a
tendência para a descentralização.
Características comuns
As cinco tradições tibetanas compartilham muitas características em comum, talvez uns oitenta por
cento ou mais. As suas histórias revelam que as linhagens não existem como monolíticos separados
e isolados dentro de barreiras concretas, sem nenhum contato entre elas. O numero de tradições
como sendo cinco foi o resultado dos seus mestres fundadores terem reunido e combinado dentro
delas várias linhas de transmissão, vindas principalmente da India. Por convenção, os seus
seguidores chamaram a cada uma das suas sínteses “uma linhagem,” mas muitas das mesmas linhas
de transmissão também formam parte das misturas das outras tradições.
Estudo do Sutra
Todas as tradições tibetanas seguem um caminho que combina o estudo do sutra e do tantra com a
prática do ritual e da meditação. Enquanto crianças, os monásticos memorizam um número vasto de
textos escolásticos e de rituais e estudam por meio de debates calorosos. Os tópicos do sutra
estudados são os mesmos tanto para os budistas como para os bonpos. Eles incluem o
prajnaparamita (discriminação de grande alcance, a perfeição da sabedoria) a respeito dos estágios
do caminho, o madhyamaka (o caminho do meio) a respeito da visão correta da realidade
(vacuidade), do pramana (maneiras válidas de saber) a respeito da percepção e da lógica, e o
abhidharma (tópicos especiais do conhecimento) a respeito da metafísica. Os livros didáticos
tibetanos para cada tópico diferem ligeiramente nas suas interpretações, não só entre as cinco
tradições mas também até entre os mosteiros dentro de cada tradição. Tais diferenças tornam os
debates mais interessantes. Na conclusão de um longo curso de estudo, todas as cinco tradições
concedem um diploma, de Geshe ou de Khenpo.
Todas as quatro escolas budistas tibetanas estudam as quatro tradições de doutrinas filosóficas do
budismo indiano - Vaibhashika, Sautrantika, Chittamatra, e Madhyamaka. Embora as escolas
expliquem as doutrinas filosóficas de um modoligeiramente diferente, cada uma delas aceita
madhyamaka como apresentando a posição mais sofisticada e precisa. As quatro também estudam
os mesmos textos clássicos indianos de Maitreya, Asanga, Nagarjuna, Chandrakirti, Shantideva, e
assim por adiante. Além disso, cada escola tem o seu próprio conjunto de comentários tibetanos,
que diferem ligeiramente uns dos outros.
Meditação
A meditação em todas as cinco tradições tibetanas envolve empreender longos retiros,
frequentemente por três anos e três fases da lua. Os retiros são precedidos por práticas preliminares
intensivas, requerendo centenas de milhares de prostrações, repetições de mantras, e assim por
diante. O número das preliminares, a maneira de fazê-las, e a estrutura do retiro de três anos diferem
ligeiramente de uma escola para a outra. No entanto, basicamente, todos praticam o mesmo.
Ritual
A prática de ritual é também muito similar em todas as cinco tradições tibetanas. Todas elas
oferecem tigelas de água, lâmpadas de manteiga e incenso; sentam-se de pernas cruzadas da mesma
maneira; usam vajras, sinos, e tamborins damaru; tocam os mesmos tipos de chifres, de címbalos, e
de tamborins; recitam em voz alta; oferecem e provam carne e álcool, consagrados durante
ceremónias especiais (tsog); e servem chá com manteiga durante todas as assembleias rituais.
Seguindo os costumes de origem Bon, todas elas oferecem tormas (cones esculpidos de farinha de
cevada misturados com manteiga); invocam os espíritos locais para proteção; afugentam os maus
espíritos com rituais elaborados; fazem esculturas de manteiga em ocasiões especiais; e penduram
coloridas bandeiras de orações. Todas elas alojam relíquias de grandes mestres em monumentos
stupa e os budistas andam à volta no sentido do relógio, enquanto que os bonpos andam à volta no
sentido contrário do relógio. Até os seus estilos de arte religiosa são extremamente semelhantes. As
proporções das figuras nas pinturas e nas estátuas seguem sempre as mesmas regras fixas.
Linhagens Misturadas
Muitas linhagens de ensinamentos misturam e cruzam-se entre as cinco tradições tibetanas. A
linhagem do Guhyasamaja Tantra, por exemplo, passou através do tradutor Marpa tanto à escola
Kagyu como à Gelug. Embora os ensinamentos de mahamudra (grande selo) sobre a natureza da
mente sejam geralmente associados às linhas Kagyu, as escolas Sakya e Gelug também os
transmitem nas suas linhagens. Dzogchen (a grande completude) é um outro sistema de meditação
da natureza da mente. Embora associado geralmente à tradição Nyingma, é também proeminente na
escola Karma Kagyu da época do terceiro Karmapa e nas tradições de Drugpa Kagyu e de Bon. O
quinto Dalai Lama era um grande mestre, não só Gelug, mas também de dzogchen e Sakya, e
escreveu muitos textos em cada uma delas. Nós precisamos ter a mente aberta para ver que as
escolas tibetanas não se excluem mutuamente. Por exemplo, muitos mosteiros Kagyu fazem pujas
ao Guru Rinpoche, embora não sejam Nyingma.
Diferenças
Uso de termos técnicos
Quais são as diferenças principais, então, entre as cinco tradições tibetanas? Uma das diferenças
principais diz respeito ao uso de termos técnicos. O Bon analisa a maioria das mesmas coisas que o
budismo, mas usa palavras ou nomes diferentes para muitas delas. Mesmo dentro das quatro
tradições budistas, várias escolas usam os mesmos termos técnicos com definições diferentes. Isto é
realmente um grande problema quando tentamos compreender o budismo tibetano em geral. Até
dentro da mesma tradição, autores diferentes definem os mesmos termos de uma maneira diferente;
e até o mesmo autor às vezes define os mesmos termos de uma maneira diferente nas suas várias
obras. Se não soubermos as definições exactas que os autores estão usando para os seus termos
técnicos, podemos ficar extremamente confusos. Deixem-me dar alguns exemplos.
Os gelugpas dizem que a mente, significando a percepção dos objetos, é impermanente, enquanto
que os kagyupas e nyingmapas afirmam que é permanente. As duas posições parecem ser
contraditórias e mutuamente exclusivas; mas, na verdade, não são. Para os gelugpas,
“impermanente” quer dizer que a percepção dos objectos muda de momento a momento, no sentido
em que os objectos dos quais nós estamos cientes mudam a cada momento. Por “permanente,” os
kagyupas e nyingmapas querem dizer que a percepção dos objetos continua para sempre; a sua
natureza básica permanece, não sendo afetada por nada e, assim, nunca muda. Cada lado
concordaria um com o outro, mas porque usam os mesmos termos com significados diferentes,
parece que se contradizem completamente. Os kagyupas e os nyingmapas diriam que a percepção
individual de objetos certamente percebe ou conhece objetos diferentes a cada momento; enquanto
que os gelugpas concordariam certamente que as mentes individuais são contínuos, sem nenhum
começo nem fim, de percepção de objetos.
Outro exemplo é a expressão “surgir dependente.” Os gelugpas dizem que tudo existe em termos de
surgir dependente, significando que as coisas existem como “isto” ou “aquilo” dependentemente
das palavras e dos conceitos serem capazes de as rotular validamente como “isto” ou “aquilo”.” Os
fenômenos conhecíveis são o que as palavras e os conceitos usados para eles se referem. Nada
existe do lado dos fenômenos conhecíveis que, pelo seu próprio poder, lhes dá as suas existências e
identidades. Assim, para os gelugpas, a existência em termos do surgir dependente é equivalente ao
vazio: a ausência total de maneiras impossíveis de existir.
Os kagyupas, por outro lado, dizem que o verdadeiro fenômeno último está para além do surgir
dependente. Parece que eles estão afirmando que o último tem uma existência independente,
estabelecida pelo seu próprio poder, e não apenas uma existência que surge dependentemente. Esse
não é o caso. Os kagyupas, aqui, estão usando o “surgir dependente” em termos dos doze elos do
surgir dependente. O verdadeiro fenômeno último ou mais profundo está para além do surgir
dependente no sentido de que ele não surge em dependência do não-apercebimento da realidade (da
ignorância). Os gelugpas também aceitariam essa afirmação. Eles estão apenas usando o termo
“surgir dependente” com uma definição diferente. Muitas das discrepâncias nas afirmações das
escolas tibetanas surgem devido a tais diferenças nas definições de termos essenciais. Esta é uma
das fontes principais de confusão e má compreensão.
Sumário
Estas são algumas das principais áreas de diferenças sobre pontos filosóficos profundos e de
meditação. Nós poderíamos entrar em grandes detalhes sobre estes pontos, mas penso que é muito
importante nunca perdermos de vista o fato de que cerca de oitenta por cento, ou mais, das
características das escolas tibetanas são as mesmas. As diferenças entre as escolas são, na sua maior
parte, devidas à forma como elas definem os termos técnicos, o ponto de vista a partir do qual eles
explicam, e que abordagem à meditação usada para se obter uma consciência de luz clara da
vacuidade.
Práticas Preliminares
Ademais, o treinamento geral que os praticantes recebem em cada uma das tradições é o mesmo. Ē
só que os estilos de algumas das práticas são diferentes. Por exemplo, a maioria dos kagyupas,
nyingmapas e sakyapas completam todo o conjunto das preliminares para a prática do tantra (as
cem mil repetições de prostrações, e assim por diante) como um grande evento durante a parte
inicial do treinamento, frequentemente com um retiro separado. Os gelugpas tipicamente encaixam-
nas, uma de cada vez, nos seus programas, geralmente depois de terem acabado os seus estudos
básicos. No entanto, os praticantes de todas as tradições repetem o conjunto todo das preliminares
no início de um retiro de três anos.
Conclusão
É muito importante mantermos um ponto de vista não-sectário no que diz respeito às cinco
tradições tibetanas de Budismo e de Bon. Como Sua Santidade o Dalai Lama sempre enfatiza, estas
diferentes tradições compartilham o mesmo objetivo final: todas elas ensinam métodos para
alcançarmos a iluminação, para beneficiarmos os outros tanto quanto possível. Cada tradição é
igualmente eficaz em ajudar os seus praticantes a alcançar este objetivo e, assim, elas se encaixam
harmoniosamente, mesmo que não seja de maneira simples. Ao fazermos um estudo comparativo
das cinco tradições, mesmo a nível introdutório, nós aprendemos a apreciar os pontos fortes e
únicos da nossa própria tradição e a ver que cada tradição tem as suas próprias características
especiais. Se nós desejamos transformarmo-nos em budas e beneficiar a todos, precisamos
eventualmente aprender a gama completa das tradições budistas e como todas elas se encaixam, de
modo a sermos capazes de ensinar pessoas de inclinações e de capacidades diferentes. Se não,
corremos o risco de “abandonar o Dharma,” que significa desacreditar um ensinamento autêntico do
Buda, incapacitando-nos, deste modo, de sermos capazes de beneficiar aqueles a quem o Buda viu
que os ensinamentos se adequam.
É importante, no final, seguirmos uma só linhagem na nossa prática pessoal. Ninguém podem
alcançar o topo de um edifício tentando subir cinco escadas diferentes simultaneamente. Não
obstante, se as nossas capacidades permitirem, estudar depois as cinco tradições ajuda-nos a
aprender os pontos fortes de cada uma. Isto, por sua vez, pode ajudar-nos a ganhar claridade sobre
estes pontos nas nossas próprias tradições quando eles aqui recebem um tratamento menos
elaborado. Isto é o que Sua Santidade o Dalai Lama e todos os grandes mestres sempre enfatizam.
É também muito importante vermos que para qualquer coisa que fazemos - seja na esfera espiritual
ou na esfera material - há talvez dez, vinte, ou trinta maneiras diferentes de se fazer exactamente a
mesma coisa. Isto ajuda-nos a evitar o apêgo à maneira em como fazemos algo. Somos capazes de
ver a essência mais claramente, em vez de desenvolvermos a atitude de que “esta é a maneira
correcta de fazer as coisas, porque é minha maneira correta !”
Que perguntas vocês gostariam de fazer?
Perguntas
Pergunta: Que tradição você segue?
