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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social

O ORIENTE E O AMANHECER:
História, parentesco e ritual entre os Bora na Amazônia Colombiana

Maria Luísa Lucas

2019
O ORIENTE E O AMANHECER:
História, parentesco e ritual entre os Bora na Amazônia Colombiana

Maria Luísa Lucas

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito
parcial à obtenção do título de Doutora em Antropologia.
Orientador: Carlos Fausto

Rio de Janeiro
Julho de 2019
Essa tese é dedicada àqueles
que tanto me ensinaram
sobre as noites que ardem e
sobre os dias que amanhecem:

Aos Povos do Centro – e em especial


A José Fernando, Santiago e ao finado Raúl

À memória de Mireille Guyot

Às amigas e amigos do querido Museu Nacional


Agradecimentos

Quando iniciei o doutorado eu não tinha a mínima ideia de quais caminhos percorreria.
Eu estava disposta e animada, mas certamente não imaginava que iria me relacionar com
tantas pessoas e lugares. Cada uma das pessoas abaixo saberá a parte que lhe cabe. Assim,
sou muito grata:

A todos os funcionários(as), gestores(as) e pesquisadores(as) da CAPES, do CNPq, da


FAPERJ e do CNRS envolvidos na concessão e gerenciamento dos benefícios que
permitiram a realização desta tese.

A Carlos Fausto, meu orientador, bem como a Antônio Guerreiro, Edmundo Pereira, Luis
Cayón e Philippe Erikson, por gentilmente aceitarem participar da banca.

Na tríplice fronteira, a Marco Tobón, Victor Gil, Kelly D’Ávila, Mariana Guimarães,
Manuella Rodrigues. A Dani Santos, Rita, Adailton, Akin, Ravi, Sanderson e Patricia. A
Tommaso Fanciotti e Carlos (da companhia aérea Satena).

No Museu Nacional, a todos os companheiros do LARMe que foram tão presentes e


importantes durante esses últimos anos. Em especial a Ana Coutinho (e Pedro Lima),
Thiago Oliveira, Messias Basques, Caco Xavier, João Kelmer e Luiz Costa. Sou muito
grata ainda a Hélio Sá, Luana Almeida, Danielle Araújo e Elena Welper.

Além disso, a todos os professores e funcionários do Museu Nacional por me


proporcionarem a melhor formação que eu poderia ter, mesmo nas maiores adversidades.

No Rio de Janeiro, a Virginie da Silva, Oiara Bonilla, Amanda Migliora, Ana Fiod,
Carolina Castelitti e Luan Teixeira. Aos gestores do Prodocult Museu do Índio/Unesco e
aos funcionários da casa – em especial a Ida Najjar, Rosilene de Andrade, Ione Couto e
Thiago Oliveira. No mesmo projeto, a Bruno Marques e Majoi Góngora.

Em Paris, a Bonnie e Jean-Pierre Chaumeil, a Jean-Patrick Razon, Nancy Ochoa e Dimitri


Karadimas (in memoriam). A Philippe Erikson, Valentina Vapnarski, Joséphine
Simonnot, Aude Lima, Frédéric Dubois, Marie-Line Priot e Farida Djeridi. A Paola
Acosta, Julie Donatien, Emmanuel de Vienne, David Jabin, Pollyanna Bernardes, Lionel
Rossini e Sylena Roy.

Em Munique, ao Rachel Carson Center for Environment and Society. Em Barcelona, a


Fra. Valentín Serra de Manresa. Em Iquitos, à equipe do IBC (especialmente a Omar

i
Galliani) e a Alberto Chirif. Em Tefé, a José Cândido, Patrícia Carvalho e a todos os
Miranha das TI Miratu e Méria (em especial a Lino Pereira, Assis Cavalcanti, Maria Sara
Monteiro, Gersino Farias e Nelsa Benigno).

Em São Paulo, a Bruna Barros, Raquel Sant’anna, Karen Shiratori, Gabriela Sousa, Diego
Madias, Ana Amorim, Ian Packer e Benjamim. A Luciana Goldman.

Nas Minas Gerais, a Camila Jácome, Luisa Girardi, Leonor Oliveira e Victor Dias. A
Roberto Romero, Ruben Caixeta e Andrea Guerra. Finalmente, a Raimundo, Paula e
Clara – e a Thiago e Paulinha.

Por último (exatamente porque mais importante):

En el Igaraparaná, es difícil nombrar a todos los Bora a los cuales quiero expresar mi
enorme gratitud por haberme recibido en sus casas y en sus vidas. Antes de todo, gracias
a José Fernando, Casilda, Bristhy, Miller, Jinel, Willer y Roger por permitirme ser un
poquito parte de la familia. Entre los abuelos, agradezco a Santiago, Fernando, Enrique,
Benito, Rufino, Pablo y Alejo por su paciencia y generosidad en compartir conmigo
mucho de lo que había en sus canastos. Julia, Zenaida, Teresita, Ema, Rosa, Ana Lucia,
Maria Pilar, Matilde, Ofélia y Jesusa son mujeres fuertes y dulces que me enseñaron
mucho. Agradezco aún a Chucho, Rubiel, “Butuna”, Cindy, Kylia y Yosira, quienes
alegraron mis días. Roy Alex, Alejandro, Juan, Enmar, Jimmy, Leonardo, Luis Medardo,
Moisés, Marfílio y Omer (y sus mujeres) me enseñaron, con su juventud, que el Amanecer
no se acaba, así como las malocas.

ii
Romperá la tarde mi voz,
Hasta el eco de ayer.
Voy quedándome solo al final,
Muerto de sed, harto de andar.
Pero sigo creciendo en el sol
Vivo.

Era el tiempo viejo, la flor,


La madera frutal.
Luego el hacha se puso a golpear,
Verse caer, sólo rodar.
Pero el árbol reverdecerá
Nuevo.

Al quemarse en el cielo
La luz del día, me voy.
Con el cuero asombrado, me iré.
Ronco al gritar que volveré,
Repartido en el aire a cantar
Siempre.

Zamba para no morir,


de Hamlet Lima Quintana, Noberto Ambros e Alfredo Rosales

iii
Resumo

Esta tese versa sobre os Bora, habitantes do rio Igaraparaná, afluente do rio Putumayo,
na Colômbia. Os Bora fazem parte do complexo cultural dos autodenominados “Povos
do Centro” na Amazônia Ocidental. O trabalho encontra-se dividido em duas partes. Na
primeira, composta de dois capítulos, aborda-se o tema das transformações históricas
vividas pelos Boras desde os primeiros contatos com o mundo não-indígena. Apresenta-
se a divisão nativa da história em uma série de Tempos que se encontram diretamente
relacionados a determinados bens: machados de metal, caucho, peles de animais, coca e
“projetos”. Tais épocas ou Tempos são eles mesmos englobados por dois macro-períodos,
conhecidos como Tempo dos Animais e Tempo da Abundância. A segunda parte da tese,
por sua vez dividida em cinco capítulos, trata da maneira pela qual a passagem do Tempo
dos Animais para o Tempo da Abundância se evidencia em mudanças no parentesco, na
organização social e nas práticas rituais, que ocorrem especialmente a partir do final do
boom caucheiro. O objetivo da segunda parte é menos o de compilar narrativas históricas
sobre o perído do que analisar em detalhes os dados que mostram como os Bora
produziram, eles mesmos, tais transformações. Dá-se especial ênfase aqui à oposição
complementar e assimétrica entre chefes e órfãos, duas categorias centrais para se
compreender o mundo dos Povos do Centro do passado e do presente. Argumenta-se que
foi em torno desse eixo relacional que os Bora operaram o processo que lhes permitiu,
após o holocausto caucheiro, Amanhecer novamente.

iv
Résumé

Cette thèse de doctorat, fruit d'une combinaison de périodes de travail de terrain et de


recherche dans les archives, porte sur les Bora qui habitent la rivière Igaraparaná et qui
font partie des peuples qui composent le complexe des Gens du Centre en Amazonie
occidentale. Le travail est divisé en deux parties. Dans la première, composée de deux
chapitres, j'aborde le thème des transformations historiques depuis le contact des Bora
avec le monde des Blancs. Pour cela, je présente la division native de l'histoire en une
série de Temps qui sont directement liés à certains biens : haches, caoutchouc, peaux
d'animaux, coca et "projets". De telles époques ou Temps sont elles-mêmes entourées par
deux autres grandes périodes : le Temps des Animaux et le Temps de l'Abondance.
Partant d'une analyse détaillée de l'organisation sociale et des pratiques rituelles, la
deuxième partie de la thèse, divisée en cinq chapitres, traite de la manière dont le passage
du Temps des Animaux au Temps de l'Abondance devient évident. Si l'arrivée des
explorateurs du caoutchouc et le déclin vertigineux de la population entre 1890 et 1933
sont à l'origine de ce passage, ma recherche de doctorat se distingue par le fait qu’elle
dépasse les récits historiques disponibles. Je me suis plutôt engagée à recueillir et à
analyser des données sur la parenté, l'organisation sociale et les rituels qui mettent en
évidence une agentivité autochtone dans ces transformations. Dans ce processus, j'ai
surtout exploré l’opposition complémentaire et asymétrique entre chefs et orphelins, deux
catégories centrales pour comprendre à la fois les Gens du Centre et les changements dans
les relations homme-animal résultant des transformations mentionnées ci-dessus.

v
Lista de Tabelas

Tabela 1 – Tipos e quantidades de arquivos do Fonds Guyot ...................................... 21


Tabela 2 – Preços das peles vendidas pelos Bora em 1970 .......................................... 91
Tabela 3 – Oposição entre Tempo dos Animais e Tempo da Abundância ................. 133
Tabela 4 – Quadro dos clãs bora ................................................................................ 150
Tabela 5 – Terminologia de parentesco bora ...................................................... 152-154
Tabela 6 – Resumo dos bailes Bora ............................................................................ 291
Tabela 7 – Etapas de um baile .................................................................................... 297
Tabela 8 – Clã Buriti (1924 a 1957) ........................................................................... 358
Tabela 9 – Carreras retomadas no século XX ........................................................... 369

vi
Lista de Fotos

Todas as fotos cuja fonte não é indicada no corpo do texto são de minha autoria.

Foto 1 – Julio Arana (à esquerda) em La Chorrera, 1912 ............................................... 51


Foto 2 – Masacre a los Huitoto Murui por los varones del caucho Bora ....................... 56
Foto 3 – El corazón de los varones del caucho ............................................................... 57
Foto 4 – Indígenas contra caucheiro ............................................................................... 57
Fotos 5, 6 e 7 – Closes de painel em La Chorrera confeccionado em 2012 na ocasião do
centenário das denúncias de Roger Casement ......................................................... 58 e 59
Foto 8 – Indígena Bora tomada como esposa por um caucheiro em La Chorrera, 1912 60
Foto 9 – Rey de Castro (ao centro, de chapéu), um dos principais apoiadores da Casa
Arana – La Chorrera, 1912 ............................................................................................. 68
Foto 10 – Cruzamento entre as ruas Julio C. Arana e Prospero no centro de Iquitos, em
2017 ................................................................................................................................ 69
Fotos 11 e 12 – Objetos em exposição no Museu Etnogràfic Missional, Barcelona ...... 77
Foto 13 – Padre Bartolomeu de Igualada entre os Bora no rio Cahuinari em 1936 ....... 80
Foto 14 – Família de Kumimarima no rio Cahuinari se prepara para um baile, 1936 ... 81
Foto 15 – John Brown em La Chorrera, 1912 ............................................................... 122
Foto 16 – Xamã bora com colar de dentes de jaguar (e o rifle do pesquisador...) ........ 126
Foto 17 – Rufino Kuguao, do clã Zogue-Zogue, em sua maloca, em junho de 2017 ... 181
Foto 18 – Maloca na região do Caquetá-Putumayo no começo do séc. XX ................. 189
Foto 19 – Maloca do clã Veado no Igaraparaná em 1969 ............................................. 249
Foto 20 – Tamales na maloca antes da festa Ujcútso, dezembro de 2017 .................... 299
Foto 21 – Homens realizam reparos no teto da maloca antes do baile Ujcútso, dezembro
de 2017 ......................................................................................................................... 300
Foto 22 – Caçador com larvas (núhneé) espera seu momento de entrar maloca do clã
Tamanduá antes da festa Ujcútso, dezembro de 2017 ................................................... 305
Foto 23 – Máscara da festa Méémeba ........................................................................... 324
Foto 24 – Máscara da festa Méémeba ........................................................................... 324
Foto 25 – Máscara da festa Méémeba ........................................................................... 325
Foto 26 – Máscara da festa Méémeba ........................................................................... 327
Foto 27 – Face anterior do llaríwa, em direção à porta principal da maloca ................ 335
Foto 28 – Face posterior do llaríwa, em direção à porta secundária da maloca ........... 336

vii
Foto 29 – Colar de dentes de onça coletado por capuchinhos, provavelmente na década
de 1930 ......................................................................................................................... 351
Fotos 30 e 31 – Caça trazida pelos convidados do ritual Ujcútso ................................. 392

viii
Lista de diagramas, mapas e figuras

Os diagramas e os mapas (à exceção do Mapa 1) são todos de minha autoria. O mesmo


vale para as figuras cuja fonte não é indicada no corpo do texto.

Diagrama 1 – Reconhecimento do parentesco ........................................................... 151


Diagrama 2 – O casamento desejável ........................................................................ 159
Diagrama 3 – Transmissão de nomes titulares ................................................ 169 e 294
Diagrama 4 – Correspondência entre órfão, sobrinho e genro ................................... 208
Diagrama 5 – Cônjuges e filhos de Kumimarima ...................................................... 239
Diagrama 6 – Descendentes de Kumimarima segundo comunidades atuais ............. 243
Diagrama 7 – Filhos de Rafael Dujdulli .................................................................... 244
Diagrama 8 – Transmissão ritual dos descendentes de Dujdulli ................................ 247
Diagrama 9 – Adoção cerimonial do clã Gavião ....................................................... 255
Diagrama 10 – Casamento no clã Gavião .................................................................. 257
Diagrama 11, 12 e 13 – Casamentos Bora anos 1970-1980 ............................... 272-273
Diagrama 14, 15 e 16 – Casamentos Bora anos 2000 ................................................ 275
Diagrama 17 – Adoção de netos pelos avós maternos ............................................... 279

***

Mapa 1 – “Pueblo de los hijos del tabaco, coca y yuca dulce” .................................... 10
Mapa 2 – O caminho do Oriente no Caquetá-Putumayo .............................................. 27
Mapa 3 – Rotas de comércio de pessoas segundo os Bora ........................................... 44
Mapa 4 – Comunidades Bora no Igaraparaná ............................................................ 193
Mapa 5 – Deslocamentos de Kumimarima e família (1890-1957) ............................ 242

***

Figura 1 - Organização espacial segundo os Bora ....................................................... 28


Figura 2 – Croqui das seções caucheiras da Casa Arana no Caquetá-Putumayo ......... 54
Figura 3 – Destaques das seções caucheiras de maior presença Bora .......................... 55
Figura 4 – Os Tempos e as bonanzas ......................................................................... 113
Figura 5 – Colares bora de dentes de onça e flautas de ossos humanos ..................... 124
Figura 6 – Colares de dentes humanos e de onça ....................................................... 125
Figura 7 – Sobreposição entre as duas classificações temporais ................................ 132

ix
Figura 8 – Maloca bora: vigas principais e secundárias ............................................. 180
Figura 9 – A organização interna da maloca bora ...................................................... 186
Figura 10 – Relações órfão-chefe segundo proximidade de parentesco .................... 221
Figura 11 – Posições e movimentação na maloca durante os rituais ......................... 301
Figura 12 – Convites e pagamentos nos rituais .......................................................... 306

x
Glossário

Ao longo dessa tese utilizo destaques em itálico quando faço uso de palavras em
outros idiomas, especialmente em espanhol. Exceções a essa regra são os casos em que
menciono nomes próprios, muito embora eu tenha optado em destacar os nomes em Bora
de personagens míticos. As aspas, em geral, são usadas para citações no corpo do texto e
para enfatizar expressões nativas traduzidas para o português. Não apresentarei abaixo
todas as palavras que se encontram em itálico ao longo deste trabalho, mas privilegiarei
as mais recorrentes. Muitas delas são vocábulos comuns no espanhol amazônico
colombiano e poderão ser encontradas em sua forma plural ou derivada (por exemplo,
origen e orígenes ou mambear e mambeando) e algumas, mesmo que possuam
homônimos em português (p. ex., legítimo, titular e ordinário), serão mantidas em
destaque no intuito de conferir ênfase a seu uso específico entre os Bora. Outras, ainda,
fazem referência a períodos de tempo, artefatos, personagens e substâncias característicos
da história e do modo de vida da região. Segue a lista dessas palavras, cujo objetivo é
auxiliar a leitura do trabalho:

Abuelo – Os pais dos pais de uma pessoa (FF, FM, MM, MF) e, de maneira geral,
qualquer pessoa mais velha a quem o interlocutor de uma conversa deseja conferir
respeito e autoridade. Em Bora, tahdíu ou tahdíyo.

Ambil – Substância em pasta obtida por meio do cozimento à lenha das folhas de tabaco
em panela de barro ou ferro. Quando já se encontra bastante espessa, a mistura é coada e
mesclada com sal vegetal extraído de uma ampla variedade de palmeiras
(Echeverri&Roman-Jitdutjaaño, 2013) e com alguma substância que confira viscosidade
à pasta, como a goma da cacaurana (Theobroma speciosum, Willd ex Spreng). Em Bora,
máánií.

Baile - Palavra usada pelos Bora para referir-se aos rituais que realizam em suas malocas,
diferenciando-se assim de fiestas escolares, católicas, de aniversário, etc. Os bailes
podem ser ordinários ou titulares e há alguns que foram abandonados no último século.
Em Bora, wahtsi.

Bonanza – Palavra em espanhol empregada pelos Bora e os demais Povos do Centro para
referir-se a alguns períodos de tempo nos quais houve uma intensa negociação de
determinadas mercadorias.

xi
Brujo - Maneira pejorativa de referir-se a um xamã ou curandeiro. Atualmente é
empregada de forma corriqueira para referir-se aos xamãs do passado, por sua violência
e periculosidade. Em Bora, ápííchoóbe.

Cabecilla - Parceiro cerimonial do dono-patrocinador de um ritual. Compartilha com esse


último determinada prerrogativa ritual e, ao receber dele uma vultuosa quantidade de
tabaco, torna-se responsável por convidar e organizar os cantores-bailarinos em um baile.
Em Bora, bañejuúbe (literalmente, “o homem do tabaco de convite”).

Cabildo – Instituição pública comum no mundo indígena colombiano. Seu papel


principal é operacionalizar a comunicação entre as comunidades e o Estado, sendo por
vezes uma entidade não-fundiária (isto é, que não necessariamente combina
representatividade e continuidade territorial). Este trabalho desenvolveu-se junto aos
membros dos cabildos bora Providencia, Providencia Nueva e Petani, no rio Igaraparaná.

Cahuana – Bebida de mandioca não-fermentada feita a partir do cozimento em água de


pequenas quantidades de goma de mandioca brava. Muitas vezes é preparada também
com o sumo de algumas frutas (abacaxi, açaí, patauá, etc.) e, nos dias de hoje, com açúcar
(principalmente nos casos em que não há frutas disponíveis). Configura-se como a
principal fonte de ingestão de líquidos dos Bora, que não têm o costume de beber água
“pura”. É importante nos rituais e nas ocasiões em que, por algum mal-estar latente (como
a avareza de um caçador) ou por puro divertimento, homens e mulheres “duelam” nas
malocas oferecendo cahuana uns aos outros até que os presentes se sintam mal ou percam
o controle da urina. Em Bora, cáhgúnuco.

Carrera – Diz-se da prerrogativa ritual que determinados chefes de clã possuem de


realizar rituais de nominação ou bailes titulares.

Caucho – Goma extraída na região do Caquetá-Putumayo principalmente entre as


décadas de 1880 e 1930. Conhecidas na literatura como “sirigas fracas” o “jebes débiles”,
pertencem em sua grande maioria à espécie Hevea guianensis. Em Bora, máákiñi.

Cauchero – Proprietários e empregados de estações de extração e exportação de caucho.

Dieta – Palavra usada para referir-se a restrições alimentares e comportamentais


(resguardo, couvade, reclusão, etc.) que incidem sobre pessoas doentes, grávidas, no
puerpério, que estejam plantando determinados cultivares, dentre outros. Em Bora, awa.

Legítimo – Diz-se, em espanhol, daqueles parentes que possuem uma relação de filiação
biológica entre si. Diferencia-se, assim, dos parentes classificatórios, adotivos ou afins.

Mambe – Substância exclusivamente masculina, preparada e consumida diariamente nos


mambeaderos. Em português, “ipadu” (Alto Rio Negro) ou “padu” (Médio Solimões).
Após a torra das folhas de coca (Erythroxylum coca var. ipadu), as mesmas passam pela
maceração em um pilão de madeira e, em seguida, pela filtragem do pó resultante através
de um saco fino de algodão com estrutura de arame. Finalmente, a substância é misturada

xii
às cinzas de folhas de embaúba (cecropia) e distribuída pelo dono da maloca aos presentes
no mambeadero, que a armazenam em seus pequenos frascos.

Mambeadero – Espaço ritual noturno de reunião dos homens. De frequência diária, as


sessões dos mambeaderos são ocasiões para a discussão de assuntos de interesse
comunitário, a narração de histórias de origen e a cura de pacientes. Geralmente pequenos
bancos são dispostos em círculo dentro da maloca. Os únicos lugares marcados são o
banco do chefe (sempre recostado em um dos quatro esteios da maloca) e os bancos
reservados a um ou dois de seus interlocutores privilegiados (geralmente outros chefes
ou donos de maloca que estejam no local e que, em razão da idade e da posição social,
tem a prerrogativa da fala em relação aos demais).

Mambear – Ato de consumir juntos o mambe e o ambil, muitas vezes no espaço noturno
do mambeadero.

Manguaré – Par de trocanos confeccionado em madeira muito durável por meio da


queima de seu interior. Sendo peças ocas e inteiriças, o artefato é usado como meio de
comunicação (através de um sistema grave/agudo que simula as variações tonais do
idioma Bora) e em momentos rituais. Em Bora, cuúmu.

Manicuera – Nome geralmente dado à bebida feita a partir da goma da “mandioca doce”
(esp.: yuca dulce – bora: pácyoómu), mas não é infrequente que o termo “manicuera” seja
empregado para referir-se ao próprio tubérculo. Apesar de similar à cahuana em relação
a seu preparo, geralmente é feita apenas durante os rituais. Sua presença nos momentos
dos bailes é apontada por sua importância na narrativa de origem dos próprios humanos,
quem tiveram seus corpos preenchidos por manicuera pelo Abuelo Tabaco. Em Bora,
píícaba.

Oración – Cantos-fala usados no tratamento de doenças ou em medidas profiláticas. De


circulação restrita, na maioria das vezes são transmitidos mediante pagamento. Sua
eficácia, geralmente, depende do uso concomitante de tabaco em pasta ou em
charutos/cigarros. Muitas vezes emprego, ao longo da tese, o termo em português
(oração). Em Bora, lluuvaji.

Ordinário – Adjetivo que designa rituais ou bailes que não dependem de uma
prerrogativa ritual de seus donos para serem realizados. São chamados em Bora
simplesmente de wahtsi, o mesmo vocábulo usado para referir-se aos rituais de maneira
geral. Emprega-se o termo ainda para falar sobre nomes que não foram transmitidos em
rituais de nominação ou titulares.

Origen – Palavra usada em espanhol pelos Bora para se referir às histórias “antigas” ou
“profundas” conhecidas por alguém. Em Bora, uubálle. É interessante notar que ao invés
de traduzir o termo nativo por “mito” ou “conto”, a equivalência entre uubálle e origen
coloca em relevo o fato de que toda narrativa mítica diz sobre o surgimento de algo. A
palavra em Bora para referir-se à origem de algo fora dos contextos míticos é déjuco.

xiii
Pós-caucho – Período posterior à atuação da Casa Arana na região. Ao utilizar o termo,
refiro-me especialmente ao que se seguiu depois do ano de 1933 e da saída definitiva dos
caucheiros peruanos do rio Igaraparaná.

Povos do Centro – Conjunto de povos que ocupam a região do Caquetá-Putumayo


(Colômbia), o rio Ampiyacu, Yaguasyacu e Putumayo (Peru), além de algumas Terras
Indígenas no médio Solimões (Brasil) e municípios como Leticia, Bogotá, Medellín,
Tabatinga, Pebas, Iquitos, Uarini, Alvarães e Tefé. Além de compartilharem uma série de
práticas semelhantes, a maioria deles se reconhece, em suas línguas nativas, como Gente
de Centro – onde Centro é, dentre outras coisas, uma referência direta às áreas de mata
fechada e interflúvio dos grandes rios. Fazem parte dos Povos do Centro, além dos Bora,
os Murui-Muina (outrora conhecidos como Uitoto), os Ocaina, os Andoque, os Muinane,
os Miraña, os Nonuya e os Resígaro. Esses povos se reconhecem, ainda, como os “filhos
do tabaco, da coca e da mandioca doce”. Entre os Bora, Piinemúnaa (literalmente, “gente
de centro”) é o etnônimo que usam para definir-se a si mesmos no idioma nativo.

Resguardo - Na Colômbia, segundo os artigos 63 e 329 da Constituição Política nacional,


os resguardos indígenas são entidades fundiárias de propriedade coletiva e de caráter
inalienável, imprescritível e embargável. Os Bora e os demais Povos do Centro ocupam
o Resguardo Indigena Predio Putumayo, com quase seis milhões de hectares, onde esse
trabalho foi majoritariamente desenvolvido.

Titular - Chamados também de carreras de baile ou bailes de carrera, são rituais de


nominação realizados por linhagens maiores de clã com determinadas prerrogativas
cerimoniais. No geral, nomina-se os filhos primogênitos de um chefe. Em Bora, meméva
wahtsi. O termo em espanhol é usado ainda para adjetivar os nomes transmitidos nesses
mesmos rituais.

xiv
Observações sobre o idioma

Vários Bora que vivem no Igaraparaná são, em maior ou menor medida, bilíngues.
Enquanto todas as pessoas idosas dominam bem os dois idiomas, segundo a percepção
dos próprios indígenas alguns adultos possuem uma proficiência mediana em Bora e a
maioria dos jovens fala ou compreende pouco de sua língua nativa. Assim, diversos
termos serão explorados tanto em Bora quanto em espanhol. Para tanto, utilizarei as
convenções (bora: xxxx) e (esp.: xxxx). No primeiro caso, fornecerei entre os parênteses
a tradução dos termos para o idioma Bora. No segundo, apresentarei o sentido das
palavras utilizado pelos Bora e por outros povos vizinhos no espanhol regional.

Em relação ao idioma Bora, algumas considerações facilitarão a leitura desse


trabalho. É necessário mencionar, antes de mais nada, que busquei seguir as convenções
elaboradas por Thiesen & Thiesen (1998) e Thiesen & Weber (2012), missionários do
SIL que atuaram no rio Ampiyacu, Peru. Mesmo que meus interlocutores apontem
imprecisões pontuais (sobretudo fonéticas) entre esses trabalhos e o idioma tal como
falado na Colômbia, esse material foi utilizado para a alfabetização daqueles que
estudaram a língua Bora nas instituições educativas. Seguindo então tais autores, o
alfabeto Bora possui 25 letras:

A, B, C, CH, D, DS, E, G, H, I, I, J, LL, M, N, Ñ, O, P, R, T, TS, U, V, W, Y.

Nem todas as letras soam como em espanhol. Assim, ainda segundo os mesmos
autores:

A soa como /a/; B soa como /p/; C (antes de a, o ou u) ou K (antes de i, ɨ ou e) soam


como /kh/; CH soa como /ʧh/; D soa como /t/; DS soa como /ʦ/ ou como /ɛ/; G soa
como /k/; H soa como /ʔ/; I soa como /i/; I soa como /ɨ/; J soa como /h/ (em sílabas
iniciais) ou como [x] (em sílabas finais); LL soa como /ʧ/; M soa como /m/; N soa
como /n/; Ñ soa como /ɲ/; O soa como /o/; P soa como /ph/; R soa como /ɾ/; T soa
como /th/; TS soa como /ʦh/; U soa como /ɯ/, V soa como /β/; W soa como /kp/; Y
soa como /j/.

As vogais são duplicadas quando se deseja indicar uma pronúncia duas vezes mais

xv
alongada (ex.: aa, ee), e assim sucessivamente (ex.: aaa, eee). Há ainda, dois tons: auto
e baixo. O tom alto sempre é indicado pelo uso do acento agudo. Assim, /a/ = tom baixo,
/á/ = tom alto. No caso de uma variação de tom incidir em vogais consecutivas, teremos,
por exemplo /aá/ (primeira vogal baixa, segunda vocal alta) ou /óo/ (primeira vogal alta,
segunda vocal baixa). Sobre algumas exceções a essa regra, ver Thiesen&Weber (2012,
cap. 7).

xvi
Algumas convenções

Ao longo deste trabalho, lançarei mão de uma série de convenções para expor e
analisar alguns termos e relações. Mesmo que minha intenção tenha sido sempre buscar
o equilíbrio entre o tratamento dos dados e a inteligibilidade da escrita, em algumas partes
dessa tese a boa compreensão dessas convenções será fundamental para acompanhar a
discussão. O que segue, portanto, tem como finalidade auxiliar o leitor não familiarizado
com tais convenções.

Nos diagramas, alguns símbolos gráficos representam pessoas e relações. Dessa


maneira,

Homem Casamento

Mulher Separação

Pessoa Relação de
falecida germanidade

Alguns desses símbolos apresentarão preenchimentos e destaques com diferentes


cores cujos significados serão sempre indicados nas legendas que acompanham os
diagramas. Finalmente, a ordem em que cada um dos símbolos se encontra disposto, da
esquerda para a direita, indica a ordem de nascimento das pessoas (do primogênito ao
caçula).

No corpo do texto, algumas convenções alfanuméricas serão comumente


empregadas. Em primeiro lugar, é importante ter em mente que as gerações serão sempre
indicadas pela letra G. Nesse sentido, G0 indicará a geração de Ego – portanto, a mesma
de seus irmãos e, no mais das vezes, de seus cônjuges (maridos e esposas). Tendo-a como
ponto de referência, as gerações indicadas pelo símbolo G+ fazem referência aos parentes
ascendentes. Logo, os pais de Ego estarão na geração G+1, seus avós na geração G+2, e
assim sucessivamente. A mesma lógica vale para os parentes descendentes: enquanto os
filhos de Ego se encontrarão em G-1, seus netos pertencerão à G-2, e assim

xvii
sucessivamente. Na exposição e análise da terminologia, por vezes uso as seguintes
abreviações: ref. para termos referenciais e voc. para termos vocativos.

Além disso, algumas abreviações para termos ou posições nas relações de


parentesco serão utilizadas. Por convenção, elas farão referência a vocábulos usados na
língua inglesa. Dessa forma,

F = pai (father),
M = mãe (mother),
B = irmão (brother),
Z = irmã (sister),
W = esposa (wife),
H = marido (husband),
D = filha (daugther),
S = filho (son) e
C = filhos (children) de ambos os
sexos.

Quando combinadas, tais abreviações devem ser lidas sempre em inglês. Para o
leitor falante de português ou espanhol, facilita imaginar que as siglas fazem sentido “de
trás para frente”. Logo,

FB = irmão do pai (father’s brother),


MZS = filho da irmã da mãe (mother’s sister son) e
WBC = filhos do irmão da mulher (wife’s brother children).

Em razão da centralidade da ordem de nascimento entre os Bora, algumas


convenções adicionais serão empregadas. Assim, abreviações de tipo B, Z, S e D, quando
acompanhadas da letra e, indicarão senioridade/primogenitura. Por outro lado, quando
estiverem acompanhadas da letra y, indicarão que a pessoa em questão se encontra na
última posição na ordem de nascimentos de um grupo. Além disso, quando essas letras
aparecerem depois das abreviações, farão sempre referência a formas não possuídas. Por
exemplo:

xviii
Be = o irmão mais velho,
Sy = o filho caçula.

Contudo, nos casos em que essas letras antecedem as abreviações, haverá sempre
um Ego em questão. Assim,

eD = a filha mais velha de “X”,


yZ = a irmã caçula de “X”.

Finalmente, ainda a respeito da ordem de nascimentos, há entre os Bora uma


distinção entre um(a) filho(a) ou irmão(ã) mais velho(a) e aquele(a) nascido logo depois.
É algo semelhante ao contraste, em francês, entre aînés e puînés. No caso que
conheceremos, tal diferenciação será relevante apenas entre pessoas do mesmo sexo (ou
seja, entre irmãos ou filhos ou entre irmãs ou filhas). Essa distinção será feita por meio
dos números 1 e 2 subscritos nas abreviações. Por exemplo:

Be1 = o irmão primogênito;


Be2 = o irmão imediatamente mais velho, nascido em seguida ao irmão primogênito.

Enquanto isso,

eD1 = a filha primogênita de “X”;


eD2 = a filha imediatamente mais velha de “X”, nascida em seguida a sua filha
primogênita.

xix
SUMÁRIO

Agradecimentos .............................................................................................................. i
Resumo .......................................................................................................................... iv
Résumé ............................................................................................................................ v

Listas
De tabelas ....................................................................................................................... vi
De fotos ......................................................................................................................... vii
De diagramas, mapas e figuras ....................................................................................... ix

Glossário ........................................................................................................................ xi
Observações sobre o idioma ....................................................................................... xv
Algumas convenções .................................................................................................. xvii

Introdução ...................................................................................................................... 1
i. Os Povos do Centro ...................................................................................................... 5
ii. Os Bora no Igaraparaná ............................................................................................... 8
iii. O trabalho de campo, na Amazônia ......................................................................... 10
iv. O trabalho de campo, nos arquivos: Fonds Guyot ................................................... 18
v. A organização da tese ................................................................................................ 22

Introdução à Parte I – O Oriente ............................................................................... 25


I.1. O que vem do Oriente ........................................................................................... 26
I.2 As bonanzas e os Tempos ....................................................................................... 30

Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias .................................... 34


1.1. O machado ou o Tempo dos Brasileiros ............................................................. 34
1.1.1. A chegada das primeiras mercadorias ..................................................... 34
1.1.2. O Tempo dos Brasileiros ......................................................................... 38
1.2. O caucho ou o Tempo dos Peruanos ................................................................... 48
1.2.1. A Casa Arana e os Bora: terror e resistência ........................................... 52
1.2.2. A denúncia de Roger Casement ............................................................... 66
1.2.3. O conflito colombo-peruano .................................................................... 70
1.2.3. A migração para o Peru e o cataclisma de um mundo esfacelado ........... 72
Capítulo 2 – A vida depois do caucho ........................................................................ 76
2.1. Punto de quiebre: a intervenção do Estado e da Igreja ..................................... 76
2.1.1. Os capuchinhos da Catalunha e sua atuação na Colômbia ...................... 78
2.1.2. O internato de La Chorrera e algumas transformações ........................... 79
2.2. As peles ou o Tempo da Tigrillada ...................................................................... 87
2.2.1. Como se preda um predador? ..................................................................... 87
2.2.2 Técnicas para caçar e para vender ............................................................... 90
2.3. A coca ou o Tempo da Máfia ............................................................................... 93
2.3.1. A origem da coca da Cobra-Grande e do irmão preguiçoso ...................... 93
2.3.2. Mafiosos e Guerrilheiros: narcotráfico e conflito armado ......................... 96
2.3.3. “Como você espera que eu compre meu sabão?” .................................... 101
2.4. A bonanza dos Projetos ...................................................................................... 105

Introdução à Parte II – O Amanhecer ......................................................................112


II.1. Um estranho descompasso ................................................................................ 113
II.1.2. Cestos de vida: um mundo frio e doce .................................................. 115
II.1.3. Cestos de trevas: guerra e violência ...................................................... 120
II.1.4. Os temidos dentes ................................................................................. 127
II.2. Classificações sobrepostas ................................................................................ 128
II.2.1. Tempo dos Animais e Tempo da Abundância ...................................... 133
II.2.2. Xamanismo transformado ..................................................................... 135
II.3. Humanos e animais ........................................................................................... 140
II.4. O Amanhecer ..................................................................................................... 144

Capítulo 3 – O que organiza o mundo? ................................................................... 148


3.1. Elementos do parentesco .................................................................................... 148
3.1.1. Os termos e alguns de seus usos ............................................................ 149
3.1.2. Casando-se à boa distância .................................................................... 158
3.2. A conjugação entre nomes e ordem dos nascimentos ...................................... 165
3.2.1. Nomes múltiplos .................................................................................... 165
3.2.2. Nomes ordinários e titulares ................................................................. 168
3.3. Assimetrias clânicas ............................................................................................ 174
3.4. Malocas e outras unidades residenciais e sociopolíticas .................................. 178
3.4.1. Maloca: centro de tudo, centro do mundo ............................................... 178
3.4.1a. Do lado de fora: quintais e roças ................................................ 183
3.4.1b. Do lado de dentro ...................................................................... 185
3.4.2. Sobre cabildos e comunidades ................................................................ 191

Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos ........................................................................... 199


4.1. Quem é chefe? ..................................................................................................... 199
4.2. Quem é órfão? ..................................................................................................... 203
4.3. Sobre a adoção .................................................................................................... 211
4.4. Gradientes de orfandade .................................................................................... 221
Capítulo 5 – Algumas formas de amanhecer .......................................................... 235
5.1. Kumimarima, o grande abuelo .......................................................................... 235
5.2. A cisão entre Buriti e Amanhecer ..................................................................... 244
5.2.1. Rotas e desvios ...................................................................................... 245
5.2.2. A fundação de novas malocas nos anos 1970 ........................................ 250
5.3. A adoção cerimonial no clã Gavião ................................................................... 253
5.3.1. Reverberações atuais ............................................................................. 257
5.4. De Arara a Cobra-Grande ................................................................................. 260
5.4.1. Breves observações sobre a forma bora de pensar e fazer história ........ 266
5.5. Casamentos atuais .............................................................................................. 270
5.5.1. Casamentos Bora nos anos 1970-1980 .................................................. 272
5.5.2. Casamentos Bora nos anos 2000 ......................................................... 275
5.6. Adotando netos, adotando órfãos ...................................................................... 278

Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras ......................................................................... 289


6.1. Wahtsi, o baile bora ............................................................................................. 290
6.1.1. Bailes ordinários ................................................................................... 291
6.1.2. Méméva wahtsi: carreras ou bailes titulares ......................................... 292
6.2. A vida ritual ........................................................................................................ 297
6.2.1. Os papéis em um baile e sua preparação ............................................... 297
6.2.2. Algumas considerações sobre caça, canções e pagamentos .................. 303
6.2.3. A véspera ............................................................................................... 308
6.2.4. O dia (e a noite) do ritual ....................................................................... 310
6.3. Ujcútso ou Carijona ............................................................................................. 315
6.4. Meémeba ou Baile de Chicha ............................................................................. 320
6.5. Apújco ou Baile de Fruta .................................................................................... 328
6.6. Túrií ou Baile de Charapa ................................................................................... 330
6.7. Llaaríwa, Tóóllíuwa e Ihchúba ........................................................................... 331
6.8 Llaacomu, Pópoóhe e Píchojpa ............................................................................ 341
6.9. A controvérsia de Báhjaá .................................................................................... 342
6.10. Cantos de sangue e de calor: antropofagia e vingança ................................. 345

Capítulo 7 – Cantar para amanhecer: cestos tampados e retomadas .................. 354


7.1. O destino de Kumimarima ................................................................................ 355
7.2. A fixação no Igaraparaná e a retomada dos rituais ........................................ 359
7.2.1. O ritual Tóóllíuwa de 1965 e as canções transformadas ........................ 360
7.2.2. O fim dos anos 1980: ressurgimento do trocano llaaríwa e do ritual
Pópoóhe ........................................................................................................... 362
7.2.3. Os anos 2000 .......................................................................................... 366
7.3. Llaaríwa e a fabricação ritual de chefes-Garça ............................................... 370
7.3.1. A Garça-Branca enquanto chefe ideal ................................................... 372
7.3.2. Os chefes-Garça como produtores de parentesco .................................. 377
7.4. Ujcútso e o mundo do Oriente ........................................................................... 388
7.4.1. O ritual Ujcútso e a troca de governador ............................................... 389
7.4.2. Um ritual para esfriar o mundo .............................................................. 394
Conclusão ................................................................................................................... 397
i. Quando o Bom-Orador derrotou a força dos animais .............................................. 401
ii. Algumas vias possíveis para se pensar sobre o deslocamento da violência ........... 411

Referências bibliográficas ......................................................................................... 417

Anexos:
Anexo 1 – Inventaire du Fonds Guyot ........................................................................ 436
Anexo 2 – Acta de entrega e Acuerdo sobre el acceso ............................................... 452
Introdução

Em abril de 2015, depois de dez dias em La Chorrera, onde me hospedava na casa


de uma senhora Murui-Muina, a família com quem eu passaria os anos seguintes chegou
ao vilarejo1. Tratava-se do filho primogênito de minha anfitriã, sua nora e dois de seus
netos. A princípio surpresos com minha presença, logo acolheram-me com simpatia e
permitiram que eu os acompanhasse na viagem de volta à maloca onde viviam.
Afirmaram que, no lugar e hora adequados, iríamos conversar sobre minha pesquisa.

Àquela altura, eu já havia estado com alguns Bora em La Chorrera e feito breves
reuniões com líderes que me diziam, unanimemente, que deveria ser respeitada a decisão
e os acordos que fossem estabelecidos junto aos cabildos bora, de modo que a associação
regional não tinha o poder de aceitar ou recusar minha permanência nas comunidades.
Assim que cheguei ao território dos Bora com meus novos anfitriões, foi marcada uma
reunião noturna com todos os donos de maloca da região.

Eu já sabia, por meio de minhas leituras, da importância dos mambeaderos,


espaços noturnos de discussão existentes entre os Bora e outros povos do Caquetá-
Putumayo. Contudo, até o momento eu havia lido autores que discorriam sobre o
conteúdo, mas que pouco falavam sobre a forma de tais encontros. Voltando do rio após
o banho, com minha lanterna na mão, percorri apreensiva o caminho já escuro que me
levava à maloca. Um pouco mais cedo, eu havia escutado o som então enigmático das
mensagens dos trocanos, sem ter a mínima ideia do que diziam. Agora, ouvia ao fundo o
barulho de golpes constantes e cadenciados. Supus, com acerto, que se tratava do pilão
usado na produção de mambe2. Estava iniciada a sessão do mambeadero. Muitas
perguntas me acompanhavam: eu deveria aguardar ser chamada antes de entrar? Poderia
usar qualquer uma das portas? Uma vez dentro da maloca, deveria sentar-me com os
homens ou atar minha rede distante, com as mulheres? Era de bom tom que eu falasse
logo alguma coisa ou melhor seria esperar que me passassem a palavra?

1
Ao longo desse trabalho, seguindo uma demanda dos próprios indígenas, utilizo a autodefinição Murui-
Muina para referir-me àqueles que no geral aparecem na literatura sob a alcunha de Uitoto, Huitoto ou
Witoto.
2
Conforme indicação presente no Glossário dessa tese, o mambe (similar ao padú ou ipadú, em português)
é uma substância de uso masculino feita a partir de folhas de coca e cinzas de folhas de embaúba. A
substância é central nas narrativas de origen e nos espaços noturnos de diálogo (mambeaderos). Mais
informações sobre o tema podem ser encontradas, entre outros, em Echeverri e Pereira (2005).

1
Introdução

Chegando à porta, vi na penumbra meu anfitrião, que é também o chefe de seu


clã, o dono daquela maloca e o diretor da escola local. Ele estava sentado em um
banquinho, com a cabeça baixa, os olhos cerrados e as costas apoiadas em um dos quatro
esteios da construção. A seu redor havia pelo menos uma dezena de homens em silêncio,
cujos rostos eu não podia enxergar com nitidez. Ao me notar, antevendo minhas
preocupações e certamente observando minha apreensão, ele me disse: “Venha, venha,
entre! Aqui, na minha maloca, eu recebo bem a todos. Aqui eu recebo homens, mulheres,
brancos, indígenas (paisanos3)... até órfãos. Eu também recebo órfãos aqui”.

Durante aquela noite, ouvi com atenção as reclamações, exigências e expectativas


que os Bora tinham em relação ao trabalho de um(a) antropólogo(a). Após debatermos e
eu me ausentar por uns momentos da maloca, voltei à reunião e tive a confirmação de que
poderia permanecer entre eles, desde que meu trabalho fosse alvo de avaliação constante
das comunidades, dos chefes e dos donos de maloca. Já entrada a madrugada, voltei à
minha rede sonolenta e contente com o desfecho, mas intrigada com a fala algo
enigmática que havia escutado logo no começo da reunião. Tempos depois, revisando
meus cadernos de campo, me dei conta de que minha única anotação naquela noite foi:
huérfanos???

Lembro-me que, a princípio, pensei que havia entendido mal a palavra, afinal de
contas eu apenas começava a conhecer o vocabulário do espanhol falado naquela região.
Contudo, com o passar dos dias, os huérfanos ou órfãos foram aparecendo em sentenças
cujo sentido eu podia apreender apenas parcialmente.

Em minha segunda incursão a campo, em julho de 2015, programei uma estadia


mais longa entre os Bora. A intenção era atualizar o censo das comunidades e realizar um
diagnóstico sociolinguístico simples, seguindo uma demanda dos donos de maloca. Para
mim, essa seria uma oportunidade de conhecer mais de perto as malocas dispersas num
extenso território e as famílias que ali viviam. Quando ainda estava junto aos regatões no
porto em La Chorrera, organizando a compra de gasolina e de alguns mantimentos,
encontrei a mesma senhora que havia me acolhido em minha primeira viagem. Ela era,
como disse, mãe do chefe que desde a primeira viagem havia se tornado meu anfitrião.
Ela então me perguntou: “Onde está o seu patrão?”. Logo de cara, pensei que ela falava
sobre o comerciante que me atendia. Apontei então na direção para onde o homem havia

3
Paisanos é a palavra usada em espanhol para referir-se a todo e qualquer indígena, principalmente em
relações interétnicas. É algo parecido ao “parente” usado pelos indígenas que vivem no Brasil.

2
Introdução

partido a fim de medir num balde a quantidade de combustível que eu iria levar. Ao
observar que não entendi bem sua pergunta, ela repetiu: “Onde está ele, o seu chefe?”.

Num estalo, entendi que ela falava de seu próprio filho, meu anfitrião. Informei
onde ele estava e, pouco depois, partimos para a maloca. Lá chegando, me dei conta de
que ali viviam dois muchachos (um menino e uma menina com idades entre 15 e 18 anos)
que não eram parentes próximos dos donos da maloca, mas realizavam tarefas cotidianas
para o casal: trazer lenha, pescar, trabalhar nas roças, cozinhar, varrer a maloca, preparar
o mambe, o ambil e o beiju. Desde o princípio, foi um pouco difícil entender exatamente
qual era a contrapartida do trabalho que desempenhavam. Percebendo as muitas tarefas
diárias que lhes cabiam face à minha relativa ociosidade, terminei por ajudar-lhes como
podia em afazeres como limpar o pátio da maloca, processar a massa de mandioca para a
extração da goma e limpar o peixe que vinha da malhadeira deixada pelo menino no
igarapé. Com o tempo, passaram a tratar-me como uma estranha companheira que, ao
mesmo tempo em que tinha certas regalias, ajudava no trabalho que lhes era incumbido.
Nessa época, não foram raras as vezes em que a muchacha me perguntou “onde está nossa
patroa?” e eu indiquei onde a mulher do dono da maloca se encontrava. Desde então,
conheci outros muchachos que tinham vivido nessa maloca, a maioria deles vindos de
uma mesma comunidade murui-muina a montante.

Com a passar dos anos, realizei alguns trabalhos extra-acadêmicos junto aos Bora
(os famosos “projetos” – ver cap. 2) e, além disso, eles constataram que de fato eu possuía
uma família no Brasil que cuidava de mim. A partir da mudança em relação à posição
que eu ocupava nas dinâmicas locais e da percepção nativa sobre as relações de
parentesco que eu comprovadamente possuía alhures, cada vez mais se tornaram escassas
as referências ao meu “chefe” ou “patrão”. Esses episódios iniciais, entretanto, aguçaram
minha curiosidade, a qual fora despertada inicialmente pelo estranhamento que eu havia
sentido desde meu primeiro contato com a literatura sobre a região.

Uma vez decidida a tentar realizar um trabalho de campo no interflúvio dos rios
Caquetá e Putumayo, a primeira monografia sobre a qual me debrucei foi La raison du
corps: idéologie du corps et représentation de l’environnement chez les Miraña
d’Amazonie colombienne, de Dimitri Karadimas (2005), o qual trabalhou por muitos anos
com os Miraña, povo vizinho de língua idêntica a dos Bora. Para alguém familiarizado
com a literatura etnológica sobre a Amazônia, o primeiro desafio posto pela leitura deste
livro é o de enfrentar o estranhamento causado por seu material de campo e suas análises.

3
Introdução

Explico-me: se a literatura produzida sobre os ameríndios nos últimos vinte anos é


povoada por termos como “animismo”, “perspectivismo”, “multinaturalismo” e, mais
diretamente, pela concepção quase unânime de que na Amazônia a humanidade é
simetricamente estendida a muitos seres do cosmos, a etnografia de Karadimas põe em
questão a necessidade de não se aplicar de forma automática tais conceitos. Embora um
diálogo com esse trabalho não seja o foco principal desta tese, sua leitura foi suficiente
para me fazer entender que eu adentrava em um terreno diferente, cujos dados ainda não
haviam servido às análises comparativas da etnologia regional.

Isso não significa, contudo, que a área seja carente de pesquisas. Ao contrário, há
atualmente excelentes etnografias sobre os povos da região, tais como Londoño Sulkin
(2001, 2004) para os Muinane e Echeverri (1997, 2005), Griffths (1998), Pereira (2005,
2012), Sanchéz (2012), Moreno (2017) e García (2018) para os Murui-Muina. Porém, tão
logo o estranhamento gerado pela leitura do livro de Karadimas aliou-se à minha
incompreensão acerca do lugar dos órfãos (mencionados de maneira dispersa em todos
os trabalhos sobre os povo do Caquetá-Putumayo), percebi que eu me encontrava diante
de uma área que muito tem a contribuir para debates sobre, por exemplo, a aplicabilidade
e os limites das relações assimétricas na Amazônia.

Enquanto eu buscava entender o que era ser órfão entre os Bora, percebi que tal
conceito apenas poderia ser abordado a partir de sua relação intrínseca com seu oposto
complementar – a saber, o de chefe. O fio condutor desta tese são, portanto, os caminhos
e os descaminhos da intensa relação entre chefes e órfãos ao longo do tempo,
particularmente no decorrer do século XX. Nesse período, veremos como as fontes
disponíveis oscilaram entre apresentar os povos da região ora como ávidos guerreiros,
ora como indígenas pacíficos em busca da consolidação de uma vida não-violenta. Esse
descompasso, notado desde minhas primeiras leituras, diz antes respeito a uma série de
transformações internas, debatidas e operadas por esses povos, do que a uma inadequação
das fontes. Ao analisar tais transformações, veremos como a dinâmica entre chefia e
orfandade encontra-se no centro do mundo bora, pois ela opera, ali, como um par
relacional que organiza outras relações. Espero que, ao longo desse trabalho, o(a) leitor(a)
experimente o mesmo incômodo produtivo que o trabalho de campo causou em mim.
Porém, antes de iniciarmos esse trajeto, é mister localizar os próprios Bora em um quadro
regional mais amplo, bem como melhor compreender de que maneira cheguei até eles.

4
Introdução

i. Os Povos do Centro
No terceiro volume do clássico Handbook of South American Indians, Steward
(1948: 749-762) busca definir, em linhas gerais, o conjunto de populações por ele
denominadas como Witotoan Tribes. Habitantes do curso médio dos rios Caquetá,
Putumayo e seus tributários, imaginava-se à época que tais grupos, próximos
culturalmente aos vizinhos Tukano, fossem falantes de uma língua Tupi. Sabemos hoje
que, linguisticamente, tais populações são bem mais heterogêneas do que se supunha
antes. Como sintetiza Echeverri: “Esta región es el territorio de siete grupos
etnolingüisticos que pertenecen a la familias lingüísticas Witoto (uitoto, ocaina y
nonuya), Bora (bora-miraña y muinane), Arawak (resígaro) y una lengua aislada
(andoque).” (2015: 11-12).

Apesar da grande heterogeneidade lingüística, os especialistas tendem a tomar a


região como uma área cultural homogênea, embora não a tenham aproximado de outros
sistemas multiétnicos e plurilíngues como o Alto Rio Negro e o Alto Xingu (os quais,
como veremos, se parecem em muitos aspectos aos povos do Caquetá-Putumayo). Alguns
autores empenharam-se em apontar quais seriam os atributos que diferenciariam essas
populações das outras existentes na Alta Amazônia. O uso da pasta de tabaco (ambil)
surge como um traço recorrente nessa tentativa de caracterização:

Un rasgo clave que distingue a los grupos de la región del Caquetá-


Putumayo de sus vecinos es el consumo del tabaco lamido, rasgo
exclusivo de estos grupos en toda la Amazonía noroccidental (...). La
pasta de tabaco consumida por estos grupos (ambil, en español local)
es un extracto obtenido de cocinar las hojas del tabaco. La pasta de
tabaco es usada junto a la coca molida en ocasiones rituales, y en la vida
cotidiana. Estos grupos se autodenominan Gente de ambil. También
utilizan el término Gente de Centro. (Echeverri, 2015 – 13).

A autodenominação Gente de Centro é, como veremos ao longo deste trabalho,


comum aos sete grupos etnolinguísticos supracitados. Por questões de tradução, opto por
utilizar doravante a definição Povos do Centro, acionando-a sempre que desejar referir-
me ao conjunto de povos formados pelos Bora, Miraña, Murui-Muina, Ocaina, Nonuya,
Muinane, Resígaro e Andoque. Ademais, é necessário levar em consideração que essa
autodefinição parece ser, como apontado por Echeverri, o “reflejo de un proceso de
construcción de identidad de un nuevo tipo de comunidad moral” (2005: 14). Nesse
sentido, defendo que a disseminação na região do termo Povos do Centro foi um dos
elementos contidos em um processo mais amplo, que irei explorar ao longo deste

5
Introdução

trabalho. Refiro-me, aqui, à consolidação de uma “reorganização social4”, que conduziu


à paz regional entre os Povos do Centro e ao movimento correspondente de autodefinição
desses povos como “filhos do tabaco, da coca e da mandioca doce”.

Segundo os Bora, a diferença dos Povos do Centro em relação aos outros povos
indígenas reside no fato de que os primeiros são todos filhos do Abuelo Tabaco ou
Tabaco-de-Nossa-Criação (Mepiívye Bañehe). Estando o Abuelo Tabaco sozinho, ele
criou um esqueleto humano (duas pernas, dois braços, tronco e cabeça) com seus próprios
galhos. Para fazer o coração, escolheu uma semente da mata; para os pulmões, a espuma
da manicuera; para a língua, uma folha cheirosa. Então, soprou na sua criatura um “ar de
vida”, inflando os pulmões e fazendo com que o coração começasse a bombear sangue
(que, por sua vez, era também manicuera). Para ter forças em seu trabalho, Abuelo
Tabaco usou coca na forma de mambe e ordenou a seus filhos que também o fizessem.
Em outras versões dessa origen, diz-se que a cabeça dos filhos do Abuelo Tabaco foi feita
a partir de sementes de tabaco, enquanto suas línguas foram feitas de folhas de coca. Se
há versões variadas de tal narrativa, em todas elas os Povos do Centro possuem corpos
que foram fabricados a partir do tabaco, da coca e da mandioca doce.

De maneira geral, meus interlocutores marcam uma clara diferença entre os Povos
do Centro, que habitam o interflúvio do médio Caquetá-Putumayo, e povos vizinhos, tais
como os Yukuna, os Matapi, os Makuna, os Letuama, os Yagua, os Cocama, os Tikuna,
dentre outros. Segundo Karadimas, enquanto os Miraña afirmam que os Povos do Centro
são Nì:mú’è mùínà, ou “Gente de Deus5”, os demais povos indígenas seriam Iámè
Mùínáà, ou “Gente dos Animais”. A principal diferença, para o autor, encontrar-se-ia nas
maneiras pelas quais as curas são realizadas.

Ceux des groupes qui appartiennent à la première catégorie : nì:mú’è


mùínáà ‘Gens de Umari’, ou ‘Gens de Dieu’, dédient du tabac et de la
coca à un ‘esprit’ (un être possédé par chacun en son corps) qui est une
sorte ‘d’esprit tutélaire’ (...) alors que ceux de la seconde catégorie :
ìámè mùínáà ‘Gens des Animaux’, ne se référeraient, d’après les
Miraña, à aucun ‘esprit’ ou ‘être intérieur’, sinon qu’ils mènent leurs
cures sans celui-ci, ou encore qu’ils se réfèrent à des esprits d’animaux
(...). Les esprits des animaux sont en effet, comme nous le montrerons

4
Tomo aqui de empréstimo o termo cunhado por Pereira (1999) em sua dissertação de mestrado ao pensar
sobre os Povos do Centro após o período caucheiro.
5
A tradução do vocábulo Niimúhe na língua Bora-Miraña é, como veremos à frente, complicada. Por não
me satisfazer com a correlação entre Niimuhe e Deus, opto neste trabalho por usar o termo indígena. Da
mesma maneira, meus interlocutores julgam improcedente a tradução alternativa de Karadimas (2001) e
Guyot (fg_b9) que correlacionam Niimúhe e o vocábulo níímuhe (que por sua vez designa a árvore do
umari, Poraqueiba sericea).

6
Introdução

plus loin, les principaux responsables des maladies. (Karadimas, 2001:


105)

Mesmo que não afirmem, à maneira miraña, que os povos vizinhos (Yukuna,
Tikuna, Yagua, etc.) sejam Gente dos Animais, os Bora atribuem a eles práticas
xamânicas inadequadas e daninhas. Para meus interlocutores, tais povos não foram
criados por Iyáábe Niimuhe, o mestre dos animais, mas relacionam-se com ele de forma
direta ao não utilizarem o Tabaco como principal agente protetivo e curativo. Voltaremos
a esse tema na Introdução à Parte II e na Conclusão, quando veremos que os Povos do
Centro se diferenciam de alguns de seus vizinhos ao não estabelecerem com os animais
relações de troca ou parentesco. Por ora, permitam-me notar outras especificidades dessas
populações que chamam a atenção. Gasché propõe uma maneira de delinear os critérios
de pertencimento aos Povos do Centro para além do uso do ambil e o de
compartilhamento uma mesma origem:

Esta capacidad de concelebrar fiestas entre miembros de todos los


pueblos de la Gente del Centro funda su sociedad, aun cuando, en la
práctica, estas concelebraciones se hacen mayormente entre grupos
locales (“malocas”) vecinas o cercanas. Las relaciones de
concelebración son transitivas, reuniendo grupos de cerca en cerca, a
través de todo el territorio de la Gente del Centro, pero no más allá.
Donde las concelebraciones se terminan, se termina el territorio de la
Gente del Centro. (…) La sociedad de la Gente del Centro no es una
abstracción, en primera instancia, sino, ante todo, un conjunto de
prácticas observables que vinculan unidades residenciales locales o
familias entre sí según criterios variables que conllevan derechos,
obligaciones y conductas específicos que se vuelven observables
durante las fiestas o bailes. (Gasché, 2009: 6)

Nessa leitura, o autorreconhecimento compartilhado entre os Povos do Centro


conforma uma rede cujos limites são traçados de acordo com a extensão das relações
rituais existentes entre unidades domésticas distintas6. Em suma, os Povos do Centro
fazem bailes entre si, mas não costumam dançar e cantar com aqueles que os Miraña
definem como Gente dos Animais. A combinação de todos esses traços comuns faz com
que Gasché sustente que os Povos do Centro formam uma só sociedade:

La Gente del Centro puede considerarse como una sociedad que


obedece a principios generales comunes, pero los realiza con muchas
variantes locales – étnicas, clánicas, domésticas – y dentro de relaciones

6
Essa análise certamente seria procedente para os povos que vivem no rio Igaraparaná ou Caraparaná, mas
sua aplicabilidade se torna mais delicada quando levamos em consideração o fato de que, por exemplo, os
Miraña que vivem no rio Caquetá participam dos rituais Yukuna e vice-versa.

7
Introdução

entre unidades domésticas (malocas) vecinas y distantes, sin que las


fronteras lingüísticas signifiquen barreras (Gasché, 2009: 3).

Seria pertinente analisar qual a concepção de “sociedade” em jogo para o autor.


Por si só, esse é um tema particularmente complexo que reverbera em trabalhos acerca
de outros complexos multiétnicos como o rionegrino ou xinguano, os quais já foram
caracterizados como “sistemas”, “comunidades morais”, “comunidades regionais”,
“constelações” e mesmo “sociedades”. Por ora, contudo, interessa-me apenas a ênfase
dada por Gasché nas “múltiplas variantes locais” existentes entre os Povos do Centro.
Nesse sentido, se as diferenças linguísticas são evidentes, o que mais diferencia os Bora
dos outros Povos do Centro?

ii. Os Bora no Igaraparaná

Os Bora denominam a si mesmos Piinemúnaa. Enquanto piine significa “meio”,


“lugar central”, “metade”, “entre”, “no meio de” ou “cintura”, múnaa quer dizer “gente”,
“humanos” ou “parentes” (Thiesen & Thiesen, 1998)7. Assim como ocorre com outros
etnônimos usados para os demais Povos do Centro, a palavra “bora” nada significa na
língua nativa:

Assim, os etnônimos aparecem apenas em determinados contextos e


principalmente naqueles de contato com os não-indígenas. Isso é
reforçado pelo fato de que tais etnônimos, em geral, não têm um
significado nas línguas nativas, mas são derivações de nomes atribuídos
nas relações com grupos exteriores àqueles do Caquetá-Putumayo ou
mesmo com antigos não-indígenas que exploraram a região. (Lucas,
2018a: 192).

Para o caso dos Bora, Echeverri (2015: 13) afirma que borárede significa, em
Murui-Muina, “ser amarelo”. Tal vocábulo, por sua vez, faria referência à coloração mais
clara da pele dos Bora em relação a de seus vizinhos e teria sido adotada em toda a região
pelo menos desde o fim do século XIX. Os Bora confirmam tal referência, mas têm
preferido, cada vez mais, valorizar a autodefinição Piinemúnaa nas situações de interação
com outros grupos e com os não-indígenas.

Ao mencionar sua relação com os outros Povos do Centro, não raro os Bora
aludem a um conjunto de diacríticos que os diferenciam. Por exemplo, salientam sempre

7
Para uma exposição sobre os sentidos possíveis para o conceito de “centro”, ver a Introdução à Parte I.
Ali, é possível vislumbrar como essa noção é relevante para compreender as relações dos Bora com outros
povos indígenas e com os não-indígenas que chegaram à região a partir do século XVIII.

8
Introdução

o fato de que sua alimentação é diferente, pois eles costumam fazer todos os dias um
grande beiju com duas camadas de goma de tapioca fresca, enquanto os Murui-Muina
fazem beijus mais secos e amarelados, com massa de mandioca madura (a mesma
utilizada para fazer farinha pubada)8. Aos Bora atribui-se, ainda, a exclusividade de certas
práticas rituais: ademais de serem conhecidos por promover disputas espontâneas entre
homens e mulheres para o consumo desenfreado de cahuana (bebida de mandioca não
fermentada), realizam o ritual da bebida de pupunha (Meémeba), cuja realização é
compartilhada apenas com o Miraña e os Andoque que vivem no rio Caquetá.

No tocante às relações internas, são reconhecidos como Bora todos aqueles que,
por meio da filiação legítima ou adotiva (ver cap. 4), pertencem a um dos diversos clãs
patrilineares bora. Os clãs, geralmente, coincidem com unidades domésticas (malocas e
comunidades – ver cap. 3) que, em sua maioria, encontram-se no rio Igaraparaná9. Esse
trabalho foi desenvolvido em nove comunidades bora no médio Igaraparaná, um
tributário da parte baixa do rio Putumayo localizado dentro da área do Resguardo
Indigena Predio Putumayo. Segundo levantamento demográfico feito por mim, em 2015
residiam permanentemente nessas comunidades cerca de 186 pessoas. Outras tantas,
porém, transitam cotidianamente entre La Chorrera e suas comunidades de origem,
possuindo às vezes casas em ambos os lugares10.

O mapa abaixo, elaborado pelos próprios indígenas, apresenta de maneira


esquemática a ocupação da região do Caquetá-Putumayo por cada um dos Povos do
Centro que vivem nesse resguardo. Muito embora as malocas e as comunidades contem
com pessoas de diferentes filiações, reconhece-se localmente o território de cada povo
(ver áreas em destaque). Esse reconhecimento depende de uma intricada dinâmica entre
territórios de origem e migrações mais ou menos recentes, que, em si, poderiam muito
bem ser o tema de uma outra tese.

8
Para a elaboração de tais beijus, os Bora utilizam um tipiti (bora: booáju, esp.: matafrío) diferente daquele
empregado pelos Murui-Muina, que por sua vez empregam pilões horizontais para a preparação da massa
madura.
9
Veremos que também existem indígenas Bora vivendo no Peru (especialmente no rio Ampiyacu e nas
cidades de Pebas e Iquitos) e em cidades colombianas como Leticia, Bogotá e Medellín.
10
Para um quadro mais detalhado acerca da demografia atual das comunidades Bora, ver item 3.4.2. Para
estimativas demográficas de longo prazo, ver item 1.2.3.

9
Introdução

Mapa 1 – “Pueblo de los hijos del tabaco, coca y yuca dulce” (Fonte: AZICATCH, 2004: 69)

iii. O trabalho de campo, na Amazônia

Estive na Amazônia pela primeira vez em 2009, quando ainda era aluna de
graduação. De lá para cá, apenas no ano de 2012 não regressei à região. Nesse período,
pude conhecer mais a fundo a região das Guianas, onde trabalhei na graduação e no
mestrado, respectivamente junto aos Waiwai e aos Hixkaryana (Lucas, 2014). Se os
roteiros e as motivações dessas primeiras experiências de campo foram diversos, é certo
que elas influenciaram diretamente meu trabalho atual. Minha familiaridade com a região
guianense e a etnografia carib contribuíram para que eu me aproximasse do mundo do
Caquetá-Putumayo com um olhar comparativo que acabou por realçar certas distinções.
Ao chegar à região, não demorei a notar que estava diante de um mundo profundamente
diferente daquele dos grupos com os quais havia trabalhado antes.

Após o fim do mestrado, decidi mudar de área etnográfica e tema de pesquisa.


Após avaliar diversas alternativas, resolvi seguir a intuição de Jean-Pierre Chaumeil, que,
por meio de uma conversa com meu orientador e reagindo a um interesse inicial que eu
possuía em estudar os Yagua na região de Caballococha, sugeriu que eu buscasse

10
Introdução

informações sobre os Bora, povo ainda pouco conhecido na literatura sobre a Amazônia
colombiana. Além disso, Chaumeil se pôs à disposição de, num futuro próximo e caso
minha pesquisa se concretizasse, me colocar em contato com o Fonds Guyot, arquivo
então depositado no laboratório EREA (Enseignement et Recherche en Ethnologie
Amérindienne), na Universidade Paris Nanterre.

Assim, em fevereiro de 2015, parti pela primeira vez à tríplice fronteira entre
Brasil, Colômbia e Peru. Por não possuir muitos contatos na região, ao chegar busquei
indígenas e pesquisadores que poderiam me indicar possíveis formas de começar meu
trabalho de campo. Menos de um mês depois, realizei uma viagem de cerca de 3 semanas
às comunidades multiétnicas no baixo Putumayo peruano, entre as localidades de El
Estrecho e Tarapacá. Na ocasião, eu acompanhava uma equipe da ONG peruana IBC
(Instituto El Bien Común) que buscava validar planes de vida elaborados anteriormente
nessas comunidades11. Essa foi uma valiosa oportunidade de entrar em contato com os
Bora que ali viviam, conhecer uma região importante na história dos Povos do Centro e,
ainda, inteirar-me do cenário indígena do município de Iquitos (onde eu ainda voltaria
uma vez mais, em 2017).

De regresso a Leticia, cidade colombiana da tríplice fronteira entre Brasil, Peru e


Colômbia, dei-me conta de que um trabalho de campo no rio Putumayo não parecia uma
opção interessante. Concentrei meus esforços, assim, em viajar tão logo fosse possível
para La Chorrera. Por telefone, entrei em contato com a AZICATCH (Asociación Zonal
Indígena de Cabildos Tradicionales de La Chorrera) pedindo permissão para realizar uma
visita e apresentar às lideranças minha proposta, o que me foi concedido. Em seguida,
passei cerca de um mês na região, tempo que foi dividido entre uma longa espera em La
Chorrera pela chegada dos Bora (que por sua vez não sabiam de minha presença em razão
da falta de sistema de radiofonia) e um curto período nas comunidades do médio rio
Igaraparaná. Ali, além de visitar todas as malocas bora do perímetro, realizei a primeira
reunião noturna que descrevi há pouco.

A partir de meu diálogo com as autoridades indígenas bora, ficou-lhes claro que
eu não tinha condições de obter sozinha os meios materiais e logísticos que instituições
como o Estado e grandes ONGs possuem para colocar suas ações em prática. Logo, ficou
acordado que a contrapartida de meu trabalho seria, além de ajudar a escola e os cabildos

11
Para uma exposição acerca dos planes de vida, ver Pereira (2005).

11
Introdução

locais, empenhar-me em formular iniciativas que suprissem algumas demandas indígenas


como projetos para a valorização das práticas culturais, iniciativas de revitalização da
língua e assessoria na elaboração de projetos. Apesar de minhas muitas limitações, é o
que tenho buscado fazer nos últimos anos.

A concretização de algumas dessas iniciativas só foi possível porque os Bora,


desde nosso primeiro contato, deixaram claro as possibilidades e as expectativas em
relação à minha pesquisa, além de estabelecerem que meu trabalho deveria ser alvo de
avaliação constante das comunidades locais e de suas autoridades. Ficou ainda decidido
que o trabalho de gravação ou registro com os abuelos deveria sempre vir acompanhado
de um reconocimiento em forma de mantimentos, mercadorias ou dinheiro, pois ao
mesmo tempo em que essa seria uma forma de ingresso de recursos para as famílias, é
prática análoga à realizada pelos próprios Bora que desejam investigar mais a fundo a
origem mítica de algo ou aprender uma “oração” (ver Int. à Parte II). Finalmente,
acordamos que determinados conteúdos permaneceriam fora do escopo de minha
pesquisa, de modo que ficou vetado o registro de determinadas narrativas míticas, a grafia
do nome de alguns personagens dessas mesmas histórias e, principalmente, a gravação
sonora ou o registro escrito de orações de cura.

Apesar de ter registrado em áudio diversos rituais, a maioria das gravações feitas
fora dos ambientes dos bailes não gerou materiais que pudessem ser utilizados nesse
trabalho. A princípio, pensei que isso acontecia em razão do reconocimiento financeiro:
uma vez que os abuelos nunca dizem quanto esperam receber pelos registros, instalava-
se em mim a desconfiança de que eu oferecia quantias pequenas ou insuficientes, o que
os fazia ficar em silêncio ou dizer as coisas apenas “por encimita, no más”. Tal suspeita
foi paulatinamente substituída pela percepção de que não era esse o caso, já que por
diversas vezes os abuelos, mesmo com uma boa retribuição financeira, não se mostravam
interessados em que contar o que sabiam diante do gravador. Com o tempo, ao frequentar
diariamente os mambeaderos e conhecer diversas narrativas sobre os mitos e outros
acontecimentos do passado, entendi finalmente que existe certa forma de transmissão de
conhecimento na qual os conteúdos são repetidamente ouvidos pela audiência até que os
próprios ouvintes se transformem em narradores e sejam capazes eles mesmos de contar
sua própria versão daquilo que escutaram. Dessa forma, várias das narrativas que
apresentarei ao longo desta tese são compilações de gravações fragmentadas, de muitas
anotações em meu caderno de campo e de informações que fui eu mesma memorizando

12
Introdução

e incorporando ao meu “cesto”12 à medida que me acostumava ao mundo bora. No limite,


muito do que segue é, assim, minha própria versão sobre o que ouvi e aprendi com meus
interlocutores – o que, por consequência, faz com que os eventuais equívocos sejam de
fato de minha inteira responsabilidade.

Entender as dinâmicas nativas foi, aliás, um esforço abrangente, pois os próprios


termos acerca da realização de minha pesquisa foram alvo de rearranjos e conversas ao
longo de todo o trabalho. Após a primeira incursão, realizei outras cinco viagens a campo,
com durações que variaram de 2 semanas a 4 meses. Nestas, foram muitas as intempéries
que incidiram sobre minhas estadias. A maioria delas relacionava-se com a suspensão ou
o adiamento das atividades de tráfego aéreo na região, uma vez que a única maneira viável
de chegar a La Chorrera é por meio de um voo de quase duas horas de duração que, com
sorte, parte quinzenalmente de Leticia. Ainda assim, permaneci, entre 2015 e 2018, cerca
de 14 meses nas comunidades Bora.

É relevante dizer, ainda, que estive por volta de 8 meses na cidade de Leticia, onde
residi permanentemente ao longo de parte dos anos de 2015 e 2016. Isso fez com que eu
estabelecesse contato cotidiano com diversos Bora que vivem no município e com aqueles
que, por motivos diversos, passam um tempo na cidade. Ainda que esse não seja o foco
de minha investigação, estou certa de que tal vivência – aliada às visitas que fiz às malocas
e mambeaderos no perímetro urbano de Leticia – contribuiu muito para a construção de
meus interesses de pesquisa e das relações com meus interlocutores e amigos bora.

As condições de realização de minha investigação guardam, ainda, algumas


especificidades que merecem ser apontadas. Em primeiro lugar, ao chegar à comunidade
de Tagua, na maloca do clã Amanhecer, minha expectativa de encontrar uma aldeia Bora
numerosa viu-se rapidamente frustrada. Além da maloca, havia ali uma casa de madeira
e outra, um pouco mais distante, cuja ocupação era intermitente. Com o passar do tempo,
conheci os demais assentamentos bora e me dei conta de que todos possuíam a mesma
configuração: distantes uns dos outros, eles eram na verdade aglomerados de pequenas
famílias extensas; nesses aglomerados as casas, mesmo quando eram mais numerosas,
encontravam-se bastante isoladas uma das outras. Apesar disso, logo notei que a relação
entre as diferentes malocas e comunidades é cotidiana: as pessoas visitam-se com muita
frequência para auxiliar umas às outras nos afazeres diários, mambear, comer juntos ou

12
Ver Introdução à Parte II.

13
Introdução

simplesmente conversar. Dessa maneira, a vida diária (e noturna) dos Bora é marcada por
um intenso trânsito terrestre e fluvial nos caminhos que ligam as malocas e comunidades
entre si. Não demorou para que eu me acostumasse a atravessar pequenos igarapés e
caminhar, muitas vezes sozinha, ao longo das trilhas bem marcadas entre as principais
malocas. Além disso, me habituei a participar com os homens de diversas sessões de
mambeadero que, varando noite adentro, faziam-nos empreender longas viagens de volta
no sereno das canoas.

O trânsito entre as comunidades que conheceremos à frente foi tão frequente


quanto a perambulação entre os assentamentos bora no médio Igaraparaná e La Chorerra.
A centralidade desta última ficará evidente ao longo da tese, pois o vilarejo tem grande
importância na história da região desde o início do século XX. La Chorrera foi um ponto
estratégico durante o auge caucheiro na região e em todos os períodos subsequentes em
razão da instalação de internatos religiosos, estabelecimentos comerciais, bases militares
(e também guerrilheiras), instituições de saúde e segurança pública, dentre outros. Nos
dias de hoje, La Chorrera é o lugar onde os Bora e os outros povos do Igaraparaná vão
para completar seus estudos, comprar mantimentos, receber benefícios sociais ou
participar de reuniões, festas e campeonatos esportivos. Bem parecido aos pequenos
municípios frequentados em toda a Amazônia por comunidades “aldeadas”, La Chorrera
destaca-se por praticamente contar apenas com indígenas entre seus moradores.

Poucas foram as ocasiões, ao longo de meu trabalho de campo, em que permaneci


mais de três semanas sem realizar a viagem de cerca de dez horas entre Tagua e La
Chorrera13. Os motivos que me fizeram ir com meus anfitriões até La Chorrera foram os
mais variados: consultas no pequeno hospital local, pagamento de transferencias (ver cap.
2), compra de víveres ou combustível, reuniões políticas, festas intercomunitárias,
campeonatos de futebol, etc. Houve mesmo períodos em que as comunidades bora viram-
se desertas e foi possível, em La Chorrera, encontrar praticamente todos os Bora com
quem eu convivia nas comunidades à jusante. Uma vez que a perambulação é muito
frequente e que muitos moradores de malocas dos Povos do Centro possuem também
casas em La Chorrera, é complicado quantificar sua população. Diversos indígenas com

13
Na verdade, a duração da viagem pode variar de acordo com o nível das águas. Em tempos de cheia,
surgem diversos atalhos ou “furos” (caminhos alagados que poupam algumas horas de viagem). Por outro
lado, quando o rio está muito seco há trechos em que a navegação é impossível, sendo necessário arrastar
a canoa por muitos metros ou pernoitar na margem do rio para evitar os bancos de área imperceptíveis na
escuridão.

14
Introdução

quem convivi me contaram que, pela distância e as dificuldades do deslocamento aéreo,


nunca haviam ido a “cidades de verdade” como Leticia e Bogotá. Assim, quando digo
que La Chorrera é um vilarejo, um povoado ou uma comunidade, é importante ter em
mente a especificidade de sua composição.

Outro aspecto importante a respeito de meu trabalho de campo é meu lugar de


mulher estrangeira que buscava investigar, como diziam os próprios Bora, a “cultura” ou
a “tradição”. Desde o princípio, meus interlocutores informaram que os antropólogos que
conheceram até então permaneciam horas a fio com os abuelos nos mambeaderos,
registrando narrativas míticas e outras informações que eram classificadas, pelos próprios
indígenas, como pertencendo ao universo do “profundo” ou do “antigo”. A maioria desses
antropólogos eram homens, boa parte deles vinculados ao governo ou a organizações não-
governamentais colombianas. Havia também algumas mulheres, as quais, segundo os
Bora, demonstravam igual interesse em sentar-se nos mambeaderos e utilizar o mambe,
substância muito conhecida nos meios universitários e indigenistas de Letícia e Bogotá.
Talvez por isso, quando participei de meus primeiros mambeaderos, os Bora logo me
perguntaram se eu era acostumada a mambear. Disse-lhes que nunca tinha experimentado
o mambe e que, além do mais, preferia compreender primeiro um pouco sobre seu uso
antes de experimentá-lo. Assim, acabei por logo ocupar um lugar um pouco distinto
daquele dos pesquisadores e indigenistas que me antecederam: eu era mulher, brasileira
e, ainda mais, não viera mambear.

Entre os Povos do Centro, a diferença de gênero é um elemento organizador


central. Retomemos as belas palavras de Kinerai14 registradas por Echeverri:

Y así el muchacho está sentado,


mambea coca,
sabe tostar coca,
sabe cernir coca,
sabe pilar coca,
sabe hablar.
Se cría como el papá,
busca,
lo que busca encuentra.
Así era antes la buena palabra,
palabra de coca y palabra de tabaco.
Con ella
él busca. Con ese corazón
él duerme.

14
Kinerai, ou Hipólito Candre, foi “un anciano uitoto del río Igaraparaná” (Echeverri, 2015: 17) com quem
o antropólogo trabalhou por muito tempo.

15
Introdução

Lo mismo la muchacha.
Con el pensamiento de maní
ella duerme.
Con el pensamiento de yuca dulce
ella duerme, bien.
(Echeverri, 2015: 76)

Tal como expresso por Kinerai, logo entendi que todo homem jovem que deseja
mambear deve participar ativamente do processo de fabricação diária do mambe, ou seja:
deve abrir, plantar e manter um cocal; recolher lenha e folhas de coca e embaúba; pilar e
peneirar o mambe e, finalmente, exercitar a escuta e a fala nas sessões do mambeadero.
Percebi, assim, que para usar de forma correta o mambe eu deveria envolver-me em
atividades exclusivamente masculinas. Caso contrário, eu dependeria sempre da compra
de mambe feito por outros homens. Assim, achei por bem frequentar os mambeaderos
numa posição análoga àquela ocupadas às vezes por algumas mulheres mais velhas: com
meu frasco de ambil, sentava-me junto aos homens e, no geral, pouco falava – a menos
que a palavra me fosse direcionada.

Em meu trabalho de campo, sobretudo no começo, não foram raras as vezes em


que o chefe ou dono do mambeadero onde eu me encontrava disse que, para mim, já era
hora de “descansar”. Na verdade, este era um eufemismo, a meu ver muito simpático e
educado, para indicar que minha presença não era desejada nos eventos que se seguiriam.
A maioria deles, como eles mesmo comentavam no dia seguinte, eram sessões de cura
realizadas por homens com certos conhecimentos xamânicos. Se por um lado nem sempre
o mambeadero me foi plenamente acessível, por outro minha posição enquanto mulher
abriu-me para experiências que dificilmente seriam vividas por um etnógrafo homem. Ao
notarem que eu gostava de acompanhar as idas à roça, cozinhar, fazer artesanato ou
permanecer nas cozinhas conversando, muitas mulheres se tornaram grandes amigas e
interlocutoras. Nesses momentos, compreendi melhor vários aspectos da vida bora que
eu não conseguia vislumbrar nos mambeaderos: observei de perto o modo com que
parentes se tratavam ou se evitavam mutuamente, bem como soube de casos sobre o
passado, de contendas entre as comunidades e de pormenores dos grandes e pequenos
rituais. Enfim, avalio que se os mambeaderos muitas vezes forneceram-me um discurso
formal e elaborado a respeito dos temas que abordarei a seguir, foi nos “bastidores”
femininos da vida bora que essa tese ganhou carne.

Em campo, a maior parte dos diálogos deu-se em espanhol. Os Bora, assim como
outros povos na Amazônia colombiana, falam uma língua em risco de extinção (Adorno,
16
Introdução

2015). No breve levantamento que realizei em 2015, percebi que poucos Bora com menos
de 20 anos possuem competências linguísticas que os permitam estabelecer conversas em
seu próprio idioma. Nos mambeaderos, em razão da presença de jovens que não falavam
o idioma Bora e de homens de outros grupos linguísticos, no geral as sessões também
aconteciam em espanhol. Assim, apesar de a maioria dos Bora com mais de cinquenta
anos ser capaz de conversar na língua nativa, optam nos dias de hoje por não o fazer – a
menos que estejam sozinhos.

Mesmo assim, no começo de meu trabalho de campo, busquei aprender o que me


era possível do idioma tonal falado pelos Bora. Dadas as raras ocasiões em que eu podia
escutar ou falar a língua, meus avanços não foram significativos. Concentrei-me, então,
na capacidade de escutar e transcrever as palavras, algo que considero ter conseguido com
relativo sucesso após aulas formais com algumas pessoas que estudaram a grafia dos
vocábulos tendo como guia o trabalho dos missionários evangélicos que atuaram junto
aos Bora do Peru (Thiesen & Thiesen, 1998; Thiesen & Weber, 2012). De tempos em
tempos, sentava-me com alguns de meus interlocutores com uma lista de termos nativos
cujo significado eu desejava compreender melhor. Dessa forma, as palavras em Bora
citadas nessa tese foram, em sua maioria, objeto de análise e discussão com diversas
pessoas e em diferentes ocasiões.

Como mencionei há pouco, acordei com os Bora desde o princípio que eu buscaria
propor ações de interesse comunitário que extrapolassem a elaboração de uma tese de
doutorado. Além do projeto de restituição digital do arquivo de Mireille Guyot sobre o
qual falarei mais à frente, tive a oportunidade de desenvolver uma proposta que submeti,
em 2017, para o projeto “Salvaguarda do Patrimônio Linguístico e Cultural de Povos
Indígenas Transfronteiriços e de Recente Contato na Região Amazônica”, resultado de
uma parceria entre o Museu do Índio (FUNAI) e a Unesco. No projeto, propus intermediar
o primeiro contato entre os Miraña que estão no Brasil, no médio Solimões (TIs Méria e
Miratu), e os Bora no Igaraparaná. Os Miraña (ou Miranha) que vivem hoje em território
brasileiro são os descendentes de contingentes indígenas do Caquetá-Putumayo que

17
Introdução

foram transferidos à força para cá, provavelmente ainda no século XIX (cf. cap. 1;
Faulhaber 1987, 1996, Arnaud, 1974)15.

Uma viagem com duração de vinte dias dos Miranha que vivem no Brasil até as
malocas Bora no Igaraparaná realizou-se em maio de 2018 e foi registrada em uma série
de documentos escritos e imagens16. Esse foi um momento decisivo para minha relação
com os Bora e com as autoridades locais. Na ocasião, os indígenas promoveram um ritual
Ujcútso (ver cap. 6), compartilharam técnicas sobre a produção de substâncias como o
mambe, o ambil e o sal vegetal, trocaram informações acerca dos cultivares nos roçados
e, finalmente, dialogaram a respeito das memórias que guardavam sobre o Tempo dos
Brasileiros (ver cap. 1).

iv. O trabalho de campo, nos arquivos: Fonds Guyot


Em 2015 tive pela primeira vez a oportunidade de visitar o Fonds Guyot. Até
aquele momento, apesar da indicação de Jean-Pierre Chaumeil que mencionei
anteriormente, eu nada sabia sobre o conteúdo e o volume das informações presentes nos
arquivos. Marquei, assim, uma visita ao laboratório onde os documentos se encontravam.
Ao abrir o antigo armário de ferro de duas portas, deparei-me com dezenas de cadernos
de campo e centenas de folhas de anotações; diversas fotos impressas e outros tantos
negativos não revelados; chaves, cartas, objetos pessoais e 26 fitas magnéticas com
registros sonoros (a grande maioria deles, cantos rituais). Eram os produtos da pesquisa
de Mireille Guyot, uma antropóloga franco-suiça que havia trabalhado junto aos Bora e
aos Miraña há muitos anos. Permitam-me apresentar um pouco da vida dessa
desconhecida pesquisadora.

Em 1965, pouco antes de terminar seu doutorado sobre os mitos selk’nam e


yamana na Terra do Fogo (Guyot, 1968), Guyot começou a trabalhar como secretária de
redação na Société des Américanistes, instalando-se no Musée de l’Homme, em Paris17.
Em 1969, ela partiu pela primeira vez para as comunidades bora nos rios Igaraparaná e
Cahuinari na companhia de Jürg Gasché, que por sua vez realizou trabalho de campo em

15
Neste período, “Miraña” era um termo empregado de forma generalizada para referir-se a uma gama de
povos que, diretamente capturados pelos comerciantes de escravos ou trocados pelos chefes locais,
desceram o médio Caquetá e seus afluentes em direção ao território brasileiro.
16
O registro desse encontro pode ser conferido no curta-metragem “O Caminho do Centro” (Lucas e
Rossini, 2018) e em seis relatórios técnicos depositados na sede do Museu do Índio, no Rio de Janeiro.
17
Seu doutorado foi defendido em 1966.

18
Introdução

comunidades murui-muina da região18. Entre 1973 e 1974, Guyot e Gasché participaram


do projeto “Culture sur brûlis et évolution du milieu forestier dans le Nord-Ouest
amazonien”, com financiamento do Fonds National Suisse de la Recherche Scientifique
e do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique - França). Seu trabalho, a partir
de então, ganhou contornos interdisciplinares em razão da participação de pesquisadores
de outras áreas, vindos principalmente das ciências naturais19. Em 1975, algumas peças
recolhidas entre os Povos do Centro foram expostas no Musée d’Ethnografie de
Neuchâtel e um colóquio sobre o tema foi organizado no Institut d’Ethnologie de
l’Université de Neuchâtel.

Tendo que se dedicar a suas responsabilidades administrativas na Société des


Américanistes, Guyot passou os anos de 1976 e 1977 envolvida na organização do 42º
Congresso Internacional de Americanistas e na publicação dos Actes que se tornaram
conhecidos na literatura amazonistas em razão das importantes discussões que emergiram
a partir das orientações sugeridas por Overing (1977) para o simpósio “Social Time and
Social Space in Lowland Southamerican Societies”. Ainda em 1977, Guyot iniciou o seu
trabalho entre os Bora do rio Ampiyacu (Peru), onde retornaria também em 1978 e 1979.
Ela passou o ano de 1980 preparando uma organização mais sistemática de seu material
de campo com a intenção de conceber uma publicação sobre os Bora e os Miraña – o que,
entretanto, nunca ocorreu.

Apesar disso, a antropóloga publicou, durante os anos em que se manteve ativa,


uma série de artigos sobre os Povos do Centro. Quando entrei em contato com seus
arquivos de campo, eu já havia lido praticamente todas as suas publicações anteriores,
uma vez que seu trabalho era (e ainda é) o mais completo existente sobre os Bora. Mesmo
assim, logo senti que estava, ali, diante de um volume de informações extremamente
valiosas. Sem dificuldade, identifiquei em suas fotos alguns de meus interlocutores mais
idosos, à época crianças ou jovens. Uma leitura breve e transversal de um caderno de
campo que peguei ao acaso transportou-me de Paris diretamente ao interior de uma
pequena maloca onde, no ano de 1969, viviam vários daqueles que hoje conheço apenas
por meio de histórias. A partir desse momento, entendi a importância dos arquivos não
apenas para mim, mas sobretudo para os Bora, que se lembram bem de “Mirella” e de

18
À época, o trabalho contava com financiamento das seguintes instituições: Fonds National de la
Recherche Scientifique Suisse, Weiner Reimers Stiftung für Anthropogenetische Forschung, Smithsonian
Institutions e Centre National de la Recherche Scientifique.
19
Além disso, Guyot expandiu sua área de atuação, realizando trabalhos de campo no rio Caquetá.

19
Introdução

como ela permaneceu alguns meses no Igaraparaná gravando cantos, colecionando


borboletas e aranhas, acompanhando as mulheres às roças e distribuindo miçangas
coloridas. Nos anos seguintes, pouco descobri a respeito dos motivos pelos quais Mireille
Guyot abandonou a antropologia ou sobre os rumos de sua vida após o fim dos anos 1980.
Recentemente, tive a triste confirmação de seu falecimento, provavelmente em 2015,
pouco dias antes de eu chegar pela primeira vez a seus arquivos.

Frente à riqueza do Fonds Guyot, logo entendi que precisaria de tempo para
inventariar as fontes, organizá-las e, principalmente, torná-las acessíveis aos próprios
Bora. Solicitei então uma bolsa Legs Lelong en Anthropologie Sociale, gerida na França
pelo CNRS. Graças a ela, pude permanecer cerca de 3 meses em Paris em 2016,
trabalhando diariamente na biblioteca Éric-de-Dampierre, onde os arquivos foram
alocados desde então20. Até o momento, eu não tinha nenhuma experiência com esse tipo
de trabalho, salvo uma consultoria pontual que havia feito em arquivos na sede da FUNAI
em Brasília em 2011. Por isso, muitas eram as minhas dúvidas sobre como lidar com uma
documentação que me parecia, ao mesmo tempo, tão familiar e tão estranha21. Comecei
por realizar um inventário de todos os documentos para, em seguida, empenhar-me em
digitalizar cada um em sua completude. Feito isso, passei então a digitalizar os negativos
fotográficos deixados por Guyot22. As fitas magnéticas, que dependiam do uso de um
magnetofone e de um acurado trabalho de digitalização e equalização de som, foram
tratadas em Nanterre por técnicos do CREM (Centre de Recherche en Etnomusicologie).
Enquanto os arquivos de áudio foram incorporados à base de dados desse centro, os
demais permanecem em dispositivos eletrônicos de armazenamento na biblioteca onde se
encontra fisicamente o Fonds Guyot23. No Anexo 1, apresento uma listagem de todo o
material a fim de orientar quem deseje, no futuro, pesquisar a documentação.

20
Voltei a Paris novamente em 2018, onde permaneci por pouco mais de dois meses, também com o
financiamento de uma bolsa Legs Lelong. Nessa ocasião, apresentei o resultado do trabalho de digitalização
e restituição digital dos arquivos do Fonds Guyot e visitei o convento dos capuchinhos de Sarrià, em
Barcelona (ver cap. 2). Ao longo das três viagens que realizei à França, dediquei-me ao todo cerca de 6
meses ao trabalho nos arquivos do fundo.
21
Antes de mim, Dimitri Karadimas teve acesso a esses documentos nos anos 1990, algo que pude constatar
a partir de algumas marcas e anotações deixadas pelo antropólogo nos arquivos.
22
Algumas poucas imagens registradas por Guyot já se encontravam disponíveis na base de dados online
do musée du Quai Branly. Trata-se, provavelmente, de material depositado no passado no Musée de
l’Homme.
23
Os aúdios encontra-se disponíveis mediante autorização das comunidades envolvidas em
https://archives.crem-cnrs.fr/archives/collections/CNRSMH_I_2016_037/ e
https://archives.crem-cnrs.fr/archives/collections/CNRSMH_I_2016_038/.

20
Introdução

Ao longo desta tese, quando cito ou faço referência a algum documento do Fonds
Guyot utilizo fórmulas como: fg_bx_dx_xxx. Estes são os mesmos códigos que utilizei
para rotular os arquivos do fundo, onde fg = Fonds Guyot, b = caixa (boîte), d = pasta
(dossier) e xxx é o nome do documento24. O número de arquivos digitais gerados
encontra-se na tabela a seguir.

Tipo e Quantidade
extensões de Arquivos
Documentos (.pdf) 607
Imagem (.tif) 1.881
Som (.wav) 216
Tabela 1 – Tipos e quantidades de arquivos digitais no Fonds Guyot

Uma vez realizada a digitalização do Fonds Guyot, obtive financiamento para


levar aos Bora uma cópia desse material. Ao chegar ao Igaraparaná, organizei uma
reunião com a junta directiva de cada um dos cabildos da região e lhes entreguei uma
cópia de parte dos documentos escritos, dos áudios e das fotos. Informei-lhes, então, que
planejava visitar todos os núcleos residenciais das comunidades, entregando-lhes as fotos
e as gravações de suas respectivas famílias e conversando com os presentes a respeito dos
registros. Antes, porém, fez-se necessário decidir sobre o acesso ao material sonoro, já
que a contrapartida do trabalho de digitalização das fitas magnéticas feitos pela
universidade era a inclusão do material em sua base de dados online. Também era
imperativo discutir as possibilidades de publicação ou difusão do material por
investigadores indígenas e não-indígenas.

Abordo algumas nuances desse processo em Lucas (2018b), onde observo como
a existência digital desses arquivos colocou em questão a política de acesso ao
conhecimento “profundo”. Na ocasião, o que preocupou meus interlocutores foi menos o
uso desse material por parte de pesquisadores estrangeiros do que por parte de outros
Bora. Segundo disseram os abuelos, causava-lhes preocupação o fato de que, hoje, muito
jovens que não se interessam pela “tradição” quando estão nas malocas, acabam migrando
para as cidades e ingressando como estudantes nas universidades ou ainda trabalhando
como xamãs. Em ambos os casos, tais situações lhes despertam interesse por um corpus
de conhecimento ritual e mítico que não dominam. Contudo, como não estão dispostos a
se submeterem às regras de aquisição desse tipo de conhecimento, deixam de pagar com

24
No mesmo Anexo 1 é possível encontrar outras convenções utilizadas que utilizei para rotular os
arquivos.

21
Introdução

trabalhos e substâncias o que aprendem de seus abuelos, terminando ainda sem saber o
alcance e as ameaças contidos em cada uma das canções e narrativas. Os mais velhos
temiam, assim, que as gravações reforçassem uma atitude já observada entre os indígenas
citadinos, servindo-lhes ainda como um perigoso atalho para o aprendizado.

Em face da delicadeza das questões, acabamos por elaborar, além de uma ata de
entrega dos documentos, um acordo sobre o acesso ao material disponibilizado. Tal
acordo, aliás, vale também para eventuais publicações de conteúdos do Fonds Guyot que
são considerados “sensíveis” pelos Bora, como é o caso de algumas narrativas míticas e
“orações” (ver a Int. à Parte II). Ambos os documentos podem ser encontrados no Anexo
2.

v. A organização da tese

Ao longo desta tese é possível que o(a) leitor(a) tenha a sensação de ler diversas
vezes a mesma história ou que se depare em várias ocasiões com a apresentação dos
mesmos dados. Não será apenas uma sensação, contudo. Por exemplo, o tema da adoção
será analisado a partir das relações de parentesco, mas também à luz de sua importância
para a manutenção ou recuperação de determinadas práticas rituais. Da mesma maneira,
acompanharemos várias vezes a exposição das histórias de vida de figuras centrais para
a história bora no século XX, como é o caso de Kumimarima, personagem importante
dos capítulos 5 e 7. Adotei esse modo de exposição em função da interdependência entre
campos que não raro a antropologia trata separadamente, como é o caso da organização
social e do ritual. Espero que, ao fim deste trabalho, o caminho trilhado para a exposição
dos dados faça com que os mesmos, ao serem repetidamente explorados, possam ser
conhecidos de forma mais orgânica.

A tese encontra-se dividida em duas partes. Na Parte I, chamada “O Oriente”,


busco explorar algumas categorias nativas que incidem sobre o período compreendido
entre o fim do século XIX até os dias de hoje. Veremos como os Bora dividem tal período
em uma série de bonanzas ou Tempos que, por sua vez, relacionam-se com a importância
de determinadas mercadorias trazidas por aqueles que vieram do Oriente – espaço-
conceito que explorarei na Introdução à Parte I. Conhecer de forma mais aprofundada
cada um desses Tempos será importante para compreender como o Tempo dos Peruanos

22
Introdução

(ou a bonanza do caucho), época em que os comerciantes de gomas da Casa Arana


atuaram na região, causou uma ruptura sem precedentes entre os Bora e os demais Povos
do Centro. Entre eles, uma das principais consequências da economia do caucho foi uma
abrupta e brutal queda demográfica e a consequente desarticulação das unidades sociais
e das redes rituais outrora existentes. No capítulo 1 conheceremos um conjunto de
informações sobre esse período, bem como sobre aquele que o precedeu, o Tempo dos
Brasileiros. Já no capítulo 2, focalizarei os períodos que se seguiram à saída dos
caucheiros da região nos chamados Tempos da Tigrillada, da Máfia e dos Projetos.

Na Introdução à Parte II, articulo a classificação em cinco Tempos e bonanzas


tratados na Parte I com outra, de caráter binário, que distingue o Tempo dos Animais e o
Tempo da Abundância. Para isso, analiso brevemente como a passagem entre esses dois
Tempos relaciona-se com transformações nas práticas rituais e nas relações entre
humanos e animais. A Parte II intitula-se “O Amanhecer” em referência a um termo usado
correntemente pelos Bora para dizer sobre a realização prática de intenções verbalizadas
(no geral, em ambientes coletivos como o mambeadero). De alguma maneira, tudo o que
se segue, na Parte II, versa sobre como os Bora concretizaram seus desejos ou
“amanheceram” após a hecatombe caucheira.

No capítulo 3, apresento informações básicas sobre a organização social e o


parentesco bora, focalizando a terminologia, a aliança, a onomástica, a hierarquia de
nascimento, as assimetrias clânicas e, por fim, as malocas e comunidades. A partir de
uma análise mais detida sobre a composição das malocas, nos aproximaremos da relação
existente entre chefes e órfãos, tema central do capítulo seguinte.

O capítulo 4 dedica-se inteiramente a explorar a relação assimétrica e


complementar existente entre chefes e órfãos. Veremos ali como a posição de chefia
(idealmente herdada por via paterna) e a condição de orfandade (sempre adquirida) se
encontram intimamente ligadas: enquanto um chefe não terá prestígio se não possuir
órfãos a seu redor, um órfão terá sua humanidade ameaçada caso não se relacione com
nenhum chefe. O caráter da relação entre chefes e órfãos, por sua vez, sofre variações em
função dos laços de parentesco anteriores existentes entre eles, configurando-se, assim, o
que denomino como “gradientes de orfandade”.

23
Introdução

No capítulo 5, busco apresentar as diversas maneiras por meio das quais os Bora
se reorganizaram no período pós-caucho. Veremos então como cisões clânicas, adoções
cerimoniais, casamentos interétnicos e a construção de novas relações de parentesco
foram fundamentais para que as malocas, os rituais e os clãs bora seguissem existindo,
ainda que deliberadamente diferentes.

No capítulo 6, exponho alguns elementos básicos sobre a vida ritual Bora. Abordo
a divisão entre rituais ordinários e titulares, bem como os processos envolvidos na
preparação e realização dos bailes. Por fim, discorro mais detidamente sobre cada um dos
onze tipos de rituais realizados hoje pelos Bora, além de apresentar dois daqueles que
foram abandonados, relacionados à antropofagia e à vingança. Em seguida, no capítulo
7, veremos como os rituais passaram por um duplo movimento ao longo do século XX:
enquanto alguns foram deixados de lado, outros foram revalorizados, recuperados e
reformulados tendo em vista principalmente a existência de chefes benevolentes e a
fabricação de relações pacíficas com o exterior.

Finalmente, na Conclusão retomo alguns temas apresentados na Introdução à


Parte II, de modo a argumentar como o processo de Amanhecer entre os Bora no pós-
caucho põe em evidência o fato de que a dinâmica entre a chefia e a orfandade pode
extrapolar o mundo das relações entre humanos, operando como um modelo relacional
central para compreender a sociocosmologia bora.

24
Introdução à Parte I

O Oriente

Cuando los otros grupos se enteraron que el “hacha de acero”


había llegado donde el capitán nonuya, fueron a visitarlo para
preguntarle dónde y cómo había conseguido el preciado
instrumento. El jefe nonuya les explicó que el Hacha se hallaba
en un territorio muy lejano, al oriente (...).
(Pineda Camacho, 1985: 77)

- Ils venaient de l’orient, du levant.


- Les Blancs ?
- Oui. Mais nous, nous sommes les Gens du Centre.
(Relato de homem Miraña do clã das Onças, in Karadimas, 1997: 48)

25
Introdução à Parte I – O Oriente

I.1. O que vem do Oriente

Ao pensarmos espontaneamente sobre a ideia de Oriente, algumas imagens vêm


à cabeça. Por exemplo, o lado direito ao meridiano de Greenwich que corta ao meio as
representações cartográficas do mundo ou o lugar ocupado por pessoas e grupos que,
mesmo não habitando necessariamente essa região, distanciam-se dos princípios judaico-
cristãos que regem tudo o que convencionalmente chamamos de Ocidente. Contudo,
nesse trabalho, a palavra Oriente nada tem a ver como as imagens que o pensamento
colonial possa ter construído sobre as regiões do norte da África, do Médio Oriente ou do
continente asiático (Said, 1978). Veremos que, à maneira de outros conceitos indígenas
que conheceremos mais à frente – tais como bonanza, amanecer, origen e huérfanos – a
noção de Oriente possui, entre os Bora, um significado bastante particular. Por ora,
concentremo-nos no fato de que o Oriente, em sua acepção local, é um conceito
mobilizado para comunicar sobre marcadores tanto espaciais quanto cosmológicos.

No que tange à espacialidade, Oriente ou Ááméjú são palavras usadas


(respectivamente em espanhol e em bora), para referir-se (i) ao curso inferior dos
principais rios ou ao rumo de sua desembocadura e (ii) à direção a partir de onde surgem
os primeiros raios de sol ao amanhecer. Se levarmos em conta a ocupação territorial
antiga e atual dos Bora na região do Caquetá-Putumayo, veremos que as direções jusante
e leste coincidem: descer o rio Igaraparaná em direção à sua foz no rio Putumayo é mover-
se em direção oriental; da mesma forma, baixar as águas do rio Cahuinari rumo ao
Caquetá é, igualmente, dirigir-se ao oriente. Ainda mais a leste e já em solo brasileiro, o
rio Putumayo passa a se chamar Iça e, adiante, junta-se ao Solimões – que, por sua vez,
ganha força ao encontrar-se com o rio Caquetá ou Japurá próximo ao município de Tefé.
O mapa abaixo elucida esse caminho, bem como esclarece algumas questões acerca da
nomenclatura desses cursos d’água nos diferentes países.

26
Introdução à Parte I – O Oriente

Mapa 2 – O caminho do Oriente no Caquetá-Putumayo

Assim, enquanto se deslocar em direção oriental é também descer os grandes rios


que fluem ao encontro do mar ou “rio grande” (bora: moóa), mover-se na direção
contrária a partir dos núcleos de povoação dos Povos do Centro é trajeto bem menos
frequente. Deslocar-se rumo ao oeste, em direção às cabeceiras dos rios Igaraparaná e
Cahuinari, significa aproximar-se de áreas menos ocupadas tanto pelos Povos do Centro
quanto por aqueles que se empenharam em colonizá-los. Pelas informações históricas
disponíveis, o contato dos Bora com o mundo não-indígena deu-se antes a partir das
expedições coloniais que provinham do Oriente do que por meio das raras incursões
coloniais vindas das áreas montanhosas do sopé andino25. A correlação entre a direção
jusante e o contato com o mundo não-indígena não é exclusividade dos Povos do Centro.
Por exemplo, ela é mencionada por outros autores que trabalharam na Amazônia
Ocidental como um “código geográfico” relevante (Carneiro da Cunha, 1998: 11; Gow,
1991), tornando-se ainda evidente no uso do termo “descimento” para designar
expedições que, justamente, deslocavam populações inteiras rio abaixo. No caso bora,

25
Uma exceção é, como veremos no capítulo 2, o caso dos padres capuchinhos advindos do Valle do
Sibundoy.

27
Introdução à Parte I – O Oriente

porém, há uma especificidade: a interdependência entre o conceito de Centro e a oposição


montante/Oriente-jusante.

Quando se referem aos grupos vizinhos, os Bora o fazem segundo a posição que
ocupam nessa grade espacial. Dessa maneira, enquanto os Miraña são Ááméju Munaá, ou
Gente-de-Jusante, os Muinane são Nijke Munaá, ou Gente-de-Montante. Por sua vez, para
os Miraña, os Muinane são Gente-de-Cabeceira e, para os Muinane, os Murui-Muina são
Gente-de-Ocidente, enquanto os Bora são Gente-de-Jusante26. Finalmente, todos eles
(Bora, Miraña, Muinane, Murui-Muina), como vimos, se reconhecem a si mesmos como
“Gente de Centro”. Percebemos então que esses povos organizam o espaço a partir de
três pontos de referência, não possuindo equivalentes em suas línguas para os quatro
pontos cardeais principais que orientam a cartografia moderna27.

Ocidente
Nijke
Oeste / Poente / Montante /
Cabeceira

Centro
Piine

Oriente
Ááméjú
Leste / Nascente / Jusante /
Foz
Figura 1 – Organização espacial segundo os Bora

Além de se autodenominarem Piinemúnaa (literalmente, “gente do centro”) a


palavra Centro é utilizada pelo Bora para referir-se às áreas distantes das margens dos
rios e dos grandes igarapés. Logo, dizer que alguém vive ou fez uma roça “no centro”
geralmente é uma maneira de falar que o acesso a essas regiões demanda grandes
caminhadas mata adentro, enquanto reconhecer-se como “gente de centro” é também

26
Informações coletadas por Mireille Guyot (fg_b9_Noms de Groupes).
27
Isso é algo bastante parecido ao apontado por Pineda Camacho para os Andoke: “Queda pues,
formalmente construido el mito sobre una de las estructuras espaciales fundamentales de los Andokes:
Bocana — Centro — Cabecera. Más precisamente: /obai/ = "Cabecera donde se oculta el sol, /di-i/ =
"Centro", /oka/ = “Bocana, donde se oculta el sol”. (Y esto en virtud de un hecho geográfico consistente en
que en toda la Amazonía Colombiana los grandes ríos —y muchos pequeños— corren hacia el oriente, o
sea por donde sale el sol).” (Pineda Camacho, 1974: 454).

28
Introdução à Parte I – O Oriente

informar que se é gente que vive apartada dos grandes cursos d’água. Cada povo e cada
clã da região, porém, tem para si que seu local de origem é o verdadeiro Centro. Assim,
cada um dos Povos do Centro diz ter surgido no legítimo Centro do mundo, e os clãs
localizam com certa precisão o território onde viviam seus primeiros ancestrais. Num
outro nível, para cada um desses grupos sua maloca (mais especificamente, o espaço
interno do mambeadero) é também o Centro do mundo (ou, se quisermos, o Centro do
Centro do mundo, isto é, o Centro de seu território), sendo o prato de cerâmica onde se
queimam as folhas de embaúba para a preparação do mambe o marcador fixo desse lugar.

A complexificação da noção de Centro é similar àquela que se apresenta quando


o foco é o Oriente. Os Bora salientam o fato de que, mais do que pensar somente em uma
direção espacial, falar sobre o Oriente é tratar de um conjunto de seres estrangeiros com
quem eles mantiveram e mantém relações. Isso fica claro, por exemplo, em algumas
canções registradas por Mireille Guyot nos anos 1960 entre os Miraña no rio Caquetá:

L’Aigrette de l’embouchure de la rivière,


troisième enfant de notre créateur,
a fait sa « chacra »28 dans l’eau, dans la rivière.
Il n’y a que de l’eau dans sa « chacra » !
J’y ai vu surgir le « boa »29 de la colère ardente,
c’est lui le « boa » qui souille notre nourriture.
Compagnons, il a tout mangé.
(Guyot, 1980 : 115).

Ou, ainda, nas canções transcritas por Landaburu entre os Andoque:

Pour sûr, le jaguar de l’Orient va te manger !


Pour sûr, le jaguar de l’Orient va te manger !
Pour la dernière fois, pour la dernière fois,
Jouons de ma calebasse.
(Landaburu, 1980 : 106).
Se os Miraña são, para os Bora, Gente-de-Jusante, é porque no passado eles
ocupavam a parte inferior do rio Cahuinari, abaixo do local onde boa parte dos clãs bora
mantinha suas malocas. Os primeiros colonizadores, contudo, não são simplesmente
Gente-de-Jusante, mas sim gente que, vinda do Oriente (um lugar muito mais distante e
desconhecido, fora das fronteiras do território dos Povos do Centro) é filha de Uwaje
Niimuhe ou Deus-do-Machado.

Tal como este último, Jaguar-do-Oriente e Garça-da-Desembocadura, citados nas


canções acima, são personagens de mitos ou orígenes que conheceremos ao longo desse

28
Palavra usada em espanhol para designar as roças.
29
Palavra usada em espanhol para referir-se à cobra-grande.

29
Introdução à Parte I – O Oriente

trabalho. No geral, enquanto Garça é um importante chefe-ancestral de algumas linhagens


bora, Jaguar-do-Oriente ou Cobra-Grande-do-Comércio são os nomes usados para
referir-se, no conjunto de cantos rituais que Mireille Guyot (1980) denominou “canções
do machado”, aos comerciantes de escravos luso-brasileiros que adentraram a região entre
os séculos XVIII e XX em busca de cativos ou “órfãos”. Aos primeiros não-indígenas
que conheceram, vindos do Oriente ou do leste, se referem ainda os Miraña no rio
Caquetá:

La alusión repetida a las "boas de comercio", "del negocio", designa a


los comerciantes que penetraban en la región, venidos del Este, de
Brasil. Como la boa, en efecto, dicen los Miraña, el comerciante
encierra y ahoga a su víctima. (...) Histórica y económicamente es del
Este de donde vino el peligro, el de los primeros contactos con los
blancos (Guyot, 1979: 107 - 108)
Mais tarde, também do Oriente vieram os caucheiros que, em seu afã de extrair
da região a maior quantidade de goma possível, acabaram sendo os protagonistas de uma
hecatombe sem precedentes. Mesmo com sua saída definitiva na década de 1930, os Bora
experimentaram ainda muitas outras formas de contato com o que provém do Oriente:
padres católicos, funcionários do Estado e do exército, comerciantes de peles,
narcotraficantes, guerrilheiros, paramilitares, organizações não-governamentais,
pesquisadores, dentre muitos outros. Todos esses atores, à sua maneira, são importantes
para que pensemos sobre um tema especialmente caro a esse trabalho: as formas possíveis
da reorganização empreendida pelos Bora ao longo do século XX e, portanto, após o
contato definitivo com os que vieram do Oriente. Vejamos, antes, em que medida essas
relações devem ser pensadas em consonância com a existência de determinados produtos
que, por sua centralidade, conformam uma série sucessiva de bonanzas, correlatas por
sua vez a variados Tempos.

I.2 As bonanzas e os Tempos

Desde o começo da concepção desse trabalho, uma dúvida rondava os esforços de


sua organização e apresentação: qual é a melhor maneira de contar a história de um povo
que experimentou seu extermínio quase completo?

Em razão do grande volume de documentos escritos sobre a história da região


(principalmente para o período compreendido entre 1890 e 1930), uma possibilidade
tentadora seria fazer uma consistente e cronológica revisão bibliográfica sobre o que já

30
Introdução à Parte I – O Oriente

foi produzido. Contudo, julguei que, no meu caso, esta não era a melhor opção. Por um
lado, cheguei a essa conclusão ao perceber que tal trabalho já foi feito por autores com
maior competência para realizar a análise crítica das fontes disponíveis (por exemplo,
Pineda Camacho, 1985, 1995, 2000); por outro, esse caminho me levaria a deixar de fora
(ou pelo menos minimizar) o aspecto que me interessa mais de perto; a saber, a forma
pela qual os Bora coletivamente narram e organizam sua própria história.

Com essa questão em mente, busquei exercitar em campo uma escuta atenta
acerca das maneiras pelas quais meus interlocutores comentavam os processos e
acontecimentos passados. Parti do pressuposto que os Bora são agentes com “profunda
consciência histórica” (Gow, 1991), sem com isso presumir que, para eles, sua história
começa a partir dos primeiros contatos com o Oriente. Com isso, abandonei também a
falaciosa oposição entre cultura tradicional versus aculturação pós-contato, movimento
especialmente necessário quando se trata de uma população cuja queda demográfica
abrupta e radical ao longo do século XX nos desautoriza a querer traçar os contornos de
um suposto “ponto zero” de sua vida social antes do contato.

No processo de pensar os Bora enquanto agentes históricos, acabei percebendo,


por meio da forma com que me eram narrados os acontecimentos passados, uma intensa
elaboração nativa sobre as possibilidades presentes e futuras. Mais do que apenas vítimas
de um projeto colonizatório brutal que conheceremos nos dois capítulos seguintes,
entendi assim que os Bora criaram espaços e meios coletivos de discussão e deliberação
acerca dos rumos de suas vidas – algo expresso notavelmente em suas próprias narrativas
sobre os acontecimentos do século XX. A segunda parte dessa tese versará sobre como
os Bora esforçaram-se em pôr em prática um intrincado processo de “reorganização
social” calcado numa determinada maneira de produzir pessoas e relações. A primeira
parte, que vem a seguir, busca apresentar ao leitor(a) uma exposição mais detida sobre a
maneira pela qual os Bora dividem, classificam e interpretam o passado e o presente.
Desta forma, as fontes não-indígenas de informação que usarei servirão não para
“comprovar” os dados fornecidos por meus interlocutores, mas sim para localizar aqueles
não acostumados à Amazônia colombiana, seus habitantes e suas epopeias semi-
fantasticas. O fundamental, entretanto, é ter em mente que busco aqui colocar em relevo
uma determinada maneira bora de compartimentar o tempo por meio de dois conceitos
específicos: Tempo e bonanza.

31
Introdução à Parte I – O Oriente

A divisão da história em Tempos é algo recorrente na Amazônia Ocidental, como


demonstraram, por exemplo, Gow (1991), Costa (2007) e Bonilla (2008). É comum,
ademais, que tais Tempos apresentem uma estrutura tripartite, marcando rupturas entre
épocas indexadas pelas imagens, respectivamente, da selvageria, da escravidão e da
civilização (Taylor, 2007: 155). Entre os Bora, porém, os Tempos revelam outra
organização.

Veremos, na Parte II desse trabalho, a grande divisão entre o Tempo dos Animais
e o Tempo da Abundância. Sua compreensão, contudo, depende da exposição anterior de
outra classificação superposta que engloba a existência de cinco Tempos
cronologicamente organizados: o dos Brasileiros, o dos Peruanos, o da Tigrillada, o da
Máfia e o dos Projetos. Tal como como observou Costa (2007) para os Kanamari, a
divisão desses Tempos entre os Bora relaciona-se diretamente com a presença de novos
agentes externos que conheceremos amiúde. Porém, cada um dos Tempos, aqui, se
conecta à existência de produtos que conformam bonanzas e que atuam como mediadores
da relação entre os indígenas e aqueles que vieram do Oriente. Assim, quando os Bora
comentam sobre os eventos ocorridos entre o fim do século XIX e o começo do XX eles
geralmente não se referem, num primeiro momento, à Casa Arana ou aos capatazes que
os assassinaram. Ao invés disso, afirmam que tal acontecimento se deu no Tempo dos
Peruanos ou, ainda, na bonanza do caucho. Para eles, essas referências são suficientes
para que o interlocutor da conversa identifique o período no qual tais episódios tiveram
lugar.

O termo bonanza é, segundo a Real Academia Española (2014), um substantivo


que designa tanto um estado de tranquilidade e serenidade no mar quanto, de maneira
mais ampla, a condição de prosperidade. Em cada um dos Tempos expressos pelos Bora,
a fartura de certas mercadorias instaurou, respectivamente, as bonanzas do machado, do
caucho, das peles, da coca e dos projetos30. Em todos esses casos, veremos que as
bonanzas fazem referência à centralidade de tais produtos. Porém, enquanto alguns
(caucho, peles e coca) foram fornecidos pelos Bora a fim de serem inseridos em relações
de trocas com os Brancos, outros (machados e projetos) chegaram a suas malocas e foram

30
Outras bonanzas poderiam ser lembradas, como a da quina e do leche caspi ou cumã-uaçu (Couma
macrocarpa). Contudo, em razão de sua duração mais curta e da menção apenas periférica feita por meus
interlocutores a elas, opto por concentrar-me nas cinco bonanzas principais. O tema das bonanzas já foi
apresentado por outros autores que trabalharam na região, como Pereira (2012), Tobón (2016) e Moreno
(2017).

32
Introdução à Parte I – O Oriente

intercambiados por pessoas ou por trabalho. O paradoxo aqui é que, em muitos desses
casos, tais negociações foram claramente desvantajosas para os indígenas. Como é
possível, então, conciliar a brutalidade da chegada de algumas dessas mercadorias com a
noção bora de bonanza, que também está associada à prosperidade ou, como eles mesmos
dizem, à abundância? Discutiremos esse conceito mais detidamente na Introdução à Parte
II, mas é importante desde já notar que a noção de “abundância”, para os Bora, se
relaciona aqui à de uma disponibilidade idealmente irrestrita de determinados alimentos
e à capacidade de consumi-los sem grandes problemas. Assim, desde o Tempo do
Machado, as trocas fizeram com que certa “abundância” fosse gozada ora pelos Bora, ora
por aqueles com quem eles estabeleciam trocas injustas.

As bonanzas, portanto, não implicam uma posição de vantagem dos Bora frente
àqueles com quem se relacionaram. Na verdade, enquanto há períodos nos quais os Bora
desfrutaram de relativa prosperidade, em outros momentos eles experimentaram fortes
investidas contra suas próprias vidas em razão da ambição daqueles que extraíam
mercadorias de seu território visando o acúmulo de recursos financeiros e, ao mesmo
tempo, buscando “civilizá-los” por meio da aniquilação de suas práticas supostamente
selvagens. Assim, é importante levar em consideração que, em cada Tempo ou bonanza
que conheceremos à frente, não se tratará exatamente de conhecer a história de como os
Bora ou aqueles com os quais se fazia negócio lograram prosperar materialmente, mas
sim de compreender como, do ponto de vista indígena, alguns objetos intermediaram o
contato entre os Bora e o Oriente – e, mais significativamente, quais eram os termos
dessas relações.

33
Capítulo 1
Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

1.1. O machado ou o Tempo dos Brasileiros

1.1.1. A chegada das primeiras mercadorias

Como vimos há pouco, a maneira pela qual os Bora narram sua história está
diretamente ligada à presença de diferentes mercadorias que atuaram como intermediárias
entre os povos do Caquetá-Putumayo e aqueles que vieram do Oriente31. O primeiro desses
produtos foi o machado de metal e, por extensão, outras ferramentas e utensílios que lhe eram
até então desconhecidos. A narrativa abaixo foi gravada em dezembro de 2017, quando o
chefe do clã Cobra-Grande contou-me sobre a chegada do primeiro machado de metal entre
os Bora. Ela foi gravada em espanhol e traduzida por mim para o português 32.

Nesse tempo, os mais antigos trabalhavam com esse machado de pura pedra.
Então, a história diz que havia Wakiméi Ihchúba, ou seja, Garça-de-
Trabalho33. Os clientes de Garça-de-Trabalho precisavam de um machado
que fosse bom para derrubar a floresta. Assim eles pensavam. Um dia os
clientes de Garça-de-Trabalho fizeram uma reunião grande com seu chefe.
Disseram eles:
- Abuelo, em todas as partes o pessoal já tem seu trabalho na roça, já pode
cortar os paus. E nós, como estamos? Nós também temos que trabalhar,
também temos que ter nossa roça. Por que você não nos consegue um
machado feito especialmente para isso, com Uwaje Niimuhe34, lá onde se
fabricam os machados?