Alex: Sua Santidade o Dalai Lama e um dos seus professores, Serkong Rinpoche, o meu guia
espiritual principal, sempre me encorajaram a seguir os seus exemplos, que é estudar e praticar
todas as tradições tibetanas tanto quanto eu puder, mas manter a ênfase principal na Gelug. Eu
tentei seguir esse conselho no melhor das minhas capacidades.
Pergunta: Não é confuso fazer-se práticas de meditação de muitas tradições diferentes? Não é
confuso fazer-se práticas de muitas figuras búdicas diferentes até dentro da mesma tradição?
Alex: Há maneiras diferentes de abordar a prática budista, particularmente o tantra. Um provérbio
tibetano diz: “os indianos praticaram com uma figura búdica e eram capazes de realizar cem;
enquanto os tibetanos praticam cem figuras e não são capazes de realizar nenhuma!” O significado
deste provérbio é que é importante nos aprofundarmos uma prática para sermos capazes de chegar a
algum lugar com muitas. A extensão da nossa prática depende das nossas capacidades individuais.
Para avaliarmos as nossas capacidades, precisamos olhar honestamente para nós e termos em
consideração o conselho dos nossos professores.
Se nós formos capazes de nos envolver em práticas de tantra de várias linhagens tibetanas, é
importante, como Sua Santidade avisa, não fazermos delas uma caldeirada. Nós precisamos fazer
cada prática separadamente, de acordo com a sua própria tradição, na sua própria maneira. Se
acharmos que fazer muitas práticas se torna confuso, Sua Santidade recomenda que é melhor não
pôrmos uma ênfase igual em todas elas. Se tivermos recebido muitos empoderamentos e práticas de
muitas linhagens ou até para muitas figuras búdicas dentro da mesma linhagem e acharmos isto
confuso, nós podemos apenas manter a conexão cármica com algumas delas recitando o mantra
diariamente três vezes. Podemos então aprofundar apenas as práticas para as quais temos a melhor
compreensão, e com as quais sentimos ligações mais fortes.
Eu acredito que a capacidade de envolvimento em muitas práticas depende do nosso nível de
compreensão da teoria geral do tantra. Se nós compreendermos a teoria correctamente, podemos ver
como cada uma das práticas se encaixa com as outras. Se não, a nossa prática do tantra corre o risco
de tornar-se esquizofrénica.
Pergunta: Por favor, você podia falar acerca do conselho de Sua Santidade o Dalai Lama contra a
mistura de práticas?
Alex: Uma razão para não se misturar ou adulterar as práticas é mostrar respeito pela linhagem e
pela tradição. Misturá-las seria como entrar numa igreja católica e fazer três prostrações ao altar,
quando todos os outros se estavam a ajoelhar e a se benzer. O quinto Dalai Lama é um bom
exemplo de alguém que dominou várias tradições, mas sem nunca as ter misturado. Quando ele
compôs textos Gelug, escreveu-os completamente dentro do estilo Gelug; quando compôs textos
Sakya, fê-lo no estilo Sakya do começo ao fim; e quando escreveu textos Nyingma, o estilo era
totalmente Nyingma. Nos textos Nyingma, elogia-se Padmasambhava no início, e não Tsongkhapa.
Uma outra razão para manter a pureza de cada prática é, por exemplo, que dentro da prática de
visualização da sadhana de uma tradição, as partes componentes da prática, o vocabulário e a
maneira de expressão são todas consistentes. Elas encaixam harmoniosamente como as
componentes de um modelo e marca específica de um automóvel. Dentro da tradição Sakya da
prática de Hevajra, por exemplo, a prece dos sete ramos omite a súplica aos budas para não
falecerem. Isto é porque os ensinamentos Sakya de lamdray (os caminhos e os seus resultados)
enfatizam as manifestações sambhogakaya dos budas, que permanecem até que cada ser esteja livre
de todo o sofrimento, em vez das aparições do nirmanakaya que ensinam a impermanência com a
morte. A ênfase no sambhogakaya também se reflete na forma como o praticante estabiliza a
visualização de si próprio como figura búdica e recebe os empoderamentos. Misturar, numa prática
Sakya de lamdray, uma prece de sete ramos no estilo Gelug, que inclui suplicar aos budas para não
se irem embora, seria como tentar encaixar uma peça de Volkswagen num motor Ford.
Simplesmente não funcionaria. .
Pergunta: Não existem exemplos em que as práticas das diferentes linhagens tenham sido
combinadas?
Alex: Em alguns casos, quando as práticas foram introduzidas de uma linhagem para outra, as suas
formas originais foram mantidas puras. Por exemplo, a prática Gelug de Hayagriva Yangsang dos
textos-tesouro, revelados pelo quinto Dalai Lama, mantém a mesma pureza no estilo de prática de
qualquer sadhana Nyingma.
Em alguns casos, uma parte de certa prática foi mudada pela prática da linhagem na qual ela foi
introduzida. Por exemplo, a prática de Vajrayogini, trazida para a tradição Gelug, vinda da Sakya,
partilha em comum a maioria das características com as sadhanas típicas da tradição Gelug. Ela
apenas substitui o estilo Gelug da meditação na vacuidade pelo estilo Sakya.
Às vezes, no entanto, encontramos híbridos. Por exemplo, a prática Karma Kagyu do Guru
Rinpoche, contém a maioria dos componentes de uma sadhana Nyingma, mas a terminologia e a
abordagem à meditação na vacuidade é tipicamente Karma Kagyu. Na prática da sadhana do Karma
Pakshi (o II Karmapa), embora o Guru Rinpoche se sente no coração do Karma Pakshi e uma das
oferendas se assemelhe ao estilo Nyingma, a maior parte do restante da prática é tipicamente Karma
Kagyu. A característica hibrida principal é a visualização de nós próprios como uma figura búdica
na forma de um grande mestre da linhagem. No entanto, para fazer quaisquer sínteses, alguém deve
ser um supremo mestre com sabedoria de vasto alcance. . Não é tabu fazê-lo, mas requer um grande
cuidado. Para seres ordinários tais como nós, fazer novas sínteses provavelmente conduzirá apenas
à confusão.
Pergunta: Se a nossa prática principal for a Gelug, mas se nós também gostarmos de praticar
dzogchen, qual seria a melhor maneira de o fazer?
Alex: A melhor maneira é praticar dzogchen como uma meditação separada. É como na escola:
quando nós aprendemos matemática, nós aprendemos matemática; quando aprendemos
composição, aprendemos composição. Vamos a uma classe de cada vez, separadamente. No fim,
tudo o que nós aprendemos encaixa no nosso próprio desenvolvimento.
Para muitas pessoas, praticar uma variedade de métodos é demais, por isso não há nenhuma
necessidade de fazer isto. O melhor é persistir com um estilo de prática, apreciando a validez da
grande diversidade de métodos budistas. Se assim não for, podemos ir a outro centro de Dharma,
encontrar outros praticantes, e ver que eles estão fazendo algo ligeiramente diferente do que nós
fazemos. Por exemplo, como seguidores de uma tradição tibetana, podemos ir a um centro Zen e
ver a maneira como eles fazem a prostração. As nossas orelhas esticam-se para cima, como um
coelho à frente da luz de um carro, e ficamos chocados, “Isso está errado! Têm as palmas das mãos
no assoalho viradas para cima em vez de para baixo; eles vão para o inferno!” O nosso choque e
horror devem-se a não termos uma instrução budista suficientemente abrangente. Todos os budistas
chineses fazem prostrações dessa maneira. Embora alguns mestres tibetanos possam adotar uma
posição fundamentalista em relação às suas tradições, não há necessidade nenhuma de seguir os
seus exemplos.
Pergunta: Como é que sabemos qual a melhor tradição para nós?
Alex: Não é fácil. No Tibete, as pessoas iam para os mosteiros e para os professores do vale mais
próximo. Aqueles que achavam que isso não era bastante e que queriam estudar mais, iam a outro
lugar depois da sua educação budista básica. Por exemplo, um dos meus professores, Geshe
Ngawang Dhargyey, enquanto pequena criança, entrou para um mosteiro Sakya local mas quando
cresceu ele fez os seus estudos principais em mosteiros Gelug, primeiro no seu distrito e depois bem
longe, em Lhasa.
Agora, a situação aqui no ocidente é muito diferente. Em muitas cidades, existe uma grande
variedade de opções , e por isso é possível freqüentar vários centros de Dharma. Eventualmente,
contudo, precisaremos escolher uma linhagem onde focalizar o nosso estudo e prática principais.
Seria uma pena perdermos todo o nosso tempo indo de loja em loja sem nunca comprar nada. Se
nos sentirmos automaticamente bem e à vontade com uma certa linhagem ou professor , isso é sinal
que temos uma boa conexão cármica. “Sentimo-nos bem.”
É importante termos uma atitude aberta ao escolher uma linhagem ou um professor, e não termos a
atitude, “eu só vou ao meu próprio centro de Dharma. Não quero ir a nenhum outro centro e nem
quero ouvir outro professor.” Eu penso que isso nos privaria de muitas excelentes oportunidades de
aprendermos mais. Por outro lado, não é necessário irmos a tudo. É melhor exercitar uma
consciência discriminadora e seguir o “caminho do meio.”
Se vivermos numa área remota, com poucas opções disponíveis para o estudo de Dharma,
precisamos talvez seguir o exemplo tradicional tibetano. Podemos começar por ir aos centros e
professores mais próximos e mais convenientes. Se eles forem adequados para nós, isso é ótimo. Se
os acharmos insatisfatórios, aprendemos respeitosamente tanto quanto possível e, se a oportunidade
se apresentar, podemos ir fazer estudos adicionais e praticar em outro .
Se este for o padrão que escolhemos seguir, é importante ignorarmos quaisquer sentimentos que
possamos ter sobre isso, por exemplo, que o fato de irmos a outros professores, centros, ou até
linhagens seja um ato de deslealdade e de traição aos nossos próprios centros ou professores locais.
Passar-se do ensino secundário à universidade não é uma traição à nossa escola secundária nem aos
seus professores. O mesmo é verdade em relação à transferência para uma outra universidade se nós
acharmos que a primeira em que entramos não fornece o programa ou o nível do estudo que nós
queremos. Se mantivermos o respeito e a apreciação para com os professores que já tivemos e pela
sua instrução, não há necessidade de nos sentirmos culpados nem de culpar ninguém.
Pergunta: Qual é a melhor maneira de considerar as refutações das posições filosóficas de outras
tradições que nós encontramos nos textos de cada uma das escolas tibetanas?
Alex: Sua Santidade o Dalai Lama, e alguns dos grandes mestres do passado, enfatizaram que,
embora as escolas tibetanas - e até dentro da mesma escola, os vários livros didáticos monásticos -
tivessem diferenças de opinião sobre pontos menores, as suas posições não são contraditórias em
relação às questões mais importantes. Além disso, como Sua Santidade também indica, vários
grandes mestres do passado não eram especialmente dotados em explicar as suas experiências
meditacionais de uma maneira lógica e consistente. No entanto, se examinarmos imparcialmente as
suas práticas e realizações, acabamos por concluir que eles conseguiram resultados autênticos.
Muitos textos contêm debates calorosos entre vários eruditos, não só entre uma escola e outra, mas
também dentro da mesma escola. Às vezes, observações inflamatórias e rudes pontuam os textos.
Podemos considerar estes debates como batalhas entre lados hostís, mas tal atitude impede-nos de
beneficiar do conteúdo do debate. Se examinarmos de um ponto de vista mais desapegado, podemos
ouvir o que está implícito nas suas palavras, por exemplo, “se você disser que a mente é
permanente, sem definir claramente o que quer dizer com permanente, então algumas pessoas vão
compreender o termo segundo a minha definição. Assim, vão ficar extremamente confusas, porque
quando você define “permanente” como eu, e aplica essa definição à mente, elas vão chegar a uma
conclusão absurda e inconsistente.” Eu penso que este é um tipo de conclusão imparcial a que
podemos chegar a partir desses debates fortemente exprimidos.
Pergunta: Vários lamas budistas tibetanos falaram ou escreveram muito negativamente sobre a
tradição Bon. Você podia comentar sobre isto?