31
Ao longo desse capítulo buscarei seguir a narrativa da grande maioria de meus interlocutores para descrever
como a chegada sucessiva de mercadorias em seu território relaciona-se com a maneira por meio da qual os
Bora no Igaraparaná contam e pensam sua história. É necessário, contudo, considerar que entre os Povos do
Centro há diversas narrativas possíveis sobre esse período, como fica claro na tese recente de Moreno (2017),
na qual a autora vale-se nos relatos recolhidos entre mulheres Murui-Muina em Bogotá, Letícia e Araracuara
para, apresentar, pelo viés biográfico, a história recente dessa população.
32
Variações dessa versão entre os Bora podem ser encontradas em Guyot (1974) e Razon (1984).
33
Wakiméi: trabalho, ihchúba: garça branca grande (Ardea alba). Para um desenvolvimento mais detalhado
sobre a figura da Garça entre os Bora, ver cap. 6.
34
Enquanto uwaje é a palavra em Bora para “machado”, niimuhe é um vocábulo de difícil tradução. Os
missionários evangélicos do SIL que atuaram entre os Bora no Peru o traduziram simplesmente como “Deus”

34
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

Ele respondeu:
- Meus servos, minhas crianças, isso é muito trabalhoso! Se vocês resistem
para fazer uma “base de trabalho”, isso se pode fazer. Vocês querem que eu
vá até Uwaje Niimuhe para pedir uma ajuda para vocês?
- Abuelo, sim, queremos! Não é possível. Em toda parte, as pessoas já têm
seus trabalhos. E a gente, como fica? Necessitamos com urgência que isso
chegue para nós.
Como eles já trabalhavam com o machado de pedra, cada um tinha sua
rocinha onde plantavam mandioca para fazer farinha. Plantavam banana,
abacaxi, cana, essas frutas.
Então disse Wakiméi Ihchúba:
- Faremos isso. O pouco de trabalho que temos, os frutos do nosso trabalho,
vamos trabalhar na farinha. Na farinha e no plantio de abacaxi, banana e
cana. Com esse pouquinho de produtos eu vou sozinho encontrar Uwaje
Niimuhe para pedir uma ajuda e comentar com ele que a meus clientes
fazem falta algumas coisas. Vou falar com ele cara a cara para que ele me
escute.
Assim, do pouco plantio que tinham fizeram um paneiro de farinha. Para os
cachos de banana talvez ele levasse algum ajudante que fosse carregando
tudo. Wakiméi Ihchúba se foi até chegar onde estava a fábrica do machado
de verdade. Ele chegou lá com ambil, coca e sal vegetal. Essa era sua base
para o trabalho, sempre alguém deve ter essa base para trabalhar.
Wakiméi Ihchúba chegou e Uwaje Niimuhe perguntou:
- Neto, Garça-de-Trabalho, com que finalidade você veio até aqui?
- Abuelo, tenho muita coisa para te contar. Porém, em primeiro lugar, é com
a força do ambil que eu trabalho com meu pessoal. Tabaco, coca e sal
vegetal... essas três coisas são a base para um trabalho. Com isso foi que eu
vim a seu encontro para contar o que meu pessoal me disse. De toda
maneira, aqui eu te trago uma amostrinha de farinha, esse é o trabalho que
tenho para mostrar para você. Trago farinha, um cacho de banana, cana e
abacaxi. Esse é o fruto do trabalho que fizemos, mas com um machado que
não faz render o trabalho. Temos que nos sacrificar com esse trabalho, quase
não rende. Com esse machado já tiramos mandioca e fazemos farinha com
essa plantação que temos. Então meus clientes querem que você nos dê um
machado especial para derrubar as roças, um machado que seja afiado para
que o trabalho renda. Queremos também terçado.
Uwaje Niimuhe provou o ambil e achou bom. Também provou a coca e
achou boa e logo perguntou:
- A força do ambil, o que significa?
- Abuelo, essa força nos dá a sabedoria para conduzir o trabalho e ao mesmo
tempo para lidar com as pessoas. É ela quem nos ajuda a controlar o
trabalho. Esse é o “ambil do bom trabalho”.

(Thiesen & Thiesen, 1998). Apesar de os Bora na Colômbia terem adotado semelhante tradução, usada já pelos
padres católicos que evangelizaram em La Chorrera (ver cap. 2), meus interlocutores normalmente a consideram
simplista, uma vez que é inexata a correspondência entre a figura monoteísta cristã e os muitos niimuhe que
habitam as narrativas de origen (cf. infra). Porém, para evitar a repetição exaustiva do temos nativo ao longo
desta tese e seguindo a tradução feita correntemente em espanhol pelos próprios Bora, doravante a tradução
utilizada por mim para Uwaje Niimuhe será Deus-do-Machado.

35
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

- E essa coca, o que significa?


- Do mesmo jeito, essa coca dá força e alento. Sem ela, a pessoa se cansa,
fica entediada de trabalhar. Mas mambeando isso a pessoa resiste, em um
só trabalho derruba o mato e resiste até terminar tudo. Por isso é que a
chamamos “coca de trabalho”. Essas duas coisas juntas são a resistência do
homem.
- Ah, entendi. E esse paneiro de farinha?
- É do que trabalhamos lá. Eu venho te mostrar. Se eu não trouxesse nada e
viesse só com minha boca falar com você, você não iria acreditar. Tenho
que trazer um sinal para que você acredite que o pessoal está trabalhando.
Foi assim que vim te encontrar para que você nos dê uma ajuda. O que você
me der eu levarei para meu pessoal para repartir e começar a trabalhar.
Assim, se alguém necessitar de mais coisas, eu mesmo vou vir trazendo
algum fruto de seu trabalho.
E assim Wakiméi Ihchúba fez um acordo com Uwaje Niimuhe. Uwaje
Niimuhe já lhe entregou o machado e tudo mais que ele lhe pediu, o que as
pessoas haviam pedido por intermédio de Wakiméi Ihchúba:
- Essas são as coisas que meu pessoal precisa: terçado, faca, machado... e
panela e prato para cozinhar.
Com esse pouco que ele lhe deu, Wakiméi Ihchúba voltou até o Centro. E
foi assim que chegou o primeiro machado para os Bora. Os elementos que
ele trouxe, repartiu para seu pessoal. Com isso eles já tinham terçado para
limpar a roça. Nesse tempo, eles ainda usavam as pedras que espirram brasa.
Mas depois de Wakiméi Ihchúba ir lá, já veio o fósforo.
Como foi muito pouco o que ele trouxe, algumas pessoas receberam, mas
as outras também necessitavam. Então eles foram falar com Ihchúba:
- Abuelo, a primeira vez que você trouxe coisas de Uwaje Niimuhe, não foi
suficiente para todo mundo. Nós também precisamos, trabalhamos o mesmo
tanto que os outros.
Então ele preparou tabaco, coca e ambil e partiu, junto de seu pessoal,
carregando a farinha que haviam produzido. Chegando lá, pediu mais
coisas.
Dessa forma, a farinha é um produto para comprar alguma coisa. Quem não
havia recebido da primeira vez, da segunda já recebeu e tudo ficou igual
para quem trabalha. E assim, nesse tempo, o trabalho passou a render para
todos.

A narrativa acima anuncia algumas questões que serão mobilizadas na construção


desta tese, como o fato de a coca, o tabaco e o sal vegetal serem substâncias fundamentais
para a vida bora. Porém, podemos observar desde já a saliência de um tema que ocupará boa
parte de nossas reflexões na Parte II: a centralidade do chefe-Garça e a relação que ele
mantém com o pessoal de sua maloca, a quem o narrador refere-se como sendo seus
“clientes”, “servos” ou “crianças”. É esse mesmo chefe quem, buscando atender a demanda
de seu pessoal, procura Uwaje Niimuhe ou Deus-do-Machado a fim de obter dele “machados

36
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

de verdade”, isto é, instrumentos de metal que facilitem a abertura e a manutenção dos


roçados. Como vimos na Introdução, o Tabaco de Nossa Criação ou simplesmente Abuelo
Tabaco é o demiurgo que criou os Povos do Centro. Por sua vez, Uwaje Niimuhe é aquele
que deu origem a todos os não-indígenas.

Assim, além da farinha, moeda de troca para a obtenção desses utensílios, Wakiméi
Ihchúba, Garça-do-Bom-Trabalho ou simplesmente chefe-Garça levou consigo coca, tabaco
e sal vegetal, numa clara referência à maneira apropriada de realizar visitas e reuniões entre
os Povos do Centro, uma vez que é sempre a partir do compartilhamento dessas substâncias
que qualquer diálogo entre homens adultos é iniciado. Dessa forma, o fato de Deus-do-
Machado experimentar e aprovar a coca e o tabaco oferecidos pelo chefe-Garça é uma
maneira de dizer que um acordo foi firmado entre eles. Apesar de retornar à sua maloca com
algumas mercadorias, a narrativa nos conta que os objetos se esgotaram rapidamente, uma
vez que muitas eram as pessoas interessadas em “fazer o trabalho render”, isto é, em abrir e
cultivar com maior facilidade suas roças. Em pouco tempo, Wakiméi Ihchúba ou chefe-Garça
voltou a visitar Deus-do-Machado, levando dessa vez uma quantidade maior de farinha e
frutas.

Uma variação dessa narrativa pode ser encontrada em Pineda Camacho (1974). Ali,
o autor expõe o relato dos Andoque acerca da chegada das primeiras mercadorias. Apesar de
apresentar algumas diferenças, a estrutura dos dois relatos é bastante parecida: em razão do
desejo de facilitar o trabalho na roça, um chefe-Garça faz negócio com o detentor desses
instrumentos. Ao invés de Uwaje Niimuhe ou Deus-do-Machado, o criador dos machados de
metal é Garza-de-la-Bocana ou Tigre-de-la-Bocana, sendo bocana, em espanhol, a palavra
usada para referir-se à desembocadura de um rio e, portanto, à direção oriental35.

Já vimos como a noção de Oriente é importante para os Bora e os demais Povos do


Centro por indexar, mais que apenas uma orientação espacial, um conjunto de seres
estrangeiros com os quais se mantêm relações. Nessa narrativa que condensa importantes
personagens míticos e eventos históricos igualmente centrais, a impossibilidade de sua
datação não significa que Uwaje Niimuhe ou Deus-do-Machado seja um personagem

35
Desse modo, Tigre-de-la-Bocana é o mesmo Jaguar-dos-Cantos-do-Oriente que aparecerá nos capítulos 6 e
7.

37
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

pertencente ao passado ou que ele se localize em um tempo mítico impreciso. Ao contrário,


o Deus-do-Machado permanece presente nos dias de hoje enquanto o demiurgo criador dos
añumúnaa.

Añumúnaa quer dizer, literalmente, “gente que atira” ou “gente que queima” (añu:
ação de atirar, balear, escaldar ou queimar e múnaa: gente, povo). Ainda que algumas vezes
o termo seja traduzido para o espanhol regional simplesmente como blancos, um olhar
cuidadoso revela que existe um conjunto amplo e heterogêneo de agentes para os quais essa
definição é aplicada. É muito comum, assim, que os Bora não se refiram aos agentes
estrangeiros com quem se relacionaram ao longo de sua história recente a partir da categoria
guarda-chuva de “brancos”, mas sim por meio de um conjunto de vocábulos mais específicos
como peruanos, padres, comerciantes, soldados, mafiosos, etc – vocábulos esses que,
doravante, buscarei utilizar à maneira de meus interlocutores. Quando se referem àqueles que
adentraram seu território no período compreendido entre o século XVIII e a última década
do século XIX, os Povos do Centro dizem que era do Oriente ou da foz dos rios que chegavam
os brasileiros:

Qué significa todo ésto? Cuál es la relación entre la Garza Bocana y la de la


cabecera? (...) Para algunos Andokes la relación es muy simple: La Garza
de la Bocana representa a los Brasileros, la Garza del Centro a los Andokes
(...). (Pineda Camacho, 1974: 459)

1.1.2. O Tempo dos Brasileiros

Se não sabemos quando Wakiméi Ihchúba encontrou Uwaje Niimuhe pela primeira
vez, é possível mensurar com alguma precisão em que momento e porque o acordo entre eles
sofreu alterações. Os añumúnaa, filhos do Deus-do-Machado, são conhecidos por sua
ganância e avareza. Assim, houve um momento em que os produtos entregues em troca das
ferramentas de metal e outras mercadorias deixaram de ser suficientes. Nessa época, diversos
grupos ainda viviam no Centro, isto é, nas zonas de interflúvio entre os rios Caquetá e
Putumayo. Porém, aqueles que habitavam temporária ou permanentemente as margens
desses dois grandes rios faziam comércio com as embarcações vindas de jusante – mais
especificamente, com os tripulantes de embarcações luso-brasileiras que buscavam explorar
a remota fronteira do Brasil Colônia. Apesar da relativa carência de registros, sabe-se por

38
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

exemplo que por volta de 1770 foi erguido o forte de São Francisco de Xavier de Tabatinga,
às margens do rio Solimões (Oliveira, 1968), numa tentativa colonial de ocupar e dominar a
porção ocidental do território sob jurisdição de Portugal36.

Karadimas (2000a: 87-88) descreve como nessa época as autoridades coloniais


portuguesas valiam-se das especulações acerca das práticas antropofágicas dos índios
“gentios” na Amazônia Ocidental. Cientes de que alguns grupos possuíam cativos de guerra
cujo destino final era o consumo ritual de sua carne, os colonizadores empreendiam os
“resgates”. Nessas ocasiões, sob a justificativa de salvar os prisioneiros de seu triste fim,
compravam-nos de seus donos em troca de mercadorias e os inseriam no comércio de
escravos que mobilizava os mercados de Tefé e Manaus. Alguns documentos escritos
ilustram essa conjuntura, como podemos notar no relato de Cuervo, clérigo que visitou o rio
Caquetá em 1765:

(...) poco extrañaremos la mucha gente que nos han extraído dichos
Portugueses a sus Colonias (...) ni la que entre los mismos bárbaros se
consume con sus continuadas guerras, por recoger joyas (así llaman
comúnmente en idioma Ceon los muchachos que cautivan entre las
Naciones enemigas) para bajar a venderlos a los Portugueses de quienes
recibían hasta arcabuces, municiones y pólvora, de que resultó el que
muchos gentiles se adiestrasen en el manejo de esas armas que aún
conservan. (Cuervo, 1894: 262)

Apenas alguns anos mais tarde, em 1774, Ribeiro de Sampaio, então ouvidor e
intendente geral da capitania de São José do Rio Negro, visita a região e deixa a entender que
o tempo do tráfico de escravos havia ficado para trás e que os índios do rio Caquetá (Japurá)
já não eram levados a região de Alvarães37:

O Rio Urauá, desemboca no Amazonas, lugar de Alvarães (antes, Cayçára)


– “por ali fazião dos índios escravos, que se conduzião principalmente do
rio Jupurá, naqueles infelices tempos, em que se traficava em homens nestes
sertões. (Ribeiro, 1825: 36)

O que mais fez conhecer este rio [Japurá] forão as multiplicadas


navegações, que por ele se fizeram ao trato de escravos, antes que
justamente se abolisse huma permissão tão injuriosa á natureza humana, e

36
Antes disso, alguns documentos (Ribeiro, 1895, Monteiro de Noronha, 1862) já apontavam a presença dos
Miranha no curso do rio Caquetá, muito embora seja possível que o etnônimo fosse aplicado de forma
generalizada aos indígenas da região em referência a suas práticas antropofágicas. Vargas e Pineda Camacho
(1982) defendem que as incursões escravagistas e evangelizadoras na região começaram ainda no século XVII,
como as referências às etnias da porção inferior do rio Caquetá no mapa etno-histórico de Nimuendaju (1981)
parece indicar.
37
Alvarães é atualmente um município bastante próximo a Tefé, no médio Solimões.

39
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

tão sujeita ainda nas condições facultadas ás mais impudentes, e


fraudulentas iniquidades. (Ribeiro, 1825: 84).

De fato, a proibição oficial dos “resgates” foi decretada em 1775, mas é notório que
o tráfico de pessoas continuou ativo até pelo menos a segunda metade do século XIX38. Um
dos registros mais completos desse período é o de Spix e Martius, que empreenderam uma
longa viagem na América do Sul entre 1817 e 1820. Tão logo chegaram em Puerto Miraña,
no rio Caquetá, os viajantes relatam que a primeira reação dos indígenas foi expressar-lhes o
desejo que tinham em fazer negócios:

Embora nenhum deles falasse o português, nem o tupi, queriam todos,


entretanto, tratar de negócios (...). Esse chefe havia adotado um nome
cristão, como todos os outros, que tínhamos encontrado até aqui, embora
dificilmente fosse batizado. João Manuel era conhecido e temido, não só
entre os seus miranhas, mas em todo o alto Japurá. Provavelmente, tivera
ele bastante coragem e espírito de iniciativa, para adquirir escravos da sua
tribo ou das tribos vizinhas e negociá-los com os brancos. (...) Só o comércio
com os brancos, que ele sabe controlar em nome de todos, parece que lhe
deu a supremacia, que ele faz valer entre os companheiros da tribo (...).
Depois da nossa chegada, despachou o tupixaba mensageiros para as matas,
avisando que tinham chegado brancos para fazerem negócio, e queriam
especialmente permutar adornos, armas e utensílios índios. (Spix e Martius,
1981: 209- 210).

O anseio dos viajantes em adquirir apenas os objetos indígenas pareceu estranho ao


chefe (tupixaba), acostumado a atuar como intermediário entre os comerciantes de escravos
e outros indígenas que desejavam vender seus próprios cativos. Tal qual vimos na narrativa
sobre Wakiméi Ihchúba e Uwaje Niimuhe, João Manuel, o chefe Miranha de quem fala Spix
e Martius, era conhecido por gerir seu pessoal e mediar a negociação que, nesse momento, já
não girava apenas em torno de produtos nativos, mas de pessoas39.

Existem ainda ao menos dois relatos importantes sobre a questão na segunda metade
do século XIX. Jules Crevaux percorreu a região em 1879 e, tendo feito uma visita a uma
comunidade Murui-Muina (Ouitoto, em seu relato), conta que viveu algo inesperado em sua
partida40:

Enfin nous partons avec deux pirogues, et, portés par le courant, nous

38
É importante salientar, aqui, a tensão gerada pela presença de comerciantes luso-brasileiros em um território
pertencente à Coroa Espanhola após a assinatura do Tratado de Paz de 1777 (López, 2014: 35).
39
Ao final, Spix e Martius contam que levaram dois jovens Miranha (um homem e uma mulher) para Munique
(Alemanha), onde morreram pouco tempo depois, de causas não mencionadas pelos autores.
40
López (2014: 39-42) defende que o tráfico de escravos no final do século XIX já se encontrava impulsionado
pelo começo da atuação das empresas caucheiras na região (cf. infra).

40
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

rejoignons bien vite nos compagnons. J’achète une des embarcations et fais
démarrer le radeau. Nous sommes déjà en route, lorsque je vois un Indien
blotti au milieu de mes bagages. Je le pris de s’en aller ; il débarque, mais
en m’adressant un regard singulier, que je ne comprends malheureusement
que lorsqu’il est déjà loin et fait des gestes de désespoir. Je devine trop tard
que ce jeune homme est un prisonnier que ces Indiens voulaient vendre. Il
eût très heureux de sortir des mains de ses ennemis pour venir avec nous.
(Crevaux, 1883: 371).

A surpresa de encontrar uma pessoa escondida no meio de sua bagagem, fruto de uma
tentativa frustrada de um chefe em fazer negócios com Crevaux, é desenvolvida mais adiante:

Ce chef, qui veut me traiter en vaincu sans combat, n’a pas moins de dix
fusils, et autant de sabres de cavalerie, de véritables lattes de cuirassiers.
Bien que vivant l’Amazone, il possède quatre coffres remplis de tous les
objets que servent à la vie civilisée. Cela provient d’un trafic d’esclaves que
font leurs chefes avec des négociants brésiliens. Un enfant à la mamelle est
coté la valeur d’un couteau américain ; une fille de six ans est évaluée un
sabre et quelquefois une hache ; un homme ou une femme adulte atteint le
prix d’un fusil. Ainsi armés, ces indiens vont faire des excursions dans les
rivières voisines, attaquent des populations que pour se défendre n’ont que
des flèches, tuent ceux qui résistent, font les autres prisonniers, et
descendent les livrer aux marchands de chair humaine. Ce commerce n’est
pas sans risques : il arrive assez souvent que le négociant est mal reçu
lorsqu’il vient réclamer le prix de sa marchandise. (Crevaux, 1883: 372-
375).

Pouco antes, em 1875, Paul Marcoy havia descrito o modo pelo qual os portugueses
capturavam os Miranha (1875: 385), povoando de indígenas “descidos” do rio Caquetá as
localidades de Cayçara, Ega, Nogueira e Coary (região do médio Amazonas, próximo aos
atuais municípios de Tefé e Coari)41. Porém, o autor sublinha também que tal migração era
impulsionada pela negociação direta dos indígenas com os comerciantes:

At Cayçara, Ega, Nogueira, and Coary, many individuals of this nation may
be seen, whose presence is accounted for, not by the success of kidnapping,
as of old, but the influence of the commercial spirit. (...) I have no
information indeed as to what has converted the transaction into a simple
question of mutual accommodation, but am quite sure that the inhabitants
of the above towns, instead of brutally hunting the natives, content

41
A ocupação indígena atual dos Miranha no médio rio Solimões é um assunto à parte cuja exposição nos
distanciaria nesse momento do fio condutor de meu argumento. Bates (1875) relata a existência de Miranhas
em Tefé já na primeira metade do século XIX em razão do comércio de escravos. Em 2014, segundo dados da
SESAI, havia 1.459 indígenas Miranha vivendo nas TIs Miratu, Cuiú-Cuiú, Barreira da Missão, Méria e
Cajuhiri Atravessado, todas elas na região do Médio Solimões entre os municípios de Coari, Tefé, Uarini,
Alvarães e Fonte Boa. Faulhaber (1987, 1996) explora os meandros da ocupação desse território, onde se fazem
presentes ainda grupos Uitoto, Tikuna e Cocama. Em 2018, no âmbito de um projeto UNESCO – Museu do
Índio, um grupo de cinco Miranha visitou as malocas Bora no médio Igaraparaná (cf. Introdução). Foi a primeira
vez que os descendentes daqueles que foram levados do Caquetá-Putumayo voltaram ao território de seus
antigos parentes. O registro fílmico desse encontro pode ser conferido em Lucas e Rossini (2018).

41
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

themselves with buying their children. (Marcoy, 1875: 386)

Mais adiante, o autor continua:

A Miranha father never refuses to barter away his son for two or three
hatchets, nor the mother to make away her daughter for a half-a-dozen
yards of cotton, a bead necklace, and a few gilt trinkets. From such
commercial relations between civilization and barbarism result the number
of young Miranha of either sex, who may be seen in the towns and villages
of the Amazon, from Alvaraes-Cayçara to Barra do Rio Negro. (Marcoy,
idem: 389, grifo meu)

Ao mesmo tempo em que seu relato corrobora os anteriores ao enfatizar a participação


direta dos indígenas no trato com os comerciantes, Marcoy introduz uma nova informação:
a de que um pai miranha concordaria em trocar seu próprio filho pelo preço de “dois ou três
machados”. Tomamos conhecimento, então, de que certas negociações envolviam não
apenas cativos de guerra e seus donos, mas também pessoas aparentadas.

Quando expuser a correlação entre os dados sobre parentesco e chefia, ficará claro
que a relação pai-filho entre os Povos do Centro extrapola os laços de filiação biológica.
Dessa maneira, não é possível afirmar se as crianças ou jovens mencionados por Marcoy
fossem, de fato, filhos legítimos42 daqueles com quem os comerciantes de escravos
negociavam. Por motivos que conheceremos no decorrer desse trabalho, no entanto, há
elementos suficientes que nos permitem afirmar que alguns chefes também comerciavam o
próprio pessoal de sua maloca nessas transações (a quem, eventualmente, chamavam de “seus
filhos” ou “suas crianças”, como na narrativa apresentada no começo desse capítulo). Porém,
tais chefes o faziam sempre levando em consideração a diferença de status existente entre
aqueles que viviam a seu redor. O depoimento abaixo, recolhido por Pineda Camacho em
uma conversa com um chefe Nonuya sobre esse período, levanta algumas dessas questões:

Cuando los otros grupos se enteraron que el "hacha de acero" había llegado
donde el capitán nonuya, fueron a visitarlo para preguntarle dónde y cómo
había conseguido el preciado instrumento. Un jefe huitoto – de las cabeceras
del Cahuinarí – quiso saber su valor (...). El otro sentenció que valía mucho
y que le había tocado pagarla nada menos que con su propia hija! El huitoto
quedó entristecido. (...) Al cabo de un tempo regresó donde el nonuya. Le
contó que había resuelto, a pesar de todo, entregar a su propia hija, porque

42
Doravante, sempre que utilizar o termo legítimo (ver Glossário) tomo de empréstimo o vocábulo usado pelos
próprios Bora, em espanhol, para referir-se aos laços de parentesco biológicos reconhecidos coletivamente.
Como ficará claro, a distinção é importante para pensarmos a respeito dos limites das relações de adoção,
principalmente aquelas pessoas anteriormente aparentadas. Esse tema será abordado mais à fundo no capítulo
4.

42
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

el hacha le podría ayudar, en cambio, a cultivar las frutas y así multiplicar


la gente. Pero era mentira! Él no se proponía entregar a su hija, sino dos
huerfanitas bellas, gordas, y que alimentaba y cuidaba con esmero para el
cambio. (Pineda Camacho, 1985: 77)
O relato do chefe nonuya menciona que duas “órfãnzinhas” eram alimentadas e
cuidadas pelo chefe Murui-Muina (Huitoto, no relato) com o intuito de trocá-las por
ferramentas de metal. Nos capítulos seguintes exporei mais amiúde o fato de que a categoria
“órfão” possui, também entre os Bora, um caráter bastante específico. Por ora, basta dizer
que são órfãs aquelas pessoas que, vivendo em determinada maloca, não pertencem ao clã
patrilinear do chefe que a comanda. Dessa forma, encontram-se no espectro de orfandade não
apenas os cativos capturados em uma expedição guerreira, mas também alguns parentes afins
do chefe e outras pessoas que porventura vivam a seu redor.

Se os cativos de guerra eram preferidos nas trocas com os comerciantes de escravos,


na ausência deles outras pessoas tidas como “órfãs” eram negociadas nas permutas. Como
relatou-me o chefe do clã Tamanduá43:

Os meninos pequenos tinham mais valor, os jovens e os casais tinham


menos. Ou seja, uma pessoa, um chefe de clã, tinha que recolher seus
“órfãos” e com eles é que se fazia a troca. Nesse tempo era como uma
ditadura. Mesmo se você não quisesse, tinha que obedecer. Muitas pessoas
foram à força.
De acordo com o chefe do clã Cobra-Grande, havia mesmo uma equivalência entre
as pessoas e as mercadorias:

Do barco que vem do Brasil, iam tirando as mercadorias e iam pagando.


Eles iam pagando... uma escopeta valia uma pessoa. A [escopeta] de dois
canos valia uma mulher com filho pequeno. Dois terçados valiam uma
pessoa. E assim é que eles faziam negócio. Trocavam panela, roupa, rede
[de tecido], todas as mercadorias que vinham do Brasil. E assim foi... não
sei por quanto tempo funcionou esse negócio da venda de pessoas.
Algumas informações fornecidas pelos Bora dão um panorama mais específico acerca
do funcionamento da empresa escravagista na região se comparadas aos dados apreensíveis
por meio da leitura das fontes escritas44. Meus interlocutores apontam duas grandes rotas de

43
Todos os relatos utilizados nessa parte do trabalho foram gravados em dezembro de 2017 no âmbito do
Projeto Salvaguarda do Patrimônio Linguístico e Cultural de Povos Indígenas Transfronteiriços e de Recente
Contato na Região Amazônica (Funai/UNESCO) e se encontram na base de dados do Museu do Índio, no Rio
de Janeiro.
44
Existem outros documentos e trabalhos que fornecem informações sobre a região do Caquetá-Putumayo nesse
período. Como o objetivo desse trabalho não é realizar uma análise e sistematização exaustiva dessas fontes
(mas sim utilizá-las em diálogo com a própria organização e classificação nativa do tempo), elenco a seguir
alguns documentos que podem ser consultados pelo leitor ou leitora que se interesse pelo tema: Acuña (1891),

43
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

comércio que operaram pelo menos até o fim do século XIX e que são representadas no mapa
abaixo.

Mapa 3 – Rotas de comércio de pessoas segundo os Bora

A primeira delas envolvia o então chefe do clã Arara Vermelha ou Cobra-Grande (ver
cap. 5), Mañaho. Vivendo nas cabeceiras do igarapé Tagua, Mañaho apresentava-se, para os
comerciantes, como Jacinto Dias. Apesar do nome de origem portuguesa, ele não dominava
o idioma dos compradores de escravos, de modo que um homem não-indígena chamado Rui
o acompanhava e trabalhava como seu tradutor. A maloca de Mañaho era ligada por meio de
uma trilha na mata à maloca de Cudsi Néépajyu, localizada na foz do igarapé Umari, por sua
vez um afluente do baixo Igaraparaná. Na margem oposta à sua maloca havia a casa de
Roldan, outro não-indígena que trabalhava como tradutor entre Cudsi Néépajyu e os

Barletti (1992), CNMH (2016), Cuervo (1894), Koch-Grumberg (1910), Carneiro da Cunha (2009), Vargas e
Pineda Camacho (1982).

44
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

comerciantes de escravos45. Cudsi Néépajyu, que adotou o nome em português José Jovanico,
pertencia provavelmente ao clã Verme de Pupunha e era o grande responsável pelas trocas
nessa região. Apesar disso, as pessoas que se encontravam em sua maloca para serem
vendidas chegavam até ali por meio de uma extensa e intricada rede de circulação que
envolvia diferentes chefes locais46. Assim, Mañaho lhe fornecia não somente seus próprios
órfãos, mas também pessoas que chegavam até ele pelas mãos de outros chefes desejosos de
obter ferramentas de metal47. Os comerciantes de escravos levavam os órfãos vendidos por
José Jovanico ou Cudsi Néépajyu no Igaraparaná direto ao rio Putumayo e dali aos mercados
do Médio Solimões.

Já na parte setentrional da região do Caquetá-Putumayo, outro chefe exercia


considerável influência. Os relatos bora que pude conhecer mencionam sempre Iivaejte48,
chefe Miraña cuja maloca encontrava-se no rio Cahuinari, mais à jusante da área de ocupação
Bora. Iivaejte era quem, naquela região, trocava pessoas por mercadorias com os Bora49.
Segundo o chefe do clã Tamanduá, a isso se refere a música do baile Llaaríwa, classificada
por Guyot (1980) como parte do conjunto de canções denominadas como “cantos do
machado”:

Hoy estoy cortando los caminos del comercio de la garza.


Los espatos del árbol de guerra dicen entonces:
Djañarawa hi ha50!
De qué modo los caminos han sido cortados?
Por los caminos de comercio de la garza.
El hacha del Oriente llevará muy lejos
Al último de mis hijos huérfanos
Ustedes! No hablen!
Si hablan de eso, dónde podremos hacer comercio?
(Guyot, 1976: 6, grifo original)
De acordo com meu interlocutor, o “machado do Oriente” mencionado na canção é
uma referência aos produtos adquiridos pelos Bora a partir da venda de seus órfãos ao chefe

45
Em outros relatos, diz-se que a maloca de Cudsi Néépajyu estava próxima a uma capoeira distante uma hora
em canoa da foz do igarapé Umari.
46
O relato de Oliverio Ribamaqui, homem bora pertencente ao clã Caraná e que viveu nas comunidades no
Peru, condiz com as informações fornecidas por seus parentes na Colômbia: “Le gens de l’amont, qui avaient
entendu parler de la hache, voulurent, eux aussi, la posséder. « Moi aussi » pensait un curaca de l’amont « Je
vais livrer mes orphelins aux Blancs pour pouvoir travailler avec la hache » ” (Razon, 1984: 6 – 7).
47
Conta-se, por exemplo, que alguns chefes ocaina foram parceiros de troca frequentes de Mañaho.
48
Iivaejte, em Bora, significa “pena de arara vermelha”.
49
Alguns interlocutores atuais mencionam também a importância e a influência da mãe do chefe na negociação
com os comerciantes de escravos. O nome que adotou em português era Socorro.
50
Interjeição sem significado semântico usada em todas as canções da baile Llaaríwa.

45
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

Miraña no Cahuinari. Segundo os Bora, Iivaejte, por sua vez, não obtinha essas mercadorias
diretamente dos comerciantes não-indígenas, mas sim dos chefes Cubeo que viviam nas
cercanias da cachoeira Córdoba, próximo à atual comunidade de La Pedrera, no rio Caquetá.

Se não possuímos muitas informações sobre como o comércio de pessoas começou


no Caquetá-Putumayo, meus interlocutores Bora contam de que forma ele teve fim, tanto no
caso das redes comandadas por José Jovanico ou Cudsi Néépajyu quanto por Iivaejte. No
caso do primeiro, que era quem geria as relações com os comerciantes de escravos no rio
Igaraparaná, conta-se que ele foi morto por um xamã inimigo. Nesses tempos, já era
disseminada a ideia de que o comércio de pessoas, ainda que fornecesse as preciosas
ferramentas de metal, tornava-se cada vez mais desvantajoso em razão do grande número de
pessoas que deixavam as malocas. O xamã, no intuito de interromper essas atividades, fez
com que o coração desse chefe batesse no peito de uma anta e, numa caçada noturna, matou
o animal. A morte da anta ocasionou o rápido falecimento de Cudsi Néépajyu ou José
Jovanico, deixando seu pessoal sem chefe. É o que narra Santiago, o chefe do clã Cobra-
Grande:

Então morreu o Jovanico. E assim ficou isso do comércio de pessoas. O


grupo de Jovanico, seus clientes, ou seja, aqueles que são familiares deles,
depois que ele morreu ficaram sem patrão, sem diretor de uma casa grande.
Esse grupo, seus parentes, ficaram órfãos... já não tinham patrão, já não
tinham chefe. E finalmente dizem que, no barco que vem do Brasil recolher
o pessoal que era vendido, como ele tinha morrido e como eles tinham
ficado sem patrão, esse grupo se ofereceu voluntariamente a ir com o barco
que ia para o Brasil. E assim terminou o negócio de Mañaho e José Jovanico.
Dessa forma, o clã de José Jovanico ou Cudsi Néépajyu deixou de existir no
Igaraparaná. Mañaho, seu parceiro de trocas e chefe do clã Cobra-Grande, teria morrido
algum tempo depois na estação caucheira de Santa Catalina (ver infra)51. Em relação a
Iivaejte, chefe que comandava o comércio no rio Cahuinari, seus negócios foram
interrompidos quando os próprios Cubeo que lhe forneciam os produtos manufaturados
deixaram de fazer negócio com aqueles que vinham do Brasil52. Segundo algumas pessoas

51
Em conversas junto a meus interlocutores, chegamos à conclusão de que é difícil ter certeza se de fato o
homem chamado Mañaho que morreu nessa estação era o antigo parceiro de trocas de Cudsi Néépajyu ou se se
tratava de seu filho mais velho. Nomes como Mañaho, ao pertencerem a primogênitos de linhagens maiores e
serem transmitidos ritualmente, se repetem através das gerações (ver cap. 3).
52
Segundo o chefe do clã Pupunha da comunidade de Puerto Arica, o clã de Iivaejte seguiu fazendo negócios
com os não-indígenas após o fim das atividades dos comerciantes de escravos na região: “Este clan fue el primer
grupo que empezó con el negocio de personas con artículos (hacha, escopeta, machete etc.) con los brasileños

46
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

me relataram, isso aconteceu depois que brotaram mandiocas incomuns nas roças cubeo. Ao
invés de conservar os tubérculos dentro da terra, eles começaram a nascer nas ramas das
plantas. A morfologia bizarra desses cultivares teria sido interpretada pelos Cubeo como uma
evidência do mau agouro trazido pelo comércio de pessoas e, dessa maneira, esse grupo
abandonou a prática, deixando em seguida a região da cachoeira Córdoba53.

Em alguma medida, as narrativas bora atuais oscilam ao tratar desse período. Por um
lado, condenam o fato de que seus antepassados tenham sido capazes de entregar órfãos,
muitas vezes advindos de sua própria maloca, em troca de ferramentas de metal. Na
interpretação de alguns de meus interlocutores, tais ações foram “desumanas” ou até mesmo
“criminosas”. Por outro lado, é normal que ao falarem sobre a bonanza do machado, os Bora
enfatizem o fato de que os órfãos entregues aos comerciantes de escravos se sacrificaram em
prol do pessoal de sua maloca. Mesmo que tenham sido retirados permanentemente do
convívio de seus parentes, foi apenas por meio desses órfãos que os Bora conseguiram ter
acesso às ferramentas de metal, aumentando suas roças e, consequentemente, tornando viável
a existência de malocas mais abundantes, isto é, com maior acesso às substâncias
indispensáveis para a produção correta de pessoas e relações (a saber, mandioca, coca,
tabaco, sal vegetal e pimenta).

Expedições de “resgate” não eram incomuns na selva tropical nos séculos XVIII e
XIX, como demonstra Faraje (1986) em sua investigação sobre a atuação dessas frentes no

y posteriormente continúan con el negocio de compra de resina del higuerón (pacamɨkojtú), balata y por ultimo
con el negocio del caucho con los peruanos.” (CNMH, 2016: 5)
53
Vale, aqui, uma importante ressalva. Segundo Cayón (informação pessoal), é possível supor que Iivaejte
fizesse negócios não com os Cubeo, mas com os Koretu. É o que o autor explica em um trabalho recente: “Após
as viagens do coronel Manoel da Gama Lobo D’Almada, entre 1784 e 1787, demostrou-se que o canal não
existia e registraram-se vários caminhos que alternavam água e terra pelos quais era possível unir as bacias dos
rios Negro e Japurá (Reis, 2006 [1940]). Os espanhóis nunca estiveram presentes nessa região, enquanto os
portugueses e seus aliados indígenas incursionaram por ela para capturar escravos desde a metade do século
XVIII, fomentando epidemias, guerras intertribais, descimentos e fundações de aldeias. De fato, o famoso
naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira (1983 [1787]) comentou que os índios Koretu e Müküna, que viviam
no Apaporis, solicitaram às autoridades portuguesas a presença de vigários e soldados para acompanha-los
nas aldeias que estavam construindo e pediam para não enviarem diretores, dos quais já conheciam as práticas
violentas como cruéis administradores dos trabalhos dos nativos” (Cayon, 2018: 89, grifo meu). Como as
informações que apresento aqui foram passadas aos Bora por seus antepassados (que provavelmente não
tiveram contato direto com o grupo que vivia na cachoeira Córdoba, mas sim com Iivaejte), é possível que haja
de fato esse tipo de imprecisão. Contudo, opto por apresentar a informação de que os Cubeo habitavam a região
tanto para me manter fiel às informações de meus interlocutores quanto por considerar que não há, neste
trabalho, a intenção de tecer uma comparação apurada entre as fontes disponíveis e as narrativas indígenas.

47
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

norte amazônico. Tampouco eram desconhecidos, já nessa época, a existência de cativos de


guerra e de sistemas regionais interétnicos marcados pela assimetria, como argumenta Santo-
Granero (2009), por exemplo, para as relações entre grupos Hupda e Tukano no alto Rio
Negro54. A particularidade do caso bora, contudo, é que as trocas entre indígenas e
comerciantes de escravos valia-se de uma assimetria entre chefe e órfão que era, sobretudo,
interna. Assim, em oposição àqueles cenários onde se subordinava apenas o cativo de guerra
ou o inimigo estrangeiro, entre os Bora os “servos” ou “clientes” muitas vezes mantinham
relações de parentesco com seus “chefes” ou “patrões”55.

Esse tema será retomado ao longo deste trabalho de diversas maneiras. Por ora, além
de ater-se à sua importância, é fundamental que voltemos nossas atenções para eventos que
alteraram profundamente sua dinâmica na última década do século XIX e nas primeiras
décadas do século XX.

1.2. O caucho ou o Tempo dos Peruanos

Ao realizar minhas primeiras leituras a respeito da região do Caquetá-Putumayo, o


tema da atuação das empresas de caucho no começo do século XX era absolutamente
predominante. Se muitos antropólogos conhecem esse capítulo da história amazônica tão
somente por meio do livro Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem de Michael
Taussig (1987), uma breve pesquisa bibliográfica traz à tona vários outros trabalhos
dedicados à questão.

Como disse, logo percebi que, em razão da enorme quantidade de pesquisas sobre o
tema, concentrar meus esforços em dar conta dessa literatura era infrutífero. Assim, optei por
cobrir essas obras tanto quanto me fosse possível, esquivando-me propositalmente de
pormenores que, ao menos num primeiro momento, não coincidem com meu objetivo de

54
É importante salientar que, no caso que analisamos ao longo desta tese, apesar de eventualmente existir em
uma maloca órfãos vindos de outros povos, não estamos aqui diante de um sistema regional de relações de
escravidão tal como descrito por Santos-Granero (2009). Sem se valerem de outros povos que são mantidos
como cativos, servos ou populações tributárias, o caso Bora (por seu funcionamento interno) aproxima-se mais
ao descrito por Jabin (2016) para os Yuqui na Amazônia boliviana.
55
Nesse sentido, Karadimas defenderá um sistema de “escravidão endógena” que será discutido (e parcialmente
rebatido) nos capítulos 3 e 4.

48
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

compreender como e em que medida os acontecimentos dessa época foram o ponto de partida
ou a matéria-prima a partir da qual os Bora e os demais Povos do Centro reorganizaram suas
vidas.

De maneira geral, os escritos existentes sobre o tema podem ser agrupados em dois
conjuntos principais. No primeiro, encontram-se aqueles que apresentam e sistematizam os
eventos do período do conflito caucheiro. O mais famoso deles é o relatório de Roger
Casement (1913), cônsul inglês responsável por averiguar as denúncias de abusos por parte
dos extratores de caucho. Da mesma época são também o livro de Hardemburg (1913) e as
memórias de Robuchon (1903). Mais recentemente, importantes compêndios foram
organizados sobre o tema por Coulier (1981), Stanfield (1998) e Pineda Camacho (2000)56.
Um segundo grupo de trabalhos concentra-se nas narrativas indígenas sobre essa época.
Dentre eles, creio ser possível destacar o trabalho de Echeverri (1997, 2010), os artigos de
Guyot (1974, 1979, 1984), o mestrado de Razon (1984), as narrativas de Faerito e Omi (Pujol,
s. f.) e aquelas publicadas recentemente por Paredes e Acuña (2015) e Chirif (2017).

A maioria dos trabalhos acima versam sobre o intervalo temporal entre 1890 e 1933.
Os Bora se referem a esse período de tempo como a bonanza do caucho ou o Tempo dos
Peruanos57. Ainda que os acontecimentos dessa época tenham introduzido uma ruptura
importante na história dos povos da região, é notável certa continuidade com relação ao que
se passava em meados do século XIX. Em 1870, Rafael Reyes, um dos sócios da empresa
extratora de quina Compañia del Caquetá58, visitou a região do rio Putumayo e observou que
o comércio de escravos era ainda frequente (López, 2014: 43). Contudo, com a intenção de

56
Salienta-se além disso a publicação recente de uma coletânea em dois volumes organizada pelo Centro
Nacional de Memória Histórica (López, 2014) reunindo documentos inéditos, narrativas indígenas e textos de
especialistas a respeito do tema e, ainda, os trabalhos de Vela (2014) e Goodman (2009) que se preocupam em
traçar o perfil de dois importantes personagens dessa história (respectivamente, Julio Arana e Roger Casement).
57
“Peruano”, para os povos dessa região, é uma categoria particular: sua especificidade reside tanto em razão
da nacionalidade dos empregados da Casa Arana quanto nas memórias que os indígenas possuem acerca do
conflito colombo-peruano dos anos 1930 (ver adiante). Dessa forma, é bastante raro que os Bora se referiram
aos não-indígenas que nasceram no país vizinho simplesmente como “brancos”. Ao invés disso, marcam sempre
que podem seu pertencimento nacional como forma de diferenciar-se, fazendo referência, ainda que indireta, à
história que compartilham. Em geral, os “peruanos” são tidos como pouco afeitos ao trabalho e até mesmo algo
“malandros”.
58
Rafael Reyes tornou-se posteriormente presidente colombiano, entre 1904 a 1909, num dos períodos de maior
atuação da Casa Arana. Foi ainda um dos defensores mais influentes da empresa peruana quando das denúncias
de Roger Casement.

49
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

ingressar no mercado do caucho (em razão da crescente desvalorização da quina59), Reyes e


seus sócios decidem importar a mão-de-obra de que precisavam de outras regiões da
Colômbia, fundando no rio Caquetá a Estación Cauchera y Agrícola de La Concepción60. A
empreitada, entretanto, mostrou-se um fracasso, já que pouquíssimos foram os trabalhadores
que se adaptaram ao trabalho na floresta e às doenças tropicais. Os poucos que permaneceram
começaram autonomamente a extrair e comercializar o caucho. Dentre os que prosperaram,
Benjamín Larrañaga foi um dos que mais rapidamente se destacou61. Antigo empregado de
Rafael Reyes, Larrañaga instalou-se na região estabelecendo com os indígenas uma relação
na qual o caucho coletado era trocado por bens como ferramentas de metal, roupas e
miçangas62.

Assim, Larrañaga estabeleceu com os indígenas uma relação de troca distinta daquela
implantada pelos antigos comerciantes de escravos. Ao invés de órfãos, os Povos do Centro
passaram a fornecer caucho para a obtenção de mercadorias:

Generalmente, se construía en sus inmediaciones [de una maloca] la casa


del “racional” (como se denominaba el hombre blanco) y se activaba una
relación de intercambio en torno de la extracción de caucho por parte del
nativo. Los indígenas toleraban hasta cierto punto al intruso en la medida en
que les suministraba algunas herramientas y otras mercancías que
apreciaban considerablemente. (Pineda Camacho, 2000: 62)
Julio Arana, comerciante que na década de 1880 havia ganho algum dinheiro por meio
de práticas de contrabando em Iquitos, conheceu Larrañaga nos últimos anos do século XIX,
quando trafegava no rio Putumayo em suas atividades ilegais. Convencido de que o caucho
lhe renderia uma grande fortuna, Arana viajou até o Ceará em 1889 a fim de trazer
trabalhadores para seu empreendimento no rio Yurimagua, aplicando aos cerca de 20 homens
que reuniu o sistema de endividamento típico dos patrões da borracha. Não satisfeito com o
lento ritmo do trabalho de seus empregados, Arana aliou-se a Larrañaga, com quem fundou,

59
Para uma descrição da empresa extrativista da quina na Colômbia no século XIX, ver Dominguez e Gómez
(1990: 29-59).
60
Como mencionado no Glossário dessa tese, utilizo a palavra “caucho” (pouco usual em português) para
referir-me às gomas elásticas encontradas na região do Caquetá-Putumayo conhecidas na literatura também
como siringas fracas o jebes débiles e pertencentes especialmente à espécie Hevea guianensis. É importante
ter em mente que se trata de espécie diferente daquela explorada nos rios Juruá, Purus e Madeira, onde
predomina a Hevea brasiliensis ou seringa verdadera, goma “más pura y de más fácil manejo que cualquier
otro tipo de goma” (Dominguez e Gómez, 1990: 93).
61
Para maiores informações acerca da atuação dos caucheiros colombianos na região, ver Pineda Camacho
(2000).
62
Para detalhes sobre a vida de Benjamin Larrañaga, ver López, 2014: 89-101.

50
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

em 8 de abril de 1904, a empresa Arana, Vegas y Larrañaga. Na escritura pública da firma,


lê-se:

a los indios del Putumayo se les obligaba a trabajar por la fuerza por medio
de los empleados de la compañía. (...) la cantidad que actualmente debe la
firma a J.C Arana de Iquitos está invertida en mercaderías, embarcaciones,
aviamentos (adelantados) a los indígenas de esas regiones y en deudas del
personal (empleados de la compañía) “que reducen y obligan a trabajar a
los indios en esas chacras”. (Villamil, 1928: Sección 1a. Tomo. 966, folios:
512-513)

No mesmo ano, Larrañaga morre com todos os sintomas de envenenamento por


arsênico em La Chorrera, onde é enterrado63. Assim, de fornecedor de mercadorias para a
troca com os índios, Julio Arana torna-se, por fim, o responsável maior pela extração do
caucho na região, fundando a Casa Arana y Hermanos e recebendo todo o apoio do governo
peruano, que via com bons olhos sua instalação em La Chorrera em razão da disputa
territorial travada com a Colômbia. López (2014) estima que a Casa Arana contou, ao longo
de sua atuação na região, com cerca de 1.000 empregados e 30.000 indígenas trabalhando
em regime forçado.

Foto 1 – Julio Arana (à esquerda) em La Chorrera, 1912 (Fonte: Chirif, Chaparro e Torroba, 2013: 82).

63
Ainda que seu corpo tenha sido exumado e removido a pedido da família, parte de sua lápide original é uma
espécie de relíquia guardada no Colégio Indigena Casa del Conocimiento, antiga sede da Casa Arana em La
Chorrera.


51
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

1.2.1. A Casa Arana e os Bora: terror e resistência

O funcionamento da Casa Arana, em larga medida, rompeu com as práticas anteriores


dos caucheiros colombianos e dos comerciantes de escravos predominante ao longo dos
últimos dois séculos. Uma das razões para tal ruptura encontra-se no organograma da
empresa.

Enquanto Julio Arana comandava de longe seus negócios, eram nomeados Chefes de
Seção em cada uma das seções ou estações de caucho (a empresa chegou a ter 45,
concentradas na região dos rios Igaraparaná, Caraparaná e Cahuinari, todos afluentes do
Putumayo e do Caquetá – ver Figuras 2 e 3). Os Chefes de Seção eram responsáveis pelo
controle do caucho recolhido na floresta e seu envio até os portos de embarque da mercadoria
para Iquitos. Imediatamente inferiores, os Capatazes tinham a incumbência de controlar o
trabalho dos índios, as entregas de caucho e as potenciais tentativas de rebelião e fuga. Tanto
Chefes de Seção quanto Capatazes eram não-indígenas. A seu dispor havia uma série de
Muchachos, indígenas jovens que, tendo sido privados da convivência diária com sua família
ainda na infância ou adolescência, viviam junto aos caucheiros e possuíam a função de
fiscalizar o trabalho dos outros índios, além de realizar incursões para a captura de fugitivos,
de modo que a muitos Muchachos lhes foram entregues revólveres e fuzis. Houve, ainda, um
contingente importante de negros vindos de Barbados que, tendo sido comprados em regime
de escravidão por Julio Arana, dividiam suas funções com os Muchachos e Capatazes.

A particularidade desse sistema encontra-se no fato de que os Chefes de Seção não


possuíam remuneração fixa, recebendo seus rendimentos por meio de comissões que
dependiam diretamente da quantidade de caucho que enviavam a Iquitos. Isso fez com que
um sistema de trocas ou endividamento se transformasse rapidamente em um regime de
torturas e assassinatos que pressionava os índios a entregar uma quantidade cada vez maior
de caucho em suas seções. A disseminação do medo, muito aumentada pelo assassinato
exemplar e público das principais lideranças masculinas, foi alimentada por uma série de
“sanções” aplicadas aos que demonstravam um comportamento inadequado aos olhos dos
caucheiros ou certa insuficiência no fornecimento do caucho:

Las formas de sanción más usuales fueron: la aplicación del látigo; el


aprisionamiento en cepos; el encadenamiento en lugares visibles; el
semiahogamiento frente a los parientes de las víctimas; la violación de

52
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

mujeres en presencia de sus cónyuges y de sus hijos; la mutilación de partes


del cuerpo: dedos, manos, orejas, etc.; la exposición de víctimas desnudas,
atadas y colgadas de las manos; el lanzamiento a las corrientes de caños y
ríos de indígenas atados de pies y manos; la aplicación de sal en las heridas;
la incineración con kerosene de indígenas vivos y el fusilamiento. (López,
2014: 140)
Os castigos aplicados pelos caucheiros peruanos são descritos até os dias de hoje. É
o que conta um ancião do clã Buriti, em documento de 2016 elaborado pelos próprios Bora:

Primero llegaron a ganar la confianza de los indígenas, trayendo regalos


como espejos, perfumes etc. Disimuladamente fueron extendiéndose
haciendo cabañas en diferentes lugares. (...) Allí empezaron a trabajar el
caucho mucha gente de la etnia Bora, el trabajo consistía en cortar con
machete el palo de la siringa, sustraer la resina para luego obtener el caucho,
al comienzo los pagos era bueno, con el transcurrir del tiempo empezaron a
pesar con balanza las cantidades de caucho de cada recolector, al que traía
poco le castigaban propinándole fuertes latigazos que le causaba profundas
herida en la piel. (...) Con el tiempo aumentaron las múltiples formas
torturas que victimizaron a nuestros antepasados, uno de las más comunes
y crueles formas de tortura que aplicaban a los que traían poco caucho
consistía en ponerlos entre dos palos labrados día y noche hasta que muriera
de sed y hambre, conocido como cepo. La otra forma cruel consistió que a
la persona víctima de aplicar el castigo primero que todo lo mandaban a
cortar leña, amontonarla, luego lo amarraban y finalmente colocándolo
encima de la leña lo quemaban vivo. (CNMH, 2016: 10 – 11)
A imagem de uma pessoa sendo queimada viva na lenha que ela mesmo recolheu
permeia algumas narrativas bora que escutei sobre o Tempo dos Peruanos. Entre os Bora,
tais acontecimentos, contados de geração em geração nos mambeaderos, tiveram lugar
principalmente nas estações de Abisinia, Morelia e Santa Catalina.

53
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

Figura 2 – Croqui das seções caucheiras da Casa Arana no Caquetá-Putumayo


(digitalizado a partir de cópia em Mitchell, 2016)

54
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

Figura 3 – Destaques das seções caucheiras de maior presença Bora


(digitalizado a partir de cópia encontrada em Mitchell, 2016)

Essas seções ou estações caucheiras (Absinia, Morelia e Santa Catalina), localizadas


próximas às áreas de ocupação bora no interflúvio entre os rios Igaraparaná e Cahuinari,
foram as que mais receberam os antepassados dos Bora que hoje estão vinculados aos três
cabildos nos quais esse trabalho se desenvolveu64.

Não raro, os caucheiros peruanos valiam-se de contendas anteriores entre os próprios


grupos para levar a cabo suas ações, como menciona um chefe do clã Tucano habitante da
comunidade Puerto Arica, na foz do rio Igaraparaná65:
Los peruanos tomaron dominio territorial, primero que todo dominando a
los líderes de los diferentes clanes y etnias, estrategia que les permitió
expandir sus actividades de extracción del caucho al igual que sus métodos
de tortura, ahí fue donde marcó el inicio de todo una serie de atropellos que
finalizó con la desaparición de la mayoría de los clanes. Una forma consistía
en que si un Uitoto no cumplía con la tarea de recolección del caucho un

64
É importante salientar ainda o fato de que muitos indígenas morreram em decorrência da catástrofe
epidemiológica gerada pela chegada dos caucheiros. Sobre esse tema ver Pineda Camacho (2000: 116-118).
65
Alguns de meus interlocutores afirmam ainda que os caucheiros toleravam os festins antropofágicos no caso
da morte, por um grupo rival, de um líder ou revoltoso que causava problemas para a atuação da companhia.
Essa informação coincide com aquela apresentada no relato de Evelyn Batson a Roger Casement (2012: 193).

55
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

Bora lo tenía que matar; si un Bora no cumplía un Uitoto lo mataba; de igual


forma sucedía entre los Muinanes y los Ocainas. Esta práctica generó odio
entre las diferentes etnias y clanes. (CNMH, 2016: 7)

Algumas obras pictóricas concebidas por artistas indígenas contemporâneos abordam


de maneira estarrecedora essa e outras as memórias que os Povos do Centro possuem a
respeito desse período.

Foto 2 – Masacre a los Huitoto Murui por los varones del caucho Bora (Autor: Brus Rubio)

56
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

Foto 3 – El corazón de los varones del caucho (Autor: Santiago Yahuarcani)

Foto 4 – Indígenas contra caucheiro (Título original e autor desconhecidos)

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Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

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Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

Fotos 5, 6 e 7 – Closes de painel em La Chorrera confeccionado em 2012 na ocasião do centenário das


denúncias de Roger Casement (Autores: Santiago Yahuarcani López e Rember Yahuarcani López)

Se a violência da colonização não é exclusiva à história dos Povos do Centro, o modus


operandi da empresa caucheira na Alta Amazônia choca por sua brutalidade, retratada hoje
nas obras de artistas indígenas e igualmente explícita nos documentos da época:

Martinegui tenía un perro llamado Cafre que se comía las cabezas de los
indios asesinados, perro que estaba adiestrado especialmente para destrozar
las carnes de los indios (Valcárcel, 1915: 127).
Além dos abusos físicos cometidos contra os que se recusavam a trabalhar, fugiam
ou entregavam uma quantidade insatisfatória de caucho, eram comuns as violações sexuais
contra as mulheres indígenas na região, algumas das quais ocupavam o papel de “esposas
nativas” dos caucheiros peruanos:

Todos estos criminales mantenían un gran número de desafortunadas


mujeres indias para propósitos inmorales, llamadas “esposas” por
eufemismo. Hasta los “peones” tenían más de una mujer india. La
gratificación excesiva de este apetito iba de la mano con el instinto de
asesinato que los conducía a torturar y matar a los padres y parientes de las
mujeres con quien vivían. (Casement, 2012: 107).

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Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

Foto 8 – Indígena Bora tomada como esposa por um caucheiro em La Chorrera, 1912
(Fonte: Chirif, Chaparro e Torroba, 2013: 103)

Em um depoimento recentemente publicado, Zoila Erazo, mulher andoque que vivia


na região de Pebas (Peru), narra em 1980 ao antropólogo Jean-Patrick Razon, como o
caucheiro Armando Normand lhe tomou como “esposa” após assassinar suas mulheres
anteriores por ciúmes:

Dos mujeres primero ha tenido. Mi prima, buena micha, una cocama, mujer
blanca… ha muerto… Seguro cuando se mira a una gente, ya pega. Se ha
muerto, amarrada ahí afuera, se ha muerto. Ha quemado mi prima, ha
quemado otro huitotita agarrando, también, sí, se ha muerto. Y a mí después
me ha cambiado. Dos mujeres ha muerto, me ha cambiado a mí, me ha
agarrado. Pero me pega, no me mata. Me hubiese podido matar… (Erazo
apud Chirif, 2017: 231).

Descrições como a de Zoila Erazo revelam que a crueldade empregada pelos


caucheiros parece, à primeira vista, desmedida e inexplicável. Nas palavras de Euclides da

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Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

Cunha, que visitou no começo do século XX as áreas de exploração de caucho na região de


fronteira entre Brasil, Peru e Bolívia:

O bandeirante foi brutal, inexorável, mas lógico. Foi o super-homem do


deserto. O caucheiro é irritantemente absurdo na sua brutalidade elegante,
na sua galanteria sanguinolenta e no seu heroísmo à gandaia. É o homúnculo
da civilização (...). A selvageria é uma máscara que ele põe e retira à
vontade. (Cunha, 2000: 168)
Afinal, o que motivaria os caucheiros a matar aquelas que eram garantia de lucro por
meio de suas comissões? Além disso, qual era a razão para não apenas agredir ou assassinar
os indígenas que escravizavam, mas a fazê-lo por meio de torturas desconcertantes,
mutilação, decapitação, abuso sexual, afogamento, etc.? Ou ainda, por que eles pareciam
esforçar-se em ser ainda mais “selvagens” que os pretensos “selvagens” que buscavam
controlar?

Los diferentes eslabones de la administración estaban definidos en función


de su capacidad de matar con impunidad: el jefe de La Chorrera sobre los
jefes de sección; éstos, a su vez, sobre su respectivo personal blanco (y
negro), que, por otra parte, se encontraba por encima de los indios, las
victimas más constantes de los jaguares extranjeros. No cabe duda de que
los indígenas tuvieron un justo y valido argumento para pensar que los que
hemos llamados civilizados practicaban exactamente lo que éstos acusaban
y rechazaban a los indios: un bárbaro canibalismo (…). (Pineda Camacho,
2000: 138)
Veremos mais detidamente adiante como as práticas antropofágicas bora, ainda que
abandonadas nos dias atuais, pouco tem de “bárbaro canibalismo” para os Povos do Centro
de hoje. Por ora, acompanhemos a maneira esquemática com que Pineda Camacho elenca as
etapas dos rituais antropofágicos realizados no passado:

1. Muerte del prisionero en el agua. 2. Conservación del cadáver en el río.


3. Desplazamiento del cadáver a la maloca. 4. Descuartizamiento. 5. Baile
en torno de la cabeza o la calavera en el patio anterior de la casa colectiva.
6. Consumo de partes de su cuerpo y baile ritual al interior de la maloca. 7.
Vómito de lo ingerido. 8. Ritos de purificación de los sacrificadores en las
riberas de los ríos. 9. Preparación y exhibición de las partes del cuero de la
víctima (especialmente la calavera) y elaboración de flautas y otros objetos
con los huesos del antebrazo. 10. Utilización de los dientes de la víctima
para confeccionar collares. (Pineda Camacho, 2000: 129)
Se à época os caucheiros pareciam se concentrar na “fantasia” da ingestão de carne
humana (Taussig, 1993: 45), meus interlocutores afirmam que essa era uma interpretação
equivocada a respeito das motivações desses rituais. Em primeiro lugar, apesar de fomentado
pela vingança, o consumo da carne humana era sempre sucedido pelo ato de vomitá-la – logo,

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Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

seu propósito jamais fora a mera satisfação de uma necessidade alimentar. Por outro lado, a
morte do inimigo era, socialmente, um ato produtivo.

Entenderemos ainda, no capítulo 6, como os rituais de antropofagia produziam uma


série de troféus. Diversas partes dos corpos dos inimigos (crâneos, ossos dos membros
superiores e inferiores, dentes, mãos e órgãos genitais) eram extraídas, tratadas e mantidas
na maloca daqueles que, coletivamente, o haviam executado. Ali, eram transformados em
troféus de guerra (cabeças-troféu, flautas, colares e colheres) que forneciam prestígio ao
chefe e seu pessoal e eram centrais para a reprodução de suas práticas rituais e xamânicas,
como demonstra a importância dos colares de dentes humanos antigamente usados pelos
xamãs em processos de cura ou feitiçaria nos mambeaderos66. Assim, seguindo o argumento
de Karadimas (1997), a antropofagia dos Povos do Centro seria uma forma de, a partir de
poucas mortes, manter e produzir uma série de relações. Provavelmente, nada disso foi sequer
notado pelos caucheiros peruanos da Casa Arana, que transformaram a fantasia do
canibalismo em uma máquina azeitada de violência cujo funcionamento diferia muito das
práticas antropofágicas dos Povos do Centro ao produzir inúmeras mortes sem com isso ser
capaz de criar nem mesmo relações de vingança.

Ao mesmo tempo, as torturas e assassinatos foram praticadas sob a justificativa de


civilizar indígenas que, do ponto de vista dos caucheiros, não eram capazes de aceitar trocas
“justas” por suas atividades de extração de caucho e não trabalhariam caso não fossem
forçados a tal. Com esse cenário, instalou-se nesse período no Caquetá-Putumayo aquilo que
Taussig (1987, 1993) denominou como uma “cultura do terror” e um “espaço de morte”: sob
a justificativa de que apenas atos suficientemente selvagens seriam capazes de frear a
“primitividade” dos povos da região, os caucheiros construíram um espelho colonial
fidedigno à imagem que eles mesmos elaboraram a respeito dos indígenas. Assim, a única
forma de controlar a consolidada narrativa de selvageria seria por meio da mimese superlativa
dessa mesma barbárie. Dito de outro modo, ser mais selvagem que os próprios “selvagens”
parecia ser a única forma de trazer a “civilização” aos Povos do Centro.

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Além disso, Razon indica que as cabeças-troféus eram adotadas por seus captores, sendo apresentados por
mulheres na bailes Túmatsi como se fossem bebês. Para uma análise sobre o caráter gerativo de troféus de
guerra em outros contextos ameríndios, ver Fausto (2001: 456-468).

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Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

O que ressalta aqui é a mimese entre a selvageria atribuída aos índios pelos
seringalistas e aquela perpetrada por estes últimos em nome daquilo que
Julio César Arana denominou civilização, com isso querendo se referir ao
comércio. A magia da mimese se encontra na transformação pela qual a
realidade passa quando se descreve sua imagem (...). No modo colonial de
produção da realidade, tal como se deu no Putumayo, essa mimese ocorreu
através do espelhamento colonial da alteridade, que devolve aos
seringalistas a barbaridade de suas próprias relações sociais, mas como algo
imputado à selvageria que eles ansiam por colonizar. O poder desse espelho
colonial é assegurado pelo modo como ele é dialogicamente construído
através da narrativa de uma história (...). (Taussig, 1993: 139-140)
Por sua vez, é possível afirmar que os indígenas enxergavam nos caucheiros o tipo
mais brutal e não-humano de canibalismo. Sem dedicar-se à produção de novas relações ou
pessoas (mas apenas à consumpção e ao extermínio de grupos inteiros), os caucheiros eram
como “jaguares estrangeiros”:

En el Putumayo, los indígenas tenían suficientes motivos o “pruebas” para


considerar a los caucheros como caníbales. El régimen de terror implantado
por la Casa Arana, con su arsenal de cepos, flagelaciones, torturas,
asesinatos, epidemias, era ya por sí una prueba de la naturaleza
desenfrenada de estos jaguares extranjeros (…). (Pineda Camacho, 2000:
131).
Dessa forma, diversas foram as vezes que os indígenas subjugados pelo regime de
exploração da Casa Arana buscaram combater tais “brancos canibais”. Os caucheiros, por
conta disso, não temiam apenas a selvageria antropofágica dos indígenas, mas também suas
ações de insurgência. De acordo com Pineda Camacho (2000), as revoltas indígenas nas
seções da Casa Arana foram mais intensas nos primeiros anos de atuação da empresa – em
parte pelo maior contingente demográfico indígena à época, em parte pela incipiência do
regime bem estruturado de torturas e assassinatos que passaria a ganhar forma
posteriormente. É que podemos notar no relato de Robuchon, na virada do século XX:

Los indios borax navajes se habían sublevado: cuatro blancos habían sido
asesinados i comidos. Dos ó tres supervivientes pudieron escaparse i se
habían refugiado cerca del Caquetá, pero privados de comunicación i sin
víveres encontrábanse expuestos á morir, ya de hambre ya atacados de
nuevo por los indígenas. Los trabajos de extracción de caucho se hallaban
de hecho interrumpidos. Todos los empleados de los centros vecinos habían
regresado á la barraca central; no osando poner de nuevo los piés en el
bosque. (Robuchon, 1903: 438).
Se Pineda Camacho classifica a recusa ao trabalho e a fuga das seções caucheiras
como outras formas de resistência indígena, é certo que a luta armada era a que mais causava
apreensão aos caucheiros. De maneira especial, os Bora são citados por relatos da época
como indígenas agressivos e muito temidos da região:

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Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

Los indios boras, siendo más fuertes físicamente y más valientes, no


aceptaron someterse tan fácilmente como sus vecinos, los huitotos, a los
métodos de recolección del caucho impuestos por los diferentes grupos de
hombres blancos, sean colombianos o peruanos. En varias ocasiones
resistieron, a veces exitosamente y en más de una ocasión mataron a
individuos y hasta a numerosos grupos de estos filibusteros de plantas.
(Casement, 2012: 58).
Em meio a esses processos de rebelião indígena, alguns líderes se destacaram pela
capacidade de mobilização que possuíam: reunindo algumas pessoas, saqueavam as armas
dos caucheiros e organizavam investidas e fugas. Um deles, Katenere, é mencionado
frequentemente nos relatos recolhidos por Roger Casement:

Era un cacique bora o capitán llamado Katenere, frecuentemente


mencionado en las declaraciones que examiné. Este hombre, que no era
anciano sino joven y fuerte, vivía en las cabeceras del Pamá, un pequeño río
que vacía sus aguas en el Cahuinari no muy lejos de la boca del éste último
en el Japurá. (…) [L]ogró capturar algunos rifles Winchester de los
“muchachos” de la zona de Absinia. Con esto rifles armó a los hombres de
su clan y condujo una guerra abierta contra los blancos y todos los indios
que los ayudaban o trabajaban caucho para ellos. Mató a más de uno y,
aunque joven, se volvió tan peligroso como Chingamui, y adquirió el
renombre de ser un “indio muy malo”. (Casement, 2012: 108 – 109).
Sua influência foi forte em toda a região durante alguns anos, de modo que o sucesso
com que escapava às tentativas de captura por parte dos peruanos faz com que meus
interlocutores atuais defendam que Katenere ou Caatunuri possuía uma “proteção espiritual”
que tornava seu corpo imune aos ataques. Seu sucesso durou até 1910, quando os empregados
da Casa Arana lhe armaram uma emboscada.

Como não conseguiam capturá-lo, terminaram por aprisionar sua mulher, prevendo
que Katenere viria resgatá-la. Ao saber do acontecido, Katenere resolveu ir ao encontro da
companheira, mas segundo um chefe atual do clã Pupunha que vive na comunidade Puerto
Arica, um desentendimento com um xamã fez com que sua proteção contra os ataques fosse
retirada:

Después de estos enfrentamientos los peruanos capturaron a la mujer e hijo


de Caatunuri, papa de mi abuelo Caatunuri, conocido como morrocoy,
quien se enteró de la trágica noticia mediante los lamentos de una abuela
por lo sucedido. Al oír esto Caatunuri lo amenaza de muerte,
desconociendo los hechos. Al escuchar esto el anciano Añujcuba, muy
enojado, dijo: usted, ¿por qué amenaza a una mujer si no vas hacer nada a
los blancos quienes llevaron a su mujer e hijo? Dicho esto le quito el poder
de inmortalidad. Muy enojado Caatunuri se provisiono y se fue en busca
de los blancos sin saber que estaba desprotegido. (CNMH, 2016: 5, grifos
originais)

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Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

Roger Casement comenta que chegou ao Caquetá-Putumayo pouco tempo depois da


morte de Katenere na seção Absinia. Segundo testemunhas entrevistadas pelo cônsul,
Katenere foi aprisionado e obrigado a presenciar o estupro de sua mulher. Logo em seguida,
foi morto com tiros disparado por um Muchacho a serviço da Casa Arana:

- Entonces Katenere realmente vino a buscar su esposa?


- Sí, señor.
- ¿Algún otro indio murió?
- No, señor; sólo él y el “muchacho” a quien le disparó también.
- ¿Qué hicieron con el cuerpo de Katenere? ¿Lo enterraron?
- Sí, señor. Zellada le cortó la cabeza, los pies y las manos; puso en la tumba
junto con el cuerpo.
- ¿Le mostraron estos miembros a alguien en la estación?
- Sí, señor; pusieron la cabeza en el río hasta que llegase el administrador
para que la viese.
- ¿Hace cuánto tiempo que esto sucedió?
(Piensa un largo rato)
- Me he olvidado del mes; fue este año cuando estaba en Abisinia.
(Casement, 2012: 207)
Apesar da pouca documentação escrita sobre o assunto, sabe-se que além de Katenere
outros líderes Bora organizaram insurgências. Essas informações são encontradas, por
exemplo, por meio de relatos indígenas recolhidos ao longo do século XX, como é o caso da
narrativa de Fernando Muinane:

La tradición oral contemporánea destaca la existencia de un capitán bora


llamado Makapaamine; este jefe se rebeló contra los caucheros y –
aprovisionado de armas de fuego – atacaba constantemente a las lanchas de
la compañía que surcaban el río Cahuinarí. Se dice que era un antiguo
muchacho de servicio entrenado por los peruanos. Según parece, había
vivido algún tiempo en la ciudad de Iquitos, de donde había regresado a la
selva y organizado una guerilla para expulsar a los blancos. (Pineda
Camacho, 2000: 150)
E, ainda, da declaração do barbadense James Chase a Roger Casement:

El señor Tizón intervino frecuentemente durante este interrogatorio para


señalar que “Chico” era un “indio bora muy malo”, que había robado un
rifle y había hecho una revuelta intentando matar a los hombres blancos y a
los indios que trabajaban el caucho para ellos. (Casement, 2012: 153).
Entretanto, com o passar do tempo, os movimentos de insurgência indígena tornaram-
se paulatinamente mais raros. Tais histórias, até hoje pouco conhecidas na literatura sobre a
indústria caucheira, tornaram-se minimamente públicas por meio das denúncias contra a Casa
Arana, apresentadas já a partir do fim da primeira década do século XX.

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Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

1.2.2. A denúncia de Roger Casement

A partir de 1907, começam a aparecer diversas denúncias a respeito da situação dos


indígenas no Caquetá-Putumayo e os maus tratos que vinham sofrendo por parte dos
empregados da Casa Arana. Nesse sentido, Stanfield (1998) divide o que chama de
“Escândalo do Putumayo” em dois períodos: um primeiro entre 1907 e 1910 e outro
compreendido entre 1911 e 1913.

O compêndio organizado pelo Centro Nacional de Memória Histórica colombiano


(López, 2014) apresenta um apanhado significativo dos documentos dessa época.
Correspondências pessoais e consulares, pequenos artigos de jornais locais e outros tipos de
registros dão conta do movimento de insatisfação que tomou parte de certos setores sociais
no Peru e no exterior que, ao conhecerem os abusos cometidos, passaram a produzir
denúncias contra os caucheiros.

Benjamín Saldaña Roca, jornalista de Iquitos e dirigente dos periódicos La Felpa e


La Sanción, apresentou uma acusação formal perante o Juzgado de Crimen de Iquitos em 9
de agosto de 1907:

Que en mérito de los sentimientos de humanidad que me animan y en


servicio de los pobres y desvalidos indios pobladores del río Putumayo y
sus afluentes, haciendo uso de la segunda parte del Art. 25 del Código de
Enjuiciamientos en materia penal y jurando no proceder de malicia
denuncio a los célebres foragidos (...) como autores de los delitos de estafa,
robo, incendio, violación, estupro, envenenamiento y homicidios agravados
estos, con los más crueles tormentos, como el fuego, el agua, el látigo, las
mutilaciones; y como encubridores de estos nefandos delitos a los señores
Arana Vega y Cía. y J.C. Arana y hermanos, jefes principales de los
denunciados, quienes tienen perfecto conocimiento de todos estos hechos y
jamás los han denunciado, ni han tratado de evitarlos. (Saldaña Roca apud
López, 2014: 167 – 168)
As acusações apresentadas por Saldaña Roca rapidamente se tornaram conhecidas na
região. Nesse mesmo ano, a Casa Arana havia se tornado uma empresa com participação
inglesa: além de inaugurar uma sede em Londres, diretores estrangeiros foram incorporados
ao corpo de funcionários da companhia. Em 1908, o engenheiro americano Walter
Hardenburg, que havia vindo à América do Sul em busca de melhores condições de trabalho,
conhece a área de atuação da empresa e testemunha pessoalmente os abusos cometidos. Ao
regressar do Caquetá-Putumayo, Hardenburg permanece uma temporada em Iquitos reunindo
informações acerca da violência que havia presenciado. Influenciado pelas denúncias

66
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

contundentes de Saldaña Roca, Hardenburg vai a Londres, onde busca meios de publicizar
tais atrocidades sob o argumento de que os crimes cometidos na antiga Casa Arana, agora
Peruvian Amazon Company, eram de responsabilidade do governo e dos cidadãos ingleses.

Após estabelecer algumas alianças (por exemplo, com a Anti-Slavery and


Aborigenous Protection Society, que havia se envolvido nas denúncias anteriores dos crimes
coloniais no Congo Belga), Hardenburg publica na Truth Magazine, em 23 de setembro de
1909, o artigo “The Devil’s Paradise – A British-Owned Congo”67. As denúncias são
recebidas com preocupação na Europa, pois as acusações indicavam uma clara violação dos
direitos humanos com a qual muitos ingleses não desejavam se associar.

A partir da disseminação internacional dessas denúncias algumas providências foram


tomadas, instaurando-se o que Stanfield denomina como a segunda fase do “Escândalo do
Putumayo” (1911 a 1913). Tão logo as acusações vieram à público, os países diretamente
envolvidos passaram a enviar emissários à região para apurar a veracidade das acusações. A
expedição mais importante foi, certamente, a de Roger Casement, à época cônsul inglês no
Rio de Janeiro.

Casement, quem já havia feito trabalho similar no Congo, chegou ao Putumayo em


setembro de 1910. Sua missão, cujo objetivo inicial era apenas investigar a participação dos
cidadãos ingleses envolvidos com a companhia, transformou-se à medida que o diplomata se
deu conta da extensão dos crimes cometidos. Usando os barbadenses que trabalhavam na
empresa como guias e tradutores, Casement recolheu uma série de testemunhos
aterrorizantes:

Los testimonios que Casement recogió de treinta de los barbadenses (…)


fueron enviados a Sir Edward Grey en dos informes, quien, a su vez, los
mandó a la Oficina de Asuntos Exteriores en febrero de 1911. Los relatos
son tan brutales que por momentos cuesta creer que hayan existido seres
capaces de desatar tal odio contra los indígenas, pero de la realidad de su
contenido dan cuenta los relatos de los propios indígenas y las rupturas
culturales causadas en sociedades donde los cargos tradicionales eran
transmitidos hereditariamente. (Chirif, 2012)
O compêndio que reúne cinquenta cartas trocadas entre Casement e as autoridades
inglesas ficou conhecido, mais tarde, como Livro Azul Britânico e apresenta em detalhe cada

67
Quatro anos mais tarde (1913), o engenheiro norte-americano publica o livro The Putumayo, the devil's
paradise: travels in the Peruvian Amazon region and an account of the atrocities committed upon the Indians
therein, onde detalha o que presenciou na região e o resultado de suas investigações.

67
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

uma das entrevistas conduzidas pelo cônsul e uma série de outros dados recolhidos em
campo. Tais informações fizeram com que os dirigentes da Casa Arana e seus aliados
reagissem mobilizando um discurso oportunista que abrangia temas como o nacionalismo, o
ímpeto civilizador e a defesa das fronteiras nacionais.

Para os defensores da companhia, como vimos, os indígenas do Caquetá-Putumayo


eram pouco dados ao trabalho e à obediência, de modo que os caucheiros teriam atuado como
verdadeiros colonizadores que buscavam retirá-los do estado de selvageria em que se
encontravam, trazendo-os para a “civilização” (Arana 1913; Rey de Castro et al. 2005). Por
outro lado, realçava-se o “patriotismo” dos caucheiros que teriam ocupado uma área
fronteiriça até então não habitada por “verdadeiros peruanos” e, portanto, vulnerável à
invasão dos Estados vizinhos.

Foto 9 – Rey de Castro (ao centro, de chapéu), um dos principais apoiadores da Casa Arana – La Chorrera,
1912 (Fonte: Chirif, Chaparro e Torrobo, 2013: 68)

68
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

É certo que tal narrativa, elaborada pelos defensores da empresa caucheira apenas
após as denúncias, não era condizente com a forma de atuação da companhia. Mesmo assim,
uma viagem à Iquitos contemporânea faz com que o visitante logo perceba como tal versão
dos fatos ainda se faz presente. Em conversas informais com moradores da cidade, não raras
vezes escutei que o progresso local foi construído graças ao trabalho e ao esforço dos
caucheiros no começo do século XX. O enaltecimento desses “barões do caucho” em Iquitos
expressa-se também em diversas referências espalhadas pela cidade. O caucheiro
Fitzcarraldo, personagem que serviu de inspiração para o filme homônimo de Werner Herzog
(1982), batiza ao menos um restaurante e uma pousada de luxo na cidade. Além disso, o
próprio Julio Arana dá nome a uma avenida no centro de Iquitos que, sugestivamente, faz
esquina com a rua Prospero.

Foto 10 – Cruzamento entre as ruas Julio C. Arana e Prospero no centro de Iquitos, em 2017

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Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

Se os informes de Roger Casement não podiam ser mais contundentes, eles foram
parcialmente amortecidos pelo discurso que fazia da Casa Arana uma espécie de emissária
do Estado peruano na remota selva ocupada por perigosos e infiéis selvagens. Assim, muito
embora credores da empresa como o Banco Lloyd’s tenham retirado seu apoio econômico
após as denúncias, gerando a liquidação da empresa anglo-peruana (Dominguez e Gómez,
1990: 199), Julio Arana seguiu explorando gomas na região até pelo menos o começo dos
anos 1920. A bancarrota da companhia, concretizada alguns anos mais tarde, teve motivos
muito mais econômicos do que humanitários, sendo um resultado direto do sucesso das
plantações britânicas de Hevea brasiliensis na Malásia68.

1.2.3. O conflito colombo-peruano

O começo dos anos 1920 foi marcado pela assinatura, em 24 de março de 1922, do
Tratado Salomón-Lozano, documento que fixava a fronteira entre Colômbia e Peru na região
do Caquetá-Putumayo69. A região era objeto de tensões em relação à consolidação das
fronteiras nacionais desde, pelo menos, o tratado de 1777 assinado pelo rei espanhol Felipe
V. Aprovado pelo congresso colombiano em 1925, o tratado Salomón-Lozano foi aceito pelo
congresso do Peru apenas em 1927, sendo promulgado e ratificado no ano seguinte. A
demora por parte do congresso peruano em assinar o documento resultava da reticência que
uma parcela dos políticos e empresários nacionais possuíam em aceitar o acordo, uma vez
que a concessão da margem esquerda do Putumayo e da região de Leticia à Colômbia lhes
parecia desinteressante economicamente (lembremos que a grande maioria das operações da

68
Ainda em 1876, Henry Wickham fora enviado pela coroa inglesa ao Brasil com o intuito de contrabandear
sementes de Hevea. Após furtar cerca de setenta mil sementes, das quais apenas 4% geraram árvores produtivas
após as intempéries do translado e do plantio, o ato algo burlesco de Wickham foi fundamental para fomentar
o mercado asiático de borracha (Razon, 1984: 196; Chirif, 2014: 65). A partir dos anos 1910, grandes plantações
de seringa na Malásia passaram a competir com o caucho extraído na floresta do Caquetá-Putumayo. Ademais,
a falta de mão de obra decorrente do genocídio dos anos anteriores e a inferioridade da matéria-prima vendida
por Julio Arana e sua consequente desvalorização no mercado fizeram com que a empresa peruana entrasse
finalmente em colapso. Segundo Razon (1984: 197), uma evidência de que um novo ciclo de extrativismo
estava pronto para substituir aquele da borracha é a chegada a Iquitos, em 1918, da companhia madeireira
americana Astoria. Nas décadas subsequentes, seriam explorados novos e velhos produtos da floresta nessa
parte do Peru (além da madeira, peles de animais e, mais recentemente, petróleo).
69
Uma versão digital desse documento pode ser encontrada em:
http://www.sogeocol.edu.co/Ova/fronteras_colombia/documentos/tratados/tratado_limites_peru.pdf. Último
acesso em 03/01/2019.

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Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

Casa Arana dava-se precisamente nessa região, onde a empresa ainda mantinha suas estações
de trabalho, apesar das contundentes denúncias). A assinatura do tratado, portanto, impactava
diretamente a manutenção de suas atividades de exploração.

Dessa maneira, Julio Arana e outros empresários poderosos da região empenharam-


se em fomentar na população loretana70 um clima de rejeição do tratado que culminou, em
setembro de 1932, na tomada de Letícia. Na ocasião, um pequeno grupo armado tomou a
cidade, depôs as autoridades e hasteou a bandeira peruana. Apesar de inicialmente a ação ter
sido tratada pelas autoridades colombianas como um pequeno incidente diplomático
organizado por “comunistas”, a letargia do governo vizinho em facilitar a retomada de Letícia
pelas autoridades locais evidenciou a gravidade da situação. Diante desse cenário, o general
Alfredo Vásquez Cobo, que hoje dá nome ao aeroporto municipal, organizou a compra de
embarcações e munições, mas não obteve o aval das forças armadas colombianas para utilizá-
las de imediato. Foi só em 20 de janeiro de 1933, quando da morte de alguns soldados
colombianos em El Encanto (vilarejo próximo ao encontro dos rios Putumayo e Caraparaná),
que o conflito armado teve início. Abandonadas as tentativas de reconciliação diplomática,
os dois países se empenharam na expansão de suas fronteiras para além do tratado de 1922
por meio de repetidos ataques às guarnições inimigas.

No fim de abril de 1933 o então presidente peruano Luiz Miguel Sánchez Cerro é
morto em Lima por um militante da Alianza Popular Revolucionaria Americana. Seu
sucessor, Óscar Benavides, assume logo em seguida e inicia, apenas quinze dias mais tarde,
as negociações com Alfonso López Pumarejo, presidente colombiano e líder do Partido
Liberal. Em razão da relação amistosa previamente existente entre os dois dirigentes,
Colômbia e Peru concordam em pôr fim ao conflito e respeitar o já ratificado tratado
Salomón-Lozano, cujos limites são vigentes até hoje71.

O envolvimento dos Povos do Centro no conflito colombo-peruano dos anos 1930


deu-se de diferentes maneiras. Alguns poucos auxiliaram o trabalho nas guarnições, como é
o caso daqueles que transmitiam mensagens militares por meio dos trocanos (Vela, 1959) ou

70
Loreto é uma das 25 regiões do Peru e divide-se em 8 províncias (Alto Amazonas, Loreto, Mariscal Ramón
Castilla, Maynas, Requena, Ucayali, Datem del Marañon e Putumayo). Iquitos pertence à província de Maynas.
71
A cidade de Letícia foi desocupada pelos militares peruanos em 25 de junho de 1933. Em seguida, autoridades
colombianas e peruanas firmaram os termos do fim do conflito em reunião no Rio de Janeiro.

71
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

do indígena Murui-Muina encontrado por Echeverri (2015: 39) em Puerto Leguízamo em


1989, ainda conhecido na cidade por ter atuado como soldado72. Outros, contudo,
participaram mais tangencialmente do conflito, como é o caso por exemplo dos pais e avós
de alguns Bora com quem trabalhei, que ainda se lembravam dos meses em que conviveram
com soldados, bombas, armas e o trânsito de aviões militares73.

Passado o conflito entre os dois países, o Estado colombiano concentrou seus esforços
em consolidar sua presença na região não mais apenas pela fixação das fronteiras territoriais,
mas também por meio da constituição de um ethos específico que fosse capaz de transformar
a heterogênea população local em “verdadeiros cidadãos”, isto é, em colombianos letrados e
cristãos. Os frutos de tal empenho, bastante impulsionado pela atuação dos padres católicos
e da instalação de um corpus institucional na então Comisaria del Amazonas74, podem ser
observados ainda hoje. Na área urbana da tríplice fronteira, próximo aos municípios de
Letícia (Colômbia), Santa Rosa (Peru) e Tabatinga (Brasil), a tensão entre colombianos e
peruanos é evidente, por exemplo, na memória que ambas as populações guardam do tempo
do conflito e na indisposição que possuem em fazer comércio entre si ou em aceitar
transações nas respectivas moedas nacionais.

Em relação aos Povos do Centro, penso que uma das mais evidentes transformações
impulsionadas pelo conflito colombo-peruano e pelo fim definitivo da atuação da Casa Arana
foi a mudança nos assentamentos. Enquanto grande parte da população remanescente foi
levada contra sua vontade ao território peruano, algumas famílias que lograram ocultar-se na
mata foram atraídas posteriormente para as margens dos grandes rios. Vejamos, em primeiro
lugar, o caso daqueles que migraram forçosamente para o Peru.

1.2.4. A migração para o Peru e o cataclisma de um mundo esfacelado

Com a desvalorização do caucho amazônico no mercado internacional e o


extrativismo voltado para novos produtos, os empregados da Casa Arana iniciaram, ainda
nos anos 1920, um movimento de migração forçada daqueles que viviam em suas seções

72
Para o relato do ponto de vista de um militar que participou do conflito, ver Tobón Restrepo (1965).
73
Principalmente aqueles que circulavam nos arredores de El Encanto, Tarapacá e do rio Algodón.
74
A região ganha status de departamento apenas em 1991.

72
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

caucheiras. O acirramento do conflito territorial entre Colômbia e Peru e a iminência da


destituição do domínio peruano na região de La Chorrera reforçaram tal processo e fizeram
com que os dirigentes da companhia resolvessem transladar tantos indígenas sob seu domínio
quanto lhes fosse possível.

Assim, de 1924 a 1930 os irmãos Miguel e Carlos Loayza, importantes capatazes da


empresa de Julio Arana, usaram por volta de cinco embarcações diferentes para deslocar
pessoas, equipamentos, sementes, alimentos e animais domésticos das seções caucheiras para
comunidades no rio Putumayo e Algodón75:

Au cours d’une longue période qui dura sept ans (de 1924 à fin 1930),
Carlos Loayza dirigea l’exode force des populations Bora, Huitoto, Andoke,
Ocaina, abandonnant en territoire colombien les plantations nouvelles qui
avaient remplacées l’exploitation du caoutchouc. Plus de 6000 personnes
furent déplacées “groupe après groupe, section par section”, depuis le
Caqueta, l’Igaraparana, le Caraparana, jusqu’à la rive droite du Putumayo
qui, selon Loayza, était “desolada y muerta por falta absoluta de población”.
(Razon, 1984: 204 – 205).
Segundo os registros dos próprios Loayza apresentados por Razon (1984), pelo
menos 6.719 pessoas foram levadas ao Peru, das quais 1.206 eram Bora76. Após o fim do
conflito, em 1933, Miguel Loayza decide transladar os indígenas sob seu comando para os
rios Ampiyacu e Yaguasyacu em razão de uma permissão prévia que havia conseguido para
explorar a região.

Miguel Loayza, uno de los jefes de sección de The Peruvian Amazon


Company, fue el principal responsable del traslado de población indígena
huitoto, bora y ocaina desde el Putumayo hacia la cuenca del Ampiyacu y
Yaguasyacu, también con la finalidad de utilizarlos como mano de obra en
sus fundos dedicados a actividades agropecuarias y en la extracción de
recursos valiosos del monte. (Chirif, 2009: 219)
Estima-se que os Bora que participaram desse deslocamento forçado pertenciam a
pelo menos sessenta famílias nucleares distintas. Descendem dessa população aqueles Bora
que atualmente moram em território peruano, alguns dos quais tive a oportunidade de
conhecer em algumas ocasiões na cidade de Iquitos77. As comunidades bora no Peru diferem

75
Algumas dessas comunidades, como Puerto Remanso, serviram de base de apoio para os militares envolvidos
no conflito colombo-peruano. Tive a oportunidade de conhecer essa região em viagem com a ONG peruana
IBC em março de 2015.
76
Segundo esses registos, na seção de Absinia, foram deportadas 540 pessoas (167 homens, 180 mulheres e
193 crianças) e na de Santa Catalina 666 pessoas (245 homens, 212 mulheres, 309 crianças).
77
Não possuo dados atuais sobre a população bora no Peru, mas segundo o governo peruano
(http://ineidw.inei.gob.pe), em 2007 havia 748 pessoas que se autorreconheciam como Bora. Sobre essa

73
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

daquelas existentes na Colômbia por serem demograficamente mais densas: ao contrário das
malocas espacialmente dispersas do Igaraparaná, notam-se ali casas familiares próximas e
interligadas. Tal configuração espacial, por sua vez, é consequência direta da atuação não só
dos irmãos Loayza e outros patrões, como também dos missionários do SIL.

Após as incontáveis mortes causadas pela Casa Arana e a migração forçada para o
Peru, é complicado estimar com exatidão o impacto demográfico dessas ações em território
colombiano ao longo das três primeiras décadas do século XX. Contudo, o cotejamento de
algumas informações pode fazer com que estabeleçamos um panorama mais ou menos
preciso78.

O primeiro registro que menciona especificamente os Bora a que temos acesso é de


Von Hassel (1905), o qual calcula, para essa época, 3.000 indígenas “Borax” e 15.000
“Mirayos”79. Pouco tempo depois, Koch-Grumberg (1910) estima a existência de 6.000
Miranha e Whiffen (1912) calcula em 15.000 as pessoas pertencentes ao “Boro group”. É
importante observar que a oscilação entre os etnônimos Bora e Miranha resulta tanto da
contiguidade dos territórios desses grupos no interflúvio entre os rios Cahuinari e Igaraparaná
quanto da forte semelhança entre seus idiomas. Três décadas depois, os padres capuchinhos
Igualada e Castellví (1940) recém-chegados à região (ver cap. seguinte) realizam o primeiro
levantamento demográfico após a atuação da Casa Arana e os traslados forçados. Nessa
ocasião os religiosos registraram 267 indígenas Bora (90 na região de mata densa do rio
Cahuinari, 117 em suas margens e 60 no baixo rio Caquetá) e 160 indígenas Miranha
distribuídos entre Las Palmas e La Pedrera (rio Caquetá), num total de 427 pessoas.

Se adotarmos uma leitura a menos drástica possível a respeito da perda demográfica


dos Bora no Caquetá-Putumayo, diríamos que o contingente populacional passou de 3.000
(Von Hassel, 1905) para 267 pessoas – portanto, uma diminuição de 91,1% da população.
Contudo, se tomarmos dados mais pujantes como os de Whiffen e do próprio Von Hassel
(respectivamente 15.000 e 18.000 Bora-Miranha na primeira década do século XX),
chegamos, no primeiro caso, a uma queda de 97,16% e, no segundo, de 97,6% da população.

população, conferir Ochoa (1999), Razon (1984) e Paredes (2001).


78
Um levantamento desse tipo para outros Povos do Centro pode ser visto em Echeverri, 2015: 48.
79
Respectivamente, Bora e Miranha.

74
Capítulo 1 – Os primeiros estrangeiros e suas mercadorias

Numa entrevista não publicada feita por J. Gasché e M. Guyot, o antigo interlocutor
de Roger Casement, John Brown, afirma que havia, ainda na época da Casa Arana, malocas
não contatadas na região80:

Jurg Gasché: There were no more malocas?


John Brown: Yes, there are plenty more, but could not go at risk you go to
those Indians not working, because we lose our lives, and the rest of Indians,
do you understand? (Gashé e Guyot, não publicado)
Veremos, na Parte II desse trabalho, como de fato alguns grupos lograram escapar e
se esconder dos caucheiros peruanos ao longo das primeiras décadas do século XX, sendo
fundamentais no processo de rearranjo ou reorganização social que se seguiu a partir de
meados daquele século. Mesmo assim, esses são exemplos pontuais de um genocídio que não
pode ser subdimensionado. Ainda que os cálculos apresentados acima contenham uma
inevitável dose de imprecisão, eles são suficientemente claros para delinear os contornos da
hecatombe operada pela Casa Arana.

A queda demográfica rápida e radical certamente foi responsável não apenas pelo
esvaziamento e pela desaparição das malocas, mas também pelo esfacelamento das unidades
e das redes sociais. Nesse cenário de intensa fragmentação, após o conflito dos anos 1930 e
consolidadas as fronteiras nacionais, foi a vez do Estado e da Igreja atuarem de forma mais
incisiva na região.

80
John Brown, nascido em Chicago, é personagem instigante. Tendo transitado pelos Estados Unidos, Europa,
África e Caribe, passou a maior parte de sua vida no Amazonas, onde faleceu em 1977, no município
colombiano de Puerto Leguízamo. Um pouco de sua biografia e de sua relação com a empresa caucheira podem
ser conhecidas em trabalhos escritos por seu neto (Rojas Brown, 2010, 2014).

75
Capítulo 2
A vida depois do caucho

2.1. Punto de quiebre: a intervenção do Estado e da Igreja


“Cuando llegamos acá, a La Chorrera, entonces todos ellos murieron de
viruela. Entonces nos quedamos como huérfanos porque mi padre, mi
madre y mis hermanos murieron. Me quedé sólo como huérfano. Después
fue el padre misionero Estanislao de Les Corts quien nos llevó, a todos los
niños huérfanos. Él nos llevó primero.” (Pujol, [198-], pp. 44).

Durante meu trabalho de campo no Caquetá-Putumayo, acompanhei diversas


reuniões comunitárias nas quais se discutia a relação dos Bora com instituições não-
indígenas, tais como a escola, o governo departamental, os serviços públicos de saúde, etc.
Todas foram precedidas por uma oração coletiva do Pai Nosso e o canto, à capela, do hino
nacional colombiano – algo, portanto, profundamente diferente dos encontros noturnos que
ocorrem nos mambeaderos. Desde o começo, percebi que não se tratava de um movimento
espontâneo dos participantes das reuniões, mas sim de um ato protocolar que lhes fora
ensinado. Compreendi, mais tarde, que tal conduta era um reflexo do “programa de instrução
pública” mencionado por Vilanova, religioso que trabalhou na região nos anos seguintes ao
conflito colombo-peruano:

Lo primero que hubo la necesidad de enseñarles fue algo de aseo, de


castellano y lo más esencial de nuestra Santa Religión. Por ahí empezó el
programa de instrucción pública (...). Niños que hace poco no se distinguían
exteriormente de las bestias y que tenían aversión innata a los blancos, viven
ahora gozosos en el pueblo, juegan y se divierten con sus compañeros, y
van dejando insensiblemente sus instintos salvajes. En sus corazones, que
parecían insensibles a todo sentimiento delicado, se despierta ya nobles
aspiraciones. Por medio del canto suavizamos sus costumbres, y con la
agricultura procuramos crearles afición a la propiedad. (Vilanova, 1947:
133-134)
O relato acima deixa suficientemente claro que o proselitismo foi apenas uma parte
do trabalho dos clérigos no Caquetá-Putumayo. Os Bora, assim como os outros Povos do
Centro, foram catequizados pelos padres capuchinhos vindos do Convento de Sarrià, em
Barcelona. Em julho de 2018, visitei o convento em busca de relatos e fotos deixados pelos

76
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

padres que haviam trabalhado na região nas décadas de 1930 e 1940. Na ocasião, fui recebida
pelo frei Valentí Serra de Manresa na clausura onde vive com outros religiosos. Longe das
regiões mais movimentadas de Barcelona, o convento de Sarrià conta com uma pequena
igreja que oferece catequese e missas regulares à comunidade, além de uma enfermaria, a
Biblioteca Hispanocaputxina, o arquivo Provincial dels Caputxins de Catalunya i Baleare e
o Museu Etnogràfic Missiona (este último sob coordenação de frei Valentí). Por ter sido alvo
de um ataque anarquista em 1936 durante a Revolução Espanhola, diversos documentos e
objetos que faziam parte do acervo do convento de Sarrià foram incendiados. O museu em
questão, assim, conta majoritariamente com peças coletadas após esse período pelos
missionários.

Fotos 11 e 12 – Objetos em exposição no Museu Etnogràfic Missional, Barcelona


(Julho de 2018)

Organizadas sem muito rigor museológico, as peças são um amontoado de vestígios


arqueológicos (fragmentos de cerâmica e de material lítico), instrumentos musicais e adornos

77
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

corporais que foram levados pelos capuchinhos à Espanha81. Entretanto, a maior parte do
acervo do museu e dos documentos da biblioteca e do arquivo provincial provêm do Valle
de Sibundoy, região no sudoeste colombiano na área do alto Putumayo (portanto, à ocidente
da área de ocupação bora). Segundo cálculos aproximados, a região do Valle do Sibundoy
está, via fluvial, a uma distância de cerca de 800km de La Chorrera.

2.1.1. Os capuchinhos da Catalunha e sua atuação na Colômbia

O trabalho dos capuchinhos catalães na Colômbia ganhou notoriedade após a grande


repercussão do livro Siervos de Dios y Amos de Indios, publicado em 1968 por Victor Daniel
Bonilla. O autor, num primeiro momento, busca os antecedentes da constituição, em 1904,
da Prefectura Apostòlica del Caquetá-Putumayo-Amazones, cujo primeiro “prefeito” foi o
clérigo capuchinho Fidel de Montclar e cuja atuação concentrou-se inicialmente nas
proximidades dos municípios de Sibundoy, Mocoa e Santiago. Bonilla, em suas
investigações, reuniu uma série de evidências sobre os abusos cometidos pelos capuchinhos
na região contra comunidades indígenas Ingá e Sibundoy. Dentre eles, o trabalho forçado de
mulheres e crianças, o uso do cepo82 e a distribuição de presentes como forma de garantir a
doutrinação cristã83.

A prefeitura apostólica se converte, em 1930, em Vicariat Apostòlic. Desde anos


anteriores, contudo, notava-se o esforço dos religiosos em explorar a porção oriental da
prefeitura. Em relação aos Povos do Centro, em 1926 foi realizada uma primeira expedição
na qual se entrou em contato com algumas famílias Muinane. O trabalho, porém, foi
infrutífero em razão da ausência de tradutores capacitados. Um ano mais tarde, foi feito o
contato com um grupo Murui-Muina na região do rio Caquetá. Coordenado pelo frei Gaspar
de Pinell, a expedição contava ainda com Bartolomé de Igualada, missionário que trabalharia,

81
Na Foto 11 vemos um par de manguarés dispostos junto a um busto de madeira de Marcel de Castellví. Na
Foto 12, um mural de yanchama (Ficus rádula) composto com um chocalho de sementes e um crucifixo de
madeira.
82
Instrumento de tortura usado também pelos empregados da Casa Arana entre os Povos do Centro. Feito de
madeira e com quatro orifícios para atar pés e mãos, o cepo não raro era utilizado por dias a fio a fim de que o
castigo servisse de exemplo para os demais. É semelhante ao “tronco” e ao “vira-mundo”, instrumentos
empregados no Brasil no tempo da escravidão.
83
Segundo Bonilla (1968: 180), tecidos, espelhos e navalhas.

78
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

anos mais tarde, entre os Bora. Em um dos diálogos registrados pelos religiosos, há um
exemplo das perguntas feitas aos indígenas nessas ocasiões:

- ¿Has pensado deshonestidades?


- ¿Quieres recibir a Dios en la hostia?
- ¿Has creído en brujerías?
- ¿Has pensado feo?
- ¿Has hecho impurezas? ¿Solo? ¿Con mujer? ¿Con hombre?
- ¿Adulteraste?
No tengas miedo, eso no es para castigarte, sino para abrirte el cielo.
(Bonilla, 1968: 179 – 180).
Bonilla relata então que a intenção dos capuchinhos ao contatar novos grupos de
indígenas era comunicar-lhes algo da religião através de um intérprete e de curtas orações
nas línguas nativas já conhecidas. Além disso, por meio de sacramentos como o batismo, a
comunhão e o casamento, lhes eram dados nomes cristãos em substituição aos nomes em
seus idiomas84.

De maneira geral, a prefeitura apostólica experimentava certo desconforto em relação


à área do Caquetá-Putumayo desde o começo do século XX. Com as denúncias de Roger
Casement em 1912, a opinião pública questionou por que o órgão capuchinho não expressou
nenhum tipo de acusação prévia acerca das atrocidades que aconteciam em território sob
jurisdição da prefeitura85.

2.1.2. O internato de La Chorrera e algumas transformações

Na tentativa de expandir o trabalho de catequese após a conversão da prefeitura em


vicariato86, o capuchinho Estanislao de Les Corts funda, em 1933, o orfanatório de La
Chorrera87. A instituição é instalada na antiga sede da Casa Arana, uma enorme construção
de ferro e pedras às margens da cachoeira que dá nome ao povoado. A intenção dos religiosos

84
Veremos, no capítulo 3, como as transcrições fonéticas imprecisas de alguns nomes entre os Bora no
Igaraparaná geraram os sobrenomes utilizados hoje pela grande maioria das pessoas, em seus documentos.
85
Diante desse cenário, o papa Pio X havia ordenado, ainda em 1912, que a Missão Franciscana Inglesa atuasse
na região a fim de catequizar os índios que sofriam nas mãos dos caucheiros peruanos. A atuação da ordem,
contudo, logo fracassou, sendo completamente suspensa já em 1921.
86
A tripartição do vicariato em 1951 e as mudanças que sofreu nos anos seguintes podem ser conhecidas em
Bonilla (1968).
87
Les Corts era engenheiro e fundou, em 3 de maio de 1912, o município de Puerto Asis. Nessa época, foram
fundados ainda mais dois internatos: San Rafael, próximo à confluência dos rios Caraparaná e Putumayo, e
outro em Araracuara, no rio Caquetá.

79
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

era concentrar, ali, o maior número de indígenas possível, tendo em vista a situação de
dispersão e baixa demográfica gerada no pós-caucho. Vivendo em regime de internato,
crianças, jovens e até mesmo adultos passaram a acompanhar aulas de espanhol, religião e
matemática, além de desempenharem trabalhos agrícolas cujos produtos serviam para a
alimentação do próprio orfanatório e à obtenção, por meio das trocas, de mercadorias trazidas
pelos capuchinhos88.

A fim de reunir os indígenas dispersos ao longo do vasto território do vicariato, os


padres organizaram algumas expedições para contatar as famílias que viviam isoladas longe
das margens dos grandes rios. No caso específico dos Bora que habitam hoje o rio
Igaraparaná, as expedições de Bartolomeu de Igualada ao rio Cahuinari foram fundamentais
nesse processo.

Foto 13 – Padre Bartolomeu de Igualada entre os Bora no rio Cahuinari em 1936


(Fonte: Acervo Caputxins de Sarrià)

88
Atualmente, as pequenas escolas distribuídas ao longo do rio Igaraparaná são de difícil acesso (dadas as
longas distâncias entre as malocas) e fornecem aulas apenas até a primeira etapa do ensino fundamental. Assim,
mesmo aqueles que não são enviados por seus pais a La Chorrera ainda pequenos, acabam de todo modo saindo
da convivência de suas famílias e vivendo em regime de internato na adolescência. Entretanto, há diversos
alunos que não se adaptam e acabam abandonando o internato. Vale ressaltar que a rede educacional não é mais
administrada pela igreja e não conta com não-indígenas em seu quadro de funcionários.

80
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

Foto 14 – Família de Kumimarima no rio Cahuinari se prepara para um baile, 1936


(Fonte: Acervo Caputxins de Sarrià)

Conheceremos mais a fundo o relato de Igualada no capítulo 7, quando tratarei dos


deslocamentos do clã Buriti na primeira metade do século XX. No entanto, é possível
adiantar que tal narrativa deixa clara a intenção dos capuchinhos de levar a La Chorrera tantos
indígenas quanto pudessem. Aos adultos reticentes em abandonar suas malocas, oferecia-
lhes a oportunidade de que ao menos seus filhos fossem viver no internato, onde aprenderiam
a falar castelhano e teriam garantidas roupas e alimentação.

81
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

Os Bora com quem trabalhei possuem diversas memórias acerca do tempo em que
eles e seus antepassados foram levados pelos padres ao internato em La Chorrera. Até poucas
décadas atrás, grande parte dos que ali chegavam não possuía nenhuma fluência em espanhol.
Além disso, frequentavam aulas e compartilhavam os dormitórios com indígenas de outros
povos, vindos de comunidades longínquas e falantes de outras línguas. A comunicação em
idioma nativo entre os de uma mesma família ou comunidade era proibida pelos religiosos
que, segundo meus interlocutores, ameaçavam com castigos físicos aqueles que
desrespeitassem a norma89. Segundo me disseram, o faziam com receio de que os alunos
aproveitassem o fato de falarem outro idioma para comentar secretamente sobre a vida dos
religiosos. De fato, as vestes franciscanas e as condutas excêntricas dos capuchinhos
despertavam nos internos, ao mesmo tempo, medo e curiosidade. De acordo com meus
interlocutores, muitas eram as dúvidas: o que usariam por debaixo de suas largas túnicas?
Por que levavam cordas na cintura? Por que possuíam tantos pelos no corpo? Por que
mantinham suas barbas largas?

Sabe-se que foi expressivo o número de crianças “internadas” no orfanatório. Já os


adultos, embora não frequentassem a instituição com a mesma intensidade, aproximaram-se
dela de outras maneiras. Por um lado, malocas inteiras se transladaram para as margens do
rio Igaraparaná, garantindo assim o acesso mais fácil a La Chorrera. Há algumas décadas
atrás, era ainda comum que famílias se deslocassem a remo do médio Igaraparaná até o
internato, onde podiam visitar os alunos internos e levar-lhes algo de comer90. Pouco a pouco,
esses deslocamentos foram motivados não apenas pelas visitas aos alunos, mas também pelas
possibilidade de trocas entre produtos indígenas como alimentos e artesanato por
mercadorias trazidas pelos capuchinhos.

É importante observar que o que chamo aqui de punto de quiebre, para utilizar uma
expressão em espanhol, nada mais é que um período de tempo não classificado pelos Bora
como uma bonanza, mas ainda assim qualificado, em suas narrativas, como uma época de

89
Em geral, ameaçavam os indígenas com o uso de mordaças ou de pequenos palitos que, posicionados
verticalmente dentro da boca, impediam-nos de falar.
90
Até hoje, uma das maiores reclamações dos que vivem como internos em La Chorrera é a ausência de comida
“de verdade” (isto é, de produtos da roça, de carne fresca e frutas) nas refeições oferecidas pelo colégio. Ao
invés disso, é comum que os alunos percam peso ou adoeçam assim que passam a viver no internato – algo que
os Bora relacionam à abundância de produtos embutidos e industrializados (salsichas, carne em conserva, arroz,
achocolatado, biscoitos, leite em pó, macarrão, etc.).

82
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

profundas mudanças. Veremos à frente, na Parte II, que esse período também se sobrepõe à
passagem gradual do Tempo dos Animais para o Tempo da Abundância, quando a bonanza
do caucho se configurou como um momento crucial para uma série de transformações que
se seguiram. Diversas delas, como também veremos, têm a ver com a transição paulatina de
um tempo em que os humanos trabalhavam em conjunto com os animais para outro em que
esses mesmos animais passaram a ser vistos como humanos imperfeitos ou inferiores, mas
ainda assim causadores de doenças e infortúnios.

À parte dessas transformações, que serão discutidas à posteriori, é possível reunir as


mudanças ocorridas no período após o caucho em duas frentes principais. A primeira delas
diz respeito às alterações nas formas de organização dos Povos do Centro no Caquetá-
Putumayo a partir da dinâmica do internato-escola construído pelos padres capuchinhos.
Como já mencionei, a migração em massa dos moradores das malocas contatadas pelos
religiosos para as regiões de várzea do rio Igaraparaná deixou as áreas de terra firme e as
cabeceiras dos igarapés praticamente inabitadas91. A ocupação destas áreas quando das
expedições capuchinhas, nos anos 1930, não se deve apenas à necessidade de isolamento e
proteção por parte daqueles que conseguiram evitar os deslocamentos forçados realizados
pela Casa Arana. A autodenominação dos Povos do Centro faz referência direta à noção de
Centro enquanto área não alagável e afastada da margem dos grandes rios92. Assim, vimos
no começo deste trabalho como é corrente a interpretação nativa de que quando os Bora se
autodesignam como Piinemunáa, eles fazem alusão ao fato de que as áreas distantes das
margens dos grandes rios são seus locais de origem. Em cada um desses lugares, a presença
das malocas e seus mambeaderos reforça, ainda, a ideia de que aquele é o verdadeiro centro
do mundo. Dessa maneira, a migração e fixação das malocas Bora no médio Igaraparaná
introduziu uma mudança não apenas no padrão de assentamento das comunidades, mas
também na maneira por meio da qual o espaço é pensado e organizado. Reorganizar antigos
parâmetros no pós-caucho, como veremos, foi mister em diversas esferas da vida social bora.

91
Não são raros na Amazônia os exemplos nos quais a chegada de agentes coloniais e a construção de escolas,
postos de saúde, igreja e pistas de pouso servem como fatos aglutinadores de comunidades anteriormente
dispersas. É o caso descrito, por exemplo, por Gallois (2002) para os Wajãpi. Contudo, os moradores das
comunidades no Igaraparaná, ainda que ocupem intermitentemente La Chorrera para fazer compras, vender
alguns produtos, participar de reuniões e receber benefício sociais, permanecem, em sua maioria, nas malocas
dispersas no território. Sobre esse tema, ver cap. 3.
92
O uso do vocábulo Centro nesse sentido é comum também em várias comunidades indígenas e ribeirinhas no
médio e alto Solimões.

83
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

Assim, além de um espaço transmutado, a queda demográfica radical e a convivência nos


internatos fizeram com que os casamentos interétnicos, anteriormente bastante raros,
passassem a ser prática cada vez mais comum entre os Povos do Centro93.

Um segundo conjunto de transformações relacionado à presença dos capuchinhos


catalães no Caquetá-Putumayo tem a ver com uma nova forma de se relacionar com o mundo
não-indígena, que começa a ganhar contornos mais claros nesse momento. Se no Tempo dos
Brasileiros os Povos do Centro eram vistos como escravos e no Tempo dos Peruanos como
selvagens cuja doutrinação viria apenas por meio de severos castigos físicos e trabalhos
forçados, a convivência com os religiosos transformou duplamente a posição ocupada pelos
indígenas em relação ao mundo do Oriente.

Do ponto de vista dos capuchinhos, as crianças e jovens cujas famílias foram


arrasadas pelos caucheiros peruanos se comportavam como “bestas” e possuíam “instintos
selvagens”, sendo missão dos religiosos a “suavização” de seus costumes94. Ao mesmo
tempo, eram dignos de comiseração pois sua condição de orfandade era especialmente
lastimosa. A partir desse cenário, a tentativa de reunir os “órfãos da Casa Arana” no
orfanatório de La Chorrera gerou, a meu ver, alguns equívocos. Por um lado, os padres
desejavam ser como pais adotivos das crianças-órfãs que viviam a seu redor, criando-as e
instruindo-as física, moral e espiritualmente95. Além disso, expressavam claramente o anseio
de “civilizar” os indígenas criando-lhes “afeição à propriedade”, o que faziam por meio da
troca de bens manufaturados por produtos nativos e força de trabalho96. Porém, os Povos do

93
Para reflexões sobre o lugar do conceito de Centro e suas transmutações, ver Lucas (2018a); para uma
descrição mais detalhada sobre a aliança e casamentos contemporâneos entre os Bora no Igaraparaná ver cap.s
3 e 5 deste trabalho.
94
Ver citação de Vilanova no começo desse item.
95
O intento é desafio ainda atual para os religiosos: em diversas ocasiões, presenciei admoestações dos padres
em direção aos indígenas, a quem repreendiam o uso exacerbado do mambe, as relações extraconjugais, o
desinteresse pelas celebrações religiosas e o consumo abusivo de bebida alcoólica. Alguns religiosos, contudo,
são lembrados por sua opção em expressar o desejo de não interferir no modo de vida local, como é o caso de
um padre que, décadas atrás, ficou famoso na região por frequentar as bailes e sentar com os homens
cotidianamente nos mambeadeiros. Atualmente, existe apenas uma capela em La Chorrera e algumas capelas
menores espalhadas ao longo do Igaraparaná. Em La Chorrera, há missas todos os domingos celebrada por um
padre que ali reside, embora a rotatividade de clérigos seja alta. Contudo, as únicas ocasiões em que presenciei
um envolvimento coletivo maior da comunidade nas celebrações católicas foram na Semana Santa, quando há
uma Via Crucis nas ruelas de La Chorrera, e no Natal, quando as famílias assistem à missa antes do festejo
tomar conta do povoado.
96
Um de meus interlocutores, ao se tornar órfão aos oito anos após a morte de seus pais, passou a viver
integralmente no internato em La Chorrera. Em troca da “adoção”, ele desempenhou, durante vários anos,

84
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

Centro, desde a chegada das primeiras mercadorias no Tempo dos Brasileiros, construíram
relações com os estrangeiros que, intermediadas por determinados objetos (ora ferramentas
de metal, ora caucho), não culminaram na criação de laços de adoção (seja porque no
primeiro caso os órfãos foram afastados permanentemente de suas famílias, seja porque no
segundo os caucheiros os trataram com brutal violência).

Ademais, como veremos à frente, a condição de orfandade possui sentidos específicos


nessa região, de modo que o desencontro entre as concepções capuchinhas e bora acerca do
status e do presumível destino dos órfãos é evidente. Nos capítulos 3 e 4, entenderemos como
para os indígenas a criação de laços entre pais e filhos adotivos é algo bastante improvável
no caso de pessoas que não sejam previamente aparentadas. Portar-se como filhos adotivos
dos padres, portanto, não parecia orbitar no leque de possibilidades bora.

Dessa forma, em minhas conversas em campo, percebi que quando da chegada dos
capuchinhos e da instalação do internato em La Chorrera, os Bora se interessavam pela
presença dos capuchinhos pois vislumbravam ali a possibilidade de ocupar uma posição nas
relações de troca que não passasse nem pela venda de pessoas, nem pelo regime de trabalho
forçado. Em relação ao discurso moral cristão, ouvi correntemente dos Bora que eles, ao
contrário de outros povos indígenas, não se converteram ao cristianismo. Segundo meus
interlocutores, os padres capuchinhos chegaram à região contando uma história que já lhes
era conhecida, mas com outros personagens: enquanto Deus seria outro nome para o Tabaco
de Nossa Criação, Jesus Cristo seria um pseudônimo de Garça e Imaculada Conceição uma
denominação alternativa para Abuela Hierba Fría. Assim, os escritos bíblicos seriam uma
maneira imprecisa que os Brancos encontraram de registrar as histórias que foram passadas
aos Bora oralmente, por meio dos mitos deixados pelos espíritos a seus ancestrais.

Assim, não é raro ver mambeaderos com símbolos religiosos como crucifixos e
terços. É igualmente comum ouvir de alguns homens que a ausência e o desinteresse pelas
missas e celebrações católicas se justificam pelo fato de que eles já frequentam, todas as
noites, as reuniões masculinas nos mambeaderos. Mais que devotos ou resistentes à
mensagem cristã, penso que os Bora operam de maneira similar àquela descrita por Gow

pequenos serviços a mando dos religiosos, atuando assim, em suas palavras, como um “pequeno empregado”
dos padres.

85
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

(2001) para os Piro ou, mais recentemente, por Pierri (2014) para os Guarani. Nesse sentido,
foi ao assimilar o Deus cristão em sua própria cosmologia e corpus mítico, num misto de
entusiasmo e indiferença, que os Bora foram capazes de colocar-se, finalmente, como os
detentores da verdadeira e original versão da história.

Tal interpretação ajuda-nos a escapar do ardiloso dilema entre continuidade e ruptura


indicado por Fausto (2005) ao analisar algumas leituras acerca da conversão guarani. Nessas,
ou bem a empresa colonial foi absolutamente eficaz em apagar as antigas práticas indígenas,
ou bem fracassou completamente por não ter sido capaz de transformá-las. Na contramão
dessas interpretações, o autor argumenta que os Guarani lograram fazer-se cristãos aos olhos
externos, encontrando, ao longo desse movimento, maneiras próprias de viver um
cristianismo distinto daquele imposto pelos missionários. Esse caminho teria sido trilhado
em meio a um intenso processo de “desjaguarificação” no qual o canibalismo deu lugar à
ética da mansidão e ao xamanismo ascético. Ao retomarmos rapidamente o tempo do
cristianismo na Conclusão desse trabalho, veremos que os Bora parecem ter operado tanto
uma relativa “desjaguarificação” de si quanto uma intensa “jaguarificação” do exterior, cuja
periculosidade pode ser mantida sob controle apenas por meio da interferência de chefes-
Garça prestigiosos. Entenderemos ainda como, sob a orientação do Tabaco, esses mesmos
chefes detêm a capacidade de fazer frente às investidas predatórias dos animais – mesmo que
privilegiem, em seu cotidiano, relações frias com seu pessoal (isto é, relações marcadas pela
ausência de violência e por um destacável pacifismo expresso em suas palavras, em seus
corpos e em suas atitudes).

Assim, ao se não se interessarem pela originalidade da mensagem cristã ou pela


possibilidade de estabelecerem com os padres relações de parentesco, não tardou para que
alguns religiosos voltassem seus esforços para o interesse indígena pelas transações
comerciais. Ávidos por imbuir nos Povos do Centro a noção de propriedade, se
transformaram rapidamente em espécies de patrões entre os Bora. É o caso do padre José
Maria, lembrado por seu forte sotaque espanhol e longa barba. Afeito à criação de algumas
dezenas de cabeça de gado97, José Maria mantinha, por volta dos anos 1960, uma pequena
loja em La Chorrera onde os indígenas podiam obter, por meio da permuta, alimentos

97
Seu curral localizava-se onde hoje se encontra a casa paroquial em La Chorrera.

86
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

industrializados e produtos como roupas, anzóis, armas de fogo e munição. O principal objeto
de troca, nessa época, eram as peles exóticas. Ao período em que os Povos do Centro
comercializavam peles animais com os padres e uma série de outros patrões, deu-se o nome
de Tigrillada ou bonanza das peles.

2.2. As peles ou o Tempo da Tigrillada

2.2.1. Como se preda um predador?

O Tempo da Tigrillada ou da bonanza das peles é como os Bora denominam o período


compreendido entre os anos 1960 e o fim da década de 1970, quando os Povos do Centro se
envolveram na comercialização de peles de animais98. O termo “tigrillada” deriva daqueles
empregados, em espanhol, para designar algumas espécies de felinos. Segundo Payán e
Trujillo (2006), o termo tigre é utilizado na região para referir-se à espécie Panthera onca,
conhecida em português como jaguar ou onça-pintada. Enquanto isso, tigrillo designaria
algumas espécies do gênero Leopardus, como a jaguatirica (L. pardalis), o gato-maracajá (L.
wiedii) e o gato-do-mato (L. tigrinus)99.

Oohííbye é o termo genérico em Bora para designar qualquer tipo de felino não-
domesticado e, como acontece em outras partes da Amazônia (Bull, 2018), para referir-se
também aos cães. No capítulo 6, quando analisar a narrativa sobre a origem do Tabaco-de-
Sabedoria, veremos que tais felinos surgiram, todos, na mesma ocasião. Igualmente, a partir
da análise da oposição entre o Tempo dos Animais e o Tempo da Abundância que discutirei
na Introdução à Parte II, ficará claro que matar e esfolar onças e outros animais selvagens é
algo bastante perigoso, uma vez que são grandes as chances de causar a ira e desejo de
vingança no Tabaco ou Mestre dos animais que foram mortos. Quando caçavam animais a
fim de retirar suas peles, os Bora possuíam consciência do perigo que corriam, de modo que

98
Para relatos sobre esse mesmo período entre indígenas e não indígenas na região do Trapézio Amazônico,
ver Beltrán (2013).
99
Não pude, em campo, realizar uma correspondência entre a classificação proposta na literatura e aquela
elaborada pelos Bora. Entretanto, a partir da investigação de um professor indígena, é possível perceber que os
Bora identificam com termos distintos ao menos oito tipos de felinos que vivem no território em que ocupam:
Oohííbye turacaji (Tigre mariposa grande), Oohííbye újicoami (Tigre de platanillo mediano), Oohííbye wijtyaji
(Tigre de piraña), Makiñiu (Tigre de seringa), Mehmenui (Tigrillo), Ocajímu (Pantera), Túupayou (Tigre
colorido) e Ujcóo (Tigre de água).

87
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

apenas homens adultos e com algum conhecimento xamânico participavam das incursões de
caça. Elas aconteciam, na maioria das vezes, na área do rio Cahuinari. Este rio de águas mais
claras e mais pedregoso que o Igaraparaná é a região de origem de diversos clãs Bora. Ele é
lembrado também pela grande abundância de peixes e animais de caça em razão de não haver
ali muitos predadores humanos.

Foi no rio Cahuinari, em um acampamento de caça em busca de animais para a


obtenção de peles, que três irmãos do clã Buriti sofreram um ataque no Tempo da Tigrillada.
Estando às margens do rio, eles colheram bacaba para comer. Os irmãos tinham
conhecimento do perigo existente ao jogar n’água sementes desse fruto, mas por duvidar que
algo de fato pudesse acontecer, o fizeram. Pouco tempo depois, ouviram um barulho
ensurdecedor cuja origem ou direção não podiam identificar: era como se vários animais
diferentes emitissem sons ao mesmo tempo. O tempo fechou, o céu tornou-se cinza e
começou uma forte ventania. Sabiam que se tratava do tigre de agua que, furioso, desejava
lhes fazer mal. Tinham ciência, ainda, de que nenhum tipo de oração ou substância
comumente usada para proteção (como pimenta ou tabaco) surtiria efeito. Dessa forma,
apressaram-se em cortar parte de seus cabelos com o terçado que tinham à mão para, em
seguida, queimá-los. O cheiro de cabelo queimado é, segundo os Bora, a única forma eficaz
de impedir um ataque do tigre de agua.

Em campo, escutei diversos relatos sobre pessoas que foram surpreendidas por tigres
de agua. O maior perigo de um acometimento desse tipo é que a pessoa seja levada para o
mundo subaquático, de onde raramente consegue regressar. Minhas tentativas de construir
um perfil morfológico desses seres foram frustradas, pois a maioria das pessoas com quem
conversei disse que eles se mantêm sempre ocultos e que raramente alguém é capaz de ver
um tigre de agua e não ser capturado. Porém, é possível perceber que um deles passou por
determinado local através das marcas de suas patas na várzea, semelhantes àquelas deixadas
pelos patos.

É interessante observar que o tigre de agua é agrupado pelos Bora junto aos demais
felinos. Se unirmos a descrição das marcas de membranas interdigitais ou natatórias deixadas
na beira do rio ao fato de que o termo empregado para esse tipo de tigre em Bora (ujcóo) é
bastante semelhante àquele traduzido por Thiesen & Thiesen (1998) por nutria ou, em

88
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

português, ariranha (ujco ou újcomu), poderíamos deduzir que os tigres de agua são apenas
exemplares da espécie Pteronura brasiliensis, difundida em toda a região amazônica100. É o
que acontece, por exemplo, entre os Yagua, para os quais o vocábulo para ariranha
(aponimbi) é, literalmente, “jaguar d’água” (Chaumeil & Chaumeil, 1992: 27).

De fato, Lévi-Strauss identificou, em Do Mel às Cinzas (1966), como as línguas Tupi-


Guarani costumam agrupar, por meio da sufixação de um mesmo radical, os termos para
felídeos, canídeos (cães, lobos e raposas) e a ariranha, um mustelídeo. Contudo, se os Bora
classificam o tigre de agua na mesma categoria que outros tipos de tigres, eles não
consideram que o primeiro possa ser simplesmente uma ariranha. Sua descrição é muito
parecida àquela fornecida pelos Cocama, na foz do rio Jutaí:

A onça-d’água seria parecida com uma onça-preta, mas viveria dentro da


água, “como o boto”, tendo a “mão feito pato”, com membranas natatórias
(...). Um ser aquático, a onça-d’água não o saberia subir em árvores e viveria
com “a cabeça no fundo”. Embora não tenham dado nenhuma descrição
detalhada, afirmaram não se tratar de uma ariranha (chamada de onça-
d’água em algumas regiões) (...). (Macedo et al., 2016: 103)
Quando perguntados, o termo para ariranha em espanhol (nutria) é traduzido por
meus interlocutores como tsojcó. Tido como um animal agueroso (isto é, fonte de mau
agouro), as ariranhas, ao contrário dos tigres de agua, são vistas com alguma frequência à
beira dos rios, sem que com isso aqueles que cruzam seu caminho sejam levados para o
mundo subaquático. Penso que se a associação nativa entre ariranhas e jaguares reside no
fato de que ambos são seres carnívoros de grande porte, os tigres de agua são como ariranhas
superlativas. Assim, enquanto ariranhas “comuns” predam grandes peixes (deixando de lado
suas cabeças e espinhos), os tigres de agua são seres devoradores que visam atrair e predar
os humanos.

De forma geral, é comum escutar relatos de que, no Tempo da Tigrillada, os Bora se


encontravam muito suscetíveis a ataques dessa natureza. Longe de suas malocas e do cuidado
dos abuelos, os homens que se aventuravam na mata fechada em busca de peles para vender
lidavam com animais com os quais não estavam acostumados a estabelecer relações de caça.
Além disso, perambulavam em territórios estrangeiros cujos donos não-humanos lhes eram
desconhecidos. Sempre lembram, em seus relatos, do caso de um chefe que, ao percorrer o

100
Soma-se a isso o fato de que os múltiplos sons emitidos pelos tigres de agua poderiam ser comparados às
diversas vocalizações já documentadas para a espécie P. brasiliensis (Mumm & Knörnschild, 2014).

89
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

caminho que leva ao rio Cahuinari, teve sua perna esmagada por um tronco e, em decorrência
desse incidente cujas causas são relacionadas à ação de espíritos que habitam a floresta,
acabou adoecendo e morrendo. Em razão de tais perigos, os Bora contam que as táticas de
captura dos animais tinham de ser elaboradas e certeiras.

2.2.2. Técnicas para caçar e para vender

A tática mais comum para a obtenção de peles era a atração das presas por meio do
abate de animais de menor porte. Assim, alguns animais como pacas, cotias e macacos eram
mortos e esquartejados. Seu sangue era vertido no solo marcando o caminho até determinado
ponto na mata onde a carne era pendurada e o caçador aguardava, num jirau suspenso, a
aproximação noturna do animal que desejava matar com sua arma de fogo. Não era raro que
o movimento de atração e captura durasse várias noites ou mesmo não resultasse na morte
do animal. Essa técnica é descrita também por Payán e Trujillo ao dissertarem sobre o Tempo
da Tigrillada:

The hunter chose a baiting site and dragged the bait across the ground
several hundred meters from the shore of the river or camp to the selected
site and around it. (...) Once the bait was fixed in place it was left for one
night and checked the following day. If the bait had been eaten (it had to be
tied well so that some of the meat was left the following day), the hunters
had to choose a shooter and construct a pasera or shooting platform, ideally
located upwind. (...) An ideal site would include a pasera that could support
a sitting or standing hunter who could shoot with ease. (Payán e Trujillo,
2006: 25 – 26, grifos originais)
Outra tática empregada (embora menos frequente que as armadilhas supracitadas) era
a imitação de animais101. Como alguns homens Bora possuíam a capacidade de simular os
sons emitidos pelos jaguares, aproveitavam tal conhecimento para atrair outros felinos que
viviam na mata. Enquanto alguns os imitavam a partir de sons guturais, outros utilizavam
pequenos instrumentos de cerâmica ou frutos secos que, parecidos às ocarinas, eram
confeccionados especificamente para esse fim102.

101
Payán e Trujillo (2006: 26) também mencionam rapidamente essa técnica.
102
Em relação à retirada e à preparação da pele para a venda, Guyot descreve o seguinte: “Se decapa el animal
con el cuchillo y se tiempla la piel con piolas para los lados para que se extiende. (...) Bien templado, se seca
en el sol por uno o dos días (o sobre el fuego cuando no hay sol). Se desatan las piolas y se dobla la piel para
guardar enrollado”. (fg_b10_Resumé Fond Cahier Bleu: 113).

90
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

Mireille Guyot registrou, em seu trabalho, alguns desses sons103. Além disso, reuniu
informações acerca dos preços pagos à época por cada uma das peles negociadas:

Precios en mayo 1970, lancha del Sr. Mantilla Solarte


Caimán blanco (2m50) 35,00 pesos
Caimán negro (2m50) 200,00 pesos
Tigre (1.30 x 70) 1700,00 pesos
“Lobón” (1.20 x 60) 700,00 pesos
Tigrillo (80 x 40) 500,00 pesos
Peludo (clase de tigrillo) (70 x 40) 180,00 pesos
Nutria (70 x 40) 180,00 pesos
Puerco (el kilo) 12,00 pesos
Cerdillo (el kilo) 25,00 pesos
Capiguara (“yulo”) 6,00 pesos
Venado 4,00 pesos
Culebra (por metro) 4,00 pesos
Tabela 2 – Preços das peles vendidas pelos Bora em 1970
(Fonte: fg_b10_Resumé Fond Cahier Bleu: 112)
A tabela acima indica que a pele da onça-pintada era, de longe, a mais valorizada no
comércio local, embora várias outras espécies de couros fossem negociadas104. Para se ter
uma ideia, o dólar americano fechou o ano de 1970 cotado numa média de 18,50 COP105.
Assim, a pele de uma onça-pintada era vendida por cerca de 92 dólares e as peles de jacaré-
açu106 e tigrillo valiam, respectivamente, 11 e 27 dólares. Enquanto isso, o salário mínimo
colombiano, no mesmo ano, era de 519 COP ou pouco mais de 28 dólares.

Para que se entenda melhor as cifras acima, é fundamental compreender o papel dos
intermediários nesse processo. Payán e Trujillo (2006: 26) afirmam que, em 1973, uma pele
de onça-pintada valia, em Bogotá, 7.000 COP – portanto, mais de quatro vezes o valor pago,
em 1970, aos Bora. Segundo os autores, ainda, o mesmo produto era vendido em Nova York,
já em 1980, por 2.500 dólares (na cotação da época, cerca de 118.925 COP107). Dessa
maneira, embora a venda de peles fosse uma fonte de renda atrativa para os Bora, no fim das

103
Disponível sob autorização em: https://archives.crem-cnrs.fr/archives/collections/CNRSMH_I_2016_037/,
código “CNRSMH_I_2016_037_003_10”.
104
Uma tabela com preços da venda de animais, na década de 1990, encontra-se em Echeverri et al. (1992: 17
– 18). Com o comércio de peles proibido, os principais produtos vendidos passaram a ser as aves, os pequenos
primatas e a própria carne de caça.
105
Pesos colombianos.
106
Melanosuchus niger.
107
A cotação média do dólar americano em 1980 foi de 47,57 COP e o salário mínimo legal já atingia a cifra
de 4.500 COP.

91
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

contas lhes era entregue apenas uma pequena parte do preço final desses produtos. Muitas
vezes, ademais, o pagamento não era feito em dinheiro, mas sim em produtos:

In the days of the tigrilladas in the Amazon, very little money circulated, so
business was conducted through exchange. The intermediaries were the
people who bought the skins from hunters in the outposts (e.g., La Pedrera,
see below) and took them to sell in the larger towns (e.g., Leticia), coming
back with clothing, batteries, radios, fishing hooks, etc. to exchange for
skins. Hunters acquired debts from the intermediaries for food, rifles,
ammunition and gasoline and paid for them with part of the haul of skins
from the animals they set out to hunt. (Payán e Trujillo, 2006: 27, destaque
original)
Como as peles eram geralmente obtidas nas proximidades do rio Cahuinari, os Bora
as vendiam em La Pedrera, comunidade às margens do rio Caquetá, do qual o Cahuinari é
tributário. A venda, muitas vezes, era feita por meio de um sistema de débitos comum em
toda a região amazônica: o caçador entregava as peles que havia conseguido em sua
expedição e obtinha em troca dos comerciantes não-indígenas ou regatões ali instalados os
produtos que desejava (os quais tinham seus preços fixados muito acima do valor praticado
nas cidades)108. Por sua vez, os regatões usavam as grandes embarcações que possuíam para
escoar as peles até a cidade de Leticia, vendê-las para comerciantes locais e novamente
retornar à comunidade em busca de mais peles109.

Ainda em 1969, quando Mireille Guyot realizava seu trabalho de campo entre os Bora
no Igaraparaná, o governo colombiano esforçava-se em coibir a venda de peles exóticas na
região. Segundo a antropóloga, a iniciativa encontrava oposição junto aos religiosos que
viviam em La Chorrera, quem consideravam ser essa a única fonte de renda possível para os
indígenas. Após diversas tentativas, o Instituto Nacional de los Recursos Renovables y del
Ambiente (INDERENA) conseguiu, em 1973, proibir a caça e a venda de felídeos. A prática,
embora tenha persistindo por alguns anos, foi totalmente interrompida no fim da década de
1970. A atuação dos regatões, desde o Tempo da Tigrillada, consolidou-se como a forma

108
Não podemos afirmar que esse tipo de negociação fosse totalmente desconhecido entre os Povos do Centro.
Contudo, se rememoramos o modo de obtenção das primeiras ferramentas de metal e as atrocidades cometidas
mais tarde pela Casa Arana, entendemos que os termos das transações eram, no passado, bastante diferentes.
109
Esse sistema funcionava também no outro extremo do Caquetá-Putumayo, na região do baixo rio Putumayo.
Segundo relatos de um indígena Bora que conheci na comunidade peruana de El Estrecho em 2015,
comerciantes brasileiros e colombianos realizavam as mesmas transações na região. Um deles, Clodomiro, se
destacava por dominar o comércio desde o baixo Putumayo até as áreas de ocupação Yagua, aliando-se a
Escudero, conhecido comerciante de Iquitos que recebia a mercadoria.

92
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

privilegiada de obtenção de mercadorias para os Povos do Centro. No começo dos anos 1980,
porém, outro produto entra em cena e passa a mobilizar a economia não apenas da região,
mas de todo o país.

2.3. A coca ou o Tempo da Máfia

2.3.1. A origem da coca da Cobra-Grande e do irmão preguiçoso

Certa noite, em uma sessão de mambeadero, escutei a seguinte narrativa de origen110,


que transcrevo a seguir a partir de anotações em meu caderno de campo:

Cobra-Grande111 era um velho, um ser maligno. Ele tinha um grande cocal,


mas na hora de tostar a coca sempre deixava queimar e ela ficava amarga.
Ele fazia isso por meio de um fogo maligno que mantinha sempre aceso e
era muito forte. Muitas pessoas iam mambear sua coca amarga e ficavam
hipnotizados por ele, que comia a alguns. Então Garça- de-Abundância112
pensou:

- Eu também sou poderoso, vou acabar com isso.

Garça-de-Abundância chegou à maloca de Cobra-Grande para mambear.


Porém, ele mesmo foi tostar a coca e fez com que o fogo já não fosse mau.
Desde sua rede, ele ia magicamente revirando a coca que ele tostava por
meio de movimentos à distância com seus pés e seus braços. Então, o
mambe ficou doce. Quando Cobra-Grande foi mambear, ele engasgou e
caiu no chão. Então Garça-de-Abundância o reviveu e disse:

- Como pode ser? Você é um velho, não é um garoto que apenas começou
a mambear.

Cobra-Grande explicou que ele havia apenas se engasgado e eles seguiram


mambeando. Quando acabou o mambe, Cobra-Grande queria parar, mas
Garça-de-Abundância disse:

- Não, vamos mambear mais! Eu vim para mambear, não vim para outra
coisa.

Então foram buscar mais coca e fizeram mais mambe. E fizeram outras e
outras vezes mais, até que se acabou toda a coca do cocal de Cobra-Grande,
o qual sugeriu que eles fossem até a maloca de Garça de Abundância. No
caminho, Garça-de-Abundância pegou seu cesto bem pequeno e foi
colocando algumas poucas folhinhas de coca. Ele colocou dez folhas.

110
Como mencionado no Glossário dessa tese, a seguir utilizarei preferencialmente a palavra em espanhol
origen para falar sobre aquelas narrativas que os Bora traduzem também como uubálle e que os antropólogos
convencionamos chamar simplesmente de “mito”. Faço essa opção a fim de colocar em relevo o fato de que,
segundo meu interlocutores, toda narrativa mítica faz referência a origem de algo.
111
Suprimo aqui o nome completo desse personagem a pedido dos Bora.
112
A centralidade da Garça e da noção de abundância será abordada na segunda parte desse trabalho.

93
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

Cobra-Grande ficou com raiva, porque Garça-de-Abundância havia


acabado com todo seu cocal e agora ele não lhe oferecia o mesmo de volta.
Garça-de-Abundância foi queimando as folhas uma a uma e de seu tostador
saiu uma quantidade enorme de mambe. Era tanto mambe que foi possível
encher várias bolsas. Cobra-Grande dizia que ia urinar, mas na verdade ia
para fora da maloca cuspir o mambe porque ele já não aguentava mais.
Garça de Abundância, porém, havia nomeado113 aquele mambe como pedra
e junto com ele Cobra-Grande acabava cuspindo seus dentes. Garça-de-
Abundância nunca se enchia de mambe porque ele tinha, embaixo de seu
banco, um buraco espiritual por onde ele escoava toda sua coca. Foi assim
que Cobra-Grande saiu resignado da maloca de Garça de Abundância.

Garça-de-Abundância vivia com a filha de Cobra-Grande, mas o velho


queria comê-lo a todo custo. Quando mambeavam, ele lhe dava “ambil de
sono”. Quando Garça-de-Abundância ia deitar com sua mulher, Cobra-
Grande tentava se aproximar para comê-lo, mas Garça-de-Abundância fazia
uma armadilha com cordas invisíveis ao redor de sua rede. Assim, quando
Cobra-Grande se aproximava Garça-de-Abundância acordava e seus olhos
se acendiam. Garça-de-Abundância lhe dizia:

- O que você vem fazer aqui? Não vê que estou dormindo com sua filha?

Garça-de-Abundância tinha um irmão que era muito preguiçoso. Garça-de-


Abundância o mandava buscar coca para fazer mambe enquanto estava fora,
mas quando voltava o irmão sempre dizia que não tinha tido tempo, embora
não tivesse nada o que fazer. Garça de Abundância, por isso, não lhe
entregava todo o mambe a que ele teria direito. O irmão, que o acusava de
ser mesquinho, resolveu ir até a maloca de Cobra-Grande pois ele sabia que
ali havia sempre muito mambe. O irmão de Garça-de-Abundância era
fisicamente igual a ele e por isso mesmo vivia flertando com a mulher de
Garça-de-Abundância, sua cunhada. Quando chegou, Cobra-Grande achou
que se tratava de seu genro e o mandou ir buscar coca em seu cocal. Quando
o irmão chegou na roça, porém, encontrou apenas mandioca, frutas e várias
mulheres. Ele perguntava a elas:

- Onde está o cocal de seu avô?

As mulheres apenas repetiam o que ele dizia:

- Onde está o cocal de seu avô?

Assim foram muitas vezes, até que ele disse:

- Ah, eu já sei o que vocês querem!

Então, ele transou com as mulheres e voltou para a maloca dizendo a Cobra-
Grande que não havia encontrado seu cocal. Cobra-Grande foi até a roça e
confirmou que aquele não era Garça-de-Abundância, pois esse último já
sabia dessa armadilha e sempre golpeava as mulheres ou arrancava seus
cabelos para que elas se transformassem em planta de coca. Cobra-Grande
descobriu porque as folhas de coca estavam brancas e pegajosas, cheias do
sêmen do irmão de Garça da Abundância. Assim mesmo ele trouxe as folhas
de coca, as tostou e fez o mambe. Quando o homem foi dormir com sua
filha, porém, Cobra-Grande foi até sua rede e o comeu. Garça-de-

113
Para uma discussão acerca do ato de “nomear” entre os Bora, ver cap. 3.

94
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

Abundância ficou com muita raiva e finalmente acabou com Cobra-Grande,


transformando-o em uma onça.
Veremos à frente que essa é apenas uma das narrativas que trata da disputa entre
Cobra-Grande e Garça, dois personagens centrais na cosmologia bora. Em geral, o primeiro
apresenta-se como um sogro canibal associado ao mundo subaquático e à predação e o
segundo é, ao mesmo tempo, genro benevolente e chefe superlativo. Sendo filho primogênito
do Tabaco-de-Nossa-Criação, Garça relaciona-se à capacidade de defesa, ao xamanismo
curativo e à produção de pessoas e alimentos em abundância. Assim, enquanto Garça-de-
Abundância pôde “adocicar” a coca de seu sogro-inimigo e transformar poucas folhas em
uma enorme quantidade de mambe, Cobra-Grande mantinha um cocal cujas matas de coca
eram mulheres sedutoras para aqueles que não sabiam da necessidade de caceteá-las ou
arrancar seus cabelos. O irmão preguiçoso e ganancioso, ao encontrar-se com tais mulheres,
fez sexo com elas e acabou sendo comido por Cobra-Grande. Logo após, Garça vingou a
morte de seu irmão transformando seu sogro em onça.

Interessa-nos aqui, por ora, o fato de que os Bora afirmam que enquanto a coca doce
e abundante mantida por Garça é a mesma que mambeam hoje em suas malocas, aquela
cultivada no cocal de Cobra-Grande, amarga e repleta de esperma do irmão preguiçoso, é a
que deu origem aos derivados ilícitos outrora explorados comercialmente na região (pasta,
base e cloridrato de cocaína) – e, por sua gênese, trata-se de uma versão empobrecida do
mambe dos Povos do Centro. A diferenciação entre a coca destinada à produção de mambe e
aquela vendida aos narcotraficantes é tematizada também entre outros grupos na Amazônia
colombiana. Segundo Hugh-Jones, o envolvimento dos Barasana no comércio de ilícitos a
partir de 1979 trouxe consigo o problema da venda de uma substância que, em razão de seus
usos e origens, é considerada inalienável114:

Sin embargo, los Barasanas están muy conscientes de que las hojas de coca
son enajenadas y esto les causa algunos problemas. Al igual que los tocados
de plumas, las plantas de coca forman parte de la identidad espiritual y la
sustancia de cada clan y están ligadas a sus orígenes míticos. En este
sentido, la coca es inajenable y desempeña un papel clave en los
intercambios rituales entre individuos. La conciencia que tienen del
problema se revela en las exhortaciones de los chamanes para que se
mantenga la coca para el intercambio ritual separada de la que se destina
para la venta (...). (Hugh-Jones, 1988: 97)

114
Em suas palavras, “una bonanza asociada a la producción ilícita de cocaina” (Hugh-Jones, 1988: 80).

95
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

Vimos há pouco, porém, que para os Bora a separação entre o que Hugh-Jones
denomina como “coca para troca ritual” e aquela “que se destina para a venda” tem evidente
origem mítica. Numa disposição narrativa comum aos demais Povos do Centro acerca do
tema pan-amazônico da gemelaridade, o irmão deceptor ou trickster de Garça-da-
Abundância apresenta comportamento inapropriado e distinto à retidão que esse e outros
relatos atribuem ao último115. Em contraste com o comedimento e parcimônia típicos dos
chefes-Garça, a preguiça, a atitude sexual inadequada e a predação desenfreada são
comportamentos que, até hoje, permeiam o universo derivado da coca de Cobra-Grande que,
no Tempo da Máfia, foi usada pelos narcotraficantes na fabricação da cocaína116.

2.3.2. Mafiosos e Guerrilheiros: narcotráfico e conflito armado

A pasta de coca ou merca (diminutivo de mercancía, em espanhol) foi o produto mais


negociado na região no Tempo da Máfia. Como afirmaram a Pereira (2012) alguns de seus
interlocutores do rio Caraparaná: “todos venderam cocaína” (:105) e “até os padres
compravam” (:109). Assim, desde o princípio de meu trabalho de campo, diversas vezes
meus amigos Bora contaram livremente casos sobre esse período. Em diversas comunidades,
objetos como grandes e duráveis tonéis para armazenamento de combustível, resistentes
panelas de alumínio e carcaças de antigos motores de popa são recordações do Tempo da
Máfia, época em que o interflúvio do Caquetá-Putumayo se tornou local de intensa
movimentação de pessoas e dinheiro. Segundo informações do Consejo Regional Indígena
del Medio Amazonas (CRIMA):

En las décadas de 1970, 1980 y 1990 en la región del medio río Caquetá se
vivió la bonanza coquera. Territorio de departamentos como Putumayo,
Amazonas y Caquetá fueron utilizados por los narcotraficantes para el
cultivo de hoja de coca con fines ilícitos. En esta época, algunas de las
comunidades del medio río Caquetá tuvieron dichas plantaciones. Algunos
indígenas, fueron vinculados al cultivo y recolección de la hoja de coca con

115
Apesar de existir diversas narrativas que apresentam a clássica estrutura ameríndia dos irmãos opositores, a
figura do trickster ou deceptor é mais evidente naquelas que falam sobre Llijchuri, personagem que
conheceremos no capítulo 6 e sobre o qual há um corpus extenso de orígenes.
116
Vale notar, ademais, que a diferença entre os dois tipos de coca extrapola o domínio mítico. A variedade
usada pelos Povos do Centro para a fabricação do mambe (Erythroxylum coca var. ipadu) é distinta da variedade
importada para o Caquetá-Putumayo pelos mafiosos (Erythroxylum coca var. coca, conhecida na região também
como “Tingo María”), cuja quantidade do alcaloide cocaína é mais de duas vezes superior (Echeverri e Pereira,
2005: 125).

96
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

fines ilícitos, buscando alternativas económicas dentro de las pocas que la


región oferece. (CRIMA, 2012: 18).
Aos poucos, compreendi que o Tempo da Máfia ou da bonanza da coca referia-se,
entre os Bora, ao longo período compreendido entre o fim dos anos 1970 e a primeira metade
dos anos 2000, quando eles e outros Povos do Centro estiveram envolvidos na
comercialização da coca e de seus derivados ilícitos. Pude entender também que, embora o
tema seja delicado, ele é de conhecimento público e foi tratado em relatórios de órgãos
nacionais e internacionais e em diversos trabalhos acadêmicos desenvolvidos na região117.
Dessa maneira, em razão da importância do período para a configuração de diversos aspectos
da vida atual dos Bora, opto por discorrer sobre o assunto tomando apenas o cuidado de
omitir nomes e outras informações que possam identificar meus interlocutores.

Especificamente, o envolvimento dos Bora no comércio de derivados da coca deu-se


de duas maneiras principais: como mão-de-obra não especializada em laboratórios distantes
ou trabalhando em instalações descentralizadas no próprio rio Igaraparaná. No primeiro caso,
alguns de meus interlocutores deslocaram-se temporariamente de suas comunidades a fim de
trabalhar em laboratórios e pistas de pouso clandestinas existentes nas proximidades do rio
Cahuinari. Franco, ao realizar um estudo sobre os povos em isolamento voluntário nessa
região, afirma que:

El negocio consistía en construir pistas de aterrizaje en la mitad de la selva


y establecer laboratorios para transformar la pasta o base en cocaína,
trayendo por agua los insumos químicos, las secadoras y las plantas
eléctricas. En avioneta o avión se traían toneladas de pasta de coca desde
Perú y Bolivia, y se procedía a cristalizarla en los laboratorios escondidos
en la selva, para comercializarla después. (Franco, 2012: 90)
Uma dessas pistas de pouso encontrava-se na foz do rio Cahuinari e servia aos
laboratórios de La Yuca, Bernardo, Caimo e Solarte. Ali, indígenas vindos de diversas partes
participavam da preparação de alimentos, da manutenção das pistas de pouso e do sistema
radiofônico, do transporte fluvial e terrestre da pasta e da base de coca que chegavam de fora
e do carregamento do produto já manufaturado de volta aos aviões. Majoritariamente,
trabalharam para patrões ou narcos de origem antioquenha. Em laboratórios ocultos na mata
e inicialmente sob o comando do cartel de Medellín (associado pelos próprios indígenas à

117
Ver os relatórios de SIMCI e UNODOC de 1999 a 2018 disponíveis em http://biesimci.org/index.html
(último acesso em 15/01/2019) e os trabalhos de Franco (2012), Pereira (2012), Sánchez (2012) e Tobón (2008,
2016).

97
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

figura emblemática de Pablo Escobar), alguns Bora relatam ter visto entre os anos 1980 e
1990 imensos geradores em funcionamento e a circulação de grande quantidade de armas
(fuzis, metralhadoras e escopetas) e combustíveis (usados tanto para o processamento da coca
quanto para o funcionamento dos pequenos aviões)118.

Alguns indígenas que trabalharam na região do Cahuinari regressaram a suas


comunidades com certo conhecimento acerca dos modos de fabricação da cocaína. Outros,
porém, adquiriram essa experiência por meio do trabalho junto aos narcos ou mafiosos que
se estabeleceram em pequenas instalações no rio Igaraparaná. A descentralização do
narcotráfico ao longo dos anos 1980 é processo apontado, mais tarde, por Pereira:

Foi na década de 1980 que o narcotráfico colombiano se reorganizou,


passando a não ser mais comandado pelos primeiros “grandes chefes”
(alguns assassinados, outros presos) e seus cartéis, mas complexificando-se
em redes empresariais que se diversificam e se tornam mais pulverizadas,
descentradas, eficientes e violentas. (Pereira, 2012: 104).
Assim, mesmo que desde o fim dos anos 1970 alguns indígenas vendessem folhas de
coca aos regatões locais, o Tempo da Máfia consolidou-se quando comerciantes vindos de
outras regiões da Colômbia instalaram-se, a partir dos anos 1980, no Igaraparaná. Por meio
da concessão dos insumos necessários para a fabricação de pasta e base de cocaína e do
ensino das técnicas de preparo das mesmas, os narcos construíram pequenos laboratórios
mata adentro e viveram permanentemente em algumas comunidades do Igaraparaná. Certos
mafiosos traziam consigo empregados como motoristas, capangas e “químicos”119 e até
mesmo membros de suas famílias. Segundo Taussig, “an army colonel said not so long ago
there was enough cement carried into the Putumayo to pave that enormous province several
times over” (2004: 161)120. O material produzido, muitas vezes, era negociado junto a
embarcações de regatões que vinham desde cidades como Puerto Asís, Puerto Leguízamo e

118
Em consonância com tal informação, Franco afirma que “El laboratorio La Yuca, situado en la banda derecha
del río Cahuinarí, abajo de la bocana del Pamá, tenía una planta de luz tan grande como una buseta, y era de
Pablo Escobar” (2012: 92). Tal laboratório operou até o ano de 1992, quando foi bombardeado pela Força Aérea
Colombiana. Foi quando alguns Bora decidiram deixar a região. Posteriormente, o laboratório foi transladado
a um rio vizinho e assumido pelo cartel de Cali.
119
Diz-se da pessoa que possui bom conhecimento técnico a respeito da fabricação da cocaína.
120
O cimento e cal virgem, assim como alguns tipos de combustível (gasolina, querosene ou óleo diesel), são
insumos utilizados na primeira fase de processamento das folhas, quando ocorre sua transformação em pasta de
coca. Numa segunda etapa, também realizada à época no Igaraparaná, são necessários ácido clorídrico, éter,
acetona ou amoníaco para converter a pasta de coca em base de coca. Finalmente, a transformação da base de
coca no produto final (cloridrato de cocaína) é técnica mais complexa e, embora tenha sido eventualmente
realizada no Igaraparaná, era feita normalmente em outros locais.

98
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

El Estrecho a fim de trocar suas mercadorias pelos derivados da coca. Outros comerciantes,
vindos do baixo Putumayo, eram de nacionalidade brasileira e vendiam nas cidades às
margens dos rios Iça e Solimões a pasta de cocaína que compravam na Colômbia.

Alguns daqueles que chegaram ao território dos Povos do Centro nesse tempo
acabaram nunca retornando de vez a seus lugares de origem. Enquanto indígenas de outras
etnias casaram-se em comunidades no Igaraparaná, outros poucos não-indígenas fixaram-se
em La Chorrera e, afastados do narcotráfico e com o aval das autoridades locais, atuam hoje
como comerciantes. Nesse tempo, entretanto, os narcotraficantes ou mafiosos não foram os
únicos forasteiros que chegaram ao Caquetá-Putumayo:

It was certainly no news to find soldiers, paramilitaries, or guerrilla in, say,


the Putumayo, on the other side of the Andes stretching down into the
Amazon basin. Coca has been commercially cultivated there for export as
cocaine to the United States and Europe since 1980, and for at least three
decades that area has served intermittently as a base for the FARC guerrilla.
(Taussig, 2014: 132)
Da mesma maneira que em outras regiões do país, as atividades de narcotráfico foram
acompanhadas pela presença de outros agentes protagonistas do conflito armado colombiano.
Assim, embora o auge produtivo do Tempo da Máfia tenha sido em meados dos anos 1980121,
foi apenas depois desse período que a atuação de grupos de “autodefesa” passou a ser mais
frequente na região (ALDHU, 2004: 41)122. Já na década seguinte, em 1997, o grupo
paramilitar de extrema-direita AUC (Autodefensas Unidas de Colombia) conforma seu
Bloque Sur, fazendo da atuação no baixo Putumayo uma de suas prioridades123.

No mesmo ano, em sua campanha política, o futuro presidente colombiano Andrés


Pastrana (mandato 1998-2002) prometia aos eleitores a resolução do conflito armado entre
civis, exército, narcotraficantes, paramilitares e as guerrilhas FARC-EP (Fuerzas Armadas
Revolucionarias de Colombia - Ejército del Pueblo) e ELN (Ejército de Liberación Nacional).
Cria-se então, em outubro de 1998, a Zona de Distensión ou “El Caguán”, área
desmilitarizada de 42 mil quilômetros quadrados no departamento do Caquetá, a noroeste do
território dos Povos do Centro. Contudo, as tentativas de negociação pelo fim do conflito

121
Os Bora afirmam que 1984 foi o ano em que mais se lucrou na região com a produção de derivados da coca.
122
As primeiras mortes pelas mãos de paramilitares registradas na Amazônia colombiana datam do fim da
década de 1980, entre os Tikuna (Villa e Houghton, 2005).
123
Na organização guerrilheira, os “bloques” são conjuntos de “frentes” (destacamentos militares com algumas
dezenas de pessoas).

99
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

logo mostraram-se infrutíferas, de maneira que os acordos sobre a duração da Zona de


Distensión, cujo prazo proposto inicialmente era de apenas três meses, foram atualizados
repetidas vezes124. Com relativa liberdade de ação e a possibilidade de abertura de novas
rotas fluviais e terrestres, a disputa entre os paramilitares da AUC e os guerrilheiros das
FARC-EP pelo controle do território e das atividades ilegais para financiamento de suas
organizações se intensifica nas cercanias do município de Puerto Asís.

Mesmo que pontuais ações guerrilheiras tenham acontecido nos anos 1980 e 1990 na
região de ocupação bora125, é só após a consolidação da Zona de Distensión em 1998 que a
presença das FARC-EP se faz sentir de modo mais acentuado. Enquanto a Frente 14 do
Bloque Sur se estabeleceu permanentemente em Araracuara em 2001126, a Frente 63 atuou,
na mesma época, no Igaraparaná127.

Os Bora possuem lembranças vívidas desse tempo. Embora algumas poucas famílias
ainda estivessem envolvidas na produção de pasta e base de cocaína, não parece que tenha
sido muito frequente a cobrança, pela guerrilha, das usuais taxas de operação do narcotráfico
(“vacunas”). As principais recordações que os Bora possuem acerca desse período dizem
respeito às reuniões coletivas convocadas pelas FARC-EP nas malocas, à exigência de
trabalho forçado em obras comunitárias como a construção de portos e pequenas trilhas e,
acima de tudo, às ações de recrutamento de jovens.

Conheço a história das famílias de alguns jovens Bora que decidiram abandonar suas
comunidades e ingressar na luta armada. Se no passado relações de dívida e outras contendas
com narcos ceifaram a vida de alguns indígenas e marcaram o Tempo da Máfia pela
violência, o recrutamento guerrilheiro no Igaraparaná não parece ter se desenvolvido por
meio da coerção física. A maioria dos relatos a que tive acesso conta sobre processos de
convite, convencimento e até mesmo sedução de jovens. Assim, enquanto alguns rapazes se

124
Além da criação da Zona de Distensión, Pastrana coloca em prática o Plan Colombia, acordo bilateral entre
Colômbia e Estados Unidos cujos principais objetivos são a erradicação do narcotráfico, o fim do conflito
armado colombiano e o fortalecimento socioeconômico do país. A exposição dos interesses estratégicos e
militares envolvidos no acordo, ainda em vigor, extrapola os limites deste trabalho.
125
Os Bora relatam visitas esporádicas de pequenos grupos guerrilheiros nos anos 1980 e 1990, inclusive
pertencentes ao movimento M-19, extinto em 1989.
126
Uma análise minuciosa a respeito da percepção indígena desses acontecimentos pode ser conferida em Tobón
(2016).
127
O Bloque Sur contava à época com cerca de 1800 guerrilheiros divididos em treze Frentes e duas
Companhias Móveis.

100
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

interessaram pelas narrativas sobre a vida nos acampamentos e o combate com armas, outras
meninas ainda adolescentes apaixonaram-se por guerrilheiros mais velhos que, por meio de
presentes e promessas, as persuadiram a acompanhá-los até seus acampamentos128.

Essas ações de recrutamento estenderam-se pelo menos até 2002, quando o fracasso
evidente das negociações entre governo e forças revolucionárias culminou na assinatura do
decreto presidencial que exigia a retomada imediata do espaço desmilitarizado no Caquetá.
Tal decisão fez com que as regiões vizinhas à Zona de Distensión, onde desde anos anteriores
as FARC-EP vinham consolidando sua presença, se tornassem campos privilegiados de fuga.
La Chorrera, enquanto uma dessas regiões, é desde 2003 alvo de ocupação permanente do
exército nacional, que busca coibir ali a ação de guerrilheiros e narcotraficantes.

2.2.3. “Como você espera que eu compre meu sabão?”

O exército colombiano ocupa La Chorrera desde 2003 por meio de um destacamento


do Batalhão de Selva 26, cuja sede encontra-se em Leticia. A princípio instalado dentro do
povoado, às margens do rio Igaraparaná, atualmente o exército mantém uma base ao lado da
pista de pouso, localizada por sua vez na margem oposta a La Chorrera e acima da queda
d’água que dá nome ao povoado. Uma vez estabelecido na região, o destacamento se
incumbiu de tentar coibir a ação dos guerrilheiros que ainda transitavam por ali e por fim à
produção e ao comércio ilegal dos derivados da coca.

Segundo informações do governo colombiano e das Nações Unidas (UNODC, 2005,


2006), entre 2004 e 2006 um laboratório de fabricação de cloridrato de cocaína e outros
dezoito de produção de base de coca foram destruídos no departamento do Amazonas.
Embora os relatórios não indiquem a localização exata desses laboratórios, dados de 2004
revelam que vários deles encontravam-se próximo às margens dos rios Igaraparaná e
Caraparaná (UNOCD, 2005: 32). A partir de investigações e denúncias feitas por indígenas

128
Tobón (2016: 121) afirma que trinta indígenas na região de Araracuara foram recrutados pelas FARC-EP
entre 1998 e 2012. O autor apresenta ainda uma análise (idem: 206 – 210) acerca das motivações dos jovens
para ingressarem na guerrilha. Sobre as ações de recrutamento em La Chorrera, a Consejería Presidencial para
los Derechos Humanos afirma, em relatório publicado alguns anos mais tarde: “En La Chorrera, existen casos
de menores indígenas reclutados, que después murieron en combate o desertaron, y quienes fueron
supuestamente reclutados para apoyar los Interfrentes en el Caguán” (Consejería Presidencial para los Derechos
Humanos, 2007: 10).

101
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

incorporados ao quadro de efetivos do exército, constitui-se um GME (Grupo Móvil de


Erradicación) que deflagrou, em 2005, uma operação no território bora.

Os Bora contam que, num dia aparentemente comum, ouviram a aproximação rápida
de diversas voadeiras de onde saltaram vários soldados. Eles buscavam capturar um indígena
que, apesar de não ser originário da região, mantinha no território pequenos laboratórios de
produção de pasta e base de coca. Para sua sorte, o homem não se encontrava no lugar naquele
dia, tendo deixado seu negócio sob os cuidados de outras pessoas. Os militares, a princípio,
buscaram intimidar os indígenas: queriam saber detalhes sobre os laboratórios, sobre o
armazenamento de insumos e sobre as rotas de comercialização – muito embora tivessem
ciência de que os anos de intensa produção de cocaína na região já haviam ficado para trás.
Ainda assustados com a abordagem, os Bora ouviram que seriam obrigados a percorrer
longas distâncias mata adentro carregando a enorme quantidade de cimento e combustíveis
que mantinham no local. Pouco depois, o comandante da operação, que apenas havia
aportado na comunidade, buscou conversar com os indígenas.

Com medo, uma mulher bora interpelou o militar, dizendo que os brancos haviam
trazido sua família da mata há décadas atrás e, no internato dos padres, eles haviam aprendido
a viver dependentes do dinheiro e das mercadorias. Contudo, o governo nunca havia olhado
de perto para suas necessidades ou criado condições para que pudessem suprir a demanda
que todos ali possuíam: roupas, instrumentos de trabalho, munição, combustível, etc. Diante
disso, ela lhe perguntou: “como você espera que eu compre meu sabão?”. O comandante
respondeu que compreendia as queixas da mulher e as considerava justas, afinal de contas,
sob sua ótica, os indígenas faziam parte de um sistema de exploração cujos beneficiários
maiores seriam os guerrilheiros e os narcos. Porém, deixou claro que cumpria ordens
superiores e que a produção de ilícitos deveria ser descontinuada de uma vez por todas. Disse
ainda que mesmo que naquele momento não tivesse a intenção de responsabilizar
criminalmente os indígenas, ele o faria caso os envolvidos seguissem a produzir pasta e base
de cocaína. Ao longe, os Bora escutaram o estrondo dos explosivos que destruíram os últimos
laboratórios da região. Ainda no mesmo dia, os militares retornaram à base em La Chorrera,
mas não sem antes descartar todos os insumos que encontraram.

102
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

Apesar do narcotráfico ter sido extinguido na região, não é possível afirmar o mesmo
em relação à presença guerrilheira. Embora a ocupação militar de localidades como La
Chorrera, Araracuara e El Encanto tenha desmobilizado destacamentos como a Frente 63,
acampamentos das FARC-EP relacionados a tal Frente mantiveram-se ativos em regiões de
difícil acesso na floresta. É o que afirma o governo colombiano, em 2007129:

Se estima que en la zona, todavía se encuentran alrededor de 170 hombres,


al mando de alias Orlando Porcelana, actuando esporádicamente en
Araracuara, La Chorrera, El Encanto, así como en La Victoria y Mirití
Paraná y con una presencia importante en el departamento de Caquetá, a lo
largo del río Apaporis. (Consejería Presidencial para los Derechos
Humanos, 2007: 7)
Cheguei pela primeira vez a La Chorrera pouco menos de um ano após o último
confronto entre militares e guerrilheiros na região. Numa manhã de maio de 2014, alguns
membros da Frente 63, sob o comando de Octavio Ortiz Ramírez (codinome “Wilmer El
Burro”), atacaram militares em ronda próximos à ponte que liga a pista de pouso à
comunidade. A operação resultou na morte de quatro militares e seis guerrilheiros.
Felizmente, não houve nenhuma baixa entre os indígenas, que chegaram apenas a escutar o
som dos disparos e ver os vestígios dos explosivos usados.

Apesar de não ter havido outro confronto desde então, os rumores da presença
guerrilheira na região nunca cessaram130. A partir de 2016 e da assinatura dos Acuerdos de
La Habana, conjunto de pactos firmados entre o governo nacional e as FARC-EP com o
intuito de pôr fim ao conflito armado, intensificaram-se as evidências de que células
guerrilheiras não-desmobilizadas ou grupos insurgentes têm rondado La Chorrera131. Por
outro lado, existem ainda alguns ex-guerrilheiros oriundos dos Povos do Centro que,
desmobilizados em acampamentos humanitários, aguardam autorização para retornarem à
vida civil em suas comunidades132.

129
Em 2004, indígenas falantes de línguas Muinane e Bora na Colômbia foram classificados no espectro
“afectación alta” em relação ao Índice Simples de Afectación de Derechos Humanos (ISADH). No Índice de
Riesgo de Pueblos Indígenas de la Amazonia Colombiana (IRPIAC), o resultado (categoria “riesgo muy alto”)
era ainda pior (ALDHU, 2004: 80 – 83).
130
Pereira (2012) aponta como seu trabalho de campo também foi marcado por boatos desse tipo.
131
É importante salientar que o governo de Juan Manuel Santos (2010-2018) não foi capaz de consolidar o
acordo de paz com o Ejército de Liberación Nacional (ELN), atualmente o maior grupo guerrilheiro em
operação no país.
132
Tais acampamentos são chamados Zonas Veredales Transitorias de Normalización, ou ZVTN, e são
supervisionados pela Organização das Nações Unidas. A maior parte dos ex-guerrilheiros de origem amazônica
encontram-se na ZVTN de La Montañita, próximo ao município homônimo, no departamento do Caquetá.

103
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

Se o futuro dos Bora e dos demais povos indígenas da região frente aos novos rumos
do (ex-)conflito armado colombiano ainda é tema incerto, o período conhecido como Tempo
da Máfia parece ter ficado definitivamente para trás. Antes de abandoná-lo, porém,
permitam-me chamar a atenção para duas transformações operadas nessa época. Por um lado,
o envolvimento dos indígenas com os mafiosos fez com que os Bora conhecessem outros
tipos de violência e dependência. Além de viverem sob o julgo de novos patrões e de suas
formas de intimidação, diversos Bora enfrentaram o problema do vício do consumo da pasta
de coca. Alguns, ao fumarem a substância na forma de pequenos cristais, tornaram-se
rapidamente dependentes. Foi necessário, nesses casos, o tratamento continuado feito por
alguns xamãs especialistas da região133.

Por outro lado, o ingresso rápido de dinheiro e de produtos como motores de popa,
geradores de energia, motosserras, etc., fizeram com que os Bora se inserissem de outra
forma na rede de relações regional. Por exemplo, a capacidade de abrir grandes roças e
produzir alimentos em abundância contribuiu para a realização do antigo anseio de retomar
práticas rituais interrompidas após o genocídio caucheiro134. Além disso, envolveram-se de
forma mais ativa no movimento indígena nacional e no mundo acadêmico das universidades,
ocupando ainda lugares de liderança em secretarias e órgãos ministeriais relacionados às
questões indígenas. A ocupação de tais espaços só foi possível graças à presença mais intensa
dos indígenas nas cidades de Leticia, Bogotá e Medellín, onde por meio dos recursos obtidos
no Tempo da Máfia puderam aprofundar seus estudos e sua participação em espaços
institucionais antes desconhecidos. A presença dos Bora nesses novos lugares conecta-se
também com outro movimento iniciado, ainda nos anos 1980, na região do Caquetá-
Putumayo. Vejamos, por fim, como algumas das relações construídas à época foram as bases
da bonanza que segue em vigor nos dias de hoje.

133
A maioria dos pacientes foi curada por duas mulheres especialistas que, após a ingestão de yagé (ayahuasca)
e suco de abacaxi, entoavam orações específicas para a cura dessa dependência.
134
Conheceremos o tema mais a fundo no capítulo 7, quando tratarei da retomada dos rituais.

104
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

2.4. A bonanza dos Projetos

Para compreender o tempo da bonanza dos projetos no médio Caquetá-Putumayo, é


necessário recuar algumas décadas135. Um ano antes da ratificação do Tratado Salomón-
Lozano em 1927 (e, portanto, do domínio permanente do Estado colombiano sobre a região),
Julio Arana resolveu afiançar a operacionalidade de seus negócios. Por meio de acordos
legais, o caucheiro garantiu que seria indenizado pelo governo inimigo caso a região de seis
mil hectares sob seu domínio fosse anexada à Colômbia. Assim, após o conflito colombo-
peruano, o Banco Agrícola Hipotecário, órgão do governo colombiano, adquire de Arana os
direitos territoriais dessa área por duzentos mil dólares, mas liquida na ocasião somente uma
pequena parte desse valor. A dívida é paga aos descendentes de Julio Arana apenas quarenta
e cinco anos depois, em 1984, quando o banco estatal já havia se transformado na Caja de
Crédito Agrario Industrial y Minero, ou simplesmente Caja Agraria.

Concomitantemente, despontavam na Colômbia e na América do Sul as primeiras


organizações indígenas pan-regionais (ONIC136 e COICA137), por meio das quais os Povos
do Centro participavam pela primeira vez de encontros e debates multiétnicos de articulação.
Apesar disso, não possuíam a mínima ideia dos trâmites fundiários em curso acerca do
território que ocupavam até que, em 1985, a Caja Agraria lança seu “Plan de Desarrollo”,
projeto com investimento de dois milhões de dólares cujo objetivo era explorar
comercialmente uma área de cerca de oitocentos hectares próximo à antiga sede da Casa
Arana.

Os indígenas rapidamente organizaram-se, lançando mão do auxílio prestado pelas


recém-criadas associações regionais e por algumas ONGs que, na mesma época, começam a
trabalhar na região. A pressão surtiu efeito e, em 1988, o governo colombiano institui o
Resguardo Indigena Predio Putumayo, com quase seis milhões de hectares na área de
interflúvio do médio Caquetá-Putumayo138. Pouco mais tarde, em 1991, promulga-se a nova

135
Boas sínteses do processo de regularização fundiária do Resguardo Indigena Predio Putumayo que
apresentarei a seguir podem ser encontradas em Echeverri (1997, 2013) e Pereira (2012). Análises sobre o
envolvimento de ONGs e pesquisadores nesse e em outros casos são apresentadas por Pineda Camacho (2011).
136
Organización Nacional Indigena de Colombia, fundada em 1982.
137
Coordinadora de las Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica, fundada em 1984.
138
A situação fundiária, contudo, é regularizada de forma definitiva apenas em 1993, quando a Caja Agraria
deixa de ter direito de posse e exploração dos oitocentos hectares envolvidos na implantação de seu Plan de
Desarrollo.

105
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

Constituición Política de Colombia, carta magna da república na qual, pela primeira vez, os
territórios indígenas são reconhecidos como entidades territoriais:

Artículo 286. Son entidades territoriales los departamentos, los distritos,


los municipios y los territorios indígenas.

La ley podrá darles el carácter de entidades territoriales a las regiones y


provincias que se constituyan en los términos de la Constitución y de la ley.

Artículo 287. Las entidades territoriales gozan de autonomía para la gestión


de sus intereses, y dentro de los límites de la Constitución y la ley. En tal
virtud tendrán los siguientes derechos:

1. Gobernarse por autoridades propias.


2. Ejercer las competencias que les correspondan.
3. Administrar los recursos y establecer los tributos necesarios para el
cumplimiento de sus funciones.
4. Participar en las rentas nacionales.
(Colombia, 1991: art. 286 y 287, grifos originais)
A partir de então, as entidades territoriais indígenas (ou ETI’s) conformam-se como
figuras político-administrativas especiais:

Las ETI’s (...) reconocen a los indígenas el gobierno de sus territorios por
parte de sus autoridades, y a su vez, les permiten definir jurisdicciones
territoriales equiparables a las entidades existentes – municipios o
departamentos –, de modo que puedan gozar de plena autonomía en la
gestión de sus intereses, la administración de los recursos, el
establecimiento de tributos para el cumplimiento de sus funciones y la plena
participación en las rentas nacionales. (Rivera e Gómez, 2006: 254)
Nota-se que a partir de então os territórios indígenas, na forma dos resguardos, obtém
o direito à “plena participação nas rendas nacionais”. Dois anos mais tarde, a partir da Ley
60 de Agosto de 1993, as formas dessa participação tornam-se mais claras:

ARTICULO 25. Participación de los Resguardos Indígenas. Los resguardos


indígenas (...) recibirán una participación igual a la transferencia per
percápita nacional, multiplicada por la población indígena que habite en el
respectivo resguardo. (...) Cuando los resguardos se erijan como Entidades
Territoriales Indígenas, sus autoridades recibirán y administrarán la
transferência.
A transferência de recursos dá-se por meio do Sistema General de Participaciones, ou
SGP. Nesse sistema, recursos nacionais são distribuídos, a partir de cálculos demográficos,
às entidades territoriais: municípios, departamentos, distritos e territórios indígenas. Fazendo
um paralelo com o caso brasileiro, é como se houvesse a transferência direta de recursos do
Governo Federal às Terras Indígenas, sem a necessidade de intermediação da FUNAI ou de
qualquer outro órgão. Na Colômbia, contudo, para que a transferência seja paga diretamente

106
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

aos indígenas é necessário que as comunidades se organizem em AATI’s, ou Asociaciones


de Autoridades Tradicionales Indigenas, entidades “de carácter público con jurisdicción
territorial definida” (Rivera e Gómez, 2006: 254). Em La Chorrera funda-se assim, em 1993,
a AZICATCH (Asociación Zonal Indígena de Consejos y de Autoridades Tradicionales de
La Chorrera), órgão que passa a ser o gestor legal do recurso advindo do Sistema General de
Participaciones139.

A nova configuração das relações entre Estado colombiano e povos indígenas a partir
da constituição de 1991 e das demandas do movimento indígena nacional são fundamentais
para que pensemos sobre a bonanza dos projetos. Durante meu trabalho de campo, diversas
foram as vezes em que acompanhei a viagem de famílias inteiras a La Chorrera para buscar
o recurso que chamam simplesmente de transferencia. Outras vezes, presenciei os rumores
temerosos de que a transferencia seria descontinuada naquele ano em razão do
descumprimento das exigências do DNP (Departamento Nacional de Planeación). Isso
ocorria porque uma das particularidades desse recurso é que sua liberação está condicionada
à proposta e execução de “projetos” que visem melhorar a qualidade de vida dos resguardos
e que, ao mesmo tempo, estejam previstos em seus respectivos planes de vida140:

Los recursos de la participación asignados a los resguardos indígenas


deberán destinarse a satisfacer las necesidades básicas de salud incluyendo
la afiliación al Régimen Subsidiado, educación preescolar, básica primaria
y media, agua potable, vivienda y desarrollo agropecuario de la población
indígena. En todo caso, siempre que la Nación realice inversiones en
beneficio de la población indígena de dichos resguardos, las autoridades
indígenas dispondrán parte de estos recursos para cofinanciar dichos
proyectos. (Ley 715 de 2001, Título V, Artículo 83).
No caso dos Bora, dificuldades anteriormente enfrentadas no campo da segurança
alimentar (desnutrição infantil e consumo exacerbado de alimentos industrializados) fizeram
com que os projetos da transferencia se destinassem à abertura e manutenção de roçados.
Dessa forma, por meio da comprovação anual de que mantém ao menos uma roça de cerca
de um hectare, cada família no Igaraparaná recebe sua parcela da transferencia que chega à
associação local141. É a partir dessas novas formas de ingressos de recursos, presentes mais

139
Pouco depois, em 1995, funda-se a OPIAC (Organización Nacional de los Pueblos Indígenas de la Amazonia
Colombiana), órgão com importante participação dos Povos do Centro.
140
Para uma análise sobre a figura dos planes de vida na Amazônia colombiana, ver Pereira (2012).
141
Famílias com crianças pequenas e idosos recebem também um pequeno auxílio financeiro bimensal vindos
de outros programas de transferência de renda.

107
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

intensamente em suas vidas a partir dos anos 2000, que os Bora com quem trabalho afirmam
que atualmente eles vivem a bonanza dos projetos. A transferencia, apesar de ser central para
que se compreenda esse período, está longe de ser a única maneira por meio da qual
experimenta-se a bonanza.

Desde os anos 1980, organizações não-governamentais que atuam junto aos povos
indígenas aproximaram os Povos do Centro e a sociedade civil colombiana. São exemplos
de instituições que desenvolveram projetos na região nas últimas décadas: a Fundación
Puerto Rastrojo, a Gaia Amazonas, a Fundación Caminos de Identidad (FUCAI), o Instituto
Amazónico de Investigaciones Científicas – SINCHI, a Fundación Etnollano e, mais
recentemente, a WWF Colombia. Em geral, por meio de convênios com a associação
indígena, tais instituições organizaram encontros, oficinas, capacitações e publicações a
respeito de temas como gestão territorial e ambiental, educação diferenciada, “governo
próprio”, etnobiodiversidade e segurança alimentar. Desde alguns anos, crescem
exponencialmente as iniciativas voltadas à igualdade de gênero, ao combate à violência
contra a mulher, às mudanças climáticas e à implantação de projetos de REDD+142. Embora
vários desses projetos sejam alvos de críticas, pois muitas vezes sua concepção inicial não
conta com a participação indígena, eles representam para as comunidades fonte significativa
de renda, ainda que os ingressos sejam intermitentes143. Além disso, o começo das atividades
da Universidad Nacional de Colombia em Leticia em 1989 fez com os Povos do Centro
entrassem em contato com diversos pesquisadores (em especial biólogos, antropólogos e
linguistas) cujos trabalhos de assistência de pesquisa rendem aos indígenas pagamentos em
produtos ou dinheiro. Mais recentemente, o Ministerio de Cultura colombiano passou a
apoiar projetos de encontros multicomunitários e de realização de rituais, garantindo
pequenos pagamentos em dinheiro para os organizadores, além de combustível e alimentação
para os convidados.

142
Reducing emissions from deforestation and forest degradation and the role of conservation, sustainable
management of forests and enhancement of forest carbon stocks in developing countries. Para acompanhar o
andamento do projeto na Amazônia Colombiana, ver informações em
http://www.wwf.org.co/sala_redaccion/noticias/ (último acesso em 18/01/2019).
143
Para uma análise mais aprofundada acerca dos “projetos” entre os Povos do Centro, ver Micarelli (2003,
2015a).

108
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

Ao mesmo tempo, a demanda das autoridades locais para que não haja não-indígenas
trabalhando em cargos públicos em seu território faz com que uma vasta gama de postos seja
ocupada: professores de ensino básico e secundário; técnicos de enfermagem; agentes
comunitários de saúde e vigilância sanitária; cozinheiras, zeladores e administradores das
escolas e do pequeno hospital de La Chorrera e agentes locais do Instituto Colombiano de
Bienestar Familiar (ICBF). Existem, ainda, as importantes figuras do corregidor e dos
guardas indígenas.

La Chorrera é um dos vinte corregimientos departamentales da Colômbia, núcleos


populacionais diferenciados que, em razão da escassez populacional, não gozam do caráter
de município. Por sua excepcionalidade, os corregidores (isto é, os dirigentes de tais
corregimientos) não são escolhidos por meio do voto, mas sim por indicação do
departamento. Eles são responsáveis por uma série de trânsitos burocráticos, como o registro
civil da população e as certidões de casamento e de óbito. Além disso, no caso de La
Chorrera, mantém constante diálogo com o destacamento militar e são responsáveis pela
manutenção do bem-estar do povoado no caso de brigas familiares e outros conflitos.

Os guardas indígenas, nesse sentido, atuam junto ao corregidor na resolução de


contendas. Existe em La Chorrera uma guarda indígena uniformizada e armada com
cassetetes de madeira que faz rondas, registra a chegada e saída de passageiros na pista de
pouso local e, se necessário, intervêm em conflitos como brigas, violência doméstica e abuso
de bebidas alcoólicas. As pessoas envolvidas nos casos considerados mais graves são
encaminhadas ao calabozo, pequena construção de alvenaria sem janelas no centro do
povoado, onde as penalidades aplicadas geralmente não ultrapassam os três dias de
reclusão144.

Finalmente, com a chegada de tantos agentes e recursos, são muitos os indígenas


que junto a suas casas em La Chorrera ou nas comunidades ao longo do Igaraparaná mantêm
pequenos comércios onde vendem ou trocam a varejo produtos (mantimentos, combustível,
roupas, munições, etc.) que compram por atacado dos regatões ou encomendam em voos de
carga que chegam ao menos uma vez por mês de San José de Guaviare, município

144
Eventos como homicídios costumam envolver o acionamento das autoridades não-indígenas de Leticia.

109
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

colombiano à oeste, na zona de transição entre a floresta tropical e a savana (llanos


orientales). Assim, nos dias de hoje, é difícil encontrar uma família que viva no resguardo e
não se beneficie economicamente dessa bonanza que, diferentemente das anteriores, não gira
em torno da valorização de uma única mercadoria. No Caquetá-Putmayo atual os “projetos”
são produtos genéricos e de materialidade muitas vezes imprecisa tanto para os indígenas
quanto para seus proponentes ou executores estrangeiros. Ainda assim, são bens altamente
desejados, pois no geral trazem consigo, para ambos os envolvidos, a entrada de recursos
financeiros.

Apesar disso, os Bora são extremamente cautelosos com a implantação de novas


iniciativas desse tipo em seu território. Segundo me contaram, já viveram experiências
negativas suficientes com o mundo do Oriente para compreender que, em relação a ele, é
necessário estar sempre atento, escutar a opinião dos mais velhos e tomar as decisões
coletivamente. É o que diz também o poema que abre o Plan de Vida de los Hijos del Tabaco,
la Coca Y la Yuca Dulce y Plan De Abundancia Zona Chorrera (2004 – 2008), elaborado
pela Asociación Zonal Indígena de Consejos y de Autoridades Tradicionales de La Chorrera:

Allí fue donde ellos miraron


Del espíritu de la ilusión
Aparecía el hombre blanco,
aparecía la ambición,
aparecía la esclavitud y la explotación.

Aparecían muchas cosas,


aparecía la televisión,
la radio... el computador.

Aparecían los proyectos,


las instituciones, los investigadores...

Aparecían muchas cosas bonitas


y su corazón se dormía,
el pensamiento se dañaba
y el alma se confundía.

Por eso debemos estar alerta.

(AZICATCH, 2004: 4)

Observei muitas vezes como os Bora cultivam a disposição de se manterem atentos e


reflexivos e de valorizarem tanto os espaços de discussão coletiva quanto a voz dos donos de
maloca – os mesmos que, sentados em seus bancos de chefia, distribuem a todos os presentes

110
Capítulo 2 – A vida depois do caucho

no mambeadero as palavras, o tabaco e a coca. Na penumbra e no frio da noite que avançava,


ouvi abuelos e jovens discutindo sobre os rumos de questões que iam desde uma pequena
contenda familiar até conflitos internacionais, guerras e embates diplomáticos entre países
distantes e desconhecidos. Nesses espaços, eram incomuns os dias em que a discussão não
passava pelo tema das relações deles mesmos com o mundo do Oriente. Em meio às
recordações sobre as diversas bonanzas que busquei apresentar ao longo desse capítulo, pude
conhecer aos poucos os variados modos pelos quais os Bora, diante dos duros cenários de
destruição aqui expostos, costuraram seu Amanhecer.

111
Introdução à Parte II

O Amanhecer

Au-delà de la question démographique, comment un ensemble


culturel récupère-t-il la faculté de se reconstruire en tant que
groupe constitué ? Cela se fait-il par la mémoire des massacres
ou par leur oubli ? (...) comment les structures sociales peuvent-
elles survivre à une telle désagrégation ? (Karadimas, 2014: 335)

112
Introdução à Parte II - O Amanhecer

II.1. Um estranho descompasso

Acabamos de ver, ao longo de toda a Parte I, como os Bora classificam ou


compartimentam o período desde o contato mais intenso com os não-indígenas até os dias
de hoje usando as noções de bonanzas e Tempos. Espero que tenha ficado claro ainda que
esses períodos são delineados, no mais das vezes, a partir do lugar que determinados
produtos possuíram na intermediação das relações com os não-indígenas. Se desde pelo
menos o século XVIII os Povos do Centro conheciam as ferramentas industrializadas e
outros bens como panelas, armas de fogo e tecidos (reunidos sob a figura do machado de
metal enquanto instrumento mais impactante na mudança do modo de vida da época), o
século XX foi marcado pela incidência de relações mediadas por uma sucessão de
produtos: caucho, peles de animais selvagens, coca e, finalmente, projetos. O esquema
abaixo busca apresentar, com uma datação aproximada, as informações apresentadas até
aqui. Não custa reforçar que, naturalmente, as datas utilizadas cumprem um papel
elucidativo; é dizer, que as transições entre as mais diversas bonanzas e Tempos, como
espero já estar claro, foram graduais e mais marcados por processos que se desenrolaram
lentamente do que por eventos irruptivos.

Figura 4 – Os Tempos e as bonanzas

Nas relações em que se envolveram ao longo desse período, muitas foram as


ocasiões nas quais os Bora se viram, quando não em uma situação de subordinação brutal
(como foi o caso da hecatombe caucheira), em manifesta desvantagem econômica em
relação àqueles que atuavam como seus patrões. No que se seguirá, pretendo demonstrar
como o punto de quiebre145 – marcado por um período de latência das bonanzas após o
final das operações da Casa Arana no Caquetá-Putumayo e pela ulterior reativação das

145
Ver cap. 2.
113
Introdução à Parte II - O Amanhecer

relações comerciais com o exterior na forma da compra e venda de novos produtos – foi
parte de um processo mais abrangente levado a cabo principalmente na segunda metade
do século XX e no qual, por meio de um esforço de “reorganização social”, os Bora
produziram uma série de transformações a partir da situação em que se encontravam.

A situação dos Povos do Centro no pós-caucho foi objeto privilegiado de


reflexão de praticamente todos os autores que trabalharam na região nas últimas décadas.
Na verdade, qualquer pessoa que tenha lido algo da volumosa documentação sobre o
impacto da extração de gomas no Caquetá-Putumayo, ao entrar em contato com essas
populações, se faria a mesma e inescapável pergunta: como esses povos conseguiram
sobreviver e reerguer-se após a radical queda demográfica, o desmantelamento de suas
unidades sociopolíticas, a desestruturação da vida ritual, a perda de conhecimento
xamânico, a interrupção de importantes práticas agrícolas, etc.?

Essas questões parecem ser tão vastas quanto são suas possíveis respostas.
Karadimas, por exemplo, argumenta que foi por meio da obliteração da memória dos
mortos enquanto sujeitos individuais que os Miraña no rio Caquetá foram capazes de
recuperar-se do desmantelamento de suas estruturas sociais. Assim, mais que
simplesmente esquecer, desagregar as memórias dos sujeitos (2014: 350) e reforçar o
anonimato dos milhares de assassinados pelos caucheiros teria sido o modo miraña de
fazer com que a fixação (à primeira vista inevitável) na posição de vítimas ou
descendentes das vítimas do genocídio caucheiro não os definissem categórica e
permanentemente. A atenção aos dispositivos da memória enquanto mecanismos
coletivos para a reorganização social no pós-caucho está presente de maneira bastante
importante também no trabalho de Echeverri (2010, 2013). Ao acompanhar a empreitada
de um grupo de jovens e anciãos Muinane que, nos anos 1990, visitaram as antigas
estações caucheiras nas quais seus antepassados haviam sido mortos e torturados, o autor
busca analisar de que maneira “los descendientes de los grupos que fueron esclavizados
bajo el régimen de la Casa Arana negocian con la memoria del tempo del caucho” (2013:
471). Seu argumento é que tal negociação passou por gestar e dar sentido a uma potente
oposição entre os “cestos de vida” e os “cestos das trevas”.

114
Introdução à Parte II - O Amanhecer

II.1.2. Cestos de vida: um mundo frio e doce

Os cestos ou jamanxis (esp.: canastos – bora: úverújtsi) são usados de forma


metafórica em toda a região do Caquetá-Putumayo para referir-se ao conhecimento que
alguém possui146. É comum, por exemplo, que ao não saber os detalhes sobre determinado
mito, um abuelo147 responda “eso no está en mi canasto”. Assim, os Muinane com quem
Echeverri trabalhou lhe diziam que as narrativas do período do caucho faziam parte de
um conjunto de elementos presentes apenas nos “cestos das trevas”. Além das memórias
do tempo da Casa Arana, também estão dentro desses mesmos cestos grande parte das
narrativas míticas e as histórias sobre o tempo em que os grupos da região praticavam a
antropofagia e a guerra. Cada clã de cada povo domina, geralmente por meio de seus
chefes ou homens prestigiosos (ver caps. 3 e 4), um conjunto dessas histórias. O
conhecimento presente nesses cestos caracteriza-se por ser secreto e perigoso e, por essa
razão, é acionado apenas pontualmente nos contextos de xamanismo, seja para atacar ou
defender-se (Echeverri, 2013: 480), permanecendo na maior parte do tempo guardado e
oculto a fim de que o mundo não seja contaminado pela guerra e pela destruição.

Porém, ao contrário do que ocorre com os “cestos das trevas”, os saberes


contidos nos “cestos de vida” são públicos e estão presentes cotidianamente nos
mambeaderos. Eles dizem sobre a unificação e a convivência tranquila dos Povos do
Centro em detrimento de suas antigas práticas de guerra, sobre a ética do trabalho e a
criação dos filhos, sobre a produção adequada de comida, de mambe e de ambil e sobre a
celebração apropriada de rituais. Em suma, é um discurso pacífico que tem como objetivo
a difusão dos bons conselhos (esp: consejo148 – bora: uwááboju) e a construção de pessoas
com corpos e pensamentos saudáveis e serenos em oposição ao estado indesejado de
doença e violência.

146
A mesma referência aos “cestos das trevas” é encontrada na narrativa de Ángel Ortiz (Murui do
Caraparaná), quem apresenta uma definição (Pereira, 2005: 211 - 233) bastante próxima àquela dos
Muinane em sua relação com Echeverri. Ver, além disso, Micarelli (2003).
147
Ainda que, como veremos, o termo de parentesco para avô (esp: abuelo – bora: táhdiu (ref.); táhdí
(voc.)) é extensivo a todos os parentes de G+2, a menos que seja indicado, o termo abuelo aqui aparece, tal
como os Bora utilizam em seu cotidiano, muito mais no sentido de “ancião” (esp: anciano – bora: keéme)
que de parente consanguíneo.
148
Dizer que alguém “tiene consejo” é o mesmo que afirmar que é uma pessoa que se comporta de maneira
própria e desejável.
115
Introdução à Parte II - O Amanhecer

Em sua tese de doutorado, Echeverri (1997) busca explorar de que forma os


Murui-Muina e os demais Povos do Centro mobilizaram-se para que o conhecimento
contido em seus “cestos de vida” fosse utilizado a fim de “curar” um passado de terror149.
Seu principal interlocutor, Kinerai (em espanhol, Hipólito Candre), narra seu processo de
formação enquanto xamã e as bases que guiavam suas ações de cura e benzimento.
Echeverri, cujo interesse inicial era realizar uma investigação acerca da memória histórica
que os Povos do Centro possuíam sobre o genocídio do caucho (2015: 202), se dá conta,
então, que ao aparente desinteresse e superficialidade das narrativas históricas somava-se
uma ênfase indígena em “un discurso ético y abstracto, que trasciende los discursos
étnicos” (idem: 15). Esse tipo de narrativa (rafue, em Murui-Muina) abrange

los principales temas de la identidad: las fronteras de la cultura (gente


propia/no-propia), la relación entre cultura y naturaleza, la explicación
de las enfermedades, la interpretación de los sueños, las reglas del
comportamiento adecuado (idem, ibidem).

Echeverri argumenta que foi a partir de rafues como as de Kinerai que essas
populações não só deram a conhecer as memórias sobre o tempo do caucho, como
também fabricaram “una nueva ideologia supraétnica” (idem :112). Na interpretação do
autor, foi, portanto, por meio da atuação de curandeiros e de conhecedores dessa arte
verbal, própria aos Povos do Centro e ao espaço dos mambeaderos, que teria emergido a
possibilidade de uma reconfiguração da memória coletiva e das práticas sociais no pós-
caucho.

Como elucidarei ao longo deste trabalho, essas narrativas descrevem, muitas


vezes por meio de metáforas e outras figuras de linguagem, o processo de passagem da
situação de violência e hostilidade que imperava até o começo do século XX a novos
modos de vida, cujos valores se expressam hoje, por exemplo, na ideia de fortalecimento
de uma “comunidade moral” (idem :70); no uso do tabaco e outras plantas cultivadas
enquanto recursos para a cura xamânica sem negociação com os agentes causadores das
doenças; no comportamento sexual adequado de homens e mulheres; na ênfase na
abundância de alimentos e substâncias cultivados nas roças, dentre outros. Uma análise
atenta dos temas mais recorrentes nesse tipo de discurso coloca em relevo um aspecto
constitutivo dos Povos do Centro nos dias de hoje. A saber, a cuidadosa evitação do

149
É notável aqui a influência de Taussig (1987) e suas considerações sobre a “cultura do terror” e os
processos nativos de cura.
116
Introdução à Parte II - O Amanhecer

conflito como forma privilegiada de relação tanto entre humanos quanto entre humanos
e não-humanos.

O trabalho de Pereira (2012) levanta diversas dessas questões. O antropólogo


trabalhou com o abuelo Murui Don Ángel Ortiz e, ao mesmo tempo em que fazia a
pesquisa para sua tese de doutorado, o auxiliou na elaboração do plan de vida da
comunidade de San Rafael150. Os planes de vida são documentos que, discutidos e
elaborados pelas próprias comunidades indígenas, versam sobre aspectos socioculturais
considerados relevantes e apresentam, em sua conclusão, espécies de guias das ações que
devem ser desenvolvidas no futuro. Os planes de vida são bastante comuns no movimento
indígena da Amazônia não-brasileira e são usados tanto internamente quanto por
eventuais parceiros estatais e não-estatais que trabalham com os povos que os
elaboram151. Dessa maneira, muito do que Ortiz relatava a Pereira tinha a ver com as
recomendações (ou conselhos) que ele desejava transmitir aos mais jovens e aos não-
indígenas que se interessassem pela comunidade de San Rafael. Sua narrativa, assim
como a de Don Hipólito Candre, interlocutor de Echeverri, está repleta de referências ao
discurso de mansidão e correto aconselhamento:

O coração (komeki) é o lugar de pensar, de esfriar os sentimentos e


pensamentos quentes, para então materializa-los, na boca, em Palavra.
O coração (...) é lugar de nascimento do tabaco, lugar onde, através do
tabaco, o pensamento é adoçado, transformando-se em Palavra que
Engendra, Palavra de Vida, Palavra de Conselho152. (Pereira, 2012:
132)

Em larga medida, o uso da noção de Palavra aqui é bastante similar àquele


empregado por Echeverri (2015) ao refletir sobre o conceito de rafue. Tal como para
Echeverri, Pereira sustenta que a Palavra de Vida, de Conselho ou “que Engendra” são
todas variações de um mesmo conjunto de saberes. Tais conhecimentos podem ser

150
Comunidade multiétnica no rio Caraparaná (afluente do Putumayo) importante no contexto do
Resguardo Predio Putumayo em razão do acesso a recursos como saúde e educação formal, além da maior
concentração de comerciantes indígenas e não-indígenas. Assemelha-se, nesse sentido, a comunidades
importantes no mesmo resguardo, como La Chorrera, Puerto Arica e Araracuara.
151
Os Bora participaram, na década de 2000, na elaboração do plan de vida “El Abuelo Tabaco: Plan de
vida y Ordenamiento de los Hijos del Tabaco, Coca y Yuca Dulce” da associação indígena do corregimiento
de La Chorrera (AZICATCH) com o apoio financeiro das ONGs FUCAI e CODEBA e do governo
colombiano por meio de edital do CORPOAMAZONIA.
152
Para uma análise sobre a noção de “coração” entre os Muinane, ver Londoño Sulkin, 2004: 28-30.
117
Introdução à Parte II - O Amanhecer

apreendidos por meio de alguns princípios norteadores da vida dos Povos do Centro que
versam

sobre todo esse processo que vêm do roçado para o mambeadero e vice-
versa, que perpassa o processamento técnico da coca em mambe e as
dinâmicas de disciplinarização de um certo corpus de conhecimentos
(práticos e teóricos) e condutas (...) [e que visa, finalmente] garantir a
reprodutibilidade do grupo, de sua organização social e cosmologia”
(Pereira, 2012:128).

É justamente a reprodução social por meio de fabricação de “pessoas


verdadeiras” o foco da monografia de Londoño Sulkin (2001, 2004) entre os Muinane no
médio Caquetá. O autor argumenta que os Muinane, em seus discursos, enfatizam que
vivem em um esforço constante para consolidar-se como “gente verdadeira”, fazendo
disso seu “projeto moral” (2004: xxvii). O que diferenciaria os Muinane (“gente
verdadeira”) dos animais (detentores de atitudes, pensamentos e emoções imorais) seria
um

estado de “frialidad” [que] incluye la salud corporal, la fecundidad y la


tranquilidad emocional/intelectual de los individuos; un estado de
interacción amorosa y responsable entre parientes y co-residentes; y,
por último, el carácter sano y propicio de las sustancias rituales, los
alimentos, el aire, la tierra, las aguas, y todo lo demás que rodea la
gente. “Enfriar” a los individuos de un agregado social, al agregado
mismo, a las sustancias y el entorno, es la responsabilidad moral de los
adultos muinane. (Londoño Sulkin, 2004: xxviii).

A oposição entre quente (esp: caliente – bora: állócó) e frio (esp: frío – bora:
dáíhcoó) é fundamental para que entendamos tanto os Povos do Centro quanto a
passagem de um estado de guerra para outro de paz. Diz-se que são pessoas quentes
aquelas que apresentam, em seu comportamento, em seus corpos ou em seus pensamentos
um conjunto de atitudes consideradas imorais e violentas. Por exemplo, a raiva, o conflito,
o comportamento sexual inadequado, a inveja e a soberba são mobilizados como
características daqueles que, por seu calor, assemelham-se ou aproximam-se dos animais
- seres quentes por excelência. Por outro lado, os humanos devem sempre buscar
estabilizar-se como pessoas frias, isto é, com atitudes, corpos e pensamentos que sejam
serenos e não-violentos, sem manifestações de raiva ou rancor e, ainda, sem grandes
alterações de humor. É incumbência de pessoas frias “adoçar”153 o comportamento ou as

153
A oposição entre doce e amargo geralmente acompanha aquela entre frio e quente. Assim, uma pessoa
fria é capaz de adoçar (esp.: endulzar - bora: imújtso) aqueles que estão a seu redor (isto é, transmitir-lhes
um estado frio de convivência pacífica). O amargor (esp.: amargor - bora: paápa), por sua vez, relaciona-
se a presença de pensamentos rancorosos e improdutivos, bem como à necessidade que tem as pessoas frias
118
Introdução à Parte II - O Amanhecer

palavras daqueles que se encontram em estado de calor. Dessa forma, frialdade e quentura
são características atribuídas não somente a pessoas, mas a substâncias, enunciados e
situações.

A consolidação de um estilo de vida frio é, para o Londoño Sulkin, uma “lucha


comunal, transgeracional y cíclica”, posta em prática por meio de um movimento
perpétuo de a) produzir “pessoas verdadeiras” moralmente corretas, b) fazer com que tais
pessoas consumam substâncias igualmente verdadeiras e frias e c) transformar
substâncias, pensamentos e emoções impróprios, de modo que sua parte quente seja
extraída. Outros autores que trabalharam com os Povos do Centro, como Urbina (1982)
e Griffiths (1998), vão na mesma direção de Echeverri, Pereira e Londoño Sulkin. Juntos,
eles colocam ênfase na centralidade de discursos que versam sobre um modo desejável
de convivialidade não-conflituosa e sobre a prática de formas moralmente corretas de se
estabelecer relações, nas quais o “esfriamento” de pessoas e substâncias são essenciais.
Portanto, não há dúvidas que a fala fria dos mambeaderos ocupa um lugar central na
produção da auto-apresentação dos Povos do Centro – e isso é válido tanto para a imagem
que esses povos passam para o exterior quanto para os discursos disseminados
internamente. Nesta tese, contudo, busco abordar, de forma mais direta, outros aspectos
da vida e da história desses povos – de modo que, muitas vezes, o conteúdo dessas
palavras frias e doces dos mambeaderos não estará no centro de minhas reflexões.

Em parte, isso se deve à minha própria condição de gênero. Conforme descrevi


na Introdução, eu, enquanto mulher não-mambeadora, tive um acesso deliberadamente
restrito ao espaço onde essas palavras eram mais disseminadas (seja porque optei por não
participar de forma plena de momentos exclusivamente masculinos, seja porque os
mesmos não me eram acessíveis). De outra parte, o ponto de partida desse trabalho foi o
descompasso que notei, mesmo antes de conhecer os Bora, entre as informações contidas
nas etnografias mais recentes feitas entre os Povos do Centro e aquelas apresentadas
(quase que invariavelmente por homens) nas primeiras décadas do século XX para essas
mesmas populações. Não desejo aqui, obviamente, contestar os trabalhos dos colegas que
me antecederam – mesmo porque meus dados estão basicamente em acordo com os seus.
Em vez disso, minha intenção é explorar a ideia de que se algo importante aconteceu a

de admoestar aqueles que se comportam inadequadamente. Para a oposição entre doce e amargo entre os
Matis, ver Erikson (2002) e a Conclusão deste trabalho.
119
Introdução à Parte II - O Amanhecer

esses povos ao longo do século XX, esse processo pode ser explorado a partir da maneira
bora de contar e interpretar a história. Assim, busco esquivar-me, mesmo quando faço
uso de fontes escritas ou “oficiais”, de entender tais eventos e processos desde uma
perspectiva que coloque os caucheiros peruanos ou quaisquer outros atores não-indígenas
como protagonistas. Para que sigamos a análise sobre esses modos nativos de classificar
o tempo, é necessário agora que recuemos tanto quanto nos é possível e voltemo-nos para
alguns dados disponíveis acerca do período anterior à chegada dos comerciantes de
escravos luso-brasileiros na região.

II.1.3. Cestos de trevas: guerra e violência

Até aqui, discorri um pouco sobre o conteúdo dos “cestos de vida” dos Povos do
Centro: relações pacíficas, corpos e palavras frias, alimentos inofensivos, etc. Vimos,
ainda, como os “cestros de trevas”, tampados após o período caucheiro, estavam repletos
de narrativas sobre o horror vivido nesse tempo. Entendemos ainda que, mais do que
apenas memórias do passado, tais cestos encontram-se repletos de relações e atitudes
quentes e daninhas que são igualmente rejeitadas hoje em dia pelos Povos do Centro.
Uma narrativa colhida por Wavrin, que realizou diversas viagens à Amazônia entre 1913
e 1937, parece ser um bom exemplo para que exploremos o teor do conteúdo dos “cestos
das trevas” para além das narrativas sobre o caucho. O autor parafraseia, em primeira
pessoa, informações sobre as práticas antropofágicas dos povos da região que lhe foram
fornecidas por uma velha senhora com quem ele esteve em uma de suas idas ao
Putumayo:

On mangeait le haut du buste et les jambés de ceux qu’on sacrifiait. On


jetait les pieds, parce que les tiques s’y logent, la tête était dépecée mais
on y laissait une touffe de cheveux afin de la porter en triomphe. Puis
les os de la tête, entièrement blanchis, étaient perche et en fin on le
suspendait au-dessus du manguaré. Les cuisses étaient le morceau de
prédilection. Après les danses, les mains, qui avaient été préalablement
fumées, étaient portées entre un homme et une femme. On les gardait
jusqu’à avoir obtenu de nouveaux trophées. Une main était alors
emmanchée sur une tige de bois qui lui servait de poignée. On s’en
servait solennellement pour puiser le cawana (boisson de fête). Les os
des jambes et des bras servaient à confectionner des flûtes pour les
danses, pour inviter les amis à venir manger la chair de l’ennemi, on
battait le manguaré (…). Quand le prisonnier était tué, on répandait son
sang sur la terre où l’on dansait. Les dents étaient perforées et enfilées
pour faire un collier (Wavrin, 1948 : 399)

120
Introdução à Parte II - O Amanhecer

Entrevemos, por meio dessa narrativa, que os Povos do Centro estavam


envolvidos em uma rede de relações guerreiras que se estendia, segundo meus
interlocutores atuais, desde o território dos Cubeo e Carijona, ao norte, até as áreas de
ocupação Yagua, mais ao sul154. As guerras intertribais no Caquetá-Putumayo estavam
relacionadas, como em outros contextos da América do Sul, à vingança de parentes
mortos e à captura de cativos do grupo inimigo, que por sua vez podiam ser ou inseridos
na vida social daqueles que os atacaram ou ser imediatamente mortos e consumidos no
ritual antropofágico155. O estado de guerra e vingança aparece na literatura disponível até
o começo do século XX como condição generalizada do modo de vida dos Povos do
Centro:

Death, from whatsoever cause, is invariably considered to be murder,


and as murder it has to be revenged on some suspected person or
persons. (...) Intertribal fighting is continual, and only some great
common danger, some threatened calamity of the gravest, might serve
to combine the tribes in a supreme effort for self-defence (Whiffen,
1915: 61-63)

Cumpre observar que apesar de ter escrito uma das obras mais completas sobre a
região nesse período, as condições de pesquisa de T. Whiffen no Caquetá-Putumayo são
um caso à parte. Por um lado, é conhecida a relação de proximidade do etnógrafo com a
Casa Arana, algo expresso ao longo de seu trabalho por meio de sua postura deliberada
de não informar sobre os abusos então em curso. Por outro, hoje sabemos que muitas das
informações apresentadas pelo autor foram recolhidas a partir de relatos de segunda mão
fornecidos por barbadenses como John Brown que, por trabalharem para a empresa,
dominavam relativamente bem vários idiomas nativos.

154
Informações adicionais podem ser encontradas nos capítulos 6 e 7 desse trabalho, onde abordo de forma
mais direta as práticas rituais bora. O ritual de antropofagia (Túmajtsi) será melhor explorado no item 6.10.
155
Segundo Farabee (1922: 147), os inimigos capturados nas incursões guerreiras eram mortos com lanças
ou machados de pedra. Tal informação condiz com a apresentada por Whiffen (1915: 119) de que o captor
derrubava o prisioneiro com uma lança na canela e em seguida cortava sua cabeça com uma lâmina.
Contudo, esse ultimo ponto (sobre a decaptação imediata da vítima) não está de acordo com informações
que apresentarei a seguir sobre a morte coletiva do inimigo. Para uma descrição das incursões de guerra e
captura de cativos, ver Karadimas (2001: 665-666).
121
Introdução à Parte II - O Amanhecer

Foto 15 – John Brown em La Chorrera, 1912 (Fonte: Chirif, Chaparro e Torroba, 2013: 100)

Assim, não podemos nos furtar de perceber que os dados de Whiffen não apenas
foram coletados em um cenário generalizado de violência dos caucheiros para com os
Povos do Centro, mas também que foram mediados por pessoas que, ainda que muitas
vezes contra sua vontade (como parece ter sido o caso de vários barbadenses), exerciam
sobre esses povos uma brutal agressividade. Não é certo supor, assim, que a antropofagia
e a guerra sejam o “ponto zero” da história da região ou mesmo estados mais “naturais”
dos modos de vida dos Povos do Centro em comparação às relações pacíficas e frias
ativamente cultivadas nos dias de hoje. Contudo, é notável também como a influência da
extrema violência colonial do começo do século XX nas relações de agressividade
internas aos Povos do Centro é apenas muito dificilmente mensurável. Interessa-nos,
antes, um aspecto que abordamos na Parte I quando compreendemos que, para esses
povos, o tipo de violência empregado pelos caucheiros era muito diferente daquele
presente nos rituais antropofágicos: enquanto os empregados da Casa Arana eram
canibais insaciáveis cujos assassinatos praticados destacavam-se por nada produzir, a
antropofagia dos Povos do Centro era uma máquina de atualizar e fabricar relações,
pessoas e, principalmente, troféus.

122
Introdução à Parte II - O Amanhecer

Nesse sentido, tanto a cabeça da vítima quanto seus dentes e alguns ossos eram
extraídos e tratados a fim de produzir uma série de artefatos que eram utilizados, pelo
matador e seu grupo, como troféus de guerra. Enquanto os crânios decompostos por
insetos, fungos e outros agentes naturais eram suspensos acima dos manguarés da maloca,
os colares feitos com os dentes dos inimigos eram usados por seus donos, bem com as
flautas de ossos tocadas durantes determinadas festas (ver Figuras 5 e 6)156. Karadimas
(1997) argumenta que o ritual antropofágico, mais que centrar-se apenas na cocção e no
consumo da carne do inimigo, tinha como sentido último a produção desses artefatos:
enquanto as cabeças fariam as vezes de um novo indivíduo nascido no seio do grupo, os
colares de dentes, usados apenas pelo matador, consolidariam a extração do potencial
devorador da vítima e sua transferência ao dono do colar157.

Mesmo após o abandono gradual da antropofagia no começo do século XX, os


colares de dentes humanos foram por um período substituídos por peças confeccionadas
com dentes de onça158. Geralmente utilizados por chefes ou xamãs, esses artefatos
também se relacionavam ao potencial devorador do inimigo – no caso, o jaguar:

Les dents du prisonnier opéraient, selon les Miraña, de façon identique


aux dents du jaguar actuellement pour le chaman. Celui qui possédait
les dents du prisonnier, possédait son potentiel de dévoration. Le gwášà
de l’ennemi était alors sous l’emprise de la volonté de celui qui avait
ôté les dents et les portait autour du cou. (Karadimas, 2001 : 686)

156
Há ainda outros troféus mais marginalmente citados na literatura como os colares de órgãos genitais
masculinos e as colheres feitas com as mãos dos inimigos. Sobre esse assunto, conferir também o item 6.10
desse trabalho.
157
A análise refinada do mesmo e sua relação com alguns mitos Miraña foram realizadas em Karadimas
(idem).
158
Embora os Bora não confeccionem mais tais colares, dizem que o faziam até um tempo relativamente
recente.
123
Introdução à Parte II - O Amanhecer

Figura 5 – Colares Bora de dentes de onça e flautas de ossos humanos


(Whiffen, 1915: 92)

124
Introdução à Parte II - O Amanhecer

Figura 6 – Colares de dentes humanos e de onça


(Whiffen, 1915: 82)

A relação entre jaguares e inimigos humanos parecia ser tão estreita que Whiffen
afirma que quando um xamã chegava à conclusão que determinadas onças (ou pessoas
que tivessem a capacidade de se transformar em onças) eram consideradas culpadas pela
morte ou agressão de membros de seu grupo, organizava-se uma incursão guerreira cujo
objetivo era a captura e consumo da carne desses felinos, nos mesmos moldes do ritual
antropofágico:

A big tribal hunt is organized, and if the quarry be secured a feast of


tiger-flesh follows, a feast of revenge, very similar in detail to the
anthropophagous orgies (…). At no other time does the Indian eat
jaguar meat. The tiger-skin becomes the property of the medicine-man,
whose magic has thus triumphed over the magic of a rival. (:232)

125
Introdução à Parte II - O Amanhecer

No começo do século XX, portanto, o prestígio de um chefe ou de um xamã


poderoso manifestava-se pelo potencial devorador concentrado em seus artefatos-troféus,
obtidos por meio da morte e consumo de seus inimigos. Se contrapusermos esta imagem
àquela dos chefes contemporâneos, apresentada pelos autores mais recentes, uma
pergunta logo se impõe: como povos tão marcados pela violência e pela guerra até há
algumas décadas passaram a enfatizar fortemente a paz, o bem viver e a “moralidade”
(Londoño Sulkin, 2001, 2004) enquanto modos privilegiados de relação e fabricação de
corpos, substâncias e pessoas? Indo mais além, por que o fizeram?

Foto 16 – Xamã bora com colar de dentes de jaguar (e o rifle do pesquisador...).


(Whiffen, 1915: frontispiece).

Essas são algumas das perguntas que moveram meus interesses de pesquisa
desde o primeiro contato que tive com a literatura sobre a região, de modo que isso é o
que denomino aqui como o “estranho descompasso” existente entre as fontes disponíveis.

126
Introdução à Parte II - O Amanhecer

Esse estranhamento, a bem dizer, é evidentemente meu, pois para os Bora com quem
trabalhei tais questões ou bem não se colocam ou bem possuem respostas óbvias.

Ao colocar-lhes a última questão (a saber, por que seus antepassados


abandonaram modos de vida violentos em detrimento de relações pacíficas e frias), a
resposta no geral era sempre parecida: “porque estávamos morrendo” ou “porque os
abuelos perceberam que os antigos não eram bons”. Reagindo a tais explicações, me
pareceu interessante buscar entender, mais dos que os motivos, a maneira por meio da
qual os Bora colocaram em prática tais transformações. Por isso, não tenho como objetivo
nesse trabalho explicar ou elencar as tantas razões que levaram os Bora a elaborarem
mudanças internas tão importantes e radicais; espero, contudo, ser capaz de expor com
algum nível de detalhe como eles o fizeram. É possível que a novidade deste trabalho em
relação aos anteriores resida no fato de que buscarei fazer isso não por meio da análise
privilegiada dos discursos morais e políticos do mambeadero ou das narrativas míticas,
mas a partir da exposição de um emaranhado de informações recolhidas em campo que
versam, principalmente, sobre o que poderíamos chamar (não sem simplificar bastante)
de vida ritual e organização social.

II.1.4. Os temidos dentes

Em uma de minhas viagens a campo, ao sair de La Chorrera, aconteceu algo


curioso. Daquela vez, eu partia acompanhada de membros da família com quem vivia no
Igaraparaná. Meu chefe e sua mulher iam a Leticia resolver problemas bancários e visitar
parentes e já havíamos combinado que ficaríamos todos na casa de uma amiga minha em
Tabatinga, no lado brasileiro da tríplice fronteira. Nós já estávamos preparados para ir
para a pista de pouso quando uma filha pequena de um homem que vivia próximo à nossa
maloca, marido de uma sobrinha do chefe, apareceu com alguns dentes de onça em uma
sacolinha. Ela levava o recado de seu pai159: ele pedia que o chefe vendesse aqueles dentes
em Leticia e lhe trouxesse, em troca, um smartphone. Meio sem jeito de dizer não à
menina, o chefe aceitou levar a encomenda. No momento de entrar no avião, contudo, ele
pediu que outro passageiro, um estudante não-indígena que visitava a região, levasse os

159
eZ2DH do chefe.
127
Introdução à Parte II - O Amanhecer

dentes em sua bagagem. Até aquele momento eu não havia entendido se se tratava ou não
do receio de que alguma autoridade do aeroporto em Leticia encontrasse a tal sacolinha
dentro de sua mala.

Em Tabatinga, porém, entendi que não era este o caso. Depois de termos feito a
“transferência” dos dentes na frente do aeroporto de Leticia – sem que ninguém a não ser
o tal portador da encomenda encostasse na sacola – ao chegar na casa em que ficaríamos
aqueles dias vivemos um impasse, pois não poderíamos permanecer no mesmo ambiente
que os dentes de onça. Tive então que buscar, num muro do terreno ao lado, alguns tijolos
cujos orifícios serviriam de esconderijo aos tais dentes enquanto estivéssemos na casa.
Não sabíamos onde ou para quem vender aquilo, nem tampouco se valeria o preço de um
smartphone. Os dias que se seguiram em Tabatinga foram complicados, pois fiquei
responsável, em cada chegada ou saída da casa para tentar vender os dentes de onça, por
manipulá-los, tirando-os e colocando-os no muro – algo que, além de um pouco estranho
aos olhos dos vizinhos, eu também já começava a considerar meio perigoso, tamanho era
o receio que envolvia a situação. Em pouco tempo, a mulher do chefe, que sofre de artrite,
começou a sentir dores cada vez mais intensas nas articulações. Uma vez que os
analgésicos não pareciam fazer nenhum efeito, não restou dúvida: não havia outra culpada
por aquelas dores que não a onça cujos dentes viviam para cima e para baixo conosco.
Um dia pela manhã, sem me avisar ou solicitar minha ajuda, o chefe retirou os dentes do
tijolo e voltou ao meio-dia dizendo que os havia vendido por um preço bastante inferior
ao tal smartphone. Ao longo de toda a situação, uma questão me intrigava: como explicar
que um chefe, antigamente reconhecido pelos colares de dentes que possuía, demonstrava
tamanho cuidado e repulsa à manipulação da matéria-prima desses artefatos? Penso que
explorar uma divisão temporal feita pelos próprios Bora atuais possa nos ajudar a
entender esse caso.

II.2. Classificações sobrepostas

A oposição entre “cestos das trevas” e “cestos de vida”, comumente empregada


pelos Povos do Centro para fazer referência a determinadas práticas e conhecimentos
tidos hoje como inconciliáveis, pode ser combinada a uma outra, que reparte o tempo de
forma binária. Dessa forma, enquanto no Tempo dos Animais predominavam os saberes
128
Introdução à Parte II - O Amanhecer

e costumes contidos nos “cestos das trevas”, o Tempo da Abundância é marcado pela
predominância do conteúdo dos “cestos de vida”. Tais Tempos, ainda, são à miúde
chamados também, respectivamente, de Tempo do Tabaco de Violência e Tempo do
Tabaco de Vida160. Uma breve exploração das traduções bora para os termos envolvidos
nesses conceitos pode ser útil para que comecemos a compreender melhor do que se trata.

Até o momento, nunca encontrei junto a meus interlocutores uma palavra em


Bora que fosse usada para traduzir a ideia de “tempo” (e o mesmo se aplica para o uso do
vocábulo em expressões como “Tempo dos Animais” ou “Tempo dos Brasileiros” – ver
cap. 1). Tal forma de empréstimo do espanhol, contudo, não se aplica aos demais termos
envolvidos nas classificações que exploro nesse tópico, uma vez que a tradução dos
mesmos para a língua nativa esclarece muito de seu conteúdo.

Vejamos, em primeiro lugar, os termos Tempo dos Animais e Tempo do Tabaco


de Violência. Há, em Bora, ao menos quatro conjuntos de palavras que podem ser
traduzidas em espanhol por animales ou animais:

(i) Jeéu é o vocábulo empregado para os animais domésticos ou


domesticados como galinhas, patos e eventuais xerimbabos161. De
maneira mais esporádica, o termo hajki é usado para fazer referência a
todos aqueles animais que possuem donos, sendo ainda a palavra
acionada para se referir às pessoas que fazem parte de uma parentela;
(ii) Bájúejpi é a palavra usada para animais selvagens que encontram-se
nessa categoria seja porque são predadores dos Bora (como onças e
cobras-grandes), seja porque não se estabelece com eles nenhum tipo de
relação cinergética (como borboletas e mosquitos);
(iii) Taáva é o termo empregado para todos animais de caça que, por sua
condição, são predados pelos Bora, sendo lliíñaja o vocábulo utilizado
para referir-se àqueles que já foram abatidos;
(iv) Iyáábe, ao mesmo tempo em que faz alusão aos animais de forma
genérica, é utilizado para falar sobre pessoas “de actos absurdos y malos”

160
Em espanhol, Tiempo de los Animales ou Tiempo de Tabaco de Violencia e Tiempo de Abundancia ou
Tiempo de Tabaco de Vida.
161
Como mencionarei à frente, os Bora não possuem o costume de criar muitos xerimbabos. De igual
maneira, não estou certa se os cães podem ou não enquadrar-se nessa categoria, visto seu caráter distintivo
tanto nos Bora quanto alhures (Bull, 2016).
129
Introdução à Parte II - O Amanhecer

(Thiesen & Thiesen, 1998: 135). Finalmente, iyáábe é o termo utilizado


para referir-se aos animais na expressão Tempo dos Animais.

Por sua vez, Tabaco de Violência me foi traduzido como cááyóbaá bañehe.
Enquanto bañehe é a palavra usada para referir-se à própria planta do tabaco, cááyóbaá
é um vocábulo cujo significado tangencia os estados de ira, cólera e raiva. Não me parece
fortuito que, assim como a tradução acionada para “animais” (iyáábe) faça referência a
comportamentos inapropriados ou quentes, aqui esteja em relevo, mais que apenas a
violência, algumas emoções a ela associadas. Como veremos, esses eram, de acordo com
as narrativas bora atuais, estados presentes nos corpos e nos pensamentos dos Povos do
Centro naquele tempo.

Em relação ao outro polo dessa oposição, a palavra “abundância” foi-me


traduzida como oovéta, vocábulo que expressa também o estado físico de saciedade162. A
palavra é utilizada comumente para designar um tipo específico de fartura: a de
substâncias que são responsáveis pelo sustento adequado das pessoas. Logo, inclui-se
nessa categoria alimentos cultivados nas roças e ao redor das casas (tubérculos, frutas,
plantas medicinais e pimentas), animais de caça e de criação (galinhas e eventualmente
porcos), peixes, certas espécies comestíveis de roedores, formigas, serpentes, sapos e
larvas de coleópteros, uma vasta gama de frutos (especialmente de palmeiras), e, por fim,
o tabaco, a coca e o sal vegetal.

Acompanhando o Tempo da Abundância, os Bora traduziram-me Tabaco de


Vida por Mepiívye Bañehe – literalmente, “a planta de tabaco que nos criou”163 e, algumas
vezes, traduziam ainda tal termo por Tabaco-de-Nuestra-Creación. Em relação a
Mepiívye Bañehe, enquanto me- é o prefixo que marca posse na primeira pessoa do plural,
piívye é um tempo complexo que pode ser traduzido tanto como “origem” ou “começo”
quanto como “crescimento” ou “criação” (fosterage). No primeiro caso, faz-se referência
à capacidade gerativa de algo ou alguém – e esse parece ser o caso de Mepiívye Bañehe,
quem criou ou deu origem a seus filhos humanos a partir de fragmentos de seu próprio

162
Algumas vezes, májchota é a palavra utilizada em substituição a oovéta. Májchota, traduzido como “o
sustento de todos os dias”, é um vocábulo derivado de majcho, que por sua vez designa os alimentos de
forma geral.
163
Tal tradução é, portanto, dissonante daquela que poderíamos encontrar ao buscar uma equivalência
literal para o termo Tabaco de Vida: Thiesen & Thiesen (1998) definem “vida” como bohi (estado de
encontrar-se saudável) ou ijcya (existir ou morar).
130
Introdução à Parte II - O Amanhecer

corpo (galhos) munindo-lhes de fala por meio de uma folha de coca (que transformou-se
em suas línguas) e de energia vital ou soplo de vida (posta para circular em seus corpos
na forma de manicuera164). Porém, mais além de sua mera capacidade gerativa, piívye
refere-se ainda à disposição de criar continuamente algo ou alguém por meio da garantia
dos meios necessários para sua sobrevivência ao longo do tempo – de modo que, nesse
caso, deve-se também entender o verbo “criar” em sentido semelhante a to raise, em
inglês. Dito de outro modo, é porque Mepiívye Bañehe segue mantendo e sustentando
seus filhos que ele também os cria ou os faz crescer.

A complexidade desse conceito, piívye, será melhor discutida no capítulo 4,


quando tratarmos sobre certas relações de adoção. Por ora, basta compreender que essas
traduções evidenciam que o Tempo da Abundância se vincula ao estabelecimento de uma
relação estreita entre os Bora e o Tabaco enquanto agente essencial de criação,
crescimento e sustento das pessoas e, no limite, enquanto o ser criador da vida humana
desde sua origem. Assim, é necessário ter clara a distinção entre o tabaco apenas enquanto
substância vegetal (ou mesmo enquanto um agente “falso” ou “inapropriado”, como
certamente o é o Tabaco de Violência ou dos Animais) e o Tabaco como ser criador dos
primeiros Bora (doravante Mepiívye Bañehe, Tabaco-de-Nossa-Criação, Abuelo-Tabaco
ou simplesmente Tabaco, sempre que grafado com a primeira letra maiúscula).

Assim, estabiliza-se, mesmo que provisoriamente, a relação entre, de um lado, o


Tempo dos Animais e o Tempo do Tabaco de Violência e, de outro, o Tempo da
Abundância e o Tempo do Tabaco de Vida. De forma mais ou menos precisa, a distinção
entre esses dois grandes períodos da história bora pode ser localizada na cronologia que
conhecemos na Parte I, como mostro no esquema a seguir ao sobrepor a divisão entre as
bonanzas e aquela entre o Tempo dos Animais e o Tempo da Abundância.

164
Ver Introdução.
131
Introdução à Parte II - O Amanhecer

Figura 7 – Sobreposição entre as duas classificações temporais

Vemos acima que o Tempo dos Animais não possui uma origem determinada,
remontando a um passado indistinto e genérico. Assim, sempre que perguntei aos Bora
pelo Tempo dos Animais, meus interlocutores diziam que esse era simplesmente o tempo
de todos os seus antepassados – de modo que nunca encontrei uma diferenciação clara
entre o princípio do Tempo dos Animais e aquilo que os antropólogos poderíamos chamar
de tempo mítico. Ao longo da Parte II, entenderemos que a passagem do Tempo dos
Animais para o Tempo da Abundância aconteceu de forma gradual e, mais do que isso,
perceberemos como sua consolidação relacionou-se estreitamente com uma série de
transformações internas.

Por sua vez, o que venho chamando até aqui de punto de quiebre é um período
não-classificado pelos Bora no qual houve uma interrupção das bonanzas e um intenso
movimento de migração e reorganização interna impulsionado pela indisponibilidade de
malocas, roças e chefes e pela atuação mais intensa da Igreja e do Estado nacional, que
buscavam consolidar a ocupação colombiana na região após o conflito com o Peru165.
Esse período estende-se até aproximadamente os anos 1960, quando o envolvimento dos
Povos do Centro na venda de peles de animais (Tempo da Tigrillada) é acompanhado
pela consolidação da passagem do Tempo dos Animais para o Tempo da Abundância. É
importante, agora, que exploremos as descrições nativas para cada um desses dois grandes

165
O fato de que os Bora não classificam ou elaboram o período que chamo aqui de punto de quiebre da
mesma forma com que fazem para o Tempo dos Animais e o Tempo da Abundância faz com que eu não
me sinta autorizada a desenvolver uma interpretação na qual a classificação temporal nativa possa ser
organizada num sistema triádico. Sobre esse tema, ver ainda a Introdução à Parte I.
132
Introdução à Parte II - O Amanhecer

Tempos. O quadro abaixo sintetiza as principais oposições entre eles, que conheceremos
no que segue.

Tempo dos Animais Tempo da Abundância


Tempo do Tabaco de Violência Tempo do Tabaco de Vida
Fim da antropofagia e práticas
Antropofagia e rituais como momentos
associadas, presença de casamentos
marcados pela agressividade, pela
intertribais e valorização de chefes e
vingança e pela guerra.
rituais pacíficos.

Atuação de xamãs-curandeiros
Xamãs ápííchoóbe que “fazem falar” os
(llúúváábéé) por meio de orações
animais e com eles negociam
(lluuvaji) e uso do tabaco de proteção
diretamente a cura de doenças e o ataque
(tatéhme bañee) na relação com os
aos inimigos.
animais agressivos.
Tabela 3 – Oposição entre Tempo dos Animais e Tempo da Abundância

II.2.1. Tempo dos Animais e Tempo da Abundância

Os Bora são categóricos em afirmar que “los antiguos no eran buena gente”.
Muitas foram as vezes que me contaram, com repulsa, que seus antepassados eram
capazes de comer carne humana e de guardar crânios e ossos dos inimigos em suas
malocas como troféus de guerra. Condenam, de igual forma, o antigo costume de
incorporar forçadamente aos grupos locais alguns cativos de guerra, valendo-se
geralmente de sua posição inferior de prestígio para usá-los como trabalhadores ou servos
dos chefes ou negociá-los em troca de ferramentas de metal com os comerciantes de
escravos que atuavam na região (ver cap. 1). A visão que os Bora contemporâneos têm
de seu passado parece corresponder, assim, à imagem que conhecemos há pouco ao
abordar as descrições de autores como Whiffen (1915) e Wavrin (1948). Além disso,
meus interlocutores dizem que, no Tempo dos Animais, todos os rituais (não apenas
Túmajtsi, o baile antropofágico166) eram marcados por uma forte agressividade, de modo
que esses pareciam ser os momentos nos quais mais frequentemente novos conflitos
surgiam e outros, já existentes, eram reativados. Não é raro escutar relatos sobre a
ocorrência de assassinatos nesses contextos, nem sobre a eclosão de conflitos que

166
Ver item 6.10.
133
Introdução à Parte II - O Amanhecer

comprometiam o desenvolvimento das festas em razão da briga entre casais, cunhados,


irmãos, etc.

Por oposição, as narrativas sobres os dias atuais indicam consistentemente que a


violência do tempo pretérito ficou para trás, mesmo que os rituais (em razão da
agressividade dos animais) nunca tenham deixado de ser momentos marcados pela
instabilidade e o perigo. Da mesma forma, ainda que surjam em determinados contextos
referências à antiga rivalidade entre grupos inimigos do passado – sendo os Ocaina os
rivais por excelência – os Bora, tal como os outros Povos do Centro, envolveram-se em
uma intrincada rede de casamentos interétnicos com outros povos da região. Por fim,
todos os Povos do Centro abandonaram, desde pelo menos o começo do século XX, os
rituais de antropofagia e a produção de artefatos-troféus.

Torna-se claro, portanto, o contraste nativo nitidamente delineado entre o


passado violento (Tempo dos Animais) e o presente pacífico (Tempo da Abundância).
Poderíamos nos perguntar, de forma genuína, se tal binarismo não é em alguma medida
um estratagema elaborado para classificar e pensar tanto os eventos dos últimos séculos
quanto suas consequências. Explorando tal questionamento, defendo que a leitura crítica
de tal oposição pode, no fim das contas, ajudar-nos a melhor compreendê-la: se é
complicado imaginar o funcionamento de um estado primevo de agressividade
generalizada e a posterior valorização ex-nihilo de um modo de vida frio e sem conflito,
por que foi justamente essa a construção feita pelos Povos do Centro para narrar sua
história? Se a resposta a essa pergunta não nos é acessível nesse ponto do trabalho, a mera
possibilidade de formulá-la nesses termos põe em evidência o modo ativo por meio do
qual os Bora deliberadamente enfatizam um aspecto de seu passado (as práticas violentas)
e, ao mesmo tempo, valorizam comportamentos, corpos e palavras frias que, embora
sempre tenham existido, muito provavelmente eram mais latentes no passado. Ao
retomarmos a pequena anetoda sobre os temidos dentes de jaguar e o desconforto que os
mesmos causaram ao chefe em Tabatinga, vemos que esse último, apesar de reconhecer
o poder ambivalente das presas, opta por não as reter. Assim, enquanto no passado os
chefes apoderavam-se do potencial predador de seus inimigos (humanos ou não) por meio
dos troféus de guerra, hoje preferem não se magnificar através desses artefatos, sob pena
de serem por eles atacados e mortos. Em suma, se as relações entre humanos são hoje

134
Introdução à Parte II - O Amanhecer

predominantemente pacíficas e frias, os Bora e os demais Povos do Centro vivem, no


Tempo da Abundância, em um mundo cercado de inimigos não-humanos.

Esse tema reaparecerá na Conclusão desse trabalho. Por ora, me permitam tratar
do segundo par de oposições da última tabela, a saber, aquele que gira em torno do
contraste entre o antigo xamã (ápííchoóbe) e o atual xamã-curandeiro (llúúváábéé), cuja
oposição é fundamental para que entendamos, pouco a pouco, a própria transformação
das relações entre humanos e animais.

II.2.2. Xamanismo transformado

Certa vez, ao conversar com um ancião bora sobre o Tabaco de Violência, ele
me contou, para ilustrar o conceito que me explicava, que quando era jovem e ainda vivia
no rio Cahuinari ele foi a uma festa de caiçuma de pupunha (ver cap. 6) na qual um
homem, por pura diversão, acertou tiros de escopeta no enorme recipiente que guardava
a bebida ritual, fazendo com que as mulheres se desesperassem para tentar salvar ao
menos um pouco do que haviam preparado. “Así era que ellos se divertían”, disse-me ele,
em tom condenatório. Em seguida, me explicou que o tabaco utilizado por esses homens
no contexto desses rituais não era Tabaco de Vida, mas de sim de violência - acionando,
portanto, uma formulação que àquela altura já me era bastante familiar. Concluiu
dizendo-me que aquele não era um tabaco própio o legítimo porque, na verdade, ele vinha
dos animais.

De maneira geral, pessoas que apresentam comportamentos violentos e raivosos


são frequentemente comparadas aos animais, que se portam sempre de forma imprópria,
imoral e, no limite, não-humana. Assim, é comum ouvir expressões como “él no es gente,
es un animal” quando se fala sobre pessoas constantemente acometidas pela ira
descontrolada, pela preguiça, inveja ou ciúme167. Os animais são, na verdade, os
principais culpados pelas doenças: se no Caquetá-Putumayo qualquer morte é um
homicídio em potencial (Karadimas, 1997: 90), nem sempre o assassinato é orquestrado

167
Para uma análise a respeito da centralidade desses sentimentos entre os Muinane, ver Londoño Sulkin,
2004: 135 – 160.
135
Introdução à Parte II - O Amanhecer

por um humano, Na verdade, é bastante comum que o causador de uma morte seja um
animal:

Según la retórica cosmológica de los Muinane, la mayoría de las


enfermedades por las que sufre la gente y la mayoría de los
comportamientos inapropiados que manifiesta tienen su origen en los
ataques de los animales y otros seres malignos (Londoño Sulkin, 2004:
123).

No passado, o xamã (esp: brujo – bora: ápííchoóbe, onde ápííchoó: perigo, medo
e -be: sufixo masculinizante) era o principal responsável pelo diagnóstico e pela cura das
doenças. Ele o fazia por meio da negociação direta com o conjunto de espíritos-animais
que o acompanhavam e que, quando não eram os próprios responsáveis pelo adoecimento
do paciente, eram capazes de ajudá-lo em sua busca pelos agentes patogênicos168. Os
Bora contam que, naquele tempo, ingeria-se enormes quantidades de ambil nas sessões
noturnas dos mambeaderos. Os xamãs, que eram experientes em “manejar sus espíritus”,
frequentemente acabavam “haciendo hablar” esses mesmos espíritos-animais. Nesse
momento, mudavam sua voz, sua postura corporal e sua forma discursiva, o que
informava aos presentes que aquele já não era o xamã da maloca, mas sim um dos muitos
seres que o acompanhavam e nos quais ele era capaz de se transformar. A audiência
aproveitava então para conversar diretamente com esses seres e investigar sobre a doença
e a terapia de cura de um paciente. Esses eram os momentos, ainda, nos quais era possível
contar com o auxílio desses seres para atacar, por meio da feitiçaria, outros xamãs ou
inimigos de malocas próximas ou distantes. Igualmente, podia-se atingir de forma certeira
os familiares desses últimos, num contínuo que, em uníssono com as antigas práticas de

168
Uma tradução em Bora para o neologismo espírito-animal que emprego aqui pode ser mééií. Thiesen &
Thiesen traduzem o vocábulo simplesmente como “demônio” (1998: 179), mas creio que a simplificação
do termo provém das investidas missionárias do casal de linguistas evangélicos em seu trabalho entre os
Bora no Peru. Porém, ao definir as palavras derivadas (mééííbyeé, méíhcyoó, meíhméi, mééílleé, méiváte),
os autores permitem um aprofundamento do vocábulo ao relacioná-lo aos estados de loucura, safadeza,
travessura, turbulência, ousadia e intrepidez. Karadimas, por sua vez, define me:ì (em Miraña) como o
“mestre dos animais” (1997: 426). Em várias ocasiões ouvi os Bora, mesclando o idioma nativo com o
espanhol, dizerem que tal pessoa era um mééií. Quando eu questionava o significado da expressão, faziam
referência, como já vimos ser comum, ao comportamento animalesco desse indivíduo (mas nunca a uma
suposta relação com o “demônio”). Ao mesmo tempo, o termo era empregado para falar sobre os seres
invisíveis responsáveis pelos ataques aos humanos. Esse tema reaparecerá no capítulo 4, quando tratarmos
sobre a posição dos órfãos e também no capítulo 6, quando abordarei algumas particularidades do ritual de
caiçuma de pupunha ou Méémeba. Por fim, o assunto será retomado na Conclusão desse trabalho. Por ora,
cumpre observar que não animal no mundo bora que não seja, em si mesmo, também um espírito-animal.
136
Introdução à Parte II - O Amanhecer

antropofagia, desenha o Tempo dos Animais como um período violento, perigoso e


marcado pela vingança169.

Da mesma forma, as reuniões no mambeadero que precediam as caçadas ou


excursões de pesca eram momentos de comunicação e negociação com os espíritos-
animais que são donos dos lugares onde se pretendia adentrar. Em toda a região dos Povos
do Centro determinadas paisagens (como lagos e barreiros – ou canamãs), são
especialmente conhecidas por possuírem donos mesquinhos e exigentes. Quem pretendia
adentar tais ambientes, no Tempo dos Animais, tinha que pedir autorização a esses donos,
negociando com os mesmos a quantidade de alimentos (peixes, carne de caça, frutos, etc.)
que retiraria do local (Karadimas, 2005). Caso contrário, poderia sofrer retaliações na
forma de doenças ou acidentes que acometeriam não apenas o caçador, mas também seus
familiares. Um xamã, então, era tanto mais influente e respeitado quanto maior fosse sua
capacidade de, nas negociações com os espíritos-animais, curar seus pacientes e conduzir
caçadas fartas e seguras. O prestígio de um xamã variava, ainda, segundo a capacidade
que ele possuía não apenas de se defender dos espíritos-animais, mas também de trabalhar
com os mesmos a fim de atingir seus inimigos, enviando-lhes feitiços que terminariam
por os fazer adoecer e morrer.

Nos dias de hoje, os lagos e barreiros ainda possuem donos avarentos e arredios.
Os Bora, contudo, já não pensam que a negociação com eles seja a melhor maneira de
organizar suas excursões de caça. À figura ambivalente do xamã, se sobrepôs outra: a do
xamã-curandeiro (esp: curandero – bora: llúúváábéé, onde lluuva é o radical para
“benzimento” ou oração e -be: partícula masculinizante). De certa forma, atualmente a
maioria dos homens e mulheres bora é um pouco “curandeiro” ou “curandeira” e já não
existe mais a ideia de um conhecimento xamânico concentrado apenas em uma categoria
especial de pessoas – muito embora alguns homens se destaquem pelo domínio de um
extenso corpus de orações de cura (ver a seguir). Ainda, enquanto os xamãs de
antigamente atuavam principalmente por meio da negociação com os espíritos-animais,
os xamãs-curandeiros do Tempo da Abundância guiam suas ações por meio de seu

169
De maneira geral, diz-se que a antiga prática xamânica de “hacer hablar los espíritus”, embora seja
amplamente condenada nos dias de hoje, causou problemas ao desaparecer, uma vez que, em casos
extremos de adoecimento nos quais nenhum tratamento surte efeito, seria vantajoso que ainda pudesse ser
acionada. É importante salientar que o abandono de tal prática não remonta a um período tão distante, uma
vez que a geração das pessoas que tem hoje por volta de 50 anos possui uma memória viva da existência
de tais xamãs em sua infância.
137
Introdução à Parte II - O Amanhecer

relacionamento direto com o Tabaco enquanto entidade com a qual os Bora possuem uma
relação direta e privilegiada – já que, ao contrário dos animais, os humanos são seus filhos
legítimos (para compreender este termo, ver Glossário e cap. 4).

Para o(a) leitor(a) habituado às discussões sobre o xamanismo amazônico, a


relação entre essa descrição e as considerações de Hugh-Jones (1994) acerca dos
xamanismos vertical e horizontal são evidentes. A partir dessa chave de análise,
poderíamos dizer que as práticas do antigo xamã (ápííchoóbe) eram horizontais: por meio
de conhecimento adquirido mediante pagamento, os pacientes eram curados com terapias
marcadas pela troca recíproca com estrangeiros (os espíritos-animais). Além disso, eram
capazes de lançar feitiços sobre seus inimigos, trabalhando, assim, com agressividade. Os
xamãs-curandeiros (llúúváábéé) do Tempo da Abundância, por outro lado, curam (sem
atacar outros humanos) por meio de cantos-falas marcados pela relação direta com o
Tabaco – sem que se estabeleça, assim, nenhum tipo de troca com os animais. Ademais,
são especialistas em ações de profilaxia que visam a proteção de seus parentes e aliados.
Não raro, os xamãs-curandeiros são ainda homens primogênitos que herdaram
patrilateralmente a posição de chefes de clã em rituais de nominação sobre os quais falarei
adiante.

Mesmo que saibamos que a oposição entre xamanismo vertical e horizontal é,


em larga medida, analítica (Hugh-Jones, idem: 70; Viveiros de Castro, 2008: 99), ela nos
serve para pensar sobre as transformações bora ao longo do século XX. Enquanto os
xamãs de antigamente encaixam-se sem problemas na classificação desenvolvida por
Hugh-Jones sobre o “xamanismo horizontal”, algumas alterações nas práticas atuais
chamam a atenção. Apesar de seguirem trabalhando em contato direto com seus
pacientes, os xamãs-curandeiros de hoje realizam também terapias profiláticas que, bem
como as curas, não são concretizadas por meio de trocas com os animais-espíritos. Se
aliarmos isso ao fato de que a maioria dos chefes de carreras titulares são conhecidos
por suas capacidades curativas e profiláticas, podemos pensar que o xamanismo bora, na
passagem do Tempo dos Animais para o Tempo da Abundância, passou a demonstrar
certa tendência à verticalização. Ao conhecermos os chefes-Garça nos capítulos
seguintes, pensaremos mais sobre essas transformações. Antes disso, voltemo-nos para
os cantos-fala usados nas terapias de cura.

138
Introdução à Parte II - O Amanhecer

Apesar de utilizarem uma vasta gama de plantas cultivadas em seus processos


terapêuticos, os xamãs-curandeiros salientam sempre sua repulsa pelos feitiços, sendo os
resultados positivos de suas ações alcançados principalmente por meio de uma série de
orações ou benzimentos (esp: oración – bora: lluuvaji)170. Esses são, sem sombra de
dúvida, os conhecimentos mais secretos e de circulação mais restrita entre os Povos do
Centro. Apesar da coincidência léxica, as orações entre os Bora nada tem a ver em sua
forma e conteúdo com as preces cristãs que lhes foram ensinadas pelos missionários
católicos. Aprender uma oração de outra pessoa, mesmo que um parente próximo,
demanda tempo, trabalho no mambeadero e, na maioria das vezes, uma generosa
quantidade de coca, sal e tabaco. Há orações mais e menos difundidas e contra os mais
diversos problemas: picada de cobra, abundância de cabelos brancos, gripe, diarreia,
preguiça, raiva, parada cardíaca, etc. Uma pessoa interessada no assunto geralmente
saberá algumas dessas orações e tanto mais renomado será o xamã-curandeiro quanto
maior for sua competência diagnóstica e mais amplo seu domínio de um número grande
de orações eficazes. No mais das vezes, são os chefes titulares (ver cap. 6) quem dominam
a maior parte de conhecimentos desse tipo em uma maloca.

Isso porque as orações estão diretamente relacionadas ao domínio de


determinadas narrativas míticas ou orígenes passadas de geração em geração pelos
homens primogênitos de um clã171. Talvez por isso mesmo, apesar de sempre me
sugerirem a gravação de cantos rituais, os Bora nunca me incentivaram a registrar ou
traduzir as orações terapêuticas. Ao contrário, embora eu tenha presenciado inúmeros
momentos de cura em que tais orações eram proferidas (inclusive em processos que me
envolviam enquanto paciente), os Bora sempre foram categóricos ao afirmar que o
registro de tais cantos-fala seria perigoso tanto para mim quanto para eles, uma vez que
os espíritos-animais contra quem se dirigem as orações poderiam irritar-se e retaliar.
Essas orações, assim, não são endereçadas aos espíritos-animais, mas evidentemente são
lançadas contra eles – e penso que essa é a principal diferença entre as práticas xamânicas

170
Opto pelo uso do vocábulo “oração” ao longo desse trabalho a fim de manter-me mais próxima ao uso
que os mesmos fazem do termo oración, em espanhol.
171
Entendemos ainda por que mesmo que as orações possam ser aprendidas mediante pagamento e que não
haja uma transmissão linear da posição de xamã-curandeiro, são geralmente os chefes primogênitos os mais
conhecidos pelo domínio de muitos desses cantos-fala.
139
Introdução à Parte II - O Amanhecer

do Tempo dos Animais e do Tempo da Abundância. Percebemos como as antigas trocas


entre animais e humanos sofreram, assim, uma importante transformação:

(…) tales intercambios son en extremo peligrosos y además pecan de


inmorales; sólo los brujos malintencionados o las personas engañadas
efectúan tales intercambios. (…) En ningún caso, exceptuando la
brujería, se da una entrega de sustancias a los dueños de los animales a
cambio de presas. (…) En resumen, los animales y sus dueños no
reciben nada de los humanos a cambio de entregar sus parientes y sus
hogares a los cazadores y chagreros de la Gente verdadera. (Londoño
Sulkin, 2004: 128 – 130)

Hoje, numa excursão de caça, os Bora não entram em contato com os donos do
lugar para lhes pedir autorização, mas preparam, anteriormente, um “tabaco de
proteção”172 que é “curado” com orações específicas. Posteriormente, a substância é
consumida pelos homens durante a expedição a fim de que nada de mal lhes aconteça. É
comum que esse mesmo tabaco (na forma de ambil ou pequenos charutos) seja utilizado
por todas as pessoas em situações de alguma periculosidade real ou potencial, como a
abertura e a manutenção de roças, grandes incursões na mata, viagens longas ou a lugares
distantes, etc. Eu recebi tabacos de proteção praticamente em todas as ocasiões em que
fiz reuniões comunitárias ou trabalhei nos registros dos rituais e na reprodução dos cantos
do Fonds Guyot, pois, desta forma, garantia-se que eu não seria alvo de ataques vindos
dos espíritos-animais nem eventualmente dirigidos a mim por humanos mal-
intencionados173. Ainda, por diversas vezes, nos mambeaderos, compartilhamos tabacos
de proteção a fim de que os animais-espíritos que sempre rondam a maloca não pudessem
nos atacar enquanto mencionávamos seus nomes e suas histórias nas narrativas míticas.