Resposta: Os preconceitos contra os bonpos têm origem no passado, na altura da antiga conquista
de Zhang-zhung, a terra natal do Bon no Tibete ocidental, e da sua incorporação no primeiro
império tibetano no Tibete central. Originalmente, o termo “bonpo” referia-se aos ministros e a
outros oficiais que tinham vindo de Zhang-zhung, e não àqueles que realizavam os rituais Zhang-
zhung na corte imperial. O preconceito contra os bonpos foi originalmente motivado pela política, e
não por crenças ou práticas religiosas. Sua Santidade enfatiza que este preconceito é divisivo e
negativo. Seria melhor se os budistas tibetanos trabalhassem para eliminá-lo das suas mentalidades.
Se examinarmos do ponto de vista da psicologia de Jung, penso que poderiamos obter uma
compreensão do desenvolvimento histórico do preconceito anti-Bon. Com o passar do tempo, a
prática de se ver o professor espiritual como um buda recebeu uma ênfase cada vez maior. Assim
que a intensidade da chamada “devoção ao guru” ia aumentando, muitos praticantes, que ainda não
tinham atingido níveis estáveis de equilibrio emocional, eram incapazes de digerir a prática de uma
maneira saudável. Quanto mais eles forçavam e projetavam o lado da perfeição aos seus professores
mais poder davam ao lado negativo escondido - o que Jung chamou “a sombra.” Eles projetavam
isto nos chamados “inimigos do Dharma.” Muita da projeção caiu nas cabeças dos bonpos.
Como o meu bom amigo, o Dr. Martin Kalff, um professor de budismo tibetano e psicólogo
Jungiano me indicou, o relato de Shakyamuni Buda a meditar sob a árvore bodhi sendo atacado por
Mara, a personificação da interferência e da negatividade, indica este princípio psicológico. O foco
consciente nos nossos lados positivos traz o foco inconsciente nos nossos lados negativos como
contrapeso. Só quando Shakyamuni demonstrou que Mara já não o poderia afetar é que ele alcançou
a iluminação.
É significativo que as linhagens budistas com a devoção ao guru mais fanáticas são frequentemente
também aquelas com as práticas de protector mais ferozes e sangrentas. Quanto mais parecem
adorar os seus gurus, mais parecem tornar-se fixados em destruir os inimigos do Dharma. Esta
polarização é muito insalubre. É muito importante que, como praticantes ocidentais, nós tomemos
cuidado para não cair nesta tendência de fazer dos gurus da nossa linhagem uns deuses e dos
professores das outras linhagens e religiões uns diabos.
Pergunta: Qual é a maior linhagem tibetana?
Alex: A tradição Gelug tem o maior número de seguidores no Tibete e na Mongólia. Entre os
tibetanos em exílio, a Gelug também tem o número mais elevado de aderentes. Entre ocidentais e
asiáticos do leste que não eram tradicionalmente budistas tibetanos, a Karma Kagyu parece ser o
grupo maior. Contudo, no governo tibetano em exílio, cada tradição tibetana tem igual
representação.
Pergunta: A Sua Santidade alguma vez expressou algum pensamento sobre a utilidade de preservar
as cinco tradições tibetanas ou sobre os benefícios de as combinar numa tradição?
Alex: Nem o Dalai Lama nem qualquer outro líder espiritual tibetano têm poder ou autoridade para
fazer tais mudanças. Sua Santidade sempre apóia a diversidade de tradições espirituais a fim de
servir os gostos variados das pessoas. Não obstante, na conferência não-sectária que já mencionei,
Sua Santidade recomendou o estabelecimento de um comitê para selecionar um conjunto comum de
orações de entre as traduções tibetanas de orações budistas indianas - por exemplo, a oração de
Shantideva - que todas as tradições tibetanas poderiam aceitar como liturgia comum quando elas se
reunissem. A capacidade de rezarem juntas não eliminaria as tradições, mas, pelo contrário, as
aproximariam. A sugestão de Sua Santidade seria indubitavelmente útil também para os centros
budistas no ocidente.
Obrigado.
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Nove Veículos
O Nyingma (período antigo de tradução) divide os ensinamentos do Buda em nove veículos (theg-
pa dgu): três relacionados com os sutras e seis relacionados com os tantras. Isto difere das escolas
Sarma (período novo de tradução) de Kagyu, Sakya e Gelug, que dividem os ensinamentos em três
veículos de sutras e quatro veículos de tantra.
Os três veículos do sutra são os dos shravakas, dos pratyekabudas e o veiculo do bodisatva.
Os dois primeiros estão na categoria do Hinayana, enquanto que o último pertence ao
Mahayana.
Os três tantras externos são kriya, charya e yoga.
Os três tantras internos são mahayoga, anuyoga e atiyoga ou dzogchen.
[Veja: Os Termos Hinayana e Mahayana. Veja também: As Características Básicas do Tantra.]
Os seis primeiros veículos em Nyingma e Sarma são os mesmos. Os três veículos Nyingma de
tantra internos são quase equivalentes à categoria Sarma de anutarayoga tantra. Isto porque ambas
as categorias trabalham com um nível de atividade mental (mente) mais sutil do que o utilizado nos
veículos inferiores para compreender a terceira e quarta verdades nobres – as verdadeiras paragens
para a primeira e segunda nobres verdades (o sofrimento e suas causas) e os caminhos verdadeiros
da mente que produz e possui paragens verdadeiras. Causas verdadeiras são: a confusão sobre a
realidade (ignorância) e sobre os níveis efêmeros de atividade mental nas quais operam. Por serem
estes níveis efêmeros, podem ser removidos.
Rigpa
A prática de dzogchen enfatiza o acesso a rigpa (rig-pa, consciência pura), o nível mais sutil da
atividade mental. Rigpa é um fenômeno não afetado (‘dus-ma-byed), não no sentido de ser estático,
mas no sentido de não ser artificial ou fabricado como algo temporário e novo. Está
primordialmente presente, é continuo e perpétuo. Não está manchado por atividade mental
passageira – em outras palavras, rigpa não as tem.
Rigpa é completo com todas as boas qualidades (yon-tan) de um Buda, como a compreensão e a
compaixão. Estas são inatas (lhan-skyes) a rigpa, o que significa que surgem juntas em cada
momento de rigpa, e primordiais (gnyugs-ma), no sentido de não terem um começo.
Não necessitamos criar boas qualidades do nada, ou apenas de potenciais. Assim como a qualidade
inata do espelho de refletir, que está presente mesmo quando sua superfície está totalmente
obscurecida pela poeira, não precisamos adicionar nada para que as boas qualidades do rigpa
funcionem. Temos somente que remover as manchas passageiras, a poeira. Antes da iluminação,
porém, mesmo quando o rigpa já estiver manifesto, suas boas qualidades ainda não estarão todas
evidentes ao mesmo tempo.
Entre as qualidades inatas de Rigpa está a consciência profunda que surge de si mesma (rang-byung
ye-shes), também conhecida como consciência profunda reflexiva (rang-byung ye-shes). Esta é a
consciência da própria face de rigpa (rang-ngo-shes-pa) como sendo a face de Samantabhadra
(Kun-tu bzang-po, Aquele que é Totalmente Excelente, dotado de todas as boas qualidades).
Quando a consciência profunda reflexiva não está manifesta, por causa do fator estupefação que
surge automaticamente (rmongs-cha, estupidez, deslumbramento), que obscurece o conhecimento
de rigpa de sua própria natureza, a atividade mental se converte em sem (sems, consciência
limitada) e já não é mais rigpa.
Fator fugaz de estupefação é outro nome para a falta de consciência que surge automaticamente
(lhan-skyes ma-rig-pa) em relação aos fenômenos. Este não é na verdade uma atitude perturbadora,
mas apenas nominal (nyon-mongs-kyi ming-btags-pa), já que pertence à categoria de
obscurecimentos relativos a tudo que se pode conhecer, e que impedem a onisciência (shes-sgrib).
No mais, o não-conhecimento (ignorância)
Aqui não tem o sentido de cognição invertida e aferramento da aparência cognitiva das
coisas (phyin-ci-log-par 'dzin-pa), percebendo-as como existindo de um modo que não
corresponde à sua realidade, e o aferramento a elas como existindo verdadeiramente desta
maneira.
Nem sequer é o não-conhecimento no sentido de não se dar conta (mi-shes-pa) de que as
aparências dualistas são falsas.
Mais exatamente, é o não-conhecimento no sentido de não conhecer sua própria natureza.
Ele não “reconhece sua própria face”.
A Etapa Atiyoga
O atiyoga possui duas fases extremamente avançadas de prática com rigpa: lograr (khregs-chod) e
saltar (thod-rgal).
A prática de lograr enfatiza a natureza essencial de pureza primordial de rigpa. Nesta etapa,
acessamos rigpa, com sua cognição não-conceitual da vacuidade, e alcançamos um caminho
mental de visão (mthong-lam, caminho da visão), o que nos torna um arya (‘phags-pa). Isto
equivale a alcançar a etapa de clara luz em anutarayoga tantra. Ainda que ambas as verdades
sejam inseparáveis e surjam simultaneamente em rigpa, somente sua verdade mais profunda
– isto é, sua pureza primordial -, destaca-se nesta etapa. A verdade superficial de rigpa (sua
criação de aparências) e todas as demais qualidades não estão ainda completamente
desenvolvidas.
Depois da etapa de lograr, a prática de saltar enfatiza a natureza influente da capacidade de
resposta de rigpa e sua natureza funcional de estabelecer aparências espontaneamente. Ao
permanecer repetidamente em rigpa, cortamos a continuidade de sem, que é a condição
imediatamente precedente (de-ma-thag rkyen) para que nossa experiência seja composta de
nossos cinco fatores agregados ordinários (phung-po lnga). Conseqüentemente, rigpa
espontaneamente dá origem a uma aparência de si mesmo como um corpo de arco-íris (‘já’-
lus). Ambas as verdades são inseparáveis e surgem simultaneamente, mas aqui a verdade
superficial de rigpa - sua capacidade de resposta e o estabelecimento espontâneo de
aparências - é mais proeminente. Esta etapa equivale à etapa do par unificado do corpo
ilusório e da clara luz, e um caminho mental de familiarização (sgom-lam, caminho da
meditação).
Existem dois tipos de praticantes: os que avançam por etapas (lam-rim-pa) e aqueles para os quais
tudo ocorre de uma só vez (cig-car-ba). Depois de obter a fase de lograr, os primeiros progridem
através das etapas distintas da fase de saltar, uma a uma, percorrendo os dez níveis bumi mentais
(as-bcu) dos arya bodisatvas, até alcançar a iluminação. Os últimos conseguem tudo de uma vez, a
fase de lograr, de saltar, até a iluminação, devido à enorme quantidade de acumulação de força
positiva de iluminação (mérito) de suas práticas intensivas anteriores, que frequentemente já surgem
de vidas anteriores.
Etapa Mahayoga
Como preparação para a etapa atiyoga da prática de dzogchen, necessitamos da prática equivalente
ao estado de geração, como enfatizada na mahayoga. Por isto, a atiyoga é frequentemente conhecida
pelo nome de maha-atiyoga.
A característica mais importante da prática do estado de geração do mahayoga é a dos três
samadhis (ting-nge-‘dzin gsum, três absorções meditativas), nos quais trabalhamos com os três
aspectos de rigpa em nossas imaginações:
O samadhi da base na natureza autentica (gzhi de-bzhin-nyid-kyi ting-nge-‘dzin, de-ting).
Concentramo-nos imaginariamente em uma aproximação da pureza primordial de rigpa.
Fazemos isto, por exemplo, recordando-nos que a pureza primordial nem surge de parte
alguma, nem reside em parte alguma, nem vai a parte alguma. Ē um estado de consciência
que está livre de ser patético e débil (lham-me lhen-ne), livre de ser inquieto e explosivo
(‘ar-ma ‘ur-ma), livre de inclinar-se a este ou àquele lado (zur), e livre de fazer ou
abandonar planos (rgya-chad). Em outras palavras, este é um estado de receptividade aberta
(klong), que é a base para a capacidade de ajudar aos demais como um buda.