II.3. Humanos e animais

Essa postura reativa e fechada ao diálogo com os animais parece ser uma das
características mais marcantes do Tempo da Abundância. Kinerai, importante chefe da
região e o interlocutor de Echeverri, distinguia entre a “abundância dos começos” e a
“abundância verdadeira”:

172
Esp.: tabaco de defensa – bora: tatéhme báñee, onde -ta: prefixo possessivo em primeira pessoa do
singular; téhme: cuidar, guardar; báñee: tabaco.
173
Como já mencionei, mesmo quando são os humanos os autores de um feitiço, eles contam com a ajuda
dos espíritos-animais.
140
Introdução à Parte II - O Amanhecer

Tanto la cacería como las plantas cultivadas se nombran con una misma
palabra: monifue, que traduzco como “abundancia”. Los animales del
bosque son llamados, en algunas narraciones, nanoide monifue
“abundancia de los comienzos”; las plantas cultivadas son llamadas ua
monifue, “abundancia verdadeira”. (Echeverri, 2005: 145)

A meu ver, essa distinção mostra-se relevante para o debate em questão na


medida em que Echeverri argumenta que há uma “hierarquia temporal” (:148) entre seus
termos. Dessa maneira, levando em conta a polissemia comum na região e a discussão
tecida até aqui, podemos considerar que Kinerai está descrevendo algo muito semelhante
ao que os Bora nomeiam como a transição do Tempo dos Animais para o Tempo da
Abundância. Ao assumir tal perspectiva, entendemos, portanto, que a passagem da
“abundância dos começos” para a “abundância verdadeira” marca a separação entre, de
um lado, os animais selvagens (animales del bosque) e, de outro, as plantas cultivadas.
Quando discutirmos, no capítulo 6, o baile de caiçuma de pupunha e o pagamento da caça
e das canções rituais, ficará mais clara a periculosidade potencial dos animais, mesmo
que na forma de carne de caça. Veremos ainda que, no curso dos rituais, a extração ou
neutralização de seu potencial predador é consolidada por meio de alimentos e
substâncias vegetais preparados a partir de uma série de plantas cultivadas que são, do
ponto de vista de Kinerai, a “abundância verdadeira”. Ficará mais claro, então, como a
palavra “abundância” não pode aqui ser interpretada de forma apressada, pois dizer que
o momento da “abundância verdadeira” é aquele no qual os alimentos cultivados, a saúde
e os humanos se separaram, respectivamente, da caça, da doença e dos animais não parece
ser apenas mais uma forma de marcar a passagem da natureza à cultura.

Lembremos que a adjetivação de coisas e pessoas como “verdadeiras” já foi


analisada por Londoño Sulkin (2001, 2004) para os Muinane como uma expressão da
superioridade moral que os humanos possuem em relação aos animais. Entre os Bora,
enquanto “verdadeiro” comumente é traduzido por imia, seu afixo derivado (imiáá-) no
geral é empregado para adjetivar coisas e pessoas como “boas”, “generosas” ou
“corretas”. Tais características, como venho buscando demonstrar até aqui, são distintivas
dos humanos, sendo os animais (em razão de seu comportamento violento, agressivo e
mesquinho) os principais antagonistas dos primeiros.

Assim, é provável que tanto os indígenas do Caquetá-Putumayo quanto os


antropólogos que trabalharam na região concordem que o conceito de abundância em
jogo refere-se à produção adequada de comida por meio de uma relação particular de
141
Introdução à Parte II - O Amanhecer

afastamento e assimetria entre humanos e animais. Isso faz com que, nos momentos de
interação com o mundo exterior ao espaço doméstico e lançando mão de substâncias de
proteção (vale lembrar, predominantemente vegetais), os Povos do Centro sejam capazes
de exercer um tipo especial de influência sobre os animais e outros seres da floresta.

Londoño Sulkin debruçou-se sobre essa questão a fim de demonstrar como a


discussão sobre o perspectivismo (Viveiros de Castro, 1996) pode ganhar novas nuances
se a combinamos aos dados etnográficos colhidos na região. Assim,

Muinane people certainly do not attribute moral equivalency to the


relationships animals have among members of their own species, and
the relationships Real People have among themselves. They seem to
take for granted a moral and ontological hierarchy, in which animals do
see and sometimes think of themselves as Real People, but in which it
is clear that they are not ultimately human. Real People are. Animals’
are not the more powerful, more persuasive, ‘true’ perspectives. True
tobacco of divine origin — to which only real Real People have access
— makes Real People uniquely human, and ensures that their
perspective, moral evaluations, and intentions have greater agency.
(Londoño Sulkin, 2005: 23)

Valendo-se do argumento de que, desde o ponto de vista nativo, os animais


gozam de uma humanidade incompleta dada sua inferioridade em relação aos humanos,
o autor defende que os Muinane não possuem, tal como outros povos, uma “ontologia
radicalmente perspectivista”174:

It does seem to me at this point that Muinane people have a relatively


hierarchical and fundamentalist or substantivist take on human and
animal perspectives, and that this differs importantly from the more
egalitarian, more radically perspectival ontologies the literature claims
for other people. (Londoño Sulkin, idem: 24)

Há, nessa discussão, alguns elementos que nos ajudam a compreender por que o
chefe com quem viajei a Tabatinga não via com bons olhos a presença dos dentes de onça
na casa em que estávamos. Vivíamos nesses dias em um lugar que lhe era pouco familiar,
como aliás sempre parece ocorrer quando os Bora vão ao Brasil (incomodam-se por não
dominarem bem o português, por considerar que muitos brasileiros são brujos, por não

174
Os limites do perspectivismo e do animismo tal como propostos respectivamente por Viveiros de Castro
(1996) e Descola (2005) foram um tema caro à Karadimas (2005, 2012), quem defendeu que o
antropomorfismo (ou a projeção de comportamentos e formas humanas a outros seres do cosmos)
revelariam a existência de uma “modalidade analógica” de pensamento e ação entre os Povos do Centro.
Parte de sua argumentação é construída por meio de uma comparação detalhada entre a mitologia, as artes
gráficas e os rituais na região do Caquetá-Putumayo e aqueles encontrados nos Andes e na Mesoamérica.

142
Introdução à Parte II - O Amanhecer

terem mambe à disposição, etc.). Principalmente, o chefe encontrava-se longe de sua


maloca e de suas substâncias curativas e via-se então desprotegido - algo expresso
inclusive em suas insistentes idas à Leticia em busca de parentes que pudessem lhe
fornecer mambe e ambil. Naquelas circunstâncias, lidar com um possível ataque do
espírito furioso das onças era uma preocupação real e que ocupou nossas rotinas por
alguns dias. Assim, não é que os Bora tenham, no Tempo da Abundância, derrotado os
animais de uma vez por todas. Porém, a existência de substâncias e práticas de proteção,
a meu ver, lhes permitem fixar-se, sempre e quando se valem desses mecanismos de
defesa, na posição de humanos verdadeiros – de modo que apenas em situações muito
específicas eles sentem-se acuados pela possibilidade de que os mesmos os ataquem.

A situação dos Wari’, analisada por Vilaça, nos é interessante pois guarda
diferenças e similitudes com o caso bora. Ali, uma das implicações da conversão ao
cristianismo foi que os Wari’ puderam aceder a uma alimentação irrestrita, sendo possível
a eles “comerem mais, de tudo, sem medo” (2008: 190) – algo portanto bastante parecido
à “abundância” tal qual almejada pelos Povos do Centro. Isso teria sido consolidado a
partir da obliteração do potencial predador desses animais por meio da cristalização dos
humanos na condição de filhos de um Deus que, ao conceber os seres vivos, designou os
animais como meras presas a serviço dos primeiros (por sua vez unidos entre si por meio
da fraternidade generalizada típica do cristianismo):

Ao conceberem a humanidade e a animalidade como posições


essencialmente reversíveis — visto que tanto os Wari’ quanto as suas
presas preferenciais podem ora colocar-se na posição de humanos
(wari’), definidos como predadores, ora na posição de animais
(karawa), que são as presas — os Wari’ experimentam a vida como
uma constante luta para definirem-se como humanos e assim
permanecerem. Desse modo, a determinação de um sentido único da
predação vai ao encontro daquilo que os Wari’ buscam em seu dia-a-
dia, que a meu ver é concebido como um movimento análogo à
fraternidade generalizada, ou “des-afinização”, também promovida
pelo cristianismo. (Vilaça, 2008: 189)

Os animais, porém, ainda são capazes de se colocarem na posição de predadores


e de causadores de doenças caso sejam apoderados pelo diabo, o que torna a supressão da
afinidade, em larga medida, instável (:196). Por sua vez, a introdução de novos conceitos
como o de “diabo” é parte de uma série ampla de transformações, expressa no discurso
wari’ sobre sua própria conversão religiosa e na tendência mais recente em “negar a

143
Introdução à Parte II - O Amanhecer

veracidade das histórias dos antigos, isto é, dos mitos, em prol de uma valorização das
histórias bíblicas” (:176).

Assim, enquanto entre os Wari’ os animais são capazes de colocar-se na posição


de predadores caso sofram influência do diabo, entre os Bora os animais (por serem
humanos incompletos ou inferiores) encontram-se sempre na posição de causadores de
doenças e infortúnios, mas são permanentemente controlados pelas substâncias e ações
dos humanos verdadeiros. Como já mencionei no capítulo 2, ao contrário dos Wari’, os
Bora não possuem um discurso sobre sua conversão religiosa, ainda que estejam em
contato intenso com o cristianismo desde pelo menos os anos 1930. Assim, dizem que à
adoção de algumas práticas cristãs não se seguiu uma desvalorização das narrativas
míticas, intensamente presentes nas malocas atuais e tidas como uma versão mais
verdadeira do que aquela apresentada pelos missionários. A meu ver, é possível que o
contato com o cristianismo num momento de extrema crise (demográfica, mas não só)
tenha ajudado os Bora não exatamente a se fixarem na posição de predadores dos animais,
mas sim de se colocarem como seus chefes. Retomarei essa hipótese no final desse
trabalho, quando já tivermos conhecido melhor as formas pelas quais os Bora
Amanheceram.

II.4. O Amanhecer

Amanhecer é um termo muito presente no discurso de todos os Povos do Centro


que pude conhecer e, no caso dos Bora, amanecer (esp..) ou tsitsííve (bora) é um vocábulo
que possui um amplo significado. Amanhecer é, ao mesmo tempo, o nome do último
ritual de inauguração de uma maloca (ver item 6.9), o nome dos cantos da manhãzinha
em todas os bailes, um toque de manguaré executado pelas manhãs e o nome de um dos
clãs cujos chefes, como veremos, foram protagonistas na passagem do Tempo dos
Animais para o Tempo da Abundância. Finalmente, amanhecer é uma palavra dita quase
todas as noites, quando os homens, nas reuniões noturnas dos mambeaderos, desejam que
sua palavra amanezca, isto é, que os conselhos, os ensinamentos, as palavras frias e de
alento compartilhadas na noite anterior não sejam esquecidas ou desperdiçadas no dia
seguinte, mas se tornem ações visíveis, eficazes e duradouras.

144
Introdução à Parte II - O Amanhecer

No que segue, lido, portanto, com o Amanhecer dos Bora após um contato
intenso e devastador com o Oriente (ver Introdução à Parte I). Interesso-me, nessa
direção, em expor e analisar como os Bora desenvolveram o que poderíamos chamar (algo
provocativamente) de “reforma social”:

The category of “social reform” encapsulates a number of elements that


seem to us central for comprehending the empirical cases (...). The first
of these elements is the indigenous appropriation of particular historical
events to promote internal social changes. For the eastern Parakanã, the
event was the capture and raising of a foreign child; for the Marubo, the
death of a war leader and the emergence of a new form of leadership;
and for the Koripako, the arrival of a missionary bearing a new
discourse and a new technology. “New,” however, is in this context a
manner of speaking. In all three cases, we are faced with a situation
that becomes effectively new only after the fact, since in each case
the new is already present in the past formation as an objective
possibility. (Fausto, Welper e Xavier, 2016: 63)

Ou seja, não tratarei aqui de analisar minuciosamente um suposto movimento de


“ressignificação” das práticas socioculturais. Igualmente, não me ocuparei em cotejar
estrutura e evento num jogo de figura e fundo em busca de reminiscências de um passado
(no limite, sempre ideal) no mundo bora atual. Antes, interesso-me pelos processos
internos e em pequena escala que fizeram com que os Bora, frente a um evento
surpreendente por sua radicalidade e alcance (a atuação dos caucheiros peruanos),
mobilizassem-se a fim de pensar e agir coletivamente para reorganizar suas vidas – tendo
como base, obviamente, suas “possibilidades objetivas”. Dessa forma, assim como um
bricoleur trabalha apenas com os elementos que tem à mão a fim de reparar o antigo ou
construir o novo (Lévi-Strauss, 1962), penso que os Bora, cujas vidas encontravam-se
intensamente desestabilizadas e fragmentadas no começo do século XX, terminaram por
voltar suas atenções, nesse momento de reforma ou “auto-reorganização”, a determinados
aspectos que hoje se encontram em relevo.

Se uma crítica às relações simétricas enquanto único mote organizador do


conjunto heterogêneo dos povos indígenas nas Terras Baixas da América do Sul é um
tema que vem sendo debatido por diversos autores amazonistas (por exemplo, Fausto,
2008: 329, Grotti e Brightman, 2016), ainda são escassas as descrições sobre esse assunto
para o Caquetá-Putumayo. Defenderei, no que segue, que estamos aqui diante de povos
com importantes e muito pouco descritas relações internas de assimetria, sem que isso
signifique que os Bora sejam representantes de sociedades que podem ser classificadas

145
Introdução à Parte II - O Amanhecer

acriticamente sob as alcunhas da hierarquia, da desigualdade ou da servidão175. Dito de


outro modo, pretendo demonstrar como determinadas relações, mesmo quando
atravessadas pela servidão e o controle, só podem ser entendidas se levamos em
consideração as próprias condições de possibilidade dos humanos verdadeiros entre os
Povos do Centro.

Dessa forma, minha intenção no que segue é fornecer elementos etnográficos


que possam ser suficientes para inserir os Bora (e, por extensão, os Povos do Centro) em
um debate mais amplo a cerca das relações de assimetria na Amazônia, suas dinâmicas e
limites. Buscarei demonstrar ainda como os processos internos de transformação levados
a cabo ao longo do século XX colocam em evidência o fato de que, em meio a uma
avalanche de mudanças, um determinado tipo de assimetria parece ter sido o ponto não
negociável.

Depois de uma larga e horrível noite trazida pelo Oriente, entendo que, de
diversas maneiras, os Bora conseguiram amanhecer. Frequentemente, escutei de
lideranças indígenas no Caquetá-Putumayo relatos sobre a necessidade de valorizar os
processos de “resistência”. Noto que esse termo não é frequentemente utilizado em
muitos trabalhos acadêmicos por receio de que palavras como “resistência”,
“movimento” ou “luta”, tão frequentes nos dias de hoje na “política externa” indígena,
possam ofuscar aquilo que acreditamos ou defendemos que sejam os modos nativos de
fazer e pensar a política. Porém, resulta-me difícil encontrar outros termos que não
aqueles empregados pelos próprios Bora, de modo que é sobre a resistência indígena
depois do genocídio do caucho que falarei nos capítulos seguintes.

Enquanto o capítulo 4 será dedicado exclusivamente à oposição complemtar


entre chefes e órfãos – doravante cara ao argumento de todo esse trabalho, veremos nos
capítulos 3 e 5 como a passagem para o Tempo da Abundância foi marcada pela
reorganização das unidades políticas e familiares. Nos capítulos 6 e 7, por fim, notaremos
como o abandono da antropofagia é apenas uma das facetas de um processo mais geral

175
Nada seria mais falacioso, uma vez que estou de acordo com a intuição de Villar (2013: 30) de que é
improdutiva a generalização, por um lado, dos povos amazônicos como igualitários e simétricos e, por
outro, dos grupos andinos como centralizados, hierárquicos e estatais. Creio que há, portanto, um
interessante campo de estudo a ser explorado no que diz respeito às comparações possíveis entre o Caquetá-
Putumayo e as Terras Altas.

146
Introdução à Parte II - O Amanhecer

de reconfiguração da vida ritual onde destaca-se, novamente, a valorização de relações


frias e pacíficas entre os humanos. Dessa forma, o que segue é uma tentativa de
sistematizar, não sem profunda e sincera admiração, os caminhos pelos quais os Bora
trilharam seu Amanhecer.

147
Capítulo 3
O que organiza o mundo?

3.1. Elementos do Parentesco

O parentesco amazônico vem sendo marcado, nas últimas décadas, pela presença
cada vez menor de trabalhos que se dedicam à mera descrição terminológica e à
classificação de sistemas. Ao mesmo tempo, proliferam reflexões que, ao não
desenvolverem apenas análises formalistas, interessam-se sobremaneira pelas relações
que regem e modificam esses mesmos termos e sistemas. Assim, por meio de um
refraseamento da ênfase e da linguagem utilizadas, os estudos sobre o parentesco na
Amazônia expandiram-se e passaram a dialogar mais diretamente com trabalhos que
investiam seus esforços em outras searas como o xamanismo, a noção de pessoa, a vida
ritual e, ainda, a relação entre humanos e não-humanos. Diante desse cenário, vimos
tomar corpo a frutífera ideia de que a afinidade é o operador sociocósmico do mundo
ameríndio (Viveiros de Castro, 2000) e, desde então, muito tem sido discutido sobre o
tema. Os trabalhos sobre o Caquetá-Putumayo, porém, não parecem ter acompanhado
essa proliferação de novos e interessantes dados e análises sobre o parentesco amazônico,
de modo que ainda muito pouco sabemos sobre o tema nessa região. Escassas exceções
são os trabalhos de Gasché (1976) e Guyot (1972), cujas intuições apresentadas à época
serão fundamentais para o que segue. Mais recentemente, Karadimas (2000b)
sistematizou e analisou os termos de parentesco Miraña e Londoño Sulkin (2004), ao
pensar sobre a construção de “pessoas verdadeiras” entre Muinane, discorreu, por
exemplo, sobre o estabelecimento e a dissolução de relações de aliança e de
consanguinidade.

É provável que a ausência de trabalhos sobre esse assunto no Caquetá-Putumayo


se justifique, dentre outras coisas, por uma relativa predominância de sistemas com
inclinação dravidiana entre as populações indígenas da floresta amazônica. Ao nos
deparamos com as descrições existentes para os Povos do Centro, tomamos conhecimento
de que essas populações não pensam e classificam suas relações de parentesco como
muitos de seus vizinhos. Diferentemente dos povos com terminologia dravidiana nas
Terras Baixas da América do Sul, os Bora e os demais Povos do Centro não expressam

148
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

por meio de seus termos de parentesco uma regra positiva de casamento, nem formulam
qualquer diferenciação entre parentes cruzados e paralelos.

A atual insuficiência de dados e de análises mais recentes faz com que sejam
restritas as possibilidades de comparação e, consequentemente, de desenvolvimento de
um modelo mais amplo – que já seria, de saída, pouco comum na Amazônia. Assim, ainda
que eu suspeite que muito da interpretação que se seguirá proceda entre os demais povos
da região (Karadimas, 1997, 2000b; Londoño, 2004: 304-309; Echeverri, 2016: 86), não
me é possível, a partir das informações que dispomos atualmente, traçar paralelos mais
abrangentes. Diante desse cenário, vale ressaltar que embora eu interprete (como
Karadimas (2000b) para os Miraña e Londoño Sulkin (2004) para os Muinane) que o
sistema de parentesco bora seja semi-complexo (Lévi-Strauss, 1949; Héritier, 1981), sua
terminologia parece ser predominantemente esquimó (e não esquimó-havaiana, como
notado por outros autores para os grupos vizinhos – ver infra)176.

No que segue, buscarei esmiuçar primeiro alguns dados recolhidos em campo


acerca da terminologia de parentesco bora. Essa análise prévia dos termos e de seus usos
será fundamental para compreender melhor determinadas relações que nos acompanharão
daqui até o final deste trabalho.

3.1.1. Os termos e alguns de seus usos


Os Bora se dividem internamente em uma série de grupos patrilineares. Esses
grupos são chamados, em Bora, de dóhjiba, palavra que designa também a tipoia utilizada
para carregar bebês e crianças pequenas (esp: carguero). Em espanhol, tais grupos são
traduzidos como clanes. Seguindo os demais autores que trabalharam na região e a
tradução empregada pelos próprios Bora, adiante nomearei esses patrigrupos de filiação
simplesmente como “clãs”. À medida que avançarmos na discussão será possível
compreender de maneira mais clara a forma e a dinâmica dos mesmos, a divisão interna
de cada um deles em diferentes linhagens e sua relação com a vida ritual.

176
Para estabelecer tais classificações entre as terminologias uso como guia as distinções propostas por
Murdock (1949).
149
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

Muito mais numerosos no passado, atualmente há 25 clãs bora, segundo


levantamento feito em março de 2016 no I Congreso de los clanes existentes y etnias
afines dentro del territorio de los hijos del tabaco, coca y yuca dulce de la Gente de
Centro – Pueblo Bora177. Nessa ocasião, líderes e anciãos bora elaboraram a seguinte
tabela (que reproduzo fielmente, sem traduzi-la ou alterá-la):

No. Clanes Representaciones


totemicos
1 Ajije Gente de Caraná
2 Ahtúmium Gente de Pájaro Azul
3 Bajtsiwamu Gente de Pájaro Picón
4 Boánámu Gente de Boa
5 Cohwámyuje Gente de Garza Blanca
6 Daallimuje Gente de Lorito Perico
7 Iñeje Gente de Canangucho
8 Llehjumu Gente de Gusano de Chontaduro
9 Máriimuje Gente de Plumaje Blanco
10 Méémehebamu Gente de Palma de Chontaduro
11 Mehwámu Gente de Gavilán
12 Muhtsium Gente de Caimillo
13 Namému Gente de Mico Cotudo
14 Néébaje Gente de Achiote
15 Niivúwamyuje Gente de Venado Rojo
16 Ohwámu Gente de Zarigueya (Chucha)
17 Pahtuwamu Gente de Guamo Negro
18 Tsitoivemúinaa Gente de Amanecer
19 Uhmému Gente de Sal de Monte
20 Ukéebaju Gente de Morrocoy
21 Waahiñemu Gente de Mico Zogui-Zogui
22 Wahrómu Gente de Loro Real
23 Icúnééwajye Gente de Barro Amarillo
24 Iijúmuje Gente de Oso Hormiguero
25 Iivámuje Gente de Guacamayo Rojo

Tabela 4 – Quadro dos clãs bora

Na região em que esse trabalho foi desenvolvido, há representantes de 11 dentre


os 25 clãs listados.178 Cada um deles possui um estoque exclusivo de nomes, o direito
sobre determinado território (cujas fronteiras devem ser respeitadas em razão de sua
ocupação primeira) e narrativas míticas que abordam a história de um ou mais de seus
personagens ancestrais. Além disso, tanto os mitos quanto o próprio idioma nativo sofrem

177
Como notaram no encontro, é possível que haja outros clãs não citados entre os Bora no Peru, cuja
existência é ignorada pelos parentes na Colômbia.
178
Os demais encontram-se majoritariamente em La Chorrera, Leticia e em comunidades multiétnicas no
baixo Igaraparaná e no Putumayo.
150
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

variações entre os clãs, o que faz com que uma palavra ou uma narrativa possam ser ditas
de maneiras diferentes a depender da filiação do locutor.

A existência de clãs patrilineares é combinada com o reconhecimento bilateral


do parentesco. Assim, qualquer pessoa do clã dos pais ou dos avós de Ego, seja por via
materna ou paterna, serão seus parentes (esp: parientes – bora: hajki ou meajkímu, “nossa
família”):

Diagrama 1 – Reconhecimento do parentesco

Observando a figura acima, Ego não será interdito de contrair matrimônio apenas
com pessoas de seu clã ou patrigrupo [vermelho], mas também, em razão da filiação de
seus avós maternos e paternos, com aquelas descendentes dos clãs [azul], [amarelo] e
[verde]. Tal proibição incidirá mesmo entre cônjuges potenciais cujo parentesco não
possa ser traçado (por exemplo, uma pessoa do clã [vermelho] que deseje contrair
matrimônio com outra do clã [azul] cuja relação com a avó materna de Ego não seja
retraçável por seus parentes). É importante manter esse esquema em mente para
acompanhar a discussão que se seguirá, pois a esse sistema de classes se conjugará ou se
sobreporá outro no qual o histórico das relações e a distância geracional serão tão
importantes quanto os clãs para o cálculo do reconhecimento do parentesco.

Antes disso, na próxima tabela, apresentarei a terminologia utilizada de G+2 a


G-2. Algumas observações prévias poderão auxiliar a leitura:

(a) Em razão do bilinguismo presente entre os Bora, optei por apresentar tanto
os termos no idioma nativo quanto em espanhol.
(b) Sempre que os termos em Bora estão antecedidos pela partícula ta- (que
indica posse na primeira pessoa do singular) é porque não me foi fornecido

151
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

um termo cujo radical possa vir desacompanhado desse prefixo (e.g.: tahdí,
“meu avô”).
(c) O símbolo (...) é utilizado sempre que a descrição por meio da convenção
tipo F, M, B, Z, etc., não contempla todas as possibilidades de sua aplicação.
Isso é relevante na medida em que há termos que são extensivos a várias
pessoas de uma mesma geração e são determinados pelo reconhecimento
bilateral do parentesco. Assim, opto por vezes por apresentar apenas os
kintypes mais próximos, indicando por meio do símbolo (...) sua extensão
classificatória mais ampla.
(d) Não encontrei variações em relação aos termos empregados por homens e
mulheres, de maneira que tal diferenciação não é apresentada na tabela a
seguir.

Bora Espanhol
Referência Vocativo Referência Vocativo
G+2
FF, MF, FFB, Tahdí Táhdiu Abuelo Abuelo, Abu
FMB, MFB,
MMF, (...)
FM, MM, FFZ, Tallé Taálle Abuela Abuela, Abu
FMZ, MFZ,
MMZ, (...)
G+1
F Caaní Lliío Padre Papá
M Tsɨɨju ou Waá Madre Mamá
waáro
HF, WF, HFB, Aababe Naanillo Suegro Suegro
WMB, WFB,
HMB, WFZH,
HFZH,
WMZH,
HMZH,
HMBW
HM, WM, Aábe Meéro Suegra Suegra
WFZ, HMZ,
HFZ, WMZ,
WFBW,
HFBW,
WMBW,
HMBW
FB, MB, MZH, Naaniu Naáni Tío Tío
FZH, (...)

152
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

FZ, MZ, Meéu Mée Tía Tía


MBW, FBW,
(...)
G0
W Allaba Muúlle ou Esposa / Mujer Mujer
Néhnij
H Allajɨ Muúbe ou Esposo -
Néhnij
ZH, WB, Toonúbe ou Áatyo Cuñado Cuñado ou
BWB, ZH, Tónuúbe Cuña
ZHB, WZH,
HB, HZH
BW, WZ, Tónulle Buújɨ Cuñada Cuñada ou
ZHZ, BWZ, Cuña
WBW, HZ,
HBW, ZH

B, FS, MS Nahbe Nahbe ou Hermano Hermano


Naama
Be1 Ámiaabe - El mayor Hermano
Be2 Bonebe - El menor Hermano
By Nɨjkeébe - El último Hermano
Z, FD, MD Naálle Naálle ou Hermana Hermana
Naama
Ze1 Ámíalle - La mayor Hermana
Ze2 Bonelle - La menor Hermana
Zy Nɨjkeélle - La última Hermana
FZS, MZS, Tsitsiítyu Dohmi ou Primo Primo
FBS, MBS, nahbe ou Naama
(…) Chííchityuéné
nahbe
FZD, MZD, Tsitsíítyu nalle Dohmille ou Prima Prima
FBZ, MBD, ou Naama
(…) Chííchítyuéné
naalle
SWF, DHF Niuhbe - - -
SWM, DHM Niulle - - -
G-1
S Atchi Íllí Hijo Hijo, Papá,
Papi
Se1 Ámiaabe - El Mayor Hijo, Papá,
Papi
Se2 Bonebe - El Menor Hijo, Papá,
Papi
Sy Nijkeébe - El último Hijo, Papá,
Papi
D Ajyúwa Idsii Hija Hija, Mami
De1 Ámíalle - La mayor Hija, Mami
153
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

De2 Bonelle - La menor Hija, Mami


Dy Nijkeélle - La última Hija, Mami
ZS, BS, (...) Tabyébe Íllí Sobrino Sobrino
ZD, BD, (...) Taabyélle Idsii Sobrina Sobrino
DH Áájyaá - Yerno Yerno
SW Íaája - Nuera Nuera
G-2
DS, SS, (...) Iaáchi Íllií Nieto Papá, Papi
DD, SD, (...) Íáácyuwa Idsii Nieta Mami

Tabela 5 – Terminologia de parentesco bora

Para G+2, os termos correspondes a avô e avó (tahdí ou abuelo; tálle ou abuela)
são utilizados tanto para os pais dos pais (FF, FM, MF e MM) e seus irmãos (FFB, FFZ,
MFB, MFZ, FMZ, FMB, MMF, MMB), quanto para todas as pessoas dessa geração (e
das ascendentes – G+3, etc.) que pertençam a um dos clãs dentre os quais Ego reconhece
seu parentesco. Esses termos são usados também quando se intenciona demonstrar
respeito por uma pessoa mais velha, mesmo que não-parente. Além disso, é empregado
constantemente para referir-se a determinados personagens míticos importantes, como o
Abuelo Tabaco, o Abuelo Garza e a Abuela Yerba Fría).

Em G+1, podemos distinguir três conjuntos de termos. O primeiro deles refere-


se àqueles empregados exclusivamente para o pai (F) e a mãe (M) de Ego179. O segundo,
por sua vez, abrange termos utilizados para o que em espanhol traduz-se como tío e tía.
Entram nessa categoria alguns parentes colaterais, a saber: irmãos e irmãs dos pais de
Ego (FB, MB, FZ, MZ), seus cônjuges (FZH, MZH, MBW, FBW) e, de maneira mais
abrangente, quaisquer pessoas da geração dos pais de Ego que se encontrem em um dos
clãs de seus avós maternos ou paternos e que portanto sejam “primos” (cf. terminologia
para G0) de seus pais180. No terceiro conjunto, finalmente, estão os parentes afins
chamados, em espanhol, de suegros ou suegras. Encontram-se nessa categoria tanto os
pais dos cônjuges de Ego (WF, HF, WM, HM) quanto os irmãos desses (WFB, WFZ,

179
Karadimas (2000b: 601) afirma que entre os Miranha o termo para pai (F) é também utilizado, em
algumas situações, para referir-se ao primogênito de Ego (eB) ou ao marido da irmã mais velha (eZH),
sempre que esses estejam em posição de comando de uma maloca. Apesar de Guyot (1972) fazer referência
ao mesmo uso do termo entre os Bora nos anos 1960, não observei tal prática atualmente. Ao perguntar a
alguns de meus interlocutores sobre o assunto, todos afirmaram não se lembrar do termo sendo utilizado
dessa maneira no passado.
180
Por exemplo, FFBS, FFZS, FMBS, FMZS, MMBS, MMZS, MFBS, MFZS, FFBD, FFZD, FMBD,
FMZD, MMBD, MMZD, MFBD e MFZD.
154
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

HFB, HFZ, WMZ, WMB, HMZ, HMB) e seus respectivos cônjuges (WFBW, WFZH,
HFBW, HFZH, WMZH, WMBW, HMZH, HMBW)181.

À diferença terminológica entre pais e irmãos dos pais soma-se uma similaridade
entre os termos vocativos, em Bora, para os pais dos cônjuges (naanillo para homens e
meéro para mulheres) e os irmãos dos pais (naáni para homens e mée para mulheres). Tal
característica, que Karadimas denominou como o “touche dravidienne” (2000b: 611) do
parentesco Bora-Miraña, não se relaciona, porém, a regras positivas de casamento ou a
qualquer distinção entre parentes cruzados e paralelos. Antes, chama-nos a atenção para
uma particularidade da exogamia desses sistemas que será explorada mais à frente. Por
ora, basta ter em mente essa informação, salientando o fato de que tal coincidência não é
encontrada no caso dos termos de referência.

Já em G0, é válido observar que ainda que os termos vocativos utilizados para
marido (H) e mulher (W) não sejam tecnônimos, eles são marcados por certa evitação em
relação à verbalização da relação. Assim, eles chamarão um ao outro ou de néhnij, palavra
que também designa algo feio e sujo, ou de muúbe (a mulher em relação ao homem) e
muúlle (o inverso), variações em gênero do pronome interrogativo “quem”182.

No caso das relações de germanidade, há um termo genérico para indicar, tanto


em sua forma vocativa quanto referencial, os irmãos (B: nahbe) e as irmãs (Z: naálle).
Para além dessa designação genérica, porém, a terminologia se apresenta bastante mais
específica em razão da importância da ordem de nascimento. Dessa forma, os
primogênitos serão sempre ámiaabe (Be1183) e ámíalle (Ze1). Aquelas pessoas nascidas
imediatamente após os primogênitos serão, por sua vez, bonebe (Be2) e bonelle (Ze2). Por
fim, os últimos a nascer serão nijkeébe (By) ou nijkeélle (Zy), termos que são variações
do vocábulo nijkeé, traduzível como “oriente”, “ponta”, “extremo”, “montante” ou

181
A abrangência de certos termos faz com que, em várias situações, mais de um deles esteja disponível.
Por exemplo, observei uma relação na qual Ego, tendo se casado com a filha do irmão do marido de sua
irmã, poderia referir-se a essa pessoa tanto como cunhado (ZH) quanto como sogro (WFB). Ele escolhia
sempre a primeira opção. Nessa e em outras relações que pude conhecer, o fator decisivo parecia ser
geracional: se as duas pessoas se encontravam na mesma geração, buscavam termos em G0; se, contudo, a
diferença de idade era grande, preferiam utilizar os termos correspondentes à G+1 ou G-1.
182
Em espanhol, observei o uso do termo “mujer” pelos homens ao dirigirem-se a suas esposas. O contrário,
porém, não parecia ser comum, de modo que as esposas chamavam seus maridos pelo nome ou apelido.
183
Como exposto no item “Algumas convenções”, utilizo aqui a os números 1 e 2 subscritos às abreviações
de modo a fazer a diferenciação em relação à ordem de nascimento. O mesmo será válido na apresentação
dos termos para as outras gerações.
155
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

“cabeceira” (cf. Parte I desse trabalho e Thiesen & Thiesen, 1998)184. Enquanto as
posições de Be1, Be2, Ze1 e Ze2 não variam com o tempo, já que a primogenitura não é
reversível, a posição de último(a) irmão(ã) ou caçula variará até que de fato os pais de
Ego tenham, normalmente no fim de sua vida adulta, seu último filho(a). Não há termos
específicos para os irmãos “do meio”, isto é, para aqueles que não estejam em nenhuma
dessas três posições. Essa tríplice distinção será especialmente importante quando
discutirmos suas implicações para a onomástica e a vida ritual.

Cunhados e cunhadas possuem termos vocativos e de referência que não se


assemelham a nenhum dos empregados para outras relações. Contudo, é relevante
salientar que eles abrangem não apenas os irmãos do cônjuge (WB, WZ, HB, HZ) ou os
cônjuges dos irmãos (BW, ZH), mas também os respectivos irmãos e cônjuges daqueles
que se encontram em uma dessas duas posições (ou seja, pessoas como HBW ou BWB).

Ainda em G0, serão tidos como “primos” todos os filhos daqueles que Ego
reconhece como tíos (cf. G+1). Isso quer dizer que todos os descendentes de primeira ou
segunda geração (ver adiante) vindos de um dos quatro clãs dos avós paternos e maternos
de Ego serão seus parentes e, portanto, como pontuei há pouco, estarão interditos ao
casamento. O termo vocativo naama, que é usado para primos de ambos sexos, também
é utilizado na relação entre irmãos e irmãs. Essa extensão colateral do termo, contudo,
não é suficiente para afirmar que primos(as) podem ser facilmente taxados como
irmãos(ãs) classificatórios(as). Em campo, observei que a diferença entre eles é marcada
não apenas pelo uso mais corriqueiro de outros termos vocativos (dohmi para homens e
domille para mulheres), mas também por um tratamento cotidiano diferente daquele
existente entre irmãos e entre primos185. Veremos, porém, que os filhos(as) dos
primos(as) serão chamados corriqueiramente de sobrinhos, fato que reaparecerá quando
conhecermos as tendências de casamento e a centralidade dos órfãos.

Há, por fim, um par de termos em G0 que podem ser traduzidos, seguindo a
indicação de Karadimas (idem) como “co-sogros”. Dessa forma, os pais dos cônjuges dos
filhos (SWF, DHF) serão niuhbe, enquanto suas mães (SWM, DHM) serão niulle.

184
Como já notei, o sufixo –be marca o gênero masculino, enquanto –lle, o feminino.
185
Baseado na correspondência do termo naama, Karadimas (1997, 2000b) utiliza o termo “irmão
classificatório” ao analisar a terminologia miraña.
156
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

Também veremos à frente que a existência desse termo parece alinhar-se com a presença
de uma relação de parentesco anterior entre os pais de um casal que contrai matrimônio.

Em G-1, há um termo genérico que designa todos os filhos (atchi) e filhas


(ajyúwa). Em sua forma vocativa, eles são tratados pelos mesmos termos utilizados para
pais (íllí) e mães (idsii), algo que foi traduzido para o espanhol como papá ou papi para
os filhos e mami para as filhas. Para além disso, a terminologia empregada para os filhos
e filhas em relação a sua ordem de nascimento é a mesma apresentada para os irmãos.
Logo, os primogênitos de um casal serão ámiaabe (Se1) e ámíalle (De1), sendo os filhos
nascidos imediatamente em seguida bonebe (Se2) e bonelle (De2). Por fim, os caçulas
também serão nijkeébe (Sy) ou nijkeélle (Dy). Os mesmos termos vocativos (bora: íllí e
idsii; esp. papi ou mami) serão usados para os sobrinhos, cujos termos referenciais
específicos são, respectivamente, tabyébe para os meninos e taabyélle para as meninas.
Além dos filhos dos irmãos de Ego (ZS, BS, ZD, BD), entram nessa categoria todos os
filhos daqueles que são chamados por Ego de primos, como FBSC, MBDC, etc.
Karadimas (2000a, 2000b) chama a atenção para o fato de que, entre os Miraña, o termo
para sobrinho coincide com aquele para “órfão”, categoria que será central também para
este trabalho. Entre os Bora, contudo, não existe uma correspondência tão direta (ver
infra)186.

Finalmente, os genros e noras serão aájyaá (DH) e iaája (SW). Quando eu


perguntava aos Bora se esses termos seriam extensivos aos irmãos dos genros e das noras
(logo, DHB, DHZ, SWB, SWZ), sempre me disseram que sim. Contudo, eu nunca
observei os termos sendo aplicados de tal maneira. Os cônjuges dos filhos, na maioria das
vezes, são tratados, antes do casamento, como sobrinhos. Como ficará claro a seguir,
trata-se geralmente de sobrinhos classificatórios consideravelmente distantes e no limite
último do reconhecimento do parentesco consanguíneo. Mesmo assim, a formação do
novo casal não faz com que a relação de consanguinidade pré-existente (ainda que
distante) seja completamente apagada em detrimento da afinidade posteriormente
instituída, de modo que é comum que Ego siga chamando de sobrinhos os irmãos dos
cônjuges de seus filhos.

186
Apenas uma análise etimológica mais acurada da língua Bora poderia afirmar se é possível ou não que
úújóveébe (órfão) seja uma derivação da forma não-possuída de sobrinho (byébe).
157
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

Em G-2, há apenas uma dupla de termo para netos (iaáchi) e netas (íáácyuwa).
Eles não se restringem, contudo, apenas aos filhos dos filhos (DC, SC), mas sim a todos
os filhos daquelas pessoas que entram na categoria de sobrinhos para Ego (por exemplo,
FBSSC e MBDC). Bem como ocorre para os filhos e os sobrinhos, os netos também são
chamados de íllií e idsii, ou papi, papá e mami, em espanhol.

3.1.2. Casando-se à boa distância


A curiosidade irrefreável dos Bora me rendeu interessantes conversas sobre o
trabalho antropológico, em especial sobre o processo de levantamento de dados
genealógicos e sobre as nuances das relações de parentesco entre outros grupos indígenas
no Brasil, na África, na Índia... Algumas pessoas realmente se envolveram com minhas
indagações e me ajudaram bastante buscando descobrir o que elas mesmas também iam
se interessando em saber: se não tinham certeza sobre o nome da esposa de um
antepassado distante ou sobre a ordem de nascimento dos filhos de um primo,
esforçavam-se por recolher comigo essas informações nos mambeaderos e em conversas
informais. Em seguida, trabalhávamos na organização desses dados no computador. Para
alguns de meus interlocutores, esse trabalho era importante porque muitos jovens de hoje
em dia se casam “errado” pois não sabem reconhecer quem são seus verdadeiros parentes.

Pouco a pouco, fomos construindo e ajustando uma genealogia o mais


abrangente possível. Ao explicar-lhes então que outros grupos amazônicos possuíam
termos de parentesco que expressavam preferências matrimoniais (como é o caso dos
termos para primos cruzados nos sistemas dravidianos), os Bora reagiaram com
estranheza tanto porque esse tipo de termos lhes era desconhecido quanto porque lhes
pareceu aberrante que o casamento entre primos “de primeiro grau” seja permitido
alhures187. De fato, há, entre os Povos do Centro, uma regra proibitiva única: não é
permitido casar com parentes.

187
Coincidentemente, meus pais são primos em primeiro grau, o que era sempre lembrado, sobretudo pelos
mais velhos, como exemplo de uma conduta abominável não tanto de meus pais, mas sim de meus avós,
que foram coniventes com a prática incestuosa. Essa informação ajudou-me a entender a importância das
relações entre os pais dos cônjuges ou “co-sogros” (ver tabela acima).
158
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

Vimos, por meio da apresentação e análise breve da terminologia, que são


parentes todas aquelas pessoas oriundas do clã patrilinear de Ego ou de um dos clãs de
seus avós (logo, dos clãs de FM, MM e MF). Notamos, além disso, que mesmo que Ego
não seja capaz de retraçar os laços entre uma pessoa e, por exemplo, seu avô materno ou
sua avó paterna, o próprio fato de pertencer ao clã de um desses últimos faz com que ela
esteja dentro do espectro dos parentes e, portanto, das pessoas interditas ao casamento. À
primeira vista, esse tipo de proibição seria suficiente para que classificássemos o sistema
bora simplesmente como exogâmico, localizando-o, além disso, no mesmo espectro
daqueles que Lévi-Strauss (1949) denominou como “complexos”: sem regras ou termos
prescritivos de casamento, escolhe-se qualquer cônjuge disponível fora do limite do
incesto.

Porém, como já mencionado, embora incida uma proibição sobre o casamento


com membros de um dos quatro patrigrupos dos avós paternos e maternos, alguns laços
de parentesco são feitos e desfeitos por outras vias. Incide aqui, principalmente, um
importante cálculo que leva em consideração as relações prévias e a distância geracional.
Perceber essa variação permitiu que eu observasse que os casamentos tidos como ideais
ou desejáveis para os Bora são, na verdade, aqueles que acontecem tão proximamente
quanto possível, levando-se em consideração as regras negativas e o acúmulo de relações
de alianças através do tempo. Para que fique mais claro, debrucemo-nos sobre um caso
hipotético.

159
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

Diagrama 2 – O casamento desejável

Na figura acima, assumamos o ponto de vista do homem [11]. Ele reconhece


como parentes todas as pessoas do clã [vermelho], de seu pai [8]. Assim, [5] será seu avô
(tahdí), bem como [6]. Ele chamará [9], a filha do irmão do pai de seu pai (FFBD), de
mée ou tía. A filha [12] dessa última, em razão da filiação de seu pai [10], será do clã
[azul]. Mesmo não sendo de nenhum dos quatro clãs de seus avós materno ou paternos,
[12] será chamada por [11] de dohmille, naama (ou simplesmente prima), pois [11] e [12]
também se reconhecerão como parentes. Na geração seguinte, a filha dessa prima ([15],
do clã [verde]), será, para [11], sua sobrinha (taabyélle).

Estamos aqui diante de um dado que adiciona uma nova e crucial informação a
respeito das relações de parentesco entre os Bora. Segundo o que discutimos até aqui,
uma vez que as mulheres [12] e [15] pertencem a clãs diferentes daqueles dos avós
paternos e maternos de [11]188, era de se esperar que as primeiras não fossem consideradas
pelo último como suas parentes. Porém, elas são, para ele, respectivamente sua prima e
sua sobrinha. O que observamos, então, é que a um critério que organiza os parentes
segundo a classe ou ao clã a que pertencem, sobrepõe-se outro, que se baseia em relações
egocentradas que variam sempre e de acordo com arranjos matrimoniais anteriores.
Contudo, qual seria o limite de tal critério ou mesmo o método para o reconhecimento
dessas relações de parentesco? Para responder a essa pergunta, vejamos o que acontece
se assumirmos a perspectiva de [15], a sobrinha de [11].

Do ponto de vista de [15], uma vez que sua mãe é prima do homem [11], ela o
chamará de naanillo, ou tío. Era de se esperar, portanto, que [15] se referisse a [14] como
sendo seu primo. Isso, contudo, não acontece. Ao não pertencerem ao mesmo clã e ao se
reconhecerem em uma relação genealógica suficientemente longínqua ([14] para [15] é
MMFBSS), embora seus pais sejam parentes [14] e [15] já não se reconhecerão da mesma
maneira. Tendo ultrapassado o limite retraçável do parentesco, eles serão, no máximo,
“parentes muito, muito distantes”. É provável ainda que, ao viverem em malocas
separadas, a distância genealógica conjugue-se com um afastamento espacial que termina
aprofundando o afastamento entre eles – muito embora a distância espacial não seja, entre
os Bora, tão importante como em outros contextos ameríndios (Viveiros de Castro, 1993).

188
Representados no diagrama pelas cores laranja, cinza e rosa – respectivamente, [2], [7], [3] e [4].
160
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

Assim, tendo em mente o diagrama acima, o laço existente entre dois parentes
consanguíneos ([5] e [6]) em G0 segue existindo em G-1 e G-2, mas torna-se inexpressivo
para seus descendentes em G-3, que poderão casar-se à boa distância (desde que não
pertençam ao mesmo clã).

O argumento apresentado por Gasché (1976) e por Karadimas (2000b) é que,


ainda que não exista uma regra de casamento prescritiva, é preferencialmente entre
pessoas nessas posições (chamados pelos Bora de “primos de terceiro grau” ou “primos
muitos distantes”) que se darão os casamentos. Meus dados confirmam tal proposição, e
veremos no próximo capítulo como os Bora lidaram com essa tendência matrimonial ao
passarem por uma situação de extrema queda demográfica. Por ora, lembremos um fato
importante já mencionado: existe em Bora um termo específico para os “co-sogros”
(niuhbe e niulle), isto é, para SWF, SWM, DHF e DHM.

Não nos surpreende, nesse sentido, que o casamento entre [14] e [15] seja
privilegiado em detrimento de matrimônios contraídos no exterior. Os Bora dizem que
não há problemas em casar com “primos muito distantes” – e que, na verdade, é melhor
fazê-lo do que casar com Murui-Muina ou Ocainas. Uma mulher que se case com um
filho de um primo ou prima de um de seus pais utilizará um termo vocativo igual ao
anterior no trato com seus sogros (cf. terminologia), muito embora esse hábito venha
sendo ostensivamente substituído pela distinção em espanhol entre tíos e suegros.

Os pais do novo casal, entretanto, passarão a tratar-se como “co-sogros”,


terminologia sem tradução para o castelhano e que evidencia uma nova aliança
estabelecida entre os dois núcleos familiares, colocando em relevo o fato de que, na
maioria das vezes, os casamentos são relações negociadas entre os pais dos cônjuges:

Ce sont le plus souvent les parents qui recherchent un conjoint pour leur
descendance. Cette quête de gendres et de brus ne se fait pas au hasard.
C’est dans la catégorie des germains classificatoires que les parents
s’emploient à trouver les futurs beaux-parents de leur descendance (...).
Ainsi, le calcul des liens généalogiques d’une parentèle ne doit pas
partir d’Ego, mais du père ou de la mère d’Ego. La formule canonique
de l’alliance miraña serait « la femme du fils (bru) est la fille d’un frère
ou d’une sœur classificatoire » (SW = « B »/« Z » D) ou « le mari d’une
fille (gendre) est le fils d’un frère ou d’une sœur classificatoire » (DH
= « B »/« Z » S), tant qu’ils n’appartiennent pas aux clans des grands-
parents d’Ego. (Karadimas, 2000b: 607)

161
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

Assim, sempre que o filho de um “irmão classificatório” do pai ou da mãe (ou,


como vimos, de um “primo” cuja relação “real” de germanidade remonte a G+2) não
pertencer a nenhum dos quatro clãs dos avós de uma mulher, ele será um cônjuge em
potencial para a mesma. Vemos porque, então, Gasché intuía, ainda na década de 1970,
que a exogamia na região do Caquetá-Putumayo era uma espécie de “ilusão”: uma vez
que os laços de parentesco que não passam pelo pertencimento aos mesmos patrigrupos
tendem a se dissolver ao longo do tempo (mais precisamente, em G-3), a afirmação de
que é necessário casar-se “longe” e “com outra gente”, ao ser analisada junto aos dados
genealógicos com certa profundidade, revela-nos que os Povos do Centro buscam, por
meio das alianças matrimoniais, reiterar relações de parentesco pré-existentes entre
malocas (1977: 159).

Nesse ponto, é possível dialogar com o trabalho de Héritier acerca dos sistemas
semi-complexos de parentesco, classificados pela autora como a meio caminho entre
estruturas elementares e complexas:

(...) elles constituent le point d’articulation entre les deux autres


formules, pour la double raison qu’elles énoncent des interdictions
certes (et non des préférences ou des prescriptions) mais en les faisant
porter sur des groupes sociaux, qu’il s’agisse d’unités sociales
organiques, tels les clans ou les lignages, ou de catégories de parenté
envisagées globalement : par cet aspect, elles se rapprochent des
structures élémentaires tandis que les réseaux probabilistes d’alliance
qu’en toute logique ces interdictions globales sont censées engendrer
les font relever des structures complexes. (Héritier, 1981: 77)

Assim, as interdições nesses sistemas não se dirigiriam a uma categoria indistinta


de parentes como em sistemas complexos, mas a unidades sociais “orgânicas” como clãs
e linhagens. Ao pensarmos no caso bora, vemos como tais interdições, combinadas às
possibilidades matrimoniais dentro do grupo, terminam por fazer com que os cônjuges
desejáveis se encontrem, no mais das vezes, em uma mesma posição (como demonstra o
diagrama anterior). Mesmo que o foco de Héritier seja a análise de terminologias crow-
omaha, a autora defende que sistemas semi-complexos podem ser encontrados em
terminologias de outros tipos. A partir dessa discussão (e como mencionei no começo
deste capítulo), considero que o sistema bora é semi-complexo e entendo, ainda, que as
interdições matrimoniais são delineadas não apenas a partir o pertencimento clânico dos

162
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

cônjuges potenciais, mas levando-se também em consideração o histórico de relações de


seus ascendentes189.

Por seu turno, a exposição dos dados recolhidos em campo revela que a
terminologia bora apresenta traços claramente esquimós. Se mantivermos em mente os
termos de parentesco da Tabela 5, veremos que, em G+1 e em G-1, enquanto há termos
específicos para a família nuclear (F, M, S, D), os demais parentes colaterais são todos
denominados como “tios/as” (G+1) e “sobrinhos/as” (G-1). Quando nos voltamos para as
gerações G+2 e G-2 percebemos, porém, que existe apenas um único termo disponível
(respectivamente, avós e netos) usado para marcar qualquer relação de consanguinidade.
Em G0, por fim, notamos uma clara diferenciação nos termos usados para “irmãos” (B,
Z) e “primos” (sejam eles reais – FBC, MZC, FZC, MBC – ou classificatórios). Assim,
enquanto os irmãos serão nahbe (masculino – ref. e voc.) e naálle (feminino – ref. e voc.),
os primos serão, na forma referencial, tsitsiítyu nahbe (masculino) e tsitsiítyu naálle
(feminino). Traduções possíveis para esses ultimos termos são “outro [tipo de]
irmão/irmã” ou, ainda, “irmão/irmã enfraquecido”. Em relação aos termos vocativos, há
um importante detalhe. Os primos podem ser chamados tanto de dohmi (masculino) e
dohmille (feminino) quanto de naama, sem distinção de sexo. Se voltamos à mesma
tabela, vemos que esse termo vocativo também é usado por meus interlocutores na relação
com seus irmãos (B, Z). Analisemos mais detidamente essa informação.

Tal escassez descritiva e indistinção terminológica em G0 poderia ser lida como


razão suficiente para afirmar que a terminologia bora, tal como descrito por Karadimas
(2000b) para os Miraña e por Londoño Sulkin (2004) para os Muinane, seja esquimó-
havaiana. Contudo, enquanto os autores apresentam para os referidos grupos uma
indiferenciação dos termos vocativos e referenciais para irmãos e primos, a análise do
termo naama parece indicar que, entre os Bora, tal ‘havaianização’ da terminologia é
mais resultado de uma variação do gradiente de distância existente entre parentes do que
de uma real indistinção terminológica entre irmãos e primos.

189
Para o desenvolvimento da relação entre sistemas semi-complexos e as “sociedades de casas” ver, além
de Héritier (1981), Carsten e Hugh-Jones (1995). Para um comentário crítico do livro de Héritier, ver
Viveiros de Castro (1992a).
163
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

Como ficará claro no decorrer desse trabalho, os Bora operam uma importante
diferença na qual as pessoas relacionadas por laços biológicos são denominadas como
“parentes legítimos”. Londoño Sulkin (2004: 299-303) observa o mesmo para os
Muinane, que denominam seus parentes biológicos como “propios”190. Apesar disso, os
dados de Londoño Sulkin, bem como os de Karadimas, deixam claro que essa
diferenciação existente em espanhol entre parentes legítimos ou propios não encontra, em
G0, paralelos na terminologia dos idiomas indígenas: todos os parentes consanguíneos na
geração de Ego são, entre esses povos, seus irmãos ou irmãs (reais ou classificatórios).
Os dados que colhi, todavia, indicam que o mesmo não acontece entre os Bora. Como
explicar, então, que os parentes consanguíneos em G0 chamem a seus irmãos legítimos e
àqueles que localizam na categoria de “primos” pelo mesmo termo naama?

Naama, segundo meus interlocutores, é uma forma afetuosa de dirigir-se aos


consanguíneos de ambos sexos e de mesma geração – em suma, naama seria algo como
“irmãozinho” ou “mano”, à maneira dos vocativos íllí (masculino) e idsii (feminino),
traduzidos em espanhol por papi e mami e usados para qualquer consanguíneo de Ego em
suas gerações descendentes. Assim, tendo em mente a regra virilocal de residência e a
filiação clânica patrilinear, é bem possível que Ego, vivendo na maloca de seu pai,
conviva cotidianamente com seu o filho do irmão de seu pai (FBS), mas não com os filhos
do irmão de sua mãe (MBC) – que, muito provavelmente, vivem na maloca dos parentes
maternos de Ego. Dessa forma, em razão da distância e da convivência, Ego chamará seu
primo FBS de naama, mas o mesmo não acontecerá com seus outros primos MBC191.

Ao conjugarmos essa informação com os demais termos referenciais e vocativos


usados para irmãos e primos, evidencia-se como esse “aspecto havaiano” da terminologia

190
Assim, um sobrinho que seja filho do irmão (B) de um homem será seu sobrino propio, em detrimento
dos sobrinhos classificatório (filhos dos primos e primas). Os Bora, por vezes, também usam o termo
“propio” para referir-se aos parentes legítimos.
191
Viveiros de Castro (1993) observa aquilo que denomina como “havaianização matrimonial” no
dravidianato da América do Sul. Na ocasião, o autor chama atenção para o fato de que, por vezes, existe
uma distinção entre parentes próximos-reais e distantes-classificatórios que opera segundo certa preferência
de contrair casamentos como aqueles de segundo tipo. Há de se notar, contudo, que o caso bora que aqui
apresento vê no casamento com o(a) primo(a) de “terceiro grau” uma aliança entre pessoas cuja distância
genealógica é suficiente para classificá-las fora do espectro do parentesco classificatório - algo que,
finalmente, expressa-se na ausência de termos de tratamento entre potenciais cônjuges nessas posições.
164
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

bora em G0 deve ser lido com cautela – uma vez que ele apresenta formas incompletas
ou, para usar o termo nativo, enfraquecidas192.

Como já sabemos, a distinção entre parentes reais e classificatórios observada


entre os irmãos e primos não é encontrada, por exemplo, entre sobrinhos. Assim, muito
embora os Bora tracem uma clara diferença entre filhos (atchi – masculino, ref.; ajyúwa
– feminino, ref.) e sobrinhos (tabyébe – masculino, ref.; taabyélle – feminino, ref.), não
há diferença terminológica entre sobrinhos legítimos e classificatórios: serão sobrinhos
de Ego os filhos de todos os seus parentes colaterais, sejam eles seus irmãos(as) ou seus
primos(as). Vimos, no último diagrama, que isso faz com que as relações de parentesco
entre os Bora sejam traçadas (e desfeitas) não apenas segundo a filiação clânica de cada
um, mas de acordo com um sistema no qual cada casamento representa uma fórmula
original que, por meio de novos arranjos dos laços de consanguinidade e aliança,
reconfigura a classificação dos parentes para as gerações vindouras (Héritier, idem: 80).

Gasché (1977) perguntava-se como seria possível encontrar uma pessoa casável
dentro de um sistema que opera segundo uma lógica que parece exaurir a todo o momento
suas próprias possibilidades de reprodução: enquanto a regra proibitiva preza pela
exogamia, existe uma produção incessante de novos parentes por meio da extensão
colateral do parentesco. Espero que tenha ficado claro que a resposta a essa questão, como
o próprio autor pontua, encontra-se na combinação entre o sistema de clãs e a
diferenciação que tais populações operam, a partir do cálculo genealógico, entre parentes
próximos e distantes. Assim, é através das gerações e por meio de relações pré-existentes
que o parentesco bora logra produzir novas configurações de antigas relações, fazendo
com que seja possível para uma pessoa encontrar cônjuges dentro de seu mesmo grupo
ou povo de origem193. No capítulo 5, por meio da análise de arranjos matrimoniais
contemporâneos, conheceremos a aplicação e os limites dessa prática no pós-caucho.
Veremos ao longo desse trabalho, ainda, que um chefe será tão mais prestigioso quanto
maior for sua capacidade de recriar e consolidar relações por meio dos arranjos

192
Poderíamos nos perguntar se houve algum impacto na terminologia a partir do decréscimo populacional
do começo do século XX, dos casamentos interétnicos e da inobservância ou adaptação das regras
proibitivas que se seguiram. Entretanto, dada a carência de fontes sobre o tema, qualquer análise desse tipo
no momento seria meramente especulativa.
193
Karadimas (2000b) faz uma breve leitura sobre o tema da troca de mulheres e da reciprocidade no
sistema Miraña – que não reproduzo aqui porque nos distanciaríamos muito do foco da discussão deste
capítulo.
165
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

matrimoniais de seu pessoal. Antes disso, para que avancemos na discussão, é necessário
abordar a centralidade da onomástica e da ordem dos nascimentos.

3.2. A conjugação entre nomes e ordem dos nascimentos

3.2.1. Nomes múltiplos

Certa vez, durante uma refeição coletiva, surgiu o assunto (bastante comum) de
como os jovens já não sabem tratar seus parentes corretamente como no passado. As
pessoas referiam-se em especial ao emprego equivocado dos termos de parentesco e a
transgressão de algumas regras de “etiqueta”. Então, uma mulher me disse: “Eu não sou
assim, eu sei tratar bem as pessoas. Eu nunca falo o nome de ninguém, nunca trato alguém
por seu próprio nome”. A frase me chamou atenção e me fez recordar minha descoberta
então recente de que muitos dos nomes em Bora listados por Mireille Guyot em seus
cadernos de campo eram, na verdade, apelidos jocosos.

Ao conferir com meus interlocutores os nomes anotados por Guyot para cada
uma das pessoas que viviam na região àquela época, vários deles caíram no riso ao
lembrar o apelido de infância de um parente e a história engraçada por trás desses nomes.
Porém, quando eu perguntava de fato o nome em Bora de determinada pessoa, ou bem
falavam que o desconheciam ou, quando me eram pessoas mais próximas, acabavam
dizendo, mas sempre de maneira bem reservada. Com o tempo, entendi que se a
verbalização dos nomes não é um interdito radical, tampouco é de bom tom que ele venha
a público fora de contextos muito específicos. De fato, apenas presenciei os nomes de
várias pessoas sendo revelados publicamente na ocasião da preparação para um ritual e
da elaboração do ambil e do sal vegetal a serem consumidos no mesmo. De modo mais
pontual, os nomes sempre são investigados e levados em conta pelos xamãs em seus
processos terapêuticos. De caráter portanto “semi-secreto”, um nome pode ser tanto a
chave para a cura de uma enfermidade quanto o caminho mais rápido para se fazer um
feitiço.

Assim, apesar de reconhecer nos nomes em Bora um campo de estudo


interessante, opto por não me aprofundar numa análise lexical daqueles que conheço já

166
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

que não me sinto confortável em expô-los de forma tão direta. Além disso, eu certamente
incorreria no risco de revelar nomes de pessoas falecidas ou finadas há pouco tempo, o
que eventualmente causaria sofrimento em seus parentes. O uso do termo finado antes
dos nomes de pessoas recentemente falecidas é condição imprescindível para, apenas
quando necessário, fazer-se alusão a elas. Depois de passadas algumas décadas, esse
cuidado passa a ser cada vez menos intenso, principalmente quando se tratam de pessoas
cujos interlocutores não conheceram em vida – e é por isso que, ao longo desse trabalho,
revelo o nome em idioma de pessoas há muito falecidas e, no mais das vezes, sem nomes
em espanhol.

Em relação às pessoas vivas, os Bora buscam diversos caminhos para transpor


dificuldades a respeito desse incômodo. No geral, optam por superar a relativa interdição
em relação ao uso dos nomes em seu idioma por meio do acionamento de outros tipos de
nomes que uma pessoa possui: além dos apelidos, os nomes e sobrenomes em espanhol.
É o que também constata Gasché para o conjunto mais abrangente dos Povos do Centro:

Estos nombres personales dados en una fiesta son nombres rituales que
no se usan en la vida diaria, donde la gente se llama por el término de
parentesco o un apodo atribuido poco después del nacimiento. El
nombre ritual, en cambio, pronunciado en la fiesta delante todos los
invitados de las malocas adyacentes y lejanas, significa el
reconocimiento público de la persona como miembro de un clan y de
un linaje doméstico caracterizado por su carrera ceremonial. (Gasché,
2009: 15)

Os apelidos, em Bora ou em espanhol, são geralmente individualizados e


biográficos. Eles fazem referência a uma característica corporal (Gordo, Flaca) ou
comportamental, ocasionalmente relacionada a um animal (Araña, Oso194, Morrocoy195,
etc.) ou a algum evento marcante (um acidente ou outro “causo” do passado). Certas
vezes, são simplesmente diminutivos ou hipocorísticos dos nomes em espanhol196.

194
“Oso hormiguero” (em português, tamanduá).
195
Jabuti.
196
Hipocorísticos, ou modificações mais ou menos regulares de nomes comuns, são bastante frequentes
nos países de língua hispânica. Por exemplo, Francisco transforma-se em Pacho ou Pancho, Jesús em
Chucho, Laura em Lauri, etc. Além desses hipocorísticos, os Bora possuem vários outros, derivados de
nomes menos comuns. Assim, proliferam-se apelidos do tipo Tique, Chico, Tito, Chama, etc.
167
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

Os sobrenomes, também utilizados em detrimento dos ‘nombres en idioma’197,


foram introduzidos na região com a chegada dos padres capuchinhos nos anos 1930 (ver
cap. 2). Ao implementarem o batismo cristão e o registro dos nomes em livros oficiais,
os religiosos acabaram utilizando o nome em Bora dos pais desses primeiros indígenas
batizados para compor seus novos sobrenomes, transmitindo-os posteriormente a seus
descendentes. A dificuldade que possuíam em encontrar uma grafia adequada gerou,
porém, corruptelas quase irreconhecíveis. Assim, por exemplo, os filhos e os demais
descendentes de Dujdulli levam o sobrenome Teteye e os de Iíjulliu são Gifichiu. Nessa
mesma época, foram dados também pelos padres os primeiros nomes em espanhol,
majoritariamente cristãos ou europeus (José, Juan, Pablo, Maria, Raquel, etc.). Com o
passar do tempo, o estilo dos nomes em espanhol acompanhou aqueles empregados por
outros atores do mundo não-indígena com quem os povos da região passaram a ter
contato, como regatões, narcos e funcionários dos serviços públicos de saúde e educação.
Assim, abundam atualmente nomes mais americanizados, similares àqueles utilizados em
Leticia, Medellín ou Bogotá, como John, Willian, Yaneth, Cindy, etc.

Assim, enquanto os nomes em espanhol e os sobrenomes apareceram entre os


Bora a partir do contato dos mesmos com diversos atores não indígenas, os apelidos
parecem ser, desde muito tempo, uma forma tão eficaz quanto os termos de parentesco
para evitar o pronunciamento público dos nomes “em idioma”. Ao analisar a onomástica
tukano, em muitos pontos semelhante àquela vigente entre os Bora, Hugh-Jones descreve
o que aqui chamo de “nomes em idioma” como “nomes de espírito”. Creio que sua
concisa definição funcione também para o caso que venho analisando:

Os nomes de espírito são os nomes dos ancestrais do clã, são


propriedade dos grupos exogâmicos aos quais pertencem os clãs e
servem para perpetuar a existência e a vitalidade do grupo que está
acima e além da vida dos indivíduos que, temporariamente, são seus
portadores. (Hugh-Jones, 2002: 53)

Entre os Bora, como vimos, enquanto os nomes em espanhol ou os apelidos são


publicizados sem grandes problemas, os segundos (“em idioma” ou “de espírito”) são
mencionados apenas pontualmente. O relativo encobrimento desses nomes, todavia, não

197
Utilizo aqui uma construção parecida àquela que os Bora utilizam em espanhol. Ao se referirem aos
nomes que são dados na língua nativa, geralmente usam a expressão “nombre en idioma” ou “nombre
tradicional”.
168
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

deve ser lido como prova de sua menor importância. Ao contrário, eles são fundamentais
para que entendamos de maneira mais abrangente tanto o parentesco quanto a vida ritual.

3.2.2. Nomes ordinários e titulares

Ao voltarmo-nos então para esses nomes, que os Bora definem também como
“tradicionais” ou “profundos”, é importante ter em conta que eles podem ser de dois tipos.
Em primeiro lugar, os nomes ordinários são aqueles dados à maioria das pessoas no
momento de seu nascimento ou um pouco depois, sendo denominados simplesmente
como “nomes” (bora: meme). De transmissão não-ritualizada, esses nomes geralmente
vêm de um parente paterno (vivo ou morto, mas preferencialmente em G+2) do novo
membro da família, sendo assim um daqueles nomes que fazem parte do estoque limitado
que possui cada clã. Porém, essa não é uma regra radical, sobretudo se o nominado possuir
parentes maternos vindos de linhagens de clã de maior prestígio. É importante notar,
desde já, que foi justamente o reconhecimento bilateral do parentesco (e portanto a
viabilidade, em casos excepcionais, de transmitir nomes não apenas por via paterna) que
possibilitou, como veremos, os rearranjos que conduziram à reorganização e reprodução
dos clãs no pós-caucho198.

O segundo conjunto engloba aqueles nomes mais prestigiosos que são chamados
também de nomes titulares ou de carrera. Eles idealmente são transmitidos apenas aos
filhos mais velhos (Se1, Se2, De1 e De2) de um dono de maloca que terá sido no passado,
ele mesmo, um primogênito (Se1). O diagrama a seguir ilustra a lógica dessa transmissão.

198
É possível que nomes ordinarios sejam substituídos por outros ao longo da vida de uma pessoa, seja
porque há evidências de que a escolha não foi bem-sucedida (geralmente constatada por meio de doenças
e mau-agouros), seja porque o antepassado de quem a pessoa herdou seu nome possuiu também outros
nomes. A esse respeito, os Bora contam que no passado, quando os nomes em espanhol não tinham ainda
sido introduzidos e a população era bastante mais numerosa, todas as pessoas possuíam três nomes ao longo
da vida (nomes de infância, da fase adulta, de velhice), muito embora a maioria não passasse pelos rituais
de nominação exclusivo daqueles que portam nomes titulares (ver adiante). Atualmente, essa prática é cada
vez menos comum.
169
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

Diagrama 3– Transmissão de nomes titulares

No diagrama acima, a disposição dos colaterais em cada geração segue a ordem


de nascimento e as cores [vermelho] e [azul] que preenchem seus símbolos representam
as reincidências dos mesmos conjuntos de nomes titulares através das gerações. A
diferença entre esses conjuntos ficará clara a seguir, mas notemos por ora que cada um
deles é composto por um nome masculino e outro feminino. Assim, observemos que [3]
e [5] são os filhos primogênitos (eS1 e eD1) de [1] e [2], sendo [7] e [9] seus filhos
imediatamente subsequentes (eS2 e eD2). O homem primogênito [3], ao se casar com [4],
cuja filiação desconhecemos, transmitirá seu próprio nome titular a seu primogênito [11].
Os demais filhos receberão os outros nomes dos parentes da geração de [3]: [13] receberá
o nome de [5], irmã primogênita de seu pai; [15] receberá o nome de [7] e [17] receberá
o nome de [9]. Todos os outros nessa geração ([19], [20], [21], [22], [23] e [24]),
representados com símbolos preenchidos com a cor [cinza], receberão nomes ordinários
– a menos que, no caso dos filhos de [6] e [10], seus próprios pais os transmitam nomes
titulares vindos de seus respectivos clãs.

Na geração seguinte, quando do casamento de [11], a mesma lógica se aplicará a


seus primogênitos, que herdarão os nomes já utilizados pelas gerações anteriores. Assim,
[25] levará o nome de seu pai e a [26], [27] e [28] serão transmitidos os nomes de seus
tios e tias primogênitos por via paterna (respectivamente, FeZ1, FeB2, FeZ2). Como na
geração anterior, os filhos dos irmãos de [11], receberão nomes ordinários a menos que
seus clãs paternos (à exceção de [31] e [32], Be2C de [11]) possuam nomes titulares à sua
170
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

disposição. Assim, da perspectiva de um homem primogênito de uma linhagem maior de


clã que possua a prerrogativa de realizar um ritual titular, seus filhos (Se1, De1, Se2 e De2)
serão os únicos a portarem os nomes titulares de seu clã. Tendo em mente o diagrama
acima, podemos notar então que apenas um nome é passado de pai para filho ([1] a [3],
[3] a [11], [11] a [25]), e veremos à frente que essas serão exatamente as pessoas que
ocuparão a posição de chefes e donos de maloca. Todos os demais nomes titulares são
transmitidos de tios e tias paternos (FeB2, FeZ1 e FeZ2) aos filhos mais velhos do irmão
primogênito.

Uma vez transmitidos os nomes titulares, contudo, os doadores não ficam sem
nomes. Ao contrário, eles também recebem os nomes utilizados por seus antigos
transmissores da geração anterior. Desse modo, no momento da nominação de [25], [11]
recebe um novo nome de [3] e, finalmente, [3] recebe um nome de [1], que muito
provavelmente já terá falecido.

Logo, uma pessoa detentora de um nome titular terá, ao longo da vida, quatro
nomes:

i) Um nome ordinário ao nascer, que a acompanhará desde a primeira


infância até o momento de sua nominação ritual;
ii) Um nome titular de juventude, transmitido idealmente antes dos dez anos
de idade em um baile titular (ver cap. 6);
iii) Um nome titular para a idade adulta, transmitido ritualmente tão logo haja
em seu clã um conjunto completo de novos primogênitos (isto é, eS1eS1,
eS1eS2, eS1eD1, eS1eD2) e
iv) Um nome titular de velhice, quando do nascimento dos netos do
primogênito desse clã (isto é, eS1eS1eS1, eS1eS1eS2, eS1eS1eD1 e
eS1eS1eD2), sendo esse o nome utilizado até o fim de sua vida.

No diagrama acima, então, os nomes em [vermelho] e [azul] não são apenas quatro
nomes singulares, mas sim dois conjuntos invariáveis de 3 nomes titulares masculinos e
femininos (nomes de juventude, de vida adulta e de velhice) transmitidos de geração a
geração através do tempo. Tais conjuntos, contudo, não são equivalentes. Na verdade,

171
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

eles são separados em dois grupos distintos: enquanto uns são ímí, ou “bonito, saudável,
bondoso, amável”, outros são néhní, ou “feio, sujo, repugnante”199.

Ainda no diagrama anterior, os símbolos [vermelhos] correspondem aos “bonitos”


(ímíate) e os preenchidos com a cor [azul] aos “feios” (néhníbye). Guyot já havia
sinalizado, nos anos 1970, a importância desse par de oposições para os Bora:

Dans les fêtes importantes de transmission du nom, les mïate et les


ne?nite (deux garçons et deux filles de huit à dix ans) reçoivent
respectivement le nom du père et de la sœur du père (aînés, mïate), du
frère et de la sœur puînés du père (ne?nite). Ils deviennent ainsi les
membres les plus importants de la famille, seuls autorisés à construire
et à gérer une maloca reconnue et nommé. (Guyot, 1972: 158 – 159,
grifos originais).

Os nomes não fazem referência à beleza, feiura ou qualquer outro tipo de


característica física daqueles que o portam. Na verdade, apenas uma pessoa que conheça
bem o estoque de nomes de um clã saberá dizer se determinado nome faz ou não parte de
um ou outro conjunto. A maior diferença entre eles diz respeito às posições ocupadas
pelos bonitos e os feios, uma vez que eles conformam, juntos, o conjunto de quatro
pessoas iniciadas ou “apresentadas” durante um ritual de nominação.

Os homens bonitos são os filhos mais velhos do primogênito de um clã200. Os


meninos nominados com nomes bonitos serão, na idade adulta, chefes e donos da maloca
que herdarão de seu clã paterno. Assim, se tornarão “chefes de clã” (ávyéjuúbe) quando
da nominação de seus próprios filhos, convertendo-se em “anciãos de clã” (keéme) no
fim de suas vidas, quando forem nominados seus netos. As mulheres bonitas idealmente
herdarão de suas tias paternas (FeZ1) não apenas seus nomes, mas também o
conhecimento que as últimas possuem sobre os grafismos utilizados nos adornos rituais
e nas pinturas corporais. Elas se casarão, muito provavelmente, com homens que também
possuem nomes bonitos.

199
Essas informações são idênticas às apresentadas por Ochoa, 1985: 65-78 para os Bora no Peru.
200
A existência de nomes bonitos lembra o caso apresentado por Lea em sua análise a respeito dos nomes
kayapó. Segundo a autora (1986, 1992), existem ali três tipos de nomes: os ‘bonitos’, os ‘comuns’ e os
‘jocosos’. Tal como acontece entre os Bora, os nomes ‘bonitos’ são destinados aos filhos primogênitos de
uma Casa. A confirmação desses nomes em determinadas bailes de nominação é condição para sua
existência enquanto um nome ‘bonito’ autêntico e para que seus portadores apresentem adornos distintos
na ocasião dos rituais. Por sua vez, enquanto os nomes ‘comuns’ são similares aos ‘ordinários’ (nomes
dados logo após o nascimento e sem nominação ritual), poderíamos aproximar os ‘jocosos’ aos apelidos
apresentados anteriormente nesse capítulo.
172
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

Por sua vez, os homens com nomes feios são, na esfera do ritual, espécies de
tricksters cuja principal função é provocar e perturbar seus pares bonitos201. No passado,
em alguns bailes, os feios golpeavam a maloca com paus e insultavam os participantes,
cabendo à mulher do dono da maloca onde é realizado o ritual colocar pimenta em pó na
boca desse homem, que também era apaziguado por meio da ação de seu irmão
primogênito (bonito) que toca manguaré. No discurso corrente dos Bora, diz-se que os
feios devem ser como “guarda-costas” de seus irmãos bonitos. Ao serem nominados junto
a estes últimos, recebem a incumbência de protegê-los durante toda sua vida, delegando
por fim tal encargo a seus sobrinhos e netos. Contudo, meus interlocutores também
concordam que, apesar da missão recebida, geralmente há uma rivalidade latente entre
bonitos e feios na vida cotidiana.

Parte de tal rivalidade pode encontrar suas raízes no fato de que, enquanto o irmão
bonito será nominado como chefe de clã e dono de maloca, é comum que seu irmão feio
ocupe o lugar de xamã202. Como vimos na introdução da Parte II, os Bora passaram por
uma gradual substituição dos antigos e violentos xamãs (ápííchoóbe) por novos xamãs
especialistas em terapias de cura (llúúváábéé). Ainda assim, é comum que os irmãos
imediatamente mais novos de um chefe (Be2) sejam lembrados por possuírem um vasto
conhecimento xamânico. Tal prestígio tem a ver com o fato de que, ao contrário dos
chefes de malocas, conhecidos como líderes pacíficos e de comportamento frio e correto,
é frequente que seus irmãos “curandeiros” detenham um corpus importante de
conhecimento, diretamente relacionado ao mundo quente e ameaçador dos animais203.
Adeptos de um xamanismo portanto menos adequado que aquele praticado por seus
irmãos primogênitos, não é raro que sejam acionados quando as terapias “mais frias” não
surtem efeito.

Existem ainda outros reflexos dessa distinção entre irmãos primogênitos. Vimos
há pouco que existe uma diferenciação clara, na terminologia de parentesco, entre Be1,
ámiaabe, e Be2, bonebe. Ainda que o mesmo seja válido para as irmãs (Ze1, ámíalle e

201
Não consegui obter muitas informações adicionais sobre o lugar das mulheres feias. No geral, diziam-
me que elas apenas formam parte do conjunto de pessoas que possuem nomes prestigiosos. Porém, ainda
que esses nomes de prestígio não possam ser transmitidos a seus filhos e filhas, é provável que o fato de
possuir um desses nomes titulares ou pertencer a uma carrera seja levado em consideração no momento
de seu casamento.
202
Ver por exemplo Karadimas, 1997: 138.
203
Sobre a oposição entre frio e quente, consultar Parte II e principalmente Londoño Sulkin (2004).
173
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

Ze2, bonelle), é bastante mais notável o conflito implícito entre os primeiros. De fato, ele
é descrito inclusive em algumas narrativas mitológicas ou orígenes que conheceremos ao
longo desse trabalho. Enquanto muitos povos amazônicos possuem mitos que narram a
história de dois irmãos gêmeos, nunca ouvi entre os Bora narrativas desse tipo que não
fizessem uma distinção bastante marcada entre um irmão mais novo (Be2) que, por meio
de seu comportamento inadequado e deceptor, tem de ser socorrido por seu primogênito
(Be1). Em outros relatos, enquanto o mais novo tenta tomar o lugar de seu irmão,
matando-o ou enfeitiçando-o, esse último sempre é capaz de sobreviver em razão de sua
sabedoria superior e inatingibilidade. Dessa maneira, a oposição entre irmãos
primogênitos (Be1) e mais novos (Be2) parece ser um mote constituinte do mundo bora.
Nesse sentido, se a ordem de nascimento é importante, entre os Tukano no Alto Rio
Negro, para a classificação hierárquica dos clãs (Hugh-Jones, 2002: 48), tal ordem é
relevante, no mundo bora, para a categorização das diferenças de status ou prestígio entre
as pessoas no interior de um mesmo clã.

Veremos mais à frente que as malocas bora possuem divisões espaciais internas
que dizem respeito à oposição bonitos/feios. Conheceremos, ademais, como esse
dualismo é fundamental para a vida ritual: as nominações titulares (e, portanto, do par
bonitos/feios) apenas acontecem na ocasião de grandes rituais que implicam na dispensa
de consideráveis quantidades de comida, ambil e mambe. Ficará mais evidente, nos
capítulos 6 e 7, como estes bailes não somente produzem e confirmam a assimetria entre
os que recebem nomes titulares e os que não os possuem, mas são também as ocasiões
privilegiadas para a produção de novos chefes e, consequentemente, para perpetuação das
malocas bora. Assim, é necessário que fique claro que oposições do tipo bonitos/feios e
titulares/ordinários não são simplesmente questões onomásticas. A extensão de sua
influência pode ser melhor compreendida quando nos voltamos para algumas diferenças
existentes dentro de cada um dos clãs bora.

3.3. Assimetrias clânicas

Karadimas (1997) argumenta que existe, internamente a cada clã miraña, um


sistema de linhagens maiores e menores. Seguindo metáforas usadas pelos próprios
indígenas, o autor defende então que a linhagem maior de um clã seria como o tronco de
174
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

uma árvore, e as linhagens menores, em números de três, seriam seus galhos (ou ainda,
que a linhagem maior seria como o rio principal e as menores os seus afluentes). O nome
da linhagem maior geralmente faz referência a uma espécie vegetal ou animal, ou, menos
frequentemente, a um ser celeste. Esse é, ao mesmo tempo, o próprio nome que levará
todo o clã, sobreposição que, segundo Karadimas, pode causar certa confusão para
compreender a diferença entre clãs e linhagens maiores.

Os nomes das linhagens menores, ao contrário, aparecerão menos comumente,


uma vez que seus membros no geral usarão no cotidiano apenas o nome de seu clã para
fazer referência a sua filiação. À primeira vista desconectados, os nomes de linhagens
maiores e menores se encontrariam analogicamente relacionados segundo semelhanças
sensíveis aos indígenas (cores, formas, odores, etc.). Assim, seguindo ainda o exemplo
de Karadimas, o clã miraña do Urucum possui uma linhagem maior homônima e três
linhagens menores: “gente de queixada”, “gente de caramujo d’água” e “gente de
cumare” (1997: 151). O urucum, cujo fruto é uma cápsula revestida de espinhos
maleáveis, se assemelha ao cumare204, segundo os Miraña, na medida em que a palmeira
também produz frutos repletos de pelos (:153). Os queixadas, por sua vez, também
possuem pelos eriçados como os espinhos do urucum e cuja cor remete à coloração dos
frutos do cumare. Além disso, eles se alimentam desses mesmos frutos, deixando a carne
de caça com um gosto acentuado quando é temporada de colheita. Ademais, conta-se que,
no tempo mítico, os frutos do cumare caíram das árvores e deram origem aos primeiros
queixadas. Outros frutos, que atingiram a água, se transformaram em caramujos
aquáticos. Nessa época, esses mesmos caramujos entraram em guerra com os queixadas,
tendo os vencido em razão da pintura de guerra que conseguiram a partir do pigmento
extraído do fruto do urucum, e é por isso que hoje tais caramujos possuem a parte interna
de suas bocas tingidas de vermelho.

Assim, é por estarem de tal maneira conectados que urucuzeiros, queixadas, pés
de cumares e caramujos aquáticos formam o conjunto de seres da floresta que dão nomes
às linhagens do clã Urucum. Existem, ainda, outros seres que estão diretamente
relacionados a esse clã: certa cotia de pelagem escura (nìhí’tù205), cuja cor assemelha-se

204
Astrocaryum chambira Burret, variedade amazônica de palmeiras do gênero Astrocaryum. De suas
fibras os Povos do Centro fabricam cordas empregadas na confecção de redes, bolsos e braceletes.
205
Reproduzo aqui a grafia utilizada para a língua Miraña por Karadimas (1997), algo diferente daquela
convencionalizada para o idioma bora.
175
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

aos frutos do cumare; determinada variedade de paca (nébá’ù tá’kù), cuja coloração
vermelha em volta do pescoço assemelha-se ao urucum; o pássaro nébá nùbúryù, cujas
plumas vermelhas remetem à cor dos frutos do urucum; certa espécie de larva vermelha
(nébá tó’hì) e, por fim, a tartaruga d’água que, por se alimentar dos caules do cumare e
deles adquirir seu gosto e odor, figura nessa lista. Soma-se ainda um enorme número de
árvores (:155), todas tidas como derivações do urucum (nébáhe) e com a qual
compartilham, além do vocábulo-raiz nébá (bora: néébáá), um conjunto de semelhanças
morfológicas indicadas pelos próprios Miraña.

A relação de cada clã a um conjunto específico de mamíferos, frutos, aves, larvas,


répteis e vegetais está longe de ser uma exclusividade do clã Urucum. Na realidade, ela
está presente em cada clã e abrange uma enorme quantidade de criaturas da floresta com
quem os Povos do Centro se relacionam. Assim, é bastante grande o número de animais
ou plantas que se associam diretamente a determinado clã. Isso faz com que, mais que
uma simples semelhança, humanos, animais e vegetais compartilhem trajetórias de
origem comuns que os classificam, no limite e de acordo com as definições nativas, como
parentes – e é por isso que, idealmente, uma pessoa pertencente ao mesmo clã que esses
seres estará interdita de matá-los ou consumi-los:

Chaque groupe de filiation possède de la sorte ses propres variétés de


palmiers, de vers palmistes, d’abeilles ou de bourdons, de lombrics, de
maniocs, d’ananas, de cocas, de guacuris ou umaris (Poraqueiba
sericea Tul.) et de poissons de différentes classes. La quasi-totalité des
variétés des espèces les plus communes se trouvent ainsi réparties
suivant les différents clans qui les considèrent comme faisant partie de
leur parentèle. Chaque représentant d’un groupe de filiation se doit
d’éviter de tuer et de manger une des espèces qui constituent son ì:étè.
Le ì:étè est ainsi ce qui désigne une essence ou une origine commune
partagée par différentes espèces et des êtres humains. (Karadimas,
2001: 156).

Não me dediquei, durante meu trabalho de campo, a fazer um levantamento


abrangente das equivalências entre clãs e espécies animais e vegetais, embora eu saiba
que elas existem. Mesmo assim, em meu convívio mais intenso com um desses clãs,
várias foram as vezes em que se fez referência a esses animais, vegetais e seres celestes
estreitamente vinculados ao grupo patrilinear. Em uma dessas ocasiões, por exemplo, fui
com a família com quem vivia até um regatão que, indo em direção a La Chorrera,
ancorou perto da maloca. Ele trazia alguma carne de caça congelada para vender e nos
ofereceu um sapo grande. O regatão disse não ter entendido muito bem por que o caçador

176
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

lhe havia vendido aquele animal (para ele, um bicho repulsivo), mas acabou cedendo já
que o homem lhe assegurou que as pessoas o comprariam. O chefe da maloca afirmou
então que, de fato, tratava-se de uma iguaria culinária, mas que ele tinha o direito de
cobrar um “imposto” a quem o comprasse. Assim como o regatão, naquele momento eu
não entendi muito bem o argumento do chefe. Mais tarde, ele me explicou que aquele era
um sapo que canta sempre pela manhã, logo que o sol sai e, sendo ele próprio do clã
Amanhecer, jamais poderia comê-lo pois o animal era sua “gente” (isto é, tsáné dohjiba
múnaa, ou “aquela gente do mesmo clã”). Disse ainda que, no passado, era frequente que
pessoas que comiam animais pertencentes a algum clã na frente de seus parentes humanos
terminassem os recompensando generosamente com mambe, ambil ou outro tipo de
comida.

Mireille Guyot, em seu trabalho na região, também observou a existência dessas


identificações206:

El símbolo viene de la semejanza del hombre con la planta o el animal,


o la forma de vivir de ellos, el lugar adonde viven o la cosa que hacen.
Cada uno tiene los tres símbolos. No deben ver un cadáver de ellos,
matarlos, tampoco comerlos. Prohibición: se competía en palabras pero
no en acciones. Se burla pero si se ve un cadáver de estos, le hacen
beber cahuana el hombre que lo mató para castigarlo y hacerlos sufrir
de su culpa. (Guyot, fg_b9, grifo da autora).

Mesmo que Guyot não se concentre em desenvolver equivalências entre esse


sistema e a existência de linhagens maiores e menores, seus dados reforçam a ideia de
que, depois da hecatombe caucheira, essa divisão interna a cada clã tendeu a enfraquecer-
se. De fato, o próprio Karadimas afirma que esse é um sistema que funciona “en
expansion ou en contraction, suivant le nombre de personnes d’un lignage disponibles
(...)” (2002: 153).

Logo, dado o número reduzido de membros na grande maioria dos clãs,


atualmente tal sistema pode ser observado apenas de maneira muito fragmentada entre os
Bora. Enquanto cada clã parece conseguir traçar sua descendência a partir dos

206
Guyot (fg_b9), registra algumas analogias morfológicas recolhidas em campo entre seres que dão nomes
a linhagens maiores e menores de um mesmo clã. Por exemplo: (i) entre a cobra-grande e certos cipós e
larvas; (ii) entre os caroços de abacate e larvas que comem esses frutos; (iii) entre as raízes em geral e os
caroços dos frutos da “maraca” (Theobroma bicolor), em razão de suas fibras de aparência rizomática; (iv)
entre folhas de caraná e certos grilos que ali habitam; (v) entre os jacarés brancos (“jacaretinga”, Caiman
crocodilus), o barro amarelo (por sua coloração) e tipos de caranguejos que vivem nesse barro.
177
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

primogênitos (Xe1) até duas ou três gerações anteriores, os dados tornam-se bastante mais
imprecisos para os parentes não-primogênitos. Ou seja, enquanto aquilo que Karadimas
define como “linhagem maior” parece manter-se ativa, as “linhagens menores” são
fracamente definidas como unidades sociais distintas – mesmo que, segundo meus
interlocutores, essa diferenciação fosse muito evidente no passado207.

Parece-me mais relevante, entretanto, entender como se intersectam as categorias


de linhagens maior e menor com aquelas de nomes titulares e ordinários. Como vimos,
as pessoas filiadas à linhagem maior de um clã serão os descendentes de um homem
primogênito cuja ancestralidade remonta ao tempo não mensurável do nascimento do
primeiro ancestral. Além disso, essas serão as pessoas que, tendo sido nominadas
ritualmente e recebido um conjunto de nomes titulares ao longo de suas vidas, se tornarão
as responsáveis pela construção e manutenção de malocas nas quais são celebradas esses
e outros bailes. Como mencionei, ainda que não exista uma prescrição clara, é muito
desejável que uma pessoa que descenda de uma dessas linhagens maiores (portanto, de
maior prestígio) encontre seu cônjuge dentre as linhagens maiores de outro clã. Assim,
soma-se à preferência de alianças matrimoniais à boa distância, abordada no item anterior,
o anseio que os chefes de maloca possuem de que seus filhos se casem com os filhos de
outros chefes com prestígio e posição equivalentes no que diz respeito a suas
prerrogativas rituais.

Os rituais de nominação, que conheceremos à frente, estão estreitamente


vinculados ao espaço físico das malocas onde eles podem ser realizados. É comum que
os Bora digam que tal maloca “possui” ou “tem o direito” de fazer determinado ritual. É
dizer, não é possível que um ritual de nominação seja executado em outra maloca que não
aquela cujo dono e seus antepassados tenham sido iniciados nesse mesmo baile. Isso faz
com que aquelas pessoas que não possam traçar seu parentesco diretamente a partir dessa
linhagem maior ou primogênita sejam classificadas, automaticamente, como pessoas
comuns ou de nomes ordinários. Logo, ainda que construam uma maloca (e é-lhes
permitido fazê-lo, desde que disponham da intenção e dos meios materiais para tal), eles

207
É comum no Igaparaná que, em comunidades afastadas da maloca à qual estão de vinculadas, os homens
principais que pertencem a “linhagens menores” construam uma “maloquinha” (esp: maloquita). De
estrutura semelhante às malocas “de verdade”, mas de proporções muito menores, tais construções são
usadas para o processamento do alimento e nas ocasiões em que os homens não se deslocam até sua maloca
“real”, mambeando ali mesmo na comunidade em que vivem.
178
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

não têm a permissão de realizar bailes titulares ou herdar nomes prestigiosos. É isso que
faz com que hoje, por exemplo, existam três malocas no rio Igaraparaná vinculadas ao
clã Buriti, mas apenas uma delas seja capaz de realizar rituais de nominação, pois as
outras duas descendem de “linhagens menores” ou não-primogênitas e possuem donos de
maloca com nomes ordinários. Segundo a mesma lógica, tendo os descendentes
primogênitos do clã Zogue-Zogue deixado de praticar seus rituais de nominação, a única
maloca do referido clã existente na região, por possuir um dono sem nomes prestigiosos,
não está autorizada a realizar bailes titulares.

Para seguir acompanhado essa discussão é importante que nos voltemos agora
para a centralidade e a configuração das malocas no mundo bora.

3.4. Malocas, comunidades, cabildos: unidades residenciais e


sociopolíticas

3.4.1. Malocas: centro de tudo, centro do mundo

A unidade residencial e sociopolítica básica para os Povos do Centro é a maloca.


Ainda que maiores e mais numerosas no passado, as malocas não desapareceram da
paisagem do Caquetá-Putumayo após o período caucheiro. Como me disseram diversas
vezes, é precisamente por não terem abandonado as suas malocas que os Bora
sobreviveram e se reorganizaram-se no pós-caucho (ver Conclusão). Muito embora
abundem hoje casas construídas no estilo regional, é geralmente nas malocas que as
pessoas passam a maior parte de seu tempo. Desse modo, mesmo que haja famílias que
vivam distantes da maloca à qual se vinculam, é para lá que se dirigem com frequência
para conversar, mambear, cozinhar, comer e fazer baile.

As malocas atuais, menores do que as do passado, são construções octogonais cuja


distância entre seus vértices pode ser de 10 metros ou mais. Sustentadas por quatro pilares
principais e outras vigas secundárias, as laterais geralmente são fechadas com tábuas de
madeiras variadas ou ripas de paxiúba (Socratea exorrhiza) e os tetos são confeccionados
a partir da sobreposição de fileiras de folhas de caraná (Mauritia carana) trançadas em
ripas de madeira. O chão das malocas é sempre de terra batida e, ao contrário dos esteios
e vigas de madeira, demanda manutenção e nivelamento cotidianos. O mesmo vale para
179
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

as peças de palha do telhado, que são repostas periodicamente. Os desenhos abaixo foram
confeccionados por Mireille Guyot e nos auxiliam na visualização da estrutura interna
das malocas Bora208.

208
Desenho semelhante pode ser encontrado, já no começo do século XX, em Whiffen, 1915: 45.
180
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

Figura 8 – Maloca bora: vigas principais e secundárias (Fonte: Guyot, fg_b5)

A foto a seguir, feita em 2017, mostra uma maloca Bora vista desde o exterior.

Foto 17 – Rufino Kuguao, do clã Zogue-Zogue, em sua maloca, em junho de 2017

181
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

De modo geral, as malocas estão vinculadas aos rituais que podem ser celebrados
por seus donos. Dessa maneira, uma maloca cujo dono é herdeiro do ciclo ritual Llaaríwa,
será chamada de llaaríwaha, onde o sufixo –ha é um locativo. Malocas cujos donos fazem
bailes de Llaacomu serão llacomuha (ou “a maloca onde ocorre o baile Llacomu”), as de
Pópoóhe serão pópoóheha e as de Píchojpa, píchojpaha. A única exceção a essa regra
são as malocas vinculadas ao baile Báhja.

Sendo Báhja um dos poucos bailes prestigiosos ou de carrera209 que não envolve
a transmissão de nomes titulares, as malocas cujos donos possuem a prerrogativa de
realizar tais rituais recebem nomes diferentes das demais. Assim como ocorre para os
nomes pessoais, as malocas de Báhja possuem nomes que relacionam o representante da
linhagem maior do clã (animal, vegetal, etc.) a outro ser que está, segundo as
classificações indígenas, ligado ao primeiro. Existe hoje apenas uma dessas malocas entre
os Bora no rio Igaraparaná. No passado, contudo, elas eram mais numerosas: a maloca de
Báhja do clã Tamanduá era chamada de casa dos mandis (esp: picalón – bora: ánou); a
do clã Zogue-Zogue, casa da cana-brava (Gynerium sagittatum, esp: caña-brava, bora:
néépájyuji); a do clã Águia, casa dos Gaviões, e assim por diante (ver Guyot, 1972: 144).

Finalmente, as malocas de pessoas não vinculadas a um determinado baile não


levarão nenhum nome, sendo claramente inferiores àquelas que se atrelam à celebração
de bailes de carrera. As diferenças existentes entre os tipos de maloca ficarão mais claras
à medida que prosseguirmos na discussão sobre os rituais. Por ora, é importante salientar
que todas as malocas se caracterizam por serem, além de unidades residenciais e
sociopolíticas, espécies de lugares-conceitos que organizam o mundo espacial e
cosmologicamente210.

Karadimas (2005) e Guyot (1972) já chamaram a atenção para a analogia existente


entre as malocas e o corpo humano. Apesar das variações presentes nas versões miraña e
bora (e mesmo nas existentes entre os clãs dessas etnias), ambas convergem em afirmar

209
Sobre esse conceito e a diferenciação entre os bailes acima mencionados, ver cap. 6.
210
Observo ainda que os Bora com quem trabalhei dizem que, num passado distante, havia na porta de cada
maloca um par de estatuetas que representavam um homem e uma mulher. Apesar de insistir com alguns
anciãos sobre o assunto, nenhum deles soube me fornecer informações adicionais sobre esse fato. Girard
(1958), em viagem aos Bora no Peru no fim dos anos 1950, relata ter encontrado tais estátuas. Guyot (1972),
por sua vez, menciona ter apenas escutado sobre sua existência no Igaraparaná. Tais artefatos não são mais
feitos atualmente, mesmo fora das malocas. Yepez (1982) faz uma análise breve sobre esse tipo de
estatuária e a relação com as práticas rituais murui-muinane.
182
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

que a maloca, tal como está construída, é um corpo humano. No caso dos Bora com quem
trabalhei, eles me diziam que suas malocas são o próprio corpo da Mãe Terra (esp: madre
tierra – bora: tsiíju ííñuji – literalmente, “a mãe do território”). Recostada lateralmente
no solo, as ripas laterais são suas costelas; a porta principal, sua vagina; o centro dos
mambeaderos, seu colo ou seus seios; o prato de cerâmica em que são incineradas as
folhas de embaúba para a fabricação do mambe, seu umbigo, que deve estar
constantemente aquecido com o calor da brasa.

Desta maneira, cada chefe de cada um dos clãs dos Povos do Centro considera
que sua maloca e, mais especificamente, seu mambeadero, é o local onde se encontra o
corpo verdadeiro da Madre Tierra, que guarda e contém em si todos os territórios que
existem. Em outras palavras, aquele é o verdadeiro Centro do mundo211. Todas as noites,
sentado em seu pequeno banco e recostado em um dos pilares da grande construção, com
a boca repleta de mambe e ambil e olhando em direção ao solo, um chefe de clã ordenará
que aqueles que o acompanham tostem, pilem e peneirem a coca que será misturada às
cinzas de embaúba que queimam no umbigo da Madre Tierra. Enquanto isso, as mulheres
e as crianças da maloca, aparentemente apáticas em suas redes, acompanharão e opinarão
entre elas sobre o que escutam. O chefe passará algum tempo na penumbra conversando
com os demais sobre os afazeres diários e outras amenidades, até o momento em que,
concentrado e sob o efeito das substâncias que consumiu, ele “abre uma página de seu
livro” ou “coloca seu cassete para tocar”, como costumam brincar os mambeadores mais
jovens. Dá início então à narração de um dos muitos mitos ou orígenes do repertório que
aprendeu com os homens de seu clã, finalizando sempre com conselhos ou, quando
necessário, com alguma terapia de cura mediada pelo tabaco em pasta ou em charutos e
cuja eficácia encontra-se diretamente relacionada à narrativa que acabara de contar.

O espaço ritual dos mambeaderos foi notavelmente analisado por autores que
trabalharam na região (por exemplo, Echeverri, 1997; Pereira, 2005) e registrado em
expressivas fotografias por Urbina (2011). Mesmo assim, e em parte por sua configuração
tão interessante, muito ainda pode ser explorado em relação ao mambeadero enquanto
espaço coletivo e ritual de diálogo, negociação e deliberação. Ainda que o presente
trabalho tangencie em alguns momentos essas questões, meu recorte e focos de análise

211
Sobre a noção de Centro, ver Parte I desta tese e Lucas (2018a).
183
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

fazem com que uma apreciação exaustiva sobre o mambeadero não seja viável nesse
momento. Assim, e já que o mambeadero é o centro da maloca e a maloca, por sua vez,
o centro do mundo, volto-me à exploração breve dos espaços circundantes onde sente-se
ainda sua irradiação.

3.4.1a. Do lado de fora: quintais e roças

É comum que nas redondezas de uma maloca haja uma série de frutas e ervas.
Abacaxi, melancia, laranja, limão, goiaba, banana, mapati, mamão, caju, jambo e
palmeiras como açaí, pupunha, buriti, bacaba e patauá são exemplos de árvores frutíferas
que podem ser encontradas ao redor de praticamente todas as malocas no Igaraparaná.
Além disso, temperos como coentro-bravo ou chicória, coentro, pimentões, pimentas,
alfavaca e uma enorme quantidade de plantas medicinais (dentre as quais a urtiga é sem
dúvida a mais utilizada) estão presentes nesses mesmos espaços, geralmente em antigas
canoas suspensas a alguma distância do solo. Esses são cultivos utilizados cotidianamente
seja para a alimentação, seja para a preparação de remédios e unguentos medicinais.
Compartilham espaço ainda com uma pequena quantidade de pés de mandioca brava,
macaxeira e coca, colhidos sempre em situações emergenciais quando, por alguma razão
(chuva, doenças, etc.), não é possível se deslocar até as roças.

É geralmente a partir desses quintais que saem as trilhas que levam até os roçados.
Mais próximas ou mais distantes, é comum que as roças sejam abertas nas cercanias de
antigos caminhos. Alguns deles, bastante longos, formam parte da antiga rede de
comunicação interfluvial entre as malocas outrora dispersas nas calhas dos rios
Igaraparaná, Cahuinari e Putumayo. O uso da técnica de coivara para a abertura e rotação
dos roçados faz também com que seja possível achar diversas áreas de capoeira (esp:
rastrojo – bora: ápajyu) ao longo desses caminhos. Nessas capoeiras é comum encontrar
cumare (como mencionado há pouco, espécie do gênero Astrocaryum cujas fibras são
extraídas para o artesanato) e embaúba (cujas cinzas são utilizadas para o preparo do
mambe), além de ampla gama de palmeiras e frutos, como bacaba, buriti e mari (esp:
umari – bora: niímu) e espécies vegetais não-identificadas utilizadas para tingir o corpo,
conferir suavidade aos cabelos ou clarear os dentes. Já nas roças, os cultivares mais

184
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

presentes são a macaxeira (esp: yuca de comer – bora: baajúri), a mandioca amarga (esp:
yuca venenosa – bora: píícaá), a mandioca “doce” ou manicuera (esp: yuca dulce – bora:
pácyoómu) e uma série de tubérculos como inhame branco, inhame roxo, cará, batata-
doce e mafafas (espécies do gênero Xanthosoma). Além disso, é comum encontrar
pimentas, frutas (principalmente abacaxi, muito usado no preparo da bebida de goma não-
fermentada, cahuana) e amendoins212.

Em cada uma das roças há, geralmente, um espaço reservado às plantações de


tabaco e de coca. Assim, é comum que os homens participem não apenas da derrubada
dos terrenos para a abertura das roças, mas também que, junto a suas mulheres, visitem
diariamente as plantações para buscar as folhas de coca que são processadas nos
mambeaderos.

Não existe uma interdição clara em relação ao plantio e à manipulação da coca


por parte das mulheres. Mesmo assim, embora tenha visto mulheres auxiliando seus
maridos no plantio da coca ao manipular os clones dessas plantas213, jamais vi uma
mulher colhendo coca para os homens de sua maloca (sendo essa, portanto, uma atividade
exclusivamente masculina). O tabaco, ao contrário, é alvo de maiores restrições que,
ainda que não passem pelo gênero (homens e mulheres trabalham no plantio e na
colheita), demandam que a pessoa envolvida na manipulação das plantas esteja saudável
(isto é, sem que recaia sobre ela nenhuma suspeita de doença ou feitiço) e observe
determinadas regras de comportamento alguns dias antes e depois das atividades na roça
(abstinência de sexo, bebidas alcoólicas, conflitos familiares, etc.). Segundo me disseram,
o tabaco naquele momento é como uma criatura (uma criança, um filho, um filhote)
daquele que o plantou, estando seus corpos intimamente ligados. Logo, assim como a
doença e o mal comportamento dos pais podem afetar seus filhos pequenos no período da
couvade, a inobservância dessas regras pode terminar por comprometer a plantação214.

3.4.1b. Do lado de dentro

212
O amendoim, junto à manicuera ou yuca dulce, é a comida por excelência dos bailes (cf. cap. 6).
213
A coca, assim como a mandioca, é cultivada por meio do plantio de caules que, extraídos de uma planta
matriz, geram novos pés de coca que são como “clones” daqueles de onde foram retirados.
214
A observância de um resguardo do plantio foi observada, por exemplo, por Morim de Lima (2016) em
seu trabalho junto aos Krahô.
185
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

Em suma, como indiquei há pouco, compreender a maloca enquanto unidade


residencial e sociopolítica passa por analisá-la também como lugar de convivência cujos
limites extrapolam o espaço físico compreendido entre suas quatro vigas principais.
Dessa forma, pertencer a determinada maloca é algo bastante mais abrangente que apenas
viver ou não dentro de uma dessas construções. Isso ficará mais evidente quando
analisarmos, ainda nesse tópico, a configuração das malocas atuais. Antes disso é
importante esclarecermos um ponto que ainda não foi apropriadamente abordado: a
configuração e a organização das pessoas dentro de uma maloca.

Figura 9 – A organização interna da maloca bora

A figura acima é uma representação simples da organização espacial que


geralmente podemos observar dentro de uma maloca bora. A porta principal é sempre
voltada para o oriente, de tal modo que o sol sempre nascerá na parte anterior da

186
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

maloca215. Ao entrar por essa porta, um visitante verá, à sua esquerda, um par de trocanos
de madeira (esp.: manguaré, bora: cuúmu). As peças, de diferentes diâmetros, são
confeccionadas em formato tubular, com interior oco, extremidades fechadas e uma
grande fenda longitudinal. Elas são usadas para a comunicação entre malocas separadas
por largas distâncias. Capazes de transmitir mensagens específicas por meio de sua
variação entre tons graves (trocano maior, “feminino”) e agudos (trocano menor,
“masculino”), os manguarés são muito usados também nos rituais, quando as baquetas
de madeira com ponta de borracha golpeiam suas laterais madrugada adentro216.

No fundo da maloca, na extremidade oposta à porta principal, há, ademais de uma


porta secundária (usada principalmente quando da preparação de grande quantidade de
alimentos), o local reservado ao dono da maloca e também chefe de clã que ali vive com
sua mulher e filhos pequenos. Como vimos, ele idealmente será o irmão primogênito da
linhagem maior de um clã, sendo assim representado, no esquema acima, como Be1.

Na lateral direita da maloca (ainda tendo em mente a perspectiva de quem adentra


pela porta principal), compartilharão o mesmo espaço o irmão imediatamente mais velho
do clã (Be2, ou o irmão feio-néhni, cf. supra) e o filho primogênito do chefe (Be1Se1),
com suas respectivas famílias nucleares. Vivendo provisoriamente junto a seu tio paterno,
o filho mais velho do chefe espera o momento de, tendo recebido seu segundo nome
titular, assumir a chefia de seu clã e passar a ocupar o lugar de seu pai dentro da maloca.
Na lateral esquerda agrupam-se os demais filhos e irmãos do chefe que ali vivem. Nessa
porção de espaço estão, ainda, as pessoas incorporadas sobre como “órfãos”, posição que
apresentarei a seguir.

Algumas vezes esses espaços laterais apresentam dois níveis por meio da
construção de mezaninos de tábuas que, apoiados nas vigas horizontais das malocas,
ampliam o espaço útil para a organização dos pertences de cada família e a amarração das
redes. No pátio das malocas, ou seja, no espaço vazio compreendido entre as quatro vigas

215
Como vimos na introdução à Parte II, a direção oeste, no território dos Povos do Centro, está relacionada
ao curso jusante do rio e, por sua vez, ao local de onde chegaram os primeiros não-indígenas. A construção
das malocas voltadas nessa direção também é descrita por Hugh-Jones (1979) para os Tukano.
216
Sobre o processo de feitura do manguaré entre os Murui-Muina e os Muinane (similar àquele empregado
entre os Bora), ver Urbina et al., 2000. Sobre a linguagem rítmica dos trocanos e a elaboração e troca de
mensagens por meio de sua execução entre os Bora, ver Seifart et. al. (2012, 2018). Voltarei ao tema do
uso desses artefatos nos capítulos sobre os rituais.
187
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

principais, acontecem os bailes. O mambeadero geralmente é instalado no canto superior


esquerdo, à frente do lugar de ocupação do chefe. No canto direito próximo à porta (ou
em outro lugar conveniente) encontra-se a fonte de fogo principal para o cozimento e o
moqueio de peixes e carne de caça, os fornos para a fabricação de farinha e a torra da
coca e, eventualmente, os raladores à gasolina para produção de massa de mandioca e
goma de tapioca.

Certa vez, ao conversar com um chefe sobre a divisão interna da maloca, ele me
disse que, embora todos afirmem que aquela era sua maloca, era necessário ter em mente
que, antes disso, ela era a maloca de seu clã – e mesmo que o costume seja desmontá-la
ou queimá-la após a morte de seu dono, ela não existiria sem as demais pessoas que a
compõem. Assim, explicou-me que embora tenha mais responsabilidades em relação à
manutenção física e espiritual da maloca, ela também pertence, ainda que em menor
medida, a seus irmãos e filhos. Essa relação, que é ao mesmo tempo de assimetria e de
complementariedade entre o chefe e os demais, pode ser notada não apenas no modo com
que as pessoas se organizam dentro das malocas, mas também na distribuição das vigas
de madeira: enquanto as quatro vigas principais devem ser cortadas e erguidas pelo irmão
primogênito (Be1, bonito ou imi), as vigas horizontais que se apoiam diretamente nas
anteriores são incumbência do irmão mais novo (Be2, feio ou néhni)217.

Assim, a ordem de nascimento e, especialmente, a diferença existente entre irmãos


primogênitos de tipo Be1 e Be2, mostra-se relevante não apenas para pensarmos sobre a
terminologia de parentesco ou a onomástica bora, mas também para conhecermos a
organização das malocas. Ainda que se incluam também nesse sistema as irmãs
primogênitas (Ze1 e Ze2), vimos que o pertencimento de seus filhos ao clã do marido faz
com que sua participação nas relações internas a seu clã de origem seja menos marcada.

Soma-se a isso o fato de que a regra de residência bora é virilocal. Isso significa
que as mulheres, após o casamento, passam a viver com a família de seus esposos. É por
essa razão que, no esquema acima, não há um lugar indicado para as irmãs do chefe.
Geralmente casadas com homens primogênitos de linhagens maiores de outro clã, essas

217
O chefe da maloca em que residi disse-me que as vigas horizontais ou outras de menor importância
podem ser delegadas a seus cunhados. À primeira vista sem importância, essa observação será relevante
para a discussão do próximo tópico sobre a existência de cunhados-órfãos e a inobservância da regra
patrilocal de residência.
188
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

mulheres terão, enquanto esposas, seus espaços reservados na maloca de seus maridos.
Assim, as malocas aglutinam, além dos descendentes masculinos de um clã, as mulheres
que, tendo se casado com esses, passam a fazer parte daquele assentamento e encontram-
se, tal como os demais, sob as diretrizes do chefe de sua maloca – muito embora, segundo
as regras de filiação, nunca sejam incorporadas ao clã que as acolheu. Existem casos,
porém, em que as mulheres de um clã se casam com homens que, por diversas razões,
não vivem junto a suas famílias paternas. Nessas circunstâncias é comum que,
contrariando a regra de residência, o marido passe a viver na maloca dos parentes de sua
mulher. Esses homens (e potencialmente seus filhos) estão, como veremos a seguir, numa
posição de orfandade. Por ora, é importante relembrar que, antes da chegada dos
caucheiros peruanos, as malocas abrigavam um número bastante maior de pessoas. A foto
a seguir, feita no começo do século XX, nos fornece uma noção da quantidade de pessoas
e da dimensão das construções daquela época, quando numerosas famílias ligadas a um
clã e seu chefe compartilhavam, todas, o mesmo espaço.

Foto 18 – Maloca na região do Caquetá-Putumayo no começo do séc. XX. (Fonte: Whiffen, 1915)

Esse cenário modificou-se não apenas em razão da brusca queda demográfica pela
qual atravessaram os Bora, mas também pela mudança nos padrões de assentamento e de
organização política introduzidos a partir da presença mais intensa do Estado colombiano
na região e, como entenderemos pouco a pouco, do fim da hostilidade guerreira entre os
189
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

Povos do Centro. Retomando um pouco a discussão apresentada mais à miúde ao longo


da Parte I, lembremo-nos que as malocas bora caracterizavam-se, dentre outras coisas,
por serem construídas em áreas de terra firme distante das margens dos grandes rios e a
largas distâncias uma das outras. Com a chegada dos padres capuchinhos e o
deslocamento de muitas crianças e jovens para o internato recém-construído em La
Chorrera, aqueles pais que não acompanharam seus filhos terminaram, com o tempo,
abrindo novos assentamentos às margens do rio Igaraparaná a fim de que o deslocamento
até a instituição fosse menos complicado.

Assim, com o passar dos anos, núcleos familiares que antes habitavam
dispersamente um território bastante extenso se transferiram para locais que
originalmente não pertenciam a seus clãs. La Chorrera, especialmente, deixou de ser um
território apenas de presença murui-muina para ter sua ocupação compartilhada entre
vários outros grupos da região. Essa localidade, que por vezes aparece glossada nesse
trabalho como povoado, por vezes como comunidade, é, como vimos no capítulo 2, o
ponto de encontro dos Povos do Centro que vivem nessa porção do Resguardo Predio
Putumayo218.

Alguns chefes, tendo sobrevivido ao período do caucho, terminaram por erguer


novas malocas na beira do rio Igaraparaná, engajando-se em um processo de negociação
com os antigos moradores que, em muitos casos, arrasta-se até os dias de hoje. Famílias
de menor prestígio, por sua vez, construíram pequenas casas que, pouco a pouco, foram
sendo influenciadas por elementos da arquitetura regional presentes nas comunidades
não-indígenas do Caquetá-Putumayo: palafitas, tábuas de madeira, telhas de amianto,
divisão interna em cômodos, etc. Mais tarde, a maioria dos núcleos familiares que
habitavam permanentemente as malocas também instalou casas nesse estilo bem
próximas a suas construções tradicionais. Isso nunca gerou, contudo, o abandono das
malocas enquanto lugares de convivência diária e de uso coletivo – de modo que a
organização interna que conhecemos na Figura 9 é facilmente notada nas malocas atuais.

218
Para os Povos do Centro, entretanto, o território de La Chorrera pertence, desde antes do contato com
os não-indígenas, a alguns clãs Murui-Muina. Desse modo, apenas algumas dessas famílias possuem
malocas em La Chorrera e, no fim das contas, o direito sobre o uso e a concessão desse território.
190
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

Como vimos na Parte I desse trabalho, os anos 1980 e 1990 foram marcados pelo
fortalecimento do movimento indígena institucionalizado na Colômbia e pela
regularização fundiária do resguardo ocupado pelos Povos do Centro. Tais movimentos,
por sua vez, introduziram também novas formas de organização territorial e política.

3.4.2. Sobre cabildos e comunidades

Seguiu-se à demarcação do Resguardo Indigena Predio Putumayo um novo


rearranjo na política interna. Após a inserção oficial dos grupos da região nas dinâmicas
das políticas públicas do Estado colombiano para povos indígenas (ver item 2.2), o
território recém-criado foi, para fins burocráticos, compartimentado em zonas. A divisão
guiou-se pela existência prévia de antigos núcleos populacionais que no geral haviam
sido estações caucheras e, posteriormente, centros de educação católica. Cada uma das
zonas, por sua vez, foi separada em cabildos, como nos conta Reinaldo Giakrekudo,
indígena murui-muina que vive no resguardo:

Ya dentro del resguardo, como indígenas, nos hemos organizado. Está


el Cómite Ejecutivo de Coidam que es la Confederación Indígena del
Alto Amazonas, está nuestra Organización Coinza (Consejo Indígena
Zonal de Arica) que es de Puerto Arica, Azinpa (Asociación Zonal
Indígena de Puerto Alegría), que es de Puerto Alegría, Ozinde
(Organización Zonal Indígena del Encanto), que es del Encanto, Cozich
(Consejo Zonal Indígena de La Chorrera), de la Chorrera. Cada zona
tiene sus cabildos y en ellos hemos hecho serios trabajos autóctonos
defendiendo nuestra cultura, defendiendo nuestros conocimientos y
defendiendo las etnias y defendiendo los territorios. (Giakrekudo, 2000:
97).

Transformações de entidades existentes na América hispânica desde os tempos


coloniais, os atuais cabildos são instituições públicas muito comuns no mundo indígena
colombiano. Seu papel principal é operacionalizar a comunicação entre as comunidades
e o Estado. Assim, o Ministerio del Interior do país define um cabildo indígena da
seguinte maneira:

Es una entidad pública especial, cuyos integrantes son miembros de una


comunidad indígena, elegidos y reconocidos por ésta, con una
organización sociopolítica tradicional, cuya función es representar
legalmente a la comunidad, ejercer la autoridad y realizar las

191
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

actividades que le atribuyen las leyes, sus usos, costumbres y el


reglamento interno de cada comunidad. (MinInterior, 2018)219.

Acrescentaria que, tal como se apresentam hoje entre os Bora, os cabildos são
ainda entidades não-fundiárias, isto é, que não necessariamente combinam
representatividade e continuidade territorial, de modo que há famílias que residem em um
mesmo espaço, mas que estão “filiadas”, por razões políticas e de parentesco, a diferentes
cabildos. Cada cabildo do Resguardo Indigena Predio Putumayo é composto por uma
junta directiva formada por um governador, seu vice, um tesoureiro, um secretário e um
fiscal.

As pessoas da junta permanecem em seus respectivos cargos por apenas um ano.


Após a apresentação das candidaturas e caso haja a formação de mais de uma chapa,
realiza-se uma votação direta por meio de cédulas de papel improvisadas. Uma vez
eleitos, os governadores e os vice-governadores são responsáveis por receber benefícios
sociais em nome de sua comunidade (como a transferencia – ver cap. 2), deliberar sobre
temas de interesse comunitário nos mambeaderos e participar de reuniões com outros
cabildos, sobretudo em La Chorrera. O tesoureiro, por sua vez, administra a gestão
financeira dos benefícios recebidos e suas respectivas prestações de contas e o secretário
organiza em atas o registro das atividades de seus companheiros a fim de que o processo
ganhe transparência perante todos os membros do cabildo. O fiscal, finalmente, recebe a
incumbência de garantir a boa atuação dos representantes elegidos segundo critérios que
mesclam as diretrizes impostas pelo Estado e as concepções nativas de chefia e bom
governo. Tais fiscais, no geral, são homens idosos escolhidos pelos governadores e os
membros da junta. Essas informações serão relevantes quando, no capítulo 7, forem
abordadas as transformações recentes do baile Ujcútso.

Por ora, nos basta saber que quando da regularização fundiária em 1988 havia
doze cabildos para a toda as zonas do resguardo. Atualmente, existem 22 cabildos apenas
na zona de La Chorrera, sendo três deles de maioria Bora. No geral, os líderes locais que
conheci têm manifestado severas críticas ao modelo de organização por cabildos,
mencionando sobretudo o caráter restritivo e impositivo que tal sistema adquire em sua
interação com o Estado, deixando assim de respeitar as diretrizes do gobierno propio

219
Disponível em https://www.mininterior.gov.co/content/cabildo-indigena. Acessado pela última vez em
01/03/2018.
192
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

indigena (palavras Bora) em detrimento de um conjunto de normas que, muitas vezes por
questões econômicas, acaba por gerar cisões políticas e familiares – algo que, diga-se de
passagem, o aumento do número de cabildos com o passar dos anos parece comprovar.
Como me explicaram, num mundo em que o território ocupado é repartido entre um
número restrito de clãs e de malocas, a proliferação de novas comunidades ou núcleos
políticos advindo da criação de novos cabildos é, desde o ponto de vista indígena, um
problema.

O mapa abaixo representa as comunidades Bora, suas malocas e suas respectivas


filiações aos três cabildos da região.

Mapa 4 – Comunidades Bora no Igaraparaná

Como vemos acima, os Bora dos cabildos Providencia, Providencia Nueva e


Petani agrupam-se em nove pequenas comunidades no médio Igaraparaná220. Chamá-las
de comunidades, assim como fazem os Bora, é algo que deve ser traduzido com certo
cuidado, uma vez que não estamos aqui diante de assentamentos heterogêneos ou de

220
É preciso notar que algumas comunidades são homônimas aos cabildos a que pertencem, o que pode
causar certa confusão ao leitor que não conhece a região.
193
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

grandes proporções. A maioria dessas comunidades é composta por um número reduzido


de famílias vivendo ao redor de uma maloca e, consequentemente, de um chefe de clã –
de modo que, no mapa, o clã indicado junto ao nome de cada comunidade refere-se à
filiação do dono da maloca221. Vejamos informações mais específicas para cada uma
dessas comunidades, de montante à jusante:

1) San Andrés: Nessa comunidade está a maloca do clã Tamanduá (esp: oso hormiguero
– bora: iijú), que possui a prerrogativa de realizar bailes Llaaríwa e Pópoóhe. Todos os
seus moradores estão filiados ao cabildo Providencia. Ao redor da maloca estão as casas
do chefe, de seus filhos primogênitos (S1 e S2), de seu genro (D2H) e do marido de sua
irmã (ZH), sendo que esse último abriga também um filho adulto solteiro e outro filho
jovem com a esposa e crianças. Total de moradores: 21 pessoas.

2) Providencia Nueva ou Real Providencia: Encontra-se ali a maloca do clã Buriti (esp:
canagucho – bora: iñe), compartilhada ainda com o clã Gavião (esp: gavilán – bora:
mewaáji) – caso que será explorado no capítulo 5. Realiza bailes Báhja, Píchojpa e
Llaaríwa e a maioria das famílias dessa comunidade, juntas, conformam a totalidade do
cabildo Providencia Nueva. Possuem casas nessa comunidade, além do chefe da maloca,
seus filhos (S1, S2), dois de seus irmãos (B, By), um sobrinho (S2S1), o marido de uma
sobrinha (BDH) e, por fim, um irmão apenas por via paterna (FS) e seu filho (FSS)222.
Há, ainda, homens recém-casados (em relação ao chefe da maloca, ByS1, ByS e outros
dois FSS) que vivem temporariamente com seus parentes enquanto buscam meios para
construir suas próprias casas. Total de moradores: 50 pessoas223.

3) San José ou Petani: Está nessa comunidade a maloca do clã Zogue-Zogue (esp: zogui-
zogui – bora: waahií), cujo dono, por não pertencer a uma linhagem maior e não ser
primogênito, não herdou de seus antepassados nenhum baile titular de transmissão de
nomes. Vivem ao redor dessa maloca três de seus filhos com suas respectivas famílias,

221
Nos casos de comunidades sem malocas (Boa, Pereira e Yarumo), o clã indicado entre parênteses faz
referência à filiação do homem que, mesmo vinculado a outra maloca e sem nenhuma prerrogativa ritual
(ver cap. 6), é considerado líder de sua comunidade – mesmo quando sua influência atinge apenas seus
parentes mais próximos. No geral, sua posição de liderança é trazida à tona apenas em reuniões políticas
com agentes estrangeiros como ONGs e o próprio governo nacional.
222
O irmão paterno do chefe e seus filhos (15 pessoas no total) estão vinculadas ao cabildo Providencia.
223
Essa cifra é apenas estimativa porque a comunidade Providencia Nueva possui um número de moradores
bastante flutuante. A maioria das famílias possuem também casa em La Chorrera e lá passam temporadas
longas.
194
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

além de sua irmã mais velha. Um pouco mais afastadas estão as casas de seu sobrinho
(ZS) e de um de seus filhos (ZSS). Embora vivam na mesma comunidade, esses dois
últimos núcleos familiares e a irmã do chefe estão filiados ao cabildo Providencia,
enquanto os demais pertencem ao cabildo Petani. Total de moradores: 36 pessoas.

4) Tagua: Nessa comunidade encontra-se a maloca do clã Amanhecer (esp: amanecer,


bora: tsitsííve), a de maiores dimensões da região. Antes de ocupação mais densa, vivem
hoje ali, de forma permanente, apenas o chefe, sua esposa, uma neta (D1D) e,
ocasionalmente, algum de seus filhos e seu irmão caçula (By), que ainda possui uma casa
próximo à maloca, mas vive em La Chorrera. Filiam-se todos ao cabildo Providencia.
Total de moradores: 3 pessoas.

5) Boa ou Santa Cecilia: Não há malocas nessa comunidade, apenas uma pequena
construção em formato circular utilizada para a produção de mambe, ambil e farinha e
para os encontros noturnos em um pequeno mambeadero. O patriarca da comunidade, do
clã Arara Vermelha (esp: guacamayo rojo – bora: ííva) é casado com a irmã (Z2) do chefe
que vive em Tagua, comunidade a 15 minutos de caminhada224. Dessa maneira, os
membros dessa comunidade frequentam e se associam à maloca em Tagua, pertencendo
também ao cabildo Providencia. Vivem ali (além do homem do clã Arara Vermelha com
sua esposa) suas três filhas com seus respectivos maridos que, nascidos originalmente em
comunidades distantes, contrariaram as recomendações de residência pós-marital e foram
viver com a família de suas mulheres. Total de moradores: 29 pessoas.

6) Providencia Viejo: antigo porto de embarque do caucho pela Casa Arana, localiza-se
ali a maloca do clã Cobra-Grande (esp: boa – bora: boóa), fruto de um rompimento entre
o chefe dessa maloca e seu irmão mais novo que, reconhecendo-se como pertencente ao
clã Arara Vermelha, vive na comunidade vizinha, Boa (ver cap. seguinte). Tendo herdado
a prerrogativa do baile Llaacomu de seu pai, o chefe de clã dessa maloca não pôde dar
continuidade a seu ciclo ritual pois seus filhos mais velhos, nominados na década de 1990,
foram para Leticia e Bogotá e não pretendem retornar ao Igaraparaná. Ele atualmente vive
sozinho na maloca, que carece de muitos reparos estruturais e já não possui um manguaré
capaz de transmitir mensagens. Um pouco mais a jusante há duas pequenas casas: uma

224
Além disso, esse homem, do clã Arara Vermelha, é tio paterno da esposa do dono da maloca do clã
Amanhecer, em Tagua.
195
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

de seu ex-genro e outra de sua cunhada, recentemente viúva, que vive junto a um de seus
filhos casados. Também pertencem ao cabildo Providencia. Total de moradores: 7
pessoas.

7) Pereira: Não há maloca nesse assentamento, que em realidade conta apenas com a casa
de um homem do clã Arara Vermelha com sua esposa e filhos e, um pouco mais ao longe,
com a casa de um de seus primos do clã Buriti (FZS), que ali vive com sua família nuclear,
seu pais e dois sobrinhos. Filiam-se igualmente ao cabildo Providencia. Total de
moradores: 22.

8) Santa Lucia: Já bem distante das demais comunidades englobadas pela área de
concentração dos três cabildos Bora, Santa Lucia possui uma maloca cujo dono também
não herdou bailes titulares. Existem ali apenas duas casas: uma do chefe da maloca que
é solteiro e vive com sua mãe e outro de seu irmão mais novo com mulher e filhos. Ambos
são do clã Buriti e fazem parte do cabildo Providencia. Total de moradores: 8.

9) Yarumo: É a última das comunidades englobadas dentro da área de concentração dos


três cabildos Bora. Pertence ao cabildo Providencia e não tem maloca, apenas duas casas.
Em uma delas vive um homem do clã Sal Vegetal (esp: sal vegetal – bora: ume) com sua
esposa e na outra um de seus filhos casados. Total de moradores: 10.

Contabilizo, assim, que há hoje 186 pessoas vivendo de maneira permanente entre
as comunidades San Andrés e Yarumo. Os dados oficias do censo local, contudo,
contabilizaram 428 pessoas para os cabildos de Providencia, Providencia Nueva e Petani
em 2016. Essa incongruência justifica-se pelo fato de que há um grande número de
estudantes vivendo em regime de internato nas instituições educativas de La Chorrera e,
ademais, de que existem famílias que possuem vários membros vivendo ali mesmo em
La Chorrera, em outras comunidades multiétnicas do Resguardo (El Encanto, San Rafael,
etc.) ou nas cidades de Leticia, Bogotá e Medellín. O importante aqui, porém, é perceber
que a distribuição atual das famílias no espaço parece seguir um padrão similar àquele do
passado.

A ação do Estado e da Igreja na região, mesmo após inúmeras tentativas, não fez
com que os indígenas se concentrassem permanentemente em comunidades multiétnicas
ou abandonassem suas malocas que, dispersas no espaço, servem ainda hoje como

196
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

referenciais para a organização (em sentido amplo) dos Povos do Centro. Como me
diziam, tal resistência a adotar o modo de vida proposto pelos não-indígenas tem a ver
com o fato de que os Bora nunca gostaram de vivir juntos. Mas como entender essa
afirmação se levamos em conta que, no passado, era comum a grande concentração de
pessoas ao redor de uma única maloca, como fica claro, por exemplo, na Foto 18? Nesse
sentido, o que os Bora entendem por “vivir juntos”?

Poderíamos conjecturar que a grande quantidade de pessoas numa única maloca


relacionava-se, como descreveu Descola para os Jívaro (1993), ao fato de que em
situações de guerra era comum que grupos inteiros migrassem para perto de um grande
chefe em busca de proteção. Afinal de contas, no começo do século XX (época da foto
em questão), os Bora encontravam-se envolvidos em conflitos muito mais arrasadores do
que as antigas guerras interétnicas (como busquei demonstrar quando tratei dos impactos
da atuação da Casa Arana), o que poderia nos levar a pensar que a concentração ao redor
de algumas malocas seria mais bem certo tipo de estratégia nativa em reação ao perigo
que corriam. Não descarto, de antemão, essa possibilidade. Contudo, meus interlocutores
afirmam que, antes mesmo da Casa Arana, as malocas concentravam um grande número
de pessoas, tal qual podemos aferir por meio da estimativa demográfica disponível para
esse período (cf. cap. 1). Se havia, àquela época, cerca de 15.000 Bora-Miranha
distribuídos em malocas patriclânicas na região de ocupação desses povos, é de se
imaginar que algumas delas contavam com um contingente muito maior de pessoas do
que observamos no presente. Quando os Bora atuais afirmam, portanto, que “nunca
gostaram de vivir juntos”, fica claro que o padrão de assentamento existente no passado
(malocas mais numerosas e com muitas pessoas) não configurava, para eles, uma exceção
a essa regra. Portanto, vivir juntos não parece ser, para os Bora, uma questão de
concentração demográfica.

As malocas do passado eram compostas por pessoas em posições muito similares


àquelas que encontramos hoje. Como vimos, ao redor de um chefe orbitarão pessoas que,
geralmente relacionadas a ele pelo parentesco, encontram em sua maloca o ponto focal
de onde emanam e para onde se direcionam as relações sociopolíticas e rituais. As
construções no estilo regional, as camas de madeira trazidas pelos padres nos internatos
e a separação interna das casas em cômodos não foi suficiente, assim, para que a maloca
deixasse de ser um lugar de uso e convivência cotidianos. Vivir juntos, nesse sentido,
197
Capítulo 3 – O que organiza o mundo?

seria a indesejável situação na qual co-residem, em uma maloca, um contingente de


pessoas incongruentemente relacionas. Esse seria o caso hipotético, por exemplo, de uma
maloca com nenhum ou muitos chefes ou, ainda, de uma maloca onde pessoas
desprovidas de laços de parentesco, aliança ou filiação adotiva entre si vivessem juntos
como se parentes fossem. Dito de outro modo e usando um exemplo dos próprios Bora,
eles não seriam capazes de vivir juntos tal qual os Brancos na cidade, que vivem em
apartamentos em edifícios cujos vizinhos lhes são desconhecidos. Nesse sentido, a
existência de malocas com muitas pessoas no passado não era um problema diante da
preferência dos Bora de não vivir juntos, uma vez que é esperado que pessoas
apropriadamente relacionadas a um chefe (não importa se muitas ou poucas) residam no
mesmo lugar.

Assim, enquanto espera-se que os parentes masculinos por via paterna (pai, irmãos
e filhos) permaneçam sempre ao lado do chefe, é possível notar que existem situações nas
quais ele é capaz de atrair para perto de si outros parentes (genros, sobrinhos, netos, etc.).
Ao contrário de uma transgressão às regras de parentesco e residência, tal aglutinação de
pessoas ao redor de um chefe é desejada, sendo inclusive o meio pelo qual ele adquire e
reitera seu prestígio. Deseja-se, até mesmo, que ele seja capaz de reunir e ter sob seu
comando pessoas anteriormente não aparentadas a ele ou apenas com laços de parentesco
muito tênues. Essas e outras são designadas pelos Bora como “órfãos”. Tais categorias
(chefe e órfão) são os polos de uma oposição complementar que será fundamental para
esse trabalho. É necessário, antes, explorar minimamente seus termos225

225
Acredito que a primeira vez que notei na literatura a existência de tal oposição, logo após retornar de
um campo exploratório inicial que descrevo na introdução dessa tese, foi ao ler o trabalho de Pineda
Camacho sobre o Tempo dos Brasileiros: “El análisis del proceso esclavista del río Caquetá puso de
presente la pertinencia de la categoría ‘capitán’ y, en el extremo opuesto, la de ‘huérfano’. Con el nombre
‘capitán’ designamos un jefe o cabeza de maloca, dueño de cierta carrera ritual; ‘huérfano’ significa un
conjunto heterogéneo de posiciones, caracterizado por su escala ritual inferior.” (Pineda Camacho, 1985:
101).
198
Capítulo 4

Sobre chefes e órfãos

4.1. Quem é chefe?

Um chefe, geralmente um dono de maloca primogênito de uma linhagem maior


de um clã, não é acostumado a muitas falas públicas fora do espaço do mambeadero, mas
está habituado a recriar ali os mesmos gestos e atitudes que aprendeu ao longo da vida
com seu próprio pai. Ele senta-se em seu banco no mambeadero e, diariamente, organiza,
pensa e reparte: organiza as atividades que seu pessoal fará nos dias seguintes; pensa qual
a melhor maneira de garantir o bom funcionamento dos trabalhos e de resolver os
inúmeros conflitos que surgem; reparte, sempre tranquilamente, a palavra dos homens no
mambeadero da mesma maneira com que reparte os punhados de coca, cedendo e
limitando a fala de cada um, dando o tom da conversa e conduzindo a sessão do começo
ao fim, quando é hora de “descansar” e “fazer amanhecer” o que foi dito. Não é que um
chefe esteja imune a críticas – aliás, muito pelo contrário, parte de sua autoridade hoje
tem a ver com sua habilidade em administrá-las pacificamente. Porém, mesmo que seu
prestígio hereditário incomode a alguns, ele muito raramente é contestado em público e,
mesmo nessas ocasiões, o efeito das queixas é de curto alcance. É como me disse certa
vez um homem de uma linhagem menor de um clã pouco influente no Igaraparaná: “sei
que eu sou bom com as palavras e que poderia ser um bom chefe, mas não nasci com esse
poder (esp: potestad), e isso ninguém pode mudar”. Dito em outras palavras, idealmente
não há como fazer-se chefe ou deixar de sê-lo, sendo essa uma das grandes questões
enfrentadas diante da ausência de pessoas aptas para a chefia depois do período caucheiro
(ver cap. seguinte).

A palavra em Bora para chefe (esp: jefe) é ávyéjuúbe. Sua raiz, ávyeju, é de
tradução complexa. Segundo meus interlocutores, o vocábulo faz referência ao respeito,
ao valor, à importância e ao engrandecimento. Assim, um ávyéjuúbe, ou um chefe, é
alguém alvo de respeito e a quem se atribui grande valor. Aqueles que vivem em sua
maloca ou a seu redor, sob sua influência, são sua “gente” ou o seu pessoal (bora:

199
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

múnáajpi). Como já mencionei, Karadimas (2000b: 601) e Guyot (1972) afirmam que o
pessoal de um chefe chegava de fato a tratá-lo pelo mesmo termo com que se dirigiam a
seus pais legítimos (F). Muito embora isso já não ocorra, a ideia de que algumas pessoas
sob o comando de um chefe são como seus filhos ou suas crias (esp: criatura – bora:
tsiimene226) é mencionada correntemente, algo que também vimos na origen das
mercadorias apresentada no começo do capítulo 1.

Ao longo deste trabalho, por diversas vezes digo que os chefes são pessoas de
prestígio. Seria possível, de igual maneira, que eu os caracterizasse como pessoas
“magnificadas”, isto é, como chefes-mestres que, contando com seu pessoal orbitando
em volta de si, são ao mesmo tempo a própria expressão englobante dessa coletividade
que os acompanha:

Todas as outras distinções são obviadas para que ele apareça como uma
singularidade inclusiva, uma pessoa magnificada (...). Nesse sentido,
mais do que um representante (i.e., alguém que está no lugar de), o
chefe-mestre é a forma pela qual um coletivo se constitui enquanto
imagem; é a forma de apresentação de uma singularidade para outros.
(Fausto, 2008: 334)

Prefiro utilizar precisamente a ideia de prestígio pois ela é acionada de forma


cotidiana pelos Bora ao referir-se, em espanhol, a pessoas, nomes ou linhagens de clãs
que são, em suas palavras, mais “importantes” do que outros. Vimos, até aqui, o quanto
a primogenitura e a descendência de “linhagens maiores” produzem pessoas que gozam
da prerrogativa de possuírem malocas e carreras rituais (ver infra), fazendo com que os
chefes possam reunir um numeroso pessoal a seu redor. Tal concentração, por sua vez, é
a própria força que mantém um chefe em sua posição em razão de capacidade que ele
detém de realizar vultuosos rituais, produzir uma quantidade abundante de alimentos e
ser influente para um grande número de pessoas.

Nesse sentido, é evidente que um chefe dependerá de uma boa relação com seu
pessoal para manter-se em sua posição. Como veremos, seu prestígio advém não apenas
de sua capacidade em atrair, mas também de sua aptidão em manter as pessoas a seu lado
por meio de sua boa chefia. Muitas vezes, pelo menos após a instauração do Tempo da
Abundância (ver Int. à Parte II), essa boa chefia é expressa por meio do sucesso de um
chefe em apaziguar conflitos sem lançar mão da violência. Mesmo assim, a não ser em

226
A mesma palavra é utilizada tanto para crianças pequenas quanto para filhotes de animais.
200
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

situações críticas, sua posição será suficientemente orgânica para que o reconhecimento
de seu prestígio não dependa, na maior parte do tempo, da aprovação contínua de seu
pessoal.

Desta forma, é importante que fique claro que ao longo deste trabalho, quando
falo sobre os chefes, refiro-me àqueles homens que, sendo primogênitos de uma linhagem
maior de um clã ou tendo se convertido em chefes após a hecatombe caucheira (ver
próximo capítulo), herdam e transmitem através das gerações posições cujo prestígio
remete a formas sociais internas ao mundo bora. Isso faz com que sua chefia não
necessariamente coincida com o papel de liderança assumido pelos governadores de
cabildo e outros cargos eletivos que, nos tempos atuais da bonanza dos projetos, atuam
como intermediários na relação entre suas comunidades e a sociedade nacional. Apesar
de os chefes e seus filhos primogênitos ocasionalmente serem eleitos para esses cargos
(uma vez que os mandatos costumam ser curtos e a rotatividade grande), no geral eles são
disputados por homens que, ao não possuírem a prerrogativa da chefia hereditária, veem
no exercício dessas funções a possibilidade de aumentar a influência política de suas
linhagens menores, atraindo com isso novos recursos e relações. Os próprios Bora
apresentam, em seus discursos, uma diferenciação entre os chefes (esp: jefes) e essas
novas lideranças (esp: líderes), cuja contemporaneidade poderia ser atestada pela
ausência, no idioma nativo, de um termo para esses novos cargos.

Mesmo que esses novos líderes exercem alguma influência regional, sejam os
representantes de suas comunidades perante o exterior e participem das tomadas de
decisões no que diz respeito, por exemplo, às políticas públicas e aos acordos de
cooperação com ONGs, universidades, etc., suas ações sempre estão condicionadas ao
aval dos chefes que, no banco principal de suas malocas e a partir das conversas com seu
pessoal, são responsáveis por concretizar por meio de sua palavra de chefia (esp: palavra
de gobierno) as decisões debatidas e encaminhadas coletivamente.

É assim que procederá um chefe até o momento em que ele decida transmitir seu
cargo a seu filho primogênito, deixando de ser o ávyéjuúbe de seu pessoal para tornar-se
o ancião de sua maloca (esp: anciano – bora: keéme). Por virem de linhagens maiores de
clã com nomes titulares, essa transmissão acontece oficialmente em um ritual e marca o
momento a partir do qual o antigo chefe deixa de sentar-se no banco principal do
mambeadero e cede o lugar ao filho recém-nominado. Um ancião de clã, assim,
201
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

geralmente terá sido, no passado, chefe e dono de maloca. Junto com o chefe atual, ele
formará o núcleo principal de liderança de um clã. Portanto, se um chefe é aquele que
reúne e organiza pessoas e recursos, esses atributos encontram semelhanças com o que
sabemos sobre os chefes bora do passado. Vimos no capítulo 1 que os Povos do Centro
se envolveram, desde pelo menos o século XVIII, em um extenso circuito de comércio
de pessoas cuja influência irradiou-se até os mercados de escravos do médio Solimões,
no Brasil. Vimos, ainda, que nesse tempo muitas pessoas foram vendidas pelos antigos
chefes em troca de machados, terçados, espingardas, tecidos, etc.227.

Sobre esse tema, um último ponto merece nossa atenção. Apesar de os Bora não
considerarem que os líderes indígenas locais sejam ávyéjuúbe, esse vocábulo é utilizado
para referir-se a algumas figuras do passado e do presente. Assim, não apenas certos
comerciantes de escravos luso-brasileiros, mas também alguns caucheiros, narcos e
atuais regatões, por vezes, são chamados de ávyéjuúbe ou, em espanhol, patrón. Não
devemos confundir aqui o uso desses vocábulos com aquele empregado entre outros
povos da Amazônia Ocidental para fazer referência aos “patrões” com quem os indígenas
estabelecem relações nas quais, no mais das vezes, encontram-se ou concebem-se na
posição de presas ou animais domésticos, para tomar de empréstimo a interpretação de
Bonilla (2005). Mais bem, penso que o uso desse vocábulo para falar sobre tais atores
relaciona-se diretamente com o fato de que a existência dos chefes não se limita ao círculo
de convivência de determinada maloca ou mesmo ao mundo dos humanos. Assim, quando
veem um bando de queixadas, um cardume de peixes ou um grupo araras que sobrevoa a
maloca, é normal que os Bora imediatamente identifiquem seu chefe ou ávyéjuúbe. Da
mesma forma, quando por exemplo um grupo de estrangeiros chega em comitiva a seu
território, comumente haverá comentários a respeito de quem é o chefe daquela equipe.
Desse modo, a relação entre esses termos (patrão e ávyéjuúbe) parece evidenciar a
concepção nativa de que todo grupo, seja ele humano ou não-humano, existe apenas
mediante a presença de um chefe que é responsável por gerir e comandar seu pessoal.
Como veremos ao longo desse trabalho, os termos para chefia não variam muito, pois um
chefe (ávyéjuúbe) poderá ser chamado, no máximo, de pai (bora: méécáánií -
literalmente, “nosso pai”) ou “patrão” (esp.: patrón). Entretanto, existe um diverso

227
Notamos também que certos chefes, como Ivaejte e Mañaho, possuíam um raio de influência muito
maior do que apenas sobre o pessoal que vivia em suas malocas. De fato, durante parte do século XIX, eles
foram os nódulos de uma extensa e intrincada rede de comércio e trânsito humano.
202
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

vocabulário para fazer referência àqueles que vivem a seu redor. Para citar apenas alguns
exemplos e suas respectiva traduções: “filhos” (tsiíme), “filhotes” (tsíímene),
“empregados” (wakiméimúnaájpi – literalmente, “o pessoal que trabalha”), “secretários”
(ávyejuúbe nahbebe – literalmente, “os que são como irmãos do chefe”), “clientes”,
“servos” (iicyuwaabe), dentre outros. Tal variação parece revelar que, entre o pessoal de
uma maloca, existem diferenças significativas quando observamos mais de perto a
relação que cada uma das pessoas mantêm com o chefe228. Feita toda essa exposição, é
tempo de explorar mais à fundo o conceito cuja centralidade venho anunciando desde o
começo desse trabalho.

4.2. Quem é órfão?

Ao perguntar aos Bora quem eram as pessoas vendidas pelos antigos chefes para
os comerciantes de escravos no século XIX, eles sempre me diziam simplesmente que
eram “órfãos” (bora: úújóveébe; esp.: huérfanos) ou “órfãozinhos” (esp.: huérfanitos).
Me lembro bem de uma senhora que, à minha indagação, disse: “Minha filha, você sabe
como é, nunca faltam órfãos por aí...”.

Tal como mencionei na introdução desta tese, desde o começo de meu trabalho de
campo me foi imprescindível buscar compreender quais as nuances que a noção de
orfandade ganha no mundo bora, uma vez que tal conceito possuía claramente um
significado distinto daquele ao qual eu estava acostumada. Para os não-Bora,
resumidamente, uma pessoa órfã é aquela que perdeu o pai, a mãe ou ambos na fase da
infância ou da adolescência. Se, como vimos acima, os chefes são espécies de “pais” para
seu pessoal (seus “filhos”, “crias” ou “filhotes” (bora: tsiimene)), é possível inferir que
as duas definições se tangenciam em alguns aspectos. Mesmo assim, notei com o passar
do tempo que enquanto eu tinha por certo que órfãos eram no máximo pessoas por quem
eu e os não-indígenas que conhecia sentíamos alguma piedade ou compaixão, a
centralidade dessa categoria entre os Bora evidenciava que, ali, o conceito mobiliza outras
coisas.

228
Nesse sentido, se voltamos à origen da chegada das primeiras mercadorias, vemos que enquanto o chefe-
Garça é identificado por seu pessoal como abuelo, ele os chama de seus “clientes”, marcando assim um
tipo de relação (avô-cliente) à primeira vista pouco usual.
203
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

Gasché buscou definir a orfandade em seu pioneiro artigo sobre os Murui-muina,


do fim dos anos 1970:

A la cellule des « maîtres de la maison » peuvent s’ajouter des


personnes qui, sans être en relation d’alliance avec les premiers, sont
néanmoins originaires de maisonnées étrangères où elles avaient elles-
mêmes été membres de la cellule, mais qu’elles ont dû quitter à la suite
d’une guerre (ou d’une maladie) qui l’a privée de son chef et décimé sa
population. Ces réfugiés occupent par rapport aux « maîtres de la
maison » un statut inférieur ; ils sont désignés par le terme jaienikï que
les Witoto traduisent par « orphelin » et « gente ordinaria », gens du
commun. (Gasché, 1976: 146).

De fato, também para os Bora, um órfão é qualquer pessoa que, por alguma razão,
encontra-se temporária ou definitivamente apartada de seu núcleo familiar e,
principalmente, de seu chefe – ou, no limite, de seu “pai” ou “dono” (Fausto, 2008). É
uma definição parecida àquela apresentada por Lea para os Kayapó, povo matrilinear e
uxorilocal a respeito do qual a autora argumenta ser importante levar em consideração as
relações internas de descendência:

Os órfãos constituem uma categoria social importante entre os Kayapó


(...). Para os Kayapó, alguém é órfão não somente quando está sem pai,
mãe ou avós, mas também quando se encontra sem germanos dentro da
mesma aldeia, sem os germanos de sua mãe, e da MM. (Lea, 1986: 42)

Não são muitos os trabalhos que, como o de Lea, dedicam-se a explorar o lugar
dos órfãos nas Terras Baixas da América do Sul. Se nos trabalhos sobre o Caquetá-
Putumayo o tema da orfandade sempre esteve presente, na maioria das vezes ele foi
tratado de forma fragmentada. O caráter disperso desses dados faz com que investigar
mais a fundo o tópico seja, portanto, como encaixar as peças de um quebra-cabeça. Guyot,
ao tratar sobre o período da comercialização de pessoas no Caquetá-Putumayo, confirma
a informação de que os órfãos eram os “objetos” usados nessas trocas comerciais. Eles
figuram, em seu trabalho, ao lado dos filhos caçulas que, por sua posição na ordem de
nascimento, eram desvalorizados em relação a seus irmãos primogênitos229:

Les « objets » humains qui avaient cours dans ce genre d’opération


étaint soit des « orphelins », ïxowe, adoptés dans la famille au cours de
raids guerriers à l’issue desquels seuls les enfants étaient épargnés, soit

229
Novamente, o caso Bora encontra ressonância com aquele explorado por Lea, onde há um espectro que
relaciona nomes e prestígio e cujas extremidades são ocupadas, de um lado, pelos filhos primogênitos e, de
outro, pelos órfãos: “It is the first born children of either sex (kutewa) and those born 'in the middle' (konetã)
who are likely to be honored in a name confirmation ceremony. The last born of either sex (kutapure)
represent the exhaustion of the procreative powers of their parents, together with their stock of heritable
names and prerogatives. Worse than to be last born is to be an orphan (uati), especially those who have lost
their mother (...)”. (Lea, 2005: 90).
204
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

des cadets dont le statut était déprécié par rapport à celui des aînés
(Guyot, 1976: 389)

O tema seguiu aparecendo em trabalhos posteriores. Ochoa, que desenvolveu


pesquisa entre os Bora no rio Ampiaycu (Peru), refere-se à composição tradicional das
malocas salientando a diferença de status existente entre os parentes de um chefe e seus
“órfãos”:

Tradicionalmente la Maloca era una corresidencia donde vivían los


descendientes de la línea masculina (patrilinaje) y sus esposas, además
de los miembros femeninos solteros y hombres de otros patrilineajes
que habían sido diezmados en las guerras caníbales y cuyos jefes habían
muerto; a estos se les llamaba “huérfanos” y tenían un status inferior en
comparación a los miembros del linaje dueño de la Maloca (Ochoa,
1985: 67).

Por sua vez, Echeverri também chamará a atenção para presença de tal noção entre
os Povos do Centro. O autor, porém, amplia as considerações de seus antecessores ao
retroceder em busca das origens do termo e terminar por indicar, além do já citado caráter
assimétrico de status, sua saliente abrangência:

La expresión “los huérfanos” (jaiéniki) se refiere a las personas que


viven con un grupo, pero que no pertenecen a él; son personas sin madre
y sin padre – no tanto en un sentido literal como en uno social. Esta
expresión es un remanente de los tiempos antiguos, cuando a hombres
y mujeres jóvenes capturados durante la guerra se les permitía vivir con
el grupo captor, no como prisioneros, sino como huérfanos. Podían
casarse adentro del grupo, más sin embargo nunca adquirían los
derechos de la gente propia del grupo. (Echeverri, 2015: 159).

Em sua tese, o autor elabora uma divisão entre processos endogâmicos e


exogâmicos, cuja oscilação seria o operador central na constituição dos grupos no
Caquetá-Putumayo. A um sistema fechado cujo objetivo principal é a “reprodução
cultural”, o autor opõe um sistema aberto de incorporação do exterior, de intercâmbio e
reciprocidade. Ao passo que o primeiro estaria relacionado à existência, preponderância
e perpetuação dos chefes, o segundo se conectaria à incorporação dos órfãos enquanto
elementos externos imprescindíveis (idem: 70). Além de defender tal leitura a respeito da
oposição entre chefes e órfãos, Echeverri também apresenta dados que, colocando em
diálogo a existência dos órfãos e a maneira indígena de organizar e conceber os processos
históricos ao longo do tempo, nos fazem compreender como os órfãos são figuras duais,
pois ao mesmo tempo em que fazem alusão ao passado violento e ao rapto, à compra e
venda de pessoas, também remetem ao fato de que a condição da orfandade tornou-se
generalizada após o genocídio caucheiro.
205
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

Tal observação nos é útil pois a partir dela podemos salientar uma diferença
fundamental existente entre chefes e órfãos: enquanto a chefia é, em condições ideais,
dada, a orfandade é sempre adquirida. Em outras palavras, no mundo bora algumas
pessoas são chefes desde seu nascimento, mas nenhuma delas nasce órfã. A bem dizer, é
certo que um homem, para tornar-se chefe, deve ser preparado por seus parentes paternos
e demonstrar que possui as mínimas habilidades que a função exige230. Caso ele se mostre
inapto ou desinteressado em assumir as responsabilidades da chefia de seu clã, é comum
que essa capacidade seja transmitida a seu irmão imediatamente mais novo (Be2). Porém,
é apenas excepcionalmente que pessoas que não pertencem a linhagens maiores de clã
são capazes de se tornar chefes de malocas com prerrogativas rituais231.

Retornando às tentativas mais diretas de definição do termo, Karadimas parece


ser o autor que de maneira mais sistemática buscou compreender a existência dos órfãos
enquanto uma posição específica entre os Povos do Centro232. Em diálogo direto com
documentos históricos e narrativas que abordavam a comercialização de escravos no
Caquetá-Putumayo, a investigação sobre a etimologia do termo nativo foi a porta de
entrada de suas reflexões. Ele notou que a palavra “órfão”, em Miraña, é í:hóßèébè,
glosado pelo autor como “aquele de quem eu me aproveito” (1997: 50). Segundo um
levantamento preliminar que realizei, Wise (1969) afirma que, entre os Ocaina, a palavra
para órfão é fuxóóho. Seu radical (fuxóó-), combinado aos sufixos masculinizante (-ma)
e feminilizante (-co), forma as palavras traduzidas, respectivamente, como viúvo
(fuxóónma) e viúva (fuxóónco). Já para os Muinane, a palavra jijovoto é traduzida, pelos
estudiosos de seu idioma (Pakky, James & Janice, 2016), como “órfãos”, “maltratados”
ou “escravos”. Entre os Bora, o termo úújóveébe designa tanto a orfandade quanto um

230
Para uma exposição a respeito da chefia no Alto Xingu e a importância tanto da primogenitura quanto
dos grandes chefes, ver Heckenberger (1996, 2005). Especificamente sobre a dinâmica dado/construído da
chefia entre os Kalapalo, ver Guerreiro (2012: 118 – 160).
231
Veremos que o intervalo de tempo que se seguiu à queda demográfica decorrente da atuação caucheira
foi marcado pela produção intensiva de chefes no Caquetá-Putumayo. A morte abrupta de um enorme
contingente de pessoas fez com que o número de órfãos aumentasse exponencialmente, pois ou bem os
chefes morreram sem transmitir seus nomes para sua descendência, ou bem não havia a quem delegar as
funções de chefia dado o número reduzido de pessoas. Essa produção de chefes a partir de órfãos em meio
a uma profunda desorganização será, justamente, o tema dos próximos capítulos. Desde já, contudo, é
importante que o(a) leitor(a) esteja atento para o fato de que a produção de chefes com prerrogativas rituais
foi acompanhada ou precedida pela filiação adotiva desses a linhagens maiores.
232
Recentemente, Micarelli publicou um artigo em que o tema é tangencialmente abordado. Segundo a
autora, “[a]mong the People of the Center the category of the orphan denotes a captive, slave, servant, and
a man who chooses to live in hix wife’s maloca under the protection of his father-in-law, in so doing
constituting an exception to virilocality.” (2015b: 75). Tal definição vai ao encontro das discussões
desenvolvidas neste e nos próximos capítulos.
206
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

estado de empobrecimento: “Uujóve: abs, estado de... (...) 1. ser huérfano, 2. (fig.) ser
muy pobre” (Thiesen & Thiesen, 1998: 296). Tais dados confirmam aqueles que colhi em
campo junto a meus interlocutores, que não raro empregavam o termo de forma a marcar
a situação de vulnerabilidade ou desamparo de uma pessoa (Gow, 2000).

Poderíamos nos perguntar, assim, porque palavras dos Povos do Centro que se
relacionam às ideias de viuvez, pobreza, maus-tratos ou escravidão foram traduzidos, no
idioma nacional, por órfãos (esp.: huérfanos). Se é certo que a chegada dos padres
capuchinhos e de seus orfanatórios pode ter influenciado os rumos dessa tradução, é
necessário ter em mente que uma análise que leve em conta apenas essas contingências
perde por não notar que, aqui, é de fato a própria idiossincrasia presente na relação de
paternidade entre os Povos do Centro que está em jogo. Vejamos do que se trata.

Ao contrário do que acontece para o idioma Bora (ver terminologia), Karadimas


afirma que o termo em Miraña para sobrinho (ìhóßèbè) é muito próximo àquele utilizado
para se fazer referência aos órfãos (í:hóßèébè). Embora eu não possa me pronunciar sobre
a equivalência proposta pelo autor, uma vez que não conheço a língua Miraña, ela
descortina uma interessante possibilidade de investigação a respeito da posição estrutural
dos sobrinhos entre os Bora e da relação que eles que mantêm tanto com o clã de seus
pais quanto com aquele de seus tios maternos.

De acordo com o que vimos nos itens anteriores, a abrangente extensão colateral
na classificação do parentesco bora faz com que a quantidade de pessoas tidas como
“primos” ou “primas” seja bastante grande. Consequentemente, o número de sobrinhos
(em Bora, tabyébe) torna-se igualmente abundante. A fim de entendermos um pouco
melhor a relação de um chefe com seus sobrinhos, proponho que esses últimos sejam
divididos em três categorias.

Em primeiro lugar, teremos os filhos dos irmãos do chefe (BC). Normalmente


todos eles viverão em sua maloca ou ao redor dela e, ainda que não ganhem nomes
titulares, pertencerão ao mesmo clã de seu tio paterno. Serão ainda companheiros do
chefe em seus afazeres diários, sendo por ele coordenados nos trabalhos nas roças e no
mambeadero. Um segundo grupo de sobrinhos, filhos das irmãs dos chefes, viverão em
malocas distantes segundo a regra de residência virilocal. Como essas mulheres em geral
terão se casado com homens de linhagens maiores de outros clãs, seus filhos não serão

207
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

filiados ao clã de sua mãe, mas sim àquele dominante na maloca de seu pai, onde
nasceram. Dessa forma, cotidianamente eles se relacionarão muito pouco com seu tio
materno. Por fim, o terceiro grupo será conformado pelos sobrinhos classificatórios do
chefe, isto é, pelos filhos daqueles a quem o chefe reconhece como “primos” e “primas”.
É o que fica claro no diagrama a seguir.

Diagrama 4 – Correspondência entre órfão, sobrinho e genro

Vimos, anteriormente, que é provável que os casais [7]-[8] e [9]-[10] vejam com
bons olhos o casamento de seus filhos, [11] e [12]. A predileção por essa união residirá
no fato de que ali as pessoas envolvidas não são nem aparentadas demais – evitando-se
assim uma união incestuosa – nem demasiadamente distantes a ponto de fazer com que o
parentesco existente em G0 não possa ser renovado por meio do estabelecimento de uma
nova e diferente aliança. Uma vez que no diagrama acima [8] e [9] são primos “de
segundo grau” (ou seja, que a relação de parentesco original entre eles encontra-se em
G+2, pois [2] é irmão de [3]), compreendemos que aquilo que Gasché (1976) chamou de
“ilusão exogâmica” no Caquetá-Putumayo nada mais é do que a predileção que um casal
possui de que seus filhos se casem com algum de seus sobrinhos classificatórios que se
encontram em determinada distância geracional.

Se supormos que [8] é o chefe do clã [vermelho], notaremos que sua tia
208
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

classificatória [5] deixou no passado sua maloca e passou a viver naquela do clã [azul] de
seu marido. A filha [9] dessa mulher, por sua vez, fez movimento semelhante, mudando-
se após o casamento para a maloca de [10], do clã [verde]. Portanto, [12], o sobrinho
classificatório do chefe, viverá idealmente na maloca do clã de seu pai, [10]. Pode ocorrer,
contudo, que o pai de [12] seja de uma linhagem menor de um clã, não tendo passado,
assim, pela nominação em rituais titulares. É possível, inclusive, que seus parentes não
possuam uma maloca, vivendo em casas comuns ou incorporados à maloca de outro clã.
Não é incomum, ainda, que mesmo tendo pertencido no passado a uma linhagem
prestigiosa ou a uma maloca importante, o clã [verde] tenha sido devastado por guerras
ou epidemias. Em todas essas situações, [12] será para [8] um genro desejável.

Isso porque ele, o chefe [8], encontra-se numa posição que é ao mesmo tempo
inevitável e incômoda: de acordo com as regras de residência, é mister que sua filha deixe
sua maloca após o casamento e vá viver com a família de seu marido. Contudo, um chefe
anseia aumentar constantemente seu pessoal, isto é, o número de pessoas que vivem em
sua maloca. Mais do que isso, ele sabe que, ao aumentar o pessoal de sua maloca, acabará
fazendo com que seu clã cresça e, com ele, sua influência perante o exterior - algo que
ficará claro, por exemplo, na presença de muitos homens em seu mambeadero ou na
realização de grandes rituais. Esses não são desejos expressos timidamente ou aferidos a
partir de pequenos indícios que a etnografia possa ter fornecido aqui e ali, mas sim
vontades enunciadas claramente pelos chefes e reiteradas pelos Bora em geral.

Assim, uma das maneiras encontradas pelos chefes para ampliar o número de
pessoas ao redor de si é manter suas filhas em sua maloca de origem ao fazer com que
elas se casem com homens que, sendo sobrinhos classificatórios momentânea ou
permanentemente sem muito prestígio, estejam dispostos a contrariar a regra de
residência e passar a viver com a família de suas esposas na maloca de seu sogro-tio-
chefe. Outra forma de um chefe fazer crescer seu pessoal é garantindo que algumas de
suas primas próximas ou distantes, ao se casarem com homens sem prestígio, os tragam
para viver em sua maloca. Isso fará ainda com que os descendentes dessa união (portanto,
os sobrinhos classificatórios do chefe) sejam igualmente incorporados a essa maloca –
mesmo que nem sempre sejam vinculados ao clã do dono da mesma. Em ambos os casos,
teremos sobrinhos classificatórios se juntando ao pessoal do chefe - ora como genros, ora
como filhos das primas. De acordo com meus interlocutores, por não pertencerem ao clã

209
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

do chefe e dono da maloca e se encontrarem privados do convívio com seus chefes


originais, nas duas situações esses sobrinhos classificatórios serão também órfãos233.
Dessa maneira, muito embora não seja evidente para os Bora uma equivalência linguística
entre os termos para sobrinhos e órfãos tal como sugere Karadimas para os Miraña, a
relação entre essas posições manifesta-se por outras vias.

A partir dessa análise é possível sugerir que as pessoas capturadas nas antigas
incursões guerreiras não eram tidas como órfãs em razão da privação de sua liberdade ou
da morte de seus parentes, mas sim porque estavam, tal como os sobrinhos-genros,
afastados do convívio de seu núcleo familiar original. A inclusão desses cativos-órfãos
nas novas malocas poderia ou não se dar por meio do casamento, ocasião em que eles
deixavam sua condição original para se tornarem seus cunhados e genros, por meio da
união com suas irmãs, primas, sobrinhas ou netas. Mesmo que em ambos os casos cativos
e sobrinhos classificatórios encontrem-se numa posição inferior em relação aos parentes
legítimos do chefe, notaremos à frente que a assimetria será tanto maior quanto menor for
a proximidade de parentesco prévia entre chefe e órfão.

Considerando os dados apresentados até aqui, parece que já é possível buscar uma
definição inicial do conceito em questão. Assim, baseada em minha experiência entre os
Bora e na literatura disponível, penso que um órfão seja aquela pessoa que foi privada,
definitiva ou provisoriamente, do convívio com seu chefe ou pai legítimo. Assim, pode-
se dizer que são ou estão órfãos: (i) aqueles cujos pais de fato morreram; (ii) no passado,
cativos de guerra que não foram consumidos ritualmente e que passaram a viver junto à
família de seus captores (casados ou não com mulheres de sua nova maloca); (iii)
sobrinhos classificatórios que residam junto ao clã de seu tio materno; (iv) parentes afins
de um chefe (sobretudo genros, cunhados e sogros) que escapam ao princípio virilocal e
vivem na maloca de origem de suas esposas; (v) qualquer outra pessoa que, por alguma
razão, se encontre afastada a médio ou longo prazo de sua família paterna.

233
Poderíamos indagar aqui qual a relevância, nesse sistema, das mulheres-órfãs. De fato, um chefe também
desejará atrair para perto de si sobrinhas ou irmãs classificatórias. Contudo, suspeito que, dado o
funcionamento patrilateral desse sistema, tal ensejo seja movido pela possibilidade de trazer com elas novos
homens que, ao viverem na maloca de suas esposas e terem seus próprios filhos, contribuirão para o
aumento do clã do chefe. No limite, em razão da residência virilocal, as mulheres casadas de uma maloca
sempre estarão na posição de órfãs – à exceção dos casos em que, como vimos, um chefe é capaz de manter
suas filhas a seu redor. Creio que o desenvolvimento futuro dessa constatação possa render frutos
interessantes para a continuidade do trabalho.
210
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

Recuperando a breve discussão sobre a noção de prestígio, se pudéssemos


organizar as posições sociais bora em um espectro que fosse do mais ao menos
prestigioso, os chefes estariam num extremo e os órfãos em outro. Na parte intermediária
dessa relação estariam, mais próximos ao polo-chefe, todas aquelas pessoas pertencentes
a linhagens maiores de clã, a começar pelas primogênitas. Em direção à posição menos
prestigiosa ocupada pelos órfãos estariam, por sua vez, aquelas pessoas filiadas a
linhagens menores de clã, em grande parte em razão de sua carência de carreras234, nomes
titulares e posições de chefia.

Finalmente, se as pessoas que se encontram na posição de orfandade


compartilham a ausência de seus chefes enquanto condição comum, não é possível
afirmar que todas elas estabeleçam laços de mesmo tipo com o dono e o pessoal da maloca
onde passaram a viver. A depender do parentesco existente previamente entre eles,
distintas relações terão lugar. Dito de outro modo, nem todos os órfãos serão iguais ao
olhar daqueles que os acolhem.

4.3. Sobre a adoção

Se os órfãos, a priori, não fazem parte do pessoal de uma maloca, veremos que
essa situação não é necessariamente definitiva, muito embora não seja possível uma
anulação completa dessa posição. Uma das formas de transformar a condição inicial de
um órfão é por meio da adoção.

Certa noite, em um mambeadero bora, eu conversava com dois chefes e parte de


seu pessoal sobre os caminhos pelos quais minha investigação estava me levando. Dentre
outras coisas, sanava algumas dúvidas sobre a tradução em Bora para palavras utilizadas
correntemente por eles em espanhol. Falando sobre o tema dos órfãos, perguntei se havia
algum termo que pudesse ser traduzido pelo verbo “adotar”. Depois de muitas
especulações, não chegamos a nenhum vocábulo que pudesse exprimir essa ideia. Nesse
momento, os homens se puseram a pensar sobre o assunto e um deles me disse que achava
que isso acontecia porque os Bora, diferentemente dos Brancos que vivem nas grandes
cidades, não costumavam adotar uma pessoa desconhecida. Contou-me então que lhe

234
Ver cap. 5.
211
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

parecia bastante estranho o fato de que os Brancos fossem capazes de adotar crianças que
não sabiam quem eram seus parentes ou de onde haviam vindo. Lembrou ainda de um
programa de televisão que ele tinha assistido sobre casais estrangeiros que chegavam à
Colômbia em busca de uma criança para adotar, não importando a cor de sua pele ou sua
fisionomia e desconhecendo por completo a identidade de seus pais biológicos. Para ele,
esse era um costume bastante estranho e que não encontrava equivalente no mundo bora.

Perguntei então como eles classificariam aquelas pessoas que, tanto num passado
mais longínquo quanto nos dias atuais, foram adotadas por malocas de grupos de filiação
diferente naqueles nos quais nasceram. Disseram-me, em seguida, que essas espécies de
“adoção” acontecem apenas entre pessoas que são anteriormente aparentadas,
principalmente quando se tratam de netos e sobrinhos. Continuamos a conversa
levantando diversos casos nos quais, vendo-se afastadas da proteção de seus pais ou
chefes, algumas crianças foram incorporadas à maloca de seus tios (reais ou
classificatórios) ou avós – a maioria deles pertencentes a clãs ou linhagens mais influentes
do que aqueles aos quais as crianças estavam originalmente filiadas. Logo, chegaram à
conclusão de que se não há um termo para a adoção tal como concebida no mundo dos
Brancos, a incorporação de alguém em um novo núcleo familiar (uma maloca de prestígio
ou não235) pode ser pensada em termos de “criação”.

Assim, uma criança que passa a viver junto a uma nova parentela será, para
aqueles que a receberam, mepiivyétso (esp: nuestra cria). O prefixo me– é um pronome
possessivo na primeira pessoa do plural (“nosso”), enquanto o sufixo –tso é um causativo.
A raiz piívye, por sua vez, possui um sentido duplo. Segundo os missionários do SIL que
atuaram no Peru (Thiesen & Thiesen, 1998: 236), ela designa “origem, começo, início”
ou “a ação de crescer, desenvolver”. Daí eles terem, em acordo com a prática anterior dos
padres católicos, empregado os termos píívyéébeé (“aquele que cria”) e méécáánií
(literalmente, “nosso pai”) como tradução para Deus. Ao fazê-lo, aproveitaram-se do fato
de que a raiz piívye abarca esses dois sentidos possíveis, traduzidos em espanhol e em
português simplesmente por “criar”. Logo Deus, ou píívyéébeé, seria tanto aquele que
criou o mundo ex-nihilo quanto que mantém contínua e perenemente seus filhos.

235
De forma geral, qualquer núcleo familiar é capaz de adotar crianças órfãs. Contudo, sua incorporação a
esse novo núcleo estará sempre condicionada a seu pertencimento à maloca à qual seus novos parentes
estão afiliados.
212
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

Portanto, as crianças órfãs adotadas por um novo núcleo familiar são duplamente
“criadas” por seus novos parentes236. Por um lado, é pelo surgimento dessa nova relação
que os órfãos se inserem definitivamente em uma nova maloca e, a partir dessas relações
de filiação e pertencimento, são criados – isto é, passam a existir plena e socialmente no
mundo bora237. Por outro lado, essa nova existência é levada a cabo por meio de um
processo constante de criação no sentido de “fazer crescer” ou “desenvolver”. Deste
modo, tendo em vista as duas acepções do termo, poderíamos afirmar que essas crianças,
mepiivyétso, são “aquelas que nós criamos” ou “aquelas que existem por causa de nossa
criação”. Neste ponto do trabalho, a importância do pertencimento a uma maloca
enquanto condição para a existência social de uma pessoa Bora já deve estar clara; resta-
nos, agora, saber de que maneira alguém pode ser cotidianamente “criado” por outrem.

Se os trabalhos sobre a alimentação na Amazônia concentraram-se ora no


canibalismo, ora na comensalidade (Viveiros de Castro, 1986; Vilaça, 1992, Conklin,
1995, dentre muitos outros), Costa (2013) chama a atenção para certa ausência de estudos
que versem sobre práticas assimétricas de alimentação - ou, se quisermos, de feeding ou
“dar de comer”. A partir do caso kanamari, o autor busca explorar essa questão colocando
ênfase no processo de “dar de comer” levado a cabo entre um ser e seu “corpo-dono” ou
seu mestre, sendo esse o modelo de relação vigente, por exemplo, entre uma mulher e seu
xerimbabo ou entre um chefe e seu pessoal. Nos Bora, um chefe que adota uma criança
órfã em sua maloca também será responsável por alimentar ou “dar de comer” a esse novo
membro, mas as relações parecem variar segundo um gradiente de proximidade que
veremos à frente.

Por duas vezes presenciei ocasiões em que os pais legítimos de órfãos adotados
por seus avós maternos (ver cap. 4) reivindicavam novamente a guarda dessas crianças a
seus sogros. A reação destes últimos, apoiada pelo pessoal das comunidades que
acompanhava os casos, foi sempre a de negar os pedidos, salvo se os pais legítimos
estivessem dispostos a ressarcir financeiramente o custo dispendido com a criação desses

236
Por esse motivo, gloso o termo “criação” e seus derivados com aspas a fim de salientar esse duplo
vínculo estabelecido entre órfãos e pais adotivos. Essa é, ainda, uma forma de diferenciá-los da tradução
empregada corriqueiramente para práticas de fosterage (Viegas, 2003; Costa, 2017). Para mais detalhes
sobre esse último tópico, ver cap. seguinte.
237
Assim, entendemos que, em larga medida, os órfãos também desejam ser incorporados a novas
parentelas. Poderíamos pensar, então, o quanto eles atuam, como no caso das crianças Jarawara (Maizza,
2014), enquanto agentes ativos nesse processo de adoção.
213
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

meninos e meninas e, em especial, com sua alimentação. Originalmente, essas crianças


não pertenciam ao clã de seu avô materno, mas foram ali “criadas” ou adotadas. Devolvê-
las a seus pais legítimos, portanto, era algo que não poderia ser feito sem que esse grupo
fosse recompensado pelo tempo em que cuidou desse órfão. A situação atual é bastante
diferente daquela dos séculos anteriores, quando pessoas eram negociadas em troca de
ferramentas de metal. Porém, vivenciar as contendas entre sogros e genros em relação aos
netos adotados levou-me a refletir sobre como a suposta “selvageria” atribuída no passado
aos Povos do Centro era, na verdade, o reflexo de um profundo equívoco. Assim, não é
que essas populações estivessem ávidas por vender até mesmo sua própria família aos
comerciantes de escravos, mas sim que há diferenças importantes nas relações entre as
pessoas que se reconhecem como parentes – e isso é especialmente notável quando se
trata da “criação” ou adoção de órfãos adotados (e, no limite, de filhos caçulas).

No caso de crianças cujo parentesco com seus parentes adotivos é relativamente


próximo (netos ou sobrinhos) a distintividade que experimentam face aos outros
descendentes não será tão marcada como nos demais contextos. Eles serão alimentados
na primeira infância e, com o tempo, acompanharão seus parentes nos labores diários.
Sentarão junto a seu chefe no mambeadero, onde poderão se expressar livremente. E,
mais importante, formarão parte do clã de seu pai adotivo, estando filiados de forma
definitiva a essa parentela e transmitindo-a a seus futuros descendentes238.

Entretanto, como era de se esperar, muito raramente estarão em pé de igualdade


com os filhos primogênitos dessas malocas. Na verdade, ainda que sejam “como filhos
legítimos”, nas diversas vezes em que perguntei sobre as motivações de um casal em
“criar” uma dessas crianças, a resposta sempre foi que eles foram escolhidos “para que
nos acompanhe” ou “para que possam trabalhar com a gente”. Apesar disso, o fato de que
a presença desses meninos e meninas seja em parte induzida pela ajuda que podem prestar
nos serviços domésticos nunca se configurou, em meu trabalho de campo, como um
problema. Ao contrário, a maioria dos jovens e crianças que conheci acompanhavam de
bom grado suas famílias adotivas nos afazeres diários, mesmo quando eram mais
requisitados que seus irmãos. Assim, nunca percebi que eles se sentissem explorados ou

238
Como veremos à frente, esses meninos e meninas chamarão seus pais adotivos pelo mesmo termo usado
para pais legítimos - embora o mesmo não aconteça em relação à esposa de seus pais adotivos (avós ou tias
maternas).
214
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

subjugados, apesar de ser claro que a relação que estabelecem com seus parentes adotivos
é distinta daquela entre pais e filhos legítimos.

Portanto, lembrando-me da conversa que tive com os Bora sobre esse tema no
mambeadero e de suas respostas às minhas indagações acerca das formas de adoção
existentes entre eles, penso que a incorporação por meio da “criação” de meninos e
meninas com algum parentesco anterior seja o único modo para o qual podemos afirmar
que as pessoas são de fato adotadas, uma vez que essa é também a forma exclusiva de se
fazer com que um órfão, tendo pertencido no passado a um outro grupo de filiação, seja
incorporado de fato ao clã daqueles que o adotaram239. Alguns autores que pensaram
sobre o tema da adoção ameríndia contribuem para que nos aprofundemos nessa questão.

Ao analisar o caso txicão (ikpeng), Menget (1988: 64) sustenta que existem ali
dois tipos de adoção: um interno ao grupo e outro, externo, que resulta da captura de
inimigos. O primeiro tipo aconteceria nas ocasiões em que uma pessoa, tendo perdido sua
mãe, seria criada por seus parentes maternos (especialmente sua avó ou tia-avó), ou ainda
quando uma mulher considerada estéril adotaria uma criança do irmão ou irmã de seu
marido. Por sua vez, a adoção externa se daria quando uma criança capturada durante
uma incursão guerreira era trazida para a aldeia e, após receber um nome de seu captor,
era adotada por outro grupo familiar cujo homem principal se tornaria, em relação à
pessoa adotada, seu pai ou mestre. A incorporação da criança nesse novo núcleo
aconteceria de forma gradual, de modo que aquele menino ou menina, inicialmente
estranho(a), se transformaria em um parente com um estatuto particular dentro do grupo.
Só então, passado certo tempo, viriam a se tornar familiares ordinários. Após sua
completa inclusão nas relações de parentesco de seus captores, o antigo cativo passaria a
ser um doador privilegiado de nomes, fato pelo qual Menget sustenta que a adoção
“externa” é a mais importante no mundo txicão, sendo sua modalidade interna apenas
uma variação subordinada e inferior à primeira240.

Vimos que entre os Bora a adoção de pessoas anteriormente aparentadas parece


ser a forma privilegiada para que alguém se torne membro de um clã diferente daquele

239
Veremos que o que chamarei à frente de “adoção cerimonial” não pressupõe ou depende da convivência
das pessoas adotadas com a parentela de seu novo clã.
240
Nesse sentido, seria interessante estabelecer uma relação entre os dados de Menget e a tipologia proposta
por Viveiros de Castro (1986: 388) entre nomes “endonímicos” e “exonímicos” (e a maior importância dos
primeiros em relação aos segundos nas Terras Baixas).
215
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

em que nasceu. Se aceitamos, como indicam os Bora, que a “adoção” acontece apenas
quando há a criação de laços de parentesco consanguíneos entre adotados e adotantes (e
que, mais especificamente, ela manifesta-se pela inclusão dos primeiros nos clãs dos
segundos), em geral ela só será possível no caso dos processos “internos” apresentados
até aqui, quando já existem laços de parentesco prévios. Contudo, se essa parece ser a
única maneira pela qual os Bora pensam em termos de adoção, vimos que há outros
modos pelos quais órfãos podem ser incorporados e passar a viver em uma nova maloca,
como ocorre com os genros e cunhados que contrariam a regra de residência virilocal.

A análise de Halbmayer sobre a adoção entre os Yukpa em território venezuelano


dialoga com nosso caso. O autor sustenta, em primeiro lugar, que não há adoção capaz de
anular as relações de parentesco preexistentes. Dessa forma, os pais adotivos de uma
criança estabelecerão com ela uma relação que só se sustentará enquanto haja uma
manutenção constante da mesma por meio da alimentação. Logo, se os pais possuem
“direitos” sobre seus filhos adotivos, eles serão gradualmente suspensos se os primeiros
deixarem de alimentar os segundos. Essas adoções, entre os Yukpa, podem ser, segundo
o autor, de dois tipos:

The forms of adoption may be divided into two classes: a consanguinial,


filliative form of adoption by classificatory parents, elder siblings and
grandparents, and an affinal form of adoption of/by future in-laws and
spouses. (Halbmayer, 2004: 158)

O primeiro tipo de adoção, mais corriqueiro, é aquele no qual irmãos mais velhos
ou avós adotam crianças que, por alguma razão, foram privadas da convivência com seus
pais. Estando tais pessoas previamente relacionadas por laços de parentesco
consanguíneos, o autor não demonstra especial interesse por essa forma de adoção, sendo
fundamentalmente uma maneira de os casais mais velhos, já sem filhos por perto, fugirem
de um “unsocial state of existence” (:154)241. O segundo tipo, tratado com mais minúcia,
seria uma evidência de que as relações de adoção nem sempre passam pela
consanguinização da pessoa adotada. Halbmayer volta suas atenções, assim, para a
adoção enquanto artifício para a produção de parentes afins. Segundo o autor, é comum,
por exemplo, que um homem adote uma menina mais nova a fim de que ela, no futuro,
se torne sua própria esposa. Essa garota pode ser uma irmã da mulher, uma filha da mulher

241
O mesmo tipo de afirmação é encontrar por Costa (2017: 133) entre os Kanamari e por Bonilla (2007:
343) entre os Paumari.
216
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

(de outra união) ou mesmo uma filha da irmã de sua esposa (WZD)242. Essa decalagem
geracional garantiria que a menina pudesse, pouco a pouco, se acostumar a seu futuro
marido. Para Halbmayer, a menos que exista uma relação consanguínea não-
classificatória anterior entre adotante e adotado, as relações de adoção sempre se
concentrarão na produção de afins:

Adoption among the Yukpa contradicts the common wisdom that


adoption and familiarization are process leading to consanguinization,
as adopted and familiarized persons generally remains or become – if
no prior relationship existed – affines. Only if a prior consanguinial
relationship existed it is maintained. (idem, ibidem: 161).

O aparente desencontro entre meus dados sobre os Bora e aqueles apresentados


por Halbmeyer para os Yukpa é, em alguma medida, uma questão de léxico. Se
retomarmos o trabalho de Menget e os compararmos com o de Halbmayer, veremos que
ambos coincidem no que diz respeito à existência de uma oposição entre adoção interna-
consanguínea e externa-afim. A primeira corresponderia àquela na qual os Bora, ao
adotarem crianças-órfãs com laços de parentesco anteriores, transformam-nas em suas
crias ou seus filhotes, mepiivyétso. A consanguinização desses meninos e meninas seria
tão necessariamente incompleta quanto aquela apresentada por Halbmayer ao argumentar
que o sucesso da adoção consanguínea entre os Yukpa depende da alimentação constante
dos filhos por seus pais243. Ainda, como bem observou o autor, a adoção não é capaz de
apagar o fato de que os filhos adotivos possuem ou possuíram pais “verdadeiros”. No
caso dos Bora, isso parece ser especialmente importante em razão da imbricação entre o
parentesco legítimo e as relações de descendência. Se entre os Kayapó “a Casa, onde um
órfão é criado, é chamada ‘o lugar onde cresceu’ (...), mas ele continua a ser identificado
com sua Casa de nascimento (Lea, 1986: 46)”, o mesmo acontece entre os órfãos Bora e
suas malocas de origem, único lugar onde serão devidamente tratados como filhos
legítimos.

No outro polo dessa oposição, relativo às adoções externas, tanto Menget quanto
Halbmayer enfatizam a importância da incorporação de novos membros (ora cativos, ora
afins) para os processos internos de reprodução social. Entre os Bora, ainda que tais

242
Observei prática parecida entre outro grupo carib, durante minha pesquisa de mestrado (Lucas, 2014).
No passado, era comum que os homens Hixkaryana adotassem filhas do primeiro casamento de suas
mulheres para, no futuro, tomá-las como segundas esposas. Poderíamos investigar, ainda, a relação entre
esse processo e aquele descrito por Garcia (2015) para os casamentos Awá-Guajá.
243
É evidente, aqui, a relação entre os filhos adotivos e os xerimbabos.
217
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

incorporações existam, elas não serão uma forma de adoção se seguirmos as traduções
propostas por meus interlocutores (uma vez que, para eles, adotar é o mesmo que filiar-
se a um novo clã patrilinear – e, nesse sentido, apenas um certo tipo de órfãos pode ser
adotado). Logo, a conjugação entre, de um lado, a importância das regras de filiação
patrilinear e, de outro, a assimetria existente entre o pessoal legítimo de uma maloca e os
órfãos, faz com que não seja possível dizer, no caso dos Bora, que pessoas sem relações
de parentesco suficientemente próximas com os membros do núcleo familiar que as
acolhe se tornem, de fato, seus filhos adotivos. Se o mesmo não ocorre entre os Yukpa
(afinal de contas a adoção “externa” dá-se entre parentes afins), insisto nesse ponto a fim
de salientar a decalagem de status existente entre, por exemplo, netos “criados” por seus
avós maternos e estrangeiros ou sobrinhos classificatórios incorporados a uma maloca244.

O que dizer, então, sobre pessoas jovens ou mesmo adultas que, vendo-se órfãs
em algum momento de sua vida, passam a viver em uma nova maloca? Penso que a
situação delas é tão distinta das crianças-órfãs adotadas por seus parentes consanguíneos
que é possível afirmar que, ao invés de adotadas, essas pessoas são vinculadas ou
incorporadas à maloca do chefe que as recebe. Porém, muito embora não sejam
alimentadas por quem as recebe, é por meio desse acolhimento que são, de alguma forma,
criadas – isto é, que passam ou voltam a existir socialmente. Os vínculos entre os que
chegam em uma maloca e aqueles que os acolhem podem ser, por sua vez, de dois tipos.

A primeira forma de uma pessoa vincular-se a uma maloca sem que ela seja
adotada por uma família é, assim como no caso yukpa, enquanto afim. Dessa forma,
excetuando-se o caso das mulheres casadas (que, tal como mencionado anteriormente, no
limite são sempre órfãs no mundo bora), vinculam-se à maloca de suas esposas aqueles
homens que contrariam o princípio virilocal e unem-se ao chefe ou pai de suas mulheres
na condição de seus genros ou cunhados. Como vimos, é comum que os genros possam
ser também sobrinhos classificatórios dos chefes. Contudo, a distância genealógica entre
eles geralmente é significativa, pois não raro os sobrinhos são filhos de primas distantes,
de segunda geração. Dessa forma, a consumação do matrimônio com suas filhas (ou
outras mulheres em G-1 de seu clã) será suficiente para que as relações de afinidade
estabelecidas entre eles englobem a distante consanguinidade anterior.

244
Uma discussão sobre a adoção de netos por seus avós maternos será apresentada no capítulo 5.
218
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

Serão incumbências desses genros e cunhados órfãos uma série de atividades


cotidianas coordenadas pelos chefes: abrir e limpar roças; caçar, pescar e coletar frutos;
realizar pequenos reparos na maloca e nas casas; coletar e processar lenha, coca, tabaco
e sal vegetal; e, por fim, torrar, pilar e peneirar a coca noite adentro, servindo mambe e
ambil a seu chefe, quem permanecerá todo o tempo em seu banco, coordenando os
trabalhos. Esses são exemplos de tarefas que esses homens, geralmente pertencentes a
linhagens menos prestigiosas ou influentes que as de suas mulheres, executarão dia após
dia.

Mesmo com essa espécie de serviço-da-noiva interminável, esse homem possuirá


direito de falar e opinar no mambeadero de seu sogro ou cunhado, estabelecendo ali uma
relação importante de comensalidade e compartilhamento de substâncias. Ele também
poderá construir sua própria casa ao redor da maloca de seu novo chefe e abrir uma roça
para sua família. A depender da distância entre a maloca de sua mulher e a sua própria e
da diferença de prestígio existente entre os clãs ou linhagens que as comandam, os filhos
desse homem poderão não ser filiados ao clã de seu pai, abrindo-se assim uma exceção à
regra e associando-os definitivamente ao clã materno. Logo, apesar de não serem
adotados pelo clã de seu chefe (algo que, de toda forma, não seria usual segundo as regras
de parentesco), esses homens se estabelecem, enquanto órfãos-afins, a meio caminho
entre os parentes (esp: nuestra família/nuestra gente – bora: meajkímu/meamunaá) e os
não-parentes (esp: otra gente – bora: chijtye munaá). Resta-nos, então, explorar o
segundo tipo de vínculo possível entre chefes e órfãos: aquele em que não se estabelecem
relações próximas nem de “afinidade real” (Viveiros de Castro, 2000) nem de
consanguinidade.

Órfãos que vivam na maloca de um chefe sem serem adotados por seu clã ou que
não contraiam matrimônio nesse assentamento raramente possuirão uma casa
independente como as demais famílias, vivendo então junto ao núcleo familiar do chefe.
Tampouco abrirão roças independentes ou terão suas próprias plantações de coca e
tabaco, trabalhando cotidianamente nos roçados alheios. É comum, ainda, que se ocupem,
nos mambeaderos, do processamento e da preparação do mambe e do ambil, falando
apenas nos momentos em que são impelidos a tal pelo chefe, mas permanecendo a maior
parte do tempo trabalhando em silêncio.

219
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

No passado, era provavelmente dessa forma que cativos de guerra que não eram
incorporados por seus captores por meio de relações de aliança se vinculavam a sua nova
maloca. Nos dias de hoje, abundam os casos de jovens que deixam suas malocas originais
e passam a trabalhar para famílias mais prestigiosas tanto ritual quanto economicamente
– dois fatores que geralmente andam juntos – nas comunidades bora no Igaraparaná e em
suas casas em La Chorrera. Com trajetórias de vida marcadas muitas vezes pela
itinerância, é provável que, na vida adulta, se fixem nessa ou em outra parentela ao se
casar com mulheres vindas de linhagens menores, equivalentes àquelas em que nasceram.
Mais do que empregados, esses órfãos formam, provisória ou permanentemente, parte do
pessoal do chefe, acompanhando-o em todas as ocasiões e estando sempre a seu serviço.
É muitíssimo frequente, ainda, que se refiram à mulher do chefe como sua “tia” ou
“prima”, uma vez que muitos são os casos em que eles se encontram no limite último do
parentesco, marcado pela relação entre tios e sobrinhos classificatórios ou primos de
segunda geração.

Essa inflexão matrilateral na relação entre esses órfãos e a família que os recebe,
porém, não deve ser confundida com laços de parentesco próximos, pois é muito comum,
ainda, que esses órfãos pertençam a outros povos do Caquetá-Putumayo (como os Murui-
Muina) ou que sejam considerados mestizos em razão da origem de seus pais. Assim, ao
mesmo tempo em que o parentesco distante entre órfão e mulher do chefe pode ser uma
das condições de possibilidade para a vinculação desses meninos ao núcleo familiar, seu
pertencimento étnico diferente faz com que não seja possível, como vimos há pouco, que
pensemos em termos de adoção. Ainda assim, é interessante perceber que, mesmo nesse
tipo de relação chefe-órfão (bastante menos marcado por relações de consanguinidade do
que aqueles que conhecemos anteriormente), é comum que haja um lastro de proximidade
entre eles. Isso será relevante quando, a seguir, abordarmos os gradientes de orfandade e
a impossibilidade de existência de uma relação “pura” de servidão ou controle.

Durante meu trabalho de campo conheci alguns desses meninos e meninas. Com
uns compartilhei a casa onde vivi e com outros passei algum tempo ao frequentar malocas
vizinhas ou casas em La Chorrera. Normalmente o trabalho que executavam não era
retribuído em dinheiro, pois, segundo seus chefes, ter um lugar onde dormir, compartilhar
o alimento com a família que o acolheu e ganhar, de vez em quando, roupas, produtos de
higiene e pilhas já era, em si, o próprio pagamento. Mesmo nos casos em que alguma

220
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

pequena quantia era dada ocasionalmente, os valores variavam de tempos em tempos. Do


ponto de vista desses “órfãos”, porém, nunca percebi que esse fosse um problema. Na
verdade, diziam-me que ali tinham até mesmo menos incumbências do que em suas casas,
onde havia muitas pessoas e poucos recursos financeiros para comprar comida
industrializada, combustível e roupas. Longe de suas famílias, interessavam-se ainda pela
possibilidade de frequentar malocas prestigiosas e grandes rituais, envolvendo-se em
paqueras e romances que, não raro, resultavam em casamentos.

Dada a amplitude das muitas relações possíveis entre chefes e órfãos, as


particularidades desse sistema nos fazem retomar à ideia, apresentada acima, de que
existiria ali uma dinâmica relacional cuja variação ocorre em razão de uma oscilação entre
proximidade e distância de parentesco.

4.4. Gradientes de orfandade

Figura 10 – Relações órfão-chefe segundo proximidade de parentesco

221
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

Na figura acima, represento graficamente o argumento segundo o qual quanto


mais próximo for o parentesco prévio entre chefe e órfão, maior será a relação de
alimentação (feeding ou “dar de comer”) e de proteção do primeiro em relação ao
segundo. No outro sentido, quanto menor a proximidade de parentesco anterior entre eles,
mais o relacionamento será marcado por servidão e controle. Sei que o uso desses últimos
conceitos é pouco comum para descrever relações no mundo ameríndio. Como espero
que já tenha ficado claro, o uso do termo “servidão” acompanha a tradução que meus
próprios interlocutores fazem para descrever relações desse tipo. Em relação ao segundo
termo, busco aqui expandir e refinar a própria definição de “controle”, pois é importante
ter em mente que seu uso não se refere a um controle do chefe em relação os órfãos que
orbitam a seu redor como se os últimos fossem coisas possuídas pelos primeiros. A essa
leitura fetichista da relação entre eles, oponho minha percepção de que chefe e órfão se
relacionam enquanto pessoas que, ao longo do tempo em que convivem no mesmo
espaço, estabelecem entre si uma relação na qual o primeiro gere ou organiza as ações
cotidianas do segundo. Mais do que uma forma de gerência opressora do chefe em relação
à vida dos órfãos, esse controle é, em si, o veículo por meio do qual a existência social
dos últimos é consolidada.

Assim, vimos que crianças que são adotadas por seus avós ou tios maternos são
filiadas aos clãs de seus pais adotivos e passam de forma definitiva a fazer parte da família
consanguínea de sua nova maloca. Contudo, entendemos também que não possuirão o
mesmo status que os filhos legítimos daquela maloca nem poderão apagar o lastro das
relações de parentesco com seu clã original, fazendo com que a adoção seja, no limite,
um processo sempre incompleto245. Por outro lado, vimos também que homens que
depois do casamento passam a viver nas malocas de suas esposas estabelecem com o
chefe da família de sua mulher uma relação que lembra aquela entre sogro e genro nas
Guianas (Rivière, 1984), em razão de um serviço-da-noiva que parece não ter fim246.
Entre os Bora, os serviços prestados por esse genro-órfão serão mais expressivos que a
alimentação ou a proteção a ele dispensadas pelos que o acolheram, de modo que sua
posição em relação aos demais homens da maloca será evidentemente diferente. Ainda

245
Voltaremos a esse ponto no próximo capítulo, quando alguns casos etnográficos serão abordados.
246
Entretanto, é importante salientar que enquanto o serviço-da-noiva do genro guianense finda com o
nascimento de suas próprias filhas (que lhe fornecerão, então, seus próprios genros), o mesmo não acontece
em relação aos órfãos vinculados a malocas estrangeiras.
222
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

assim, eles estarão mais próximos do pessoal daquela maloca do que os órfãos que não
estabeleceram ali nem mesmo relações de aliança.

Vimos que atualmente vários órfãos desse tipo, alguns deles vindos de outros
povos, ou bem possuem nas malocas às quais se vinculam relações bastante longínquas
(sobretudo com as mulheres dos chefes) ou bem não encontram ali nenhum laço prévio
de parentesco. Poderíamos indagar se a inexistência de relações com o clã principal
daquela maloca os colocaria numa posição de orfandade “pura” ou ideal: sem laços
anteriores suficientes fortes com o pessoal da maloca onde passara a viver, esses órfãos
estariam completamente sós e desprovidos de relações. Como veremos a seguir, esse
estado de ausência de relações é equivalente a uma posição indesejável de animalidade.
Dito de outro modo, no limite um órfão “puro”, ao encontrar-se desprovido de parentesco,
localiza-se fora do espectro das relações entre humanos - o que, por si, já o colocaria
numa complicada posição. Antes disso, porém, entenderemos que o próprio fato de
permanecer diariamente em uma maloca compartilhando alimento, mambe e ambil faz
com que a ausência de uma relação entre chefes e órfãos seja algo inexequível. Nesse
sentido, se não existe uma situação possível de privação completa de relações e, portanto,
de orfandade plena, não há tampouco a possibilidade de que, observando a figura acima,
alcance-se uma situação “pura” de servidão e controle de um chefe em relação a seus
órfãos.

Diante desse cenário, aqueles que mais parecem ter se aproximado da posição de
órfãos sem relações de parentesco foram os cativos de guerra do passado. Se os chefes de
antigamente chegaram a comercializar filhos caçulas, sobrinhos classificatórios e outras
pessoas de seu próprio núcleo familiar que poderiam ser enquadradas, de alguma maneira,
na categoria de órfãs (ver cap. 1), o tratamento dado a esses últimos era sem dúvida
distinto daquele direcionado aos antigos cativos de guerra. Um abuelo Bora, durante uma
entrevista, me contou que esses cativos, a quem ele chamava simplesmente de “órfãos”,
eram amarrados pelos pés com correntes de ferro fornecidas pelos antigos comerciantes
de escravos com quem seu bisavô, Mañaho, fazia negócios. Disse-me ainda que tais

223
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

cativos eram, no passado, servos dos chefes das malocas e deviam ser constantemente
vigiados a fim de que não fugissem de seus donos247.

Vale notar que a noção de servo (esp: siervo – bora: iicyuwaabe) aparece de forma
frequente nas narrativas míticas ou origenes. Garça Branca (esp: garza blanca – bora:
íhchuba), importante personagem que conhecemos no capítulo 1 e que será explorado
mais amiúde nos capítulos 6 e 7, é comumente descrito como um poderoso chefe de
maloca que, sentado em seu mambeadero, tem à sua disposição uma série de servos que
o auxiliam diariamente. Combinando benevolência e austeridade, Garça Branca é capaz
de administrar seu pessoal e, principalmente, seus órfãos. Karadimas abordou o tema
chamando atenção ainda para o fato de que uma das características centrais das pessoas
classificadas como servos entre os Miraña é a ausência de nomes de linhagem:

Les ‘serviteurs’ étaient principalement astreints aux tâches


domestiques. Certains informateurs mirañas ne font pas la distinction
entre ‘orphelins’ et ‘serviteurs’ qui sont pour eux les mêmes gens. Pour
d’autres, les serviteurs n’avaient aucune possibilité de se marier à
l’intérieur de la maloca puisqu’ils étaient parfois capturés en couple,
mais surtout, les ‘serviteurs’ ne possédaient aucun nom de lignage
appartenant à un clan. (Karadimas, 1997: 142)

Junto aos demais membros do pessoal de um chefe, os servos formariam parte


daquilo que os Miraña denominavam como suas “crianças trabalhadoras” (dòkáráhkò
tsúmè). Se é fato que pessoas categorizadas como “servos” não são hoje encontradas nas
malocas do Igaraparaná, não é possível afirmar que tenham, enquanto conceito,
desaparecido do mundo bora. Lembro-me, por exemplo, de em algumas ocasiões assistir
a mulher de um chefe reprimindo a suposta leniência com que ele conduzia seu cargo.
Ela sempre dizia que caso tivesse nascido chefe, teria ela mesma uma porção de órfãos a
seu redor para lhe servir o tempo todo... Assim, esses órfãos-ideais, a serviço do chefe e
sem nenhuma relação de parentesco com ele, estão presentes não somente nas narrativas
míticas, mas também na ideia de que um chefe aumentará seu prestígio caso consiga
manter muitas pessoas não aparentadas trabalhando em sua maloca. Em alguma medida,
os órfãos-ideais representam a quimera inatingível da recusa da troca: sem nomes de
linhagens ou cônjuges nas malocas que os acolhem, serviriam a seus donos sem nada

247
Segundo meus interlocutores, os Bora faziam guerra principalmente com os Ocaina e os Murui-Muina,
muito embora também entrassem ocasionalmente em conflito com outros povos, como os Miraña e os
Carijona (vindos da região do rio Caquetá, no limite nordeste do território Bora atual).
224
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

exigir de volta.

Toda essa discussão lembra bastante aquela apresentada por Marques Pereira. O
autor, notando certa insuficiência de dados acerca do parentesco guarani, investe em uma
análise sobre os filhos adotivos entre os Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Assim como no
caso bora, essas crianças são chamadas de che ra’y amongaku’a, ou “aquele que estou
fazendo crescer”248 (Marques Pereira, 2002: 169), em uma clara referência ao processo
de “criação” envolvido na relação entre filhos e pais adotivos. São, ainda, guachos, termo
em espanhol que designa os filhos adotivos:

Entre os Guarani, o termo constitui um equivalente social da relação de


filiação, estabelecendo relações fictícias de parentesco entre uma
criança e seus pais adotivos. É aplicado (...) à criança que por algum
motivo não reside com os pais, e foi adotada em outro fogo familiar.
(Marques Pereira, idem: 173)

Em que pesem as diferenças entre as regras de filiação e o lugar da chefia para os


Guarani Kaiowá e para os Bora, podemos afirmar que os guachos se encontram em
posição equivalente àquela dos órfãos tal como a apresentei até aqui. Assim como ocorre
entre os órfãos bora, não se nasce guacho: esta é uma condição desenvolvida em razão de
intempéries da vida como a morte dos pais, o abandono dos parentes, a migração de um
assentamento, etc. Trata-se, em suma, de uma posição que é instituída e cujo sentido
depende de sua inserção em determinada rede de parentesco.

Ademais, tal como entre os Bora, os guachos guarani desempenham um papel


importante no que diz respeito às tarefas que executam cotidianamente junto à sua família
adotiva. O fato de que frequentemente são encarregados de um volume de trabalho
evidentemente superior àquele sob responsabilidade dos filhos legítimos e a diferença
existente no tratamento de ambos faz com que Marques Pereira chegue a afirmar que a
incorporação dos guachos à sua nova parentela é um processo de “consanguinização
ideológica”. Sem entrar no mérito de sua interpretação, que demandaria uma discussão
mais aprofundada sobre as definições de consanguinidade e afinidade para a antropologia
do parentesco e para os próprios Guarani, interessa-me o fato de que, nessa relação entre
pais adotivos e órfãos adotados, Marques Pereira admite a existência de um espectro que
varia conforme a proximidade prévia existente entre eles. Assim, o autor afirma que:

O status assumido pelo guacho varia, dependendo do grau de distância

248
Ou ainda, che ra’y ra’anga: aquele que é “a imagem ou a imitação de meu filho” (idem, ibidem).
225
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

relativa com o grupo que o adotou. (...) A autoridade da parentela sobre


o guacho segue padrões tacitamente estabelecidos, sendo construída
com base nos comportamentos sociais e atitudes que afirmam um
determinado tipo de vinculação do indivíduo ao grupo e instituem sua
posição social (idem, ibidem: 174).

Para ilustrar essa ideia, ele evoca um exemplo etnográfico no qual um casal
contava, em sua casa, com duas guachas. A parentela desse casal reunia, no momento de
sua pesquisa, os cargos de “capitão” da comunidade e de representante da FUNAI,
tornando-se assim uma família de prestígio em relação às demais. Uma das meninas era
a neta de onze anos do casal, filha de um de seus filhos que vivia distante e adotada
segundo decisão de sua avó que, com mais de sessenta anos, afirmava precisar de alguém
que lhe ajudasse nos afazeres domésticos. A neta, mesmo trabalhando bastante para sua
avó, possuía tempo livre e a acompanhava em viagens à cidade para reuniões políticas e
compras. A outra menina que ali vivia, contudo, recebia tratamento bastante distinto.
Considerada “guacha pura”, a garota de seis anos trabalhava todo o dia para o casal, não
possuindo tempo livre nem os acompanhando em suas viagens. A mãe fora abandonada
por seu pai e, ao casar-se novamente, resolveu doar a filha a seus parentes paternos.
Contudo, estes não se dispuseram a adotá-la:

Quando a criança desligada dos pais tem a sorte de ser assumida pela
avó, tem boas chances de ser bem tratada. (...) A segunda preferência é
normalmente dada às tias, situação em que recebem tratamento um
pouco mais rigoroso, pois sempre haverá a distinção entre os filhos e os
“sobrinhos” guachos. Na impossibilidade de se efetivarem os tipos de
adoção anteriores, a criança é entregue a outros parentes mais distantes
e, em último caso, a não-parentes, situação em que muito
provavelmente enfrentará sérias dificuldades (...). (idem, ibidem: 177).

A adoção de crianças-órfãs entre os Bora, como vimos, parece passar mais pela
atuação da figura masculina dos chefes do que no caso Guarani Kaiowá, no qual as
mulheres são mais ativas no processo de adoção. Nos dois cenários, porém, relações do
tipo avós-netos e tias-sobrinhos parecem ser centrais para os casos em que essas crianças
são adotadas por parentes próximos. Argumentei, seguindo a percepção de meus
interlocutores, que a incorporação de novos membros a uma maloca onde os órfãos não
possuam nenhum laço de parentesco próximo não deveria ser tida como uma adoção de
fato. Ainda assim, é possível observar que, em ambos os casos, são bastante similares os
processo de incorporação desses novos membros (guachos puros entre os Kaiowá e,
especialmente no passado, servos para os Bora) e as relações de assimetria estabelecidas
entre esses e os núcleos que os acolhem.

226
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

Marques Pereira argumenta, ainda, que a existência social da pessoa kaiowá


depende de sua participação em uma parentela. Assim, o “guacho puro”, ao mesmo tempo
em que estaria constantemente na eminência de se “soltar” em definitivo do grupo
adotante dados os frágeis laços que os unem, seria também, por conta de sua posição,
uma pessoa no limiar da não-existência:

É uma pessoa que não dispõe de lastro, de localização prévia dentro da


estrutura social, de onde possa atuar; seu lugar é no limite a não-
existência, na margem do universo humano; sua existência social deve
ser inteiramente construída baseada nos laços que conseguir
estabelecer, por sua própria conta, dentro de possibilidades bastante
limitadas. (idem, ibidem: 185)

Entre os Bora, conheci alguns garotos que sem muita dificuldade poderiam ser
acomodados na categoria proposta por Marques Pereira de “guachos puros”. Esses órfãos
vinham na grande maioria das vezes de famílias não prestigiosas, sem grandes recursos
econômicos, malocas ou posições importantes dentro da política interna local. Eles se
estabeleciam, errantemente, em malocas de prestígio da região onde possuíam laços de
parentesco bastante distantes com pessoas que compunham o pessoal do chefe. Além
disso, eram conhecidos pela jocosidade e pela maneira maliciosa e inadequada com que
se comportavam.

Certa vez, ao chegar ao Igaraparaná com um projetor e um HD repleto de filmes,


tive a ideia de mostrar aos Bora o longa-metragem Macunaíma, escrito e dirigido por
Joaquim Pedro de Andrade em 1969. O filme em questão é uma adaptação do romance
homônimo de Mario de Andrade (1928) e conta a história desse “herói sem nenhum
caráter”. Depois da primeira projeção, os Bora me pediram que eu exibisse esse filme
diversas outras vezes e sempre o assistiram com o mesmo entusiasmo inicial. Divertiam-
se principalmente com as transgressões de Macunaíma: incestuoso e errante, o
personagem apresentava, para eles, um comportamento repreensível moral e
sexualmente. Com o tempo, passaram a chamar um dos órfãos que viviam em suas
malocas de Macunaíma, aproveitando-se sempre para zombar da semelhança que existia
no comportamento dos dois. Em outras ocasiões, me disseram que eu não deveria prestar
muita atenção ao que esses órfãos me diziam e que tampouco era interessante para meu
trabalho conversar seriamente com eles já que “não são pessoas, são animais”.

Talvez a primeira reação que venha à cabeça de um não-Bora ao ouvir essas


palavras seja a perplexidade. Dizer que uma pessoa é um animal, ao menos em contextos
227
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

urbanos, geralmente é fazer referência à sua bestialidade, brutalidade e instintividade. Em


geral, nosso senso comum julga que a grande separação entre homens e animais reside na
capacidade exclusiva que temos de pensar racionalmente, de modo que linguagem, o
raciocínio lógico e certas habilidades motoras seriam as maiores evidências de nossa
superioridade. Na introdução da Parte II desse trabalho, forneci alguns elementos para
entendermos que os Povos do Centro não pensam essa distinção da mesma forma. Vimos,
ali, que é justamente por serem capazes de agir tal como os humanos que os animais
possuem formas de vida agressivas e quentes, sendo os principais causadores de doenças
e conflitos entre os humanos.

Assim, quando alguns interlocutores me disseram para não dar muita atenção a
certos órfãos porque eles eram “como animais”, eles me comunicavam na verdade que
essas pessoas não possuíam certos atributos valorizados e característicos de um
comportamento frio – a saber, a calma, o comedimento e a não-violência. É preciso
lembrar que um órfão que é tido como um “animal” em uma maloca distante da sua, ao
retornar para os seus, será tratado como um humano pleno, com laços de parentesco
estáveis, bem consolidados e incontestáveis. Dessa forma, tal como as pessoas são órfãs
apenas circunstancialmente, eles serão tanto mais “como animais” quanto maior for a
distância genealógica e espacial que experimentam de seu local de origem e sua
incapacidade que apresentam de consolidar, nas malocas que os receberam, novas
relações de aliança. Essa parece ser uma diferença importante em relação a um estudo
recente sobre as relações de assimetria e servidão na América do Sul.

Jabin, em sua tese de doutorado, afirma que entre os Yuqui, povo de língua tupi-
guarani na Amazônia boliviana, tornar-se órfão é uma desventura: “Devenir orphelin est
une disgrâce, un objet de raillerie, une cicatrice qui empêche tout individu de se construire
politiquement et empêche l’accès au pouvoir” (Jabin, 2016: 388). Todavia, ainda que
alguns órfãos possam vir a ocupar posições servis dentro da rede de relações yuqui, a
maioria delas era preenchida, no passado, pelos “escravos”249.

Os escravos yuqui encontravam-se em uma relação de posse face a seu dono ou

249
O autor afirma que não há, por parte dos indígenas, nenhum tipo de reserva em relação à tradução do
termo para o espanhol (esclavos). Tal qual já notamos, o mesmo não é válido para os Bora, que utilizarão,
no máximo, a palavra “servo” (siervo) para se referir às posições de subordinação extrema existentes no
passado.
228
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

mestre que não era adquirida (como no caso dos órfãos Bora), mas herdada
patrilateralmente. Entre os Yuqui, enquanto chefes ou pessoas não-escravas podiam
contrair matrimônio livremente, os escravos não possuíam a mesma prerrogativa, pois
eles nunca podiam casar-se entre si. Dessa maneira, filhos(as) de homens escravos (cujas
mães eram sempre não-escravas), herdavam do pai o status servil. Por outro lado,
filhos(as) de mulheres escravas (cujos pai eram sempre não-escravos) interrompiam o
ciclo de subserviência ao herdarem patrilateralmente o status de não-escravidão.

Desta forma, Jabin, apoiado no trabalho de Halbmayer supracitado, argumenta


que a adoção dos escravos, entre os Yuqui, dava-se pela via da aliança, contrariando a
acepção mais corriqueira de que a adoção necessariamente ocorre pelo caminho da
consanguinidade. Assim, existiam escravos homens e mulheres, mas a relação de
pertencimento era sempre de tipo same-sex (escravas-donas, escravos-donos) e, portanto,
os escravos eram, em relação a seus mestres, parentes afins – sendo mesmo comum no
passado que, diante do falecimento de seu chefe, o escravo também fosse morto e
sepultado junto a seu mestre.

Notamos assim que os escravos yuqui não eram como a maioria dos órfãos bora
que, encontrando-se contingencialmente na situação de “empobrecimento” típica da
orfandade, são, se possível, incorporados à parentela de um de seus familiares
consanguíneos. Há, contudo, pelo menos dois pontos de aproximação notáveis. O
primeiro deles é que um escravo yuqui, ao se referir a seu dono, poderia chamá-lo
simplesmente de chefe ou sogro (uma vez que, sendo escravo, o pai de sua mulher seria
invariavelmente um não-escravo), mas era corriqueiro que ele usasse o termo ẽ-bakwa-ja
ou “aquele que causa o crescimento” (:418), cuja semelhança com o vocábulo utilizado
entre os Bora para os filhos adotivos é notável (ver supra). Em segundo lugar, os escravos
yuqui se aproximariam dos servos bora do passado, em especial aqueles que eram
incorporados à maloca enquanto cativos estrangeiros. Se a hereditariedade não é um
elemento compartilhado pelos servos bora com os escravos yuqui, o caráter servil da
relação com seus mestres e a relação de afinidade entre eles – cujo caso bora parece ser
uma variação “potencial” ou “virtual” (já que o casamento sempre era uma opção latente)

229
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

do que nos yuqui era necessariamente “real” 250 – são pontos de tangenciamento entre os
dois cenários etnográficos.

Outros trabalhos sobre o tema serão mencionados no decorrer da exposição dos


dados nos próximos capítulos e alguns aparecerão na Conclusão. Fato é que enquanto as
relações assimétricas e dinâmicas de controle e proteção (Fausto, 2008: 33) operantes
entre um dono-chefe-pai e seus variados tipos de “filhos” vem sendo minimamente
descritas para os campos do xamanismo (presa/espírito familiar) e da guerra e da
antropofagia (matador/vítima), o domínio do parentesco humano (afim/consanguíneo)251
carece, ainda, de investimentos etnográficos mais intensos, sobretudo quando pensamos
em relações que não envolvem necessariamente parentes legítimos ou processos de
adoção e fosterage. A análise dessa dinâmica tal como proponho aqui parece confirmar
que o processo de “predação familiarizante”, isto é, da passagem de uma situação de
afinidade simétrica para outra de consanguinidade assimétrica, configura-se, para o caso
bora, muito mais como um espectro do que como uma oposição: se nem sempre o ponto
de partida da vinculação de órfãos em uma maloca é uma situação de afinidade pura (ou,
se quisermos, de inexistência de relações prévias de parentesco), seu lugar de chegada
tampouco será de consolidação absoluta da consanguinidade. Entre os Bora, penso que a
centralidade da assimetria na relação entre chefes e órfãos engloba as relações de
afinidade e consanguinidade - cuja variação funciona como um termômetro, na prática
não tão preciso, da intensidade da assimetria que existirá entre eles.

Dessa maneira, recuperando a figura apresentada acima, entendemos que os


órfãos adotados, ao não serem capazes de equiparar-se aos filhos legítimos, gozarão
sempre de uma consanguinização cuja natureza, mesmo que sejam protegidos e nutridos
por seus pais adotivos, é necessariamente incompleta. No outro extremo, a relação de
não-parentesco dos cativos ou inimigos de guerra é enfraquecida pela vinculação (pela
aliança ou não) dos mesmos à maloca de seus novos chefes, onde compartilharão comida
e residência, fazendo assim com que a condição de servidão e controle total seja, no
limite, igualmente inatingível.

250
Tomo aqui de empréstimo o vocabulário proposto por Viveiros de Castro (1993), mesmo que o autor se
concentre, na elaboração desses termos, na análise de terminologias de inclinação dravidiana da América
do Sul.
251
Fausto (1999, 2001).
230
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

É importante lembrar que essas não são relações que remontam a um passado
longínquo. Os órfãos, enquanto posição central, não desapareceram no fim do século XIX
com a interrupção das atividades do comércio escravagista (ver cap. 1). Sua presença, que
pode ser constatada de forma saliente nos dias de hoje, evidencia que mais que um
processo histórico localizado no tempo, a existência dos órfãos e sua oposição
complementar em relação aos chefes é parte constituinte do mundo bora, de modo que
Karadimas chegou mesmo a argumentar que existe ou existiu, para os Bora-Miranha, um
sistema de escravidão endógeno.

Como já foi mencionado nesse trabalho, evito o uso do termo “escravidão” para
definir os processos internos operantes entre os Povos do Centro, e isso por algumas
razões. A primeira delas, mais evidente, é a não utilização do termo em espanhol pelos
próprios indígenas, que usualmente falam sobre órfãos ou, no máximo, servos - de modo
que estou certa de que os Bora não reconheceriam como legítima uma tradução que
equiparasse os órfãos a escravos, mesmo se pensássemos naqueles sem relações prévias
com seus chefes. A segunda razão de evitação reside no fato de que há uma literatura
muito volumosa (na antropologia, mas não só) sobre escravidão em diferentes partes do
mundo e para distintos períodos de tempo. Não sendo especialista na área, não tenho a
intenção de que esse seja uma tese sobre de que forma a escravidão pode ou não se
apresentar entre os Povos do Centro.

Mesmo que eu optasse por fazer um uso analítico do conceito, ao não desejar nem
ser capaz de aprofundar-me numa definição suficientemente clara sobre a escravidão,
partiríamos inevitavelmente da concepção mais corriqueira de que a noção de escravidão
envolve uma relação intensa de propriedade de um dono, chefe ou mestre em relação a
seu escravo. Desse modo, aquele que possui um escravo teria o poder, dentre outras
coisas, de controlar os rumos das ações de seus subordinados, deliberando não apenas
sobre sua vida prática, mas também (e principalmente) sobre sua força de trabalho. A essa
altura, espero que já tenha ficado claro que essa seria uma maneira muito simplista de ler
a relação entre um chefe e seus órfãos.

Dessa forma, quando afirmei há pouco que quanto mais distantes as relações
prévias entre chefes e órfãos maior o “controle” do primeiro em relação ao segundo,
reitero que não considero com isso que um chefe controle os órfãos como coisas
possuídas. Na verdade, quanto mais distantes forem os laços prévios com seu chefe, maior
231
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

será latente a possibilidade de que o órfão, sendo cativo de guerra fugidio ou trabalhador
incorporado à maloca que o acolheu, afaste-se daquele assentamento. Por isso mesmo,
maior também será o ímpeto do chefe de controlar, isto é, gerir ou organizar as atitudes
de seu órfão a fim de que ele não o abandone. Uma relação desse tipo não pode prescindir
da ideia de que uma pessoa, sendo a única protagonista de seu próprio destino, tem os
direitos sobre suas escolhas – algo, por sua vez, contrário à ideia da usurpação do destino
de um escravo252. Dadas as antigas práticas funerárias do sistema servil yuqui, nas quais
os escravos morriam junto a seus donos, é possível que tal raciocínio encontre razão de
ser nessa população. Contudo, certamente tal lógica não se aplica aos Bora. Vimos há
pouco que os órfãos carregam consigo, ainda que de forma subentendida, uma clara
condição de não-humanidade. É dizer, uma pessoa, vendo-se na condição de órfã,
dependerá de sua relação com um dono ou chefe para garantir sua própria existência
social. Mais que isso: a desejará, sob pena de tornar-se, aos olhos dos outros, um não-
humano.

Poderíamos supor ainda que o desejo que um órfão possui de vincular-se a um


chefe é uma espécie de “servidão voluntária”, tal como o conceito foi desenvolvido por
La Boétie (2002 [1536]) e recuperado, séculos mais tarde, por Pierre Clastres (2004). La
Boétie, no Discours de la servitude volontaire, dedica-se a compreender não apenas como
surge o “mau-encontro” ou a divisão dentro de sociedades anteriormente igualitárias, mas
também “como os homens perseveram em seu ser desnaturado, como a desigualdade se
reproduz constantemente, como o infortúnio se perpetua a ponto de parecer eterno”
(Clastres, 2004: 112). Em outras palavras, a partir de uma análise da vida francesa no
século XVI, o autor anseia desvendar porque as pessoas continuam obedecendo a seus
tiranos quando poderiam não o fazer caso assim desejassem. A resposta de La Boétie a
essa indagação é direta: serve-se porque, no fundo, há a vontade de dominar. Dessa
maneira, os servos contentam-se com o mal que sofrem para também possuirem o aval
de exercê-lo sob aqueles que se encontram numa posição inferior. Esse tipo de
“perversidade” social seria, para o autor, a própria raiz da escravidão.

Não acredito, contudo, que esse seja o caso dos órfãos bora. É possível que já
esteja claro, nesse ponto da discussão, que os Bora não se encaixam facilmente no

252
Inspiro-me aqui na crítica de Strathern (1988) à antropologia marxista e à pressuposição de que há uma
relação natural e universal entre o indivíduo e sua força de trabalho.
232
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

igualitarismo que domina parte das descrições etnográficas dos sistemas políticos
amazônicos, de modo que um órfão imaginar-se ou desejar estar numa posição de chefia
em uma maloca distinta daquela em que nasceu é algo não apenas improvável, mas
inexequível. Mesmo assim, considero que seja descuidada a simples interpretação de que,
a partir das assimetrias internas expressas no funcionamento dos clãs, das linhagens e das
posições de chefes e órfãos, seja possível inferir que os Bora formam uma sociedade
dividida entre oprimidos e opressores – ou mesmo que os “servos” sejam, na verdade,
“escravos”. Para escapar a uma interpretação desse tipo, é necessário ter sempre em mente
que o infortúnio da orfandade, ao atingir uma pessoa, coloca em risco sua própria
condição enquanto humano. Aos olhos dos demais, fora de uma relação de pertencimento
a um chefe e a uma maloca – e logo, carente de relações de parentesco, solto e sem
vínculos – um órfão é, no limite, um animal. Tanto melhor será se esse órfão conseguir
ser adotado por alguns de seus parentes consanguíneos, como seu avô ou tio materno.
Porém, sendo impossível o estabelecimento dessa relação, a incorporação a uma maloca
estrangeira, mesmo que sob uma assimetria radical em relação a seu chefe, garante sua
existência social na medida em que outras pessoas o verão como humano. Logo, ao
dizermos simplesmente que há um sistema de “escravidão endógena” operante na região,
corremos o risco de obliterar uma importante discussão sobre o estatuto e a constituição
da pessoa no Caquetá-Putumayo. Feito o adendo, voltemos a Karadimas.

Este autor defende que os comerciantes de escravos que transitavam pelo Caquetá-
Putumayo e alhures, salvaguardados pela legalidade dos “resgates” coloniais, inseriram
um sistema de escravidão na região que, tendo sido imposto de fora para dentro, poderia
ser denominado como “escravidão exógena”. O autor opõe tal sistema àquele concernente
às relações entre chefe e órfão (“escravidão endógena”):

Il s’agirait de révéler l’existence d’un esclavage endogène indépendant


des pratiques esclavagistes qui se sont développées lors de la période
historique, que l’on pourrait qualifier, en opposition avec le premier
type, d’un esclavage exogène. (Karadimas, 2000a : 84).

Se não me sinto confortável, para o caso Bora, em utilizar o termo “escravidão”


para a descrição das relações entre chefe e órfão, estou de acordo com a constatação de
Karadimas de que a chegada da empresa escravagista na região foi responsável por
colocar em relação direta dois tipos distintos de assimetria. O equívoco que transpassava
as partes envolvidas – vide a reação de espanto dos viajantes com o fato de que os

233
Capítulo 4 – Sobre chefes e órfãos

indígenas eram capazes de vender seus próprios familiares – parece ser do mesmo tipo
daquele que existiu quando os padres capuchinhos, ao chegarem na região, acharam por
bem recolher jovens e crianças e educá-los, todos juntos, em orfanatórios (ver cap. 2) -
algo que, por si só, expressa o profundo desencontro entre clérigos e índios a respeito do
significado e da posição ocupada pelos “órfãos”.

Em meio a tantos equívocos, porém, não resta dúvida de que a chegada dos
caucheiros peruanos e a atuação da Casa Arana na região mudou drasticamente a história
recente dos Bora e dos demais Povos do Centro como nenhum outro evento foi capaz. À
parte de toda a violência e o terror já denunciados e discutidos em inúmeros trabalhos, a
exposição acima sobre a importância das posições de chefe e de órfão nos permite
enfrentar uma questão que, embora não muito presente nas obras sobre a região, é
constantemente discutida nos mambeaderos: em um mundo no qual os órfãos são a
parcela menos prestigiosa, mas cuja presença é fundamental para a existência da
notoriedade dos chefes (e, consequentemente, da perpetuação das malocas), como lidar
com o fato de que, após a hecatombe caucheira, esse mesmo mundo se viu completamente
carente de chefes e repleto de órfãos? Mais do que isso, como é possível, a partir de
fragmentos, reestabelecer a organização interna? Nesse processo, lança-se mão de quais
mecanismos? O que muda e o que permanece?

Se não há uma única resposta a essas perguntas, creio que algumas delas podem
ser esboçadas a partir da apresentação dos dados recolhidos em campo. Veremos, no
próximo capítulo, como e por quais caminhos os Bora enfrentaram a proliferação
descontrolada de órfãos e, desde esse cenário, foram capazes de fabricar novos chefes.

234
Capítulo 5
Algumas formas de amanhecer

Nesse capítulo apresentarei de forma mais detalhada alguns elementos da


“reorganização social” dos Bora no século XX, interpretando-a como a principal maneira
por meio da qual lograram Amanhecer. Primeiramente, retomarei de modo breve o
cenário do pós-caucho; em seguida, abordarei diversos rearranjos operados nos clãs bora
para, no final, apresentar dados sobre casamentos e adoções atuais que recuperarão a
discussão do capítulo anterior sobre preferências matrimoniais e a importância dos órfãos.
Adianto que alguns pontos da exposição, especialmente aqueles abordados nos tópicos
5.2 e 5.3, só ficarão suficientemente claros nos dois capítulos posteriores, quando
aprofundarei a discussão sobre a vida ritual.

5.1. Kumimarima, o grande abuelo

Após o final da atuação da Casa Arana na região (ver cap. 1), as formas de
exploração dos indígenas no Caquetá-Putumayo sofreram algumas mudanças. Entre 1924
e 1931, os irmãos Carlos e Miguel Loayza, antigos capatazes da Casa Arana,
empenharam-se em deslocar o maior número possível de pessoas das sessões caucheiras
do Caquetá-Putumayo para acampamentos na margem direita do rio Putumayo e para um
de seus afluentes, o rio Algodón, localizado um pouco mais a montante da foz do
Igaraparaná. Estabeleceram ali plantações de café, currais para criação de gado, dentre
outras atividades agropecuárias. Estima-se que, nesse processo, quase 7 mil indígenas
sobreviventes da atuação da Casa Arana foram transladados à força para essa área, cujas
comunidades atuais tive a oportunidade de conhecer rapidamente em 2015253. É o que
confirma Razon a partir de suas pesquisas entre os Bora no Peru:

Au cours d’une longue période qui dura sept ans (de 1924 à fin 1930),
Carlos Loayza dirigea l’exode forcé des populations Bora, Huitoto,
Andoke, Ocaina (…). Plus de 6000 personnes furent déplacées « groupe
après groupe, sections par section », depuis le Caquetá, l’Igaraparana,
le Caraparana, jusqu’à la rive droite du Putumayo qui, selon Loayza,

253
Atualmente as comunidades do baixo Putumayo peruano são em sua maioria multiétnicas, sendo
predominante a presença de famílias Uitoto, Bora, Yagua e Quechua. Existem ainda diversos mestizos e
israelitas (fiéis da seita messiânica que se faz presente em toda a região da Alta Amazônia (Chaumeil,
1997; Granados, 1986). Dedicam-se à pesca e à agricultura, bem como à venda de peixes ornamentais
(sobretudo aruanã, Osteoglossum bicirrhosum – esp.: arahuana).

235
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

était « desolada y muerta por falta absoluta de población, pues las pocas
familias que vivían en el campuyano no eran tomadas en cuenta ». Lui-
même estimait à 6719 le nombre de personnes déplacées. (Razon,
1984 : 204 – 205).
Em 1932, contudo, o clima de tensão instala-se em toda a região em razão do
acirramento dos conflitos de disputa fronteiriça e o começo do que mais tarde veio a ser
conhecido na literatura como o conflito ou guerra colombo-peruana. A chegada desse
conflito ao rio Algodón em meados de 1933 e a eminente derrota peruana fizeram com
que os irmãos Loayza transladassem uma vez mais os indígenas. Desta vez, os Povos do
Centro foram levados à região do munícipio peruano de Pebas, no atual estado (esp:
departamento) de Loreto – mais especificamente, às margens do rio Ampiyacu, hoje
ocupado pelos descendentes daqueles que, década atrás, chegaram ali contra sua vontade.

Alguns Bora resistiram a esses deslocamentos forçados escondendo-se na mata


densa quando dos embarques organizados pelos irmãos Loayza, normalmente realizados
nos antigos portos de escoamento do caucho. Em meu trabalho de campo, ouvi diversas
narrativas sobre o doloroso processo de despedida do território, algumas vezes marcado
pela realização de rituais que se alongavam até a manhã da partida e durante os quais
determinadas famílias aproveitavam a escuridão e a aglomeração para fugir e esconder-
se na mata. Foi assim que apenas um número reduzido de pessoas foi capaz de escapar às
ações dos Loayza e reconstruir pequenas malocas em áreas apartadas dos grandes rios.
Algumas outras, em pequeno número, mesmo tendo sido levadas ao Putumayo, ao
Algodón e ao Ampiyacu, conseguiram posteriormente regressar ao Igaraparaná. É o que
nos conta o finado Raúl Teteye, antigo tradutor de Mireille Guyot que conheci em 2015
e quem, por incentivo da antropóloga, registrou em um caderno o que sabia sobre essa
época a partir da narrativa de sua avó, Isabel:

(…) mi abuela, su padre y su marido (…) vivian trabajando


continuamente hasta (creo yo) el año de 1929 o 1930, tiempo en que
recogían toda la gente para llevar al Perú. Mi abuela y su familia no
obedecieron esas cosas y quedaron en sus casas hasta que un hombre
los vino a buscar como prisioneros y los condujo a Santa Julia (otra de
las casas Arana sobre el río Igaraparaná) donde vivió un hombre
llamado Valle. De ahí bajaron en una lancha llamada Aguila por el rio
abajo y Valle fundó otra casa y el puerto recibió el nombre de Dotá,
según mi abuela. En ese lugar mi abuela tubo un pleito con la Señora
de Valle y disgustada se embarcaron en el Aguila con su marido y
bajaron adonde ya se encontraba la mayor parte de los vecinos que
tenían cuando vivían en la selva. Era un puerto sobre el río Putumayo,
no se sabe el nombre del puerto, pero el hombre que vivía allí se llamaba
Remigio. Alli vivieron muchos años (…). En uno de estos años el
marido de mi tía Raquel se fugó con otra mujer para la Enea (una
fundación colombiana, un pueblo colombiano que más tarde fue
encendido por gasolina y fue reducido a ceniza) y más tarde regresó el

236
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

hombre. Sin darse cuenta los peruanos que allí estaban, llevó a mi
abuela, tía Raquel y el marido de mi abuela quienes querían regresar a
su tierra después de muchos años. Ocultando mucho y andando
solamente en la noche, subieron por el Putumayo por 15 días hasta la
desembocadura del Igaraparaná. De allí se embarcaron en una lancha
colombiana y así llegaron a Enea y vivieron trabajando con un hombre
negro que vivía en el pueblo y más tarde después de algunos meses
fueron llevados (abuela, tía, finado abuelo y la niña que era mi mamá)
a la Chorrera porque no había comida para mantener esta familia,
diciendo que el padre de la Chorrera tenía mucho porque mantenía el
pequeño Internado. (Teteye, 1969 apud Guyot, fg_b4, parênteses do
autor)
O relato da fuga de Isabel e sua família, com caminhadas noites adentro pela
floresta, é bastante similar àqueles que pude conhecer não apenas por meio das narrativas
dos Bora, mas também através de depoimentos de lideranças Murui-Muina e Ocaina, por
ocasião de reuniões intercomunitárias. No caso dos Bora, uma das pessoas mais notáveis
que empreendeu esse retorno foi sem dúvida o antigo chefe Kumimarima254.

Kumimarima é uma corruptela instituída pelos padres capuchinhos no processo


de grafia dos nomes indígenas e atualmente adotada pelos Bora quando pronunciam, em
espanhol, o nome do chefe Coómi Máriímu (literalmente, o algodão do patauá –
Oenocarpus bataua; esp: milpeso). Ele é recorrentemente mencionado quando se faz
referência à violência dos chefes no passado. Segundo me disseram, Kumimarima era
conhecido por ter sempre consigo um colar de dentes de onça que era alimentado, no
mambeadero, com tabaco e manicuera. Além disso, quando alguém de seu pessoal
matava um animal grande, seu sangue era vertido sobre esse colar, que ficava rapidamente
seco em razão da sede da onça que ali vivia255. Logo após seu deslocamento forçado para
o Algodón, entre os anos 1924 e 1930, Kumimarima fugiu dos irmãos Loayza e regressou,
caminhando, à região de interflúvio entre os rios Igaraparaná e Cahuinari. Não possuindo
a mínima condição de estabelecer sozinho uma nova maloca na região, ele saiu em busca
daquelas famílias que resistiram ao translado para o Peru e permaneceram ocultas nessa
área256. É assim que Kumimarima encontra então Kiyiejume, antigo chefe do clã
Tamanduá que havia escapado durante um dos bailes de despedida mencionados acima.
Vendo a situação do chefe solitário, ele entregou a Kumimarima sementes de tabaco e

254
A importância de Kumimarima aparecerá também no relatório de Echeverri et al. (1992), realizado para
a ONG Fundación Puerto Rastrojo.
255
Observa-se aqui um interessante vínculo entre o processo de alimentação (feeding ou “dar de comer” -
ver cap. 4) e a relação que os Bora possuíam, no passado, com os animais (ver Int. à Parte II e Conclusão).
256
É o que afirma também Restrepo: “muchos de ellos vinieron por las trochas (…). Y otros, desde mucho
antes, hastiados de esclavitud, habían regresado unos primeros, que se habían refugiado en la maraña de la
selva, para no ser nuevamente subyugados por los tiranos del Perú” (Restrepo, 1988: 88).

237
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

plantas de mafafa (ver supra), bem como ramas de mandioca e coca para a abertura de
suas novas roças.

Kiyejume e Kumimarima são dois dos quatro abuelos de quem os Bora contam
que toda sua gente atual descende. Os outros são Mañaho, personagem que conhecemos
mais à fundo no capítulo 1, e Kuguao, antigo chefe do clã Zogue-Zogue, cujos
primogênitos de sua linhagem maior (ver cap. 3) não mais vivem no Igaraparaná257.
Mencionados frequentemente quando se fala sobre o caucho ou a reconstrução das
malocas empreendida depois desse período, é possível de fato retraçar boa parte da
genealogia dos Bora atuais a partir desses quatro homens que, na posição de chefes, foram
os personagens centrais da primeira geração que sobreviveu e permaneceu em seu
território depois da guerra colombo-peruana.

Pouco a pouco, os sobreviventes do caucho no Igaraparaná, somados àqueles que


conseguiram escapar do trabalho forçado em território peruano, começaram a
reestabelecer suas roças, a reconstruir suas casas e malocas e, consequentemente, a gerar
uma nova parentela. Lidavam, contudo, com um cenário de fragmentação bastante
significativo. Os indígenas designados sob o etnônimo Bora-Miraña, segundo fontes para
a primeira década do século XX, somavam cerca de 15.000 mil pessoas (Whiffen, 1915).
Quando Mireille Guyot chegou pela primeira vez ao Igaraparaná, no fim dos anos 1960,
os Bora que ali se encontravam não eram mais de 250, número equivalente aos que a
antropóloga registra para os Miraña no rio Caquetá258.

Diante desse cenário, nada se sabe, hoje, sobre os pais ou outros ascendentes de
Kumimarima. Tendo vivido na época da Casa Arana, é bastante provável que parte deles
tenha morrido em decorrência da ação dos caucheiros. Sabemos, contudo, que
Kumimarima era do clã Buriti e teve pelo menos três irmãos. Um deles, Mibyeko, foi um
dos homens que, tendo permanecido no Peru após o translado feito pelos irmãos Loayza,
gerou ali uma das descendências mais expressivas da atualidade. Ñayako, por sua vez,
casou-se com uma mulher do clã Veado e teve dois filhos, cujos descendentes vivem hoje

257
Como os nomes são transmitidos patrilinearmente, é provável que Mañaho seja o filho primogênito
homônimo daquele que tinha parte no comércio de pessoas no século XIX. Para mais informações a esse
respeito, conferir discussão ao longo do capítulo 3 sobre onomástica e a transmissão de nomes titulares.
258
As informações de Guyot, contudo, podem ser ainda mais reveladoras quando levamos em conta o
aumento exponencial de casamentos interétnicos e o processo de recuperação demográfica que já vinha
sendo empreendido desde o fim da atuação da Casa Arana e do conflito colombo-peruano (ver cap.s 1 e 2)
até os anos 1960. Um levantamento mais detalhado sobre os dados demográficos do pós-caucho encontra-
se no fim do capítulo 1.

238
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

no Igaraparaná. Já sobre o terceiro irmão, Kiwabya, não consegui levantar muitas


informações. Sabemos, porém, que Kumimarima, sendo o primogênito e valendo-se da
prerrogativa poligâmica dos antigos chefes, casou-se com três mulheres.

Diagrama 5 – Cônjuges e filhos de Kumimarima

Segundo minhas estimativas, Kumimarima nasceu entre 1880 e 1890, tendo assim
entre 20 e 30 anos no período do auge caucheiro259. Como vemos no diagrama acima, ele
casou-se (não sabemos se antes ou após fugir do trabalho forçado no Peru), com Imiamille
e Watsoji, duas mulheres do clã Amanhecer. Conforme me disseram, é bastante provável
que elas fossem irmãs ou primas entre si. Com elas Kumimarima teve ao menos 8 filhos
(cinco homens e três mulheres), como é possível observar no diagrama. Com uma terceira
mulher, Miiho, do clã Abiu260, ele teve outras duas filhas. Não é possível afirmar a ordem
em que essas uniões aconteceram, mas sabemos que Dujdulli foi, certamente, seu filho
primogênito. Nijtyúho, por sua vez, sendo o filho mais velho do casamento com Watsoji
(segundo alguns interlocutores, provavelmente mais jovem que sua outra mulher,
Imiamille), não herdou, ao contrário do que se esperaria que acontecesse, a descendência
do clã Buriti, de seu pai. Ao invés disso, ele foi filiado ao clã Amanhecer, o mesmo de
sua mãe. Seu irmão caçula, Ruúmai, permaneceu, contudo, no clã paterno. Karadimas,
em sua tese, alerta para a ocorrência de filiações matrilineares entre os Povos do Centro:

Les raisons qui motivent de telles entorses aux normes établies sont que,
selon le discours des intéressés, il faut être ‘reconnaissant’ de la mère,
et du ‘côté maternel’. C’est-à-dire qu’un individu masculin peut décider
de donner les noms de sa propre mère à l’une de ses filles plutôt que de
lui donner ceux de sa sœur qui appartient au même clan, mais aussi,
d’être ‘reconnaissant’ de sa femme et de lui laisser ainsi le choix du
nom pour une de ses filles, ce qui revient à prendre un nom du clan de
ses alliés. C’est ce même principe qui, appliqué à une descendance
masculine et combiné avec celui de la hiérarchie comme nous allons le

259
A estimativa baseia-se em minha genealogia e também nas anotações de Mireille Guyot em seus
cadernos de campo (fg_b9) que tiveram como base os dados que ela coletou, na década de 1960, com
pessoas hoje já falecidas.
260
Pouteria caimito (esp.: caimo; bora: mútsiítsi).

239
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

voir plus loin, permet de ‘donner’ une partie d’une génération - et, avec
celle-là, toutes celles qui vont suivre -, à la lignée agnatique du clan de
la mère. (Karadimas, 1997: 133).
O verbo enunciado pelo autor para fazer referência à relação entre a família do pai
da criança e os parentes agnáticos da mãe é “reconhecer”. Segundo o uso que os Povos
do Centro fazem do termo reconocer, em espanhol, reconhece-se com coca a informação
dada pelo ancião e reconhece-se com alimentos ou dinheiro o trabalho feito numa
atividade coletiva (esp: minga). Em suma, “reconhecer” é, em alguma medida, um
eufemismo para “pagar” (esp: pagar, bora: ahdo), verbo utilizado mais diretamente
quando se trata da retribuição dada, por exemplo, aos cantores em um baile ou a um
trabalho formal (docentes, agentes de saúde, motoristas, etc.). Diferente do pagamento, o
“reconhecimento” é uma contra-dádiva que não tem seu valor estipulado prévia ou
consensualmente e quase sempre é alvo de críticas por conta da inevitável mesquinhez de
quem encontra-se na posição de retribuidor261. Logo, seguindo a lógica de Karadimas e
dos próprios indígenas, a família do pai da criança veria na nominação via materna
daquela nova criatura uma forma de “reconhecer” o fato de que, numa geração anterior,
uma pessoa daquele clã (no caso, a própria mãe) foi doada à sua parentela sem que tenha
havido nenhuma forma de compensação262.

Isso nos ajuda a compreender como a transmissão de nomes via materna não é,
em si mesma, excepcional no mundo bora – apesar de ser, principalmente nas linhagens
maiores, infrequente. Vimos, além disso, como ela pode ser usual nos casos em que
homens de linhagens menores casam-se com mulheres vindas de linhagens de maior
prestígio (capítulo 3). Porém, de acordo com os relatos nativos, o caso do filho de
Kumimarima filiado ao clã Amanhecer não foi simplesmente uma questão de
“reconhecimento”, pois no pós-caucho os Bora estavam, como já mencionei, diante de
uma situação complexa: com o reduzido número de pessoas e a abundância de órfãos,
caso seguissem estritamente a regra de filiação patrilinear a quantidade de clãs seria
reduzida drasticamente. Dessa forma e sempre de acordo com meus interlocutores,
Kumimarima viu na filiação de Nijtyúho (filho mais velho de um de seus casamentos) ao
clã Amanhecer uma oportunidade de fazer com que esse clã não desaparecesse. Produzia-

261
É interessante observar que não encontrei uma analogia, no idioma Bora, para a distinção em espanhol
entre “pagar” e “reconhecer”, de modo que ambas as ações são traduzidas pelo vocábulo ahdo, usado ainda
como uma tradução para a palavra “recompensa”.
262
Para uma breve análise sobre esse tipo de arranjo e uma possível teoria da reciprocidade intergeracional
nas trocas matrimoniais miraña, ver o mesmo trabalho (Karadimas, 1997).

240
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

se, ali, um novo chefe de clã – movimento que, nas gerações seguintes, foi fundamental
para a reestruturação do mundo bora.

Nijtyúho, em meados do século XX, chegou a possuir uma maloca no Igaraparaná.


A consolidação de sua condição de chefe, contudo, foi dificultada pelo relativo insucesso
de seus casamentos: enquanto sua primeira mulher, uma Miraña, morreu sem ter tido
filhos, seu segundo casamento gerou apenas uma descendente, que ganhou o nome de sua
avó paterna e vive atualmente em El Estrecho, no Putumayo peruano. Sem filhos homens,
a estabilização de uma descendência do clã Amanhecer só viria a se consolidar tempos
depois, como veremos no próximo item. Por ora, retrocedamos um pouco à história de
Kumimarima.

Kumimarima estabeleceu sua nova e provavelmente modesta maloca em um


igarapé nas áreas de interflúvio do rio Cahuinari, não muito distante do local onde, anos
antes, muitos Bora tinham sido levados pelos empregados da Casa Arana para trabalhar
nas “seções de caucho” (cf. cap. 1). Na mesma região, encontrava-se a maloca de
Kiyejume, quem já sabemos ter fornecido a Kumimariama os subsídios necessários para
que ele e seu pessoal abrissem suas primeiras roças. Mañaho e Kuguao, por sua vez,
estabeleceram suas malocas nas áreas de cabeceiras de igarapés afluentes da margem
esquerda do Igaraparaná. Permanecer nessas áreas mais afastadas da margem dos grandes
rios, entretanto, não os resguardou por muito tempo de novos encontros como o mundo
dos Brancos.

Como vimos no capítulo 2, a família de Kumimarima foi abordada, em 1936, pelo


padre Bartolomeu de Igualada. O religioso ficou conhecido em todo o Caquetá-Putumayo
por ter realizado, nas décadas de 1930 e 1940, incursões aos assentamentos e malocas da
região em busca de “órfãos” e outras pessoas fragilizadas pela carência de alimentos e
pelas epidemias que assolavam a região. A partir desse contato, crianças, jovens e até
mesmo adultos foram sendo progressivamente atraídos para o internato ou orfanatório de
La Chorrera, onde passaram a viver em tempo integral.

Várias famílias, a fim de estarem mais próximas daqueles parentes (muitas vezes
seus filhos e netos) que viviam permanentemente no internato religioso, transladaram-se
das distantes áreas de interflúvio para as margens do rio Igaraparaná. Além aumentar a
proximidade com os familiares que viviam junto aos padres capuchinhos, o
estabelecimento desses novos assentamentos possibilitava o acesso mais fácil aos

241
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

produtos industrializados que se faziam cada vez mais presentes em La Chorrera, como
vimos ao conhecer a sucessão de bonanzas apresentadas na Parte I desse trabalho.

Segundo dados levantados pelos próprios Bora junto a seus anciãos, os


descendentes de Kumimarima iniciaram esse movimento de transição do interflúvio para
a margem do Igaraparaná em 1947 e o concluíram dez anos mais tarde, no fim da década
de 1950. O primeiro a estabelecer-se na área foi Nijtyúho, cuja maloca estava localizada
onde hoje está a escola local, bem próxima à comunidade Providencia263. Em seguida, a
família de seu irmão primogênito, Dujdulli, também se instalou na área, a princípio na
própria maloca de Nijtyúho. No mapa abaixo, apresento um resumo dos fluxos
migratórios dessas famílias desde a chegada da Casa Arana até o começo da segunda
metade do século XX264.

-1910
1890

57
6 -19
1 93

1924-1930 1924-1933

Mapa 5 – Deslocamentos de Kumimarima e família (1890-1957)

263
Durante as décadas seguintes, contudo, foi ainda significativo o trânsito terrestre entre os assentamentos
bora na margem do Igaraparaná e aqueles que restavam próximos ao Cahuinari. Essas movimentações se
intensificavam principalmente por ocasião dos bailes. Tais deslocamentos cessaram apenas com a morte
do último chefe que residia no Cahuinari, filiado ao clã Garça Branca Pequena, no fim dos anos 1980.
264
Uma relação entre as rotas migratórias ao longo do século XX e o abandono e a retomada dos rituais de
nominação pode ser encontrada no capítulo 6.