O samadhi do caminho que tudo ilumina (lam kun-snang-ba’i ting-nge-‘dzin, snang-ting).
Movidos pela compaixão ante o desconhecimento que têm seres limitados da pureza
primordial de seu rigpa, completo com todas suas qualidades, concentramo-nos em uma
aproximação da capacidade de resposta de rigpa. Este é o movimento mental sutil que
aparece e responde, que é o caminho para ajudá-los.
O samadhi resultante na causa (' bras-bu-rgyu'i-ting-nge-'dzin, rgyu-ting). Aqui, surgimos
como uma silaba semente, por exemplo, hum, que é a causa para manifestarmo-nos como
uma figura búdica. Concentramo-nos na visualização desta silaba que representa com
aproximação a natureza funcional de rigpa de estabelecer aparências espontaneamente.
Imaginar que aparecemos numa forma visível que se transforma em uma figura búdica, traz
o resultado real de ajudar os seres limitados.
A prática dos três samadhis do mahayoga purifica nossa experiência ordinária da morte, do bardo e
do renascimento.
A morte é como a pureza primordial, carente de níveis grosseiros de atividade mental e de
vento de energia.
O bardo é como a capacidade de resposta, com um ligeiro movimento dos ventos de energia
sutis.
O renascimento é como estabelecer aparências espontaneamente, com a aparência de uma
semente que se transformará em um corpo completo.
Em outras tradições tibetanas, por exemplo, a Gelug, a prática equivalente ao estado de geração
chama-se adotar os caminhos mentais para alcançar os três corpos de um Buda (sku-gsum
lam-‘khyer):
Adotar a morte como um caminho mental para alcançar o dharmakaya,
Adotar o bardo como um caminho mental para alcançar o sambogakaya,
Adotar o renascimento como caminho mental para alcançar o nirmanakaya.
Etapa de Empoderamento
Para obter a capacidade de praticar mahayoga e atiyoga com sucesso, necessitamos receber um
empoderamento (dbang, “wang”, iniciação) e manter os votos conferidos naquela ocasião.
[Ver: As Características Básicas do Tantra.]
Em geral, o empoderamento tântrico ativa os fatores da nossa natureza búdica através da
experiência consciente de um estado mental específico, junto com compreensão, durante o ritual; e
por meio de sentir-se exaltado pela inspiração (byin-rlabs, bendições) do mestre tântrico.
Neste caso, experienciar algo conscientemente não se refere a ter uma experiência mística. Em vez
disto, refere-se à geração consciente de um estado mental acompanhado de compreensão, com ou
sem esforço.
No sistema Gelug, a experiência consciente refere-se a certo nível de uma consciência bem-
aventurada da vacuidade.
Nos sistemas não-Gelug, está focalizada tanto na natureza búdica de nossos mestres
tantricos como também de nós mesmos, com certo nível de compreensão da natureza búdica.
No dzogchen, está focalizada especificamente na base dos três aspectos de rigpa como
fatores da natureza búdica tanto de nossos mestres tântricos como de nós mesmos.
Três fatores circunstanciais que correspondem aos três aspectos de rigpa contribuem para a nossa
compreensão profunda e consciente da natureza búdica:
O samadhi (absorção meditativa) do mestre tântrico corresponde à pureza primordial,
Os mantras que o mestre tântrico repete correspondem à capacidade de resposta e à
comunicação compassiva,
Os objetos rituais que o mestre tântrico utiliza durante o ritual correspondem às aparências
estabelecidas espontaneamente.
Para obter a inspiração de um mestre tântrico de forma mais completa, precisamos focalizar-nos
com concentração e compreensão nestes três fatores circunstanciais. Sustentamos a experiência
consciente que alcançamos, ao receber e manter os votos de bodisatva e os votos tantricos.
Preliminares Internas
Para que possamos ser suficientemente receptivos e maduros para receber um empoderamento, e
não somente estar assistindo e não experienciando nada, precisamos ter primeiro praticado as seis
preliminares internas (nang-gi sngon-‘gro). Tal qual foram esquematizadas pelo mestre do século
XIX, Dza Patrul (rDza dPal-sprul O-rgyan 'jigs-med dbang-po), no Guia de Instrucoes de Meu
Mestre Espiritual (Samantabadra) Totalmente Excelente (Kun-bzang bla-ma'i zhal-lung, palavras
perfeitas de meu excelente mestre), elas são, em ordem inversa:
Guru yoga, na qual reconhecemos e nos focalizamos na natureza búdica tanto de nossos
mestres espirituais como na nossa própria, e criamos um elo ou vinculo entre os dois.
Poderemos fazer isto com êxito, com a base de previamente ter feito as oferendas kusali de
chod (chod), nas quais imaginamos que cortamos e oferecemos nosso corpo ordinário, o
qual se origina e está acompanhado do não-saber (ignorância).
Poderemos fazer isto com êxito, com a base de haver feito, de antemão, as oferendas do
mandala, nas quais desenvolvemos a generosidade e fortalecemos nossa rede de força
positiva, construtora da iluminação (acumulação de méritos) ao imaginar que oferecemos o
universo.
Poderemos fazer isto com êxito, com a base de haver praticado de antemão a recitação de
Vajrasatva , para purificar os obstáculos grosseiros que poderiam impedir-nos de conseguir
fazer uma rede de força positiva, construtora da iluminação.
Poderemos fazer isto com êxito, com a base de haver cultivado previamente a bodhicitta e
as atitudes de largo alcance (phar-byin, Sanscr. Paramita, perfeições), de modo a estar
aspirando à iluminação e dedicando nossas ações construtivas para consegui-la, para assim
beneficiar a todos os demais, tanto quanto possível.
Poderemos fazer isto com êxito com a base de haver dado previamente à nossa vida a
direção segura do refugio, o que teria sido feito junto com prostrações que mostram respeito
aqueles que já realizaram rigpa e à nossa própria natureza búdica que nos permitirá
consegui-la.
Preliminares Externas
Somos capazes de praticar as seis preliminares internas com a base de haver praticado
anteriormente as seis preliminares externas (phyi’i sngon-‘gro).
Novamente, em ordem inversa:
Construir e manter uma relação saudável com o mestre espiritual, como sendo um exemplo
vivo de uma direção segura.
Seremos capazes de conseguir isto com a base de haver entendido previamente o que são os
benefícios da liberação, de maneira que buscaremos um exemplo disto.
Somente pensaremos na liberação quando houvermos compreendido previamente a causa e
o efeito kármico e o fato de que somos capazes de liberar-nos disto.
Somente pensamos no karma porque é a causa das faltas do samsara.
Somente vemos isto quando previamente tivermos reflexionado sobre a morte e a
impermanência e do fato de que os problemas e sofrimentos continuam vida atrás de vida.
Reflexionamos sobre a morte somente quando tivermos apreciado previamente nosso
precioso renascimento humano.
Consciência Perturbadora
A consciência perturbadora (nyon-yid, consciência enganosa, consciência contaminada) acompanha
a alaya dos hábitos, e ambas são consideradas como tipos de consciências primarias. Deste modo,
na escola Nyingma, sem inclui oito classes de consciências primárias, cinco sensoriais, uma mental,
uma perturbadora, e o alaya dos hábitos.
A consciência perturbadora co ncebe o alaya dos hábitos como um “eu” inalterado, monolítico e
que existe independentemente, que governa sobre os fatores agregados da experiência, tais como o
corpo e a mente. Isto leva à atitude perturbadora de conceber o “eu” como “eu, o experienciador,
aquele que possui o controlador daquilo que for conhecido”.
Mais detalhadamente, a cognição não-conceptual através das seis classes de consciência dura
somente um milissegundo. A consciência perturbadora não funciona neste momento. Porém,
imediatamente depois deste milissegundo, com a cognição conceptual (mental), a consciência
perturbadora dá origem à aparência, à percepção, e ao aferramento (crença em) um chefe
aparentemente independente como sendo um “eu”. Logo, dá origem à aparência dualista de “eu,
aquele que experiência algo, aquele que possui, que controla” e “o objeto que eu experiencio,
possuo, controlo”. Baseados nisto, experienciamos as emoções e atitudes perturbadoras, os
impulsos do karma e o sofrimento.
A Diferença entre o Alaya Para os Hábitos na Tradição
Nyingma e o Alayavijnana na escola Chitamatra
O budismo tibetano classifica as visões filosóficas das principais escolas budistas indianas em
quatro sistemas de princípios (grub-mtha’), como eram estudados nas universidades monásticas da
Índia, quando os tibetanos começaram a estudar o budismo nestes lugares, no oitavo século. Porém,
cada uma das quatro tradições tibetanas explica as afirmações dos quatro sistemas de princípios de
maneira diferente. Inclusive dentro de uma mesma tradição tibetana, vários mestres apresentam os
quatro de forma diferente, e alguns mestres, como Tsongkhapa, explicaram alguns dos pontos em
seus textos de maneiras diferentes, em distintas épocas de suas vidas.
Dentro dos quatro sistemas filosóficos, a escola Chitamatra (sems-tsam-pa, mente só) fala do
alayavijnana (kun-gzhi-rnam-shes, a consciência base de tudo, “o armazém da consciência”). Este é
o nível de atividade mental que continua de uma vida à outra, levando consigo todos os hábitos
samsáricos.
Todavia, os ensinamentos dzogchen são apresentados dentro do contexto da escola Madhyamika
(dbu-ma). Ainda que a tradição Nyingma do Madhyamika aceite em suas descrições da verdade
superficial (relacionando-a com sem) muitas das categorias de fenômenos utilizadas na escola
Chitamatra – tais como o alaya, a consciência perturbadora, e a consciência reflexiva (rang-rig) – a
tradição Nyingma apresenta sua forma de existência e algumas de suas características de maneira
diferente.
Quanto ao alaya dos hábitos na tradição Nyingma e ao alayavijnana na tradição Chitamatra, estes
são apresentados na tradição Nyingma da seguinte forma:
A forma de existência do alaya dos hábitos está além das palavras e dos conceitos, além dos
quatro extremos de ter uma existência verdadeira não-imputada, de carecer de uma
existência verdadeira não imputada, de ambas e de nenhuma delas. A escola Chitamatra
apresenta a alayavijnana como tendo uma existência verdadeira não imputada.
O alaya dos hábitos é essencialmente o mesmo que o rigpa base. O alayavijnana não é o
mesmo que a esfera pura da mente (chos-kyi dbyings). As duas estão misturadas juntas,
como leite e água. Quando se dá a liberação, o alayavijnana se separa da esfera pura da
mente, como o leite coagulado, e sua continuação se acaba.
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Introdução
Dzogchen (rdzogs-chen), a grande perfeição, é um sistema de prática Mahayana conduzindo à
iluminação e envolve uma visão da realidade, um modo de meditar e uma forma de comportamento
(lta-sgom-spyod gsum). É encontrado nas primeiras tradições (pré-budistas) Nyingma e Bon.
Bon, de acordo com a sua própria descrição, foi fundado por Shenrab Miwo (gShen-rab mi-bo), em
Tazig (sTag-gzig), uma área de cultura iraniana na Ásia central, e foi levado no século XI a.C. para
Zhang-zhung (Tibete Ocidental). Não há nenhuma forma disto ser validado cientificamente. O Buda
viveu no século VI a.C., na India.
A Introdução do Budismo Pré-Nyingma e dos Ritos Zhang-
zhung ao Tibete Central
Em 645 d.C., Zhang-zhung foi conquistado por Yarlung (Tibete Central). O imperador de Yarlung,
Songtsen-gampo (Srong-btsan sgam-po), teve esposas não só das famílias reais chinesa e nepalesa
(ambas trouxeram alguns textos e estátuas budistas), como também da família real de Zhang-zhung.
A corte adotou rituais funerários e sacrifícios de animais, de Zhang-zhung (Bon), embora Bon diga
que o sacrifício de animais era originário do Tibete e não um costume Bon. O imperador construiu
treze templos budistas em redor do Tibete e do Butão, mas não fundou nenhuns mosteiros.
Esta fase pré-Nyingma do budismo, no Tibete Central, não continha ensinamentos dzogchen. De
fato, é difícil verificar o nível de prática e ensinamentos budistas que foram introduzidos. Eram sem
dúvida muito limitados, como terá sido com o caso dos ritos de Zhang-zhung.