242
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

O mapa anterior resume graficamente o que acompanhamos até aqui. Vemos que,
entre o fim do século XIX e o começo do XX, os Bora foram levados de suas malocas
dispersas na região de interflúvio entre o Igaraparaná e o Cahuinari até as seções
caucheiras de Morelia, Absinia e Santa Catalina (ver cap. 1). Em seguida, entre 1924 e
1930, com a queda da Casa Arana eles foram transladados à força para o Putumayo e para
o rio Algodón. Já naquele momento, contudo, pequenos grupos conseguiram fugir e
regressar para a área que ocupavam antes da chegada dos caucheiros. Depois, entre 1932
e 1933, época do conflito entre Peru e Colômbia, aqueles que não tinham sido levados ao
rio Ampiyacu ou bem permaneceram no Putumayo peruano ou bem se juntaram àqueles
que faziam o caminho de volta, escapando dos irmãos Loayza. Por fim, entre 1936 e 1957,
impulsionados pela ação dos padres capuchinhos e pela recente facilidade de acesso aos
produtos industrializados, a maioria dos Bora deixou a região do rio Cahuinari e se
estabeleceu, definitivamente, nas margens do rio Igaraparaná265.

Uma vez fixados no médio Igaraparaná, aqueles que sucederam Kumimarima


consolidaram novos núcleos familiares e assim fundaram distintas comunidades na
região, como é possível notar no diagrama a seguir. Nele estão indicadas, para cada
assentamento, quais as pessoas que, sendo descendentes de primeira ou segunda geração
de Kumimarima, são também os ancestrais daqueles que ali vivem nos dias de hoje266.

Diagrama 6 – Descendentes de Kumimarima segundo comunidades atuais

265
Apenas uma família com poucos membros permaneceu no Cahuinari até a morte de seu chefe, nos anos
1980.
266
Para uma listagem sobre essas comunidades e sua composição, ver cap. anterior.

243
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

Ao analisar o diagrama, notam-se duas coisas: primeiro, que das nove


comunidades bora existentes hoje na área da pesquisa (ver cap. 3), apenas San José não
fui fundada por descendentes de Kumimarima267. Segundo, que enquanto seus
descendentes por via materna habitam os assentamentos de Providencia Viejo, Boa,
Pereira, San Andrés e Yarumo, aqueles cujo parentesco é traçado agnaticamente vivem
em Tagua, Providencia e Santa Lucia. Porém, se já sabemos que a filiação clânica e a
transmissão dos cargos de chefia acontece apenas entre primogênitos, como poderíamos
explicar que hoje haja malocas erguidas por descendentes direitos de Kumimarima nessas
três últimas comunidades?

5.2. A cisão entre os clãs Buriti e Amanhecer

Vimos que o filho primogênito de Kumimarima, Dujdulli, foi filiado ao clã Buriti,
o mesmo de seu pai. Ele provavelmente nasceu pouco depois que Kumimarima retornou
à região do rio Cahuinari, permanecendo ali até a época em que sua família, tendo sido
contatada pelos padres capuchinhos, resolveu transladar-se para as margens do
Igaraparaná. Nessa época, Dujdulli já havia se casado com duas irmãs e gerado filhos
dessas uniões, como podemos constatar por meio do seguinte diagrama, que será
fundamental para as análises que se seguirão:

Diagrama 7 – Filhos de Rafael Dujdulli

267
Contudo, veremos no próximo tópico que a fundação dessa comunidade está diretamente vinculada à
iniciativa de outros descendentes de Kumimarima.

244
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

Como era comum acontecer nas uniões poligâmicas sororais do passado, Raquel era
a mulher “principal” e também a irmã primogênita. A mais nova, Antônia, após a morte
de Dujdulli casou-se novamente, dessa vez com um chefe do clã Veado, com quem teve
mais dois filhos, um homem e uma mulher que atualmente também vivem nas
comunidades bora no Igaraparaná268. No diagrama, à exceção de duas mulheres que
residem hoje em Leticia (Josefina e Otilia), os demais filhos vivos de Dujdulli encontram-
se todos no Igaraparaná. Eles nasceram, contudo, antes do translado para essa região,
ainda nas proximidades do rio Cahuinari. Os três filhos mais velhos, cujos símbolos estão
marcados em [amarelo] no diagrama, pertencem ao clã Amanhecer. Notamos, então, que
a filiação desses foge à regra segundo a qual os filhos devem pertencer ao clã paterno.
Porém, percebe-se também que os filhos de Dujdulli, ao filiarem-se ao clã Amanhecer,
herdaram a filiação clânica excepcional por via paterna (pois esse era o clã de Imiamille,
FM), não enquadrando-se assim naqueles casos em que filhos são filiados aos clãs de seus
parentes maternos (ver cap. 4). Vejamos como os Bora explicam essa opção feita por
Dujdulli.

5.2.1. Rotas e desvios

No item anterior, vimos que a tentativa (frustrada) de Kumimarima de gerar uma


nova parentela para o clã Amanhecer por meio da “transferência” de seu filho Nijtyúho
foi motivada por uma preocupação com o futuro desse clã que, dada a morte de muitos
de seus membros no período pós-caucho, corria o risco de desaparecer. Entretanto, no
caso dos filhos de Dujdulli (eB1 de Kumimarima) que na geração seguinte foram filiados
ao clã Amanhecer, os Bora apontam para outras causas.

Contaram-me repetidas vezes, ao falar sobre os “antigos” (bora: déjúcóejpi,


literalmente, “os primeiros”), que Kumimarima era um homem muy malo (bora:
ímítyuúbe – literalmente, “homem mal”). Ele havia herdado dos chefes anteriores de seu
clã o ritual Báhja que, como mencionei, era no passado um dos mais importantes.
Exclusividade de malocas com nomes próprios e de grandes dimensões, o ritual Bájha,
muito embora não envolvesse transmissão de nomes, era um momento de clara
manifestação da disputa, por vezes velada, entre irmãos bonitos e feios (ver cap. 3). Os

268
Optei por não os representar no diagrama acima a fim de enfatizar as relações que tem como ponto focal
Rafael Dujdulli.

245
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

Bora afirmam que naquele tempo os irmãos se insultavam, de modo que os feios tocavam
violentamente o manguaré, quebravam as panelas de barro onde estava estocada a bebida
ritual, golpeavam e quebravam os esteios da maloca e, por fim, não raro o conflito eclodia
e corrompia os presentes, culminando em agressões físicas generalizadas e assassinatos.
A descrição do que acontecia durantes esses rituais coincide, de maneira geral, com a
própria narrativa bora acerca da violência existente no passado. Nesse sentido, o que
descreverei a seguir é importante porque trata-se, segundo os relatos de meus
interlocutores, da primeira de uma série de ações levadas a cabo pelos Bora para
consolidar a passagem do Tempo dos Animais para o Tempo da Abundância (ver Parte
II).

Dizem os Bora que Dujdulli, filho primogênito de Kumimarima, não desejava


perpetuar em sua descendência a herança violenta de seu pai. Ele resolveu, então, não
transmitir a seus filhos a prerrogativa de realizar o ritual Báhja. Em vez disso, transferiu
os mais velhos para o clã de sua mãe, Imiamille, de tal maneira que eles não herdassem a
carrera Báhja, mas sim o ritual Llaaríwa, de responsabilidade de seus ancestrais
maternos, os antigos chefes do clã Amanhecer. Nos capítulos seguintes, teremos a
oportunidade de conhecer melhor esse ritual. Por ora, basta ter em mente que esta é o
ritual de transmissão de nomes e produção de chefes mais importante na atualidade.

246
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

Diagrama 8 – Transmissão ritual dos descendentes de Dujdulli

Assim, foi justamente durante um ritual Llaaríwa, quando ainda se encontrava no


rio Cahuinari, que Dujdulli nominou os seus filhos. Embora não tivesse sido ele mesmo
nominado nessa carrera, ele realizou tal ritual, transmitindo nomes do clã Amanhecer a
seus filhos primogênitos José Ramón ([6], eS1) e Aurélia ([7], eD1), que, como vemos no
diagrama acima, ocuparam os postos de bonitos nessa geração269. Os feios, por sua vez,
foram sua filha Otília ([10], eD2) e o irmão caçula de Dujdulli, Dario ([9], yB). Não
consegui, junto a meus interlocutores, chegar a um consenso a respeito do que motivou a
escolha de Dujdulli por seu irmão menor. Na verdade, diz-se que Dario, em vida, sequer
se reconhecia como pertencente ao clã Amanhecer270. Ele tampouco teve mulher ou filhos
a quem transmitir sua filiação e, como veremos, esse tipo de “transferência malsucedida”
também aconteceu na geração seguinte. Uma vez que a posição dos feios é menos
prestigiosa que a dos bonitos, suspeito que, nos casos em que ela é ocupada por pessoas

269
Para entender melhor a oposição entre bonitos e feios, ver cap. 3.
270
Algo reforçado pelas genealogias e relatos presentes nos cadernos de campo de Guyot, que trabalhou
com Dario na gravação de músicas executadas em flautas e ocarinas.

247
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

que não sejam de fato filhos do chefe nominador, sua rejeição seja mais provável ou
mesmo admissível.

O filho primogênito de Dujdulli, José Ramón [12], consolidou-se após sua


nominação como o chefe do clã Amanhecer e durante várias décadas foi tido como o
principal chefe bora. Ele concentrou a sua volta um contingente significativo de pessoas
e, ao mesmo tempo, conciliou seu papel de dono de maloca com aquele de liderança
política voltada para a relação das comunidades com o mundo dos Brancos - de tal forma
que ele foi um dos chefes que mais ativamente participou nas negociações sobre a
regularização fundiária do Resguardo Predio Puyumayo (ver cap. 2).

José Ramón casou-se com uma mulher murui-muina e seus primeiros filhos
nasceram ao longo do período em que sua família migrava paulatinamente do interflúvio
do Cahuinari até a margem do Igaraparaná, entre os anos 1940 e 1950. Quando ali
chegaram, eles foram recebidos na maloca de Nijtyúho, um dos filhos de Kumimarima.
O acolhimento, contudo, não durou muito tempo, já que a maloca foi palco de uma morte
violenta na ocasião um ritual, o que a fez ser abandonada logo em seguida. Pouco depois,
com a morte repentina na Dujdulli durante a construção de sua própria maloca, seu filho
primogênito, José Ramón, resolveu realizar a nominação de seus próprios filhos em uma
pequena maloca do clã Veado271. Quando Mireille Guyot chegou à região, em 1969, esta
era a principal maloca das comunidades bora no Igaraparaná:

271
Cujo dono era o segundo marido de Antonia, esposa mais jovem de Kumimarima (ver Diagrama 7)

248
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

Foto 19 – Maloca do clã Veado no Igaraparaná em 1969 (Fonte: fg_ph2_1969)

Assim, em um ritual Llaaríwa na maloca do clã Veado, foram transmitidos os


nomes do clã Amanhecer a quatro crianças, duas bonitas e duas feias. O par bonito era
composto por José Fernando ([12]) e Edita ([13]), filhos primogênitos (eS1 e eD1) de José
Ramón. O par feio, por sua vez, formou-se a partir da nominação de Zenaida ([15], eD2
de José Ramón) e Germinio ([14]). Vale notar que esse último é o filho mais velho da
irmã primogênita (eD1Se1) de José Ramón. A mãe do menino, portanto, fez parte do grupo
dos nominados com nomes titulares na geração anterior, tendo recebido à época um nome
que, junto ao de seu irmão José Ramón, compunha o par bonito do clã Amanhecer. No
futuro, por haver se casado com um homem do clã Zogue-Zogue, era esperado que seu
filho fosse filiado ao clã paterno – o que vemos não ter acontecido.

A presença desse sobrinho de José Ramón entre os nominados do clã Amanhecer


justifica-se, em parte, pelo fato de que, naquele tempo, o chefe possuía apenas um filho
homem e duas mulheres. Não é incomum que, numa situação como essa, seja escolhido
o filho da irmã primogênita, sobretudo se ela for casada com um homem que, por não ser
ele mesmo um chefe, não transmitirá a sua prole nenhuma prerrogativa ritual. Esse era
exatamente o caso do marido de sua irmã primogênita (eZ1H), sobre o qual José Ramón
passou a exercer ainda mais influência nos anos seguintes.

249
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

5.2.2. A fundação de novas malocas nos anos 1970

Entre os anos 1970 e 1971, após a fixação definitiva de José Ramón e de sua
família no Igaraparaná, ele conseguiu, finalmente, organizar a construção de uma maloca
para o clã Amanhecer. Porém, apenas alguns anos mais tarde (estima-se que entre 1974
e 1976), o chefe decidiu mudar-se para a beira do igarapé Tagua, não muito distante do
assentamento da maloca do clã Cobra-Grande e cerca de 3km por terra mais à jusante da
atual comunidade Providencia, onde ele e sua família viviam até então272. Procurando
emular as grandes dimensões das malocas dos antigos chefes, José Ramón organiza em
Tagua a construção de uma maloca com doze metros de distância entre os quatro esteios
principais, a maior da época em todo o Igaraparaná273. Sua maloca recém-construída
deixada para trás em Providencia foi assumida por seu irmão (eB2), Benito.

Se recuperarmos o diagrama do item anterior em que estão representados os filhos


de Rafael Dujdulli, veremos que era de se esperar que Benito, sendo o segundo filho desse
chefe (eS2), ocupasse a posição de feio do clã Amanhecer. No mesmo diagrama notamos,
contudo, que Benito permaneceu no clã Buriti, bem como seus irmãos menores Enrique
e Angélica e os filhos do segundo casamento de seu pai (Alejandro, Josefina e o finado
Raúl). Segundo meus interlocutores, Dujdulli fez essa divisão a fim de que tanto o clã
Amanhecer quanto o Buriti tivessem sua continuidade garantida. Mesmo sem ter sido
nominado num ritual titular, Benito assumiu a antiga maloca de seu irmão e, mais
recentemente e à contragosto de alguns, passou a realizar esporadicamente rituais Báhja
em seu assentamento a fim de recuperar a prática que havia sido abandonada por seu clã
na geração anterior274.

Retrocedendo um pouco, ainda nos anos 1970 (mais precisamente, entre 1975 e
1977), José Ramón apoiou o irmão primogênito do marido de sua irmã Aurélia (José

272
A proximidade com o clã Cobra-Grande consolidou-se, anos mais tarde, por meio do casamento do filho
primogênito de José Ramón com uma das filhas do chefe desse clã. Além disso, sua filha que nominada
como feia casou-se com um irmão do chefe do clã Cobra-Grande, com quem José Ramón estabeleceu,
então, uma relação de co-sogro ou niuhbe (ver cap. 3).
273
Uma de suas motivações principais, naquele momento, era o nascimento de seu neto primogênito e o
desejo que possuía em recuperar de vez o ritual Llaaríwa por meio da inauguração de um novo trocano.
Esse tema será abordado mais a fundo no capítulo 7, quando tratarei da reconfiguração dos rituais no pós-
caucho. Sobre as dimensões da maloca, doze metros entre os quatro esteios equivaleriam a um centro de
maloca (local onde são realizados os rituais) de aproximadamente 140m2, excluindo-se então o amplo
espaço que, nas bordas da construção, servem como ambiente de cozinha e convivência diária (ver figura
no capítulo anterior). Para se ter uma ideia, a maior maloca atual possui cerca de 12 metros entre as duas
portas, tendo como área total aproximada o equivalente ao pátio de José Ramón.
274
No próximo tópico conheceremos mais à fundo a configuração atual dessa maloca.

250
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

Miguel, eZ1HBe1), a construir, a meio caminho entre Providencia e Tagua, uma nova
maloca. Ali, na comunidade de San José, foi erguida então a maloca do clã Zogue-Zogue.
O apoio do chefe José Ramón traduziu-se na organização dos trabalhos coletivos que
envolvem a construção de uma nova maloca (fabricação de comida, mambe, ambil e sal
vegetal, extração de madeira para os esteios e o manguaré, coleta de folhas para a
cobertura do telhado, etc.), mas também na condução de todo o procedimento ritual
necessário para que tudo ocorra tranquilamente e sem danos aos trabalhadores
envolvidos.

Tal apoio foi justificado pelo fato de que José Miguel, aquele que se tornou dono
da maloca, havia sido nominado, quando criança, como feio em um baile Llaaríwa
realizado pela linhagem maior de seu clã. Ele havia acompanhado na ocasião o filho
primogênito do irmão mais velho de seu pai (FBe1Se1), que fora nominado como bonito.
Contudo, quando da construção dessa maloca, o clã Zogue-Zogue encontrava-se na
mesma situação de carência de pessoas enfrentada por outros clãs no pós-caucho, de
modo que não havia malocas onde realizar os rituais nem pessoas a quem transmitir o
nomes. Assim, embora José Miguel não possuísse em si uma carrera ritual de transmissão
de nomes, o fato de ele ser uma pessoa nominada ou titular, ainda que “de segunda
classe”, autorizava-o, por meio da assistência prestada por José Ramón, a manter uma
maloca e a realizar rituais menos importantes ou ordinários (ver cap. 6).

Infelizmente, poucos anos depois, José Miguel morreu de forma trágica e sua
maloca foi abandonada. Uma nova maloca foi construída em seguida, entre os anos 1979
e 1981, dessa vez sob o comando de Rufino, irmão mais novo de José Miguel e marido
de Aurélia (irmã primogênita de José Ramón cuja nominação dela própria e de seu filho
mais velho foi tratada há pouco). Novamente, conforme Rufino e os demais membros
atuais do clã Zogue-Zogue me relataram, também foi fundamental, nesse processo, o
suporte e o respaldo de José Ramón. Tamanha influência de José Ramón em relação ao
clã Zogue-Zogue não foi suficiente para que, após sua morte, esses laços se mantivessem
intactos.

Se o observarmos com cuidado o Diagrama 8, veremos que Germinio ([14]), filho


de Aurélia ([7]), é representado por um símbolo cortado ao meio e preenchido em
[amarelo] e [azul]. A razão para isso encontra-se em um episódio particular envolvendo
Germinio e José Fernando, seu par bonito do clã Amanhecer. Durante um baile, após a
morte de José Ramón, Germinio dirigiu-se a seu par bonito levando uma boa quantidade

251
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

de ambil. Ele lhe informou, à época, que apesar de ter sido nominado no clã Amanhecer,
desejava voltar a filiar-se ao clã Zogue-Zogue, o mesmo de seu pai e irmãos. Assim, por
meio dessa atitude e do pagamento generoso de tabaco na forma de ambil, ele mudou sua
afiliação clânica e, ao mesmo tempo, desfez o vínculo e os compromissos cerimoniais
que possuía com José Fernando, seu par bonito275.

Vimos que esta “transferência malsucedida” é similar àquela experenciada, na


geração passada, por Dario, o irmão caçula de Dujdulli. Enquanto não temos muita
informação a respeito da razão pela qual a filiação de Dario ao clã Amanhecer não
funcionou por muito tempo, no caso mais contemporâneo de Germinio suspeito que uma
das motivações do rompimento seja que a relação entre o clã Amanhecer e o clã Zogue-
Zogue tenha sido mais forte na geração anterior do que na subsequente – afinal de contas,
José Ramón era um chefe poderoso que, sendo cunhado do pai de Germinio, o ajudou a
“levantar” sua maloca, mesmo que o último pertencesse a uma linhagem menor.

As adoções cerimoniais ou rituais, que conheceremos mais à fundo no capítulo 7,


prescindem de relações de convivência diárias entre adotantes e adotados, mas estão tanto
mais em xeque quanto maior for a distância espacial e genealógica entre os mesmos.
Vivendo em sua própria maloca, cercado de seus familiares e sem estar sob a coordenação
de seu chefe ou irmão bonito, podemos entender assim as razões pelas qual Germinio
preferiu permanecer atrelado à sua família paterna. Além disso, ao ser o primogênito
daquela geração, com o envelhecimento de seu pai ele tornou-se o chefe da comunidade
em que vivia, mesmo se tratando de um assentamento com uma maloca que, ao pertencer
a uma linhagem menor, não possuía prerrogativas rituais.

Finalmente, resta um ponto a ser explorado a partir da leitura do diagrama anterior


e para o qual quero chamar atenção: a distinção entre o irmão caçula de José Ramon e os
demais. Se vimos que os primogênitos dessa geração foram transferidos ao clã
Amanhecer e os outros permaneceram no clã Buriti, como explicar que o mais novo
desses irmãos pertença ao clã Gavião?

275
Por algumas vezes vi os dois homens comentando sobre o assunto. De maneira normalmente jocosa,
José Fernando sempre diz a Germinio que ele o abandonou.

252
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

5.3. A adoção cerimonial no clã Gavião

Uma das primeiras coisas que fiz ao começar meu trabalho entre os Bora no
Igaraparaná foi uma revisão do censo dos cabildos elaborado pela associação local.
Minha intenção era entrar em contato direto com cada uma das famílias e, seguindo uma
demanda das lideranças bora, produzir dados sobre a situação do idioma na região a partir
da elaboração de um levantamento sociolinguístico – cujo resultado, vale dizer, foi
bastante rudimentar em razão de meu despreparo.

Assim, durante os primeiros meses fui de casa em casa, pelos caminhos terrestres
e fluviais, entrevistando os moradores. Aproveitava a ocasião para entender um pouco
melhor quais eram as relações de parentesco dentro de cada núcleo residencial e também
entre eles. Tal processo passava, inevitavelmente, por descobrir quais famílias estavam
filiadas a quais clãs. Foi assim que, para minha surpresa, descobri que uma família, que
vivia na comunidade de Providencia entre o pessoal da maloca do clã Buriti, era, na
verdade, do clã Gavião. Tratava-se do filho caçula de Dujdulli e seus descendentes. Logo
percebi que para compreender essa situação era necessário recuar no tempo.

Roger Casement, o cônsul inglês que apresentou as denúncias contra a atuação da


Casa Arana, transcreve em seus relatórios uma entrevista que realizou com James Chase,
um nativo de Barbados que trabalhava para a companhia. Na ocasião, Casement tomou
conhecimento de uma expedição que, tendo saído da seção caucheira de Abisinia, foi
liderada por um capataz da Casa Arana acompanhado de dois peruanos e oito
“muchachos” indígenas (cf. cap. 1), além do próprio James Chase. Toda a comitiva
andava armada com rifles Winchester carregados e buscava resgatar índios que haviam
fugido do trabalho forçado e regressado a seu território na região do rio Cahuinari:

Todos habían sido enviados por Agüero para ir a Gavilanes, una “casa”
india en el río Pamá, un afluente del Cahuinarí, que es a su vez a fluente
del Caquetá. Los mandaron a buscar a los indios fugitivos que se habían
escapado del distrito de Morelia, del cual Armando Blondel era el
subjefe. La fecha era alrededor de mayo de 1910. (Casement, 1912:
156)

Tais indígenas eram filiados ao clã Gavião e haviam fugido para o local onde
viviam anteriormente, o rio Pamá. Sendo então recapturados pelos empregados da
companhia, foram levados de volta a sua seção original, Morelia:

Tres de los hombres indios débiles de tanta hambre no podían seguirles


el paso, entonces el mismo Vásquez mató a uno y le ordenó a Cherey
que le disparara a los otros dos. Todos ellos eran hombres adultos,

253
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

indios boras, pertenecientes a Gavilanes (...). Los tres cuerpos quedaron


tirados en el camino; el lugar estaba tan cerca de Morelia que cuando
llegaron les dijeron que los trabajadores de la estación habían
escuchado los disparos de los rifles con los que mataron a los hombres.
(Idem, ibidem: 158)

Cito esse episódio para ilustrar como os integrantes do clã Gavião, bem como
aqueles pertencentes aos demais clãs bora existentes nessa época, estavam sofrendo
diretamente com a violência e o terror empregados pela Casa Arana: pelo mero fato de
não poderem caminhar na mata, foram assassinados. Assim, é de se imaginar como após
o fim da atuação dos caucheiros peruanos o clã Gavião encontrava-se demograficamente
fragilizado.

No diagrama em que conhecemos os filhos de Rafael Dujdulli (Diagrama 7), há


uma informação que ainda não foi comentada. A saber, o fato de que Imiamille (após a
morte de Kumimarima, seu primeiro marido), casou-se como Meewaji, um chefe do clã
Gavião que possuía a prerrogativa do ritual Llaaríwa. Esse homem era, além disso, um
dos poucos sobreviventes de sua família, muito provavelmente afetada pelos eventos
descritos no relatório de Roger Casement. Como Imiamille e Meewaji tiveram apenas
uma filha, este último não possuía filhos homens a quem transmitir a chefia de seu clã ou
sua herança ritual. Tal ausência de sucessores colocava em risco a continuidade e a
existência futura de toda a sua parentela, visto que sua filha, ao se casar, não transmitiria
a descendência ou a prerrogativa ritual de seu clã a seus próprios filhos. Meewaji, que
então vivia no rio Cahuinari (precisamente onde o relato de James Chase indica ser
“Gavilanes, una casa india”), dirigiu-se a Dujdulli, filho primogênito de sua mulher e
sucessor de Kumimarima, e pediu-lhe que o chefe lhe cedesse um menino para ser
nominado junto a sua única filha. Dujdulli deu-lhe, então, seu filho caçula, Bartolo,
garantindo assim a continuidade do clã Gavião.

254
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

Diagrama 9 – Adoção cerimonial do clã Gavião

Ao dizer que uma criança foi adotada por alguém, é possível que pensemos em
uma relação baseada na convivência diária entre ambos e no cuidado (alimentação,
proteção, etc.) do adotante para com o adotado. Assim, um pai ou uma mãe adotivos
seriam aqueles que, na ausência dos pais legítimos, passam a assumir a “criação” de seus
novos filhos - mesmo que isso não signifique o apagamento das relações legítimas. Na
discussão do capítulo anterior, entendemos que esse é precisamente o caso das crianças
órfãs previamente aparentadas que, ao serem adotadas (geralmente por seus parentes
maternos), passam a ser mepiivyétso, ou “aquele que nós criamos”.

Esse, porém, não é o caso do filho caçula de Dujdulli. Bartolo, quando foi
nominado pelo clã Gavião, já vivia muito próximo de Meewaji, o chefe de quem herdou
seu nome e sua carrera. Se observamos o diagrama acima, Meewaji era marido de
Imiamille e, ao não possuir outras pessoas de seu clã por perto, é muito provável que
tenha sido incorporado ao pessoal de Dujdulli por meio da corresidência e da
consubstancialidade. Como o filho caçula de Dujdulli nunca saiu de perto do clã de seu
pai, esse processo de “adoção” não envolveu a migração do menino para outro núcleo
familiar ou sequer gerou uma mudança nos termos de parentesco usados (isto é, ele não
passou a referir-se a Meewaji como seu pai, tal como ocorre nas relações entre netos e
avós maternos que conheceremos ainda nesse capítulo). Vimos, há pouco, que a
transferência dos demais filhos de Dujdulli para o clã Amanhecer seguiu o mesmo

255
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

caminho, ou seja, que o processo ocorreu sem que os meninos e meninas transferidos a
outros clãs tenham sido afastados de seus núcleos familiares originais, criado novos laços
de parentesco expressos no uso da terminologia ou mesmo sido envoltos em relações de
fosterage ou “criação” (Viegas, 2003)276.

Ao invés disso, esses remanejamentos de afiliação clânica parecem-me ter sido


parte de uma estratégia coletiva de reação ao cenário produzido pela carnificina caucheira
– e é por isso que sustentarei, daqui em diante, que esses processos devem ser
denominados como “adoções cerimoniais”. Essa expressão nos é útil na medida em que
coloca em evidência distintas possibilidades no que diz respeito às relações de
pertencimento e filiação entre os Bora, ao mesmo tempo em que, como ficará claro nos
dois capítulos seguintes, marca a relevância do mundo ritual enquanto impulsionador de
tais rearranjos. Como veremos, é em grande parte por temerem o enfraquecimento e o
apagamento de sua vida ritual (e consequentemente de suas malocas) que os Bora se
engajaram nessa emaranhada dança das cadeiras entre clãs. Resta-nos entender, por ora,
o que motivou Dujdulli na escolha de qual filho “doar” ao clã Gavião.

Guyot chamou a atenção diversas vezes em seus trabalhos para a importância da


ordem de nascimento na distribuição das posições sociais entre os Bora. Em uma dessas
ocasiões, a autora afirma:

Ils les échangent [os produtos ocidentais] plus tard contre des êtres
humains, contre-prestation qui paraît exorbitante, mais qui, d’après les
Indiens, était considérée comme plus ou moins intégrée dans le système
des échanges. Les « objets » humains qui avaient cours dans ce genre
d’opération était soit des « orphelins » (…), adoptés dans la famille au
cours de raids guerriers à l’issue desquels seuls les enfants étaient
épargnés, soit des cadets dont le statut était déprécié par rapport à
celui des aînés. (Guyot, 1976: 389, grifo meu)
Assim, ao comentar sobre o Tempo dos Brasileiros (cf. cap. 1), a autora defende
que, além dos órfãos, os filhos caçulas também eram objeto de transação entre chefes e
seu pessoal e entre chefes e comerciantes de escravos. Segundo Guyot, a diferença de
status entre filhos primogênitos e filhos caçulas permitia que esses últimos fossem mais
usualmente negociados por seus pais em trocas de ferramentas de metal e outras
mercadorias. Assim, se podemos inferir a provável razão da escolha do filho caçula para
a nominação no clã Gavião, notamos também que o resultado ou as consequências dessa
escolha são sensivelmente diferentes. Ao invés de ser vendido como escravo nos

276
Dessa maneira, esse tipo de relação de adoção contrasta, ainda, com aquele apresentado por Maizza
(2014) para os Jarawara.

256
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

mercados do médio Solimões, o filho caçula mudou radicalmente de status e tornou-se,


após a morte de Meewaji, o chefe de seu clã277. Com o passar do tempo, ao gerar sua
própria descendência e transmitir-lhes nomes e prerrogativas rituais, terminou por
consolidar-se nessa posição, reunindo em volta de si seu próprio pessoal.

Assim, ainda que o novo chefe do clã Gavião e sua parentela nunca tenham se
afastado de seus parentes do clã Buriti, eles configuram um núcleo familiar separado, que
hoje se distingue justamente por causa de seu pertencimento clânico diferente. Foram
necessários, contudo, muitos anos para que os filhos desse chefe fossem eles mesmos
nominados em um ritual Llaaríwa. Nos capítulos seguintes, veremos que o ressurgimento
e a generalização desse ritual fazem parte de um movimento que vem se desenvolvendo
desde o pós-caucho, mas que ganhou força a partir dos anos 1980.

5.3.1. Reverberações atuais

Permitam-me analisar um último caso relacionado à nominação do filho caçula de


Dujdulli no clã Gavião que nos ajudará a refletir um pouco sobre o caráter ambivalente
das “adoções cerimoniais”. Observemos o diagrama abaixo:

Diagrama 10 – Casamento no clã Gavião

277
Não pude reunir informações sobre os feios nominados junto ao filho de Dujdulli e à filha de Meewaji.

257
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

Nos últimos cinco anos, o casal [13]-[16] acima enfrentou muita resistência por
parte de seus familiares desde que resolveu tornar pública a sua união. A maior parte dos
argumentos contrários ao casamento baseava-se na proximidade de parentesco entre os
dois. Vejamos do que se trata.

O homem [13] é um filho não-primogênito de [10], o filho de Dujdulli que foi


adotado cerimonialmente pelo clã Gavião. Logo, [13] pertence ao clã Gavião, muito
embora, como já sabemos, seu avô paterno ([4], Dujdulli) e o pai dele ([2], Kumimarima)
fossem do clã Buriti. Vimos também que Kumimarima casou-se com duas mulheres,
provavelmente irmãs, do clã Amanhecer. Enquanto seu casamento com Imiamille gerou
a importante linha de descendência que advém de seu filho primogênito, Dujdulli, a união
com Watsoji constituiu, dentre outros, a parentela de Ruúmai [7]. Dujdulli e Ruumai
eram, portanto, irmãos de mães diferentes e mesmo pai. Tendo se casado com uma mulher
cujo clã desconhecemos, Ruúmai gerou a mãe da mãe da esposa de [13]. Assim, a mulher
de [13] é, para ele, filha da filha da filha do irmão de seu avô paterno, ou FFBDDD. Como
demonstrei no capítulo 3, esse é o tipo de proximidade suficiente para que [13] diga que
[16] é, para ele, taabyélle, ou “minha sobrinha”. Assim, a consanguinidade existente entre
eles os impediria de contrair matrimônio, mesmo que estejam, do ponto de vida de sua
faixa etária, na mesma geração.

Incide sobre essa união, porém, uma segunda relação. O pai da esposa de [13] é
filho da segunda esposa de Dujdulli com um homem do clã Veado. Mesmo que a filiação
clânica entre os pais do casal difiram, o fato de que as duas esposas de Dujdulli também
eram irmãs intensifica a proximidade entre os cônjuges, pois seus pais, sendo filhos do
mesmo núcleo parental (filhos de duas irmãs casadas, por um longo período, com o
mesmo homem), cresceram juntos como se irmãos fossem. Assim, a esposa de [13]
também é, para ele, a filha de um primo de primeiro grau de seu pai (FMZSD) que se
criou muito próximo deste último. Logo, sendo [16] uma prima “de segundo grau” de
[13], a união desse casal torna-se duplamente interdita.

Todo esse caminho genealógico foi traçado por meus interlocutores quando eu
busquei entender as proibições que incidiam nessa aliança. Compreendi, então, que se
quanto maior a proximidade entre os esposos mais séria é a acusação de incesto que
enfrentarão, a união entre primos de segundo grau, algumas vezes tolerada, tornou-se
nesse caso evidentemente crítica em razão da sobreposição de duas relações de
consanguinidade.

258
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

A interpretação dos dados genealógicos, contudo, não foi unânime, e houve quem
ficasse a favor do casal. O interessante, nesse caso, é que o argumento acionado foi o de
que o parentesco entre eles teria se diluído consideravelmente a partir da adoção
cerimonial do pai de [13] pelo clã Gavião. No capítulo anterior, observei que os
impedimentos matrimoniais geralmente são formulados a partir da máxima de que “não
se pode casar com parentes”, o que inclui tanto quaisquer pessoas provenientes dos clãs
dos avós paternos e maternos quanto aquelas cujo parentesco pode ser traçado a partir de
uma relação de germanidade existente, do ponto de vista de Ego, em G+1 ou G+2. Dessa
maneira, a situação particular desse casamento traz à tona duas respostas distintas a uma
mesma questão (a saber, seria possível criar ou desfazer laços de consanguinidade a partir
dos processos de adoção cerimonial?).

Aqueles que se posicionavam contra a união dos jovens certamente responderiam


esse questionamento negativamente ao considerar que os laços de consanguinidade
prévios entre os ancestrais do casal não foram apagados ou mesmo diluídos no momento
em que o pai de [13] assumiu o papel de chefe do clã Gavião. Por outro lado, para aqueles
que não viam problemas no casamento, a adoção cerimonial realizada na geração anterior
era capaz de enfraquecer suficientemente os laços de consanguinidade existentes entre
eles278.

Até aqui, procurei mostrar como as adoções cerimoniais foram operações cruciais
no período pós-caucho, pois, por meio delas, os Bora encontraram maneiras de preservar
alguns clãs e suas heranças rituais. Ao mesmo tempo, sugeri que essas adoções
cerimoniais não se confundiam com as adoções apresentadas nos capítulos anteriores, nas
quais os pais adotivos “criam” duplamente seus filhos ao estabelecer com eles relações
próximas àquelas que mantém com sua parentela legítima, marcada pela prevalência da
proteção e do “dar de comer” ou feeding. Contudo, o exemplo da discussão em torno do
casamento do filho do chefe do clã Gavião revelou-nos que outros elementos entram em
jogo quando nos voltamos para a produção e a alteração de laços de consanguinidade para
além do mundo ritual. Os casos que conheceremos nos tópicos seguintes ajudarão a
alimentar essa discussão. Eles nos fazem pensar, precisamente, em que medida é possível
alterar ou produzir laços de consanguinidade e de afinidade.

278
A união entre [13] e sua mulher foi abalada pela morte de seu primeiro filho ainda no puerpério da
esposa. O casal teve recentemente outro filho e, assim que a criança completou seus primeiros meses com
saúde, a mulher mudou-se permanentemente para a casa de seu sogro, onde o casal vive atualmente sem
que muitas pessoas contestem seu casamento.

259
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

5.4. De Arara a Cobra-Grande

O mito que apresento a seguir me foi narrado em setembro de 2015 por Santiago
Meicuaco, do clã Cobra-Grande. Na ocasião, eu buscava compreender por que ele, um
chefe primogênito, não pertencia ao mesmo clã que seus irmãos e, ainda, por que os
últimos haviam optado por não viver ao redor de sua maloca. A primeira reação que meu
questionamento gerou foi a narrativa a seguir, parafraseada em alguns momentos e
traduzida do espanhol para o português a fim de melhorar a compreensão do relato e
torná-lo mais enxuto.

Havia um homem que se chamava Pinta-mão e vivia perto de um


buritizal. Sua mãe gostava de comer peixe, mas quase nunca havia peixe
em sua casa pois seu filho, ao invés de ir buscar comida, vivia
trabalhando no roçado. Um dia a sua mãe lhe disse:
- Filho, antes de você ir trabalhar, busque alguma coisa para que eu
possa comer. Lá no buritizal se ouve sempre um sapo que canta. Arranje
uma tocha para iluminar e vá ver se você pega ao menos um sapo279. Eu
vou para roça e sempre volto com fome.
O filho concordou e preparou então sua coca e seu ambil. Conseguiu
uma tocha e, às 5 da tarde, saiu. Foi abrindo caminho para o buritizal e
chegou onde havia uma lagoa. Ali ele se sentou e esperou chegar a
noite. Ficou olhando para o lugar das 5 às 6 e meia da tarde, quando
então escureceu e o aspecto da mata se transformou. Onde de dia se via
a lagoa agora era um pátio limpo, de terra batida e não de água280. Ali
no meio onde havia um pau coberto de musgo, surgiu um trocano
llaaríwa bem pintado e adornado, como costuma acontecer nos
momentos de baile. Havia um globo de luz de cor azul bem claro
pairando no ar. Por ali começou a soar um eco a princípio ininteligível
e de trás do llaaríwa saíram duas crianças. Quando se posicionaram
bem em frente ao trocano, tudo se iluminou. Atrás delas vinha uma
multidão de pessoas. Saíam, saíam e em pouco tempo estavam em cima
de toda a extensão do trocano. As duas crianças estavam num cantinho
brincando enquanto seus avôs e pais dançavam. Pinta-mão ficou
olhando pensando o que era aquilo que ele estava vendo. Se deu conta,
então, de que o que ele e sua mãe escutavam como sapos era, na
verdade, um baile. Ele olhava admirado a tudo aquilo, nunca tinha visto
algo parecido.
Por ser muito inteligente, tudo que ele ouviu ficou gravado em sua
cabeça como as músicas em uma fita cassete. Cada canção (as de
“entrada”, de Amanhecer281, etc.), tudo estava gravado em sua cabeça.
Com o passar do tempo amanheceu e, ao surgirem os primeiros raios de
sol, tudo voltou a ser como antes. Outra vez a lagoa que havia naquele
lugar apareceu e a terra que antes estava ali foi coberta de água. Pinta-
mão sentiu um desejo enorme de pegar as crianças que tinha visto para

279
Há uma série de sapos e rãs que são iguarias apreciadas pelos Bora, preparados geralmente assados.
280
Os lagos e os “canamãs” ou barreiros, formações típicas da Alta Amazônia, são espaços usualmente
especiais por possuírem donos-animais (jacarés, anacondas, antas) cujo controle da região justifica-se pela
existência mítica ou atual ora de uma maloca subaquática (lagos) ora de malocas que apenas são vistas
pelos donos e seu pessoal nos barreiros (o que o caçador vê como antas “chupando” sal em um barreiro é,
para as mesmas antas, o consumo de ambil com sal vegetal em uma reunião noturna no mambeadeiro, numa
fórmula perspectivista clássica (Viveiros de Castro, 1996)).
281
Sobre suítes de canções em uma baile, ver cap. 5.

260
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

si. Eram um menino e uma menina. Ele então voltou para casa sem
trazer a comida de sua mãe, que o inquire:
- Filho, você não conseguiu nada para comer, para assar?
- Não, mãe, eu estive iluminando o caminho, mas não sei onde vivem
os sapos.
Ele não comentou a ela nada sobre o que havia visto à noite.
Rapidamente, comeu e foi dormir. Mais ou menos na mesma hora do
dia anterior, ele se levantou, tomou banho, comeu e pegou seu mambe
outra vez. Encantado com o que tinha visto, disse a sua mãe:
- Bom, mamãe, outra vez eu vou iluminar o caminho. Quem sabe essa
noite eu consiga algo.
E se foi para o buritizal. Ali, sempre na mesma hora, de seis em diante,
a floresta muda. Outra vez, onde se via a lagoa havia agora um pátio
limpo. O pau cheio de musgo logo se transformou em um llaaríwa bem
adornado. Saíram as duas crianças e, por trás delas, a multidão de gente,
cada uma cantando sua canção. Foi nessa segunda noite que se revelou
o nome titular de cada uma das crianças. Cantaram também cantos de
Pópoóhe282. A cabeça do Pinta-mão era um verdadeiro gravador
cassete, nenhum canto lhe escapa até o amanhecer. Quando o sol
nasceu, outra vez o pátio desapareceu, transformando-se em pura água.
Porém Pinta-mão ainda pensava muito na vontade que tinha de capturar
essas crianças. Com isso em mente, ele voltou para casa, com muito
sono, e sua mãe lhe perguntou:
- Filho, onde está o sapo?
- Mãe, ainda não consegui pegar nada. Tem muito sapo lá, mas eles não
se deixam pegar...
Pinta-mão comeu e, outra vez, como tinha passado a noite em claro,
dormiu. No mesmo horário dos dias anteriores, ele acordou, pegou sua
coca e preparou seu ambil.
- Mãe, outra vez vou buscar uma tocha para iluminar no buritizal.
Talvez hoje eu consiga.
Pinta-mão, entretanto, já não pensava em nada além de seu desejo de
pegar as crianças. Ele já não pensava em seu trabalho ou em qualquer
outra coisa. Novamente, às seis e meia da tarde chega a luz azul clara
onde antes havia a lagoa. Saem as crianças e atrás a multidão de gente.
Cantam outras canções do baile Llaaríwa, que ele as gravava por
completo em sua cabeça. O pessoal começou a cantar e dançar,
enquanto as crianças continuavam brincando ao lado. Mais uma vez,
passa a noite e amanhece. Pinta-mão resolve então conversar com o
espírito que o protegia e o orientava, dizendo a ele que faltava ainda o
baile de nominação dessas crianças.
- Abuelo, ajude-me porque quero pegar essas duas crianças para criar.
Como eu não tenho mulher, preciso pegar essas crianças283.
Então o espírito lhe disse:
- Se você quer mesmo pegar essas crianças, você tem que proteger sua
casa com muita segurança para que ninguém a rompa.
Junto aos poucos vizinhos que tinha por perto, ele organizou um
trabalho coletivo [esp: minga]. Assim como havia orientado o espírito,

282
Uma das bailes de transmissão de nomes (ver cap. seguinte).
283
Optei por destacar em negrito fragmentos dessa narrativa que ilustram alguns pontos que buscarei
levantar a seguir.

261
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

ele fez uma porta de uma banda só para que fosse trancada e ninguém
pudesse abrir. Dessa vez, ele chamou sua mãe:
- Mãe, vamos comigo para que você veja o que estou vendo esses dias.
Você acredita que isso que se escuta é o barulho dos sapos lá no
buritizal. Mas agora você vai ver que isso não é sapo, é um baile que
eles fazem. Mãe, eu quero pegar as crianças de lá, eu quero ter uma
criança.
A mulher levou consigo dois cestos que usava para empacotar abacaxi
e abiú e com eles mãe e filho se foram.
- Mamãe, veja, de dia parece uma lagoa, mas agora você vai ver uma
coisa muito curiosa... eu quero ter essas crianças!
Eles esperaram escurecer, até que, por volta das seis e meia o ambiente
mudou de aspecto. O que antes era água agora era já o pátio de terra
batida. Limpo e bem adornado, o pau coberto de musgo que ficava no
meio da lagoa já era um llaaríwa. De repente chegou a luz azul e as
duas crianças saíram desse llaaríwa.
- Mãe, essas são as crianças que eu quero pegar.
Logo em seguida, saiu o pessoal de trás do trocano. Quando já havia
muita gente por cima do llaaríwa para tocá-lo, o pessoal começou
também a cantar. Ali, onde sempre chegavam essas duas crianças, a
mulher seguiu as orientações do filho e deixou os cestos que ela usava
para transportar abacaxi e abiú. As crianças se aproximaram, mas não
comeram as poucas frutas que estavam nos cestos. Pegavam e olhavam,
mas só davam voltas por aí enquanto os adultos dançavam. Assim
passaram toda a noite, até que chegou a hora de amanhecer.
- Mãe, já vai amanhecer, nós temos que ser fortes. Você pega a menina
e eu pego o menino.
Como ainda apenas começava a clarear o dia, Pinta-mão tinha essa
tocha que ilumina escondida atrás de uma árvore. Tudo já estava pronto.
O pessoal estava bem compenetrado no baile, dançando e cantando.
Então ele pegou uma das crianças e sua mãe outra. Agarrou sua tocha e
correu em disparada pelo caminho que ele já tinha limpo. Atrás logo
veio o pessoal perseguindo-o:
- Pinta-mão, não nos roube essas crianças!
Eles vinham gritando atrás dele. Rapidamente ele chegou em casa e
trancou a porta bem firme. O pessoal ficou do lado de fora e tentavam
a todo custo romper a porta para poder entrar, mas não conseguiam.
Então, atrás da casa, disseram:
- Pinta-mão, se é certo que você vai criar nossas crianças, se você é
mesmo um homem muito inteligente, você vai ganhar. Se não for, você
os perderá.
- Sim, eu posso ganhar.
- Tudo bem. O primeiro canto que começamos, qual é?
- Bom, quando eu cheguei, eu logo escutei o canto de Pópoóhe, com
esse canto foi que vocês começaram a cantar.
- Cante, vamos ver se você vai ganhar.
As crianças que ele tinha raptado eram mantidas com puras canções,
elas não comiam, e por isso era importante que ele soubesse todos os
cantos.
- Foi nesse canto que você começou.

262
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

Pinta-mão cantou o primeiro canto, cantou o segundo. Cantou, cantou.


No terceiro canto, o dia já estava clareando. Então a criança ficou aí
com ele. Mas elas não comiam. Quando elas desmaiavam, ele as
despertava com pó de pimenta, fazendo-as cheirar. Era com canções
que ele as mantinha todo o tempo, desde o amanhecer até o anoitecer.
No cair da noite chegou então outra vez essa multidão de gente que o
havia desafiado. Mas ele continuava cantando, todos os cantos ele era
capaz de cantar na ordem correta.
- Pinta-mão, creio que sim você pode nos ganhar, vamos ver.
Até que chega o canto de Llaacomu284. Também no canto desse baile
Pinta-mão começou desde o canto principal até o canto final, no
amanhecer. Finalmente, ele ganhou. Foi assim que eles colocaram o
nome dessas crianças, porque ele já tinha ganho. Ele pensou, então, que
para que o pessoal que lhe havia cedido as crianças não saísse sem sua
retribuição, ele deveria dar uma recompensa:
- Eu tenho que dar um prêmio para que não pensem mal de mim.
Pinta-mão vivia apenas de seu trabalho com a coca e o tabaco, tendo
assim suficiente ambil e suficiente mambe. Sua mãe tinha suficiente
amendoim, sal vegetal, pó de pimenta e beiju. Ele então ofereceu isso
ao pessoal, deixando às margens de onde havia pego as crianças. Dessa
forma, eles já não mais o incomodaram. Ele dedicou-se assim a
trabalhar para fazer um baile próprio de nominação dessas crianças.
O nome da menina era ruim, pois significava algo como “uma cobra
que não tem pele, que perdeu seu couro”. Dessa forma, ela “fracassou”,
morreu, porque seu nome não lhe dava vida. O menino, ao contrário,
viveu. Ele cresceu e logo já era um homem.
Ele produzia muita comida, muita abundância. Com o tempo, já era
totalmente uma pessoa. Já não era como antes, quando parecia um
animal. Ele construiu sua maloca e teve filhos. Esse homem se
chamava Meicuaco. Teve como esposa a filha de um chefe do clã Arara.
Seu primeiro filho foi do clã Arara. Depois, ele teve outros, que eram
de seu clã, o clã Cobra-Grande.
Naquele tempo, todo mundo vivia em guerra com seus inimigos, e esse
homem, do clã Cobra-Grande, já tinha um pessoal muito numeroso.
Eles disputaram uma guerra e ganharam. Cheio de raiva por causa da
derrota, os inimigos gritaram para os do clã Cobra-Grande:
- Vocês dizem que são gente de Cobra-Grande, mas a mãe de vocês é
gente de Arara. É com o sangue daqueles que são gente de Arara que
vocês estão formando o pessoal do clã Cobra-Grande.
Assim, pela raiva daqueles que perderam a batalha, foi que ele [o chefe
neto do Pinta-Mão, filho da criança capturada] ficou conhecido como
sendo gente do clã Arara.
Acabamos de conhecer a história de Pinta-mão, um homem que, vendo-se solteiro,
sem esposa ou descendência, resolve raptar duas crianças sobre as quais, durante boa
parte da narrativa, muito pouco sabemos. Com a ajuda de sua mãe, ele leva as crianças
para casa, nutrindo-as não com alimentos, mas com canções – e, no fim das contas, é
precisamente sua habilidade em memorizar canções que garante que as crianças raptadas
lhe sejam definitivamente cedidas. Pinta-mão, mesmo vencendo a aposta feita para ter

284
Outra baile de transmissão de nomes no qual o próprio narrador foi titulado em sua infância.

263
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

direito à adoção de seus novos filhos, resolve retribuir a doação das crianças com coca,
tabaco e comida, o que finalmente quita a dívida de seu roubo inicial.

Contudo, é apenas após um ritual Llaacomu que essas crianças se estabelecem


definitivamente como filhos de Pinta-Mão. Dito de outro modo, é somente a partir da
nominação ritual que elas se tornam completa e plenamente humanas. O nome da menina,
porém, mostra-se inadequado, o que a faz morrer. Confirma-se assim a suspeita que surge,
ainda no início da narrativa, a respeito da instabilidade de seus corpos. Provenientes de
um espaço transformacional (o lago do buritizal) onde os animais se fazem humanos à
noite, entendemos que até o momento em que são nominadas por sua família adotiva, as
crianças (ao serem alimentadas com canções) não compartilham com seus novos parentes
um dos diacríticos mais importantes para a constituição das pessoas “verdadeiras”: a
alimentação adequada (Londoño Sulkin, 2004) – fato que fica evidente, aliás, na recusa
de ambos em comer as frutas trazidas pela mãe de Pinta-Mão.

Temos aqui temas recorrentes desse trabalho, a saber: a captura, a negociação e a


adoção. De certa forma, o mito descreve uma situação bastante parecida àquela que
encontramos durante o século XX: Pinta-mão, um chefe poderoso, vendo-se sem meios
de garantir a continuidade de sua descendência, resolve adotar as duas crianças que
encontra no lago do buritizal, valendo-se para isso da captura, estratégia comum na época
anterior ao Tempo da Abundância, marcada pela guerra e pela antropofagia. Entretanto,
ao entrar em contato com os familiares das crianças, que o perseguem até sua casa, Pinta-
mão termina por negociá-las, inicialmente por canções e, por fim, em troca de alimentos
rituais (meio encontrado também para que os habitantes do lago não exigissem a
devolução das duas criaturas285). Ele vale-se, assim, de um tipo de negociação parecido
àquele operante ao longo dos séculos XVIII e XIX, quando os chefes abriam mão de seus
órfãos em troca de produtos estrangeiros. Por fim, ao nominar as crianças em um baile
de transmissão de nomes, Pinta-mão consolida o pertencimento das mesmas a seu clã,
efetivando um processo de adoção cerimonial que é, ademais, bastante similar àquele
operado pelos chefes de clã que encontravam dificuldades em garantir a perenidade de
sua parentela no pós-caucho.

Como vimos, a adoção das crianças fracassa em parte, pois o nome dado à menina
acaba ocasionando sua morte. O menino, ao contrário, recebe o nome Meicuaco e herda

285
Suponho aqui que os que reivindicam as crianças sejam seus familiares, mesmo que o mito não faça
referência a isso.

264
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

a posição de seu pai adotivo, tornando-se o chefe do clã Cobra-Grande. Casa-se, então,
com uma mulher do clã Arara e, por motivos que desconhecemos, resolve dar a seu
primogênito um nome do clã de sua mulher, mas não repete a mesma operação com os
filhos subsequentes. Ainda que não seja comum, a nominação de um filho primogênito
no clã materno não é algo fora do leque de possibilidades bora, como vimos ser o caso da
parentela do clã Amanhecer formada no pós-caucho.

Mesmo sendo nominado com um nome do clã Arara, o filho primogênito de


Meicuaco (portanto, neto primogênito de Pinta-mão) torna-se o chefe do clã Cobra-
Grande e, nessa posição, lidera seu pessoal em diversas incursões guerreiras. O relato
termina afirmando que foi em uma dessas incursões que o pessoal da Cobra-Grande,
tendo vencido um grupo inimigo, é acusado de pertencer, na verdade, ao clã Arara, em
razão da origem do nome de seu chefe. Essa acusação populariza-se e, por conta de sua
difusão, terminaria fazendo com que parte do clã Cobra-Grande seja conhecido, dali em
diante, como clã Arara.

Santiago, o abuelo que me forneceu esse relato, leva, em Bora, o mesmo nome do
filho primogênito de Pinta-mão, Meicuaco. Com aproximadamente oitenta anos nos dias
de hoje, ele foi nominado pelos homens de seu clã em um ritual Llaacomu quando era
pequeno e vivia nas regiões de cabeceira dos afluentes da margem esquerda do rio
Igaraparaná. Tendo sido levado com outras crianças para o internato de La Chorrera nos
anos 1940, ele abandonou em pouco tempo a instituição educativa, instalando-se com sua
família nas margens do Igaraparaná – mais precisamente, em Providencia Vieja, antigo
porto de embarque de caucho da Casa Arana. Com a morte de seu pai, Santiago assumiu
a chefia de seu clã, tornando-se também o chefe de sua maloca.

Seus dois irmãos mais novos, porém, casaram-se e construíram suas casas
afastadas dali, em regiões que, embora não estejam a distâncias muito expressivas, são de
difícil acesso terrestre por conta da existência de pequenos igarapés no caminho. O
principal argumento acionado pelos irmãos para justificar esse afastamento é o de que
eles não se reconhecem como membros do clã Cobra-Grande, mas sim do clã Arara.
Igualmente, discordam da narrativa mítica apresentada por Santiago para fundamentar a
compatibilidade entre essas duas linhas de descendência.

Nas últimas décadas, o clã Cobra-Grande consolidou-se como uma parentela


independente formada inicialmente por apenas uma família nuclear. Santiago, enquanto

265
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

chefe do clã Cobra-Grande, nominou seus filhos primogênitos no ritual Llaacomu286. Ele
visava, assim, constituir uma nova descendência clânica com nomes prestigiosos, mas
seus esforços foram frustrados. Seus dois filhos primogênitos (um homem e uma mulher)
não se casaram nas comunidades próximas e terminaram indo viver nas cidades de Bogotá
e Leticia287. A união com não-indígenas e os filhos advindos dessas relações fizeram com
que eles nunca mais regressassem ao Igaraparaná, passando a viver permanentemente nas
áreas urbanas e desligando-se por completo do legado ritual que lhes havia sido
transmitido. A única filha de Santiago que permaneceu no Igaraparaná casou-se, como
veremos no próximo item, com um homem do clã Amanhecer, gerando filhos que foram,
tal qual costuma acontecer, filiados ao clã paterno. Sua esposa, já em idade avançada e
com problemas de saúde, faleceu há poucos meses em um abrigo para idosos em Leticia.

Chegar em sua maloca, onde ele se mantém na maior parte das vezes sozinho
preparando sua coca ou realizando pequenos reparos em seus artefatos de pesca, é uma
forma de atestar visualmente a interdependência existente entre maloca, vida cotidiana,
política e vida ritual: sem contar com a ajuda de sua mulher ou de seus filhos e sem ter
conseguido realizar seu último baile de transmissão de nomes, cada banda de palha
trançada que cai do telhado da maloca e não é resposto é como a materialização do
processo em curso de dissolução de seu clã e de sua herança ritual.

5.4.1. Breves observações sobre a forma bora de pensar e fazer história

Acompanhar o desenvolvimento desse caso me fez pensar, dentre outras coisas,


sobre ocasiões em que a produção de novos laços de parentesco no pós-caucho foi apenas
parcialmente eficaz ou mesmo totalmente infecunda. Podemos imaginar que, assim como
aconteceu com o clã Cobra-Grande, cujo movimento de separar-se do clã Arara não
acarretou a consolidação de uma parentela numerosa, é possível que tenha havido
episódios no passado nos quais o esforço empreendido para a manutenção ou a
recuperação de clãs não tenha sido bem-sucedido. De fato, meu levantamento

286
Ao contrário do ritual Llaaríwa, não existe a oposição entre feios e bonitos nesse ritual, pois apenas um
casal de crianças recebe nomes no curso desses bailes.
287
Mesmo que seu filho primogênito tivesse optado por seguir no Igaraparaná, é bastante provável que ele
encontrasse dificuldades em prosseguir com sua herança ritual em razão da ausência de outras malocas que
possuam a prerrogativa ritual de Llaacomu. Como veremos no capítulo seguinte, a realização dos bailes de
nominação depende diretamente de um parceiro cerimonial que possua a mesma prerrogativa que o dono
da maloca executante.

266
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

genealógico mostra a existência de pessoas que, tendo sobrevivido ao período caucheiro


e participado do processo de reorganização social levado a cabo a partir dos anos 1930,
nunca se casaram ou constituíram descendência. Quando perguntava aos Bora qual
opinião tinham acerca da existência de pessoas sem cônjuges e filhos, eles me diziam
apenas que seus antigos parentes lhes contavam que houve no passado quem tenha
deliberadamente escolhido esse caminho, dado o cenário de destruição e desesperança
que se apresentava.

Com isso desejo salientar que a história que tento eu mesma narrar ao longo desta
tese me foi contada por aqueles cujos antepassados, após a hecatombe caucheira, viram
na “reorganização social” o caminho mais interessante, empenhando-se assim em
viabilizar, dentre outros, a manutenção dos clãs e da vida ritual. Inevitavelmente, oblitera-
se assim a voz e a história daqueles que, ao contrário, acharam por bem por fim à sua
descendência ou mesmo não foram bem-sucedidos em suas tentativas de preservar seus
clãs e suas heranças rituais.

Aprendi com os Bora, contudo, a não olhar com pesar para situações como a do
progressivo enfraquecimento da maloca do clã Cobra-Grande. Em parte, o
desaparecimento e o surgimento de malocas são processos vividos pelos Bora desde
muito antes da atuação dos caucheiros peruanos. Mortes de chefes, incursões guerreiras,
acusações de feitiçaria, migrações: todos esses são fatores que desde muito tempo
motivam a dissolução e a constituição das malocas bora. Por outro lado, aprendi também,
a partir da análise do processo de “reorganização social” no pós-caucho, que até o
momento quase nenhuma contingência foi tida como incontornável dentro do espectro de
possibilidades bora, uma vez que foram inúmeras as estratégias adotadas para a
manutenção dos traços que lhes são caros à vida social, política e ritual – mesmo quando
o cenário era desolador.

Obviamente não desejo, a partir de afirmações desse tipo, menosprezar a


brutalidade da atuação caucheira na região e suas nefastas consequências, ainda hoje
presentes e manifestas entre os Povos do Centro. Minha opção em não abordar
exaustivamente os eventos históricos tratados na literatura sobre a região revela, na
verdade, uma escolha de outra natureza. Gow afirma que, entre os povos nativos do baixo
Urubamba (Amazônia peruana), a cultura é, ao mesmo tempo, prática política e
engajamento com a história. Porém, a história narrada por esses povos nativos seria
diferente daquela que está na mente dos que os observam desde o exterior. Em suma,

267
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

enquanto um observador externo normalmente volta suas atenções para a exploração


colonial da região através do tempo, a história contada pelos povos nativos do baixo
Urubamba sobre si mesmos é a história do parentesco:

Native people’s culture is their political practice, their concrete


engagement with history. The history narrated by native people is the
history of kinship. It is very far from being simply the victims’ accounts
of colonialism and exploitation, and is quite different from our
outsiders’ vision of the history of the Bajo Urubamba. (Gow, 1991:
286).

Certa vez, durante uma conversa no mambeadero em que buscávamos encaminhar


um par de decisões sobre o Fonds Guyot, alguns abuelos Bora me perguntaram sobre o
andamento de minha pesquisa de doutorado e sobre o tema central da tese, uma vez que
lhes preocupava o fato de que, ao envolver-me intensamente com demandas das
comunidades, eu poderia prejudicar o desenvolvimento de minha própria investigação.
Expliquei-lhes então que tais atividades eram complementares e que minha ideia mais
específica era aprofundar-me na descrição e análise do processo de “reorganização
social” que se seguiu à atuação da Casa Arana. Responderam, não sem certa decepção,
que muitos pesquisadores, funcionários do Estado e até mesmo jornalistas já haviam
investigado esse assunto. Logo, puseram-se a fazer um breve apanhado dos eventos
principais que o circunscreviam, como a chegada dos caucheiros peruanos, os métodos
de tortura utilizados pelos empregados da companhia, a denúncia de Roger Casement e a
migração para o Peru.

Respondi-lhes, então, que eu havia tido acesso a uma série de trabalhos, relatórios,
documentários e reportagens sobre as atividades da Casa Arana no Caquetá-Putumayo.
Porém, não estava interessada em contar mais uma vez a história de como os Bora foram
torturados, mortos e desestruturados por conta desses eventos. Sem desvalorizar o
empenho dos que me haviam antecedido, disse-lhes que me parecia haver ainda uma
questão negligenciada na maioria desses trabalhos. Afinal de contas, de que maneira os
Povos do Centro haviam conseguido não apenas sobreviver, mas também (para usar uma
expressão nativa) levantar novamente sua vida ritual e política a partir de uma reflexão
nativa que colocava em xeque determinadas práticas, ao mesmo tempo em que buscava
dar continuidade a outras?

Rapidamente, os abuelos captaram minha inquietude e reagiram ao meu


questionamento de forma bastante mais positiva, salientando o fato de que essa era
realmente uma perspectiva preterida na maioria dos documentos elaborados por aqueles

268
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

que, vindos do exterior, desejavam investigar sobre a história recente dos Bora.
Entretanto, e esse é um ponto muito relevante, tal questionamento nunca esteve ausente
das mentes e dos diálogos bora, de tal maneira que os abuelos passaram, naquele
momento, a narrar o que sucedeu à saída dos empregados da Casa Arana da região. Tais
acontecimentos me foram contados a partir das dinâmicas de estabelecimento e ruptura
de relações de parentesco e alianças rituais, de modo que, mais que uma mera sucessão
de acontecimentos históricos cronologicamente organizados, os marcadores que
conduziam os pontos de clivagem das narrativas eram as transferências clânicas, as
adoções cerimoniais, os arranjos de casamento, a poligamia de Kumimarima, etc.

Essa reação dos abuelos Bora vai ao encontro da ideia, também apresentada por
Gow, de que o parentesco não é uma estrutura atemporal, mas um conjunto de relações
entre pessoas vivas produzido no tempo. Se o holocausto caucheiro é para historiadores,
antropólogos, jornalistas (e também para os próprios indígenas) o grande evento do
começo do século XX no Caquetá-Putumayo, as torções, negociações, permanências e
ratificações das relações de parentesco parecem ser, para os Bora, a “história” que veio a
seguir. Atravessados pela repartição desses períodos entre as diversas bonanzas e Tempos
que busquei apresentar na Parte I deste trabalho, os caminhos da história bora não
parecem, afinal, tão diferentes daqueles dos povos no baixo Urubamba. Se à primeira
vista poderíamos conjecturar que os dois casos se afastam no que diz respeito às maneiras
pelas quais essas populações lidaram com as investidas coloniais, vemos, contudo, que
tanto os Bora quanto os povos indígenas do baixo Urubamba narram e vivem sua história
recente como relações de parentesco produzidas incessantemente no curso do tempo.

Vimos, nesse tópico, que em algumas ocasiões viver essas relações no pós-caucho
significou até mesmo recorrer ao corpus de conhecimento mítico de um clã. Porém, numa
situação de indisponibilidade de cônjuges e a fim de que a vida social pudesse ser
experimentada da maneira tida pelos Bora como “moralmente correta” (Londoño Sulkin,
2004), foi necessário agir não apenas incorporando ou transferindo pessoas entre
parentelas distintas, mas também empregando certa complacência em relação às regras e
preferências nas escolhas matrimoniais.

269
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

5.5. Casamentos atuais

Antes de mais nada, retomemos brevemente um ponto explorado no capítulo 3.


Vimos ali que Karadimas (2000b) classifica a terminologia de parentesco dos Miraña no
médio Caquetá e, por extensão, dos Povos do Centro, como esquimó-havaiana. Vimos,
ainda, que algumas características do funcionamento das relações de parentesco nessa
região mostram-se relevantes, como o reconhecimento bilateral do parentesco, a
indistinção entre parentes cruzados e paralelos, a não extensão dos termos da família
nuclear (pais, irmãos, filhos) para outros parentes das gerações correspondentes (tios,
primos e sobrinhos) e a ausência de regras positivas de casamento.

Karadimas, contudo, baseado nas impressões iniciais de Gasché (1977) e na


análise de seus próprios dados de campo, defende que os casamentos, ainda que não sejam
prescritivos, observam certa tendência em privilegiar uniões entre pessoas cujos pais se
reconheçam como primos em “segundo grau” – isto é, cuja relação de germanidade
original remete à G+2 desde o ponto de vista dos pais dos cônjuges. Assim, a distante
relação entre os futuros cônjuges garantiria que o lastro do parentesco entre eles fosse
suficientemente débil para que a união não fosse considerada incestuosa, instaurando-se
assim o que Gasché denominou como “ilusão exogâmica”. Tais atributos fazem, ainda
segundo Karadimas, com que os sistemas do Caquetá-Putumayo possam ser alinhados
àqueles denominados semi-complexos, como os de tipo Crow-Omaha (Lévi-Strauss,
1949: xxxix; Héritier, 1981), para os quais as análises estatísticas dos casamentos
poderiam revelar certa recorrência nas escolhas matrimoniais – não observada, por sua
vez, em sistemas tipicamente complexos.

Tive a oportunidade de debater algumas vezes essas ideias e a hipótese de Gasché


sobre a “ilusão exogâmica” com meus interlocutores Bora. Alguns deles se animaram
com a possibilidade de imprimir no papel, por meio das convenções gráficas do
levantamento genealógico, as relações entre seus antepassados. Já mencionei que essa era
uma maneira, segundo eles, de fazer com que os jovens conheçam quem são seus parentes
e “não casem errado”. As situações que vivi cotidianamente e o discurso dos Bora,
contudo, indicam que, apesar do temor em “casar-se errado”, é preferível uma união entre
dois Boras do que entre pessoas de outros povos, mesmo quando a proximidade entre os

270
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

cônjuges é objeto de crítica moderada288. Não obstante, os casamentos interétnicos são


muitíssimo comuns289.

Os Bora afirmam que, no pós-caucho, a indisponibilidade de cônjuges casáveis


dentro do grupo de origem e a convivência de crianças e jovens de diferentes etnias nas
instituições educativas de La Chorrera foram fatores decisivos para que novas uniões
surgissem. No geral, a maioria dos casamentos entre os Bora e outros Povos do Centro
dá-se com pessoas Murui-Muina. Várias foram as vezes em que presenciei situações nas
quais a expressiva presença de mulheres dessa etnia era desaprovada por homens e
mulheres bora (muito embora as críticas não fossem, na grande maioria das vezes,
individualizadas). É interessante notar que, em todas essas ocasiões, censurava-se a
presença de mulheres de outros grupos nas comunidades bora, tendo em vista que a
residência na região é virilocal e apenas muito dificilmente um homem deixa sua maloca
para viver junto à família de sua esposa.

O mesmo não acontece quando observamos mais de perto quatro uniões existentes
na região onde esse trabalho de desenvolveu. Nestas, enquanto um dos cônjuges é nativo
do rio Igaraparaná ou Cahuinari, o outro é um “Bora peruano”, expressão normalmente
empregada para se fazer referência àqueles que foram levados pelos irmãos Loayza para
o Peru na década de 1930. Trata-se, na totalidade dos casos, de homens que nasceram em
território peruano, mas posteriormente imigraram e se estabeleceram no Igaraparaná.
Como me disseram, todos eles viram na imigração durante diferentes bonanzas que
conhecemos na Parte I uma oportunidade de escapar do sistema de dívidas vigente no
Peru. Ainda que vivam todos “anexados” ou vinculados às malocas dos parentes paternos
de suas mulheres, reconhece-se seu pertencimento a um clã e a uma maloca bora alhures,
o que finalmente os coloca numa posição de orfandade menos extrema do que aquela
experimentada pelos homens de outras etnias que vivem entre os Bora. Assim, a diferença
entre casamentos com pessoas de outros povos e com “Boras peruanos” evidencia algo

288
Ademais, segundo a percepção bora, uma das consequências dos casamentos interétnicos foi o
progressivo enfraquecimento do idioma. Aliado à investida dos padres e freiras de proibição da língua
materna nos ambientes educacionais, a comunicação em espanhol entre os casais fez com que, com o passar
do tempo, o idioma nacional fosse utilizado de forma generalizada e cotidiana.
289
Apesar de possuir um levantamento quantitativo dos casamentos na região dos três cabildos bora onde
este trabalho se desenvolveu, meus dados são incompletos, haja visto que não cobrem o caso de mulheres
bora que saíram de seu grupo de origem e passaram a viver junto à maloca de seus maridos não-Bora. Dito
isso, nos dados que disponho para o conjunto de família com as quais trabalhei, enquanto há 16 casamentos
em que ambos os cônjuges são Bora, existem outras 25 uniões interétnicas nas quais um dos cônjuges é
Bora, mas o outro não (mais precisamente, Murui-Muina: 19 casamentos; Ocaina: 1 casamento; Muinane:
1 casamento; Mestizo: 1 casamento; Tikuna: 1 casamento; Filiação desconhecida: 2 casamentos).

271
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

que já poderíamos supor com base no material apresentado até aqui: um homem
estrangeiro dificilmente está disposto a contrariar a regra virilocal e viver entre os
parentes de sua mulher porque, no limite, ele será tratado, longe de sua maloca de origem
e de qualquer parente consanguíneo, como um órfão.

Entretanto, é importante relembrar que essas uniões entre Boras com pessoas de
outros povos ou mesmo com “Boras peruanos”, apesar de serem muito frequentes, não
são as mais desejadas. Em realidade, elas eram em muito menor número no passado,
quando a guerra interétnica e a expressiva densidade demográfica eram fatores que
encorajavam os casamentos internos. Mesmo assim, ainda hoje as uniões entre duas
pessoas Bora são sempre lembradas como “corretas” ou “boas”. A seguir, apresento seis
desses casamentos, dividindo-os em dois grupos. Considero que esses são exemplos
significativos, pois nos ajudam a entender que, também no âmbito dos matrimônios,
foram necessários arranjos para que a vida pudesse seguir seu curso no pós-caucho.

5.5.1. Casamentos Bora nos anos 1970-1980

11. 12.

272
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

13.

Diagramas 11, 12 e 13 – Casamentos Bora anos 1970-1980

Selecionei, nos diagramas acima, três casamentos que ocorreram entre o fim dos
anos 1970 e o começo dos anos 1980. Notamos que todas as uniões têm como ponto de
partida as figuras de Kumimarima e Dujdulli, seu filho primogênito. No primeiro
(Diagrama 11) está representada a união do neto primogênito [12] de Dujdulli, herdeiro
de sua carrera ritual. Ainda na juventude, seu casamento com a filha [13] do chefe do clã
Cobra-Grande, mencionado no item anterior, foi arranjado por seus pais, sendo sua futura
esposa sua prima em “segundo grau” (FFZSD). Além disso, a mulher em questão, sendo
filha de Santiago (chefe cujos caminhos de sua filiação ao clã Cobra-Grande conhecemos
há pouco), é tida por alguns como pertencente, na verdade, ao clã Arara (o mesmo de seu
avô paterno). Nessa chave de leitura, incidiria sobre essa união, portanto, uma dupla
interdição: além de primos, os cônjuges estariam impedidos de contrair matrimônio
também porque a mulher pertence ao clã da avó materna de [12], seu marido.

Os pais dos jovens foram à época bastante criticados por aqueles que viam, nesse
casamento, uma união incestuosa. Em alguma medida, o casamento foi concretizado
apenas após o nascimento e crescimento dos filhos do casal, como vimos ter sido também
o caso da união do filho do chefe do clã Gavião (ver supra). No caso em questão,
explicaram-me que apesar dos pais saberem dos impedimentos que incidiam sobre o
matrimônio de seus filhos, viram com bons olhos a possibilidade de associar duas
linhagens de clã que possuíam carreras cerimoniais prestigiosas (Llaaríwa no caso do

273
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

clã Amanhecer, Llaacomu no caso do clã Cobra-Grande290). A relativa condescendência


em relação às regras restritivas de casamento foi influenciada, portanto, pela posição de
prestígio dos pais do casal e pela máxima de que é ideal que pessoas prestigiosas, na
medida do possível, se casem entre si.

Os dois outros matrimônios mostrados acima apresentam uma tendência que será
encontrada também nos casamentos mais contemporâneos que veremos a seguir. A saber,
a união entre pessoas que formalmente se reconhecem como tios e sobrinhas
classificatórios. Assim, no segundo diagrama (Diagrama 12), vemos que [11], a esposa
de [8], é, para esse último, FZSD. Se o filho da irmã de seu pai é, indubitavelmente, seu
primo “em primeiro grau”, a filha desse será, para Ego, sua sobrinha classificatória. O
mesmo vale para a união subsequente (Diagrama 13), na qual [10] casa-se com [11], ou
MBSD. Vemos, assim, como entre os anos 1970 e 1980 os Bora consolidaram casamentos
contrários às interdições matrimoniais abertamente explicitadas por eles. Em relação às
uniões representadas nos dois últimos diagramas, é necessário fazer algumas observações
finais.

No primeiro caso (Diagrama 12), trata-se do casamento do homem que foi


transferido ainda criança para o clã Gavião e cuja história conhecemos anteriormente
nesse capítulo. Tendo saído por vários anos de sua comunidade para trabalhar em Leticia
e em Bogotá, ele regressou ao Igaraparaná e casou-se com uma mulher do clã Sal Vegetal.
Ainda que essa união tenha sido contestada no começo, acabou por ser aceita com o passar
do tempo291. O mesmo aconteceu no último casamento (Diagrama 13), em que a esposa
de [10] é irmã do atual chefe do clã Amanhecer – quem, por sua vez, tem uma maloca a
cerca de quinze minutos de caminhada do assentamento de seu marido, que pertence ao
clã Arara292. Observei que, no cotidiano, que a relação de cunhadio entre esse homem do
clã Arara [10] e o chefe do clã Amanhecer (irmão da esposa) sobrepõe-se à relação de
consanguinidade preexistente entre eles. Assim, muito embora o chefe do clã Amanhecer
pudesse chamá-lo pelo termos naáni ou tío, ambos se tratam por áatyo ou cuñado.

290
Embora a filha não tenha sido nominada no baile junto a seus irmãos, o mero pertencimento a essa
linhagem faz dela uma pessoa mais prestigiosa do que aquelas filiadas a uma linhagem menor.
291
Foram-me citados como fatores que atenuaram as críticas a distância geográfica entre suas comunidades
de origem (Providencia e Yarumo), a consequente falta de convivência prévia entre os dois e, ainda, o fato
de que Dujdulli e Pascoala, a partir de quem a consanguinidade entre eles é traçada, são irmãos apenas por
via paterna.
292
Como vimos anteriormente, este homem do clã Arara é irmão do chefe do clã Cobra-Grande, com quem
ele rompeu ao reivindicar para si outro pertencimento clânico (ver item anterior).

274
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

Casamentos entre tios e sobrinhas classificatórias seguiram acontecendo na geração


seguinte, mas a uma distância genealógica maior. Vejamos.

5.5.2. Casamentos Bora nos anos 2000

14. 15.

16.

Diagramas 14, 15 e 16 – Casamentos Bora nos anos 2000

275
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

Os casamentos representados nos diagramas anteriores aconteceram no começo


dos anos 2000 e, portanto, numa época em que o impacto demográfico do caucho já não
se sentia como nas gerações passadas. Novamente, percebemos que o parentesco entre os
cônjuges é traçado a partir de Kumimarima enquanto ancestral comum. Trata-se, em
todos os casos, de uniões nas quais os homens reconhecem-se como primos em “segundo
grau” do pai ou da mãe de suas esposas. Esses últimas, portanto, seriam suas sobrinhas
classificatórias. Porém, em contraste com os casamentos ocorridos nos anos 1970-1980,
os consumados nos anos 2000 não são alvo de críticas ou questionamentos, pois segundo
me disseram, tratam-se de “primos muito distantes”.

Essa é uma informação relevante. Em todos os casos, apesar de haver certa


diferença de idade entre os cônjuges, é possível classificá-los na mesma faixa geracional.
Além disso, como já entendemos, a relação entre esses tios e sobrinhas classificatórias,
ao serem derivadas de um laço de germanidade que remete a G+3 (do ponto de vista da
esposa), encontra-se no limite último do reconhecimento do parentesco. Tais elementos
parecem ser suficientes para que os Bora considerem esse como um casamento correto
ou desejável, de modo que a relação avuncular existente entre os cônjuges é conveniente
e contextualmente lida como uma relação entre “primos muito distantes”293.

Se há alguns sistemas amazônicos (especialmente aqueles de terminologia


dravidiana) nos quais a incidência de regimes avunculares de casamento expressa-se tanto
nos termos de parentesco quanto nas práticas matrimoniais (por exemplo, Rivière, 1969;
Fausto, 1991), vimos que entre os Bora uniões desse tipo vão contra a máxima de que
“não é permitido casar-se com parentes”. Por outro lado, é saliente a percepção de que,
principalmente se observamos os casamentos mais recentes (anos 2000), essas uniões
encontram-se o mais próximo possível da preferência matrimonial que conhecemos no
capítulo 3: a saber, aquela a partir da qual os pais dos cônjuges reconhecem-se como
primos “em segundo grau”. Num universo demográfico no qual a redução populacional
atingiu níveis catastróficos, é notável que os Bora tenham se esforçado não apenas em

293
Notamos, então, que a maior distância geracional observada nos casamentos mais atuais é decisiva para
que eles sejam mais aceitos entre os Bora. Contudo, é relevante que mesmo os casamentos ocorridos nas
décadas de 1970-1980 são reiteradamente apontados, por meus interlocutores, como matrimônios mais
apropriados do que aqueles contraídos com pessoas de outros povos do Caquetá-Putumayo. Ainda que
nesses casos a relação entre tio e sobrinha classificatória não seja suplantada por uma afirmação de que os
cônjuges são “primos muito distantes”, percebi que essas uniões não são marcadas pela relação avuncular
existente entre eles (refiro-me aqui especificamente às uniões apresentadas nos Diagramas 12 e 13). Na
verdade, como mencionei, é bem comum que tal relação seja constantemente obliterada por meio do uso
de termos de parentesco que assinalam a nova relação de afinidade estabelecida.

276
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

“emular” uniões mais desejáveis, mas também que interpretem esses casamentos como
desejáveis ou corretos, apesar de suas interdições.

Poderíamos analisar outras uniões entre cônjuges Bora no Igaraparaná, mas creio
que os dados apresentados são suficientes para sustentar a ideia de que, na medida do
possível, os casamentos no pós-caucho buscaram, apesar e por meio da atenuação das
proibições matrimoniais, manter o ideal de que o fundamental é casar-se a uma distância
ótima que se encontra a meio caminho entre o círculo dos parentes consanguíneos e os
não-parentes294. Espero, com isso, contribuir com a discussão ainda incipiente a respeito
dos sistemas de parentesco do Caquetá-Putumayo, uma vez que, a meu ver, o caso Bora
dialoga diretamente com os dados e os argumentos de Karadimas (2000b) e Gasché
(1977), tal como os discutimos no capítulo 3.

Seria possível, ainda, argumentar que toda regra é, no limite, uma orientação a ser
transgredida – algo que, ademais, teria se tornado uma opção incontornável dada a
situação demográfica dos Bora no pós-caucho. Contra um argumento da irrelevância
dessas práticas matrimoniais, é preciso notar que os Bora afirmam que os casamentos que
apresentei há pouco são mais “corretos” que aqueles contraídos com pessoas de outros
povos. Assim, se mais vale burlar ou relativizar a norma que casar-se com uma pessoa
completamente exterior ao círculo do parentesco, penso que procede a ideia de que a
exogamia entre os Povos do Centro é uma ilusão (Gasché, idem). Mais bem, parece que
a regra forte, aqui, é tentar encontrar um cônjuge disponível dentro de seu próprio povo,
mesmo que isso signifique abrir determinadas exceções. Dessa maneira, quando os Bora
dizem que a única regra matrimonial é a de que eles devem se casar com não-parentes,
entendemos que a informação não-marcada nessa sentença é de que há um cálculo de
“boa distância” na qual o cônjuge ideal é encontrado imediatamente após o limite do
reconhecimento do parentesco (Héritier, 1981). No pós-caucho, muitas das vezes os
cônjuges disponíveis encontravam-se longe demais, pois eram Murui-Muina, Ocainas,
Muinanes, etc. Embora o número de uniões multiétnicas tenha aumentado
consideravelmente nesse período, vimos também que os casamentos entre pessoas cujas
relações de parentesco seriam restritivas para que a união acontecesse tornaram-se

294
Suspeito ainda que boa parte dos casamentos entre os Bora e os Murui-Muina possa ser lido a partir da
mesma lógica de casamentos entre primos distantes, uma vez que já há algumas gerações são praticados
matrimônios interétnicos, fazendo assim com que cada nova união tenha gerado uma combinação singular
de alianças possíveis. Contudo, tal intuição depende de um levantamento genealógico suplementar que não
pôde ser realizado durante o trabalho de campo feito para a elaboração deste trabalho.

277
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

possíveis e desejáveis graças à aliança entre casais cujos cônjuges encontravam-se


formalmente na posição de tios e sobrinhas classificatórias, sendo a união tão menos
problemática quanto mais distante fosse a relação de germanidade original que os
classifica como parentes.

A constante necessidade de criar uma faixa de pessoas casáveis dentro do próprio


grupo fez parte dos diversos dilemas que se repetiram intensamente no pós-caucho e cujas
respostas foram igualmente múltiplas. Dirijo-me então ao último tópico desse capítulo,
em que tentarei apresentar dados sobre um certo tipo de adoção que já conhecemos na
discussão do capítulo 4. Porém, desejo demonstrar agora como e em que medida ela pode
ser lida como uma expressão da continuidade do movimento iniciado no começo do
século XX por Kumimarima e outros abuelos.

5.6. Adotando netos, adotando órfãos

Ao conhecer mais de perto as famílias que compõem os três cabildos bora no


Igaraparaná, percebi que havia um número significativo de netos vivendo com seus avós
maternos295. Inicialmente essa condição não me despertou muito interesse ou curiosidade,
pois mesmo em contextos urbanos e não-indígenas são comuns os casos em que netos são
criados pelos avós. Com o passar do tempo, todavia, pude notar que o estabelecimento
dessas relações não tinha a ver com a impossibilidade por parte da mãe de assumir
autonomamente a criação de seus filhos. Ao contrário, percebi que as genitoras muitas
vezes apartavam-se deles a contragosto, seguindo as orientações de seus pais. Entendi,
então, que na maioria dos casos essas crianças eram filhas de uniões efêmeras de suas
mães, as quais, ao estabelecerem novas e estáveis relações com outros homens que não
os pais de seus primeiros filhos, terminavam por entregá-los a seus próprios genitores. O
diagrama a seguir, baseado em uma situação genérica, representa graficamente essa
relação.

295
Esse é um tipo de relação também analisado por Maizza (2014), que relata a proliferação de crianças
adotadas por seus parentes maternos. Nesses casos, a autora argumenta que é comum que as mães das
crianças, não tendo contraído novo matrimônio, vivam na casa de seus pais (:500).

278
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

Diagrama 17 – Adoção de netos pelos avós maternos

Nesse caso típico, as cores indicam os diferentes pertencimentos clânicos de cada


uma das pessoas. Vemos, assim, que uma vez que a união entre [3] e [4] foi rompida, os
filhos desse casamento ([6] e [7]) não herdaram o clã de seu pai, mas sim de sua mãe –
ou, mais precisamente, de seu avô materno, [1]. Ao casar-se novamente com o homem
[5], a mulher [4] tem outros dois filhos ([8] e [9]) que, esses sim, são afiliados ao clã de
seu marido. Desejo que voltemos nossas atenções, nesse tópico, para [6] e [7] e para o
processo pelo qual, por meio da adoção, eles são incorporados ao clã de seu avô materno.

A situação genérica em que esse tipo de adoção ocorre é aquela na qual a mulher,
mudando-se para a maloca do novo marido, deixa os filhos da primeira união com seu
pai, de tal modo que as crianças são por ele adotadas e passam a pertencer ao clã de seu
avô materno. Ao longo de meu trabalho de campo vivi junto a um chefe que havia adotado
sua neta primogênita, fruto do relacionamento de sua filha mais velha com um
comerciante não-indígena da região. Como mencionei no capítulo 4, sempre que
perguntei a casais que haviam adotado netos o motivo dessa decisão, eles me responderam
que era para contar com alguém que pudesse acompanhar-lhes e ajudar-lhes nos afazeres
domésticos e na roça. No caso do chefe que me acolheu, a resposta não foi diferente:
“para que nos acompanhe”, “para que não trabalhemos sós”. Diziam-me, ainda, que
resolveram criar a neta porque muitas vezes os padrastos podem comportar-se
inapropriadamente com seus enteados, não os tratando tão bem quanto a seus filhos
legítimos.

A adoção da menina não foi uma iniciativa que partiu de sua genitora, a qual me
relatou ter se entristecido muito quando seu pai lhe disse que, ao se casar com seu novo
marido, ela deveria deixar a filha para trás. Apesar de não ser a sua vontade, ela concordou

279
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

com o pai e hoje vive em uma comunidade distante com seu marido e os dois filhos
gerados nessa nova união. Mesmo não convivendo no mesmo assentamento, há um dado
importante, observado também nas outras relações de adoção desse tipo que conheci
(mesmo naquelas em que o pai da criança é indígena e vive por perto): a menina seguiu
chamando sua genitora e sua avó materna pelos termos que utilizava antes da adoção
(assim, M ¹ MM), mas passou a dirigir-se ao avô materno como papa ou lliío. Assim,
mesmo quando alguém lhe perguntava “onde está o seu avô?”, ela respondia algo como
“meu pai está ali” (logo, MF = F).

Não são incomuns, no mundo ameríndio e alhures, os casos em que a “criação”


(ou fosterage) de netos por seus avós (ou sobrinhos por tios, etc.) não apaga a relação
existente entre o adotado e seu genitores ou, como dizem meus interlocutores, seus pais
legítimos (por exemplo, Maizza, 2014; Viegas, 2003; Bonilla, 2005 e Costa, 2017). No
caso Bora, contudo, é saliente a diferença que existe em relação ao reconhecimento da
paternidade. Dessa maneira, se temos em vista os termos de parentesco utilizados, é
comum que a criança seja criada por sua avó, mas seja efetivamente adotada por seu avô
materno: no fim das contas, é o avô materno quem lhe fornece um pertencimento clânico,
mesmo nos casos em que o pai legítimo se encontra vivo ou reside num assentamento
próximo.

No capítulo anterior, sugeri que esse tipo de adoção entre netos e avô materno
seria o mais “completo” possível dentro do leque de possibilidades bora. Dito de outro
modo, defendi que ele é o que mais se aproxima da relação existente entre filho e pai
legítimos. Isso aconteceria porque os laços prévios de parentesco garantiriam que tal
relação estivesse mais próxima ao polo proteção-feeding que ao extremo servidão-
controle (ver Figura 10). Mesmo assim, vimos também que sempre permanece, dentro de
cada núcleo familiar, uma assimetria de status entre filhos legítimos e adotivos. No caso
específico dos netos adotados, a importância da ordem de nascimento na definição da
diferença de prestígio entre irmãos é um fato a mais para que possamos entender como
um neto ou neta, sendo geralmente o último a ser incluído em determinada parentela,
gozará de um status bastante similar àquele dos filhos caçulas legítimos – os quais, como
sugeri, tendem a assemelhar-se aos órfãos.

Se, como venho argumentando, são órfãs aquelas pessoas que se encontram
temporária ou permanentemente apartadas de seus pais ou donos, não é difícil inferir que
crianças frutos de uniões malsucedidas estarão, ao permanecerem próximas apenas de

280
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

suas genitoras, em posição de orfandade. Tal percepção foi importante para que, também
no capítulo anterior, traçássemos uma linha de continuidade entre netos adotados pelos
avós maternos e aquelas crianças que eram, no passado, negociadas com os comerciantes
luso-brasileiros. Esse tema aparece pontualmente no trabalho de Santos-Granero que,
baseando-se no trabalho de Guyot e Pineda Camacho acerca dos povos do Caquetá-
Putumayo, defende que certa “má sorte” atribuída aos órfãos motivava sua negociação
em troca de bens ocidentais:

(...) many Amerindian capturing societies engaged in the European-


induced slave trade once their mutual trading interests coincided. It
should also be noted that in those exceptional cases in which relatives
were sold to Europeans, it was because they were orphans thought to
bring ill fortune, children of mixed captor-captive unions treated as
pseudo-orphans, or children accused of witchcraft (Pineda Camacho
Camacho 1985; Guyot 1984; Santos-Granero 2002b, 2004). (Santos
Granero, 2009: 195)

Seguindo a mesma linha argumentativa, o autor afirma ainda que

Following this Amerindian logic, captives are not likened to orphan


children belonging to one’s group – who are often rejected and
mistreated as bearers of ill fortune – but rather to the progeny of killed
animals. (idem, ibdem: 174, grifo meu).

Ainda que não nos seja possível precisar o estatuto da orfandade no período
anterior ao contato permanente dos Bora com os não-indígenas, meus dados indicam que
os órfãos não se tornaram objetos de transação privilegiados no Tempo dos Brasileiros
em razão de um suposto infortúnio que sua condição trazia consigo (ou ao menos não por
conta de um infortúnio que fosse capaz de atingir qualquer pessoa que não o próprio
órfão)296. Em primeiro lugar, é necessário levar em consideração que tanto Guyot quanto
Pineda Camacho, baseados em seus próprios dados recolhidos entre os Povos do Centro,
não têm em mente a orfandade enquanto condição exclusiva daqueles cujos pais
morreram. Ainda que não analisem o termo mais profundamente, eles tomam a orfandade
enquanto posição social ocupada (definitivamente ou não) por um certo conjunto de
pessoas. Em segundo lugar, não acredito que se possa afirmar que os órfãos, ao se verem
desafortunados em razão da perda ou do afastamento de seus pais ou donos, sejam tidos

296
A relação entre orfandade e perigo foi abordada, ainda nos anos 1980, por Lévi-Strauss. Para o autor, os
órfãos compartilhariam com os solteiros uma posição particular: “Enfin, l’orphelin partage souvent le lot
du célibataire. Quelques langues font des deux mots leurs plus graves insultes; on assimile parfois les
célibataires et les orphelins aux infirmes et aux sorciers, comme si ces conditions résultaient d’une même
malédiction surnaturelle" (1983: 75). Na mesma obra, a indicação de Lévi-Strauss de que os solteiros seriam
apenas “a metade um ser humano” reitera minha percepção de que está em jogo, aqui, menos uma
inclinação inevitável dos órfãos à feitiçaria do que a instabilidade de sua própria condição de humano.

281
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

por todo o grupo como veículo de má sorte. Pelo menos no que toca ao período pós-
caucho, os órfãos são lembrados, antes, por sua dúbia condição: ao mesmo tempo em que
gozavam de um status inferior no seio do grupo que os acolhia, representavam a bem-
aventurada possibilidade de crescimento e reestruturação de parentelas e carreras rituais
fragmentadas.

Assim, a adoção de netos pelos avós maternos parece ser uma forma encontrada
pelos Bora de, nos dias de hoje, aumentar e reforçar parentelas. Como já argumentei, a
incorporação ou adoção de órfãos apartados de seus familiares originais é uma maneira
de contornar a desconfortável e pouco humana condição de ausência de relações com um
chefe ou pai legítimo. Porém, como poderíamos encarar o fato de que, aqui, esse
afastamento em relação à família paterna legítima é condição imposta pelos parentes
maternos da criança após um novo casamento de sua mãe? Nesses casos, como analisar
o fato de que o rompimento da relação da criança com seu pai legítimo não é fortuita, mas
sim ativamente produzida por seus parentes maternos, que terminam por lhe engendrar
uma condição (antes inexistente) de orfandade?

A produção de órfãos, a meu ver, é também uma maneira de fabricar condições


de possibilidade para a existência de relações de adoção. A adoção, por sua vez, é um dos
meios pelos quais são geradas as relações assimétricas de tipo chefe-órfão discutidas em
boa parte deste trabalho. Assim, quando Halbmayer afirma, como vimos no capítulo 4,
que avós adotam ou criam netos a fim de escapar de um “estado a-social de existência”
(2004: 154), podemos nos perguntar o que poderia, então, ser definido como um estado
de “existência social” do ponto de vista dos avós que adotam seus netos. Vejamos onde
tal questionamento pode nos levar.

Vimos, anteriormente, que os filhos adotivos são chamados, em Bora, de


mepiivyétso, literalmente “aquele que nós criamos” ou “aqueles que existem por causa de
nossa criação”. Entendemos, ainda, que “criação” aqui abarca tanto o sentido de “dar
origem”, “produzir” ou “fabricar” alguém quanto o de nutrir cotidiana e ininterruptamente
uma pessoa. Logo, não é difícil perceber que os netos-órfãos são, de fato, “criados” pelos
pais de sua mãe tanto no momento de sua adoção quanto ao longo do processo de
convivência e nutrição. Os dados de David Jabin (2016) nos permitem entender que
estamos diante de um tema recorrente em alguns povos ameríndios para os quais o ato de
“dar de comer” produz uma relação assimétrica entre aquele que provê o alimento e
aquele que é alimentado. No caso yuqui, isto é válido (embora de diferentes maneiras)

282
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

tanto para a relação entre pais e filhos legítimos quanto para aquela operante entre mestres
e escravos. Na mesma direção, mas em um povo menos marcado por diferenças internas
de status, Costa afirma que entre os Kanamari no rio Itaquaí a relação de feeding ou “dar
de comer” é central para a constituição do parentesco. Segundo o autor, tanto a mãe que
dá de comer a seus filhos e xerimbabos quanto o chefe que alimenta seu pessoal nos
momentos rituais atuam como mestres ou “corpos-donos” em relação àqueles que por
eles são nutridos. Estabelecer uma relação de alimentação desse tipo com a mãe ou o
chefe seria, desde a perspectiva de quem recebe o alimento, o “ponto de partida
inescapável do ciclo da vida” (2013: 485). Com o passar do tempo, o amadurecimento da
criança concretizaria sua passagem ao outro polo dessa relação, de modo que ele primeiro
alimentaria seus irmãos mais novos e, por fim, seus próprios filhos e xerimbabos (ou, no
caso dos chefes, seu pessoal):

Quando uma criança deixa de ser alimentada, é porque está alimentando


alguém; e quando aquele primeiro laço dá lugar a outras orientações
sociais, os novos laços de alimentação estabelecidos criam novas
relações de dependência que vão constituir o alimentador enquanto
adulto. (Costa, 2013: 485).

Desta maneira, a relação assimétrica entre “corpo-dono” e pessoa nutrida seria


fundamental para a própria existência do parentesco:

Para que o parentesco exista, corpos-donos precisam alimentar outrem,


emergindo, assim, como agentes em relação à passividade ou ao
desamparo daqueles que são alimentados. (idem, ibidem: 294)
Entre os Bora não há, como parece ser o caso em outros cenários amazônicos,
uma onipresença de xerimbabos. Muito embora algumas poucas mulheres empenhem-se
em criar pássaros ou roedores como pacas e cotias, não é comum observar esses animais
nas malocas ou em seus arredores297. Além disso, mesmo que os Bora compartilhem com
os Kanamari a centralidade do ato de “dar de comer” existente entre uma mãe e seus
filhos, é comum que, nas relações de tipo pais/filhos adotivos ou chefes/seu pessoal, a
produção do parentesco dependa também de uma relação que, como vimos, será tão mais
marcada pela servidão quanto menor a proximidade prévia entre as pessoas envolvidas.
Poderíamos nos perguntar, assim, qual a localização do caso bora em relação às situações
descritas para os Yuqui e os Kanamari.

Vimos que, entre os Yuqui, as posições de mestre e escravo são herdadas

297
À relativa ausência dos xerimbabos opõe-se a proliferação de animais domesticados como galinhas e
patos, além dos cães de caça.

283
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

patrilateralmente e o casamento é interdito entre duas pessoas localizadas numa posição


servil (Jabin, 2016 – ver ainda cap. 4). Além disso, entendemos que a relação entre um
escravo e seu mestre era, no passado, muito marcada pela subserviência do primeiro em
relação ao segundo. Não é difícil perceber, então, os afastamentos existentes entre esse
caso e aquele encontrado entre os Kanamari – onde, de saída não há status ou posições
de prestígio herdadas desde o nascimento. Na verdade, como acabamos de ver, é comum
que os Kanamari ocupem, desde o começo de suas vidas até a idade adulta, diferentes
posições nas relações de feeding. Dessa forma, alguém que é alimentado por seus pais ou
chefes quando criança, ao constituir sua própria parentela ou ocupar um cargo de
liderança, passará a estar na posição de provedor de alimentos. Além disso, Costa deixa
claro que a assimetria existente entre os Kanamari se concentra na dependência instituída
entre um “corpo-dono” e aquele que é por ele alimentado – não encontrando, assim,
relações marcadas pela servidão do segundo em relação ao primeiro tal como descrito por
Jabin para os Yuqui.

Se temos em mente o caso Bora, algumas particularidades chamam a atenção. Em


primeiro lugar, muito embora não haja uma separação tão clara entre “mestres” e
“escravos” (como nos Yuqui), a posição de chefia é herdada patrilateralmente e é
condição imprescindível para a existência das malocas com prerrogativas rituais.
Contudo, qualquer pessoa (mesmo que tenha nascido chefe) pode encontrar-se, em algum
momento de sua vida, numa posição de orfandade (à maneira que ocorre nos Kanamari,
que ora podem alimentam e ora ser alimentados). Se é certo que órfãos que se tornam
filhos adotivos de uma parentela são incluídos nesse núcleo familiar, a condição que ali
experimentam nos autoriza a pensar, finalmente, que não se trata tão somente de uma
situação na qual incide, no parentesco, um regime substitutivo de relações. Se observamos
de perto, vemos que o fundamental, aqui, é o fato de que essas relações encontram-se
fortemente influenciadas pelas diferenças de status existentes entre os parentes legítimos
e aqueles adotados por um chefe-pai.

Ao voltarmo-nos para as relações de assimetria em jogo e a discussão do capítulo


anterior, o lugar do polo controle-servidão na organização da relação mestres-escravos
yuqui parece ser ocupado, entre os Kanamari, por seu inverso complementar – a saber, o
polo proteção e feeeding ou “dar de comer”. Se julgamos procedente essa análise, vemos
que os Bora encontram-se, portanto, a meio caminho entre os Yuqui e os Kanamari.
Deslocando-se constantemente ao longo de um gradiente de relações entre chefes e

284
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

órfãos, os Bora experimentam, a depender das posições que ocupam e do parentesco


prévio existente entre cada um dos envolvidos, relações que podem ser bastante próximas
àquela de proteção e feeding experimentada entre pais e filhos legítimos ou, no outro
extremo, mais marcadas pela servidão e o controle típica daquela com inimigos e cativos
não aparentados que são incorporados a malocas estrangeiras. Essa formulação pode nos
ajudar, ainda, a responder o questionamento feito há pouco a respeito das formas e
condições da “existência social” de avós maternos que adotam seus netos.

Assim, os avós maternos que adotam netos não buscam um paliativo para a
solidão (uma vez que na maioria dos casos viverão acompanhados de seus filhos casados
e esposas) ou somente uma forma de “darem de comer” a seus novos filhos e se fixarem
assim na posição de seus mestres-donos (Fausto, 2008). Tampouco é certo pensar que,
caso a adoção não se efetivasse, essas crianças viveram à mingua, tornando-se órfãos-
ideais (cf. supra) desprovidos de quaisquer relações de parentesco. Isso porque, como
vimos, caso não passassem a viver com sua família materna, é muito provável que essas
crianças estivessem junto dos parentes de seu pai. Chama-nos atenção, então, o fato de
que os pais adotivos parecem ser os mais interessados no estabelecimento dessas relações
e que, nesse ensejo, marcam a vontade que possuem de contar com alguém que, ao ser
alimentado mas não ser um filho legítimo, possa trabalhar diariamente para e com eles.
Se os avós buscam pessoas que possam “acompanhá-los”, meus interlocutores foram
claros em afirmar que pretendiam, por meio da adoção dessas crianças, garantir que
existissem mais pessoas à sua disposição para as atividades nas roças e nas malocas.

Entendo, dessa forma, que para os Bora a centralidade dos órfãos confere certa
nuance às relações de maestria entre alimentador e alimentado pois os avós maternos, ao
reterem seus netos-órfãos junto de si, evidenciam o fato de que desejam ter, em seus
núcleos familiares, órfãos adotados com quem estabelecem uma relação muito específica
de assimetria. Finalmente, ao se encontrarem numa fase da vida em que provavelmente
há poucas pessoas em condição de orfandade à sua disposição, adotar netos-órfãos é uma
possibilidade para que os avós se insiram numa relação na qual, num nível ideológico,
eles passam a existir socialmente enquanto chefes.

Anseios desse tipo não parecem ser exclusivos ao mundo bora. Bonilla, em sua
tese de doutorado, relata-nos como entre os Paumari na região do rio Purus é comum que
os filhos de primeiras uniões malsucedidas de uma mulher sejam adotados por seus avós
maternos. Essas crianças, embora incorporadas à sua parentela adotiva, gozam de uma

285
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

relação mais instável que a dos filhos legítimos, ao mesmo tempo em que, nas tarefas
cotidianas, são mais solicitados que os últimos:

La relation établie entre parents et enfants adoptifs est très fréquemment


décrite dans les mêmes termes que la relation entre patrons et employés.
Les parents adoptifs décrivant leurs enfants adoptifs comme leur honai
abono (employé) (...) En conséquence, même si les enfants sont élevés
par leurs grands-parents, les appellent et les considèrent comme des
parents et que les grands-parents s’adressent à eux comme à leurs
propres enfants (en exigeant beaucoup plus de coopération de leur part
que vis-à-vis de leurs enfants biologiques, mais, il est rare que la
différence d’âge n’efface pas cette différence de traitement) un fois
qu’ils atteignent l’âge adulte, ces enfants adoptifs peuvent retourner
auprès de leurs parents biologiques, si ceux-ci les acceptent et sont
encore vivants. (Bonilla, 2007: 340 – 341).

A partir dessa descrição não podemos inferir simplesmente que esses filhos
adotivos sejam espécies de “empregados” de seus avós maternos, pois antes é mister
esclarecermos a particularidade do termo entre os Paumari. Ao contrário dos clientes,
cuja aliança com os patrões é puramente comercial, os empregados estabelecem com
aqueles que se encontram na posição de seus patrões uma relação que é marcada pela
comensalidade e pela proximidade física. Por exemplo, os jovens paumari que vivem
temporariamente com patrões não-indígenas (como regatões e outros tipos de
comerciantes regionais) costumam transformar-se em seus filhos de criação ou afilhados
– de modo que, em consonância com outros casos amazônicos que conhecemos
anteriormente, a relação de “filiação suplementar” existente entre eles não é substitutiva,
ou seja, não anula o laço existente entre o que chamo aqui de filhos e pais legítimos
(Menget, 1988; Halbmayer, 2004; Costa, 2017). Assim, a estabilidade da filiação e
permanência dos empregados paumari, sejam eles netos adotados por seus avós maternos
ou jovens que passam a viver com comerciantes locais, depende de um esforço constante
de manutenção dessa relação de cuidado, alimentação e ensino (idem: 342). Por sua vez,
aos patrões, no amplo sentido do termo, lhes toca lidar com a tendência que seus
“empregados” possuem de, em troca de colocarem-se em uma posição de submissão,
sempre se portarem como “parasitas” que, alojados em seus patrões, sugam deles boa
parte de sua força, logrando assim, em alguma medida, “controlar o perigo da predação”
(Bonilla, 2005: 59).

A disposição dos Paumari em se colocarem na posição de presas em relação a seus


patrões é inversa à tendência que os Bora têm de empenharem-se sempre em permanecer

286
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

e se consolidar como patrões ou chefes nos mais diversos tipos de relação298. Se já vimos
que isso parece ser procedente em relação aos esforços empreendidos no pós-caucho para
a produção de novos chefes ou na posição dos avós maternos em relação a seus netos-
órfãos, é interessante salientar também que os Bora destacam-se na política local de La
Chorrera por estarem na maioria das vezes à frente dos cargos de liderança na interação
com os não-indígenas. Vale relembrar ainda a observação, feita no começo deste trabalho,
de que era frequente que se referissem ao chefe com quem vivi como “meu patrão”. De
fato, ao contrário do que costuma acontecer em outros contextos ameríndios e do que
havia eu mesma vivido entre outros povos onde trabalhei, os Bora nunca tentaram me
colocar na posição de doadora de bens, nem tampouco agiram como se estivessem a meu
serviço, de forma que jamais estive na condição de alguém que tem dá ordens ou faz
exigências. No mesmo sentido, apesar da grande distância entre seu território e os centros
urbanos, nunca pediam que eu trouxesse mercadorias da cidade – e, quando o faziam,
geralmente negavam aceitar um produto sem que pudessem saldar, em dinheiro e no
momento da troca, o mesmo valor pago por mim. De fato, o esforço contínuo em garantir
que eu tivesse sempre a consciência de que eles desejavam ser meus patrões (e não o
contrário) parece-me ser uma evidência da diferença existente em relação ao caso
paumari, pois para os Bora encontrar-se na posição de chefe e, portanto, de pessoa de
prestígio, é algo que ninguém está disposto a abrir mão.

Se, como entenderemos melhor nos dois próximos capítulos, os nomes titulares e
as carreras rituais são diacríticos de prestígio entre os Bora, um chefe e sua mulher
também serão tanto mais prestigiosos quanto maior for sua capacidade de manter seus
parentes patrilineares a seu redor e ao mesmo tempo atrair, para perto de si, órfãos – isto
é, estrangeiros e parentes mais distantes que, segundo as regras de filiação e residência,
pertenceriam idealmente a outra maloca. Assim, os netos-órfãos, quando são adotados,
satisfazem tanto o desejo que todas as pessoas adultas possuem em manter-se na posição
de alimentadores (e, portanto, de produtores de parentesco), quanto a aspiração de
aumentar seu prestígio por meio da atração de pessoas em posição de orfandade,
fomentando o número de trabalhadores de sua maloca e, consequentemente, a própria
produção de alimentos necessária à produção do parentesco.

Busquei apresentar, neste capítulo, de que maneira os Bora, por meio da

298
Se em cada relação entre chefes e órfãos há alguém que aceita permanecer na segunda posição, vimos
até aqui como esses papeis são marcados por uma evidente assimetria.

287
Capítulo 5 - Algumas formas de amanhecer

transferência clânica, da flexibilização das regras matrimoniais e da adoção


(“consanguinizante” ou cerimonial) foram capazes de lidar com uma situação de brusca
queda demográfica e fragmentação de suas unidades sociais, muitas vezes lançando mão
do caráter específico da relação assimétrica entre chefes e órfãos para fabricar pessoas
que estivessem na posição de pais, mestres, donos, chefes e órfãos. A existência de
pessoas nessas posições é condição indispensável para a existência das malocas que,
como vimos, são as unidades sociais por excelência dessa população que, apesar das
inúmeras investidas dos não-indígenas, nunca aderiu à organização em assentamentos
pluriétnicos ou densamente povoados. As malocas, por sua vez, relacionam-se
diretamente com a capacidade que seus membros possuem de preparar e executar rituais
que, além de serem importantes para a transmissão de carreras e nomes de prestígio,
marcam o ritmo da vida comunitária e de suas relações com o exterior (seja ele humano,
não-humano, indígena ou não-indígena). Se por um lado não é concebível um mundo sem
órfãos, caçulas, primogênitos e chefes, tampouco é possível, para os Bora, que exista um
mundo em que todos eles não estejam empenhados constantemente em cantar e dançar.
É o que veremos a seguir.

288
Capítulo 6
Sobre bailes e carreras

No começo do século XX, T. Whiffen afirmava que “any excuse is enough for a
dance (…). The dance, like the tobacco palaver, is a dominant factor in tribal live”
(Whiffen, 1915: 190). Anos mais tarde, o relato do padre Bartolomeu de Igualada
(Igualada, 1938), que visitou malocas no rio Cahuinari nos anos 1930, está repleto de
descrições sobre como os Bora realizavam rituais com muita frequência: bastava uma
ocasião considerada especial para, em poucos dias, organizar a maloca, conseguir o
alimento, a coca e o tabaco necessários, chamar os convidados e, finalmente, dançar e
cantar.

Se os rituais hoje (mesmo que frequentes) não acontecem de maneira tão


espontânea, eles seguem possuindo lugar central na dinâmica da vida bora tanto
internamente quanto no que diz respeito à sua relação com povos vizinhos que compõem
o nexo regional dos Povos do Centro. Para tratar desse assunto, é necessário levar em
consideração que embora haja alguns trabalhos mais contemporâneos sobre o tema
(Karadimas, 2003, 2010, 2011; Garcia, 2018), carecemos de informações detalhadas a
respeito do funcionamento da vida ritual antes do contato permanente dos Povos do
Centro com os não-indígenas no começo do século XX. De maneira mais específica, no
geral as fontes existentes para esse período descrevem em detalhes apenas os rituais
antropofágicos, não oferecendo, assim, informações particulares sobre os demais rituais.
Se isso justifica-se, por um lado, pela curiosidade dos antigos cronistas pelo canibalismo,
por outro evidencia uma postura ativa dos Bora atuais, cujas informações dadas a respeito
dos bailes de antigamente se resumem, no geral, à afirmação de que eram “violentos” e
“perigosos”.

Na medida em que analiso, ao longo de toda a tese, um processo de “reforma” ou


“reorganização social” que foi conduzido pelos Bora nas últimas décadas, as descrições
que apresentarei nesse capítulo não devem ser lidas nem como a exposição de práticas
rituais que permaneceram congeladas ou idênticas às do passado pré-caucho, nem
tampouco como reminiscências incompletas ou enfraquecidas desse tempo. De forma
deliberada, refuto a validade de oposições dessa natureza, pois as considero
extremamente ardilosas. Ao contrário, a vida ritual bora contemporânea e o discurso sobre

289
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

as práticas do passado necessariamente só existem a partir das narrativas atuais de meus


interlocutores e de parcas fontes escritas disponíveis. Se o que segue é uma descrição de
como os Bora pensam os bailes de ontem e de hoje, convido o(a) leitor(a) a perceber, nas
entrelinhas, como essas narrativas informam sobre as transformações que estiveram em
curso ao longo do século XX e que extrapolam o domínio do ritual.

6.1. Wahtsi, o baile bora

Até aqui, venho propositalmente oscilando entre os termos “ritual” e “baile” para
referir-me ao que meus interlocutores chamam, em Bora, de wahtsi. Enquanto “ritual” é
a palavra comumente empregada na antropologia para descrever fenômenos como
aqueles que conheceremos ao longo deste e do próximo capítulo, “baile” é a tradução
nativa para wahtsi. Wahtsi, por sua vez, é um vocábulo que designa tanto os rituais quanto
o próprio ato de dançar. Isso nos ajuda a entender porque os Bora traduzem rituais como
bailes e não como fiestas: enquanto há fiestas de aniversário, de Natal, de Dia das Mães,
etc., os bailes são acontecimentos específicos e que dependem da existência de malocas
e grupos de pessoas com prerrogativas e posições rituais. Mais do que isso, se destacam
por serem ocasiões em que os participantes dançam incessantemente299.

Tais danças são sempre acompanhadas de canções (májchi) executadas por duas
ou mais pessoas, desde que haja pelo menos um homem e uma mulher300. Além disso, a
imensa maioria das canções não é aberta ao improviso, sendo escolhidas dentre uma série
de cantos disponíveis em suítes pré-existentes para cada um dos rituais. Quando se é o
convidado em um baile, a caça trazida, os cantos e as coreografias são retribuídos com
uma quantidade abundante de substâncias. Assim, veremos como os bailes bora não são
apenas momentos de compartilhamento de comida, mas também de troca de carne de
caça, mercadorias, canções e passos de dança por alimentos e substâncias vegetais como
o ambil, o mambe, o sal vegetal, o beiju, a cahuana, a manicuera e o amendoim. Antes
de discutirmos detalhadamente esses assuntos, é necessário delimitar uma importante
distinção, expressa na tabela a seguir, entre rituais ordinários e titulares ou de carrera.

299
Para uma análise da dança entre os Murui-Muina, ver Garcia (2018).
300
Embora nem todas as canções estejam no idioma dos Bora (ver adiante), nenhuma delas encontra-se
em espanhol.

290
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

Ujcútso (Baile Carijona)


Apújco (Baile de Frutas)
Bailes Ordinários
Méémeba (Baile de Caiçuma de Pupunha)
Túrií (Baile da Tartaruga)
Llaaríwa (Baile do trocano llaaríwa)
Tóóllíuwa (Baile do Pau do Açaí)
Bailes Titulares Ihchúba (Baile da Garça)
ou de carrera Pópoóhe
Llaacomu
Exceções: Báhjaá e Píchojpa
Bailes abandonados Túmajtsi (Cantos de Sangue)
Allóco (Baile de Calor)
Tabela 6 – Resumo dos bailes Bora

Observamos, acima, treze bailes ou rituais diferentes. Enquanto quatro figuram


como ordinários, outros sete são titulares ou de carrera. Vejamos do que se trata.

6.1.1. Bailes ordinários


Enquanto rituais de nominação são méméva wahtsi (ver adiante), todos os demais
são simplesmente wahtsi. Ao se referir a tais bailes em espanhol, os Bora costumam dizer
que são bailes ordinários, isto é, rituais “comuns”, “corriqueiros”. É importante salientar
que não há relação entre esses rituais e aquilo que chamamos, anteriormente, de “nomes
ordinários. Isto é, enquanto alguns nomes serão transmitidos intergeracionalmente na
ocasião de rituais de nominação, os nomes ordinários não surgem no contexto de nenhum
baile, e tampouco bailes ordinários se prestam à transmissão de quaisquer nomes.

Na verdade, um baile ordinário pode ser feito por qualquer dono de maloca que,
possuindo um número suficiente de trabalhadores à sua disposição e a quantidade de
alimentos e tabaco necessários, decide realizá-lo. Algumas vezes, ele dependerá da
disponibilidade de determinado alimento, como é o caso da pupunha para os rituais
Méémeba e certas frutas quando da realização de rituais Apújco. Seus preparativos,
contudo, seguem em linhas gerais os antecedentes que veremos à frente: o cultivo de um
bom roçado, a escolha de um parceiro cerimonial ou cabecilla, a preparação de ambil,
mambe, sal vegetal e alimentos em abundância, a concentração do pessoal do dono da
maloca na véspera do ritual, etc. Além de Méémeba e Apújco, também são bailes
ordinários os rituais Ujcútso e Túrií. Conheceremos cada um deles mais à frente nesse
capítulo. Antes, vejamos quais as diferenças mais sensíveis entre esse tipo de rituais e
aqueles que chamamos aqui de titulares.

291
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

6.1.2. Meméva wahtsi: carreras ou bailes titulares


Meméva wahtsi significa, literalmente, “ritual de nominação”. Porém, a
importância do ato de dar nome a algo ou alguém, entre os Bora, não se restringe apenas
à esfera do ritual, uma vez que “nomear” (esp.: nombrar - bora: meménu, literalmente
“fazer com que algo ou alguém tenha nome”) é um vocábulo cujo uso possui um amplo
alcance. Assim, não é por acaso que trabalhos baseados no registro e na análise da oratória
dos Povos do Centro aparecem desde os registros de Preuss nos anos 1920 (1921-1923
[1994]) até o trabalho de Echeverri com Hipólito Candre nas últimas décadas (Candre-
Kɨneraɨ&Echeverri, 1993, Echeverri, 1997). Minha experiência de campo me permitiu
compreender que a centralidade da fala entre os Povos do Centro extrapola os limites das
narrativas míticas (ou orígenes), das canções rituais ou mesmo das orações de cura (ver
Int. à Parte II). As palavras são fundamentais para os povos do Caquetá-Putumayo porque,
ali, falar sobre determinada coisa ou pessoa é o mesmo que nomeá-la e, para os Bora,
nomear é agir diretamente sobre algo ou alguém.

Vimos, quando apresentei alguns elementos sobre a onomástica, como há


restrições em relação à menção pública de um nome em Bora, sendo a indelicadeza ainda
mais grave quando se trata de alguém recentemente falecido. Foi nesse sentido que
argumentei, no capítulo 3, que os termos de parentesco, os apelidos e os nomes em
espanhol são empregados para evitar a verbalização dos “nomes em idioma” –
considerados, por sua vez, mais “profundos” ou “perigosos”. Ao orientarem-me sobre os
riscos que envolviam as longas caminhadas na mata que o trânsito entre malocas me
exigia, os Bora sempre disseram que, no caso de um acidente ofídico, eu jamais deveria
fazer alarde ou gritar “ai, uma cobra me picou”. Ao invés disso, deveria dizer algo como
“acho que uma minhoca me deu uma mordidinha”, pois não nomear a serpente como tal
é uma forma de conferir-lhe menos potência do que o animal de fato tem, fazendo com
que os efeitos de seu veneno sejam menos devastadores. De maneira parecida, Karadimas
afirma que evitar nomear um animal de caça no momento de sua perseguição e captura
faz com que, ao não ouvir seu nome sendo dito, o mesmo não se dê conta da ação
eminente do caçador (Karadimas, 2014: 339).

De maneira geral, a depender de como algo ou alguém é “nomeado”, incidirão


diferentes forças sobre sua constituição e seu comportamento. Por exemplo, é corriqueiro
nomear (nombrar) as folhas de coca como “doces” e “gostosas” a fim de que o mambe
produzido tenha bom sabor e seja preparado rapidamente. Ainda, é comum que seja dito

292
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

o nome de um passarinho que voa sempre em baixas alturas a fim de que o processo de
peneirar o mambe seja mais rápido, de modo que o pó fino dentro do recipiente de
armazenamento não suba, mas se assente no fundo do pote. Logo, nomeia-se tanto por
meio de palavras diretas quanto por referências a canções e narrativas de origen que se
conectam metaforicamente ao objeto ou ser nomeado.

No capítulo 3, vimos que há uma importante distinção entre os nomes ordinários,


escolhidos no momento do nascimento, e os nomes titulares, cuja atribuição depende da
realização de certos rituais. Estes últimos são denominados meméva wahtsi, ou seja,
bailes de nominação. No geral, os Bora dizem que os rituais de nominação, marcados
pela transmissão intergeracional de nomes, são as ocasiões nas quais o nome de uma
pessoa é, pela primeira vez, “revelado” ou “apresentado” (ver infra). Assim, tendo em
vista a discussão precedente, é interessante notar que os rituais de nominação são
momentos muito específicos de nomeação pública. Logo, a produção de vultuosos bailes
cujo objetivo principal é nominar ou transmitir nomes guarda consigo também uma
importante capacidade de agir sobre as pessoas cujos novos nomes são publicamente ditos
ou nomeados pela primeira vez. Mais especificamente, tais rituais incidem sobre a vida e
o comportamento daqueles que receberão seus nomes pois marcam ou reiteram suas
posições enquanto chefes ou pessoas titulares. É nesse sentido que os bailes de
transmissão de nomes, meméva wahtsi, são momentos exclusivos para a produção de
pessoas de prestígio.

Outra tradução possível para meméva wahtsi é, em espanhol local, carrera de


baile. Possuir ou conduzir uma carrera ritual é, para os Povos do Centro, algo bastante
específico:

Existen bailes que determinan el paso de los participantes de un estado


a otro, tales como (…) aquellos dedicados al nacimiento o asignación
de nombres rituales, etc. En general estos ritos están ligados a la
evolución de las «carreras ceremoniales» de los celebrantes. Significa
que corresponden a las vicisitudes que determinan la vida ritual de los
Illaima (jefes). (García, 2016: 43)
Vimos anteriormente que a divisão entre linhagens maiores e menores de clã faz
com que apenas algumas delas possuam malocas e nomes prestigiosos e realizem bailes
titulares, enquanto outras, mesmo que vivam em malocas autônomas, ali podem somente
realizar bailes ordinários. As malocas pertencentes à linhagem maior de um clã são
chefiadas por um homem que, em condições ideias, possui a prerrogativa (ou, como
dizem os Bora, o “direito”) de realizar determinado ritual de nominação. Em outras

293
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

palavras, ele é o responsável por uma carrera de baile que lhe é exclusiva dentro de seu
clã.

Essas carreras podem ser de alguns tipos, como a tabela anterior menciona e
como entenderemos mais à frente. Todas têm como princípio estruturante a hierarquia da
ordem de nascimento, de modo que as pessoas nominadas nesses rituais são em geral
primogênitas de clã e herdam seus nomes de relações com antepassados igualmente
primogênitos. No caso de rituais como Tóóllíuwa e Llaaríwa, considerados os mais
importantes dentre os rituais titulares, são mobilizados quatro conjuntos de nomes na
ocasião de uma nominação.

Como mostrei no capítulo 3, os filhos primogênitos (Se1 e De1) de um chefe e os


que lhes seguem (Se2 e De2) serão nominados, respectivamente, bonitos e feios de uma
carrera. Para que fique mais claro, retomo sem alterações o Diagrama 3. Levando em
consideração que as cores representam a reincidência e a transmissão de dois conjuntos
de nomes através das gerações, é possível observar a seguir o esquema de transmissão de
nomes titulares.

Diagrama 3 - Transmissão de nomes titulares

Sem recuperar em detalhes uma discussão já feita no capítulo 3, lembremo-nos


que a nominação de um homem primogênito em uma carrera envolve, ao longo de sua
vida, três diferentes nomes titulares: um ao ser nominado quando criança, outro na
ocasião da nominação de seu filho mais velho e, por fim, outro quando da nominação de

294
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

seu neto primogênito301. Da mesma forma, uma mulher primogênita de uma linhagem
maior de clã receberá seu nome de sua tia paterna e o transmitirá a sua sobrinha
primogênita (eB1De1). Operações similares acontecerão em relação ao par feio (Se2 e
De2), como pode ser inferido a partir da observação do diagrama.

Como vimos, enquanto o filho primogênito ao chegar à idade adulta assume o


lugar de seu pai como chefe e dono de maloca, sua irmã primogênita recebe de sua tia
paterna não somente seu nome prestigioso, mas também um importante corpus de
conhecimento acerca dos grafismos de artefatos, adornos e pinturas corporais. Por sua
vez, o casal feio atuará como “guarda-costas” de seus irmãos primogênitos (ver supra),
acompanhando-os enquanto seja possível como assessores privilegiados em seus papeis
de chefia. Juntos, comporão o conjunto de pessoas com nomes titulares – em Bora,
miaáte, vocábulo geralmente traduzido por meus interlocutores como “os nobres”.

Quando da realização de qualquer ritual de nominação, todos aqueles que também


possuem nomes titulares, mesmo que pertençam a uma carrera diferente daquela do
dono-anfitrião, podem ser facilmente identificados por serem os únicos a portarem
cocares com penas de papagaio-campeiro302, além de terem os corpos pintados com tinta
escura303 e adornados com plumas de gavião-real. A nominação (esp.: revelación,
presentación - bora: bóhowajtso304) propriamente dita acontece quando, ainda durante o
dia, as crianças sentam-se no banco do dono da maloca e, diante de todos os presentes,
seus nomes são ditos ou “apresentados”. O que se segue é bastante parecido ao que
veremos para todos os bailes, excetuando-se o fato de que, no caso dos rituais “de
carrera”, ocorre a execução da suíte llééneba, cujos cantos são parcialmente
improvisados (ver item seguinte).

Ao contrário da orfandade que, como vimos nos capítulos anteriores, é uma


posição social que se relaciona com as vicissitudes e os imponderáveis da vida (a morte

301
Para que fique mais claro, retomando a fórmula apresentada anteriormente: quando da nominação de
[25], [25] receberá um nome de infância de [11]; [11] receberá um nome adulto de [3]; [3] receberá um
nome de velhice de [1], quem provavelmente já terá falecido. Nessa ocasião, [3] deixará sua posição de
chefia (marcada pelo abandono de seu banco no mambeadero), transferindo-a [11]. Ao fazê-lo, [3] assume
formalmente o lugar de ancião de seu clã.
302
Amazona ochrocephala.
303
Ao contrário de outros povos amazônicos, os Bora não costumam usar o jenipapo para a pintura corporal.
Ao invés disso, utilizam uma mescla das folhas de duas espécies que, plantadas em suas roças ou capoeiras,
são cozidas em fogo brando. A água proveniente dessa fervura é passada no corpo com pequenos palitos e,
algumas horas depois, revela-se na pele a pintura negro-azulada que dura de 3 a 5 dias.
304
Tal vocábulo, usado no geral para fazer referência à primeira vez em que um nome é publicamente
verbalizado, pode ser traduzido ainda como “fazer visível” ou “esclarecer”.

295
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

de um chefe ou pai, a migração, a guerra, a errância voluntária, etc.), a chefia e as posições


de prestígio daqueles que formam o conjunto dos titulares ou miaáte não existem fora do
contexto de sua produção ritual. Sendo a relação entre chefe e órfão fundamental para a
existência da vida das malocas e, por conseguinte, do mundo ritual e das redes de relações
regionais, a ausência de chefes apropriadamente produzidos no âmbito de bailes de
nominação pode colocar em xeque muito mais do que apenas relações políticas internas
ou posições de prestígios individuais.

Vejamos primeiro quais as etapas de preparação e execução dos bailes entre os


Bora, para em seguida e com um panorama geral mais consolidado, conhecer de perto
cada ritual ordinário e titular.

296
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

6.2. A vida ritual

A tabela abaixo sistematiza boa parte das informações que serão discutidas a
seguir. Sua apresentação prévia ajudará o(a) leitor(a) a organizar cronologicamente a série
de eventos envolvidos da preparação e execução de um ritual entre os Bora.

- Abertura, plantio e colheita de roças


- Produção de ambil e sal vegetal
Antecedentes - Escolha do cabecilla e entrega do “tabaco de
convite”
- Comunicação com os convidados
- Expedições de caça e coleta
- Preparação de bebidas não-fermentadas,
alimentos vegetais e outras substâncias
Véspera (mambe, ambil, sal vegetal)
(na maloca anfitriã) - Narração da origen do ritual
- Toques de manguaré
- Ensaios das suítes de entrada, de llééneba e
de amanhecer
- Chegada dos caçadores
Desde a noite anterior até a
- Músicas de “dar de tomar” (ijchójune)
entrada
- De “fora” (cabecilla e cantores-bailarinos)
Entrada ou ucááve
- De “dentro” (dono da maloca e seu pessoal)
Dia do Pagamento da caça
baile Cantos de dia (cóójií májchi)
Llééneba - De “fora” (cabecilla e cantores-bailarinos)
(apenas rituais titulares) - De “dentro” (dono da maloca e seu pessoal)
Cantos de noite (pécojpiine májchi)
Amanhecer - Canto de amanhecer (tsitsííve májchi)
- Canções para terminar a comida e a bebida
Dia
Espanto (apenas nos casos em que os convidados não
seguinte
consumem tudo o que foi preparado)
Tabela 7 – Etapas de um baile

6.2.1. Os papéis em um baile e sua preparação


Várias podem ser as motivações para que os Bora decidam romper com a rotina
cotidiana e entrem, por alguns dias, em um “ambiente de baile”, como costumam dizer
em espanhol. Nominar uma criança numa carrera de baile, transferir um cargo de chefia
de clã, celebrar o fim de um trabalho e inaugurar uma maloca recém-construída são
algumas das razões mencionadas pelos Bora para impulsionar a realização de um ritual.
Entretanto, é comum ouvir que há pessoas que decidem patrocinar um baile apenas para
“se divertir” ou “para que tudo fique bem”, numa espécie de medida profilática que visa
manter relações boas e corretas entre os moradores das comunidades que vêm à maloca

297
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

para cantar, dançar e comer juntos. Há também rituais (nesse caso, de caiçuma de
pupunha ou Méémeba) feitos com intuito terapêutico, isto é, que visam à recuperação de
um paciente cujas causas de sua doença são atribuídas ao ataque de animais (ver infra).
No passado, havia ainda rituais motivados pelo consumo ritual do inimigo ou pela
vingança em situações de conflito.

Atualmente, mesmo que os rituais possam ser acionados em casos de contendas


entre pessoas ou grupos, eles visam geralmente o reestabelecimento de uma convivência
harmoniosa. Sobre esse tema entre os Murui-Muinane, Yepez afirma:

Cuando el ritual surge del conflicto vital de los individuos (desgracias,


enfermedades...), o de la ruptura caótica de las relaciones sociales
establecidas (conflictos intertribales...), lo pertinente para el grupo es
buscar de inmediato su reorganización por medio del acto ritual
revitalizador. (...) de ese ritual se adquieren enseñanzas, aunque su
finalidad directa e inmediata no sea pedagógica (Yépez, 1982: 23).

Mais recentemente, por fim, alguns rituais vêm sendo feitos em comunidades bora
no médio Igaraparaná mediante o financiamento de agências estatais como o Ministério
de Cultura. Em um cenário no qual diversas famílias diminuem progressivamente o tempo
que passam em suas roças (substituindo tais afazeres por trabalhos formais para o Estado
ou dedicando-se à venda de carne de caça, peixe e de seus próprios cultivares em La
Chorrera e no refeitório da escola local), os incentivos financeiros dos chamados “bailes
de proyecto” visam garantir que os donos de malocas que planejam realizar seus rituais
possuam meios de se dedicar satisfatoriamente à abertura e à manutenção de seus roçados
(já que a realização de um ritual depende da abundância de substâncias como mandioca
brava e doce, tabaco, coca e, em alguns casos, amendoim e frutas305).

Com relação à sua estrutura, todos os rituais entre os Povos do Centro alicerçam-
se numa fundamental complementariedade entre “dentro” e “fora” ou entre o dono do
baile e seu parceiro cerimonial. Tendo decidido realizar um ritual, um chefe ou dono de
maloca torna-se wahtsi abajáabe – literalmente, “o dono (abajáábe) de um baile
(wahtsi)”. Sua esposa será wahtsi áábájallee, ou “a dona do ritual” e, juntos, coordenarão
os trabalhos do grupo “de dentro”306. Todos aqueles que são seu pessoal (ou seja, que
estão sob sua chefia – ver cap. 4) tornam-se wahtsi múnaájpi, ou “o pessoal do baile”.
Fazem parte desse conjunto as pessoas que vivem em sua maloca e aqueles que, de

305
Tal como ocorre nas comunidades indígenas da área urbana de Leticia, bailes desse tipo são geralmente
alvo de críticas no Igaraparaná, pois na visão de muitos a introdução do dinheiro prejudica a eficácia ritual.
306
Veremos à frente que essa complementaridade dentro-fora relaciona-se com a posição ocupada na
maloca pelos homens durante os rituais.

298
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

alguma maneira, reconhecem no dono daquele ritual seu chefe legítimo ou adotivo.
Assim, compõem o pessoal do dono de um ritual: seus filhos e suas respectivas esposas
e netos; seus irmãos mais novos com sua família nuclear (mulher e filhos); seus genros
ou primos que porventura vivam a seu redor; e, por fim, aquelas pessoas que venho
denominando como órfãs. Fazem parte ainda desse grupo “de dentro” alguns parentes por
aliança mais próximos do chefe (sogros, cunhados, genros) que, vivendo distantes,
chegam à maloca anfitriã alguns dias antes do ritual trazendo cultivares de suas roças para
ajudar na produção de alimentos.

Assim como o chefe-dono do ritual, todas essas pessoas deixarão


momentaneamente de lado os afazeres diários para trabalharem de maneira intensa nos
preparativos do baile. Nesse período (que a depender das dimensões e do número de
convidados pode durar de alguns dias a várias semanas), as mulheres estarão ocupadas
com a colheita e o processamento da mandioca amarga para a preparação de grandes
discos de beiju, de tamales307 e de cahuana. Buscarão ainda em suas roças a mandioca
“doce” usada para a fabricação da manicuera e, eventualmente, frutas como abacaxi, cana
ou pupunha, além de amendoim e pimenta.

Foto 20 – Tamales na maloca antes do ritual Ujcútso, dezembro de 2017.

307
Massa de mandioca madura ou “pubada” sem sal envolta em folhas de caraná e cozida em água. Segundo
meus interlocutores, essa era uma comida feita no passado apenas pelos Uitoto. Com a intensidade do
contato pacífico entre os Povos do Centro ao longo do século XX os Bora e outros grupos passaram a servir
o alimento em seus bailes (ver Foto 20).

299
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

Enquanto isso, os homens se concentrarão na produção de grandes quantidades de


sal vegetal e pasta de tabaco cozido para garantir a abundância de ambil, elemento
indispensável para a realização de qualquer ritual. Estarão empenhados também na
produção de mambe e nos reparos necessários para que a maloca esteja adequada para a
recepção dos convidados, averiguando a estrutura do telhado, o estado do manguaré e o
local onde as redes serão colocadas. Esses homens, em conjunto, serão ainda ávyéjuúebe
náhbéébeé ou “secretários do chefe”, onde náhbéébeé308 significa amigo (ou, na tradução
dos Bora para o termo composto, “secretário”) e avyeujúbe: chefe309 (para outros termos,
ver o começo deste capítulo).

Foto 21 – Homens realizam reparos no teto da maloca do clã Tamanduá antes do baile Ujcútso,
dezembro de 2017.

Geralmente, a região mais ao fundo da maloca, próxima ao mambeadero, será


ocupada pelo pessoal do dono do ritual. A parte dianteira, por sua vez, receberá as redes
das mulheres e crianças convidadas, enquanto seus pais e maridos estarão toda a noite do

308
É interessante notar que se trata de uma derivação da palavra nahbe, usada para referir-se aos irmãos
legítimos (B) de alguém.
309
Quando analisamos no termo para o dono do ritual (wahtsi abajáabe), vemos que a palavra abajáabe é
usada amplamente para referir-se aos donos de algo ou alguém. Apesar de o dono de uma maloca ser
também o chefe desse assentamento, não há (até onde sei) uma correspondência entre o vocábulo abajáabe
e aquele usado para referir-se aos chefes (avyejuúbe). Como vimos no capítulo 4, o termo avyejuúbe faz
referência a noções como respeito, engrandecimento e valor (do chefe desde o ponto de vista dos demais),
e não a uma relação de propriedade do mesmo para com seu pessoal.

300
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

lado de fora, no papel de cantores-bailarinos (esp: bailarines – bora: uúbamye, onde uúba
é o verbo para “oferecer”310). Esses homens e mulheres serão os “de fora” ou o pessoal
do parceiro cerimonial ou cabecilla, conformando assim o outro conjunto de pessoas
necessário para que um ritual aconteça. O esquema abaixo representa a posição e a
movimentação na maloca de cada um desses grupos durante um ritual e adianta algumas
informações que veremos no que segue.

Figura 11 - Posições e movimentação na maloca durante os rituais

310
De maneira geral, os bailarinos são responsáveis pelo oferecimento de carne de caça (quando de sua
chegada na maloca) e canções.

301
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

Assim, o primeiro ato após um chefe tomar a decisão de realizar um ritual é buscar
um parceiro cerimonial ou cabecilla para acompanhá-lo. Ele achará essa pessoa entre um
reduzido número de homens (idealmente não-parentes) que ser encontram em posição
cerimonial equivalente à sua. Na maior parte das vezes, esse parceiro cerimonial será um
dono de maloca e chefe de clã que foi nominado no mesmo tipo de baile titular que ele,
possuindo assim a mesma carrera ou prerrogativa ritual. Dessa forma, por exemplo, um
homem que tenha sido nomeado em um ritual Llaaríwa e que deseja transmitir seu nome
ao filho primogênito deve encontrar um cabecilla que também tenha sido nominado em
um ritual de mesmo tipo311. A necessidade desse pareamento faz com que seja comum
que, ao longo de toda sua vida, um chefe eleja sempre o mesmo cabecilla como parceiro
cerimonial, fato que se expressa com frequência na frase: “fulano era/é o cabecilla
daquele chefe/do meu pai/do meu sogro, etc.”312.

Cabecilla é a palavra em espanhol regional para o vocábulo em Bora báñejuúbe,


onde báñeju é o termo utilizado para se referir ao convite em forma de ambil entregue
aos convidados por ocasião dos rituais e -be é o sufixo masculinizante. Logo, poderíamos
glosar báñejuúbe como “o homem do ambil ou tabaco de convite”. A tradução evidencia
que a primeira incumbência de um cabecilla, após receber do dono do ritual uma boa
quantidade de ambil, é percorrer as malocas que serão convidadas entregando-lhes uma
porção da substância e repassando as informações sobre qual baile acontecerá, quando e
onde. Fundamental para a dinâmica da vida ritual, o laço cerimonial existente entre esses
donos de maloca reforça ainda a relação cotidiana entre cada um deles e seu pessoal:

Una relación ceremonial vincula dos malocas, no parientes ni aliadas


por matrimonio, cuyos dueños y jefes intercambian fiestas o bailes.
Cuando el uno organiza una fiesta, su socio ceremonial es el invitado
principal (…) que conduce el grupo de los invitados de su maloca hacia
la maloca anfitriona y es responsable del orden de los cantos y danzas
y de las conductas de la gente que él lidera. (Gasché, 2009: 14)
Em grandes rituais, é possível (e mesmo desejável) que um dono de maloca eleja
mais de um cabecilla de acordo com sua posição em relação à maloca anfitriã (um à
jusante e outro à montante), de modo que o ritual conte com um grande número de

311
Isto vale igualmente para os bailes Llaacómu, Tóóllíuwa e Pópoóhe. Embora o ritual Íhchuba não
envolva nominação, sua especificidade (ver infra) exige o mesmo tipo de relação entre dono do baile e
cabecilla.
312
Como veremos mais à frente, durante o processo de reativação de alguns rituais neste século, a
necessidade de cabecillas com posições cerimoniais específicas foi, ao mesmo tempo, um motor para a
produção de novos chefes e uma barreira para a manutenção desses rituais.

302
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

convidados313. É função de um cabecilla, ainda, “animar” o baile, encorajando os


convidados a comparecerem, ensaiarem seus cantos e, nos momentos que antecedem aos
rituais, fornecerem suficiente caça314:

Para invitar a su socio ceremonial, el dueño de la fiesta manda a su


maloca una porción importante de ampiri envuelto en una hoja de
irapay (...) que contiene su poder de control sobre los seres de la
naturaleza y propicia el éxito de la caza de los invitados (Gasché, 2009:
26)

6.2.2. Algumas considerações sobre caça, canções e pagamentos

A chegada dos caçadores é parte importante do ambiente de um ritual e se instaura


desde o momento em que o ambil é entregue ao cabecilla. Durante os preparativos de um
baile (que podem começar semanas antes de seu execução), a qualquer momento um
convidado-caçador (portanto, um membro do grupo “de fora”) pode surpreender os
trabalhadores na maloca e aparecer, principalmente na madrugada, para exigir algum
pagamento pela caça que aporta aos trabalhadores “de dentro”. Embora frequentemente
essa caça (esp.: cacería – bora: taáva) seja um mamífero, veremos que há situações em
que os caçadores entregam aos donos dos rituais larvas, peixes, serpentes comestíveis,
mercadorias e alimentos industrializados – de modo que, no âmbito ritual, deve-se levar
em consideração que o termo “caça” é abrangente. O caçador-convidado, que chega de
surpresa, virá com sua caça amarrada na extremidade de uma vara que leva apoiada em
um dos ombros e se ocupará em cantar, dançar e tocar apitos ou flautas315. Essas músicas
são chamadas chiijúhejune e, quando possuem letra, geralmente fazem referência à
mesquinhez do dono do ritual e sua mulher, que são acusados de retribuir
insuficientemente a caça trazida pelos convidados316.

313
Ambos os cabecillas (de jusante e de montante) devem possuir a mesma prerrogativa ritual que o dono
do baile, não incidindo assim nenhuma diferença de status entre seus parceiros cerimoniais.
314
Durante a execução do ritual, é também função do cabecilla permanecer na parte externa da maloca,
organizando os cantores e garantindo que não haja períodos de silêncio dentro da maloca desde o começo
até o fim do ritual (ver Figura 11).
315
Há determinados rituais em que os caçadores usam apitos e flautas e outros nos quais eles chegam
cantando ou ainda “venteando la cacería”, expressão usada em espanhol regional para descrever passos de
dança nos quais o caçador, com uma folha de palmeira nas mãos, golpeia suavemente o dono do baile e seu
pessoal no mambeadero enquanto canta.
316
Para considerações sobre essa prática no começo do século XX, ver Whiffen (1915: 196-197) e,
posteriormente, Wavrin (1979: 25). Veremos no próximo capítulo como essas canções foram alvo de
modificações em seu conteúdo ao longo do século XX, visando extrair das mesmas seu potencial violento
e conflitivo.

303
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

Para apaziguar as acusações dos convidados, as mulheres “de dentro” deixam de


lado seus afazeres e, dançando, perseguem incessantemente os caçadores, que resistem
enquanto podem, até o momento em que se rendem às cuias de bebida de cahuana ou
manicuera que as mesmas lhes oferecem. Tal procedimento não é exclusividade dos Bora,
assemelhando-se bastante ao que García descreve para os rituais murui-muina na região
de La Chorrera:

Cada cazador llega a la maloca cantando y danzando desde el exterior.


Cuando ingresan los conayi (generalmente hombres) reciben la cacería
traída; luego una o dos mujeres anfitrionas se aproximan a cada bailarín
con calabazas llenas de jugo de manicuera (yuca dulce). Allí se genera
una tensión entre los bailarines y las mujeres; las primeras intentan
frenar su arribo al mambeadero mientras los cazadores hacen lo posible
para evitarlas sin dejar de cantar y bailar. Esta acción continúa sin
interrupción hasta que ellas logran hacerlos beber el jugo de manicuera.
(García, 2016: 56)
Woodroffe, já em 1914, descreveu a chegada dos caçadores na maloca durante a
abertura de um ritual que assistiu na estação caucheira Esmeralda, no auge do controle da
Casa Arana na região. No local de maioria Murui-Muina, o autor observou o seguinte:

Before dance commences the visitors deliver the presents which they
have brought, consisting mainly of as cloth, sewing cotton, needles and
trimmings, and also, suspended in strings on long wands, the grub of a
large beetle, found in the sap of different kinds of palm trees, which,
when fried, is considered by the Indians (…) as a delicacy. Then there
is the “casaramanu” or “humay”, being the contents of a kind of
housewife’s stock-pot, very highly seasoned with fresh pepper.
(Woodroffe, 1914: 154)
A iguaria (delicacy) trazida pelos convidados como “caça” a que Woodroffe se
refere trata-se, muito provavelmente, de núhneé (esp.: mojojoy317), larvas de certa
variedade de coleóptero (Rhynchophorus sp.) apreciadas em toda a região e consumidas
em substituição ao peixe e à carne de caça.

317
Rhynchophorus sp.

304
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

Foto 22 – Caçador com larvas (núhneé) espera seu momento de entrar maloca do clã Tamanduá antes do
ritual Ujcútso, dezembro de 2017.
O autor menciona ainda que as mulheres recebiam os convidados oferecendo-lhes
porções de “casaramanu”. Casaramá ou ají negro é, em espanhol local, o nome dado para
dóhmeba, pasta feita com pimenta fresca e tucupi reduzido após um largo período de
fervura318. Oferecer pimenta aos caçadores era, no passado, uma forma de responder aos
insultos que suas canções dirigiam ao pessoal do dono do ritual. Atualmente, os Bora
consideram ser esta uma forma pouco adequada de lidar com a ofensa dos convidados,
uma vez que a pimenta esquenta os corpos daqueles que a consomem, tornando-os
potencialmente mais agressivos e, portanto, perigosos para um ambiente ritual. Enquanto
no passado o controle sobre a agressividade latente que existia entre convidados e
anfitriões era menos intenso, hoje um ritual será tão mais bem-sucedido quanto maior for
a capacidade dos donos da maloca de tranquilizar os ânimos e garantir que absolutamente
tudo transcorra sem conflitos319. Dessa forma, segundo as narrativas bora a respeito da
transição entre o Tempo dos Animais e o Tempo da Abundância (ver Int. à Parte II), uma
das tendências observadas ao longo do século XX foi a valorização, por ocasião dos
rituais, da manicuera e da cahuana enquanto substâncias usadas para adoçar e esfriar os

318
É bastante incomum que haja uma cozinha bora sem uma panela reservada para esse tipo de pimenta
que tempera a comida do dia-a-dia, em especial os caldos de peixe. Algumas vezes os Bora me disseram,
referindo-se à sua importância e a algumas narrativas míticas, que o casarama era como o ambil das
mulheres – e a semelhança material entre as duas substâncias é notável.
319
Atualmente, o mero fato de que alguém se sinta mal ao ingerir uma quantidade grande de ambil ou que
uma criança fique doente depois de um ritual é interpretado como uma evidência de que o dono do baile e
seu pessoal não foi eficaz em controlar a agressividade do ambiente ritual.

305
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

corpos dos participantes – e em especial dos caçadores no momento em que chegam à


maloca.

Permitam-se fazer uma observação sobre esse tema. Mencionei, há pouco, que a
caça entregue por um convidado costuma ser de origem animal, mas disse também que
há ocasiões em que tais caças são, na verdade, produtos e alimentos industrializados. No
primeiro caso, os animais no geral são entregues crus. Quando se trata de mamíferos, a
maioria deles não é nem mesmo esfolada, o que justifica então a existência de fogueiras
na parte anterior das malocas onde as mulheres “de dentro” passam boa parte do tempo
trabalhando durante um ritual (ver Figura 11). No segundo caso, muito embora haja a
entrega de alimentos que não necessitam ir ao fogo (como carne enlatada, pirulitos e leite
em pó), todos esses produtos são mercadorias que – bem como roupas, plásticos e
munições – não podem ser fabricadas autonomamente nas malocas dos Povos do Centro.
Seja qual for a caça, ela é repartida, ao longo do ritual, entre aqueles que conformam o
grupo “de dentro” ou o pessoal do dono do ritual.

Os caçadores, também como vimos, chegam às malocas reagindo ao convite em


forma de ambil que lhes foi entregue pelo cabecilla. Como podemos notar, trata-se de
movimento muito semelhante àquele realizado antes da “entrada” de um ritual, quando
os cantores-bailarinos recebem, cada um, uma pequena quantidade de ambil. A
proximidade entre os dois momentos fica evidente quando, tanto ao entregar a caça
quanto ao cantar uma canção nas malocas, os homens dizem que vão “pagar o ambil” que
receberam. Em seguida, a caça e as canções são retribuídas, dentro da maloca, por
alimentos vegetais que foram processados nos dias anteriores. O conjunto de informações
fornecidas até aqui pode ser resumido no seguinte esquema:

Caça Pagamento
Ambil Animais Crus Alimentos vegetais
“de convite” Produtos industrializados processados no fogo
“de canto” (beiju, manicuera,
Canções e passos de tamal, cahuana, etc.),
dança frutas e amendoim

Figura 12 - Convites e pagamentos nos rituais

Já vimos como os animais são os principais causadores de doenças entre os Bora


e, mesmo que não haja um processo de transubstanciação da carne em material vegetal

306
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

tal como ocorre entre os Piaroa (Overing, 1975), o cozimento é parte fundamental do
processo de extração de seu potencial predador. Em meus primeiros períodos de campo
entre os Bora, isso ficou evidente quando notei o longo cozimento dos alimentos: em
quase todas as refeições são servidos caldos que, por ferverem por muito tempo,
dissolvem grande parte dos pedaços de carne ou peixe usados em sua preparação. Soma-
se a isso a predileção alimentar por insetos, serpentes, mamíferos e peixes de pequeno
porte (considerados menos “remosos” ou irascíveis) e o costume de armazenar carnes de
grandes mamíferos (antas, veados) em baldes para consumi-los apenas após o começo do
processo de apodrecimento, quando surgem pequenas larvas320. Os alimentos vegetais,
por outro lado, não enfrentam o mesmo tipo de precaução em seu manuseio e preparação,
como Londoño Sulkin afirma acontecer também entre os Muinane:

El enfriamiento de los alimentos es necesario en principio para los


peces y las bestias: en mi experiencia, los muinane no parecían
considerar muy necesario el enfriamiento de los frutos de chagra. De
hecho varios mambeadores usaban las frutas de chagra como
paradigmas de aquello que es inocuo y bueno. (Londoño Sulkin, 2004:
223)
Embora meus interlocutores afirmem que, no passado, havia um maior perigo
envolvido na abertura e queima dos roçados, hoje em dia a atividade demanda precauções
simples que, dominadas por qualquer chefe de família com alguma experiência xamânica,
buscam tranquilizar os espíritos dos animais donos do local onde a roça se instalará. Uma
vez que o roçado esteja preparado para receber os cultivares, os trabalhos de manutenção
e colheita, no geral, não apresentam muitos perigos (vale dizer, algo bastante diferente do
que ocorre nas expedições de pesca e caça, principalmente noturnas).

Além de trazerem muito menos riscos do que os animais, os vegetais são


processados no fogo antes de servirem como pagamento de canções e caças em um ritual
– uma forma de extrair o potencial daninho que ainda possam carregar consigo321.
Destaca-se, aqui, a mandioca brava que, após a extração do veneno, é usada para a
elaboração de comidas que fazem às vezes de pagamentos aos caçadores e cantores-
bailarinos em um ritual: beiju, manicuera, pamonhas ou tamales, bebida de goma não
fermentada (cahuana), etc322. Outros alimentos (como frutas e amendoim), embora sejam

320
Esquivo-me, por questões de espaço e seguimento do argumento, de uma evidente análise sobre a
culinária bora e o triangulo culinário tal como proposto por Lévi-Strauss (1964).
321
Uma vez que as roças também possuem donos que, mesmo que menos daninhos que outros espíritos-
animais, ainda assim podem atacar, causando doenças e outros danos.
322
Sobre a “mandioca brava” entre os Povos do Centro, ver Chirif (2014). Os alimentos vegetais
processados parecem ser à contraparte feminina ao ambil masculino que, da mesma maneira, visa a
neutralização dos agentes causadores de conflitos e violência.

307
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

entregues sem que sejam levados ao fogo, destacam-se por serem para os Povos do Centro
frios e doces. Sustento, portanto, que esses últimos, junto aos derivados da mandioca, são
oferecidos aos cantores-caçadores como formas de neutralizar a periculosidade contida
naquilo que trazem à maloca: a carne crua dos animais, os produtos industrializados e as
canções que, como vimos, não raro fazem críticas ao dono do ritual e seu pessoal.

Assim, podemos vislumbrar que o progressivo abandono do uso da pimenta como


substância punitiva aos caçadores e cantores mais exaltados foi acompanhado pela
valorização dos alimentos vegetais enquanto agentes de esfriamento das ações agressivas
dos convidados que, no Tempo da Abundância, encontram-se estritamente relacionadas
à atuação dos animais, agentes causadores de doenças e violência. A centralidade da
produção farta de alimentos vegetais processados no fogo por ocasião dos bailes, assim,
é uma forma de amenizar o conflito latente entre os grupos de “dentro” e de “fora”,
especialmente evidente quando temos em mente que cabecilla e dono do ritual, embora
parceiros cerimoniais, são não-parentes. Feito esse adendo, voltemos à exposição das
etapas de um ritual entre os Bora.

6.2.3. A véspera
Na véspera de um ritual, aqueles que fazem parte do grupo “de dentro”, isto é, do
pessoal do dono do baile, encontram-se em “concentração” (esp.: concentración, bora:
pihjyúcu). A “concentração” de um baile acontece sempre na noite que antecede sua
realização. Muito embora o ambiente ritual já esteja instalado há alguns dias, em geral é
na véspera do baile que várias pessoas estão mais exclusiva e intensamente empenhadas
nos últimos preparativos para a fabricação de comida, bebida de mandioca, ambil, mambe
e sal vegetal. Essa é a ocasião, ainda, na qual alguns dos homens que compõem o grupo
“de dentro” sentam-se ao redor de seu chefe no mambeadero para que este lhes conte
como foi que, num tempo muito remoto, aquele ritual aconteceu pela primeira vez. Tais
narrativas, os mitos de origem de um ritual, não são escutadas todos os dias e tampouco
é usual que sejam registradas por meio de gravações, de modo que é de grande interesse
de boa parte dos moradores de uma maloca escutá-las e memorizá-las na véspera de um
ritual.

Contar esse tipo de narrativa fora de um ambiente ritual é algo potencialmente


perigoso tanto para quem o faz quanto para quem o escuta. Uma vez que essas histórias
geralmente falam sobre os animais e sua capacidade daninha, contá-las sem a devida

308
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

precaução por parte de um abuelo pode fazer com que os mesmos animais se ponham
furiosos e terminem atacando os humanos. Entretanto, contá-las apropriadamente na
véspera de um baile é uma forma de fazer com que os espíritos dos animais que rondam
a maloca estejam cientes do que acontecerá na noite seguinte. É, ainda, uma maneira de
resguardar os Bora por meio da ação protetiva do Tabaco que, na forma do ambil, se faz
presente nessa e nas demais etapas de realização do ritual323:

Los espíritus de los animales estarán prestos a aprovechar cualquier


descuido del sabedor, cualquier falla, para tratar de rebajar y hasta
aniquilar al grupo que está bajo su cobijo. Esta oportunidad se presenta
cuando se trata de realizar un baile pues allí se hace referencia (...) a las
Fuerzas del origen, cuando hombres y animales estaban indiferen-
ciados, para pasar luego en las subsiguientes acciones cosmogónicas a
establecer la diferenciación, es decir, la afirmación de lo humano en
detrimento de lo animal, quien lo envidiará desde siempre. (Urbina,
1992: 18)
É importante salientar, ainda, que a véspera é a ocasião de uma paisagem sonora
específica, marcada pelo som incessante do manguaré. Ainda que o pessoal se encontre
reunido na maloca desde que o sol se põe, aproximadamente à meia-noite – quando a
noite “está fría” – os homens se levantam do mambeadero e, posicionados em frente do
par de trocanos, os tocam até o amanhecer, revezando-se quando se cansam e consumindo
o ambil, o mambe, a cahuana e os tamales que, colocados nos esteios superiores do
manguaré, servem como pagamento pelos toques324. Os tipos de toques executados
nessas ocasiões são exclusivos à véspera dos bailes. Conhecidos por todos, eles servem
também para reforçar o convite e animar as malocas vizinhas para que se preparem para
o encontro do dia seguinte. Sendo uma atividade que envolve apenas o pessoal da maloca
que organiza o ritual, é incumbência dos filhos, netos, sobrinhos e eventuais genros e
órfãos do chefe permanecer tocando o manguaré até o amanhecer. O único momento na
“concentração” ou véspera de um ritual em que o toque do manguaré é interrompido
acontece quando o pessoal da maloca suspende suas tarefas e, todos juntos, ensaiam os
cantos e os passos de dança que lhes corresponderão na noite seguinte (entrada,
amanhecer e, eventualmente, llééneba – ver adiante). Quando o dia amanhece, algumas
pessoas tiram um rápido cochilo em suas redes, enquanto outras continuam seus afazeres
e só dormirão no dia seguinte, quando o ritual já tiver acabado.

323
Esse será o momento, ainda, para que o chefe da maloca profira uma “oração” protetiva (ver Int. à Parte
II) em pequenas cuias com manicuera, mambe, ambil e sal vegetal. Essa é uma maneira de evitar que esses
elementos causem mal a algum dos presentes. Na mesma ocasião, o chefe “tampa os cestos” de doença,
brigas ou comportamentos violentos que podem eclodir no momento dos rituais.
324
Veremos, à frente, que esse é o mesmo local onde repousavam os crânios-troféus no passado.

309
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

6.2.4. O dia (e a noite) do baile


É comum que haja muitas tarefas pendentes na manhã que antecede a realização
de um ritual. Por exemplo, é necessário finalizar a preparação da comida, do mambe e do
ambil. As tortas de beiju devem estar prontas e separadas em um canto da maloca, os
tamales repousando no esteio do mezanino central, a fogueira exterior para a preparação
da caça que chegará ao longo do dia abastecida de lenha, as pequenas porções de ambil
que servirão de pagamento para os cantores e bailarinos separadas e embaladas em folhas
de caraná... Como os Bora costumam dizer, ¡hacer baile es un sacrifício! Mais tarde,
quando todos já estão prontos, o dono do ritual ordena que alguém de seu pessoal leve
aos homens cantores-bailarinos que já estão do lado de fora um enorme recipiente com
cahuana e entregue a cada um deles um pequeno embrulho com ambil325. Em seguida,
acontece finalmente a entrada do ritual.

Os bailes bora dividem-se no geral em pelo menos quatro momentos, aos quais
correspondem, cada um, uma suíte de cantos específica. Assim, temos, sucessivamente:
a entrada (ucááve), os cantos de dia (cóójií májchi), os cantos de noite (péjcopiine májchi)
e o amanhecer (tsitsííve)326. Para cada um desses momentos, em cada ritual, existe um
conjunto fechado de cantos que apresenta certa uniformidade em suas letras, ritmos e
melodias327. Isso faz com que mesmo que uma pessoa não conheça determinada canção
ela seja capaz, ao ouvi-la pela primeira vez, de dizer a qual ritual e a qual momento ela
está relacionada (entrada, cantos de dia, cantos de noite ou amanhecer)328. O primeiro
desses momentos marca o começo do baile propriamente dito, isto é, o início da execução
dos cantos e dos passos de dança no pátio interno da maloca.

Assim, a entrada é a ocasião (geralmente perto do meio dia para bailes titulares e
no fim da tarde em bailes ordinários) na qual o pessoal do cabecilla se organiza na parte
exterior da maloca a fim de ali adentrarem juntos pela primeira vez. Ainda que os rituais
apresentem variações em relação a esse momento (pois cada um apresentará suítes

325
Em grandes bailes, é possível que a mulher do dono da maloca e suas companheiras cantem ijchójune,
canções “para fazer tomar”. Nesse momento, elas se dirigem a todos os convidados que já estão na maloca
e também aos cantores que esperam o começo do baile no pátio exterior. Munidas de cuias de manicuera,
cantam e oferecem a bebida aos convidados.
326
Nos rituais em que participei, contabilizei após a conferência das gravações com meus interlocutores
um total de 70 a 120 canções diferentes em cada um deles.
327
Ainda que a maioria dos rituais sejam realizados com músicas cujas letras estão idioma bora, veremos
que nos bailes Ujcútso e Méémeba as canções possuem letras com significado semântico desconhecido
pelos próprios indígenas (ora por se tratarem de canções de grupos inimigos, ora de animais).
328
Por ora opto, por uma questão de ênfase, em não me aprofundar na análise dos cantos rituais.

310
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

próprias e algumas serão interditas às mulheres329), ele é condição básica para a realização
de qualquer baile. Além disso, as canções e coreografias executadas nessas ocasiões não
variam, de modo que cada ritual possui apenas duas músicas de entrada (uma “de dentro”
e outra “de fora”) que são cantadas através das gerações330. Após a entrada dos
convidados, o dono do baile e seu pessoal se levantam pela primeira vez do mambeadero.
Cantam, então, junto de suas mulheres, a música de entrada que lhes corresponde e que
haviam ensaiado na madrugada anterior. Tão logo a tenham terminado, regressam ao
mambeadero e, no caso das mulheres, aos afazeres relacionados à alimentação e ao
pagamento dos convidados.

Antes que as demais canções comecem a ser executadas, o dono do ritual e sua
mulher se ocupam por um momento do pagamento da caça trazida pelos caçadores-
cantores. Após reunir tudo atrás do mambeadero, a esposa do dono da maloca inspeciona
cuidadosamente cada caça recebida e providencia, junto a seu marido, a retribuição.
Enquanto peixes, aves e mamíferos pequenos são pagos com uma quantidade modesta de
beiju e frutas, caças mais valorizadas (peixes, aves e mamíferos grandes, serpentes
comestíveis e larvas de coleópteros) são retribuídos com maior abundância. Uma a uma,
as mulheres dos caçadores se aproximam do mambeadero, recolhendo o pagamento
relativo à caça de seus esposos e consolidando, assim, sua fama como bom ou mau
caçador. Após o pagamento da caça, mais bebida de mandioca é enviada aos homens que
permanecem, junto ao cabecilla, no pátio exterior da maloca331. São esses bailarinos-
cantores quem conduzirão, a partir de agora, as canções. Cada um deles deve ser
responsável por pelo menos uma música que servirá como pagamento pelo pequeno
embrulho de ambil recebido antes da entrada.

Ao entrar na maloca, muitas vezes com seu bastão de ritmo (ver infra), um homem
inicia uma canção que escolheu dentre as que conhece nas suítes daquele ritual. Então,
ele é seguido por outros homens que resolvem cantar também. Logo que começa sua
canção, espera-se que uma das mulheres de sua família (em geral sua esposa ou filha e,

329
Ver itens 6.3 e 6.4
330
Não são, contudo, apenas as músicas que não se alteram. Cada ritual possui um conjunto específico de
passos de dança, adornos, pinturas corporais e instrumentos musicais. Veremos nesse e no próximo capítulo
o uso e abandono de alguns desses instrumentos, além de momentos nos quais determinada suíte de cantos
é aberta à improvisação e os casos em que determinadas músicas passaram por transformações ao longo do
século XX.
331
Além da enorme quantidade de mambe usada pelo grupo “de dentro” que permanece sentado no
mambeadero, ao grupo “de fora” também lhe é oferecido mambe para que resistam à madrugada sem cair
no sono.

311
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

eventualmente, uma de suas irmãs) se levante da rede onde repousa332. Ela logo é
acompanhada por outras mulheres de sua família e, juntas, se posicionam na frente do
cantor principal. Diz-se, então, que a primeira mulher a se levantar e cantar “contratou”
o canto de seu marido, filho ou irmão.

“Contratar” é a palavra usada em espanhol para referir-se ao acompanhamento


vocal feminino. Embora no caso dos rituais Ujcútso e Meémeba apenas uma mulher possa
cantar (enquanto as outras apenas dançam), o mais comum é que todas cantem. Enquanto
os homens cantam ininterruptamente, diz-se que as mulheres os acompanham porque elas
repetem, em tom mais agudo e no mesmo ritmo e melodia, apenas os últimos fonemas
dos versos entoados pelos homens. A primeira mulher a reagir (e, portanto, a que
“contrata” o canto) é também quem recolhe o pagamento (em geral beiju, tamal e
amendoim) e o guarda próximo a sua rede.

Os Bora dividem os momentos após a entrada em cantos diurnos e cantos


noturnos. Os primeiros cantos (“de dia”) levam esse nome porque, segundo os Bora,
antigamente era comum que os bailes ordinários também começassem mais cedo, no
mesmo horário que hoje se iniciam os titulares (isto é, próximo ao meio-dia). Esses
cantos, bem como os das demais suítes, nunca podem se repetir em um mesmo ritual, o
que não raro torna-se um desafio para os cantores que não possuem um amplo repertório.
Após os cantos diurnos, já perto da meia-noite, outra suíte de cantos começa, a “de noite”
ou “de meia-noite”333. Em rituais sem transmissão de nomes, esse momento de passagem
da suíte de cantos de dia para os cantos de noite costuma acontecer à critério do cabecilla,
sem que exista um marcador ritual muito evidente. Contudo, no caso dos rituais de
nominação, a passagem dos cantos diurnos para os noturnos acontece após o llééneba.

O llééneba é a única suíte de cantos evidentemente aberta à improvisação verbal


no universo dos rituais bora. Tendo como base um estribilho ou refrão inalterável, os
grupos “de fora” e “de dentro” se reúnem para, um em seguida ao outro, cantarem
llééneba. Ao contrário das outras suítes, nas quais apenas um homem é reconhecido como
o responsável pela execução dos cantos (sendo os demais seus acompanhantes), o

332
Vimo que enquanto a parte anterior da maloca mais próxima ao mambeadero é ocupada pelo pessoal do
dono do ritual, a porção posterior é completamente ocupada pelas mulheres (e crianças) convidadas que
aguardam a entrada dos diversos bailarinos-cantores.
333
Nesse momento, é comum que as crianças já estejam dormindo em suas redes e que o pátio interno da
maloca não esteja tão cheio como no começo do ritual. Diversas mulheres mais velhas me afirmaram,
durante os rituais, que essas músicas (“de noite”) lhes pareciam mais bonitas e melhores de dançar – e, de
fato, é comum que, depois da entrada, elas só se levantem de suas redes quando a noite já está avançada.

312
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

llééneba é o momento no qual todos os homens presentes cantam, um por vez, versos
improvisados entre um refrão e outro334.

Depois de todos os rituais com llééneba que pude registrar em áudio, essa era
justamente a parte que os Bora queriam escutar. Interessava-lhes o fato de que cada
homem aborda em seus versos temas de foro íntimo e, frequentemente, “delicados” (o
sofrimento pela morte de um ente querido, conflitos entre parentes, problemas
comunitários, a memória do período caucheiro, etc.). Sempre ouvi que, no passado, esse
era um momento de evidente tensão e, às vezes, de eclosão de agressões físicas, uma vez
que as desavenças e acusações vinham à tona por meio das sugestões e metáforas
utilizadas pelos homens em seus improvisos. O llééneba é executado inicialmente pelos
de “fora”, que mesmo nos dias de hoje costumam ser relativamente duros em suas críticas
dirigidas ao dono do baile e seu pessoal. Cabe aos últimos esfriar ou adoçar as palavras
agressivas de seus convidados por meio de sua própria execução de llééneba, cujos versos
improvisados serão tão melhor sucedidos quanto mais eficazmente anularem o potencial
agressivo trazido pelos convidados.

As canções “de noite”, que vêm depois do llééneba no caso dos rituais de
nominação, seguem até perto do amanhecer, momento no qual, pela última vez, o dono
do baile e os homens que o acompanham levantam-se do mambeadero, onde estiveram
durante todo o tempo conversando, narrando orígenes e cuidando para que o ritual
transcorresse sem perigo para seus participantes335. Suas mulheres e filhas, que até então
estavam ocupadas cozinhando a caça, organizando as retribuições das canções e
garantindo que não falte bebida para os convidados, também deixam de lado seus
afazeres.

A maioria dos rituais é executado com um bastão de ritmo (kijcyoí) ao qual se


amarram sementes vegetais unidas por um cordel. Quando está para amanhecer e o dono
do ritual considera que é o momento de interromper as canções “de noite”, o casal dono
do baile vai ao pátio interno da maloca e recolhe os bastões de seus convidados, lhes
entregando um derradeiro e generoso pagamento por suas canções. Em seguida, é
executada a última música do ritual, sendo essa a primeira vez em que o dono do ritual e

334
O pagamento da canção, nesse caso, é entregue à mulher do cabecilla, da mesma maneira que acontece
durante a primeira música da entrada.
335
Como vimos, esses homens e mulheres dançam e cantam em apenas três momentos: na entrada, no
llééneba e no amanhecer – sendo responsáveis, em cada uma dessas ocasiões, pela execução de apenas uma
canção.

313
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

seu cabecilla finalmente cantam e dançam juntos. Tal canção, repetida durante o tempo
que for necessário até que a claridade do sol se faça sentir, difere das executadas nas
suítes anteriores tanto no que diz respeito à sua musicalidade quanto aos passos de
dança336. No geral, após algum tempo dançando dentro da maloca, todos dirigem-se ao
pátio exterior, dançando em frente e ao redor da maloca até o momento em que, já pela
manhã, o dono do ritual o encerra definitivamente, suspendendo a música e a dança. O
canto do amanhecer normalmente marca o fim do ambiente ritual.

Caso haja ainda muita comida e bebida não consumida durante o baile, é comum
que o pessoal do dono da maloca siga dançando no dia e noite seguintes. Já sem boa parte
dos convidados e de maneira bastante mais relaxada, aqueles que permanecem na maloca
cantam e dançam até garantirem que os alimentos tenham sido todos consumidos ou
distribuídos. Em referência a essa prática os Bora costumam dizer, em espanhol, que estão
dançando “el espanto del baile”, algo que poderíamos traduzir como “o fantasma do
ritual”.

Existem ainda pelo menos outros três tipos de canções que podem aparecer
durante os bailes e que creio valerem a pena ser mencionados:

i) Quando os cantores consideram que o ritual está desanimado ou que as


pessoas estão dormindo em vez de dançar, é corriqueiro que cantem
músicas de “tirar para dançar”, ou ujco májchi (literalmente, “canção de
retirar”). Quebrando o protocolo habitual e dirigindo-se às mulheres
deitadas nas redes ou até mesmo aos homens “de dentro” sentados no
mambeadero, o cantor principal leva esses homens e mulheres pelas mãos
até o centro da maloca. Esse é um momento de bastante divertimento, pois,
ao deixar constrangidas as pessoas que foram tiradas para dançar, o ato
repercute como uma maneira jocosa de repreender os presentes por seu
desânimo e preguiça.
ii) Outro tipo de canção que pode aparecer durante os cantos “de dia” ou “de
noite” são as adivinhações (esp.: adivinanzas – bora: niimuhelle). Embora
eu nunca tenha presenciado a execução desse tipo de canção, os Bora me

336
Como já mencionei, não faço aqui uma análise acerca da coreografia ou das técnicas corporais
envolvidas na execução dos passos de dança de um ritual. Saliento contudo que, embora muito diferentes,
a maioria deles é organizada segundo o gênero dos dançarinos, de modo que homens e mulheres se
posicionam de forma diferente no pátio da maloca. Até onde sei, as canções de amanhecer são as únicas
nas quais homens e mulheres dançam juntos a mesma coreografia.

314
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

explicaram que nas adivinhações os cantores, por meio de metáforas e


charadas, exigem do dono do baile determinado pagamento. Por exemplo,
para dizer que deseja como retribuição a suas canções certo tipo de
alimento, o cantor improvisará uma canção-charada que faz alusão a
episódios míticos ou a caraterísticas como a forma, a cor ou o cheiro do
que deseja receber. Cabendo ao dono do ritual decifrar o enigma, cada
tentativa frustrada de oferecer um alimento ao cantor é ocasião de muita
diversão para os que assistem.
iii) Se canções de “tirar para dançar” e adivinhações introduzem uma dose de
jocosidade ao ambiente ritual, o mesmo se pode dizer das canções de
“corrida”. Nos rituais Ujcútso os cantores adentram a maloca a fim de
entoar não uma, mas pelo menos três peças diferentes. Após cantar as
primeiras, cujos ritmos se assemelham entre si, executa-se a última canção
antes de deixar a maloca. Os Bora chamam tal canto de paátuve, ou
simplesmente “corrida”, referência à aceleração do ritmo e à introdução
de passos de dança mais ligeiros e complexos. Muitas vezes os jovens não
são capazes de acompanhar os mais velhos, as crianças pequenas terminam
por cair no chão, as mulheres perdem seus sapatos. Junto à poeira que sobe
na maloca, os participantes terminam muito animados a esperar o próximo
cantor que entrará na maloca e, no fim de sua performance, realizará outra
“corrida”.

Agora que já sabemos um pouco sobre como os rituais estão organizados,


podemos nos deter em conhecer cada um dos dez tipos de bailes que os Bora realizam
atualmente. Comecemos com os ordinários: Ujcútso, Apújco, Méémeba e Túrií.

6.3. Ujcútso ou Carijona


Esse é o ritual mais comumente realizado entre os Bora. Hoje em dia, ele acontece
ao menos uma vez por ano, por ocasião da troca de governador do cabildo Providencia
(ver cap. 7). Além disso, é normal que se faça Ujcútso em momentos como o final do ano
letivo, o encerramento de algum encontro político ou algumas festas nacionais como o
Dia das Mães. A palavra ujcútso tem um significado amplo em Bora. Sua raiz, ujcu,
significa, segundo meus interlocutores, recoger (em português, por coletar). No

315
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

dicionário de Thiesen & Thiesen, ujcu é glosado como “tomar, coger, conseguir, obtener,
lograr, adquirir, procurar (...), obsequiar (...), captar, comprender (...), cosechar” (1998:
294). Dada a adjunção do causativo -tso, os autores traduzem ujcútso por “hacer recoger”
ou “hacer conseguir”.

Ao discutir tal tradução com meus interlocutores bora, eles chegaram à conclusão
de que, embora ela fizesse sentido, não era usual. Ujcútso, segundo eles, é apenas o nome
próprio desse ritual, sendo raramente empregado em outro sentido. Já em espanhol, o
baile Ujcútso é chamado Carijona. Este ritual possui equivalentes entre os demais Povos
do Centro, de modo que destacam-se alguns trabalhos sobre a importância do ritual
denominado, entre os Murui-Muina, como Riama337 – o mesmo termo usado por esse
povo para fazer referência aos Carijona, grupo de língua Carib que até o século XIX era
numeroso na região da bacia do rio Caquetá338.

Os Carijona estabeleciam com os Povos do Centro relações de inimizade que, no


mais das vezes, passavam pela antropofagia339. No caso específico dos Bora, alguns
abuelos narraram-me que os Carijona chegavam mesmo às proximidades do rio
Cahuinari, local onde estava também a maior parte das malocas Bora-Miraña.
Comentaram-me ainda que os Carijona, assim como os Povos do Centro, tinham o
costume de capturar inimigos e, após certo tempo de convivência na maloca, matá-los
para consumir sua carne.

Tal povo atuou também como intermediário no processo de rapto e venda de


pessoas para os comerciantes escravagistas que adentravam a região do Caquetá-
Putumayo no Tempos dos Brasileiros (ver cap. 1). É curioso notar que, enquanto os Bora
denominam os não-indígenas como añúmúuna (“gente que atira” ou “gente que queima”),
os Murui-Muina os chamam riama:

Como rïama calificaban los uitotos a los karibes (karijonas) y más tarde
a los blancos por cuanto ambos eran devoradores de hombres, los
primeros, por consumición directa, y los segundos, en forma simbólica
(el trabajo cauchero los devoraba). La intermediación ejercida por los

337
Tobón (2016:48) traduz este termo por “canibal insaciável”.
338
Especialmente nos rios Caguan, Orteguaza, Yarí, Mesay, Cuñare e no Parque Nacional Natural Sierra
de Chibiriquete. Para uma exposição detalhada a respeito dos Carijona desta última área, ver Franco (2012).
339
Segundo Créveaux (1883: 368), os Carijona chamavam todos os Povos do Centro de ouitoto, termo que
o autor glossa como “inimigos”. Desconheço uma análise da língua Carijona que possa refutar ou validar
essa tradução, mas é importante salientar que em outras línguas da mesma família o termo “itoto” ou “totó”
é traduzido como “gente” ou “humano”. Seja como for, o etnônimo Uitoto é empregado para designar o
conjunto de povos Murui-Muina (Bue, Mika, Nïpode e Minika).

316
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

karibes en el tráfico de esclavos con los blancos, reforzó la


equiparación. (Urbina et al., 2000: 28)
Tobón (2016: 147-160) narra que o ritual Riama teria surgido a partir de uma
resolução nativa de colocar fim às relações de inimizade e guerra entre os Murui-Muina
e os Carijona. Nesse processo, selaram a paz por meio da realização do referido baile,
cujas músicas fazem alusão à relação tensa entre esses povos. No caso dos Murui-Muina,
as canções encontram-se tanto em seu próprio idioma quanto em língua Carijona, fazendo
assim com que apenas parte das músicas seja inteligível para quem as canta e para quem
as ouve. Além disso, os cantores que adentram as malocas são acompanhados vocalmente
por mais de uma mulher.

Se os Bora com quem trabalhei também afirmam que os Carijona foram seus
inimigos, eles relatam uma versão diferente para o aprendizado das músicas cantadas no
ritual340. Vejamos a origen bora:

Havia um Deus [Niimuhe], Deus-dos-Cantos. Ele tinha todos os cantos


e se chamava Jaguar-dos-Cantos-de-Jusante. Ele era mau. Digamos que
ele era um jaguar, um devorador. Não era uma boa pessoa, vivia abaixo
[à jusante no rio].
Havia dois homens que foram atrás dele, eram irmãos. Sua família tinha
mandado que eles escutassem o sapo que cantava de noite, em busca de
carne. Sua mãe e sua avó era muito “carniceiras”. Então eles escutaram
que alguma coisa soava por ali, algo bonito. Era uma coisa que eles
nunca tinham escutado. E assim se foram, se foram, não se sabe quanto
tempo demoraram para chegar lá. Era muito longe, então cada vez que
iam, voltavam. Onde terminava seu rancho, eles voltavam. O rancho
deles era coca, ambil e beiju. Então o rancho terminava antes que eles
chegassem onde soava o canto. Voltavam em casa para pegar mais.
Assim iam continuando mais para lá… Onde terminava o ranchinho,
eles regressavam. Era muito longe, como daqui [médio Igaraparaná] até
o Putumayo. Eles iam, e aí onde caía a noite, eles continuavam mais e
não chegavam. Até que um dia, por fim, chegaram341.
Daí chegaram e estiveram com ele, o Jaguar-dos-Cantos-de-Jusante.
Eles tinham levado todos as substâncias [coca e tabaco], e por isso ele
os recebeu e de uma vez os sentou no mambeadero. O Jaguar-dos-
Cantos-de-Jusante começou a ensinar-lhes todos os cantos de todos os
rituais. Eles não dormiam nem comiam, dia e noite. A vida deles era
“pura dieta”342. Ele terminou de os ensinar e disse:

340
Ouvi essa narrativa, em espanhol, em dois momentos diferentes. O que apresento a seguir é uma forma
resumida da narrativa que gravei em maio de 2016 com um homem do clã Amanhecer. Após a transcrição,
alguns dados foram adicionados por homens dos clãs Tamanduá e Cobra-Grande.
341
Segundo uma das versões, os irmãos chegaram até uma cidade cercada por muros onde vivia seu pai,
“secretário” (ávyéjuúebe náhbéébeé) do Jaguar-dos-Cantos-de-Jusante. Tendo fama de violento e canibal,
o jaguar-dos-cantos-de-jusante apenas os recebeu pois eles chegaram apropriadamente, isto é, com uma
retribuição generosa de coca e tabaco. É relevante observar que, nessa versão do relato, os irmãos
encontram-se numa relação de orfandade ou serviço para com o chefe de seu pai, tema que é recorrente nas
narrativas míticas.
342
A expressão refere-se à “dieta” (awa), restrição alimentar e comportamental (abstenção sexual,
contenção da raiva, dentre outros) que deve ser observada em momentos como o resguardo e o plantio de

317
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

- Tudo bem, pronto! Vocês já podem voltar. Quando vocês


chegarem em casa, pendurem suas redes. Deitem e durmam. Tudo
o que vocês aprenderam, vocês vão lembrar enquanto vocês
dormem.
Assim voltaram para casa. Ao chegar, disseram à sua mãe:
- Mãe, nós vamos dormir, você não deve nos acordar! Tudo o que
trouxemos do nosso abuelo, vamos repassar.
Assim se deitaram, havia muitas noites que não dormiam. A mãe vivia
na maloca, fazia beiju, fazia cahuana, mas os filhos nunca levantavam.
A comida estragava. Até que um dia ela se desesperou:
- Será que eles estão mortos? Eles nunca acordam!
Então ela foi e moveu o irmão, seu filho menor. Como era uma rede,
ela o sacudiu. Porém, ele não se levantou, mais caiu no chão,
carbonizado. Ficou bem preto e morreu.
Com medo, então, a mulher não levantou o filho maior, que seguiu
dormindo até que se levantou sozinho, da maneira como havia dito que
aconteceria.
Quando acordou, ele procurou o irmão:
- Onde está meu irmão? Por não confiar em mim você o acordou e
ele morreu! Por isso eu disse que você não devia nos acordar!
Podemos notar que a narrativa acima não se parece à versão murui-muina para a
origem do ritual Carijona, que narra o fim do conflito entre os dois povos. Geralmente,
ao contá-la, os Bora dizem que o último episódio (a morte do irmão menor em razão da
transgressão da mãe) fez com o ritual se tornasse fonte de mau-agouro para todas as
mulheres. Desde então, todas estamos interditas de ver o começo da entrada do ritual,
quando os homens “de fora” ingressam na maloca pela primeira vez343. Além disso,
embora várias mulheres saiam de suas redes durante a noite para dançar, apenas uma
delas “contrata” ou acompanha vocalmente o cantor principal, ecoando solitária sua
aguda voz feminina em meio ao canto dos homens. Nenhuma canção do ritual Carijona
ou Ujcútso é em idioma Bora, de modo que todos os presentes desconhecem o significado
semântico daquilo que dizem344. Elas não são, contudo, as únicas entregues pelo Jaguar-
dos-Cantos-de-Jusante, pois, na verdade, o mito acima narra a origem das canções de
todos os rituais.

A menção a um jaguar que vive à jusante não se restringe apenas a essa narrativa.
Mireille Guyot trabalhou nos anos 1960 e 1970 com a gravação e a transcrição de cantos

tabaco na roça. Diz-se que os chefes, no passado, eram conhecidos por viverem constantemente em estado
de “dieta” (ver Glossário).
343
Nesse momento, os homens alertam todas as mulheres presentes, que devem permanecer de costas para
o pátio interno, olhando para o chão ou para as paredes da maloca.
344
Segundo os Bora, isso acontece porque elas “devem estar” em Carijona. Até hoje, contudo, nenhum
estudo linguístico foi capaz de associar a letra dessas músicas às línguas Carib.

318
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

rituais que ela denominou “cantos de machado” (cf. cap. 1). Aparecendo em diferentes
momentos rituais (cantos de dar de tomar, de dia, de noite ou llééneba), essas canções
fazem referência ao tempo em que os Bora participaram (ora como chefes, ora como
órfãos) da troca de pessoas por ferramentas de metal – principalmente ao longo dos
séculos XVIII e XIX. É o caso desta canção, do ritual Báhjaá:

De allí viene el tigre del agua del Este


Tigre “trozador” del Brasil
Por él, no duerman ustedes
¿Quién de nosotros es el que va a enfrentarlo?
¡No duerman ustedes!
(Guyot, fg_b3_Chants Bora)
Ou, ainda, desta outra do baile Túrií:

Hoy es la misma cosa


Siempre del lugar del Este
El espíritu de los tigres viene comiendo
De eso se asustaron las gentes de las tribus
Aquí no más, aquí no más, aquí no más
Porque comió nuestra gente el espíritu de los tigres
(Guyot, fg_b3_ Chants Bora)

Como vimos na Introdução à Parte I, há um termo em Bora (ááméju) que aglutina


as noções de “leste”, “oriente” e “jusante”. Além dos comerciantes de escravos e outros
agentes coloniais, era dali também que provinham povos indígenas como os Cubeo e os
Carijona, com quem faziam guerra, comércio e ritual. O Jaguar-dos-Cantos-de-Jusante,
assim, é a condensação das múltiplas faces por meio das quais o exterior se apresenta aos
Bora345. Ele é um espírito canibal, um inimigo devorador, mas também é aquele com
quem se troca e de quem se aprende canções; é o comerciante com quem se negocia
mercadorias, mas também são os Carijona contra os quais se guerreia. Em suma, o Jaguar-
dos-Cantos-de-Jusante é um estrangeiro. Indo além, se durante um baile, os caçadores-
cantores ou “de fora” entoam canções que podem ser quentes e agressivas, o pessoal “de
dentro” se ocupa, por sua vez, de esfriar as palavras insultuosas de seus convidados com
alimentos vegetais e canções frias. Quase todas as canções executadas em um ritual
provêm, portanto, do exterior, pois quem as trazem são aqueles que, desde o ponto de
vista do dono do baile e de seu pessoal, encontram-se na posição de estrangeiros.

A retribuição que lhes é oferecida na forma de alimentos vegetais, entretanto, não


tem como objetivo apenas a neutralização de sua agressividade: um convidado, ao cantar

345
Numa versão do mesmo mito apresentada por Ochoa (1999) coletada entre os Bora no rio Ampiyacu
(Peru), o Jaguar-dos-Cantos-de-Jusante é substituído por um filho de Deus-do-Machado.

319
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

as músicas que conhece, permite que elas sejam aprendidas pelos “de dentro”, quem as
cantarão futuramente em outros rituais. Assim, embora as canções de um baile
conformem em sua maioria suítes fechadas que não variam ao longo do tempo, elas
podem ser transmitidas e aprendidas desde o exterior. Os Bora indicam que no caso do
ritual Ujcútso as canções foram aprendidas, num passado distante, com os antepassados
dos hoje chamados Carijona. Em relação aos outros rituais, a maioria das canções em
idioma nativo faz referência a relações entre os Povos do Centro e o mundo não-humano,
principalmente com animais e vegetais – de modo que é comum que durante a narração
de uma origen o narrador interrompa sua fala para cantar uma música que faz referência
àquele mito. Aliás, é apenas com o domínio de um corpus extenso de orígenes que alguém
se torna apto a entender o conteúdo metafórico das canções rituais. Porém, assim como
ocorre com o baile Ujcútso, há outro ritual no qual os Bora não entendem a letra das
canções. Trata-se do baile de caiçuma de pupunha, que descrevo a seguir.

6.4. Méémeba ou Baile de Chicha


Méémeba é, ao mesmo tempo, o nome do ritual e o nome da bebida não-
fermentada (caiçuma ou chicha) de pupunha (bora: meéme – esp: chontaduro) servida
nessa ocasião. Ela é feita a partir da extração e do cozimento da polpa da fruta, abundante
entre os meses de fevereiro e março no Caquetá-Putumayo. Nessa região, os Bora, os
Miraña e os Andoque realizam esse baile. Mais próximo ao rio Caquetá, os Yukuna e os
Tanimuka possuem ritual semelhante346.

Como ocorre para outros bailes bora, existe uma relação estreita entre o rito e um
mito que narra a sua origem. No caso de Méémeba, essa narrativa conta as desventuras
de um personagem chamado Llijchuri, também designado Flecheiro ou Sol-da-Metade
(Piine Nuhba)347. Inicialmente, Llijchuri é um grilo que se transforma em humano a
pedido de sua mãe, uma mulher-onça. Ele desconhece, porém, o paradeiro de seu pai.
Resolve investigar e acaba descobrindo que o pai havia sido um órfão errante que morrera

346
No caso dos Miraña no rio Caquetá, a estética atual das máscaras dos animais resulta de uma intensa
relação de troca com seus vizinhos Yukuna (Karadimas, info. pessoal). A diferença entre as máscaras Bora
e Miraña poder ser notada na forma e na estética de cada uma delas: enquanto as máscaras miraña costumam
apresentar pinturas policrômicas e mais figurativas, as dos Bora geralmente não possuem muitas pinturas
e grafismos (Ver Fotos 23, 24 e 25).
347
O nome Llijchuri é composto por ilijchu, verbo que descreve a ação de soprar dardos com uma
zarabatana. Em Bora, piine significa meio, metade, centro, cintura, enquanto nuhba designa tanto o sol
como a lua (ou, ainda, um relógio – dependendo do contexto de utilização).

320
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

assassinado por seus próprios cunhados. Com a zarabatana que encontra escondida nas
coisas de seu genitor, Llijchuri mata e come os assassinos de seu pai, seus quatro tios-
onça (os irmãos da mãe), guardando os crânios como troféus. Em seguida, mata e come
por engano um macaco que, como descobre depois, era sua própria mãe. Sem parentes e
sozinho em sua maloca, Llijchuri resolve sair pelo mundo com a zarabatana do pai,
envolvendo-se em uma série de desventuras nas quais, muitas das vezes, ele figura como
seu próprio algoz348.

Como dizem os Bora, “muitos são os capítulos da história de Llijchuri”, sendo


impossível nos limites deste trabalho fazer um apanhado de todos eles. No caso do ritual
Méémeba, basta-nos conhecer uma dessas narrativas349.

Llijchuri desconfiava que alguém comia suas frutas. Um dia ele viu que
duas garotas estavam por aí comendo e resolveu agarrá-las. Elas eram
mulheres-peixe, bem bonitas. Uma tinha a cabeça pequena porque era
um tambaqui. A outra era um matrinxã pequenininho e tinha os cabelos
longos. Pelos cabelos, ele a agarrou, enquanto a outra se meteu no rio.
Ele tomou essa mulher como esposa. Com o tempo, porém, ela foi
emagrecendo. Ele trazia para ela vários tipos de peixe, mas ela não
comia. Ele perguntava o motivo, mas ela não respondia. Um dia,
Llijchuri teve a ideia de tirar alguns fios de sua sobrancelha e jogar no
fogo. Da brasa saiu uma larva que foi rastejando até a rede da mulher.
Ela então a pegou e a tostou em seu forno e comeu. Vendo isso,
perguntou:
- Mulher, o que você está comendo?
- Nada.
Ele insistiu:
- O que você está comendo? É uma larva?
- Sim, é uma larva.
Espantando, ele retrucou:
- E por que você come isso?
A mulher acabou confessando que não comia a comida que seu marido
trazia porque todos aqueles animais eram seus familiares. Então
Llijchuri criou todos as larvas que existem hoje em dia para que sua
mulher pudesse comer. Ela passou a dormir bem e engordou.
Um dia ela disse ao marido que iria até a casa de seu pai com algumas
larvas moqueadas para que eles comessem também. Llijchuri disse que
queria ir, mas ela o desaconselhou, falando que lá eles eram bem
malvados. Assim mesmo ele insistiu e os dois então se meteram dentro
do rio e foram.

348
Como relatei no capítulo 4, algumas vezes levei filmes e um projetor para as malocas, sendo o filme que
mais fez sucesso Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade. Ao conhecerem as histórias desse anti-herói,
enquanto algumas pessoas o comparavam ao menino órfão que vivia e trabalhava na maloca, outras diziam
que Macunaíma era como Llijchuri.
349
Ouvi a história que se segue diversas vezes e em vários contextos distintos. Opto por apresentar a versão
que escutei em espanhol em abril de 2016 no mambeadero de uma maloca do clã Amanhecer. O que segue
foi transcrito e adaptado das anotações em meu caderno de campo.

321
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

Logo chegaram ao mundo subaquático. Assim que chegaram tudo ficou


seco e o mundo se parecia muito com o que há na terra. Llijchuri entrou
na maloca de seu sogro e os peixes vieram cumprimentá-los. Um peixe
que possuía grandes espinhos o espetou e o barbado o golpeou com sua
barba. Assim era o modo de os peixes cumprimentarem.
Ele já estava bem machucado quando chegou seu sogro, que era uma
Cobra-Grande, a Cobra-Grande-dos-Peixes. Ele o abraçou bem forte e
Llijchuri quase morreu sufocado. Sua esposa disse então que havia lhe
avisado que isso aconteceria e o aconselhou a utilizar seu “tabaco de
poder” [tabaco em forma de ambil com propriedades curativas].
Assim ele o fez e logo se recuperou. O único animal que não o havia
cumprimentado era a raia, que vivia tostando coca no forno. A raia era
o antigo namorado de sua esposa, mas ele não sabia. A raia se
aproximou então de Llijchuri e perguntou:
- Onde é seu coração?
Llijchuri mostrou seu tornozelo, mas a raia não acreditou. Em seguida
ele disse que seu coração ficava no joelho e a raia também não
acreditou. Assim ele foi indicando todas as articulações, até que disse
que, na verdade, seu coração era no calcanhar.
Então a raia o espetou e quebrou seu ferrão dentro do pé de Llijchuri
para que lhe corresse bem o veneno. Llijchuri adoeceu e passou a viver
recostado em sua rede, sem poder caminhar. Os peixes zombavam dele
e de sua incapacidade. Um dia, enquanto os peixes jogavam o jogo da
bola de seringa350, Llijchuri providenciou uma proteção para seu joelho,
envolvendo-o “espiritualmente” com caucho, casca de árvore de sal
vegetal e tudo mais que é duro351. Então ele pôde jogar também e
golpear a bola sem dificuldade.
A bola de caucho, porém, tinha seus dentes. Quando Llijchuri a chutou,
ela foi em direção a uma palmeira de pupunha que havia dentro da
maloca. Nesse momento um cacho de pupunha caiu no chão e o sogro-
Cobra-Grande, preocupado, mandou que seu pessoal recolhesse as
sementes, os frutos, tudo!
Porém, Llijchuri já tinha escondido debaixo do seu pé uma das
sementes que havia caído. A semente começou a esquentar muito e ele
a escondeu atrás do joelho, logo nas axilas e, por fim, como não podia
aguentar mais o calor, a engoliu.
Ele então começou a falar com a raia que em sua casa havia suco de
buriti e que estava muito gostoso. A raia lhe respondeu que não gostava
de buriti, pois era ácido. Llijchuri lhe disse que tinha suco de várias
frutas mais e ele continuava recusando, até que por fim falou que havia
suco de mari352. A raia lhe respondeu:
- Isso sim eu gosto!
Então a raia perguntou a Llijchuri onde estava sua “mentirinha”353 e ele
lhe apontou o calcanhar. A raia soprou tabaco e chupou seu veneno, sob

350
Para uma análise do jogo de bola de seringa entre os Murui-Muina, ver Areiza Serna, 2016. Tal jogo,
praticado com uma bola de goma que os jogadores deveriam controlar com seus joelhos, também existia
entre os Bora.
351
Nesse ponto, aqueles que me narraram esse mito explicaram que Llijchuri não envolveu “de fato” seu
joelho com esses elementos, mas proferiu uma “oração” (ver Intr. à Parte II) em que os nomeava.
352
Poraqueiba sericea.
353
Muitas vezes, para referirem-se a feridas ou picadas de animais peçonhentos, os Bora usam eufemismos
(ver supra sobre potencialidade do ato de “nomear” algo ou alguém).

322
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

a condição de que ele, ao voltar à superfície, jogaria alguns maris na


água para que ela pudesse comer.
Já em casa, Llijchuri defecou a pupunha que havia comido e a plantou
atrás da maloca, para que a mulher não visse. Porém, logo ela notou e
o reprimiu, dizendo que iria contar a seu pai. O sogro de Llijchuri, a
Cobra-Grande-dos-Peixes, ao receber a visita da filha e saber do
ocorrido, mandou todo seu pessoal para a superfície e fez com que o rio
subisse rapidamente, iniciando uma inundação.
Sem ter muito o que fazer, Llijchuri sentou em cima de seu manguaré
e observou. Os peixes cavaram um buraco ao redor do pupunhal e ele
caiu inteiro. Logo, eles levaram a árvore inteira para o fundo do rio.
Quando toda a água secou, Llijchuri encontrou uma “mojarrita”354 que
sobrevivia em uma poça de água. Em sua boca, ela tinha um pequeno
ramo da palmeira de pupunha que os peixes haviam derrubado.
Llijchuri lhe disse que, por vingança, iria assá-la, pois ela tinha roubado
sua pupunha. A “mojarrita” o convenceu a plantar a raminha propondo
que, caso ela crescesse, Llijchuri a pouparia. Ele concordou, mantendo
a “mojarrita” numa pequena cuia até que, finalmente, a palmeira
cresceu.
Llijchuri devolveu a “mojarrita” para o rio, dizendo que, como
pagamento pela pupunha que lhe havia entregado, ela poderia viver
sempre na beira dos rios alimentando-se do bagaço da pupunha quando
as mulheres fizessem caiçuma do fruto.
As histórias de Llijchuri e da origem da pupunha parecem ser bastante difundidas
na região. Em sua tese, Karadimas (1997: 233) apresenta uma versão muito semelhante a
que acabamos de conhecer. Compara-a, ainda, com outras narrativas recolhidas por
Preuss (1994) entre os Murui-Muina e por Razon entre os Bora no Peru (fg_b2_d3). Não
tive até o momento a oportunidade de participar de um ritual Méémeba, de modo que a
exposição que apresento abaixo é baseada na descrição de meus interlocutores e nas
informações que recolhi por meio dos dados de Mireille Guyot (fg_b9_d1) e da leitura
dos trabalhos de Karadimas (2003, 2010, 2011) entre os Miraña355.

Como é de se esperar, Méémeba organiza-se em torno da complementaridade


entre “dentro” e “fora”. Contudo, nesse caso, os convidados portam máscaras e chegam
à maloca não como simples visitantes, mas como animais. Enquanto isso, as mulheres e
o grupo do dono do ritual permanecem na maloca na posição de humanos. Guyot relata
ter inventariado, entre os Bora, máscaras de papagaios, peixes, macacos, tartarugas
terrestres, mosquitos, abelhas, borboletas, queixadas, moscas, tamanduás, carapanãs,
libélulas e vespas (fg_b9_d1). De fato, ao recolher informações sobre esse ritual e
trabalhar com as canções registradas pela antropóloga no Igaraparaná nos anos 1960 e

354
Peixe de pequeno porte. Espécie não identificada.
355
Pude assistir, junto com os Bora, fragmentos em vídeo da execução desse ritual. Utilizei para esse fim
o documentário realizado no Igaraparaná por Gasché em 1974 (Gasché, 1982), além de imagens mais
recentes feitas nas aldeias Bora no Peru e que circulam nas redes sociais.

323
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

1970, pude conhecer diferentes canções que se relacionam a cada uma dessas máscaras e
que são cantadas pelos convidados no momento de sua aparição356. Alguns exemplares
de máscaras desse ritual foram coletados no começo do século XX por Wavrin entre os
Bora no Putumayo (Fotos 23, 24, 25 e 26).

Foto 23 – Máscara do ritual Méémeba


(Acervo do Musée du Quai Branly, número de inventário 71.1930.39.28)

Foto 24 – Máscara do ritual Méémeba


(Acervo do Musée du Quai Branly, número de inventário 71.1930.39.19.1-2)

356
Essas canções, à maneira daquelas executadas nos rituais Ujcútso, são ininteligíveis aos Bora. Nesse
caso, em vez de estarem no idioma dos inimigos Carijona, se encontram na linguagem utilizada pelos
animais para se comunicarem entre si.

324
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

Foto 25 – Máscara do ritual Méémeba


(Acervo do Musée du Quai Branly, número de inventário 71.1930.39.24.1-2)

Os seres que comparecem ao baile como mascarados são os donos ou mestres de


determinados animais. Eles dividem-se em dois conjuntos em função de sua espécie ser
ou não-comestível. Karadimas observa que, para os Miraña, essa divisão evidencia-se por
meio da diferença no comportamento de cada um deles durante o ritual. Enquanto os
donos dos animais que não estão na posição apical de predadores (como as onças) ou com
os quais não se estabelecem com relações cinegéticas (como os insetos não-comestíveis)
entram pacificamente na maloca para beber caiçuma de pupunha, os donos dos animais
caçados pelos humanos apresentam comportamento violento357:

(...) los Dueños de las especies consideradas animales de caza y que, en


su mayoría, no son vistas como belicosas frente a los humanos (...)
adoptan un comportamiento agresivo e intentan copular con los
humanos durante esta fase del ritual (Karadimas, 2010: 65).
Por verem nos humanos seus predadores, os donos dos animais de caça e dos
peixes, ao entrarem na maloca belicosamente, estariam tomados pelo desejo de vingar
seus parentes mortos nas incursões de caça e pesca dos humanos, cabendo ao dono do
ritual e todos os “de dentro” arrefecer o comportamento inadequado ou quente desses
animais358. Esse “resfriamento” seria concretizado por meio do fornecimento da bebida
de pupunha aos animais-bailarinos, sendo a chegada do Mestre dos Animais um dos
momentos mais esperados pelos presentes. “Mestre dos Animais” é a tradução proposta

357
A oposição entre animais “selvagens” e animais “de caça” foi rapidamente discutida na Introdução à
Parte II.
358
Veremos, na Conclusão deste trabalho, como suspeito que a intenção dos humanos é fixar-se na posição
de chefe dos animais.

325
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

por Karadimas para o vocábulo miraña mé:ì (em Bora, mééií)359. Portando uma
indumentária que leva à frente um grande falo esculpido em madeira, o Mestre dos
Animais busca copular com as mulheres que estão na maloca360. Para saciar seus desejos,
despeja-se caiçuma de pupunha em seu pênis e ele cai, exausto, no pátio central361.

É interessante notar como o ritual inverte as relações da vida cotidiana: enquanto


os Bora temem animais como a onça, a cobra-grande e o boto, por seu potencial predador
e causador de doenças, os animais de caça, embora sejam alvo de certas precauções,
costumam ser abatidos e comidos pelos humanos, que podem deles usufruir impunemente
ao fazer uso das substâncias de proteção adequadas. Buscando compreender melhor essa
inversão, sempre que perguntei aos Bora sobre as razões para tamanha violência por parte
dos animais nos rituais Méémeba, eles me diziam que os últimos chegam bravos à maloca
por conta do roubo da pupunha efetuado por Llijchuri. É o que também constata também
Pineda Camacho ao analisar o ritual entre os Andoque:

En el baile (...) los distintos animales van acercándose a la maloca (...)


a reclamar la chicha que se robó (...). Este rito celebra la adquisición
del chontaduro, la expropiación a los pescados del monopolio del
cultivo de esta palma, la única de las palmas que hay sembrada por los
Andoque, y cuyo fruto se consume cocinado o se prepara en forma de
bebida (Pineda Camacho, 1976: III).
Seja por conta do roubo da pupunha (como é o caso nos Bora e nos Andoque) seja
em razão da morte de seus parentes (como nos Miraña), é notória a raiva sentida pelos
animais de caça, bem como seu desejo de vingança362. A maneira encontrada por esses
povos para acalmar ou esfriar o comportamento quente e perigoso dos animais, mais um
vez, é o fornecimento de um alimento vegetal processado: a caiçuma de pupunha.

Após a entrada de todos os animais, durante o período diurno, segue-se a segunda


fase do ritual, essa sim idêntica à execução dos bailes tal como os conhecemos até aqui:
entrada de cantores-bailarinos na maloca, “contratação” de suas músicas pelas mulheres,

359
Vimos, anteriormente (Int. à Parte II), como mééií é, ao mesmo tempo, uma palavra utilizada para fazer
referência aos animais de forma genérica e empregada quando se deseja salientar as capacidades quentes
ou daninhas dos mesmos.
360
Essa indumentária é bastante similar àquela apresentada por Matarezzio Filho (2015) ao descrever o
ritual da moça nova entre os Ticuna.
361
Para uma análise aprofundada sobre o tema, ver Karadimas (2010).
362
Poderíamos argumentar, entretanto, que a pupunha foi roubada da Cobra-Grande-dos-Peixes no mundo
subaquático, não afetando assim os animais de caça. Porém, é preciso ter em mente que a alimentação bora
encontra nos peixes sua principal fonte proteica. Ainda que menos perigosos ou daninhos que grandes
mamíferos como a anta, o porco do mato e o veado, os peixes também são potencialmente causadores de
doenças. Além disso, têm no seu dono ou mestre (a Cobra-Grande – que, como vimos, é a inimiga primeva
da Garça-Branca) um ser tão ou mais relacionado à predação que o jaguar.

326
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

pagamento em alimentos, etc363. Nessa parte do ritual, os homens-cantores utilizam outro


tipo de adorno que, apesar se de assemelhar a uma máscara, é encaixado na parte frontal
da cabeça sem que o rosto seja coberto. Um desses artefatos pode ser visto na Foto 26.

Foto 26 – Máscara do ritual Méémeba


(Acervo do Musée du Quai Branly, número de inventário 71.1930.39.3)

Delongar-me na execução de Méémeba seria difícil, pois como disse, ainda não
tive a oportunidade de acompanhar um desses rituais. Percebi, porém, que Ujcútso e
Méémeba, ao possuírem canções ininteligíveis aos Bora (por estarem no idioma ora dos
inimigos ora dos animais), são considerados rituais muito “aguerosos”, isto é,
especialmente perigosos e delicados para seus participantes, que podem adoecer ou
desentender-se a qualquer momento364. Em razão dos elementos que mobilizam, geram
constante alerta e precaução nos donos dos rituais e seus cabecillas, que buscam garantir
que nada de mal aconteça por meio de profilaxias xamânicas que, no mais das vezes, têm
no tabaco a substância protetora por excelência. Ao mesmo tempo, esses rituais, ao serem
capazes de produzir com o mundo exterior relações de frias de harmonia e
apaziguamento, mostram-se especialmente importantes em certas situações.

363
Uma descrição do ritual entre os Bora no Peru pode ser lida em Girard (1958: 112-114).
364
Muito provavelmente, Whiffen esteve presente em bailes bora Ujcutso ou Meemeba, sobre cujas canções
escreveu: “What this implies no Indian now knows, for with all tribal songs the natives offer no explanation
of their meaning or their origin. (…) These tribal lays are so old that the words are obsolete and no longer
understood by the singers.” (Whiffen, 1915: 207-208).

327
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

A última vez que os Bora do Igaraparaná realizaram um Méémeba, alguns anos


antes de que eu começasse a trabalhar na região, foi em razão da doença de um chefe,
diagnosticado pelos médicos não-indígenas com câncer avançado. Para seus parentes,
porém, a raiz de sua doença era um feitiço (esp.: maldad – bora: wabyúnu) que alguém
lhe havia feito. Ainda que muitas sejam as especulações acerca do autor de tal feitiço, era
evidente para meus interlocutores que o feiticeiro contara com a ajuda de algum animal.
Realizar um ritual Méémeba foi, assim, uma maneira de acalmar e esfriar os animais,
buscando dessa maneira restituir a saúde do chefe adoentado.

6.5. Apújco ou Baile de Fruta


Apújco é o nome de um ritual traduzido em espanhol pelos Bora como baile de
fruta. Embora não haja uma correspondência entre o nome desse ritual e o vocábulo
utilizado para denominar as frutas de modo geral (lleéne), a tradução faz referência ao
fato de que os participantes costumam dar e receber frutas nesses rituais (García, 2016,
2018; Guyot, fg_b9_d1). Bem como Ujcútso, trata-se de um ritual realizado
rotineiramente, sendo sua preparação bastante mais simples que a dos rituais titulares365.

Por ser mais frequente, é normal que Apújco conte também com um número
menor de convidados. O ritual está comumente relacionado à conclusão de trabalhos
coletivos como a abertura de uma roça ou a manutenção de uma maloca, sendo seus
participantes aqueles mesmos que trabalharam junto ao dono do baile.

Los Bora invitan a una fiesta apújko para que los aliados ceremoniales
vengan a pisar el piso del nuevo sitio de la maloca y para pedirles hojas
para la cubierta del techo. La misma fiesta apújko sirve para celebrar
esta fase en la construcción de la maloca cual sea la carrera ceremonial.
(Gasché, 2009: 19)
As canções executadas em Apújco, ao contrário do que vimos para os dois rituais
anteriores, encontram-se em idioma Bora366, e é comum que bailes de frutas sejam
momentos privilegiados do surgimento de “adivinhações” (bora: niimuhelle – esp:

365
Segundo Gasché (2009), entre os Murui-Muina tal diferença encontra suas origens no fato de que o baile
de frutas foi entregue pelo “Criador” a seu filho caçula, enquanto outros rituais (como Llaaríwa e Báhjaá),
foram entregues, respectivamente, ao filho primogênito e a seu irmão imediatamente mais novo, ambos de
maior prestígio, como vimos nos capítulos precedentes.
366
Os demais grupos que formam o conjunto dos Povos do Centro possuem um ritual correlato e também
o realizam frequentemente, de modo que é bastante comum que durante um baile de frutas seja possível
escutar canções em Murui-Muina, Muinane, Miraña, etc. Há alguns trabalhos que descrevem bailes de
frutas para outros povos do Caquetá-Putumayo (Gasché, 2009, García, 2016) e, mais especificamente, em
malocas murui-muina no rio Caraparaná (Pereira, 2010). Para narrativas de origem do mesmo ritual entre
esse grupo, ver Preuss, 1994: 719-741. Para algumas canções, ver a mesma obra (:741-746). Para canções
bora, conferir Guyot (fg_b3_Chants Bora).

328
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

adivinanza). Como vimos há pouco, as adivinhações são músicas compostas pelo grupo
dos cantores-bailarinos com o intuito de desafiar os anfitriões a desvendarem qual
pagamento eles esperam que lhes seja oferecido. Por meio de metáforas e referências
indiretas que muitas vezes aludem a episódios míticos, as adivinhações são também
maneiras de colocar à prova a capacidade de um chefe de conduzir adequadamente um
ritual:

Mediante este tipo de canto, los bailarines invitados llaman a los


“dueños de la fiesta” (rafue naanɨ) – los hombres del patrilinaje de la
cabeza de los anfitriones (rafue naama) y sus allegados – a acercarse a
su ronda y a adivinar a qué aluden las palabras del canto. Generalmente,
los hombres más jóvenes ensayan los primeros a encontrar la solución.
Cada vez que fallan, el líder de los cantantes bailarines sigue repitiendo
el canto con el coro de sus acompañantes, añadiendo a veces unas
palabras para indicar la pista hacia la solución. Pero en última instancia,
el reto está planteado al dueño de la fiesta cuyo conocimiento está
puesto a prueba y que tiene que comprobar que es un “verdadero
padre”, por tener el conocimiento adecuado al papel de dueño de la
fiesta. (Gasché, 2008: 1)

Refletindo sobre as adivinhações entre os Murui-Muina no Caraparaná, Pereira


afirma que o momento de resolução de uma dessas charadas é marcado pela produção de
esfriamento e abundância:

Mais uma vez, adivinhar, ou mais especificamente, ter resolvido a


adivinhação, também se relaciona com o grande movimento geral de
“esfriar” – “adoçar” a vida em todas as suas facetas e participar da
geração de abundância. Dito de outro modo, é mais um processo de
transformação/produção que se bem-sucedido pode “curar” e “alegrar”
os familiares e demais membros do grupo. (Pereira, 2010: 17)
O mesmo parece ocorrer entre os Bora. Contudo, eu acrescentaria que a não-
resolução de uma adivinhação é algo perigoso. Se um cantor que chega à maloca sempre
se encontra numa ambígua posição de convidado e inimigo, não solucionar sua charada
é assumir que se desconhece o teor e a intenção de suas insinuações. Enquanto isso é
infrequente nos rituais (momentos em que as adivinhações geralmente são solucionadas),
presenciei situações nas quais formulações verbais proferidas em ambientes públicos
foram associadas às adivinhações (no geral, eram frases como “você não sabe o que pode
acontecer” ou “não sabemos o que virá amanhã”). Nessas ocasiões, aqueles que haviam
feito tais afirmações foram rapidamente acusados de, por meio de uma “adivinhação”
inapropriada, lançar um feitiço sobre seus interlocutores – o que me ajudou a
compreender a relação entre as adivinhações dos rituais Apújco e seu conteúdo
ameaçador.

329
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

6.6. Túrií ou Baile de Charapa


Quando cheguei ao Igaraparaná em abril de 2015, o dono da maloca do clã Buriti,
na comunidade Providencia, havia feito um ritual Turií poucas semanas antes. Ouvi assim
alguns comentários sobre como havia se desenrolado o baile, sobre os convidados que
compareceram, as canções e a caça que trouxeram, mas não cheguei a conhecer a sua
origen, dificilmente narrada fora do ambiente ritual367. Conversei ainda com algumas
pessoas que não estavam de acordo com a realização desse ritual, pois o consideravam
ser um baile muito ligado ao Tempo dos Animais, isto é, a um passado violento e
desarmônico. Outras, apesar de aprovarem sua realização nos dias de hoje, salientavam
que sua origen, por ser perigosa, deve ser narrada apenas na véspera de sua realização.
Essa precaução talvez possa ser melhor compreendida a partir da descrição de Tessman,
quem assistiu um desses rituais entre os Miraña no fim do século XIX368:

Esta es la fiesta fúnebre en su sentido propio. En la desembocadura del


Nanay tuve la oportunidad de tomar parte en esta fiesta (...). La gente
baila precisamente en el centro de la casa donde están las tumbas369.
Además, las meditaciones dirigidas hacia la tierra y los golpes en el
suelo dan la impresión de que la gente estuviera todavía bajo los efectos
inmediatos del homenaje al difunto. (Tessman, 1999: 156)
A interpretação algo especulativa do autor parece-me ser corroborada pelo que
dizem meus interlocutores, os quais geralmente associam o perigo de narrarem a origen
desse ritual à relação que o mesmo possui como o mundo dos mortos. Além disso, a forma
e o conteúdo de suas canções parecem também influenciar as precauções que a cerceiam.
Segundo Guyot (Guyot, fg_b9_d1), os cantos de Turií estão repletos de insultos dirigidos
ao dono do ritual e à sua mulher, fazendo com que, em algumas ocasiões,
espontaneamente surjam músicas que servem como resposta às acusações dos cantores:

Au cours de cette fête (...) les hommes inventent des chants pour
répondre aux provocations, et provoquent eux-mêmes les femmes, et la
maîtresse de maison en particulier. Toute insulte est admise, à condition
d'être chantée. Toute provocation, toute invite, de même. (Guyot,
fg_b3_ Chants Bora: 186)
A autora acrescenta ainda que os Bora do Igaraparaná afirmavam que essa é um
ritual “que não termina”, uma vez que a caça trazida pelos convidados não é retribuída
pelo dono da maloca e sua mulher após a entrada do ritual. O pagamento, ao invés disso,

367
A origen dos rituais Ujcútso e Meémeba são muito mais comumente narradas.
368
À época, o etnônimo Miraña era atribuído a uma grande parcela dos Povos do Centro que habitavam a
região dos rios Cahuinari e Caquetá, de modo que não podemos saber se o ritual que Tessman presenciou
foi de fato realizado pelos antepassados daqueles que hoje se reconhecem como Miraña em território
colombiano.
369
Vale salientar que, no passado, apenas os chefes eram sepultados dentro das malocas.

330
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

viria apenas meses mais tarde, durante a realização de um ritual de mesmo tipo, dessa vez
na maloca daquele chefe que participou como cabecilla no baile anterior. Esse último,
por seu turno, deve receber de seus convidados exatamente os mesmos animais de caça
entregues no ritual precedente. Isso faz com que, muitas vezes, o grupo “de dentro” seja
desafiado, pois os convidados buscam animais de caça difíceis de encontrar apenas para
que, no ritual seguinte, o outro grupo se torne conhecido como mau-caçador ao não
conseguir retribuir os anfitriões apropriadamente.

Por fim, Turiií é traduzido em espanhol como “baile de charapa”, ou “ritual da


tartaruga”, mas, assim como no caso do baile de frutas, a tradução não é literal. Na
verdade, o termo em Bora para tartaruga é cúúmuji, de modo que a referência a esse
animal se relaciona à existência de um conjunto de cantos “de dia” que, executados entre
o momento da “entrada” e a meia-noite, alude a um conjunto de mitos nos quais a
tartaruga é protagonista. Tais narrativas e uma breve versão da origen desse baile, cuja
exposição evito pelos motivos apontados acima, podem ser conferidas nos arquivos do
Fonds Guyot (respectivamente, Guyot, fg_b9_d1 e fg_b1).

Uma vez que já sabemos sobre os bailes ordinários, passemos agora aos rituais
de nominação, conhecidos ainda como bailes titulares ou de carrera: Llaaríwa (e
Tóóllíuwa), Íhchuba, Llaacomu, Píchojpa, Poópohe e Báhjaá.

6.7. Llaaríwa, Toollíuwa e Ihchúba


Começo com uma narrativa que me foi contada majoritariamente em espanhol em
2016. Seguindo as recomendações dos Bora, evito mencionar os termos em idioma que
aparecem ao longo desse relato. Como expus anteriormente, é sempre delicado nomear
certas figuras míticas em Bora que, mais do que personagens pertencentes a um passado
distante, são espíritos que vivem contemporânea e potencialmente nas malocas. Opto,
ainda, por não revelar o nome do narrador, visto que essa é uma origen que apresenta
variações importantes entre os clãs e, por isso mesmo, é alvo de constante discussão
acerca de seus pormenores. Por fim, intervi em diversos momentos no texto original a
fim de torná-lo mais compreensível em sua tradução ao português a leitores pouco
acostumados com a arte verbal dos Povos do Centro, mesmo sabendo que assim abro mão
de explorar outras vias de análise. Não fiz, contudo, quaisquer cortes substanciais na
sequência dos acontecimentos, mesmo porque a narrativa abaixo voltará no capítulo

331
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

seguinte e será fundamental para que pensemos sobre as transformações recentes na vida
ritual bora. Feito o adendo, sigamos.

Houve um ser, Cobra-Grande-da-Guerra. Ele se envolveu em uma


competição com seu pai e seu irmão. Seu pai, Garça-Branca, dava boas
orientações a seu filho, lhe dizia boas palavras, lhe dava exemplo e
conselho. Suas palavras lhe davam vida, mas o primogênito não gostava
dessas coisas. Foi por isso que seu pai o “tirou do banco”370 e o
expulsou, pois ele não queria saber das boas palavras.
Ele se foi com sua irmã, saíram pela floresta. Caminharam,
caminharam. De noite, fizeram seu tapiri. Viajaram até que chegaram
na cabeceira de um igarapé. Ali o homem viu que havia um peixe que
chamamos cahdohe. Nos igarapés, esse peixe costuma viver em um
buraco. O homem viu o peixe entrando no buraco e então disse à irmã:
- Irmã, eu vi por aqui um peixe que entrou nesse buraco. Como fazemos
para tirá-lo? Não temos nada para comer...
- Pois eu não sei como vamos tirá-lo.
- Irmã, eu vi que nosso pai tira peixes assim com uma armadilha.
Então ele teceu uma armadilha com tiras de fibra de bacaba. Depois de
muito cavar, o peixe saiu e caiu na armadilha.
- Irmã, já pegamos o peixe! Vamos assar e comer. Junte um pouco de
gravetos para fazermos fogo.
A irmã juntou os gravetos, os amontoou e disse:
- Já está pronto!
Com o poder que tinha, ele apenas nomeou o fogo e aquele monte de
lenha acendeu e ele assou seu peixe. Quando já estava assado, a irmã
disse:
- O peixe que assamos já está pronto, vamos comer.
- Irmã, vamos dividir na metade. A parte da cabeça eu vou comer e a
parte do rabo você tem que comer. Temos que dividir entre nós.
Então a irmã, que já tinha o peixe nas mãos, comeu sua parte. Quando
terminou, deu a cabeça para seu irmão. Imediatamente ele comeu e se
transformou em uma cobra-grande. A irmã ficou muito triste.
- O quê? E agora? Aconteceu isso com meu irmão. Com quem eu vou
ficar? Sendo meu irmão homem, aconteceu isso. Então eu também vou
comer...
Ela também comeu a cabeça do peixe que tinha sobrado. Comeu, comeu
e virou cobra-grande. Era uma cobra-grande meio amarelinha, e então
os dois já tinham novo corpo. Eles desceram pelo igarapé já como
cobra-grande. Desceram e desceram até um poço grande, onde pararam
um pouco.
Mas o irmão, como é mau, estando aí nesse poço começou a comer o
pessoal de seu pai. Aqueles que tomavam banho no poço, ele pegou. E
continuava a comer as pessoas, até que seu pai disse:
- E esses dois filhos que se foram do meu banco, que eu os expulsei,
onde foram? Onde estarão esses dois?
Ele disse a sua mulher:

370
Ou seja, o retirou do lugar de chefia ocupado pelo filho de um chefe no mambeadero.

332
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

- Mulher, vou seguir o rastro para ver onde foram esses nossos dois
filhos. Vou buscar para ver como eles estão.
E assim mesmo o pai buscou e, ao sair da maloca, já encontrou um
rastro um pouco velho.
- Ah! Aqui é que meus filhos dormiram...
E na segunda noite de busca já encontrou outro tapiri e, na terceira noite,
um tapiri mais novo.
- Ah! Por aqui eles dormiram na terceira noite. Mas daqui, para onde
será que foram?
Seguiu o rastro. Foi quando chegou ali onde os filhos tinham assado o
peixe. Ele encontrou a fogueira que tinham feito.
- Ah! Aqui eles vieram para fazer comida. Mas daqui, para onde será
que foram?
Continuou buscando, mas não encontrou nada mais. Dali em diante não
havia mais rastro.
- Onde ficaram esses dois? Daqui, para onde foram? Mais adiante não
se vê nenhum rastro...
Então, talvez por ser sábio, ele logo seguiu pelo caminho certo. Foi
seguindo o igarapé até chegar no poço onde estavam os dois.
- Ah, sim, isso é muito mau... é certo que é meu filho quem está
acabando com meu pessoal.
O filho queria mais, queria acabar ainda com a vida do próprio pai. Mas
o pai, como tinha muito poder, já se havia antecipado. Então o pai o
repreendeu e, dizendo-lhe que isso não era bom, cortou o filho cobra-
grande pela metade e o expulsou mais para baixo, para a foz do igarapé.
Ali ele ficou e o pai lhe disse:
- Vocês dois, sendo meus filhos, estão me fazendo mal, estão acabando
com meu pessoal. Eu tenho que acabar com vocês. Eu vou acabar com
vocês.
Ao que a filha lhe disse:
- Papai, não, é melhor você não acabar com minha vida. A de meu irmão
sim, você tem razão. Ele é mau, acabe com a vida dele. Mas eu não lhe
fiz nenhum mal. Em vez disso transforma-me em outra coisa.
E o pai respondeu:
- Filha, em que posso lhe transformar?
- Papai, traga esse pilão com o qual você pila a coca. Me coloque aí e
me pile assim como você pila coca. Dessa forma, você pode fazer
alguma coisa que tenha serventia.
Assim como ela falara, o pai a pegou e a colocou dentro do pilão e
começou a golpeá-la. O sangue que espirrava se transformou em toda
sorte de plantas medicinais como cipós e folhas, mas apenas aquelas
que são “boa medicina”, que servem para curar. Ele retirou o bagaço
que sobrou de sua filha e o jogou fora. Esse bagaço se transformou em
uma cobrinha.
O filho mau que ele despedaçara, ele o havia levado para a foz do
igarapé, onde permaneceu por muito tempo. A Cobra-Grande-da-
Guerra já queria então vingar-se de seu irmão menor, que ficou no lugar
de seu pai. Ele buscava e inventava muitas formas de dominar seu
irmão, Garça-Branca [quem, por ter já assumido a posição de chefia,
recebeu o mesmo nome de seu genitor]. Cobra-Grande-da-Guerra

333
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

mandava queixada, caititu, anta, cotia, paca e mucuras até a maloca de


seu irmão, Garça-Branca, a fim de que sua cunhada pegasse infecções
e dores nas articulações.
Como ele era inteligente, seu irmão menor sempre descobria quem
estava fazendo isso. Tudo que Cobra-Grande-da-Guerra enviava, seu
irmão eliminava facilmente, até que não havia mais mal nenhum a ser
feito. Então Cobra-Grande-da-Guerra pensou:
- Todo o poder que eu envio para Garça-Branca, ele descobre muito
facilmente. Então eu vou pessoalmente encontrar com ele.
Assim ele preparou suco de ambil em uma cuia e partiu:
- Esse suco de ambil, desse que eu mesmo cultivei, vou levar e oferecer
a meu irmão para que ele tome. Vamos ver se ele vai ser capaz de saber
tomar ou não. Eu vou levar isso pessoalmente.
Nessa altura, o chefe Garça-Branca já sabia dos planos de seu irmão,
Cobra-Grande-da-Guerra. Ele também preparou suco de seu ambil em
uma cuia. Porém, o preparou e o nomeou como tabaco de puro frio e
doçura. Já estava pronto quando seu irmão estava chegando em sua
maloca. Ele pensava “vamos ver em que forma ele vai aparecer”.
Quando menos esperava, ele chegou e o cumprimentou:
- Irmão, eu vim a seu encontro para que você se sirva desse suco que
tenho para você. Foi feito com meu trabalho.
Então Garça-Branca disse:
- Sim, isso é o de menos. Pois todo o trabalho que um homem fez é um
trabalho do homem, não é para uma mulher.
- Sim... Bom, aqui trago o suco para que você tome.
- Sim, tranquilamente.
Como ele já tinha todo o poder, assim que Cobra-Grande-da-Guerra lhe
passou o suco ele o tomou de uma só vez. Como ele tinha o corpo doce
e frio, como ele tinha o ar fresco do tabaco, ele ia soprando, soprando,
soprando todo o malefício que vinha através dessa bebida... A bebida
descia limpa e ele continuava tranquilo.
- Bom, agora sim. Já tomei tudo! O suco de tabaco que você fez, eu já
o tomei. Tranquilamente, não me aconteceu nada. Assim mesmo,
também tenho aqui suco de tabaco que eu cultivo, é meu trabalho. Em
troca desse que você me trouxe, você tem que tomar também.
- Tudo bem...
E assim foi. O irmão, porém, tentou tragar, mas só conseguiu engolir
até a metade. Rapidamente a força desse tabaco o dominou. Ele caiu no
chão. A Garça lhe disse:
- Negativo, no momento que eu tomei o suco que você me ofereceu, eu
não o deixei, de uma só vez o tomei. Assim mesmo você tem que
acabar, de uma só vez! Esse é a nossa competição.
Então Cobra-Grande-da-Guerra tragou outro tanto e logo o terminou.
Em pouco tempo a força do tabaco o dominou outra vez. Ele estava
muito bêbado. Começou a se mexer, a se mexer e ali mesmo onde
estava sentado caiu estendido no chão. Se contorceu, se contorceu e por
fim ficou estirado. Garça-Branca disse:
- Isso acontece porque seu trabalho é contra mim. Quanta coisa eu tive
que soprar nesse suco que você me trouxe! Mas eu não tenho essa ideia,
não sou como você. Meu trabalho não é ruim, não é para destruir as
pessoas ou coisas que tenham vida. O seu poder não é bom. Por isso
mesmo houve algo raro, uma força que chegou e eliminou você. É isso

334
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

que acontece com uma pessoa com trabalho ruim. Você mesmo se
acabou.
Depois disso, Cobra-Grande-da-Guerra se estirou definitivamente
sobre o solo. Garça-Branca achou que seria muito incômodo ter o corpo
de seu irmão ali enquanto os homens estivessem mambeando. Por isso,
ele o arrastou para o outro lado do pátio da maloca. Ali o corpo ficou
rígido e, com o tempo, apodreceu. Como é costume dos urubus, eles
vieram e comeram a sua carne. Quando sobraram apenas ossos, já era
um llaaríwa.
A narrativa acima não é exatamente a origen da ritual Llaaríwa, mas sim do
trocano homônimo que é executado sempre que um desses rituais é realizado. Alcançando
cerca de dez metros de comprimento, o artefato é confeccionado a partir de um tronco
único de madeira muito durável que é talhado internamente em formato de U. Quando
transladado ao interior da maloca, ele é suspenso com cipós e madeiras a alguns
centímetros do chão, sempre com sua face aberta voltada para baixo (ver Fotos 27 e 28).

Foto 27 - Face anterior do llaríwa, em direção à porta principal da maloca.

335
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

Foto 28 - Face posterior do llaríwa, em direção à porta secundária da maloca.

Por ocasião do ritual Llaaríwa, após as “apresentações” ou nominações que


acontecem no período diurno, segue-se toda uma noite de baile dentro da maloca. Na
ocasião o trocano, que se encontra adornado pelas mulheres com um padrão gráfico
específico, é tomado pelos homens “de fora”. Com um pé no solo e o outro em cima do
trocano, eles golpeiam o artefato ao mesmo tempo em que cantam acompanhados de
bastões de ritmo. As mulheres, por sua vez, cantam e dançam por horas a fio em frente
aos homens.

Mesmo que o alcance do som do trocano llaaríwa sendo pisoteado pelos homens
possa ser maior do que aquele dos manguarés, ele não serve, como é o caso destes
últimos, como instrumentos de comunicação entre as malocas. Sua função é ritual e
explicada por meio do mito: sempre que perguntei aos Bora o que os homens faziam ao
pisotear o instrumento, eles me diziam que estavam matando novamente a Cobra-Grande-
da-Guerra. Tal afirmação é uma referência direta à narrativa anterior, cuja ação é
detonada pelo parco interesse que Cobra-Grande-da-Guerra demonstra pelos conselhos e

336
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

ensinamentos de seu pai, Garça-Branca. Em razão de seu desprezo, mesmo sendo


primogênito o pai o “retira do banco” – isto é, não lhe transmite a posição de chefia371.

Na narrativa, ao ser rejeitado pelo pai, o primogênito parte sem rumo e sua irmã,
aparentemente também primogênita, o acompanha. Ao comerem a cabeça do peixe no
igarapé, ambos se transformam em cobra-grande e vão habitar um poço onde o pessoal
de seu pai costumava se banhar. Ali, o irmão passa a comer aqueles que consegue
capturar. A gravidade desse comportamento (mais do que comer carne humana, ele come
seus próprios parentes) faz com que, a partir desse momento, ele adote um novo nome e
apareça na narrativa como Cobra-Grande-da-Guerra372.

Mesmo após ser cortado ao meio por seu pai, Cobra-Grande-da-Guerra sobrevive
e busca vingança. Esta vingança, contudo, será dirigida ao irmão mais novo e não mais
ao pai, pois a partir de certo momento do relato entende-se que aquele terminou por
assumir o lugar do último em seu assento no mambeadero, ganhando também o seu nome
e assumindo a chefia da maloca. No encontro de ambos, o tabaco de vingança e morte
entregue por Cobra-Grande-da-Guerra não é tão eficaz quanto aquele oferecido por seu
irmão, que colocara em seu “tabaco de retribuição” apenas palavras frias e doces. Tendo
sido vencido por Garça-Branca, o corpo de Cobra-Grande-da-Guerra decompõe-se e se
transforma no artefato que hoje é executado nos rituais Llaaríwa373.

Se a execução do trocano é uma espécie de reatualização da derrota de Cobra-


Grande-da-Guerra por seu irmão Garça-Branca, fica evidente também como o ritual
Llaaríwa é organizado em torno de uma situação de importante conflito. Essa associação
é confirmada pelo fato de que o ritual especialmente realizado para a transferência da
chefia de um clã de pai para filho (algumas vezes prescindindo de uma nominação)
chama-se áméjcaá. Seu significado pode ser apreendido a partir da palavra para guerra

371
A expressão “tirar do banco”, usada pelos Bora em espanhol, aponta para o fato de que um chefe, ao
assumir tal papel em sua maloca, se sentará sempre em um mesmo e exclusivo assento no mambeadero, de
onde coordenará os trabalhos de seu pessoal.
372
Analisando a repulsa dos Miraña em relação ao endocanibalismo, Karadimas estabelece uma conexão
entre esse sentimento e a evitação de comer animais ou vegetais associados a cada um dos clãs dos Povos
do Centro: “En effet, l’endocannibalisme est une des phobies miraña. Nous avons vu comment les Miraña
évitent de tuer et de manger des animaux qui appartiennent à leur í:énè et tentent perpétuellement d’avoir
devant eux un gibier qui soit issu des jardins de la grand-mère des animaux.” (1997: 697).
373
Melo (2005) apresenta uma versão andoke para a origen do trocano que é executado nos bailes Tusi,
análogos à Llaaríwa. Nessa versão, o herói Toi (cujo nome significa “bebiba de buriti”) derrota cobras-
grandes que mantinham relações sexuais com sua mulher. Essa origen também pode ser encontrada em
Landaburu e Pineda Camacho (1984).

337
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

(ámejcátsi), traduzida literalmente como “o lugar onde se realizada o ritual áméjcaá374”.


Em direção semelhante, Guyot afirma que o ritual Llaaríwa era chamado por seus
interlocutores de “baile de briga” (fg_b9_d1) e, além disso, era um dos raros momentos
nos quais as flautas confeccionadas a partir dos ossos dos inimigos eram tocadas.

Entre os Bora que vivem hoje no Igaraparaná, Llaaríwa é sem dúvidas o ritual
mais aguardado e cuja realização envolve um maior número de preparativos. De execução
não muito frequente, além de uma quantidade vultuosa de alimentos, é necessário
encontrar parceiros cerimoniais ou cabecillas que, tendo sido também nominados em um
desses rituais, estejam dispostos a interromper por algum tempo seus afazeres cotidianos
a fim de se envolverem nas intensas tarefas de convite e organização dos caçadores-
cantores.

Retomaremos a discussão sobre esse ritual no capítulo seguinte, ocasião em que


veremos também como ele sofreu alterações importantes nas últimas décadas. Por ora,
cumpre apenas salientar que Llaaríwa relaciona-se diretamente com dois outros bailes
titulares. O primeiro delas, Tóóllíuwa (literalmente, “pau de açaí”) é de execução idêntica
a Llaaríwa. Enquanto algumas pessoas dizem que se trata de uma “primeira fase” da
própria carrera de Llaaríwa, outras afirmam que Tóóllíuwa é executado quando o dono
do ritual não possui um trocano permanente em sua maloca. Seja como for, é
precisamente esta a diferença central entre os dois rituais: enquanto Llaaríwa conta com
um trocano durável e que idealmente permanece numa mesma maloca através das
gerações, Tóóllíuwa é feito com um trocano descartável de pau de açaí que é abandonado
tão logo acabe o ritual.

O segundo ritual, Ihchúba, leva o nome usado em Bora para denominar um certo
tipo de garça, a garça-branca-grande (Ardea alba), que é a mesma que aparece na
narrativas míticas aos longo de toda esta tese375. Ainda que não envolva a transmissão de
nomes de chefia, ela pode ser realizada apenas por homens que tenham sido nominados
em um ritual Llaaríwa ou Tóóllíuwa, já que há uma relação intrínseca entre a Garça e os
chefes de maloca detentores dessa carrera. Mais que um animal com quem os Bora se

374
Reflexão semelhante foi apresentada por Gasché, que afirma que a palavra ámejcaá é usada para referir-
se a um número ainda mais abrangente de bailes: “Los Bora engloban sus fiestas más ‘grandes’ – llaaríwa,
bahja, pópoóhe – en la categoría de ámejka, que deriva de la palabra ámejkási ‘guerra’, poniendo en
evidencia de esta manera la agresividad siempre implícita y subyacente en estas fiestas, que reúnen más
personas y grupos de invitados que las fiestas “menores” más modestas. (2009: 30)
375
É importante diferenciá-la da garça-branca-pequena (Egretta thula), cujo nome em Bora é cohwa.

338
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

relacionam cotidianamente, a Garça-Branca, ou simplesmente Garça, é um personagem


mítico que aparece recorrentemente. Assim como Cobra-Grande (Bóóaá), Tabaco
(Bañe), Sol/Lua (Nuhba) e Niimuhe, Garça se apresenta por meio de diversos nomes
compostos. Porém, enquanto personagens como Garça-da-Abundância ou Garça-dos-
Alimentos e Garça-do-Bom-Trabalho acompanham os chefes que possuem a carrera
Llaaríwa, Garça-dos-Animais está ao lado dos mais variados coletivos animais, de modo
que há Garça-dos-Porcos-do-Mato, Garça-dos-Veados, Garça-das-Pacas, etc.

Ao buscar entender um pouco melhor o lugar de Garça na cosmologia e na vida


ritual bora, discuti com meus interlocutores algumas anotações que Mireille Guyot havia
feito em seus cadernos de campo com o intuito de traçar uma genealogia dos personagens
míticos mais recorrentes: por exemplo, poderíamos dizer a partir da narrativa acima que
Cobra-Grande é filha de Garça? Os Bora, contudo, consideraram essa tentativa
necessariamente fadada ao fracasso, pois personagens como Garça, Tabaco, Sol, Niimuhe
e Cobra-Grande aparecem nas narrativas míticas ocupando os mais diversos papéis e
posições. Não obstante, o exercício de Guyot ajudou-me a compreender que existe uma
excepcionalidade no caso de Garça, pois trata-se sem dúvida do filho primogênito do
Tabaco de Nossa Criação, o qual, por sua vez, foi quem criou os corpos dos Povos do
Centro e conferiu-lhes vida por meio de seu sopro (ibájtso). Assim, em todos os relatos
que ouvi, Garça aparecia como um chefe importante que, no comando de uma grande
maloca, tinha diversos “servos” ou “órfãos” a seu dispor, mas destacava-se por não os
comandar por meio da violência.

Apesar de sobressair-se por sua oratória desenvolta típica dos grandes chefes,
Garça não age por meio de imponentes pronunciamentos, mas sim através de um poder
silencioso. Desde seu assento de chefe no mambeadero, ele é capaz de combater seus
inimigos, curar os doentes e garantir a harmonia da vida comunitária de seu pessoal.
Privado de ter relações sexuais, em silêncio, concentrado e de cabeça baixa com seu
tabaco e sua coca, Garça é, em suma, o chefe ideal376. Fica mais clara, então, sua relação
com as pessoas nominadas ou tituladas em um ritual Llaaríwa.

376
A privação de sexo é uma das dietas (ver infra) que fazem com que o corpo e o comportamento de uma
pessoa permaneçam frios ou pacíficos. Logo, percebemos como a atividade sexual, ao ser alvo de
interdições ou dietas, é tida como uma atividade quente. Isso é algo que fica evidente, ainda, nas tentativas
insistentes das máscaras do ritual Méémeba, que buscam a todo custo copular com as mulheres que
participam do baile.

339
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

Todos os homens e mulheres que possuem essa carrera são, ao longo de suas
vidas, acompanhados por Garça. Sentados em seus bancos, os chefes da carrera Llaaríwa
se comunicarão com Garça da mesma forma que os antigos xamãs se comunicavam com
os animais, mas o teor da relação estabelecida entre eles é diferente377. Ao invés de contar
com a ajuda dos mestres dos animais para provocar doenças e mortes em seus inimigos,
os chefes da carrera Llaaríwa dispõem do auxílio de Garça para resolver conflitos locais
e descobrir agentes patogênicos que porventura atinjam alguém na maloca. Ademais,
durante os rituais Ihchúba, serão visitados por Garça que, convidado por meio das
canções entoadas pelos participantes, se fará presente ao ritual378.

Em 2016, participei de um ritual Ihchúba no Igaraparaná, realizado por ocasião


do encerramento de um encontro que buscava reunir pela primeira vez famílias bora
dispersas num vasto território a fim de realizar um diagnóstico da situação atual dessa
população. Ao conversarem no mambeadero sobre os preparativos do evento, os homens
se puseram de acordo que a circunstância exigia mais que um ritual Ujcútso que, como
vimos, costuma ser realizado nessas situações. Resolveu-se, então, organizar um ritual
Ihchúba no intento de fazer com que as propostas elaboradas ao longo do congresso
“amanhecessem”, isto é, deixassem de ser apenas ideias ou palavras, convertendo-se em
ações concretas e duradouras.

Apesar de não ser um ritual de transmissão de nomes, Ihchúba conta com a suíte
de cantos improvisados llééneba (cf. infra). Se no passado esse era o momento para a
reativação de antigos conflitos e a produção de novas rusgas por meio da troca
generalizadas de acusações, no ritual que assisti a execução do llééneba foi marcada pela
produção de palavras frias e doces que buscavam apagar o passado de sofrimento do
genocídio caucheiro e garantir a manutenção de um estado de harmonia entre os Bora.
Allóco, um ritual que foi abandonado pelos Bora no século XX, possuía execução idêntica
à Ihchúba (Guyot, fg_b3_ Chants Bora), mas ao invés de organizar-se ao redor de Garça
enquanto agente pacificador, tinha na vingança e nos comportamentos quentes sua
principal característica. Veremos mais detalhes sobre esse ritual no último tópico desse
capítulo. Antes, porém, conheçamos os outros tipos de bailes titulares.

377
No passado, havia pessoas que possuíam o hábito de se comunicar com Garça-dos-Animais a fim de
enfeitiçar (echar maldad) seus inimigos ou curar pacientes em estado grave.
378
Os Bora afirmam que era comum, no Tempo dos Animais, que grandes chefes tivessem a capacidade de
fazer descer do céu uma garça-branca-grande que, tal qual uma ave de estimação, pousava em seus ombros.

340
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

6.8 Llaacomu, Pópoóhe e Píchojpa


Assim como Llaaríwa, há dois outros rituais de transmissão de nomes prestigiosos
entre os Bora. Elas se relacionam, igualmente, com a linhagem maior de determinados
clãs, ou, dito de outro modo, com a transferência intergeracional de nomes entre filhos
primogênitos (ver cap. 3). Quando visitou o Igaraparaná nos anos 1960, Mireille Guyot
pôde apenas registrar algumas canções dos rituais Llaacomu e Pópoóhe, cuja realização
se via interrompida.

Quase meio século depois, quando entrei em contato com os Bora, a situação era
distinta. O primeiro desses rituais, Llaacomu, havia sido realizado novamente por volta
de 1985 pelo chefe do clã Cobra-Grande. Como vimos no capítulo anterior (item 5.4), ele
desejava transmitir seu nome a seu filho e filha primogênitos, dado que, quando criança,
ele mesmo havia sido nomeado em um ritual Llaacomu na maloca de seu pai, situada
então no interflúvio entre os rios Igaraparaná e Cahuinari. Contudo, ainda que o ritual
tenha ocorrido como planejado, o chefe do clã Cobra-Grande enfrenta atualmente
dificuldade em manter sua carrera379.

Por sua vez, o ritual Pópoóhe foi novamente realizado, após um longo período de
interrupção, no fim dos anos 1980 (provavelmente em 1988). O dono do baile, chefe do
clã Tamanduá, não havia recebido de seu pai um nome dessa carrera cerimonial, pois se
tornou órfão muito precocemente. Apesar disso, desejava retomar a realização desse
ritual, já que entendia que sua interrupção ameaçava a existência da carrera como um
todo, tendo em vista a idade avançada daqueles que conheciam sua origen, canções e
passos de dança380. Veremos mais a fundo o processo de reconstrução do ritual Pópoóhe
no capítulo seguinte, explorando também as negociações envolvidas em sua retomada.

Finalmente, o último dos rituais titulares que apresento só pode ser assim
classificado se forem feitas algumas ressalvas. Píchojpa, ou baile de batismo, é um ritual
feito para que seja dado um nome a um filho ou uma filha (primogênitos ou não) de um
homem que, apesar de normalmente pertencer a uma linhagem maior, não é o chefe de

379
Como vimos no capítulo anterior, por um lado, seus filhos primogênitos migraram para as cidades de
Leticia e Bogotá e afirmam não quererem continuar com a carrera transmitida pelo pai. Por outro, já não
há chefes de maloca que sejam responsáveis por essa mesma carrera, o que inviabiliza a realização
apropriada do ritual em razão da indisponibilidade de parceiros cerimoniais ou cabecillas.
380
Razon (1984: 121) faz uma referência pontual ao ritual Pópoóhe entre os Bora em território peruano.
Segundo o autor, o ritual precede a celebração de Llaaríwa e faz referência a uma das vezes em que o
mundo acabou, por meio de um dilúvio. Tal como Llaacomu, em Pópoóhe nomeia-se apenas o casal de
filhos primogênitos do dono de maloca.

341
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

seu clã. Em outras palavras, Píchojpa costuma ser um ritual de nominação realizado pelo
irmão menor de um chefe (eB2). Diferencia-se substancialmente dos demais rituais
titulares pois o nome que é transmitido à criança não vem de seu pai ou de sua tia paterna,
mas sim de qualquer outro ancestral desse mesmo clã.

Isso faz com que a classificação de Píchojpa como um ritual titular seja alvo de
discussões entre os próprios Bora. Enquanto algumas pessoas afirmam que os nominados
em Píchojpa podem ser incluídos na categoria prestigiosa de miaáte (como vimos, “os
nobres” ou aqueles que possuem um nome titular), outros dizem que o fato dos nomes
transmitidos nesses rituais não fazerem parte de um conjunto invariável de nomes de
chefia faz com que essa seja, no máximo, uma carrera bastante menos importante que as
demais e, no fim das contas, não-titular.

As controvérsias acerca da transmissão de nomes e seu caráter mais ou menos


prestigioso alinham-se com discussões mais recentes sobre a recuperação das carreras
rituais e o movimento associado de fabricação de chefes e pessoas de prestígio. Seus
efeitos podem ser percebidos também em relação a outras carreras, como parece ser o
caso do debate acerca da nominação ou não de pessoas no ritual Báhjaá.

6.9. A controvérsia de Báhjaá


Não há dúvidas que o ritual Báhjaá faz parte do conjunto de rituais “de carrera”,
ou seja, que para realizá-lo é necessário que o dono da maloca seja de uma linhagem de
clã que tenha herdado tal prerrogativa através das gerações. Já vimos no item 3.4 que uma
de suas particularidades é a de que essa é a única carrera na qual as malocas possuem,
elas mesmas, um nome próprio. Assim, enquanto as malocas que realizam bailes
Llaaríwa serão Llaaríwaha e as que celebram bailes Llaacomu serão Llaacomuha (onde
a partícula –ha pode ser definida como “casa de...”, logo Llaaríwaha seria “a casa de
Llaaríwa”, etc.), as malocas que mantêm uma carrera de Báhjaá terão nomes diferentes
segundo cada clã, como Néépajyuha (“casa da cana-brava”, clã Zogue-Zogue) ou
Ócájiíha (“casa da anta”, clã Buriti)381.