A Perseguição ao Budismo
Em 821, o imperador Ralpachen (Ral-pa-can) (um budista fanático), após ter assinado um tratado
de paz com a China (incluindo sacrifício animal), fez do abade de Samye o líder do Conselho de
Estado. Decretou que cada monge no Tibete fosse sustentado por sete famílias. Também formou um
Conselho para a autorização dos vocábulos a serem incluídos num grande compêndio Sânscrito-
Tibetano de vocábulos de tradução, Mahavyutpatti (Bye-brag-tu rtogs-pa chen-po, Grande [Léxico]
para Compreender [Termos] Específicos), que ele tinha mandado compilar. Nenhum vocábulo
tântrico foi incluído. O imperador e o seu Conselho decidiam o que era traduzido e permitiam a
prática somente das duas primeiras classes do tantra.
Muito provavelmente devido aos excessos do imperador Ralpachen, o seu sucessor, o imperador
Langdarma (gLang-dar-ma), fechou os mosteiros e perseguiu os monges, de 836 a 842. As
bibliotecas budistas e a tradição leiga ngagpa (sngags-pa, tântrica), no entanto, foram preservadas.
Em 913, os primeiros textos-tesouro Bon enterrados foram casualmente recuperados em Samye.
Longchenpa
Inicio do Século XIV (Zabmo Nyingtig)
Linhagem do Tesouro do Sul
Jigmey Lingpa
(Longchen Nyingtig)
Final do Século XVIII
Dodrubchen I
(Longchen Ngondro)
Kongtrul
Jamyang-kyentsey-wangpo
Inicio do Século XIX Mipam
(Rimey)
Peltrul
Final do (Kunzang Lamey Zhellung)
Século XIX Dodrubchen III
Final do
Su Santidade o XIV Dalai Lama
Século XX
1 A Estrutura Budista
Renúncia
Embora tomar um banho quente possa nos fazer sentir um pouco melhor e fazer com que a nossa
tensão subsida um pouco também, isso na verdade não resolve o problema. No dia seguinte
retornamos ao mesmo ritmo frântico, e a nossa tensão e infelicidade retornam. Precisamos progredir
a um segundo nível de motivação. Temos de desenvolver a renúncia.
Como muitas pessoas pensam da renúncia como sendo uma coisa um pouco masoquista, como se
significasse abandonar todo o prazer e conforto na vida, é importante compreendê-la corretamente.
A renúncia tem dois aspectos. O primeiro é uma forte determinação de nos livrarmos
completamente dos nossos problemas e das suas causas. É importante salientar aqui que não
desejamos simplesmente que alguma outra pessoa nos livre, mas que estamos determinados a livrar-
nos por nós mesmos. Além disso, estamos determinados a livrarmo-nos não só dos nossos
problemas, como também das suas causas para que eles nunca mais retornem. Isso não significa
estar simplesmente dispostos a tomar alguma medida superficial, como engolir um comprimido ou
tomar um banho quente, para obter um alívio provisório. Estamos dispostos a sondar muito
profundamente para descobrir e desenraizar a causa mais profunda das nossas dificuldades na vida.
Investigar profundamente para alcançar a verdadeira fonte dos nossos problemas requer uma
enorme coragem. Porém, a força dessa coragem vem de estarmos completamente fartos e enjoados
da pobre qualidade do que estamos experienciando na vida – da nossa infelicidade e tensão
constante, por exemplo. Com renúncia, decidimos que já nos fartamos disso, que temos
definitivamente de nos libertar do seu aperto.
O segundo aspecto corresponde mais à noção ocidental de renúncia. Estamos não só determinados a
nos libertar, mas, a fim de o fazer, estamos dispostos a sacrificar algo. Isto não se refere a sacrificar
algo trivial, como ver televisão ou comer sorvetes, nem a desistir de algo nada trivial, como fazer
amor com a nossa esposa, ou até do relaxamento e divertimento. Precisamos abandonar os nossos
problemas e todos os níveis das suas causas.
Podemos estar dispostos a abrir mão do problema, por exemplo, de ser infeliz, porque é doloroso.
Mas abrir mão até dos primeiros níveis das causas dos nossos problemas é outra coisa. O primeiro
nível da causa dos nossos problemas são os nossos traços auto-destrutivos da personalidade. Temos
de estar prontos a sacrificá-los. Precisamos abdicar os nossos apegos, raiva, egoísmo e, neste caso,
nosso nervosismo, tensão e preocupação constante. Se não estivermos totalmente dispostos a
renunciar a estes fatores perturbadores que estão causando os nossos problemas, nunca nos
poderemos livrar da nossa infelicidade. É muito mais difícil deixarmos de nos preocupar do que
deixarmos de fumar ou de ver televisão. Mas é nisto que focalizamos quando tentamos desenvolver
a renúncia.
Muitas pessoas que abordam a prática do budismo estão dispostas a sacrificar uma ou duas horas do
seu dia a fim de fazer alguma prática ritual ou de meditar. O tempo é relativamente fácil de dar,
mesmo que as suas vidas sejam muito ocupadas. Mas não estão dispostas a mudar nada das suas
personalidades – não estão dispostas a renunciar nada do seu caráter negativo. Com este tipo de
abordagem ao budismo, não obstante quanta meditação fizermos, a nossa prática permanece um
mero passatempo ou um esporte. Não toca nas nossas vidas. De modo a superarmos realmente os
nossos problemas, temos de estar dispostos a mudar – ou seja, a mudar a nossa personalidade.
Precisamos renunciar e livrar-nos dos seus aspectos negativos, que estão nos causando tantos
problemas.
Isto requer ainda mais coragem – uma tremenda quantidade de coragem – seguir em frente
penetrando novo território na nossa vida. Mas a obtenção dessa coragem é definitivamente possível,
mesmo que possa ser um pouco assustadora no início. Por exemplo, a água numa piscina pode estar
muito fria. Mas se, no verão, estivermos com muito calor e transpirando, então, como estamos tão
fartos de nos sentirmos incomodados, ganhamos a coragem de mergulhar na água. Estamos
dispostos a desistir, renunciar, não só à transpiração, como também à causa do disconforto, a saber,
estarmos no sol quente e não na piscina. Quando primeiro mergulhamos na piscina, é claro que está
fria. É um grande choque para o nosso sistema, mas depressa nos habituamos à água. De fato,
descobrimos que é muito mais confortável do estarmos ao lado da piscina a transpirar. Assim, é
muito possível obter-se esta coragem, esta determinação de nos livrarmos das nossas qualidades
negativas e esta coragem de estarmos dispostos a desistir delas.
Também temos de ter a coragem de examinar ainda mais aprofundadamente a fonte dos nossos
problemas. Sermos nervosos, tensos e preocupados, por exemplo, é tanto uma causa da infelicidade
como também o resultado de algo mais profundo. Com o primeiro nível de motivação, modificamos
o nosso comportamento a fim de evitar que o nosso problema piore. Como medida inicial para
reduzir e aliviar o nosso estresse e tensão tentamos deixar de correr de um lado para o outro o
tempo todo e tentamos fazer algo para relaxar. Mas agora, adicionalmente, temos de descobrir o
processo interno que está por trás da tensão.
Quando investigamos mais profundamente, realizamos que o correr de um lado para o outro é o
resultado da nossa tensão ou a circunstância em que a nossa tensão se está manifestando. Contudo,
não é a causa real da nossa tensão. Há algo acontecendo mais profundo que é responsável por
estado mental que temos ao correr de um lado para o outro – estamos constantemente preocupados,
por exemplo. Mas temos também de revolver ainda mais profundamente para descobrir porque
andamos tão preocupados e ansiosos.
Eliminando A Confusão
A natureza da realidade é que os conteúdos daquilo que experienciamos, tal como as visões, sons,
pensamentos e emoções, são todos objetos que surgem dependendo de uma mente. Eles não existem
independentemente "lá fora", separadamente do processo de uma mente que os está experienciando.
O tráfego é completamente diferente da visão de tráfego refletida na retina dos nossos olhos ligada à
cognição visual. O que realmente experienciamos é esta, a visão do tráfego, enquanto que o
anterior, o proprio tráfego, é meramente o que chamamos, na análise budista, a condição focal ou
objetiva para a experiência do tráfego. É o que a experiência tem como objetivo, mas não o que
aparece realmente à mente que o está experienciando. Além disso, a nossa mente dá surgimento não
só à aparência que constitui os conteúdos da nossa experiência, mas também a uma aparência de um
modo de existência destes conteúdos que normalmente não correspondem à realidade.
Normalmente, fixamos a atenção nos conteúdos da nossa experiência e imaginamos, ou não
compreendemos, que eles existem independentemente de serem apenas o que uma mente faz surgir,
de uma maneira ou outra, como parte de uma experiência. Fixados nestes conteúdos e imaginando
que eles existem solidamente "lá fora" – como parecem existir – tornamo-nos nervosos e
preocupados com eles, e isto é a fonte da nossa tensão e, assim, da nossa infelicidade; porque se nós
acreditarmos que eles estão realmente "lá fora", não há praticamente nada que possamos fazer
acerca deles. Por isso sentimo-nos incapazes e desesperados.
Com os métodos mahamudra, desviamos a nossa atenção dos conteúdos da nossa experiência para o
processo da própria experiência e, desse ponto de vista, compreendemos a relação entre a mente e a
realidade que experienciamos. Isto permite-nos desconstruir a nossa experiência e os seus
conteúdos de serem sólidos e assustadores, a algo mais fluido e administrável. Fazer este desvio de
perspectiva requer a forte renúncia da nossa fixação mórbida nos conteúdos da nossa experiência e
da maneira em que os imaginamos existir. Assim, não pode haver nenhuma prática de mahamudra
sem o correto desenvolvimento da renúncia.
2 As Práticas Preliminares
Prostrações
Fazer prostrações não é uma punição ou arrependimento, não é nenhuma coisa horrível que temos
de fazer e acabar rapidamente de modo a continuar indo para as partes boas. Buda não é como um
pai dominador insistindo que temos de fazer os nossos deveres antes de podermos jogar qualquer
jogo. Ao invés, fazer prostrações ajuda-nos a afrouxar o bloqueio mental de estarmos grudados nos
conteúdos da nossa experiência. Nós simplesmente fazemos as prostrações, "como deve ser, para
cima e para baixo", como Rose Berzin diria. Isto não significa que as fazemos mecanicamente, mas
sim, diretamente. Fazemos o que temos a fazer, sem mais.
Naturalmente, acompanhamos as nossas prostrações com a motivação correta, visualização e
recitação de uma das fórmulas de refúgio ou de um texto curto útil para purificar, tal como A
Admissão das Quedas. Fazendo assim deixa pouco espaço na nossa mente para queixas, sentir pena
de nós mesmos ou preocuparmo-nos com o fato de conseguir completar as cem mil. Mas até
meramente fazer as prostrações, por si, pode familiarizar-nos com a abordagem à vida de fazer as
coisas diretamente, acima e abaixo, sem nos sentirmos tensos. Isto ajuda-nos a purificar até um
certo ponto, alguns dos nossos bloqueios ou obstáculos mentais e a acumular mais força positiva
para sermos capazes de realmente ver diretamente a natureza da mente.
Prática de Vajrasattva
Uma outra prática preliminar importante é a recitação, cem mil vezes ou mais, do mantra de cem-
sílabas de Vajrasattva, para a purificação da força negativa que acumulamos das ações destrutivas,
ou "não-virtuosas" previamente cometidas. Acompanhamos a nossa recitação com uma honesta
admissão destas ações negativas e o reconhecimento que tê-las cometido foi um erro. Sentimos
remorso, mas não nos culpamos; oferecemos a nossa promessa de tentar não cometê-las de novo;
reafirmamos a nossa direção segura do refúgio e o nosso compromisso de alcançar a iluminação
para podermos beneficiar a todos; e imaginamos graficamente uma purificação ocorrendo com uma
complexa visualização enquanto repetimos o mantra.
O estado mental com que nos engajamos nesta preliminar, então, é o mesmo com que fazemos as
prostrações recitando A Admissão das Quedas. Desta maneira, a prática de Vajrasattva purifica-nos
das forças negativas as quais, como obstáculos cármicos, iriam amadurecer na nossa experiência de
infelicidade ou de situações desagradáveis que impediriam, respectivamente, a nossa liberação ou
capacidade total de ajudar os outros. Porém, além do seu benefício usual, esta prática serve também
como uma excelente preliminar especificamente para a meditação mahamudra.
Uma das maneiras em que experienciamos termos acumulado força negativa é sentindo-nos
culpados. Suponhamos que tolamente dissémos palavras ásperas ao nosso chefe numa
demonstração de irritação momentânea que fêz com que perdêssemos o nosso emprego e pode
causar-nos dificuldades de arranjar outro emprego no futuro. Se ficarmos grudados nos conteúdos
dessa experiência, nós solidificamos o acontecimento na nossa mente. Nós o congelamos no tempo
e, depois, o recordamos o tempo todo, identificando-nos completamente com o que fizemos nesse
momento e julgando-nos como sendo estúpidos, sem valor e maus. Esta culpa clássica é geralmente
acompanhada por um sentimento de estresse e ansiedade, e muita preocupação com o que fazer
agora. Enquanto não largarmos o nosso forte agarramento aos conteúdos dessa experiência, seremos
incapazes de agir claramente e com auto-confiança para remediar a situação arranjando um novo
emprego.
A visualização, de forma gráfica, das nossas negatividades nos deixando, enquanto recitamos o
mantra de cem-sílabas de Vajrasattva com um estado mental correto, ajuda-nos a largar a nossa
fixação pelos conteúdos da nossa experiência passada de termos agido destrutivamente. Por
conseguinte, ajuda-nos a abandonar a nossa culpa. Isto ajuda a treinar-nos a abandonar a nossa
fixação nos conteúdos de cada momento da nossa experiência, que é a essência dos níveis iniciais
da prática mahamudra. Desta maneira, Vajrasattva serve como uma preliminar excelente para
mahamudra.
Guru-Yoga
Outra preliminar sempre salientada como um método para ganhar inspiração, ou "bençãos", é o
guru-yoga. É bem fácil praticar guru-yoga a um nível superficial. Visualizamos perante nós o nosso
professor espiritual, guru ou lama na aparência do Buda Shakyamuni, ou de uma figura búdica, tal
como Avalokiteshvara, ou de um mestre da linhagem, tal como Tsongkhapa ou Karmapa. Depois
imaginamos luzes de três cores emanando desta figura para nós enquanto recitamos, cem mil vezes
ou mais, um mantra ou verso adequado, fazemos pedidos fervorosos para inspiração para sermos
capazes de ver a natureza da nossa mente. No entanto, ao nível mais profundo é muito difícil de
compreender o que estamos realmente tentando fazer durante, e por meio de, tal prática. O que
estamos tentando cultivar a um nível psicológico? A resposta anda à volta de um dos aspectos mais
difíceis dos ensinamentos budistas – a relação correta com um professor espiritual.
Em quase todos os textos mahamudra nós lemos algo do estilo: "Como preliminar essencial para a
prática de mahamudra, façam guru-yoga diligentemente. Imaginem que os vossos corpos, fala e
mente se tornam se um com os do vosso guru. Façam fervorosos pedidos de inspiração para serem
capazes de ver a natureza da vossa mente". Na primeira leitura, quase que parece como se tudo que
precisamos é fazer essa visualização e esses pedidos, e depois viveremos felizes para sempre, como
num conto de fadas. Nós receberemos a inspiração que, como mágica, agirá como a única causa
para a nossa obtencao de realização, independentemente de termos de fazer qualquer outra coisa.
Mesmo na escola do budismo japonês de Jodo Shinshu em que nós confiamos unicamente no poder
de Amitabha para alcançar a liberação e a iluminação, nós compreendemos implicitamente desta
formulação do caminho espiritual que devemos parar todos os esforços baseados no ego, o que
depende de termos compreendido a natureza mais profunda de "mim" e da mente. Assim, é óbvio
que temos de ir além do nível superficial de rezar ao nosso guru pedindo inspiração para vermos a
natureza da nossa mente, sem fazer mais nada, sentindo que se tivermos bastante fé e formos
verdadeiramente sinceros, o nosso desejo será concedido. De repente, como se tivéssemos sido
tocados na cabeça com a varinha mágica de um mágico, nós veremos e reconheceremos a natureza
da nossa mente.
A mente tem uma natureza com dois níveis. Sua natureza convencional é mera claridade e
apercebimento. É o que permite o surgimento de qualquer coisa como um objeto de cognição e que
seja conhecido. Sua natureza mais profunda, ou "última", é que é vazia de existir de maneiras
fantasiadas e impossíveis, como surgir independentemente das aparências que cria como sendo os
objetos que conhece. Guru-yoga é uma ajuda profunda, embora não mística, para ver ambos.
Deixem-nos examinar o mecanismo de cada um.
Quando praticamos guru-yoga, pedimos inspiração ao nosso guru, e depois dissolvemos uma réplica
do nosso guru para dentro de nós. Quanto mais forte e fervorosa for a nossa consideração e respeito
por ele ou ela, mais experienciaremos um estado mental bem-aventurado e vibrante como
consequência deste processo. Se a nossa fé estiver misturada com apego, o estado mental que
obtemos é um de mero excitação – confundido, distraído e não muito claro. Mas se a nossa
fervorosa consideração e respeito forem baseadas na razão, este estado mental bem-aventurado e
vibrante estará fundado numa crença confiante. Sendo emocionalmente estável, é extremamente
conducente a utilizar tanto a mente que vê a sua própria natureza convencional como a mente que
tem esta natureza, sobre a qual focalizar.
Para compreender como o processo de guru-yoga e de pedir inspiração funciona para facilitar a
nossa visão da natureza mais profunda da mente, precisamos compreender como a visão do nosso
guru como um Buda encaixa dentro do contexto dos ensinamentos sobre a vacuidade e o
surgimento dependente. Vacuidade significa uma ausência – uma ausência de maneiras impossíveis
de existir. Quando imaginamos que um guru existe por examplo, como um Buda
independentemente, do seu próprio lado, nós estamos projetando uma maneira impossível de existir
nesse professor. Esse modo de existência não refere a qualquer coisa real, porque ninguém existe
como "isto" ou "aquilo", ou como qualquer coisa, do seu próprio lado. Alguém existe como um
mentor espiritual, um Buda, ou ambos, somente em relação a um discípulo. Um "professor" surge
dependente não só de uma mente na qual alguém aparece como um professor e não só daquilo a que
a palavra ou rótulo mental "professor" se refere, como também da existência de estudantes.
O papel de "professor" não pode existir independentemente da função de ensinar. É definido, de
fato, como alguém que ensina. A função de ensinar não poderia possivelmente existir se a
aprendizagem ou os estudantes não existisse. Assim, ninguém poderia ser um professor se não
houvessem estudantes. Ou seja, ninguém – nem mesmo o Buda Shakyamuni, Tsongkhapa,
Karmapa, e nem mesmo o nosso guru pessoal – poderia existir como mentor espiritual se não
existisse também alguém como estudante. Mesmo se alguém não estiver ensinando neste momento
nem tiver nenhum estudante agora mesmo, essa pessoa só poderia existir como professor se ele ou
ela tivesse feito o curso de professor, o que poderia acontecer apenas se houvessem estudantes no
universo. Além disso, alguém está funcionando como professor apenas quando esté realmente
ensinando, e isso só pode acontecer em relação a um estudante.
A mesma linha de raciocínio aplica-se à existência de origem interdependente de Budas e dos seres
sencientes. Seres sencientes são aqueles com consciência limitada, enquanto que os Budas são
aqueles com a maxima capacidade de ajuda-los. Ninguém poderia ser um Buda se os seres
sencientes não existissem. É por isto que se diz que a bondade dos seres sencientes é muitíssimo
maior do que a bondade dos Budas em capacitar-nos de alcançar a iluminação.
Dado que os gurus e os Budas não existem independentemente dos discípulos ou estudantes, segue-
se que nem os professores nem os discípulos existem como entidades totalmente independentes,
como dois postos sólidos e concretos, cada um deles existindo por si próprio mesmo se o outro
nunca tivesse existido. Podemos por conseguinte logicamente concluir que é uma fantasia imaginar
que um guru pode produzir um efeito num discípulo como se fosse alguém sólido, "lá fora",
transmitindo um efeito sólido, como lançar uma bola, a alguém sólido "cá dentro", ou seja, "eu".
Efeitos, tais como obter a compreensão da natureza da mente, só podem surgir dependendo não só
de um esforço comum de um guia espiritual e de um discípulo, mas de muitos outros fatores
também. Como Buda explicou, "um balde não é enchido com água pela primeira nem pela última
gota de água. É enchido por uma coleção de um número enorme de gotas".
A compreensão da natureza convencional e da natureza mais profunda da mente é o resultado de um
longo e árduo processo, durante vidas incontáveis, de acumulação e de limpeza (colecionar e
purificar). O primeiro refere-se a fortalecer as duas redes construtoras de iluminação: de força
positiva (ou de potencial positivo) e de consciência profunda – as "duas coleções de mérito e
sabedoria"; enquanto que o último significa purificarmo-nos da força negativa (ou do potencial
negativo) e dos obstáculos. Além disso, temos de ouvir ensinamentos corretos sobre os dois
verdadeiros níveis da natureza da mente – convencional e mais profunda –, refletir neles até
obtermos um nível funcional básico de compreensão, e depois meditar neles correta e
intensivamente. Praticando desta maneira, acumulamos as causas para obtermos compreensão e
realizações. A inspiração do nosso guru não pode substituir este processo.
No entanto, a inspiração que vem de um mentor espiritual é o meio mais eficaz para fazer com que
as sementes do potencial para a compreensão,que acumulamos através destes métodos, amadureçam
mais depressa para produzir os seus resultados mais rapidamente. A inspiração, embora sendo uma
circunstância para o amadurecimento de causas, não pode produzir quaisquer resultados por si, se
não houverem causas ou se estas forem insuficientes para que amadureçam. A inspiração ou as
"bençãos" de um guru, de um fundador da linhagem, ou até do próprio Shakyamuni, não podem
funcionar magicamente para nos levar à compreensão e à iluminação. Por conseguinte, não nos
devemos iludir pensando que podemos evitar o trabalho árduo de superar os nossos problemas para
sermos capazes de obter a profunda eterna felicidade e a capacidade de sermos do maior benefício
aos outros. A inspiração pode definitivamente ajudar-nos a alcançar mais rapidamente os efeitos dos
nossos esforços – e é extensamente elogiada como o meio mais eficaz para isto – mas nunca pode
substituir o esforço sustentado, sobre muitas vidas, para acumular as causas para esses efeitos.
Em resumo, para que um discípulo obtenha inspiração e depois realize a natureza da mente, é
crucial que não só ele ou ela, mas também o professor, compreendam como cada um deles existe e
como o processo de causa e efeito só pode funcionar com base na vacuidade – a ausência de
maneiras impossíveis de existir. Se um deles ou ambos acreditarem que ele ou ela e o outro existem
independentemente e concretamente como postes de cimento, que a inspiração e a compreensão
existem como uma bola dura, e que o processo de causa e efeito de obter inspiração e compreensão
trabalham como o lançamento dessa bola de um poste ao outro, então não importa quão hábil o
mentor espiritual possa ser e quão receptivo e sincero o discípulo possa ser, o efeito será bloqueado.
Se acreditarmos que o que experienciamos em relação ao nosso guru, mesmo como um Buda, existe
algures concretamente "lá fora" e não surge dependendo de muitos fatores – incluindo a nossa
mente – como poderia ele ou ela transmitir-nos inspiração ou compreensão da natureza da nossa
mente, mesmo se pedíssemos isso com total sinceridade e motivação correta?
Guru-Mantra
Quando praticamos guru-yoga, acompanhamos a nossa visualização com a repetida recitação de um
guru-mantra ou de um verso que inclua um pedido. Na tradição Karma Kagyu, por exemplo, que se
desenvolveu a partir de um dos discípulos de Gampopa, o Primeiro Karmapa, nós recitamos o
mantra, "Karmapa kyenno," que significa, literalmente, "Karmapa, sabe oniscientemente!" Na
tradição Gelug-Kagyu de mahamudra, nós substituímos a visualização e mantra de Tsongkhapa
pelos de Karmapa. Exceto isto, o procedimento e o processo são exatamente os mesmos.
Se a nossa compreensão do guru for como send alguém externo, então a recitação do mantra de
Karmapa, por exemplo, se transforma apenas num exercício de devoção, e nada mais. Basicamente,
recitamos o equivalente de "Karmapa, escute e saiba dos meus problemas! Só você sabe
oniscientemente como removê-los". No melhor isto leva-nos a ver Karmapa como um Buda
indicando a direção segura do refúgio que tomamos na nossa vida. A um nível menos ótimo, isto
conduz ao sentimento que só Karmapa nos pode salvar de todos os nossos problemas. Assim, os
nossos pedidos ao guru com o mantra de Karmapa transformam-se no equivalente da recitação
repetida de "Oh Deus, ajuda-me!"
Mas quando conhecemos a inseparabilidade da nossa mente e do nosso guru, nós estamos de fato
repetindo "Mente, sabe oniscientemente!" sempre que recitamos "Karmapa kyenno". Então, com os
nossos pedidos fervorosos ao guru, estamos dirigindo as nossas energias numa maneira forte para a
compreensão de mahamudra com base na confiança de que a nossa mente, como a parte da nossa
natureza búdica, tem os recursos para ver a realidade. Mesmo se nós ainda não tivermos um guru
pessoal para agir como canal para a linhagem que vem das suas figuras fundadoras, a nossa
natureza búdica liga-nos à linhagem e, assim, pode funcionar como fonte de inspiração interior.
Assim, não só confiamos em gurus externos, temos também um guru interior – a natureza da nossa
mente. Quando vemos a inseparabilidade da nossa mente e do nosso guru neste sentido mais
profundo, nós ganhamos o nível mais profundo de inspiração.
O guru interno, então, não é uma figura existindo independentemente na nossa cabeça, de quem
podemos receber mensagens especiais que devemos definitivamente seguir. Quando pensamentos,
tais como ideias de fazer isto ou aquilo, ou até compreensões, surgem, podem ser ideias boas ou
tolas, compreensões corretas ou falsas. Apenas porque algo novo e inesperado surge repentinamente
na nossa mente, isso não significa, de modo nenhum, que é mesmo assim. Sempre precisamos
examinar a sua validez.
Além disso, não existe nenhuma pequena pessoa na nossa cabeça enviando-as para nós,
supostamente como uma mensagem. Os pensamentos e as compreensões, tanto válidos como
inválidos, surgem através de um processo de causa e efeito, como o amadurecimento de alguma
semente ou potencial. As sementes são plantadas pelas nossas ações habituais passadas, que podem
ser construtivas ou destrutivas, bem informadas ou iludidas. Elas amadurecem quando as
circunstâncias corretas estão presentes. O reconhecimento da natureza da nossa mente como
natureza búdica e a compreensão da inseparabilidade da nossa mente e nosso guru – mais
precisamente, da nossa mente e nossa natureza búdica como nosso guru interno – agem como
circunstâncias para que as compreensões corretas amadureçam das sementes do potencial que
acumulamos através das nossas práticas anteriores de acumulação e purificação, assim como de
escuta, reflexão e meditação. Assim como é crucial não romantizar transformando o nosso guru
externo num fazedor de mágica e de milagres, o mesmo é verdade do nosso guru interno.
Razões que Fazem com que as Práticas Preliminares Fiquem sem Energia
As pessoas engajadas nas práticas preliminares às vezes reparam que elas se estão tornando frouxas,
sem energia. O erro principal está na nossa motivação. A medida principal para impedir que isto
aconteça é reafirmar continuamente as nossas razões para fazermos as preliminares. Se, como
ocidentais, nós as fizermos como se fosse o nosso dever fazê-las, como se estivéssemos seguindo
ordens no exército, então certamente que vão acabar sem nenhuma energia. Ou se as fizermos
apenas mecanicamente, sem nenhuma emoção nem compreensão da razão porque as estamos
fazendo, também acabarão sem energia. Por outro lado, embora possam haver vários níveis
diferentes de motivação espiritual, se tentarmos sinceramente desenvolver um coração dedicado à
bodhichitta, permaneceremos sempre cientes das dificuldades que os outros estão experienciando e
sentiremos profundamente o desejo de poder fazer algo construtivo para lhes ajudar. Isto move-nos
a agir para nos desenvolvermos inteiramente; e a maneira de começar é através das preliminares.
Essa atitude, então, torna as nossas práticas preliminares cheias de vida e relevantes ao nosso
objetivo.
No entanto, embora possamos ter uma motivação correta e sincera, às vezes exageramos as
preliminaries, solidificando-as na nossa mente em algo monstruoso, "lá fora". Podemos então cair
num de dois extremos. O primeiro é o de considerar as preliminares com uma atitude distorcida e
antagonísta, traduzida geralmente como uma "visão errada". Nós as difamamos e tentamos ignorá-
las, julgando que são um desperdício de tempo. Julgamos que são apenas para principiantes, não
para nós, e que por isso devíamos ir diretamente para a própria prática mahamudra principal.
O outro extremo é o de fazermos das preliminaries uma experiência penosa, como algo de um mito
grego – Hércules limpando os estábulos de Frígia de séculos de estrume acumulado. Oprimidos
pelo prospeto de limpar a nossa mente de todo o lixo mental, sentimos que nunca chegaremos a lado
nenhum. Essa atitude transforma as preliminares num filme de horror, e claro que acabam sem
energia, pois ficamos imediatamente desanimados, sentindo que nunca conseguiremos fazer
progresso algum.
Meramente
A terceira palavra da definição, "meramente", estabelece o mínimo básico que precisa ocorrer para
que haja experiência. A mente precisa meramente de fazer surgir algo e cognitivamente se engajar
com esse algo de alguma maneira. "Meramente", então, exclui a necessidade de qualquer força
significativa de atentividade dos conteúdos de uma experiência – na terminologia ocidental,
consciência deles. Exclui também a necessidade de qualquer nível significativo de compreensão,
emoção ou avaliação. Uma experiência é simplesmente um evento cognitivo.
Assim, o sono profundo sem sonhos também é uma experiência. Não podemos dizer que quando
estamos dormindo sem sonhar deixamos de ter uma mente, ou que a mente deixa de funcionar. Se a
mente fosse desligada durante o sono, como poderia aperceber-se do som do despertador de modo a
poder ser ligada outra vez? A experiência do sono profundo, então, implica a mente fazer surgir uma
escuridão e engajar com ela estando absorvida, com atenção mínima à percepção sensorial.
Além disso, a palavra "meramente" também exclui a existência de (1) um "eu" ou "mente" sólida e
concreta dentro da nossa cabeça que está experienciando ou controlando a experiência como se
fosse o seu agente, (2) um objeto sólido e concreto como o conteúdo "lá fora" que está sendo
experienciado, e (3) uma "experiência" sólida e concreta que está ocorrendo entre os dois. Eventos
cognitivos meramente ocorrem. Convencionalmente, podemos dizer que "eu" estou tendo a
experiencia de "isto" ou "aquilo", e subjetivamente parece ser assim, mas nenhuns dos items
envolvidos em ter-se "uma experiência" podem existir independentemente uns dos outros. Ou seja,
os três círculos envolvidos numa experiência – um sujeito (uma pessoa ou uma mente), um
conteúdo e uma própria experiência – são todos vazios desta maneira impossível de existir.
"Meramente", contudo, não exclui que a experiência realmente ocorre e é sempre individual. Assim
como Tsongkhapa enfatizou, na sua apresentação da vacuidade, que devemos ter cuidado de não
refutar de menos nem de mais, do mesmo modo devemos ter cautela com a palavra "meramente" e
também não excluir de menos nem de mais.
Compreendendo a Natureza Mais Profunda da Mente Sendo Como o Espaço e Sua Natureza
Convencional Sendo Como uma Ilusão
A seguir focalizamos na vacuidade da mente que é como o espaço, embora não seja o mesmo que o
espaço. A noção budista de espaço não refere ao espaço que algo ocupa, à sua posição, ao espaço
entre objetos, nem mesmo ao espaço sideral. Pelo contrário, é um fato imutável sobre um objeto
material que é o caso , desde que esse objeto exista. Este fato é que não há nada de tangível ou
fisicamente obstrutivo do lado do objeto – tal como alguma matéria primal eterna, como certas
escolas indianas non-budistas de filosofia mantém – que logicamente, se lá estivesse, iria
necessariamente impedir esse objeto de ser manifesto e de existir em três dimensões. Do mesmo
modo, não há nada de tangível ou obstrutivo – ou seja, encontrável – nem do lado dos objetos nem
da mente que, logicamente, se lá estivesse, iria necessariamente impedir qualquer um deles de
existir em primeiro lugar. Este é o caso, inalteravelmente desde que existam, quer falemos da sua
existência que surge dependentemente no sentido do rotulamento mental – que envolve a
inseparabilidade das palavras ou conceitos e seus significados – ou no sentido da inseparabilidade
da aparência e da mente. Similarmente, não há nada do lado dos objetos impedindo-os de surgir
como objetos da mente, e nada no lado da mente impedindo-a de poder fazer surgir uma aparência
dos objetos. Porém, a mente não é o mesmo que o espaço. A mente pode conhecer coisas, o espaço
não pode.
Finalmente, focalizamos uma vez mais na natureza convencional da mente com a compreensão de
que ela existe como uma ilusão, embora não seja o mesmo que uma ilusão. Apenas parece como se
houvessem objetos solidamente "lá fora" e mente solidamente "aqui dentro", com a experiência
sendo o sólido resultado da interação entre estas duas coisas sólidas, e um sólido "eu" atrás disto
tudo, controlando ou experienciando todo este processo. Mas nenhuma destas coisas envolvidas na
experiência, ou mente, existe da maneira em que a nossa mente as faz parecer existir, como é o caso
com as ilusões. Contudo, a nossa mente-que é-como-uma-ilusão gera os nossos problemas e pode
alcancar a liberação deles, enquanto que uma ilusão não pode fazer nenhuma destas coisas.
Meditação Não-Conceptual
Um dos níveis mais avançados da prática mahamudra é meditar na natureza da mente de maneira
não-conceptual. Mas que significa isto? Não-conceptual significa direto, não através de uma ideia.
Uma ideia de algo é aquilo que se parece com com aquilo, usado em pensamento para representar o
item. O termo é geralmente traduzido como "imagem mental", mas uma semelhança de algo não
precisa ter forma e cor, especialmente no caso de uma representação mental da mente. Para a
percepção não-conceptual da mente, então, precisamos livrar-nos da “fé” numa ideia do que é o
mero surgir e engajar com conteúdos da experiência. Temos de ver e focalizar no processo
diretamente.
A percepção mental direta e não-conceptual de algo, então, não envolve o pensar, embora é claro
que a mente ainda esteja funcionando e haja cognição mental. Contudo, as noções ocidentais e
budistas do "pensar" são completamente diferentes. A noção ocidental implica uma sequência de
pensamentos conceptuais e normalmente verbais, enquanto que a noção budista do pensamento
conceptual é muito mais larga. Não só também inclui processos mentais que envolvem ideias não-
verbais, tais como imagens mentais, mas também a mera focalização mental em algo através de
uma ideia desse algo. Uma cognição mental não-conceptual de algo está livre não só do pensar no
sentido ocidental do termo comotambém, mais extensivamente, no sentido budista.
Além disso, não-conceptual não significa sem compreensão. Significa meramente sem depender de
uma ideia de algo – de uma formulação verbal, representação simbólica ou até de um sentimento
abstrato. Podemos compreender algo sem necessariamente compreendê-lo através de uma ideia
dele. Mas embora possamos compreender algo diretamente sem misturá-lo com uma ideia verbal ou
de imagem, ainda há compreensão. Este é o ponto crucial. Precisamos não só ver diretamente, mas
ver, diretamente e com compreensão, a natureza convencional e a natureza mais profunda da mente
– primeiro uma de cada vez e depois as duas simultaneamente.
Ver algo com os nossos olhos é automáticamente não-conceptual. Toda a percepção sensorial é não-
conceptual. Isso, no entanto, não envolve necessariamente a compreensão do que é visto, por
exemplo, ver-se um alfabeto estrangeiro que não compreendemos. Porém, o ver mental – e não no
sentido de visualizar um Buda – é outra coisa. Até agora, na nossa discussão temos usado a
expressão "ver-se algo com a nossa mente", significando compreendê-lo, e isso é geralmente
conceptual, ou seja, por intermédio de uma idéia. Compreender-se algo não-conceptualmente não é
nada fácil.
Temos de ter cuidado para não confundir uma compreensão conceptual de algo com o que as
línguas ocidentais se referem como uma "compreensão intelectual". Uma compreensão intelectual
pode ser derivada conscientemente através da lógica ou que pode ser expressa de maneira lógica.
Neste significado, essa compreensão é oposta a uma compreensão intuitiva, obtida como resultado
de processos mais inconscientes. Mas nem todas as compreensões conceptuais são intelectuais neste
sentido. A compreensão conceptual do bebê de quem é a sua mãe não é intelectual. Além disso, as
compreensões intuitivas também podem ser conceptuais, tal como a compreensão intuitiva de um
mecânico acerca do que está errado com o nosso carro. De fato, quase todas as compreensões
intuitivas são conceptuais.
Outra conotação da noção ocidental de uma compreensão intelectual é uma compreensão que não
aplicamos para transformar a nossa vida. Podemos compreender intelectualmente que fumar
cigarros é mau para a nossa saúde, mas continuamos a fumar. A falha está geralmente na nossa falta
de suficiente motivação, mas também pode estar na falta de instrução suficiente, por exemplo, de
como deixar de fumar. A falha não é que a nossa compreensão seja conceptual. Contudo, mesmo
quando compreendemos algo, por exemplo, como cozinhar, e cozinhamos todos os dias, a nossa
compreensão de como o fazer ainda é conceptual. Precisamos explorar o que significa compreender
algo.
Sumário
Em resumo, é muito fácil praticar o que parece ser mahamudra, mas é de fato um método que não
vai muito profundamente desenraizar os nossos problemas e suas causas. A prática mahamudra
certamente não é simplesmente tornarmo-nos como uma vaca que se senta sem se mover, apenas
vendo e ouvindo, sem pensar em nada. Mas mesmo se apenas nos sentássemos quietamente e
olhássemos e escutássemos atentamente – e não desatentamente como a vaca – o que quer que
estivesse acontecendo à nossa volta, e mesmo se fossemos capazes de fazer isto sem julgamentos ou
comentários mentais sobre coisa alguma e, de fato, sem absolutamente nenhuma tagarelice mental,
ainda não estaríamos praticando a meditação mahamudra.
Não há dúvida que aquietar a mente de todo o ruído e tagarelice mental é extremamente benéfico.
Esses pensamentos impedem-nos de ser atentos a qualquer coisa à nossa volta. Mas precisamos ter
o cuidado de não aquietar a nossa mente da compreensão quando aquietamos a mente de sua
tagarelice. Não pode haver nenhum nível de meditação mahamudra sem pelo menos algum nível
acompanhante de compreensão da natureza da mente.
É muito importante ser-se humilde e não diminuir o mahamudra, dzogchen ou qualquer das práticas
muito avançadas e difíceis, pensando que são muito simples. Por exemplo, aprendemos uma prática
introdutória que é extremamente benéfica, como aquietar a mente de todos os julgamentos,
comentários e pensamentos verbais, e permanecer no "aqui-e-agora". Se conseguirmos atingir isto –
que certamente não é nada fácil – teremos a fundação necessária não só para a meditação
mahamudra, mas para qualquer tipo de meditação e também para a própria vida. Mas se pensarmos
que prática mahamudra é só isto, reduziremos o mahamudra, tornando-o em algo pequeno e
comparativamente trivial.
Se pensarmos que somos um grande iogue ou yogini porque estamos engajando neste nível inicial
de prática, e se nem sequer concebermos que podemos ir mais profundo, estamos sofrendo da falha
de uma motivação fraca. Falta-nos renúncia e bodhichitta suficientemente fortes para irmos além
dos níveis iniciais de prática e aquisição a fim de ficar verdadeiramente livres dos nossos problemas
e sermos capazes de melhor ajudar os outros. Como os grandes mestres disseram, uma combinação
de renúncia e bodhichitta é essencial como força motivadora não só para começar o caminho
espiritual, mas para sustentar os nossos esforços ao longo de todo o seu percurso e, no fim, para
alcançar o seu objetivo. Assim, com correta e suficiente motivação e esforço sustentado, a prática
mahamudra pode-nos levar à aquisição da Budeidade para o benefício de todos.
Primeiro praticamos preliminares tais como as prostrações e, especialmente, guru-yoga e fazer
pedidos sinceros de inspiração. Quando feitas com correta compreensão e motivação, estas ajudam
a enfraquecer a nossa fixação nos conteúdos da nossa experiência, tais como a dor nas nossas
pernas quando nos prostramos ou ver o guru como algum ídolo onipotente "lá fora". Assim, elas
ajudam a enfraquecer os bloqueios mentais que impedem a nossa compreensão da natureza da
mente, e ajudam a acumular a força positiva para nos trazer sucesso nesta ventura.
Começamos a nossa meditação mahamudra formal com exercícios iniciais, examinando os vários
conteúdos da nossa experiência de cada um dos sentidos, e dos pensamentos e sentimentos
emocionais. Apercebemo-nos que do ponto de vista da natureza convencional da experiência, ou
seja, do ponto de vista de lá ocorrer meramente o surgir e engajar nos conteúdos da experiência, não
há diferença absolutamente nenhuma entre ver uma vista agradável ou desagradável. Isto permite-
nos não ficar tão enredados nos conteúdos da nossa experiência que ficamos perturbados e
causamos problemas a nós e aos outros. Porém, não ficamos tão desassociados dos conteúdos que
deixamos de reagir a eles de maneira adequada, tal como saindo do caminho do caminhão que se
está aproximando e que vemos à nossa frente.
Contudo, neste nível, lidamos com o problema de estarmos enredados nos conteúdos da nossa
experiência apenas quando já estamos enredados neles. Quando já estamos perturbados devido a
ouvir o ruído do tráfego no nosso quarto, nós comparamo-lo com o ouvir o piar dos pássaros e
depois desengajamos a nossa obsessão com o ruído substituindo o nosso foco para a natureza
convencional da própria experiência. No entanto, para impedirmos que esse erro de focar nos
conteúdos torne a surgir, temos de ir muito mais fundo na meditação. Temos de desenvolver uma
concentração absorta e uma mente serenamente acalmada e tranquila.
Assim, em seguida nós focalizamos na natureza convencional da própria mente. Nós focalizamos
no mero surgir e engajar com os conteúdos da experiência que ocorre em cada momento, mas sem
fazermos desse processo um objeto sólido e concreto, nem fazermos de nós um sujeito sólido e
concreto que é o observador, agente ou controlador desse processo ou aquele experienciando-o.
Focalizando nesta maneira, frescamente cada momento, com concentração perfeitamente absorta,
vamos enfraquecer ainda mais a nossa tendência de perder de vista esta natureza convencional e,
consequentemente, de ficar enredados nos conteúdos da nossa experiência e perturbados por eles.
A fim de evitar os perigos de apreender ou tomar nós mesmos como sendo um "eu" sólido– durante
a meditação ou, em geral, ao viver a nossa vida – nós focalizamos em seguida na natureza
convencional e mais profunda de nós mesmos como "eu". Precisamos ver que, embora
convencionalmente "eu" esteja meditando e experienciando os conteúdos de cada momento da
experiência da minha vida, esse "eu" convencional não existe à maneira de um "eu" falso. A sua
natureza mais profunda é que é vazio de existir como um sólido e concreto observador, agente ou
controlador das experiências da vida, ou aquele experienciando-as, quer na meditação quer em
qualquer outra altura também. Essa compreensão permite-nos não só meditar mais corretamente na
natureza convencional da mente e da experiência, mas também, eventualmente, livrar a nós mesmos
da autopreocupação e do egoísmo, que nos fazem criar todos os nossos problemas e nos impedem
de ajudar eficazmente os demais.
Quando tivermos compreendido a natureza mais profunda de como "eu" existo, temos de aplicar
essa compreensão a como a mente e a experiência existem. Se já não ficarmos enredados nos
conteúdos da nossa experiência, mas apreendemos a nossa própria mente como existindo como uma
"coisa" sólida e concreta, causaremos problemas para nós uma vez mais, o que vai impedir de
conseguir ajudar melhor os outros. Ficaremos apaixonados, por exemplo, com as experiências-
dádiva de claridade e simplicidade extasiante que acompanham a perfeita concentração absorta na
natureza convencional da mente. Precisamos ver que a própria mente é vazia de existir em qualquer
maneira fantasiada e impossível.
No início focalizamos na natureza convencional e mais profunda da mente de maneira conceptual,
através de uma ideia correta do que são. Mas eventualmente, quando formos capazes de focalizar
nua e diretamente em cada uma delas, alcançaremos uma meditação mahamudra não-conceptual e
vívida. A nossa meditação se tornará então suficientemente potente, em combinação com a força da
nossa motivação dupla de renúncia e bodhichitta, para realmente eliminar para sempre, passo a
passo, os vários níveis da nossa apreensão de maneiras impossíveis de existir no que diz respeito à
nossa mente, experiência, seus conteúdos e "eu".
Finalmente, quando tivermos eliminado os obstáculos que têm impedido a nossa mente de ser capaz
de fazer surgir, direta e simultaneamente, a natureza convencional e a natureza mais profunda da
experiência de cada momento, nós as engajamos direta e totalmente de uma só vez. Assim, a nossa
mente transforma-se na consciência onisciente e totalmente compassiva de um Buda. De igual
modo, o nosso corpo e forma de comunicação também se transformam de modo que, como seres
iluminados, estamos mais bem equipados para beneficiar os outros.
Esta capacidade total de beneficiar os outros é o resultado da nossa eliminação de todos os
obstáculos que impedem a nossa liberação e onisciência, ou seja, da nossa confusão sobre a
natureza da nossa mente e experiência, e dos instintos dessa confusão. Eliminamo-os
compreendendo e focalizando, primeiro conceptualmente, depois não-conceptualmente, na natureza
convencional e na natureza mais profunda da nossa mente, uma de cada vez. Para fazer isto
corretamente, precisamos trabalhar para eliminar a nossa apreensão do "eu" como existindo de
maneira sólida. Abordamos essa tarefa mais eficazmente se nos tivermos desengajado de estar tão
enredados nos conteúdos da nossa experiência que ficamos perturbados com tudo que ocorre na
nossa vida.
Acumulamos a capacidade de desviar o nosso foco dos conteúdos da nossa experiência para a
própria experiência, e enfraquecemos os nossos bloqueios mentais que nos impediriam de fazê-lo
engajando nas práticas preliminares. Transformamos cada aspecto da nossa vida numa prática
preliminar vivendo a nossa vida "direito acima e baixo, e não lateralmente" – não nos queixando e
não fazendo um grande drama de tudo. Adquirimos a força para fazer isto quando nos tornamos tão
interessados pelo bem-estar dos outros que decidimos que temos mesmo de superar todas as nossas
falhas e problemas e realizar todos os nossos potenciais de modo a podermos ser da melhor ajuda a
todos eles.
Só seremos capazes de desenvolver este coração dedicado de bodhichitta como motivação se nos
tivermos tornado suficientemente repugnados com os nossos problemas de tal modo que decidimos
definitivamente que nos devemos livrar deles. Só podemos conceber fazer isto se admitirmos os
nossos problemas, reconhecermos as suas causas e ganharmos a confiança que se eliminarmos essas
causas, os nossos problemas nunca mais retornarão. Como a causa mais profunda dos nossos
problemas é a nossa confusão acerca das experiências de momento-a-momento da nossa vida e seus
conteúdos, é essencial compreender a natureza da mente. O caminho mahamudra é um dos métodos
mais eficazes para se alcançar este objetivo para o benefício de todos.