O ciclo ritual de Báhjaá relaciona-se com a construção de uma nova maloca. Caso
um homem que tenha herdado essa carrera deseje construir uma maloca, ele necessitará
de um grande número de trabalhadores que serão, quando pronta a construção, os

381
Para uma lista mais extensa dos nomes das antigas malocas dessa carrera, ver Guyot, 1972: 144.

342
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

convidados-cantores dos três rituais sucessivos que ele deverá realizar com cerca de um
ano de intervalo entre eles382. Sua nova maloca deverá ter os quatro esteios verticais
postos por homens bonitos, enquanto os horizontais ficarão a cargo de homens feios ou
nominados em bailes de menor prestígio, como Píchojpa383. Alcançando até vinte metros
de diâmetro no passado, as malocas da carrera Báhjaá destacavam-se sobretudo pela
importância de seus chefes:

La maloca ba?ha384 est la plus vaste connue, au diamètre d'environ


vingt mètres. Il n'en existe plus aucune à l'heure actuelle, après la chute
démographique consécutive à l'exploitation du caoutchouc et l'abandon
des rites de guerre et d'anthropophagie. Les chefs de ba?ha étaient les
plus importants dans la hiérarchie sociale. (Guyot, 1972: 143)
No passado, é bastante provável que tais rituais estivessem associados à execução
de trompetes interditos às mulheres:

Esta es, pues, una fiesta secreta de los hombres, por lo menos en su
parte principal. Cada uno de ellos toca una gran trompeta = njuenjámük
o baháha delante de la casa. Mientras esto sucede, las mujeres
permanecen recluidas en la casa y bailan dentro. El "dueño de la fiesta"
ofrece la comida a los hombres. Esta fiesta dura cuatro días. Al parecer
se trata de la misma fiesta que Koch-Grumberg vio (...) entre los
Tuyuka del Río Tiquié y a la que llamó la fiesta de Yurupary. (Tessman,
1999: 156)
Meus interlocutores confirmam a existência pregressa desses artefatos, cujo nome
em língua bora é úújallí. Segundo Thiesen & Thiesen, que não fazem referência ao
aerofone em seu dicionário, tal vocábulo pode ser traduzido somente como “partes del
cuerpo de un animal (como la trompa del tapir) o de una persona que no deben verse
porque pueden producir daño” (1998: 294). Tais dados parecem confirmar a intuição de
Tessman de que há uma correlação direta entre os antigos aerofones bora e as flautas
Jurupari, especialmente presentes na região do Alto Rio Negro385. Atualmente, os Bora
associam esses artefatos à feitiçaria e à violência, de modo que rituais Báhjaá
acompanhados da execução de úújallí não são mais realizados.

Vale salientar, ainda, que o próprio ritual Báhjaá foi suspenso no começo do
século XX. Como vimos no capítulo 3, Kumimarima era um chefe que possuía essa
carrera, mas cujo filho primogênito decidiu interrompê-la, substituindo-a por aquela de

382
Trata-se do ritual de inauguração, o ritual principal e o ritual “de amanhecer”. Notemos que, atualmente,
os Bora realizam bailes Báhjaá em malocas que não foram anteriormente inauguradas com um desses
rituais.
383
Portanto, de maneira idêntica às malocas titulares (ver cap 3).
384
Bájhaá.
385
Sobre a associação entre aerofones no Alto Rio Negro e partes dos corpos de animais, ver Oliveira
(2015).

343
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

sua família materna, Llaaríwa, sob a justificativa de que a herança ritual de seu pai criava
e reascendia conflitos e relações guerreiras. Contudo, no processo posterior de retomada
das carreras rituais – tema que abordaremos mais à frente – a maloca comandada por um
dos netos de Kumimarima resolveu reativar esse baile. Enquanto algumas pessoas
opuseram-se à reativação do ritual em razão de seu caráter violento, outras não viram
grandes problemas em sua retomada, considerando ser essa uma grande oportunidade
para evitar que o ritual fosse perdido386.

Mas não é a esta controvérsia a que me refiro no título desta seção. Antes, ela diz
respeito ao fato de que nem todos os Bora estão de acordo sobre a possibilidade de se
transmitir nomes no ritual Báhjaá. Segundo Mireille Guyot, os chefes de Bájhaá seriam
autorizados a realizar qualquer tipo de baile em razão de sua notável autoridade: “Maître
de la fête ba?ha, dont le caractère était avant tout guerrier, il avait le droit de célébrer par
la suite, dans sa nouvelle maison, n'importe quel autre type de fête.” (Guyot, 1972: 145).
A partir dessa afirmação, a transferência do neto de Kumimarima à carrera Llaaríwa
ganharia contornos menos excepcionais, uma vez que a herança ritual de seu pai lhe
conferiria a capacidade de realizar toda sorte de rituais. Guyot defende ainda que

Seuls les chefs de ba?ha, de džari-387 ou de todzigwa?ha388 ont le droit


de transmettre leur nom, celui de leurs sœurs aînée et puînée, et du frère
puîné, à quatre enfants (leurs fils et fille aînés et puînés). (idem : 146).
Tal passagem corrobora a afirmação de alguns de meus interlocutores de que
carrera Báhjaá é, também ela, titular, contemplando assim a transmissão de nomes de
prestígio. Contudo, não há, mesmo para o ciclo ritual de três bailes descrito pela autora,
maiores detalhes a respeito da relação entre os rituais de inauguração das malocas e a
nominação. Suspeito que, no passado, ou bem havia transmissão de nomes de prestígio
específica a essa carrera, ou bem havia a possibilidade de que chefes que possuíssem o
direito de celebrar o ritual Báhjaá fossem capazes de sobrepor tal carrera a outras que
eles porventura tivessem o intuito de manter.

Mais do que um ponto de discórdia entre facções bora, a controvérsia acerca da


nominação ou não de pessoas no ritual Báhjaá é um tema constante de debates não
conflitivos entre anciãos e chefes de maloca. Assim como outros pontos de discussão

386
Mesmo sendo o segundo filho primogênito (Se2), vimos no capítulo 5 que esse homem não foi nominado
como feio de seu irmão maior. Sua filiação ao clã de avô paterno foi suficiente para que ele, junto a seu
pessoal, realizasse recentemente rituais Báhjaá.
387
Llaaríwa.
388
Tóóllíuwaha.

344
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

entre os Bora em seu processo de reorganização e reconfiguração da vida ritual, a


transmissão de nomes e a fabricação de pessoas de prestígio, seja em qual baile for, parece
seguir, atualmente, diretrizes que aproximam os chefes mais à figura da Garça que à
imagem (ainda bastante presente em suas memórias) dos rituais antropofágicos.

6.10. Cantos de sangue e de calor: antropofagia e vingança


Abundam, desde pelo menos o século XIX, informações escritas sobre as práticas
antropofágicas dos Povos do Centro, de modo que atualmente sabemos da existência de
uma extensa rede de guerra e vingança que envolvia grupos vizinhos como os Yagua, os
Orejones, os Tikuna, os Cubeo e os Carijona389. É o que podemos notar, por exemplo, no
relato de Jules Crévaux baseado em sua experiência, nos anos 1880, junto aos Murui-
Muina no Caquetá-Putumayo:

Pendant qu’Apatou surveille la maison, je vais faire une ronde dans


l’abatis. J’aperçois une poterie contenant de la viande fumante. C’est la
tête d’un Indien qu’une femme faire cuire. Je n’ai guère envie de
m’attarder ici (…). Pendant la nuit, arrive un des leurs qui paraît avoir
la tête égarée par les dangers qu’il vient de courir. Il voyageait avec
deux hommes dans la rivière Arara, lorsqu’il fut surpris et fait
prisonnier par les Ouitotos. Séance tenante, un de ses camarades fut
attaché à un arbre par les mains et les pieds, et tué d’une flèche
empoisonnée. Pendant le supplice, le malheureux pleurait comme un
enfant, en disant : « Pourquoi me tuez-vous ? » Les autres de répondre :
« Nous voulons te manger, parce que les tiens ont mangé un des
nôtres ». (Crévaux, 1883: 371).
Como mostrou Chaumeil (2009), é preciso ler com cuidado a literatura de
viajantes (e em particular os dados de Crévaux), algo especialmente importante quando
se trata de um tema como o canibalismo – caro à antropologia amazonista e delicado para
os Povos do Centro. Ainda assim, alguns elementos que podemos apreender por meio da
leitura do trecho acima estão em consonância com aspectos presentes em outras fontes,
como a cocção e consumo de carne humana estreitamente relacionados à guerra e à
vingança390.

Dados mais precisos e detalhados sobre a antropofagia entre os Povos do Centro


surgem a partir do começo do século XX, na mesma época em que os Bora e os outros
grupos da região estabelecem contato permanente com os não-indígenas e que tal prática

389
No caso específico dos Bora, relações guerreiras eram travadas também com outros Povos do Centro
como os Murui-Muina e, mais intensamente, com os Ocaina.
390
Por outro lado, não conheço outra fonte que cite o hábito de cocção da cabeça do inimigo, como afirma
ter visto Créveaux.

345
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

entra em declínio. De acordo com Rey de Castro (1914), o último ritual antropofágico
teria sido realizado na região em 1947 (ver também fg_b10_Resumé Fonds Cahier
Bleu)391. Porém, em vez de um inimigo morto, os indígenas teriam utilizado na ocasião
um boneco. Apesar de não ter ouvido relatos sobre esse ritual em específico, algumas
pessoas narraram a mim que, após a chegada dos caucheiros à zona, seus antepassados
realizaram bailes em que substituíam o inimigo humano por uma onça, que era
igualmente consumida392. Meus dados sobre práticas antropofágicas passadas são,
contudo, escassos. Essas práticas, definitivamente abandonadas pelos Bora e pelos
demais Povos do Centro, são hoje tidas como potencialmente daninhas e foram a mim
muito raramente descritas. Por isso, no que segue utilizo majoritariamente fontes escritas
por não-indígenas. Apesar de conhecê-la, opto ainda por não abordar a narrativa de
origem do ritual antropofágico, limitando-me à reprodução das informações mais
disseminadas e públicas.

Segundo meus interlocutores, a principal motivação para fazer guerra eram as


disputas territoriais. Estas aconteciam geralmente entre os diferentes povos que compõem
o complexo regional dos Povos do Centro, sendo bastante mais raras as pelejas entre
famílias ligadas por laços de parentesco ou clãs de um mesmo povo. Buscando assegurar
seu território original ou expandir as fronteiras de seu uso e ocupação, um chefe
mobilizava seu pessoal para atacar malocas de outros povos, matando alguns de seus
ocupantes e trazendo outros como cativos, cujo destino era variado:

Prisoners are sometimes sold, but as a rule they are killed and eaten at
the big feast arranged to commemorate the event, unless they are young
enough to be kept as slaves without risk of their running away to tell
tribal enemies of the secret roads through the bush. The consumption
of a dead foe at least guarantees his harmlessness – as a warrior, if not
as comestible. (Whiffen, 1914: 119)
A passagem acima, ao citar que prisioneiros de guerra eram vendidos, refere-se
muito provavelmente às relações comerciais que os Povos do Centro estabeleceram com
traficantes de escravos pelo menos até o final do século XIX. Como vimos no capítulo 1,
os indivíduos cedidos em troca de ferramentas de metal eram majoritariamente cativos de

391
Lembremos que Rey de Castro (ver cap. 1 e Foto 9) foi um dos apoiadores da Casa Arana.
392
Essa substituição de inimigos por onças nos rituais antropofágicos é algo recorrente no mundo ameríndio
(Fausto, 2007). Segundo meus interlocutores, porém, não se tratava de uma mera representação, mas sim
da morte e consumo de um inimigo. É comum que humanos que desejem enfeitiçar ou fazer mal a outrém
transformem-se em onças. O encontro de um caçador com um felino na mata numa situação de suspeita de
feitiçaria pode ser, na verdade, o encontro com um xamã ou brujo. Segundo Viveiros de Castro (1992b:
248), os Tupinambá, no passado, matavam ritualmente onças no lugar de inimigos, mas não as consumiam
ritualmente.

346
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

guerra ou pessoas que se encaixavam na complexa categoria de “órfãos” (ver cap. 4).
Whiffen alude, ainda, a prisioneiros incorporados como escravos, referência que aponta
para aquelas pessoas que não buscavam a fuga ou a vingança, mas permaneciam na
maloca do grupo inimigo e eram incorporados à nova parentela numa condição de
servidão393. Finalmente, os cativos que eram mortos e consumidos ritualmente passavam
por um extenso tratamento de seus corpos.

Tão logo um chefe organizasse seu pessoal para um ritual antropofágico, o


manguaré de sua maloca anunciava a ocasião, convidando assim os vizinhos que, sendo
também seus aliados, desejassem participar do festim (Razon, 1980). O inimigo,
chegando ainda vivo à maloca de seus captores, podia ser morto imediatamente ou depois
de certo tempo de convivência:

They (...) are treated very casually until killed with a heavy wooden
sword (...). The captor knocks his prisoner down with blows on the
shins and the thigh, and then hacks off the head with his broadsword
(Whiffen, 1914: 119).
A forma mais descrita de execução era aquela na qual a vítima, amarrada viva a
uma estaca na praça exterior da maloca, era atingida por violentos golpes de borduna
(Whiffen, 1914; Girard, 1963), sendo os responsáveis por sua morte (ou seus matadores)
tantos quantos fossem os homens que o golpeassem. Em seguida, o corpo da vítima era
lavado no porto da maloca com água corrente por algumas mulheres. Primeiramente,
separavam-se os membros (superiores e inferiores) e a cabeça, sendo tronco e vísceras
descartados n’água ou enterrados. Pernas e braços eram então encaminhados à maloca,
onde as mulheres cuidavam do cozimento da carne e da confecção de grandes tortas de
beiju. Tudo indica que apenas os homens adultos consumiam a carne394. Contudo, lhes

393
Esta incorporação é, como também argumentei anteriormente, típica da vinculação de “órfãos” cuja
relação prévia com o pai-chefe era de afinidade ou afastamento radical. Sobre o mesmo tema, o autor
comenta ainda: “If it can be done with due regard to personal safety the Indian warriors like to take
prisoners. A prisoner is tangible evidence of successful achievement and personal valour” (Whiffen, 1914:
118).
394
Girard (1958: 142) afirma que o consumo era restrito a homens que possuíssem alguma posição de
prestígio dentro de seu grupo. Muito embora mulheres e crianças não consumissem a carne do inimigo, é
possível que isso fosse permitido às mulheres mais velhas, como o relato fornecido a Wavrin parece propor
(1948: 398 – 399). Gasché, por sua vez, afirma que Túmajtsi era um baile “de carrera” entre os Murui-
Muina, de modo que apenas alguns clãs possuíam a prerrogativa de realizá-lo: “Entre los Huitoto de hoy
se escucha también que no todos los clanes hacían guerra y comían gente, sino que eso era parte de la
carrera ceremonial de los clanes de riraini ‘gente que come carne (humana)’. En este caso, el canibalismo
sería el hecho de ciertos linajes o clanes que tienen la correspondiente carrera ceremonial.” (Gasché, 2009:
21)

347
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

era interdito tocá-la, sendo necessário envolver os pedaços de carne em beiju e utilizar
palitinhos a fim de evitar o contato direto (Razon, 1980: 119)395.

Após o consumo dos membros superiores e inferiores, iniciava-se o ritual


propriamente dito, denominado Túmajtsi ou “cantos de sangue” (tuúva: fluxo de sangue,
hemorragia; majtsi: canção). Os homens jovens buscavam, então, a cabeça que
permanecera todo esse tempo no porto e, revezando-se no caminho (de modo que todos
a tocassem), traziam-na para a maloca. Ali, uma mulher a recebia e dançava com ela,
entoando cantos que a comparavam a um recém-nascido (Razon, 1980, Karadimas,
1997), num processo de familiarização (Fausto, 2001) da cabeça-troféu similar àquele
descrita por Taylor (1994: 96) para os Jivaro. Muitas das canções que se seguiam faziam
referencias ao morto e seu grupo, em geral insultando-os e ridicularizando-os.

Ao amanhecer, a pele da cabeça era retirada, o cérebro era oferecido como


alimento ao xamã (ápííchoóbe – ver Intr. à Parte II) da maloca e o crânio guardado. A
decomposição dos restos de qualquer material não-ósseo do crânio era realizada por
agentes naturais (principalmente larvas e insetos), havendo também a possibilidade de
que ele fosse levado às áreas de roça a fim de que o processo se acelerasse. Finalmente,
o crânio limpo era decorado e suspenso acima do manguaré, permanecendo ali como
troféu que evidenciava, principalmente aos visitantes, a capacidade guerreira da maloca
e de seu chefe. Quando o manguaré era tocado, o movimento fazia com que os crânios
suspensos se chocassem, produzindo um som particular.

A cabeça, porém, é apenas uma das partes do corpo do inimigo tomada como
troféu de guerra. Assim, por exemplo, durante o processo de cocção dos membros, alguns
ossos eram retirados e posteriormente perfurados para a confecção de flautas que, embora
não fossem tocadas durante rituais Túmajtsi, eram executadas no curso de bailes
Llaaríwa, Baáhja e Tóólíuwa396. As mãos dos inimigos também eram transformadas em
troféus, sendo utilizadas, posteriormente, como colheres para servir bebida não-
fermentada aos convidados-cantores em outros rituais. Wavrin (1948: 398), Razon (1980:
120) e Whiffen (1914: 123) afirmam, ainda, que o órgão genital do inimigo era entregue

395
Sendo coletivo o assassinato da vítima, muito embora não haja informações sobre a interdição do(s)
matador(es) em consumir a carne do inimigo morto, a proibição em manipulá-la diretamente parece colocar
em relevo um tipo especial de restrição que incidiria sobre todos os homens que participassem de sua morte.
396
Wavrin (1948) informa, por meio de relato coletado com uma senhora que havia participado desses
rituais, que as flautas eram confeccionadas com ossos retirados dos braços e das pernas dos inimigos. Não
possuo maiores informações anatômicas sobre quais ossos eram usados na confecção desses artefatos.

348
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

a mulher do dono da maloca, que passava a guardá-lo como um colar-troféu. Finalmente,


os dentes dos inimigos eram retirados, perfurados e utilizados para a confecção de colares
os aqueles que vimos na Introdução à Parte II (Figuras 5 e 6).

A produção de uma ampla gama de troféus de guerra levanta questões


interessantes sobre por que os Bora e os demais Povos do Centro consumiam ritualmente
seus inimigos nos rituais Túmajtsi. Whiffen (1914: 120) sugere três motivações
principais: a falta de carne, a vingança e a subtração de características do morto. Sobre a
primeira razão, ainda que o autor admita que a antropofagia é o efeito e não a causa da
guerra, ele defende que a carência de proteína animal pode ter levado os Povos do Centro
a privilegiarem o consumo ritual de seus inimigos. Tal argumento é, nos dias de hoje,
claramente refutado pelos próprios Bora, que lembram que os homens sempre
provocavam o vômito após comer a carne do inimigo – para eles, uma evidência clara de
que a motivação não era nutricional. Segundo afirmam, comiam a carne do inimigo para
vingar a morte de um parente que havia sido anteriormente assassinado pelo grupo da
vítima. Assim, parece procedente a segunda razão apontada por Whiffen: a de que a
vingança era uma das motivações da guerra e do ritual. Por fim, a terceira razão (a
subtração de características do inimigo) também encontra ressonâncias importantes com
outras informações disponíveis:

Antes de matar a un conocedor de este linaje – el mismo jefe, sus hijos


enseñados e iniciados en el conocimiento ritual – se lo amarra en un
“armazón de sangre” (Preuss: “Blutgerüst”), con las piernas y los
brazos extendidos, y se le obliga a cantar todas sus canciones para
apropiarse de su conocimiento. (Gasché, 2009: 21)
Uma vez que existe um conjunto de rituais ordinários e titulares que se repetem
tanto entre os grupos que formam os Povos do Centro quanto entre as populações vizinhas
(como parecer ser o caso, por exemplo, do ritual da caiçuma de pupunha, Méémeba), a
morte da vítima era precedida pela apropriação de um repertório cancional do inimigo.
Notemos que, na passagem acima, é o chefe da maloca quem amarra o guerreiro inimigo
a fim de subtrair-lhes canções rituais que, após sua execução, passam a fazer parte do
corpus de conhecimento ritual de todo seu pessoal. Lembremo-nos, ainda, como tal
prática é consonante com a narrativa de origem das canções rituais (ver supra) e sua
obtenção a partir do contato com o Jaguar-dos-Cantos-de-Jusante.

Essa apropriação do conhecimento do inimigo também parece ser válida para a


intensa produção de troféus de guerra. Os únicos troféus de utilização restrita eram os
colares feitos a partir dos dentes (uso masculino) e dos órgãos genitais (uso feminino), de

349
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

uso exclusivo de um chefe e de sua mulher. Já os crânios permaneciam acima dos trocanos
manguaré, geralmente posicionados à esquerda da porta principal no espaço público da
maloca. Enquanto isso, as colheres feitas com as mãos dos inimigos e as flautas
confeccionadas a partir de seus ossos eram usadas pelo pessoal de uma maloca na ocasião
dos rituais. O uso e a distribuição dos troféus, aliados aos fatos de que a vítima era
assassinada coletivamente e de que sua carne não podia ser tocada por nenhum daqueles
que participaram em sua execução, parecem indicar que, entre os Povos do Centro, os
rituais antropofágicos relacionavam-se à construção do prestígio de um chefe e de seu
pessoal.

Sabemos, evidentemente, que relações de prestígio dependem sempre de um


exterior. Assim, se os chefes são pessoas prestigiosas em relação a seu pessoal (sejam
eles seus familiares legítimos ou seus órfãos adotados ou não), uma maloca era, no
passado, tão mais prestigiosa em relação às outras quanto maior fosse sua capacidade
guerreira, por sua vez expressa por meio de seus troféus de uso coletivo (cabeças, mãos
e ossos) e daqueles utilizados apenas por um chefe e sua mulher (colares). Dessa forma,
parece-me que, para o caso Bora, a discussão sobre a antropofagia põe em relevo menos
a figura do matador em reclusão do que a ideia de que, ao vingar um parente por meio da
morte de um inimigo, um chefe e toda sua maloca apropriam-se não apenas do corpo
dessa vítima (por meio dos troféus), mas também daquilo que Karadimas definiu como
seu “potencial devorador” (1997: 685).

Como já mencionei, o ritual Túmajtsi deixou de ser realizado em meados do


século XX. Alguns interlocutores mencionaram que os caucheiros peruanos chegaram a
aproveitar-se das antigas rivalidades entre os diferentes Povos do Centro, incentivando
(inclusive com oferta de armas de fogo) a morte e o consumo ritual daqueles que se
opunham à atuação da Casa Arana. Após a saída da empresa da região, gradualmente os
rituais Túmajtsi foram abandonados. Segundo os Bora, essa foi uma decisão tomada por
seus chefes que, analisando a situação demográfica no pós-caucho, chegaram à conclusão
de que a continuidade das práticas guerreiras ameaçava a existência de todos. Em suas
próprias palavras, “se continuássemos, todos iam morrer”.

Espero que tenha ficado claro, na Introdução à Parte II, como a interrupção das
práticas antropofágicas foi um dos grandes marcadores da passagem do Tempo dos
Animais para o Tempo da Abundância. Como mencionei há pouco, nesse momento de
transição, houve ocasiões em que onças foram usadas em substituição aos inimigos

350
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

humanos. Essa prática já era adotada desde pelo menos o começo do século XX, como
fica claro nessa passagem de T. Whifffen:

The tiger [jaguar] is in these circumstances to be treated as a human


enemy. A big tribal hunt is organised, and if the quarry be secured a
feast of tiger-flesh follows, a feast of revenge, very similar in detail to
the anthropophagous orgies already described. (Whiffen, 1914: 232)
Como no caso dos rituais Túmajtsi, a morte de uma onça produzia, até bem
recentemente, colares de dentes. Esses artefatos eram usados por um chefe ou um xamã,
de modo que os Bora contam que Kumimarima (cf. caps. 5 e 7), por exemplo, possuía um
desses colares e o usava cotidianamente ao sentar-se em seu mambeadero. Ao portar um
colar de dentes de onça, como acontecia quando se tratava daqueles confeccionados com
dentes humanos, a pessoa que o usava apropriava-se do potencial devorador do animal,
facilitando assim sua capacidade de atacar e defender-se da feitiçaria lançada sobre ele e
seu pessoal:

Les dents du prisonnier opéraient, selon les Miraña, de façon identique


aux dents du jaguar actuellement pour le chaman. Celui qui possédait
les dents du prisonnier, possédait son potentiel de dévoration. Le gwášà
de l’ennemi était alors sous l’emprise de la volonté de celui qui avait
ôté les dents et les portait autour du cou. Il pouvait alors être renvoyé
vers ses anciens consanguins qu’il pouvait désormais dévorer en toute
quiétude. (Karadimas, 1997: 685)397.

Foto 29 – Colar de dentes de onça coletado por capuchinhos, provavelmente na década de 1930
(Acervo do Museu Etnogràfic Andino Amazònic, Església dels Caputxins de Sarrià, Barcelona)

397
Artefatos desse tipo também são descritos, por exemplo, para os Bororo (Crocker, 1979) e os Rikbaktsa
(Athila, 2006). Para mais informações, ver também Chaumeil (1985).

351
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

Comentei, também na Introdução à Parte II, sobre a situação incômoda gerada por
dentes de onça que, ao permanecerem por alguns dias próximos à casa em que estávamos,
desencadearam dores no corpo de uma mulher, que rapidamente associou sua doença ao
ataque do animal. Assim, se logo após o abandono da antropofagia espécies de simulacros
animais dos antigos troféus ainda foram produzidos, tal prática foi interrompida ao longo
da segunda metade do século XX. A pregressa relação de comunicação entre mestres dos
animais e xamãs (ápííchoóbe) foi, como já argumentei neste trabalho, substituída por
ações de defesa e profilaxia dos humanos em relação aos ataques dos animais. Ou seja,
se num primeiro momento o chefe e seu pessoal buscavam apropriar-se do “potencial
devorador” de suas vítimas (fossem humanos ou onças), atualmente eles concentram suas
forças em garantir que não sejam atingidos por tais investidas. No mais das vezes, parte
do estratagema de defesa consiste em fixar-se na posição de “humanos verdadeiros”, isto
é, de seres moralmente superiores aos animais – esses, por sua vez, incompletamente
humanos por não possuírem outros parentes humanos e por não consumirem substâncias
apropriadas como o tabaco, a coca, a pimenta e a mandioca doce. Esse tema ainda
reaparecerá neste trabalho, mas espero que tenha ficado claro que o abandono das práticas
antropofágicas, mais do que uma mera reação ao contato violento, à brusca queda
populacional ou à ação dos missionários capuchinhos, foi um movimento que se insere
em um cenário bastante mais amplo de reorganização interna.

Finalmente, compõe ainda o quadro dessas transformações a interrupção dos


rituais Allóco. Não obtive muitas informações a respeito desse ritual, cuja tradução literal
poderia ser “de calor”398. Sei apenas que eles eram bastante similares aos bailes Ihchúba
ou de Garça (ver supra), tanto no que diz respeito a suas canções quanto em relação a sua
estrutura. Contudo, os rituais Allóco eram realizados sempre que havia uma acusação
séria de roubo, de modo que um chefe que se sentisse usurpado por outro dono de maloca
poderia chegar ao assentamento de seu rival a fim de realizar, sempre de forma
improvisada, um baile Allóco. Era incumbência do acusado garantir a realização
apropriada do ritual-surpresa, a fim de que o incômodo não gerasse uma situação ainda
mais indesejável de agressão.

Alguns Bora fizeram referência ainda à prática de queimar, no centro da maloca,


alguns dos pertences do chefe acusado como forma de compensar os que haviam sido

398
Allóóco: calor, quentura, febre (Thiesen & Thiesen 1998: 37).

352
Capítulo 6 – Sobre bailes e carreras

perdidos. A imagem de uma fogueira no meio da maloca poderia nos levar a pensar que
os rituais Allóco ou “de calor” são referência direta ao uso do fogo. Apesar da análise
proceder, o calor possui, entre os Povos do Centro, um significado mais abrangente. Já
vimos, em capítulos anteriores, a importância da relação entre as oposições quente/frio e
raiva/pacifismo. Assim, se o comportamento frio e pacífico é, especialmente nos dias de
hoje (Tempo da Abundância), adequado e desejável, por outro lado as condutas raivosas,
impulsivas ou quentes são recriminadas e associadas a um passado ao qual os Bora não
desejam retornar (Tempo dos Animais). Dessa forma, penso que a interrupção do ritual
Allóco, um ritual de vingança cuja capacidade de resolver conflitos pacificamente é
marcada pela dúvida e instabilidade, foi mais um dos movimentos promovidos pelos Bora
em direção ao estabelecimento de uma vida social que busca eclipsar as possibilidades de
conflitos, seja com humanos ou não-humanos.

Completamos assim o quadro dos rituais bora. Muito embora houvesse no passado
a realização de outros bailes, busquei apresentar aqui aqueles que ainda são feitos
atualmente, agregando a essa lista os rituais Túmajtsi e Allóco por considerar que, mesmo
extintos, eles permanecessem vivos nas narrativas bora e nos ajudam a compreender o
processo de reorganização que é, em alguma medida, o pano de fundo desse trabalho.
Alguns dos rituais que conhecemos nesse capítulo, ainda que não tenham sido
abandonados, passaram por mudanças importantes que buscarei explorar no que segue.

353
Capítulo 7
Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

Ainda que os Bora estivessem acostumados às excursões guerreiras e aos ataques de


seus inimigos, na primeira metade do século XX eles enfrentariam as consequências de sua
batalha mais brutal. A guerra contra os caucheiros peruanos, marcada pela grande disparidade
de forças, gerou não apenas um colapso demográfico e o esfacelamento das unidades sociais,
como também a desestabilização de suas redes rituais. Se pensarmos a atuação da Casa Arana
verdadeiramente como uma guerra, entendemos melhor a afirmação de Gasché:

Una carrera queda truncada cuando una agresión o expedición guerrera


logra matar al jefe de la maloca y a sus hijos herederos de carreras
ceremoniales y eliminar una gran parte de los miembros del linaje. Los
sobrevivientes eventuales, desprovistos de los conocimientos rituales, no
pueden reiniciar la carrera mientras que no hayan recuperado de una nueva
fuente los conocimientos discursivos necesarios para el control de la
sociedad y la naturaleza que significa la celebración de una fiesta. (Gasché,
2009a: 20)
O que segue versará precisamente sobre o processo de reconstrução daqueles rituais
que expus no capítulo anterior, mesmo que a imagem que estabeleci deles a partir das
conversas com meus interlocutores já seja, em si, uma reconstrução. Dito de outro modo,
ainda que seja difícil ter acesso às formas rituais no pré-caucho (uma vez que a diminuição
demográfica tem como uma de suas consequências certo apagamento da memória e a não
transmissibilidade das práticas rituais), as formas resultantes desse processo de reorganização
social podem ser conhecidas hoje, permitindo-nos lançar algumas luzes sobre o passado. Para
tanto, é preciso analisar, passo a passo, alguns dos impactos do genocídio caucheiro em
relação às redes de relações rituais, bem como os processos de abandono e de revalorização
de determinados bailes.

Retomemos brevemente o panorama apresentado na Parte I desse trabalho. Ali vimos


que, na virada do século XX, os Bora passaram por um intenso processo de desarticulação.
Com a migração forçada para as estações caucheiras (em especial Morélia, Absínia e Santa
Catalina), as malocas e as roças foram abandonadas, desmembrando assim certos elementos
centrais para a produção do parentesco e da vida em comunidade. Além disso, a partir das

354
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

denúncias de Roger Casement em 1912, da desvalorização do caucho amazônico no mercado


mundial e da iminente vitória colombiana no conflito colombo-peruano, a maioria dos
(poucos) sobreviventes que ainda permaneciam na região dispersaram-se definitivamente no
começo dos anos 1930. O abandono das malocas e das roças, assim, ocorreu em um momento
de queda demográfica radical, que esgarçou as redes rituais pela simples e contundente
ausência de pessoas que desempenhavam papéis fundamentais para a realização dos bailes.

Como vimos no capítulo anterior, para se realizar um ritual é necessário, além do


espaço de uma maloca e boa quantidade de comida, tabaco, coca e sal vegetal, dois grupos
de pessoas: aquele do chefe e seu pessoal (ou os “de dentro”) e aquele do cabecilla e seus
convidados caçadores-cantores (ou os “de fora”). No primeiro deles, os homens serão
responsáveis pela fabricação de ambil e mambe, enquanto as mulheres trabalharão na
preparação dos alimentos e na replicação dos grafismos (pintura corporal, adorno de artefatos
como llaaríwa ou do esteio das malocas, etc.). No segundo grupo, os homens serão
responsáveis pela caça e pelas músicas (canto e dança), enquanto suas mulheres e filhas os
acompanharão no pátio da maloca e receberão o pagamento por suas canções.

Os Bora, após o caucho, não deixaram de cantar e dançar, já que muitas são as
referências ao fato de que, antigamente, a simples reunião de uma família extensa após uma
boa colheita poderia ser razão para se fazer um pequeno ritual Apújco, por exemplo. O
importante, aqui, é ter em mente que os rituais titulares que, como expus no último capítulo,
demandam maiores esforços para sua realização, foram diretamente comprometidos.
Concentremo-nos no caso de uma família em específico que, tal qual foi mostrado no capítulo
5, é fundamental para que entendamos a vida dos Bora no último século.

7.1. O destino de Kumimarima

Durante meu trabalho de campo, pude cotejar os relatos de meus interlocutores com
os dados apresentados por Igualada (1938), o que me permitiu reconstituir com alguma
precisão a vida de Kumimarima, homem de quem boa parte dos Bora atuais descendem.
Como vimos anteriormente, Kumimarima foi levado pelos caucheiros ao rio Putumayo em
algum momento entre os anos 1924 e 1930 e, nesse mesmo período, retornou fugido às áreas

355
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

de mata fechada nas proximidades do rio Cahuinari, onde buscou reestruturar sua maloca
com a ajuda de Kijyehume, então chefe do clã Tamanduá.

O padre capuchinho Bartolomé de Igualada chegou em 1936 ao rio Caquetá com a


intenção de fazer contato com Kumimarima, conhecido por ser um temido chefe no rio
Cahuinari. Com a ajuda dos Miraña, Igualada conheceu Kumimarima e sua família em
fevereiro de 1936, nas proximidades do igarapé “Itchajií”. Encontrou-os em uma pequena
maloca, onde Kumimarima, já em avançada idade, vivia com suas duas mulheres, seus filhos
e suas noras. Além disso, ele reunia à sua volta parentes por aliança como “Nívicgua” (SWF,
niuhbe ou “co-sogro”) e alguns órfãos399.

Ao lermos o relato de Igualada percebemos que na primeira vez em que o religioso


encontra-se com Kumimarima, ambos estavam tateantes e desconfiados. Mais tarde, já feito
o contato, o padre tentou convencer o chefe a reunir seu pessoal em local mais próximo ao
internato de La Chorerra. Para isso, passou alguns dias em sua maloca, onde observou um
modesto baile:

Dikmay al compás del rondador blandía el machete amenazando a su


madrasta que brincaba más que una cobra. (…) Es curiosa la forma como
entran en la casa: es con gritos desaforados, amenazas y golpes brutales
contra el techo y las paredes. Tanto así, que terminado el baile, tienen que
dedicarse a reparar los desperfectos. (Igualada, 1938: 310)

Não acredito que Kumimarima, nessa época, tenha realizado rituais Túmajtsi, uma
vez que tantos meus interlocutores quanto Bartolomé de Igualada não mencionam a presença
de cabeças-troféus na maloca. Diversas são as referências, porém, à agressividade de
Kumimarima. Isso fica claro não apenas no trecho acima que relata o caráter violento do
ambiente ritual em sua maloca, mas também em outras passagens que fazem alusão às
investidas guerreiras desse chefe:

Una de las mujeres de Feyaje muy joven todavía, llamó mi atención por su
físico, muy distinto del de los demás. A la lengua se adivinaba que era
oriunda de otra tribu. Al averiguarlo, Feyaje me dijo: Cumimarima e Ijitgiu
mataron a toda la familia de esa muchacha; ella es bora de las cabeceras de
la quebrada Caimito; yo a recogí llorando y abandonada. (ídem: 323, grifo
meu).

399
Sigo aqui a grafia de Igualada (1938). Para compreender o termo niuhbe, ver discussão sobre terminologia
no capítulo 3.

356
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

O outro chefe citado nesse relato (“Ijitgiu”) é, na verdade, Iíjullíuho ou Kiyejume,


dono da maloca do clã Tamanduá que, como vimos, auxiliou Kumimarima após sua fuga do
Putumayo. Segundo Igualada, ele era ainda mais temido que Kumimarima e conhecido,
dentre outras coisas, por suas capacidades xamânicas.

Apesar da resistência inicial à entrada dos religiosos, Igualada afirma que


Kumimarima terminou aceitando tanto sua presença quanto as mercadorias que lhe
entregava. Em certa ocasião, um de seus filhos resolveu seguir viagem com o padre, o que
Kumimarima permitiu apenas após o religioso dar-lhe em troca uma espingarda. Feita a
negociação (diga-se de passagem, idêntica àquelas existentes entre indígenas e comerciantes
luso-brasileiros no século XIX), “Nittiu” ou Nijtyúho acompanhou Bartolomeu de Igualada
em algumas de suas excursões. Como vimos no capítulo 5, Nijtyúho termina por estabelecer-
se onde atualmente é a comunidade Providencia, no médio Igaraparaná, fundando ali uma
maloca vinculada ao clã Amanhecer400.

Em 1937, ao regressar à região, Igualada encontra Kumimarima em estado muito


grave de saúde. Segundo o chefe, ele havia sido enfeitiçado por outros indígenas que
desaprovaram a abertura que concedera ao religioso. Em outubro do mesmo ano, Igualada
recebe a notícia de sua morte. A partir de então Dujdulli, o filho primogênito de
Kumimarima, assume a chefia de seu clã. Como vimos nos capítulos anteriores, ele nomina
seu filho primogênito em um baile Tóóllíuwa401, interrompendo o ciclo ritual (Báhjaá) de
seu pai e transferindo alguns de seus filhos para o clã Amanhecer, o mesmo de sua mãe e de
seu irmão, Nijtyúho. A partir do cruzamento das informações disponíveis, podemos supor
que isso aconteceu em algum momento nos anos 1940, antes da família de Dujdulli juntar-se
permanentemente à maloca de Nijtyúho em Providencia, no Igaraparaná, em 1957. Antes
disso, em 1949, nasce o último filho de Dujdulli e, poucos anos mais tarde, ele é adotado
cerimonialmente pelo chefe do clã Gavião em um ritual Tóóllíuwa (ver cap. 5).

A tabela a seguir apresenta um resumo aproximado desses eventos, destacando as


duas vezes em que rituais de nominação foram celebrados, no rio Cahuinari, sob a

400
Desconheço o motivo pelo qual Nijtyúho não permaneceu definitivamente no internato de La Chorrera junto
a Igualada.
401
Como observamos no capítulo anterior, o ritual Tóóllíuwa é idêntico à Llaaríwa, sendo apontado por uns
como uma fase necessariamente anterior do baile com os trocanos permanentes (Llaaríwa) e por outros como
uma variação menos prestigiosa do mesmo.

357
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

coordenação do filho primogênito de Kumimarima. Ambas, como notamos anteriormente


neste trabalho, são também o resultado de um processo de adoção cerimonial protagonizado
pelo clã Buriti no qual um dos filhos foi transferido para o clã Amanhecer e o outro para o
clã Gavião.

1924 - 1930 Anos 1930 1937 1949 1957


Migração Reestruturação Morte de Nascimento de Fixação
forçada de da maloca de Kumimarima e filho caçula de definitiva de
Kumimarima Kumimarima, no início da chefia de Dujdulli e Dujdulli e seu
para o Cahuinari Dujdulli (Se1) posterior adoção pessoal em
Putumayo, fuga 1936 Anos 1940 pelo clã Gavião Providencia,
e retorno à Chegada de Nominação do em um ritual Igaraparaná
região do Bartolomé de neto primogênito Tóóllíuwa
Cahuinari Igualada ao de Kumimarima
Cahuinari no clã Amanhecer
em um ritual
Tóólíuwa, no
Cahuinari
Tabela 8 – Clã Buriti (1924 a 1957)

Dessa maneira, Kumimarima, sendo um sobrevivente da Casa Arana e tendo nascido


em época anterior à chegada dos caucheiros, apenas teve tempo, antes de sua morte, de
estabelecer os primeiros contatos com os padres que buscavam (sem nunca terem tido
suficiente sucesso) reunir em La Chorrera o pessoal de todas as malocas dispersas no
território. Coube a seu filho primogênito, quem o sucedeu como chefe, construir as bases do
movimento de reconstrução das carreras rituais. De forma geral, é essa geração nascida no
começo do século XX que, em toda a região, colocou fim aos rituais de antropofagia e
vingança, ao mesmo tempo em que promoveu bailes titulares de conteúdo claramente menos
violento. Nesse sentido, espero que se torne claro que o movimento de fabricação dos chefes
indica que, no pós-caucho, mais valia atrair e adotar aqueles que antes encontravam-se na
posição de cativos que os consumir num festim antropofágico.

Certa vez, ao conversar sobre esse tema no mambeadero, um homem disse-me que
“hay canastos que se taparon y que ya no se deben destapar402”. Em geral, os Bora e outros
Povos do Centro dizem que, nessa época, eles “tamparam o cesto” dos rituais Túmajtsi e
Allóco. Como vimos na introdução à Parte II, os cestos (esp: canastos – bora: úverújtsi) são
imagens usadas pelos Povos do Centro para falar sobre o conhecimento que alguém possui.

402
“Existem cestos que foram fechados e que não devem ser abertos”.

358
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

Após o holocausto caucheiro, essa imagem parece ter sido adaptada para referir-se a dois
cestos ou canastos com conteúdo muito distinto. Vimos como os Muinane (Echeverri, 2013),
por exemplo, afirmam que uma parcela considerável das narrativas míticas e das práticas
xamânicas e rituais do período que antecedeu o genocídio da Casa Arana fazia parte dos
conhecimentos contidos no “cesto das trevas”. Nesse ponto do trabalho já está claro como a
passagem do “cesto das trevas” para o “cesto da vida” (ou, como venho propondo, do Tempo
dos Animais para o Tempo da Abundância) é também efeito do processo de fechamento dos
cestos de Túmajtsi e Allóco, isto é, da interrupção do conjunto de práticas e narrativas
envolvidas nos bailes de antropofagia e vingança. Vejamos agora como, a partir da segunda
metade do século XX e da fixação no Igaraparaná, os Bora “tampam esse cesto”, mas passam
a tecer outros que, ainda que confeccionados a partir da mesma urdidura, apresentam novas
tramas.

7.2. A fixação no Igaraparaná e a retomada dos rituais

Não pretendo retomar aqui a exposição que fiz, nos capítulos anteriores, sobre as
movimentações no território ao longo do tempo. Tampouco almejo seguir destrinchando as
relações de parentesco que permeiam os processos daquilo que venho chamando de “adoções
cerimoniais”. Em vez disso, me concentrarei na descrição do processo de retomada de
algumas carreras ou rituais titulares na segunda metade do século XX. Tal processo, como
veremos, foi marcado por três eventos cruciais que se deram nas comunidades do
Igaraparaná, a saber:

i) o ritual Tóóllíuwa feito em 1965 pelo clã Amanhecer;


ii) o ritual Pópóóhe feito entre 1987 e 1989 pelo clã Tamanduá e o ritual
Llaaríwa feito entre 1986 e 1988 pelo clã Amanhecer;
iii) o ritual Llaaríwa feito em 2003 pelo clã Tamanduá e, posteriormente, em 2010
pelo clã Gavião.
Conheçamos agora, em mais detalhe, cada um desses casos. Espero que fique claro,
no que segue, a centralidade do ritual Llaaríwa e de alguns movimentos que acompanharam
sua realização nesses períodos, como a transformação das canções rituais, a fabricação de

359
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

artefatos e a importância da fabricação de novos chefes. O acompanhamento da discussão


pode ser facilitado, ainda, pela consulta aos Diagramas 7, 8 e 9 apresentados anteriormente.

7.2.1. O ritual Tóóllíuwa de 1965 e as canções transformadas

Após a migração definitiva para o médio Igaraparaná em 1957, a família de Dujdulli


(Se1 de Kumimarima) instalou-se inicialmente na maloca de seu irmão, Nijtyúho – quem,
como vimos há pouco, havia deixado o rio Cahuinari na companhia do padre Igualada e cuja
transferência ao clã Amanhecer foi tema de discussão no capítulo 5. Em razão de um grave
conflito intrafamiliar cujos pormenores os Bora evitam relembrar, a maloca de Nijtyúho foi
abandonada. Dujdulli passou então a reunir esforços para erguer sua própria maloca a fim de
realizar o ritual de nominação de seu neto primogênito. Contudo, já em vias de dar início à
construção, Dujdulli faleceu inesperadamente, na primeira metade dos anos 1960. Assim, seu
filho primogênito, José Ramón, assumiu a posição de chefia de seu pai, conduzindo seu
pessoal às proximidades da maloca do clã Veado, recentemente construída a curta distância
do antigo assentamento de Nijtyúho403. José Ramón, no anseio de concretizar rapidamente o
desejo de seu pai, resolveu realizar o ritual de nominação de seu filho ali mesmo na maloca
do clã Veado, em 1965.

Em meu trabalho de campo, logo percebi que esse ritual havia sido especialmente
importante para os Bora. Mesmo após meio século de sua realização, as memórias sobre os
acontecimentos dessa época permanecem vivas nas narrativas de meus interlocutores, bem
como os “causos” (brigas familiares, problemas conjugais, etc.) que tiveram lugar nesse baile
que, apesar de ter sido feito em uma maloca pequena, reuniu muitas pessoas de diversas
comunidades do Igaraparaná. É importante notar que esse foi o primeiro ritual titular ou de
carrera feito pelos Bora após a saída das áreas de terra firme no interflúvio entre os rios
Igaraparaná e Cahuinari404. Realizar a nominação de seu filho em um baile Tóóllíuwa, após
a morte de seu pai, fez com que José Ramón consolidasse definitivamente sua posição de

403
A segunda esposa de seu pai, irmã de sua mãe, havia se casado com o chefe dessa maloca.
404
Os clãs Cobra-Grande e Zogue-Zogue, cujas carreras rituais passaram por um processo de esfacelamento
maior do que os casos tratados aqui, chegaram a realizar rituais titulares nos anos 1950. Nessa época, porém,
ainda viviam nas regiões de terra firme desse interflúvio.

360
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

chefia, de modo que ele perdurou como o maior chefe bora na Colômbia até o começo dos
anos 2000, quando faleceu.

Vimos que a própria nominação de José Ramón, nos anos 1940, já havia sido um
esforço empreendido por seu pai, Dujdulli, no sentido de romper com as heranças rituais de
Kumimarima, quem possuía uma carrera considerada violenta e inadequada (ver item 6.9).
A nominação do filho de José Ramón, assim, consolidava um movimento iniciado vinte e
cinco anos antes: se ao fazer o ritual e atender ao desejo de seu pai José Ramón produziu a si
mesmo como chefe de clã, ele o fez também por meio de uma série de transformações que
coordenou na ocasião.

Contam os Bora que nos dias anteriores à realização do ritual, José Ramón promoveu
uma série de encontros em seu mambeadero. Ao discutir com os anciãos e chefes dos demais
clãs sobre o caráter potencialmente violento dos bailes, os homens chegaram ao acordo de
que modificariam as letras das canções de maneira definitiva como forma de criar um
ambiente ritual mais são e mais protegido das desavenças. Até esse momento, abundavam
canções que diziam respeito às relações de inimizade entre os donos dos rituais e seus
convidados-cantores (ou entre os grupos “de dentro” e “de fora”). Além disso, muitas eram
as referências às orígenes que falavam sobre ataques dos animais contra os humanos. Como
argumentei anteriormente, sendo o ato de nomear (isto é, proferir pública e verbalmente algo)
capaz de incidir diretamente sobre pessoas e coisas, deixar de mencionar relações de
inimizade e violência com humanos e animais foi uma forma encontrada para que interações
desse tipo não fossem acionadas e nenhum mal fosse desencadeado.

Lidei diretamente com esse tema ao longo do tratamento das transcrições feitas por
Mireille Guyot no Igaraparaná nos anos 1960. Segundo os Bora, algumas gravações que ela
fizera com um velho chefe do clã Pupunha estavam repletas de canções cujas letras, hoje, já
não são mais as mesmas405. Elas falavam especialmente sobre as antigas cabeças-troféus,
sobre os inimigos de guerra e sobre o sangue derramado nas batalhas. Os Bora me
explicaram, então, que José Ramón e os demais anciãos resolveram que, por ocasião do ritual
de nominação de 1965, mudariam as letras de todas as canções: dali em diante, os ‘inimigos’

405
Esse homem foi o único chefe Bora que não se retirou do rio Cahuinari mesmo após as investidas dos padres
(muito embora tenha trabalhado com narcos no Tempo da Máfia). Com sua morte no fim do século XX, sua
família abandonou a maloca e migrou para La Chorrera e Puerto Arica, no rio Putumayo.

361
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

seriam tratados como ‘amigos’ e as referências ao sangue vertido na guerra passariam a


designar o derramamento de cahuana ou de manicuera406.

Movimento similar aconteceu em relação às canções de “dar de tomar” (ijchójune) e


às suítes llééneba (cf. cap. 6). Como vimos, elas comumente faziam referências às relações
tensas entre convidados e os donos dos rituais. Após o acordo em 1965, passou-se a,
deliberadamente, evitar esses conteúdos, substituindo-os por outros que versam sobre a
harmonia e a convivência pacífica, como pude eu mesma notar no llééneba de um ritual
Ihchúba de que participei em 2016. Além disso, a partir dessa época, os caçadores-
convidados passaram a privilegiar a entrada na maloca com apitos e flautas em detrimento
das antigas canções de insulto que, embora ainda existam, tornaram-se menos agressivas.

Entre 1970 e 1971, pouco após a última visita de Mireille Guyot à comunidade
Providencia, José Ramón conseguiu finalmente construir sua maloca. Alguns anos mais
tarde, entre 1974 e 1976, ele a abandonou, mudando-se com sua família para as margens do
igarapé Tagua, onde fundou, cerca de 3km distante de sua antiga maloca, uma nova
comunidade407.

7.2.2. O fim dos anos 1980: o ressurgimento do trocano llaaríwa e do ritual


Pópoóhe

Desde 1965, passaram-se cerca de vinte anos até que outro ritual de nominação fosse
feito entre os Bora no Igaraparaná. Isso só veio a ocorrer novamente na segunda metade dos
anos 1980, época em que os Bora experimentavam outras transformações para além do
domínio da vida ritual.

406
A palavra indicada pelos Bora para a tradução de “amigo” é náhbéébeé, uma variação daquela utilizada para
referir-se a um irmão, nahbe. Conhecemos essa palavra no capítulo anterior, quando tratados da relação dos
donos de rituais e daqueles que os ajudam nos preparativos dos mesmos. Notemos ainda que a transformações
das canções coloca em evidência, para além da extração do potencial predador dos inimigos (agora “amigos”),
a substituição do sangue pela bebida de mandioca. Em alguma medida, trata-se de operação idêntica àquela
realizada durante os rituais contemporâneos quando o grupo “de dentro” paga com alimentos vegetais a caça e
as canções trazidas pelos convidados estrangeiros.
407
A mudança para Tagua teve a ver com o casamento de seu filho primogênito, quem se uniu a uma filha do
chefe do clã Cobra-Grande. Para uma reconstituição do processo de inauguração dessa e de outras as malocas
bora no Igaraparaná na segunda metade do século XX, ver cap. 5.

362
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

Como vimos na Parte I desse trabalho, os anos 1980 inserem-se no Tempo da Máfia
ou da bonanza da coca e foram marcados pelo auge da atuação dos comerciantes de cocaína
na região e pela presença de outros atores relacionados ao narcotráfico e ao conflito armado
colombiano como as FARC, o exército e os paramilitares. Algumas famílias, como
mencionei, trabalharam diretamente para tais comerciantes, paisas408 vindos sobretudo da
região de Medellín. Outras, apesar de manterem com eles uma relação mais distante,
realizavam trabalhos pontuais nas plantações e nos pequenos laboratórios. Em suma, à
insegurança política e física que os Bora enfrentavam nesse período sobrepunha-se uma
relativa abundância de recursos materiais como combustíveis, alimentos industrializados e
máquinas (motores de centro, motosserras, raladores a gasolina, etc.), de modo que diversas
famílias contavam à época com uma quantidade maior de bens do que possuem nos dias de
hoje.

Por outro lado, os Bora e os demais Povos do Centro encontravam-se no centro da


disputa com a Caja Agrária em prol da regularização fundiária de seu território (ver cap. 2).
Nesse processo, José Ramón, junto a outros chefes da região, foi protagonista na construção
das reivindicações que, em 23 de abril de 1988, culminariam na demarcação do Resguardo
Indígena Predio Putumayo e na entrega definitiva dos quase 6 milhões de hectares aos povos
que ali viviam. Dessa forma, produziu-se um cenário onde tínhamos, de um lado, recursos
materiais abundantes que viabilizavam a abertura e a manutenção de roçados de grandes
proporções (por sua vez fundamentais para a realização de rituais titulares); e, de outro, a
inserção definitiva dos Bora no movimento indígena colombiano, preocupado, naquele
tempo, com a valorização de certas práticas culturais que contribuíam tanto para legitimar
suas demandas face ao Estado quanto para consolidar antigas redes locais409.

Em meados dos anos 1980, José Ramón inicia, então, uma grande reformulação na
estrutura de sua maloca. Com a ajuda de diversos homens, amplia o diâmetro da construção
para doze metros, “levantando” assim a maior maloca do Igaraparaná. Além disso, mobiliza
seu pessoal e encontra, no meio da mata, uma árvore grande e de madeira suficientemente

408
Nome dado àqueles que nasceram na região do Noroeste Colombiano (departamentos de Antioquia, Caldas,
Risaralda e Quindío).
409
Como mencionei, um ponto importante na consolidação desse movimento foi a criação, em 1995, da OPIAC
(Organización Nacional de los Pueblos Indígenas de la Amazonía Colombiana).

363
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

durável para a fabricação de um trocano llaaríwa, ausente nas malocas bora desde pelo menos
o fim do período caucheiro. A reforma da maloca e a confecção, o transporte e a instalação
do novo trocano foram concluídos com um ritual de inauguração sobre o qual não possuo
muitas informações. É sabido, porém, que em algum momento entre 1986 e 1988 José Ramón
realizou, executando o trocano que se encontra até os dias de hoje na maloca do clã
Amanhecer (ver Fotos 27 e 28), o primeiro ritual de nominação Llaaríwa feito entre os Bora
desde o fim do período caucheiro410.

Nessa ocasião, um dos trabalhadores do pessoal de José Ramón era Fernando, do clã
Tamanduá. Tendo perdido os pais quando ainda era muito novo, ele passou bastante tempo
de sua vida como órfão errante: transitou entre diversas famílias, passou um tempo nas
malocas Bora no Peru, foi à cidade estudar com os padres católicos e, finalmente, voltou ao
Igaraparaná para viver ao lado de José Ramón, que o acolheu em sua maloca e o aconselhou
a cuidar de seus irmãos mais novos e conseguir uma esposa. Parte da proximidade entre os
dois justificava-se pelo fato de que Kumimarima, avô de José Ramón, havia sido ajudado, no
pós-caucho, por Kiyejume, chefe do clã Tamanduá que conseguiu escapar dos capatazes da
Casa Arana e avô do órfão acolhido por José Ramón. Além disso, o rapaz era sobrinho
classificatório de José Ramón (FBDS)411, algo que o inseria exatamente numa relação de
parentesco na qual, tal como discutimos no capítulo 4 (ver ainda Karadimas, 2000b), é
comum que os sobrinhos-órfãos se vinculem às malocas de seus tios classificatórios.

Apesar de ser o neto primogênito de Kiyejume, em razão da morte prematura de seu


pai, Fernando não havia sido nominado em uma carrera ritual nem tampouco possuía sua
própria maloca. Por sua condição, aproximou-se de José Ramón como seu ajudante,
auxiliando-o sobretudo no preparo do mambe e do ambil, ao mesmo tempo em que, sendo
filho primogênito de uma linhagem maior de clã, buscava aprender de seu “chefe adotivo”
os conhecimentos que não lhe haviam sido passados pelos homens de seu clã. Ao falar sobre
sua própria vida, Fernando, que hoje é o chefe do clã Tamanduá, sempre enfatiza como sua

410
No ritual em questão, foi nominado o neto primogênito de José Ramón. O baile contou ainda com um
cabecilla Murui-Muina que se encontrava no mesmo processo de retomada das antigas práticas de transmissão
de nomes titulares. Para a composição dos pares bonito e feio desse ritual, ver cap. 5.
411
Ele é filho da filha do filho (Se2) de Kumimarima, logo neto classificatório de Dujdulli (Se1 de Kumimarima).

364
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

condição de orfandade colocava-o numa posição delicada, pois, apesar de descender de uma
família prestigiosa, foi necessário, como ele costuma dizer, “reconstruir tudo do zero”.

Na época da inauguração do trocano llaaríwa do clã Amanhecer, no fim dos anos


1980, Fernando manifestou seu desejo de construir uma maloca para si. Com o apoio de José
Ramón, que organizou seu pessoal e coordenou os trabalhos com os demais chefes, a maloca
foi construída em pouco mais de uma semana de atividades. Contudo, o ex-órfão de José
Ramón, a partir de então chefe e dono de maloca do clã Tamanduá, desejava também retomar
a carrera Pópoóhe, que antigamente pertencia aos homens primogênitos de seu clã. Apesar
do aval de José Ramón e dos demais chefes, havia um problema grave: já não existiam
pessoas capazes de transmitir as suítes de canções e os passos de dança dessa carrera,
abandonada desde o período caucheiro – ou seja, há quase um século.

José Ramón era um dos poucos que ainda podia se lembrar de algumas canções, mas
o domínio que possuía delas era insuficiente para a realização de um ritual titular. Ele decidiu
então, com a ajuda de Fernando, produzir uma quantidade abundante de mambe e ambil, o
que ocupou boa parte do pessoal de suas malocas por alguns dias. Feito isso, reuniram-se
com os homens mais velhos da região e, por noites a fio, trabalharam para recuperar as
canções.

A recuperação das canções foi feita por meio do diálogo direto com o Abuelo Tabaco,
demiurgo criador dos Povos do Centro. Segundo meus interlocutores, com o passar dos dias
mais e mais músicas foram sendo entregues aos homens reunidos no mambeadero, que
muitas vezes permaneceram ali até o dia amanhecer. Quando finalmente já havia uma
quantidade suficiente de cantos para a realização do ritual, foi iniciado o processo de
preparação do mesmo. Assim, entre 1986 e 1988, quando o filho primogênito de Fernando
tinha por volta de 10 anos, ele foi nominado em um ritual Pópoóhe. Seu pai, então, lhe
informou que no futuro lhe concederia seu banco no mambeadero, de modo que ele pudesse
assumir a maloca na qualidade de um chefe de Pópoóhe, carrera dominante na maloca do
clã Tamanduá a partir de então.

A situação de um órfão primogênito de uma linhagem maior que não tem a


oportunidade de ser nominado por seu pai e resolve recuperar a carrera de sua família é uma
boa imagem do que aconteceu ao longo do século XX entre os Bora. É bastante provável que

365
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

caso não se tratasse de um primogênito de linhagem maior, José Ramón, enquanto chefe mais
influente, não autorizasse a construção da maloca do clã Tamanduá e a consequente
reativação da carrera perdida. Contudo, a combinação entre a relativa comiseração sentida
pelos órfãos depois do caucho e a posição de prestígio potencialmente herdada por esse
homem foram elementos que o autorizaram, perante os olhos dos demais donos de maloca e
de seu pessoal, a fabricar-se enquanto chefe. Assim, soma-se aos tipos de adoção que
conhecemos em capítulos anteriores, essa relação de “adoção sem filiação” que pode
acontecer entre um órfão e um chefe na qual eles ocupam, respectivamente, a posição de
aprendiz e mestre. Longe de ser algo exclusivo aos Bora, parece que tais relações se fizeram
presentes entre outros Povos do Centro:

Los sobrevivientes de un clan diezmado por la guerra buscan protección en


una maloca ajena que les acoge como “huérfanos” (…), es decir, con un
estatus inferior a los miembros del linaje de la maloca. Los “huérfanos” son
trabajadores de la maloca, cuyo jefe les atribuye las tareas. Un niño huérfano
varón, cuando se vuelve joven, tiene el derecho de asistir a las reuniones
nocturnas de los hombres en el patio de la coca y puede pretender adquirir
conocimientos discursivos rituales que le permitan rescatar su clan y fundar
un nuevo linaje en una maloca con su carrera ceremonial. El jefe de maloca
que aceptó enseñarle funge como su “padre” (…). El lazo así establecido
entre la maloca del “padre” y la del ex-huérfano por la transmisión del
conocimiento ritual equivale a una “adopción”, aunque el nuevo dueño de
maloca conserve su propia afiliación clánica, ya que su propósito fue
precisamente conservar en vida y reactivar su clan, que casi había sido
aniquilado por su enemigo. (Gasché, 2009a: 21)

Muito embora Fernando tenha se independizado em relação ao antigo chefe que o


acolheu, ele seguiu buscando influência e apoio ao lado de José Ramón. Essa foi uma relação
que perdurou até os anos 2000, quando aconteceu outro movimento de retomada.

7.2.3. Os anos 2000

Por volta de 2003, Fernando, o chefe do clã Tamanduá (que àquela altura já contava
com uma maloca bem consolidada e reunia à sua volta um numeroso pessoal), buscou
novamente José Ramón a fim de discutir a retomada de outra carrera. Dessa vez, sua vontade
era ativar em sua maloca a mesma carrera que possuía José Ramón, Llaaríwa. Seu desejo
era motivado pelo fato de que essa também era uma carrera que pertenceu, no passado, a

366
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

seus familiares412. José Ramón, enquanto chefe dessa carrera e principal chefe entre os Bora,
era a pessoa ideal a autorizá-lo a tanto.

Dessa forma, José Ramón e Fernando reuniram seu pessoal e trabalharam na


confecção de um novo trocano. Quando o artefato ficou pronto, o inauguraram em um baile
Llaaríwa na maloca do clã Tamanduá. Na ocasião, o segundo filho (Se2) de Fernando ganhou
um nome titular413 e esse último, muito embora nunca tenha sido iniciado num ritual desse
tipo, recebeu de José Ramón o aval de utilizar os adornos corporais restritos ao conjunto de
titulares. Assim, dali em diante, Fernando passou também a ser um chefe Llaaríwa, numa
modificação da ordem habitual de transmissão das carreras que lembra aquela feita por
Dujdulli em relação ao próprio José Ramón, uma geração antes, quando ainda viviam no rio
Cahuinari414.

José Ramón faleceu no final dos anos 2000, deixando seu filho primogênito a cargo
de sua maloca. Logo após a sua morte, houve uma grande reunião em sua antiga maloca onde
estiveram presentes todos os chefes e anciãos de cada um dos clãs415. O objetivo da reunião
era debater quem ocuparia o cargo de “cacique” dos Bora no Igaraparaná, isto é, qual chefe
ficaria a cargo de cuidar, tal qual fazia José Ramón, dos processos “políticos e espirituais”
(palavras bora) que envolvem a manutenção do bem-viver entre todas as malocas. Mais que
os cargos de “governador”, “secretário” ou “representante étnico”, cujas incumbências
orbitam ao redor da representação das comunidades face ao exterior (ver cap. 3), o “cacique”
é como um conselheiro que, sentado em seu mambeadero, traz as palavras certas para a
resolução de conflitos e a tomada de grandes decisões comunitárias. Além disso, ele é quem,
numa situação de doença grave ou acusações de feitiçaria, é capaz de acalmar os ânimos e,
mesmo quando não tem a capacidade de curar o paciente ou afastar o agente patogênico,
busca os meios para tal junto a outros homens com capacidade xamânicas.

412
Como Pópoóhe parece ter sido a carrera de seu avô paterno, é possível que a Llaaríwa venha pelo lado
materno. Nunca tive a oportunidade de esclarecer com suficiente clareza tais linhas de transmissão e suas
interrupções.
413
O filho já se encontrava no final da adolescência, portanto numa idade pouco usual para a nominação.
414
Dali em diante, os chefes das malocas do clã Tamanduá e do clã Amanhecer estabeleceram-se como cabecilla
um do outro na grande maioria dos rituais.
415
No fim de sua vida, os parentes de José Ramón disseram que ele pediu que sua maloca fosse completamente
queimada. O pedido não foi atendido por seu filho primogênito, que entretanto reformou a maloca em seguida,
diminuindo seu tamanho e trocando alguns de seus esteios.

367
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

Era de se esperar que o filho primogênito de José Ramón o substituísse nesse cargo,
uma vez ele havia acompanhado seu pai durante toda sua vida. Contudo, por ser o diretor da
escola local, argumentou-se que ele possuía incumbências demais, sendo complicado
conciliar as duas atividades. Dessa forma, ficou acordado que, até o momento de sua
aposentadoria, o posto seria ocupado por Fernando, uma vez que ele também havia
acompanhado José Ramón durante muitos anos e era, finalmente, um chefe da carrera
Llaaríwa416. Pouco tempo depois, em 2010, o irmão caçula de José Ramón, quem havia sido
adotado ritualmente pelo clã Gavião nos anos 1950, resolveu transmitir seu nome a seu filho
primogênito, ainda que ele não mais estivesse na idade usual para as nominações. Ele realizou
o ritual na comunidade Providencia, na maloca que José Ramón deixou para trás nos anos
1970 e que, desde aquela época, foi assumida por Benito, seu irmão imediatamente menor
ou Be2 (sobre esse tema, ver cap.s 5 e 6).

Completamos assim um quadro mais completo acerca da recuperação das carreras


titulares ou de nominação desde o fim do período caucheiro até os dias de hoje. As
informações encontram-se sistematizadas na tabela a seguir:

416
O filho primogênito de José Ramón, em cuja maloca permaneci a grande parte de meu trabalho de campo,
está em vias de se aposentar. Porém, ainda não se sabe se ele de fato assumirá o antigo lugar de seu pai. Entre
outras razões, o fato de seus filhos não possuírem ainda esposa e filhos é um problema face à necessidade que
um “cacique” possui de contar com seu pessoal.

368
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

Clã Ritual Data Geração417 Lugar


(estimativa) (rio/comunidade)
Amanhecer Tóóllíuwa Anos 1940 G+1 Cahuinari
(na antiga maloca do clã
Buriti)
1965 G0 Igaraparaná
(comunidade Providencia,
na antiga maloca do clã
Veado)
Llaaríwa 1986 a 1988 G-1 Igaraparaná
(comunidade Tagua)
Gavião Tóóllíuwa Começo dos anos G+1 Cahuinari
1950 (na antiga maloca do clã
Buriti)
Llaaríwa 2010 G0 Igaraparaná
(comunidade Providencia,
na maloca do clã Buriti)
Tamanduá Llaaríwa 2003 G0 Igaraparaná
Pópoóhe 1987 - 1989 (comunidade San Andrés)
Tabela 9 - Carreras retomadas no século XX

Vemos, assim, como a promoção de rituais Llaaríwa/Tóóllíuwa foi uma constante


desde os anos 1940 até 2010. Nessas ocasiões, mesmo quando os chefes das malocas não
haviam sido nominados anteriormente nessa carrera, foi feito um esforço para que um
número maior de pessoas titulares pudesse ganhar nomes nesse tipo de ritual. As nominações
mais recentes e a confecção de dois novos trocanos llaaríwa que hoje encontram-se nas
malocas dos clãs Tamanduá e Buriti (que antes já abrigavam, respectivamente, as carreras
Pópoóhe e Báhja) colocam um problema muito discutido, mas ainda sem solução entre os
Bora: é possível que uma maloca abrigue duas carreras rituais e, consequentemente, dois
homens titulares ou em posição de chefia?

No caso da maloca do clã Tamanduá, o banco de chefia no mambeadero permanece


com Fernando, o pai daqueles que foram nominados em Pópoóhe e Llaaríwa, mas não se
sabe ao certo o que acontecerá quando ele não for mais capaz de exercer seu cargo. Já no
caso da maloca do clã Buriti, seu dono já transferiu sua chefia a seu filho, quem vem cada
vez mais sentando-se no banco de seu pai. Contudo, a presença do trocano llaaríwa e das
pessoas filiadas ao clã Gavião no mesmo espaço faz com que a sobreposição de duas linhas
de chefia nessa maloca gere certo descompasso: apesar de a maloca ser chefiada pelo filho

417
Nessa tabela, assume-se G0 como a geração dos chefes que atualmente exercem sua chefia. A única exceção
aqui é José Ramón, nomeado nos anos 1940 no clã Amanhecer, que já faleceu.

369
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

do antigo chefe, existe uma família que, fazendo parte do pessoal dessa maloca, pertence a
uma carrera mais prestigiosa, cuja relevância encontra-se, precisamente, em sua associação
com a posição ocupada pelos chefes-Garça com a prerrogativa de realizar rituais Llaaríwa418.

Não penso que esse seja um problema que ameace a continuidade das carreras rituais,
mas sim que os Bora se encontram diante de uma situação que, tal como aconteceu para a
reativação dos rituais no passado, será debatida e posteriormente acordada no espaço ritual
do mambeadero. Por ora, voltemo-nos para a valorização da carrera Llaaríwa ao longo do
processo de retomada dos rituais. No capítulo anterior, falei um pouco sobre como esse ritual
está estruturado e sobre a origem de seus trocanos homônimos. Agora, dirijo-me para um
aspecto ainda não satisfatoriamente explorado: a capacidade que tem o ritual Llaaríwa de
produzir um determinado tipo de chefia.

7.3. Llaaríwa e a fabricação ritual de chefes-Garça

On dit que Whiffen fut surnommé "Aigrette" par les Bora à cause de sa
barbe ou d'un survêtement qu'il portait, de couleur blanche; probablement
aussi parce que, comme les autres Blancs, il introduisait des objets
d'échange. D'un façon générale, l'aigrette est associée à l'image du Blanc
par son appartenance aux bords des rivières (voies d'accès des Blancs) e
aux alentours des habitations où elle vient chercher des détritus. (Guyot,
1976: 392)

Espero que já tenha ficado claro o quanto os rituais do passado são, pelo menos
atualmente, associados a um ambiente de violência e perigo. Assim, se os Bora descrevem
os rituais como os momentos privilegiados para o surgimento e a reativação de conflitos dos
mais diversos tipos, os bailes Llaaríwa não seriam uma exceção.

Guyot (fg_b10_Resumé Fond Cahier Bleu) comenta que, entre os Miraña no rio
Caquetá, o ritual Llaaríwa era evitado na década de 1970 por ser considerado “violento
demais”, à maneira do que ocorre hoje em relação ao baile Baáhja. Não é difícil entender a
razão dessa associação: a própria origem dos trocanos homônimos remete, como vimos, a

418
Parte da solução desse descompasso vem sendo construída, a meu ver, com a realização de rituais da carrera
Báhja pelo atual chefe do clã Buriti, quem assim busca consolidar sua posição de chefia. Segundo meus
interlocutores, é bastante provável que o chefe do clã Gavião, que apenas recentemente casou-se, busque no
futuro construir outra maloca para realizar os rituais da carrera Llaaríwa junto a seu pessoal.

370
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

um mito cujo tema principal é a disputa entre a Cobra-Grande-da-Guerra e Garça-Branca419.


Porém, acabamos de retraçar o processo de reativação desses rituais entre os Bora no
Igaraparaná por meio da exposição e análise de um sistema de adoções cerimoniais que teve
lugar ao longo das últimas décadas. Seria natural perguntar-se, então, como e por que um
baile anteriormente associado à violência pôde ser privilegiado ao longo de um processo de
retomada político-ritual em que os conteúdos pacíficos tenderam a ser destacados. Dito de
outro modo, se na passagem do Tempo dos Animais para o Tempo da Abundância buscava-
se produzir relações pacíficas e seguras, por que rituais menos suscetíveis ou mais
corriqueiramente feitos, como Apújco, foram preteridos em relação ao delicado e belicoso
Llaaríwa?

Essa questão tomou forma durante meu trabalho de campo ao mesmo tempo em que
se revelavam para mim algumas de suas possíveis respostas, as quais buscarei apresentar a
seguir tendo em mente aquilo que Landaburu chamou de “reconstrução progressiva do
universo da maloca”:

La reconstrucción progresiva del universo de la maloca y los festivales


religiosos han demostrado que ha tenido lugar un proyecto de
reconstrucción étnica, tanto como, o más, que un intento de supervivencia.
Esta reconstrucción no fue una simple reconstitución. Se operó una
selección y manipulación de los mitos y los ritos con el fin de establecer
nuevas relaciones con el Mismo y con el Otro, luego del colapso del
mundo tradicional, provocado por los blancos. (Landaburu, 1993: 150-
151, grifo meu)420

Penso que a reconfiguração do ritual Llaaríwa (bem como do ritual Ujcútso, que será
tratado mais adiante nesse capítulo) é um bom exemplo do vínculo entre a vida ritual e o
estabelecimento dessas “novas relações com o Mesmo e com o Outro”. Para
compreendermos melhor tal dinâmica, é mister explorar um pouco mais a figura da Garça
Branca.

419
Ademais, lembremos que as flautas-troféus confeccionadas com os ossos de inimigos eram executadas
justamente durante rituais Llaaríwa.
420
É importante salientar que a expressão “manipulação dos mitos e dos ritos” deve ser lida de forma cautelosa,
a fim de não construirmos uma imagem de que os Povos do Centro agiram como indivíduos que refletem
estrategicamente sobre quais ações podem lhes proporcionar maior e melhor retorno, num tipo de leitura à la
Teoria dos Jogos que é rejeitada neste trabalho.

371
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

7.3.1. A Garça Branca enquanto chefe ideal

Vimos, no começo da Parte I desse trabalho, como Garça foi responsável pela chegada
dos primeiros objetos de metal entre os Povos do Centro. Nessa narrativa, Garça-do-Bom-
Trabalho (ou simplesmente Garça) contava com um numeroso pessoal a seu redor, a quem o
narrador também denomina como seus “servos” ou “clientes”. Considerando muito difícil o
trabalho na roça, que devia ser aberta e limpa com um machadinho de pedra, o pessoal pede
a seu chefe-Garça que vá até o assentamento do Deus-do-Machado, onde era sabido que
havia instrumentos de metal.

Garça-do-Bom-Trabalho, então, organiza atividades coletivas a fim de que seu


pessoal colete algumas espécies da roça (como frutas e mandioca) e produza farinha, além
de ordenar que seja preparada uma boa quantidade de mambe e ambil. Chegando ao
assentamento do Deus-do-Machado, Garça lhe oferece sua coca e seu tabaco, explicando-lhe
que esses são elementos indispensáveis para se trabalhar bem no roçado. Contudo, conta-lhe
sobre a dificuldade que seu pessoal vem enfrentando por não possuir boas ferramentas. Deus-
do-Machado aceita então negociar com Garça-do-Bom-Trabalho. Em troca da farinha e de
outros alimentos, entrega-lhe machados de metal, terçados, facas, panelas e fósforos. Garça
volta a sua maloca e reparte o que havia trazido com seu pessoal. Porém, rapidamente os
objetos acabam e o pessoal diz a Garça que era necessário trazer mais. Garça organiza uma
nova leva de produtos a serem oferecidos a Deus-do-Machado em troca das mercadorias que
desejavam, consolidando assim uma relação de troca comercial que se repete por diversas
vezes.

Como já vimos, Deus-do-Machado é o demiurgo criador dos añúmúnaa (literalmente,


“gente que atira” ou “gente que queima”), termo que os Bora traduzem, para o espanhol,
como blancos. Escutei, durante o meu trabalho de campo, diversas narrativas ou origenes
que falavam sobre a habilidade de Garça de relacionar-se com o Oriente (ver Parte I), seja
em relação ao “mundo dos brancos” seja na figura de seres como o Jaguar-dos-Cantos-de-
Jusante (ver cap. 6). Garça, portanto, destaca-se na mitologia bora por sua capacidade de agir
como intermediário, sendo um negociador confiável com o exterior421. Ao mesmo tempo,

421
É importante ter em mente que, aqui, a Garça com a qual os chefes humanos relacionam-se pode aparecer,
nas narrativas míticas, como Garça-da-Abundância, Garça-do-Tabaco-Frio, Garça-do-Trabalho, etc. Apesar da

372
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

Garça possui a capacidade de organizar seu próprio pessoal, pois, ao ouvir suas demandas,
coordena a produção dos alimentos que servirão como moeda de troca para a obtenção das
mercadorias. Assim sendo, Garça reúne dois importantes atributos: de um lado, é capaz de
exercer internamente sua chefia ao coordenar os trabalhos de seu pessoal, e, de outro,
consolida-se também como chefe face ao exterior ao assumir o papel diplomático de
negociador. Sua capacidade de reunir diversos atributos fica ainda mais clara neste outro
mito422:

Garça-do-Tabaco-Frio tinha todo seu corpo feito de tabaco e vivia sentado


em seu banco. Ele tinha o desejo de fazer surgir o Tabaco-da-Sabedoria ou
Tabaco-da-Liderança para que pudesse ver bem as coisas. Quando ele
falava, de sua boca saia um ar frio, fresco. Com esse ar é que ele fez surgir
o tabaco, nomeando-o com sua palavra fria.

Então se ouviu um choro do lado de fora da maloca. Garça mandou que um


de seus servos fosse olhar o que acontecia. Ele foi, mas não encontrou nada.
Logo depois, outra vez ouviram o choro, mas em outra direção. Outro servo
foi ver, mas também não encontrou nada. Aconteceu algumas vezes, até
que Garça-do-Tabaco-Frio resolveu mandar todos os seus servos, cada um
em uma direção.

Foi assim que um servo conseguiu achar onde estava o choro, mas não foi
capaz de enxergar o que era. Ele chamou então Garça, que saiu da maloca
com um candeeiro. Garça-do-Tabaco-Frio foi e achou uma plantinha bem
pequena no pátio, tão pequena como escama de peixinho que vive no
igarapé. Garça transplantou a plantinha em uma casca de cacaurana, que
era o prato dos antigos.

Ali foi crescendo a plantinha, que com o tempo acabou se transformando


em uma pessoa. Essa pessoa queria comer, mas Garça-do-Tabaco-Frio não
sabia o que lhe dar. A criança disse que queria comer o que sobrasse da
comida de Garça e de seus servos.

Garça lhe ofereceu cará, inhame, beiju e cacaurana. Nada disso ela quis
comer, dizendo que essa não era sua comida423. Garça então perguntou à
sua mulher o que ela achava que ele deveria dar à criança e ela disse que
ele deveria tentar dar as cinzas de embaúba que sobravam quando seus
servos faziam mambe.

Assim ele fez e finalmente a criança ficou feliz. Em seguida, Garça tentou
dar um nome à criatura. Testou alguns nomes: Abacaxi, Mari, Ingá... Mas
ele dizia que nenhum daqueles nomes lhe servia. Garça então outra vez

multiplicidade de termos, trata-se sempre do mesmo ser, por contraste com Garça-dos-Animais, Garça-dos-
Porcos-do-Mato, Garça-dos-Veados, etc.
422
Narrativa coletada em espanhol na maloca do clã Amanhecer, em 2017. Ela me foi contada por dois chefes
(clã Amanhecer e clã Cobra-Grande) e o que segue baseia-se em anotações detalhadas em meu caderno de
campo.
423
É interessante notar como aqui aparece novamente um tema que observamos na narrativa de origen do ritual
de caiçuma de pupunha (cap. 6): a existência de um estrangeiro (aqui a criança-plantinha, alhures a mulher-
peixe de Llijchuri) que não encontra na maloca que o recebe um tipo de comida que lhe satisfaça.

373
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

recorreu à mulher, que sabia de muitas coisas. Ela disse que desde sua rede
escutava o que os homens conversavam e que em sua opinião ele deveria
se chamar Tabaco-de-Sabedoria. Assim Garça o nomeou e a criança disse
que esse era um bom nome. Ao crescer mais, Tabaco-de-Sabedoria disse à
Garça-do-Tabaco-Frio que fizesse uma “fogueira”424 atrás da maloca.
Assim ele fez, e a criança outra vez se transformou em planta e ali a
plantaram. Ao crescer, era dali que Garça retirava seu tabaco para fazer
ambil.

Antes disso, já havia no pátio da maloca outro tipo de tabaco, o Tabaco-


dos-Animais, que ficava sempre na direção da porta da maloca. Garça-do-
Tabaco-Frio buscou a ajuda da Abuela-Abelha para resolver a situação.
Ela, por sua vez, recorreu ao próprio Abuelo Tabaco ou Tabaco-de-Nossa-
Criação, que a aconselhou. Ele disse que ela deveria atacar o Tabaco-dos-
Animais por trás, já que ele estava sempre na direção da porta da maloca.
Assim ela fez e, nesse momento, o céu ficou nublado e houve muitos raios
e trovões. Era o espírito do pai do Tabaco-dos-Animais que estava furioso.
A Abuela-Abelha, ao golpear a planta, retirou cada uma de suas folhas e as
jogou no chão. Cada folha virou um tipo diferente de onça. A rama central,
que ficou por último, virou uma pantera negra assim que ela a jogou no
chão.
Essa é a origen do Tabaco-de-Sabedoria ou Tabaco-de-Liderança – em Bora
Ávyéjuúbe Bañehe. Como mencionei antes nesse trabalho, enquanto bañehe é palavra para a
planta de tabaco, ávyéjuúbe é a palavra para referir-se a um chefe. Dessa maneira, a tradução
de meus interlocutores de Ávyéjuúbe Bañehe como Tabaco-de-Sabedoria nos permite
compreender que há uma interessante relação entre chefia e conhecimento – ou melhor, entre
chefia e um certo tipo de conhecimento. Garça-do-Tabaco-Frio é quem pode indicar-nos qual
é o sentido dessa “sabedoria”.

Na narrativa, o tabaco (enquanto substância e enquanto demiurgo criador do mundo)


precede a existência de Garça, uma vez que o próprio corpo de Garça-do-Tabaco-Frio havia
sido criado a partir de galhos e ramas do Tabaco de Nossa Criação, ou Mepiívye Bañehe (ver
Int. à Parte II). Garça, porém, empenha-se na criação de um tipo específico de tabaco. Para
concebê-lo, primeiro Garça nomeia-o como tal, fazendo com que surja em seguida o Tabaco-
de-Sabedoria ou o tabaco típico dos chefes.

Dessa forma, Garça-do-Tabaco-Frio cria o Tabaco-de-Sabedoria nos dois sentidos


possíveis do termo. Por um lado, assim como Mepiívye Bañehe deu origem a todos os

424
Hacer hoguera é uma forma de trabalhar nos roçados na qual é construída uma pequena redoma com paus
(geralmente de 1 a 2 metros de diâmetro) e, em seguida, ateia-se fogo na terra que permanece no interior,
misturando-a a pequenas ramas e folhas. Quando já há bastante material carbonizado e a terra não está mais
quente, é comum que a área seja utilizada para transplantar pequenas mudas de tabaco e pimenta, que assim
crescem “com alento”.

374
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

humanos e à própria Garça, ela cria ou gesta o Tabaco-de-Sabedoria desde sua concepção
mais primeva, nomeando-o em seu mambeadero e organizando seus servos a fim de que
encontrem seu novo filho-Tabaco. Por outro lado, é por meio da alimentação da criança-
Tabaco com as cinzas de embaúba (as mesmas que “alimentam” seu pessoal quando
consomem mambe, substância que sempre acompanha o ambil) que Garça pôde, tal qual faz
uma mãe em relação a seus filhos, criar o Tabaco-de-Sabedoria425.

Como vimos, personagens como Garça, Tabaco, Sol/Lua ou Cobra-Grande podem,


nas orígenes, aparecer com diferentes nomes compostos. Na narrativa em questão, Garça-do-
Tabaco-Frio faz referência ao próprio episódio de criação do Tabaco-de-Sabedoria e a uma
de suas características principais – a saber, sua frialdade ou algidez. Já notamos, em outras
partes desse trabalho, como a oposição quente/frio é fundamental para os Povos do Centro e
como ela se relaciona especialmente com à esfera do comportamento: atitudes e pensamentos
quentes são no geral vinculados à violência e ao inadequado mundo dos animais, ao passo
que posturas frias se ligam à vida humana exemplar. Um chefe, nessa concepção, é um
humano demasiadamente correto pois tem como uma de suas principais características a
capacidade de produzir e disseminar ideias e ações frias, ao mesmo tempo em que desaquece
pontos de calor, não raramente associados aos animais. Vivendo como humanos incompletos
ou de mais baixa categoria, os animais adotam comportamentos quentes, agressivos e
daninhos contra os humanos, de modo que apenas as ações controladas de cura e esfriamento
por meio do Tabaco-de-Sabedoria de um chefe ou xamã são capazes de esfriar seus ataques.

Um ponto aparentemente desimportante na narrativa acima pode nos ajudar a refletir


um pouco mais sobre o assunto. Como já mencionei, todas as malocas bora possuem uma
porta principal e outra secundária usada pelo grupo “de dentro” na preparação de alimentos
na ocasião dos rituais e, cotidianamente, pelo pessoal de uma maloca em seus trabalhos de

425
Essa relação de criação encontra consonância com aquela existente nos dias de hoje entre os donos da roça
e seus pés de tabaco, pois ao manipulá-los é necessário dietar, isto é, abster-se de determinados alimentos e
práticas (consumo de álcool, relação sexuais, comportamento agressivos, etc.) a fim de que o tabaco cresça
saudável. Os Bora dizem que o tabaco “é como o filho de quem o plantou” e, portanto, seus corpos estão ligados,
principalmente nas primeiras semanas do plantio. Um cuidado similar é destinado às sementes de tabaco que
geralmente permanecem por muitas semanas em jiraus acima dos fogos nas cozinhas a fim de que sequem e
estejam adequadas para o próximo plantio. É saliente, ainda, a intensa troca dessas mesmas sementes entre as
malocas. Poderíamos investigar, por fim, a relação entre o bom manejo do plantio e as mulheres, uma vez que
é a esposa de Garça-do-Tabaco-Frio quem revela a seu marido a comida adequada a ser oferecida à criança-
Tabaco.

375
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

processamento de tabaco, coca e cultivares da roça. Por seu turno, a porta principal é por
onde entram os visitantes e os convidados ou cantores-caçadores no decorrer de um ritual.
Ainda, é ao lado dela que se posicionam os trocanos manguaré, importantes para a
comunicação entre as malocas distantes. Em suma, enquanto uma porta relaciona-se
predominantemente com o mundo doméstico, a outra vincula-se às relações com o mundo
público e exterior.

Todas as malocas devem ser construídas com suas portas principais voltadas para o
oriente. A conjunção entre a direção espacial e uma abertura ao mundo exterior em seu
sentido mais amplo faz com que possamos imaginar que uma maloca deve ser sempre
construída em direção ao Oriente – isto é, voltada não apenas em direção ao leste, mas
também ao estrangeiro (ver Introdução à Parte I). Nesse sentido, não é de se surpreender que
o Tabaco-dos-Animais que aparece no fim da narrativa tenha brotado exatamente na porta
principal da maloca. É comum que os Bora lembrem aos presentes em uma sessão no
mambeadero que há uma série de animais-espíritos rondando a maloca prontos para atacar,
cabendo ao dono da maloca, sentado em seu banco, conduzir as boas palavras e ter
conhecimento ou sabedoria suficiente para afastá-los e, aos demais, prudência em suas falas
para não atraí-los426.

Garça-do-Tabaco-Frio (ou simplesmente Garça-Branca) configura-se, enquanto


criador do Tabaco-de-Sabedoria e intermediário entre Mépiívye Bañehe (Tabaco-de-Nossa-
Criação) e os humanos, como o maior detentor da capacidade de esfriar os ataques dos
animais. Ao mesmo tempo, ele é o primeiro a entrar em contato com Deus-do-Machado ou
com o “mundo dos brancos”, obtendo mercadorias e negociando diplomaticamente os termos
possíveis dessa relação. Assim, Garça Branca é o chefe ideal não apenas porque coordena
seu pessoal, mas também porque se relaciona com o mundo exterior, garantindo sempre que
essas relações sejam marcadas pela frialdade.

Os chefes que herdam a carrera ritual Llaaríwa estão, como vimos, em relação direta
com a Garça-Branca – a mesma que, lembremos, derrotou a Cobra-Grande-da-Guerra quando
do surgimento dos primeiros trocanos llaaríwa (ver cap. anterior). Além de provirem de uma

426
O aparecimento de jaguares oriundos do Tabaco-dos-Animais é uma clara expressão de sua capacidade
predatória ou quente.

376
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

linha de descendência cujo ancestral original é a própria Garça, esses chefes se relacionam
com seu espírito cotidianamente no banco principal de seus mambeaderos. Não obstante, se
antigamente os chefes e xamãs comunicavam-se também com os espíritos dos chefes-Garças
dos animais (Garça-dos-Porcos-do-Mato, Garça-das-Onças, etc.), hoje em dia relacionam-se
apenas com a Garça relacionada aos humanos verdaideiros e presentes, especialmente, nas
ocasiões de rituais Ihchúba427.

Dito isso, não penso que a valorização de Llaaríwa em detrimento de outras carreras
no pós-caucho seja fortuita ou se relacione somente com a capacidade que Garça tem de
garantir e manter a convivência pacífica entre seu pessoal. Ao invés disso, parece-me que sua
aptidão em reunir servos a seu redor e negociar com o mundo exterior foi fundamental no
período posterior à saída dos caucheiros do Caquetá-Putumayo. Com a imensa quantidade de
órfãos e as intensas investidas dos não-indígenas, produzir chefes com tais capacidades
parece ter disso um esforço feito pelos Bora e pelos Povos do Centro.

7.3.2. Os chefes-Garça como produtores de parentesco

Certa vez, ao conversar com os Bora sobre o processo de escolha dos governadores
de cabildo, eles me disseram que essa é uma exigência do mundo do Deus-do-Machado, mas
que é preciso ter a consciência de que é Garça quem detém a verdadeira “palabra de
gobierno” e ainda que foi o seu espírito quem conduziu os Bora na conquista de seu território
frente ao Estado colombiano. Ao afirmarem isso, os Bora dizem também que no processo de
regularização fundiária do Resguardo Indigena Predio Putumayo, onde vivem atualmente, a
existência de pessoas que eram capazes de dialogar diretamente com Garça (isto é, de chefes
e donos de maloca nominados em rituais Llaaríwa) foi sumamente importante.

Tal tipo de constatação endossa o argumento de que a produção de chefes nessa


carrera ultrapassa o ambiente dos rituais. Uma comparação entre a produção de chefes pelos

427
Em Bora, Ihchúba é o termo usado para Garça. Uma mudança em relação à figura da Garça também foi
notada por Landaburu entre os Andoke: “Esto permitió [a los andoque] apoyarse sobre un fundamento cósmico
[el Centro], y ya no en la referencia al Gavilán [emblema del clan de Yiñeko], perturbadora para la nueva
comunidad, a causa de su carácter intra-clánico, y por ente parcial, pero también quizás por sus connotaciones
caníbales, que las asociaban con prácticas que ya no querían reanudar.” (Landaburu, 1993, p. 151).

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Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

Bora e em outro contexto ameríndio pode nos ajudar a avançar na discussão. Guerreiro, em
sua etnografia sobre os Kalapalo no Alto Xingu, afirma que

(...) a ascendência nobre é necessária para o exercício da chefia, mas é


insuficiente: ninguém se torna anetü se não for feito chefe por seus pais e
pelo grupo. Ao mesmo tempo, a lógica da fabricação também não dá conta
sozinha do problema, pois não explica por que qualquer pessoa não pode
ser feita chefe. (Guerreiro, 2012: 120)

Dessa maneira, enquanto apenas é possível ser chefe por meio de uma “lógica da
fabricação” que depende de outrem, nem todas as pessoas podem submeter-se a esse
processo, pois para ser produzido enquanto chefe kalapalo é necessário descender de uma
linha de chefia patri ou matrilateral428. Porém, filhos primogênitos de pais cujas famílias
provêm ambas de linhas de chefia serão pessoas mais propensas a ocuparem posições centrais
de liderança. A consolidação de sua chefia, por sua vez, passará não apenas pela orientação
e aconselhamento de seus parentes, mas também pela fabricação ritual de seus corpos, uma
vez que também é a partir dos tratamentos e dos adornos corporais diferenciados que os
chefes serão construídos enquanto tais.

Durante os rituais, bem como acontece entre os Bora, o ato de sentar-se adornado no
banco do chefe é um dos mais importantes diacríticos da passagem de um estado social
ordinário para aquele de chefia. Mesmo assim, Guerreiro salienta que as posições de chefia
podem ser interrompidas ou abandonadas, seja no curso da vida de um chefe, seja de uma
geração para outra. Isso acontece porque um chefe necessita construir constantemente sua
condição. Dito de outro modo, ele precisa ser, de forma contínua, o “esteio” de seu pessoal:

Um chefe é “esteio de gente” (kuge iho) porque ele é um pai em relação a


seu povo, seus “filhos/crianças” (forma pela qual se refere às pessoas em
discursos formais). Ele deve proteger, educar e nutrir seus filhos,
orientando-os com o uso da fala verdadeira (akihekugene), sempre
oferecendo peixe e beiju no centro da aldeia e nunca negando nenhum
objeto que lhe peçam, por mais valioso que seja. (Guerreiro, 2012: 158).

Já vimos que os chefes Bora também são como os pais de seu pessoal. Porém,
proliferam ao longo desse trabalho referências ao caráter menos ou mais servil da relação
que algumas pessoas estabelecem com seu chefe – e isso torna-se especialmente notável
quando se trata de órfãos, isto é, daqueles que não têm no dono na maloca em que se

428
Vale lembrar que anteriormente Heckenberger (1996, 2005) já havia chamado atenção para esse ponto ao
distinguir sobre a dinâmica entre legitimidade e eficácia dos chefes na economia política xinguana.

378
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

encontram seu chefe ou pai legítimo ou verdadeiro. A complementaridade entre relações de


servidão e controle e aquelas de proteção e “dar de comer” (ver cap. 4), aliada ao abandono
da antropofagia e dos rituais hoje considerados violentos, demonstra como afirmar que há
chefes prestigiosos que contam com “órfãos” ou “servos” a seu redor não significa dizer que
a relação entre eles seja marcada pela subordinação agressiva. Ao contrário, quando
recuperamos a transferência de pessoas do clã Buriti para o clã Amanhecer como uma forma
de fabricar novos chefes, lembramos também que um dos principais argumentos mobilizados
pelos Bora foi a necessidade de se produzir uma chefia que fosse capaz de promover a
socialidade pacífica não somente nos ambientes rituais. A estreita relação entre chefia e não-
violência nos Kalapalo também é apontada por Guerreiro:

O conceito central aqui é akihekugene (aki-hekuguN-ne; palavra/jeito-


verdadeiro - NMLZ). Em seu sentido mais geral, a expressão aki hekugu,
“palavra verdadeira”, descreve qualquer fala boa, bonita, calma,
apaziguadora ou incentivadora, e alguém que seja reconhecido por falar a
verdade é chamado de akiheku ou takihekuginhü (“cujas palavras são
verdadeiras”). Já em seu sentido mais específico, ela se refere à fala dos
chefes que, por definição, precisam ter sido preparados para se tornar
pessoas de comportamento e capacidade oratória excelentes, capazes de
orientar seu povo com uma fala tranquila e humilde, sem nunca dar ordens
ou deixar transparecer raiva." (Guerreiro, 2012: 151)
Vimos como Garça é sempre descrito como um chefe apaziguador que, sentado em
seu mambeadero e afastado de qualquer comportamento violento, dá conselhos e
direcionamentos a seus “filhos”, “servos” ou “clientes”. Algumas orígenes contam inclusive
sobre ocasiões em que Garça agiu sem a necessidade de sair de seu banco de chefe, atuando
apenas com a força de suas intenções. Conhecendo os atuais chefes bora, especialmente
aqueles nominados em Llaaríwa, penso que essa é exatamente uma das posturas esperadas
por seu pessoal, que não se furta em admoestar discretamente seus chefes quando esses
apresentam o menor sinal de irritação ou descontrole.

Se os chefes pacíficos e conciliadores de Llaaríwa são procurados quando há algum


conflito interno que precisa ser resolvido (como uma briga entre parentes), é comum que eles
também atuem nas relações extracomunitárias. Normalmente, esses chefes serão figuras
centrais em dois tipos de situações que envolvem o mundo exterior. A primeira dessas
situações são os rituais: além de ser impraticável realizar um baile sem um dono de maloca
responsável, um ritual necessita de outros chefes para acontecer, pois é somente a partir do

379
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

trabalho de um ou mais cabecillas (donos de maloca com carrera ritual equivalente àquela
do chefe anfitrião) que haverá convidados, cantores e caçadores429.

Outras circunstâncias de relação com o exterior nas quais os chefes são importantes
são as reuniões intercomunitárias: quando se avizinha uma situação de interesse geral de um
certo número de malocas, é comum que sessões de mambeadero sejam combinadas a fim de
que os diversos chefes se reúnam para conversar. Várias dessas reuniões aconteceram nos
anos 1980, quando da construção do movimento que culminou mais tarde na regularização
do resguardo. Porém, ainda hoje, quando há assembleias ou reuniões políticas, é de praxe
que os líderes locais comuniquem aos que chegam (representantes do governo colombiano,
pesquisadores, ONGs, etc.) que são necessários dois tipos de encontros: um diurno, com
todas as pessoas da comunidade, e outro noturno, reservado aos homens adultos que,
conduzidos por seus chefes, serão responsáveis por debater e “fazer Amanhecer” as decisões
discutidas durante o dia.

Se experimentarmos pensar a partir das duas oposições complementares propostas


por Guerreiro (2012) para se pensar a chefia (a saber, dado/construído e interior/exterior),
pode parecer que, ao longo do presente trabalho, o segundo polo de cada uma delas
permaneceu negligenciado. Por um lado, nos capítulos anteriores desenvolvi exposições que
versaram bastante sobre a hereditariedade da chefia e sobre os contornos dos processos de
transmissão de nomes e de carreras rituais – ou seja, sobre o caráter supostamente “dado”
dessas posições. Por outro, busquei colocar ênfase na relação entre chefes e órfãos enquanto
foco privilegiado de análise no intuito de apreender sua importância para a vida social bora
de maneira geral – e, dessa maneira, privilegiei em alguma medida as formas “internas” da
chefia.

Se olharmos mais de perto podemos vislumbrar, contudo, como os polos dessas


oposições encontram-se profundamente imbricados. Em primeiro lugar, esse trabalho tem
como ingredientes incontornáveis os fatos de que os Bora são hoje os sobreviventes de uma
queda demográfica intensa e de que a reorganização que se seguiu teve como ponto de partida
fragmentos de uma vida social pregressa cuja reconstituição ipsis litteris era não só
impossível, mas também indesejada (como vimos ser o caso do abandono das práticas de

429
Ver cap. 6.

380
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

antropofagia e guerra e da extração – por vezes cirúrgica – de elementos considerados


agressivos e violentos). Se somamos isso à ausência de malocas no pós-caucho e, por
conseguinte, de chefes e de redes rituais, é possível dizer que a chefia bora que analiso teve
necessariamente de ser construída ao longo das últimas décadas430.

Em segundo lugar, ainda que as redes de relações entre malocas possam ter
permanecido à espera de um desenvolvimento posterior que aborde melhor o tema, os
caminhos bora no contato com o Oriente são também narrativas sobre chefes mediando a
relação entre seu pessoal e o exterior, desde a primeira vez em que Garça encontra Deus-do-
Machado até as recentes reuniões entre ONGs e donos de maloca no Tempo dos Projetos.
Além disso, a própria relação que é focal nesse trabalho (a saber, aquela entre chefe e órfãos)
é, necessariamente, uma relação entre um chefe e o mundo exterior ou, dito de outro modo,
entre um chefe e o mundo do não-parentesco tal como ele se apresenta no cerne daquilo que
poderíamos considerar o limite primeiro da interioridade (a saber, a maloca).

Vimos, no capítulo 3, que as malocas bora possuem composições mais ou menos


similares. Poderíamos dividir as pessoas que vivem em torno de uma maloca entre aquelas
que veem no dono desse assentamento seu chefe ou pai verdadeiro/legítimo e aquelas que ali
encontra-se numa posição mais ou menos radical de orfandade. Em uma tentativa de definir
melhor o conceito, sugeri que são órfãs aquelas pessoas que foram privadas definitiva ou
provisoriamente do convívio com seus chefes ou pais legítimos. Espero, contudo, que tenha
ficado claro ao longo dessa exposição que a orfandade é muito mais uma posição do que uma
condição dada, uma vez que não se herda tal status e ele raramente é incontornável. Assim,
ser órfão é simplesmente encontrar-se, em determinado momento da vida, afastado de seu
chefe legítimo e, por isso mesmo, carente de laços de parentesco fundamentais para a
estabilização da condição humana. Por fim, é interessante observar que quando os Bora falam
sobre chefes legítimos, eles colocam ênfase na relação de filiação e descendência entre os
donos de maloca ou chefes de clã e seu pessoal (sejam eles seus “filhos”, “servos” ou

430
Entretanto, se realizamos mais uma torção, entendemos também que diante de uma situação de crise após o
genocídio caucheiro, os Bora trabalharam no sentido de preservar o princípio da hereditariedade mesmo quando
isso significou considerar a filiação clânica matrilateral ou permitir que órfãos de linhagens maiores então
esfaceladas recuperassem sua posição de chefia. Se pensarmos nos termos de Heckenberger (2005), os Bora,
mesmo nas circunstâncias em se encontravam, decidiram valorizar a “legitimidade” da chefia (ou, se quisermos,
seu caráter dado).

381
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

“clientes”). Dessa maneira, genros, noras, cunhados, cunhadas e alguns sobrinhos (ZC) e
netos (DC) encontram-se, ao estarem distantes de seu verdadeiro chefe de clã, em uma
condição de orfandade que será tanto menos intensa quanto mais fortes forem os laços
prévios existentes entre eles e o pessoal da maloca que os acolheu e quanto maior for a relação
de convivialidade e comensalidade entre eles.

Poderíamos nos questionar, nesse sentido, se o que chamo aqui de “orfandade” não
seria apenas um neologismo para o conceito de afinidade tal como proposto por Viveiros de
Castro (2000). Se assumimos essa chave de leitura, os genros, noras e cunhados(as) de um
chefe que vivem juntos a seu sogro seriam seus afins reais. Por sua vez, alguns de seus
sobrinhos classificatórios, ao se colocarem enquanto genros possíveis, seriam seus afins
virtuais (ver cap. 4). Igualmente, poderíamos pensar os cativos de guerra ou os inimigos
mortos nas excursões guerreiras e consumidos nos rituais Túmajtsi como afins potenciais.

Ainda nesse exercício comparativo, considerando um espectro que vai da


consanguinidade à afinidade potencial, teríamos, de um lado, os chefes-Garça e os filhos
primogênitos a quem eles transmitem seus nomes, malocas e carreras: em razão dos laços
de filiação que os unem e dos nomes e conhecimentos que compartilham ao longo da vida,
os filhos primogênitos são idealmente réplicas fiéis de seus pais e a garantia da continuidade
e da identidade de um clã através do tempo. No outro extremo, encontraríamos o mundo do
Oriente e a infinidade de estrangeiros com quem os Bora e os demais Povos do Centro
estabeleceram e estabelecem contato, sejam eles humanos ou não-humanos: inimigos de
outros grupos, comerciantes de pessoas e mercadorias, espíritos como o Jaguar-dos-Cantos-
de-Jusante, etc.

Viveiros de Castro argumenta que o processo do parentesco na Amazônia consiste na


extração da consanguinidade de um “fundo virtual de afinidade” por meio da “diferenciação
intencional e construída da diferença universalmente dada” (2000:18). A ideia de uma
necessária fabricação do parentesco desde a concepção (Vilaça, 2002) encontra equivalentes
no mundo bora, onde a couvade garante o crescimento adequado dos filhos humanos
verdadeiros ou legítimos tanto quanto as dietas o fazem para alguns cultivares nas roças,
como o tabaco. Em ambos os casos, bebês e plantas devem ser cuidados e protegidos por

382
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

seus parentes consanguíneos a fim de que não sejam capturados pelos animais que, como
vimos, gozam de uma humanidade incompleta e inferior431.

Nesse sentido, por um lado é possível dizer que os chefes-Garça, ao atuarem como
mediadores e negociadores entre seu pessoal e o exterior, buscam reforçar certas relações de
afinidade ao mesmo tempo em que se esforçam para que elas sejam inofensivas para si e para
seus “filhos” ou “servos”: realizam medidas protetivas contra os donos dos animais antes de
uma grande caçada, agenciam o tom das reuniões entre agente ocidentais e as comunidades
de seu pessoal, garantem que as retribuições dos caçadores-cantores em uma festa sejam
abundantes, etc. Por outro, se nos voltamos para a fabricação da consanguinidade, vemos que
os chefes incorporam determinados órfãos a suas malocas a partir da promoção de alguns
casamentos (ver relação entre as posições de sobrinhos classificatórios, órfãos e
genros/cunhados no capítulo 4) e integram outros por meio da adoção clânica que acaba por
produzir relações de descendência em seu próprio patrigrupo (ver discussão sobre netos e
avós maternos nos capítulo 4 e 5).

Essa centralidade das relações de patrifiliação coloca em relevo um aspecto presente,


ainda que por vezes de maneira tangencial, em outros contextos ameríndios: se comer e viver
juntos tende a produzir laços consanguíneos efetivos, a adoção muito raramente é capaz de
apagar relações de parentesco previamente existente. Vimos, no capítulo 4, como esse tema
aparece em diversos trabalhos sobre adoção ou criação/fosterage (por exemplo, Costa, 2007,
Viegas, 2003 e Maizza, 2014). Porém, venho argumentando que o caso Bora apresenta uma
inflexão interessante, mesmo que não exclusiva (como demonstra Marques Pereira (2002)
para os Kaiowá): ali a filiação, quando chega a ser fabricada, não o é sem que essas novas
relações estejam marcadas por um gradiente variável de assimetria.

É assim, por exemplo, que um filho adotivo não goza no seio de sua nova família do
mesmo status que seus irmãos legítimos. Na mesma direção, órfãos que apenas vinculam-se
a uma maloca, não construindo ali relações de filiação (como é o caso dos genros, de alguns
sobrinhos classificatórios ou dos cativos) se encontram num tipo de relação especial com os

431
As evidências de tal captura por parte dos animais podem ser o fracasso de um roçado sem motivo aparente
ou o adoecimento repentino de um nascituro.

383
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

chefes que os acolhem. Para que fique mais claro, tomemos como exemplo o caso dos antigos
inimigos de guerra.

Duas malocas, ao entrarem em conflito, estabeleciam entre si relações simétricas de


hostilidade. Contudo, ao ser vinculado à maloca inimiga, um cativo de guerra passava a
experimentar, ali, uma relação de marcada assimetria. O mesmo vale, hoje, para um genro
que contrarie o princípio virilocal e passe a viver com a família de sua esposa, pois após
mudar-se para perto de seu sogro esse homem estabelece com ele uma relação de afinidade
assimétrica432. O genro estrangeiro, mesmo sendo incorporado ao pessoal daquela maloca,
será responsável por uma série de trabalhos cuja diferença em relação a seus cunhados (filhos
do chefe) muitas vezes ficará clara nas diferentes funções que eles desempenharão nas
sessões noturnas do mambeadero e nos preparativos dos rituais. Assim, a posição de cativos
e genros, enquanto órfãos, nos permitem compreender que o modelo ternário proposto por
Viveiros de Castro para pensar a afinidade ameríndia só pode ser aplicado entre os Bora se
levamos também em consideração as relações de assimetria que ali incidem. Em alguma
medida, isso faz com que o caso que apresento aqui se aproxime daquele descrito por Grotti
e Brightman, que buscaram analisar as relações entre os Trio e os Akuriyo no Suriname.

Os autores, que desenvolveram seu trabalho de campo no sudeste do Suriname,


observaram que nas aldeias de maioria Trio sempre havia algumas casas de indígenas
Akuriyo, considerados pelos primeiros como “mais selvagens” e “menos humanos”433.
Assim como acontece no caso dos órfãos bora, os Akuriyo são apenas “parcialmente
familiarizados” por seus vizinhos:

Akuriyo nuclear families live away from each other in different parts of the
village, each attached to the household of a Trio family. Although they are
spoken of as children, Akuriyo men are also often treated in some respects
as though they were sons-in-law, implying as subservient a relationship as
is possible between adults in traditional kinship terms, but also implying
indebtedness. Despite this, it is rare to find an Akuriyo man actually married
to a Trio woman. This situation of partial familiarization, or domestication
without assimilation, is extraordinary in a region where coresidence usually
leads to social absorption. (Grotti e Brightman, 2016: 61)

432
Aqui, é clara a relação entre a posição ocupada pelos genros e sogros bora e aquela descrita por alguns
autores para a região das Guianas. Para esforços de modelização acerca desse tema, ver Rivière (1984).
433
Relações desse tipo já haviam sido descritas para os Waiwai e outros grupos na região por Howard (2002).

384
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

Apesar de viverem próximos, muito raramente os Trio e os Akuriyo se casam entre


si. Ao invés disso, estabelecem relações nas quais os Akuriyo costumam ser alimentados
pelos Trio, enquanto os primeiros dedicam boa parte de seu tempo trabalhando para aqueles
que os nutrem. Ainda, ao passo que os Akuriyo se referem aos Trio usando termos de
consanguinidade, o tratamento não é recíproco – de modo que os Trio preferem chamá-los
por seus nomes próprios ou por vocábulos como “companheiros” ou peïto, um termo de
afinidade pan-guianense adotado pelos Trio para exprimir relações nas quais há assimetria,
mas não são criados laços de aliança ou de consanguinidade434.

Ao falarem sobre “familiarização parcial” ou “domesticação sem assimilação”, Grotti


e Brightman têm em mente o trabalho de Fausto (1997) sobre a noção de “predação
familiarizante”, isto é, sobre o “esquema pelo qual relações predatórias convertem-se em
relações assimétricas de controle e proteção” (Fausto, 2008: 330). Nesse modelo, pessoas
e/ou animais estabelecem relações de tipo mestre-xerimbabo que levam à produção de laços
de consanguinidade assimétrica entre eles. Na mesma direção dos trabalhos de Halbmayer
(2004) e Jabin (2016)435, Grotti e Brightman afirmam que, entre os Trio e os Akuriyo, a
consanguinidade não é a única forma por meio da qual as relações assimétricas aparecem:

It is worth noting that this shows that familiarizing predation among the Trio
seems to be constituted affinally as well as consanguineally, rather than in
unequivocally consanguineal terms. (Grotti e Brightman, 2016: 64)
Como vimos anteriormente, para os Bora a relação entre chefes e órfãos será
consideravelmente diferente a depender da intensidade dos laços de consanguinidade ou
afinidade que existirem previamente entre eles. Assim, um órfão sem relações prévias com
seu chefe adotivo normalmente não se vinculará à maloca anfitriã nem pela via da filiação
nem pela da aliança. Em vez disso, ele será incorporado de maneira bastante parecida àquela
apresentada por Grotti e Brightman ao tratarem da relação entre os Trio e os Akuriyo. Na
medida em que encontram no dono de sua nova maloca um substituto (temporário ou não)
para seu pai legítimo, os órfãos tornam-se “trabalhadores”, “secretários” ou, no limite,
“servos” desse chefe.

434
Para uma análise da ocorrência desse termo (e suas variações) na região, ver Costa (2000). Para elaborações
mais recentes sobre o mesmo tema, ver Girardi (2019).
435
Conferir capítulos 4 e 5.

385
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

Antes que uma exceção à regra, essa parece ser apenas mais uma expressão da
ambivalência ou incompletude da produção da consanguinidade. A “filiação incompleta”, já
discutida nesse trabalho e apontada também por Fausto (2008: 352) como um dos efeitos das
relações de adoção, é bastante evidente entre os Bora. Porém, defendo que essa “filiação
incompleta”, ao invés de um problema, é uma das próprias condições de existência da relação
entre chefes e órfãos, por sua vez imprescindível para a vida nas malocas.

Por um lado, se as atitudes de feeding e proteção de um chefe e seu pessoal fossem


completamente eficazes em produzir relações legítimas para com os órfãos adotados, as
malocas estariam, no fim das contas, repletas de parentes – e, portanto, gozariam de baixo
prestígio perante o exterior. Além disso, se pensamos no caso bora e na fabricação ritual de
chefes que acompanhamos ao longo desse trabalho, é notável o esforço de um chefe-Garça
em produzir um filho primogênito semelhante a si: com os mesmos nomes e os adornos
exclusivos herdados de seu pai, ele se sentará no banco de chefia da maloca de seu clã,
substituindo-o em sua condição de líder de seu pessoal. Mesmo no pós-caucho, quando as
unidades sociais estavam esfaceladas e a transmissibilidade da chefia ameaçada, os Bora
buscaram maneiras possíveis de adaptar a filiação à situação em que se encontravam. Em
todos esses cenários, a transferência de nomes e de cargos de chefia é, em cada maloca,
sempre única e individual, de modo que a própria construção do “assemelhamento”
(Guerreiro, 2012) entre chefe-Garça e filho primogênito dependerá da marcação ativa de uma
importante diferença entre os primeiros e seus órfãos. No limite, então, a produção do
“assemelhamento” relaciona-se sempre à ênfase deliberada na diferença, pois uma maloca
habitada pela semelhança radical é um mundo (absolutamente impossível) feito apenas de
chefes.

Por seu turno, a relativa ineficácia da adoção na produção de relações legítimas entre
pais e filhos adotivos encontraria sua razão de ser na existência de um fundo de servidão e
controle que atravessa todas as relações de orfandade, mas cuja completude é sempre e
necessariamente inexequível. Isso porque a proliferação e a permanência de inúmeros órfãos
não-aparentados rapidamente poriam em relevo a própria fragilidade da condição dos
últimos, abrindo assim uma perigosa brecha para a prevalência, nas malocas, de humanos
incompletos ou inferiores cuja expressão radical, no pós-caucho, parecem ser os animais.

386
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

A esse ponto já entendemos que a adoção dos órfãos, sejam estes mais próximos ou
mais distantes, é sempre e necessariamente imperfeita. Uma das evidências de sua
distintividade face ao mundo da filiação costuma ser precisamente o contraste entre o
comportamento e as práticas adotadas pelos pais adotivos em relação a seus filhos legítimos
e em relação aos órfãos adotados. Habitualmente, um chefe-Garça sempre manterá em
relação a seus órfãos certa postura de controle, por mais tênue que possam ser seus contornos.
Entretanto, se concentramos nossos esforços no rendimento da associação entre orfandade e
exterior, entendemos que os chefes-Garça se destacam pela capacidade de controlar não
apenas espíritos predadores como Cobra-Grande-da-Guerra, mas também outros seres que,
vindos de fora e sem relações de patrifiliação com o pessoal de sua maloca, são incorporados
e transformam-se em seus filhos adotivos, seus parentes afins ou seus “trabalhadores”.
Assim, se conhecemos situações na Amazônia nas quais os indígenas atuam como “presas”
em relação a seus patrões (Bonilla, 2005), penso que os Bora se concentram, por meio da
deliberada proliferação de seus chefes-Garça e da produção da orfandade (ver cap. 4, sobre
a relação adotiva entre netos e avós maternos), em se produzirem tanto como chefes quanto
como órfãos, de modo a garantir assim que a relação entre chefia e orfandade não desapareça
da vida social.

Esse tema apareceu brevemente na Introdução, quando mencionei o fato de que era
bastante comum que outras pessoas se referissem ao dono de maloca onde eu vivia como
“meu patrão” ou “meu chefe”. Em alguma medida, penso que já era essa a posição que alguns
chefes Bora e Miraña ocupavam durante a bonanza do Machado frente aos comerciantes de
escravos luso-brasileiros com quem faziam negócio. Apesar do grande impacto da atuação
caucheira na região, considero também que as rebeliões encabeçadas por Katenere (ver cap.
1) são expressões do mesmo movimento que persiste até os dias atuais e faz com que os Bora
hoje se esforcem em não se encontrarem, como no pós-caucho, num mundo repleto de órfãos.
Para isso, ocupam diversos cargos de comando nas instituições externas que atuam em suas
comunidades como a escola local, o sistema público de saúde, os Ministérios de Cultura e do
Interior, as associações indígenas nacionais e as ONGs. Assim, se hoje os Bora estão na
reitoria, na docência e nos cargos administrativos do colégio de La Chorrera, nos postos de
técnicos de enfermagem e contabilidade do hospital, como dirigentes no Ministério de
Cultura e na OPIAC (ver supra) e como coordenadores de projetos junto a organizações como

387
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

a WWF e a Fundación Puerto Rastrojo, é porque buscam fixar-se numa posição parecida
àquela se esforçaram em fabricar ritualmente no mundo devastado e repleto de orfandade do
pós-caucho. O empenho dos Bora em controlar o que vem do exterior por meio da tentativa
de fixar-se na posição de chefia é mote para reflexão também em relação ao ritual Ujcútso
ou Carijona.

7.4. Ujcútso e o mundo do Oriente

No capítulo anterior, vimos que o ritual Ujcútso é realizado com frequência entre os
Bora e que ele possui bailes correspondentes entre os demais Povos do Centro (Urbina, 2000;
Tobón, 2016). Vimos também que sua origen fala sobre dois irmãos que saem em busca do
Jaguar-dos-Cantos-de-Jusante, ser que condensa em si a figura do exterior e do estrangeiro.
Entendemos, ainda, que foi Jaguar-dos-Cantos-de-Jusante quem ensinou os cantos de todos
os rituais que os Bora mais tarde passaram a realizar, muito embora as canções desse baile
em específico encontrem-se em um idioma ininteligível aos Bora (a saber, a língua dos
Carijona, população inimiga com quem estabeleciam relações de guerra e antropofagia).

Segundo meus interlocutores, uma das medidas tomadas pelos mais velhos em
reuniões no mambeadero no tempo em que José Ramón era o chefe do clã Amanhecer foi
determinar que o ritual Ujcútso seria realizado em todas as ocasiões nas quais se quisesse
celebrar algo relacionado o “mundo dos Brancos” ou dos filhos do Deus-do-Machado: troca
de governadores dos cabildos, encerramento do ano letivo na escola local e de reuniões
políticas, “Dia das Mães” ou “Dia dos Pais” (de acordo com o calendário colombiano), etc.

Algumas razões me foram apontadas para essa escolha. Por um lado, trata-se de um
ritual “simples” ou ordinário, isto é, que não demanda muitos preparativos nem grandes
quantidades de comida, sendo possível organizá-lo em poucos dias. Por outro, Ujcútso é um
ritual que se relaciona com tudo aquilo que vem de fora ou com o que não é “propriamente
bora” (palavras de um interlocutor). A fim de explorarmos mais à miúde esse segundo ponto,
proponho que nos voltemos à descrição de um ritual Ujcútso que acompanhei em dezembro
de 2017.

388
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

7.4.1. O ritual Ujcútso e a troca de governador

Desde que comecei meu trabalho de campo, eu sabia que na noite de 8 de dezembro
de cada ano é feito um ritual Ujcútso em alguma das malocas vinculadas ao cabildo
Providencia. Nessa mesma data, em diversas regiões colombianas, festeja-se o “Dia das
Velinhas”, ocasião em que, ainda na noite do dia 7, lanternas e velas são acessas para celebrar
o dogma da Inmaculada Concepción de la Virgen Maria436. Essa santa é, para os Bora, a
Abuela Hierba Fría, personagem feminina importante em algumas narrativas de origen.
Além disso, ela foi nomeada, não sei se pelos padres católicos ou pelos próprios indígenas,
como a patrona do cabildo Providencia. Dessa forma, essa é a data em que ocorre, além do
ritual Ujcútso, a eleição e a posse do governador e da junta directiva437 que serão
responsáveis por governar o cabildo no ano seguinte – embora não haja, nessas ocasiões,
nenhuma celebração católica ou referências diretas ao dia de Imaculada Conceição.

Em 2017, cheguei ao Igaraparaná no começo de dezembro a fim de acompanhar pela


primeira vez esse processo e, a pedido dos Bora, documentei em vídeo boa parte dos eventos.
Em 6 de dezembro, passei o dia com as mulheres da maloca do clã Tamanduá. Elas estavam
empenhadas em preparar uma quantidade abundante de goma de mandioca e tamales. Os
homens desse assentamento, por sua vez, ocupavam-se da preparação de ambil, mambe e sal
vegetal, elementos cruciais para a realização de qualquer ritual. Pela noite, os homens se
reuniram no mambeadero. Estavam presentes ali os homens adultos de praticamente todas as
casas que se organizam em torno das malocas desse cabildo. Alguns deles eram, ainda,
anciãos e chefes de clã. A intenção da reunião era encontrar, entre eles, aqueles que
desejavam candidatar-se aos cargos de governador, secretário e tesoureiro para o ano
seguinte. Toda a conversa foi marcada pelo conselho dos mais velhos, que insistiram na
importância da oposição entre o “governo próprio” e o “governo dos Brancos”.

O “governo próprio” é o modo de chefia particular aos Povos do Centro, guiado pelas
regras de transmissão de posições de liderança, pelas formas adequadas de agir dos chefes e
pela centralidade de Garça, que, como acabamos de ver, figura ao mesmo tempo como chefe-
ideal e como chefe-ancestral dos Bora que atualmente possuem a carrera Llaaríwa438. Por

436
No Brasil, Nossa Senhora da Conceição.
437
Conjunto de lideranças formadas por um governador, um secretário, um tesoureiro e um fiscal (ver cap. 3).
438
O trabalho de Pereira (2005) junto a Don Ángel Ortiz lida diretamente com esse tema.

389
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

sua vez, o “governo dos Brancos” são as formas de chefia que emanam do mundo dos filhos
do Deus-do-Machado e do qual eventualmente os Bora participam, como é o caso dos cargos
da junta directiva dos cabildos.

Nesse sentido, os conselhos dos anciãos concentravam-se no fato de que o “governo


próprio” deve sempre preceder, em importância, o “governo dos Brancos”, mesmo quando
se trata da escolha de líderes indígenas para o mundo do Deus-do-Machado. Governadores e
demais dirigentes em exercício, assim, devem condicionar seus decisões e atitudes ao espaço
de discussão do mambeadero e ao aval dos chefes de maloca (cuja liderança é, normalmente,
vitalícia). Quando a reunião já entrava na madrugada sem que nenhum candidato se
manifestasse, um dos homens, do clã Pupunha, expressou seu desejo em tornar-se governador
no próximo ano439.

No dia seguinte, pela manhã, foi feita uma reunião na sede do cabildo, uma grande
casa de madeira que fica a meio caminho entre as malocas vinculadas ao cabildo Providencia
(ou seja, das malocas dos clãs Buriti, Amanhecer, Cobra-Grande e Tamanduá – ver Mapa 4).
Como costuma acontecer em todas as reuniões desse gênero, as atividades foram precedidas
de um Pai Nosso e da execução, à capela, do hino nacional colombiano. Os dirigentes do
cabildo que se preparavam para deixar seus cargos organizaram o andamento do encontro.
Inicialmente, expuseram um balanço da gestão que realizaram, indicando seus feitos e
dificuldades. Em seguida, apresentaram aos presentes a candidatura do homem que havia se
disposto, no dia anterior, a ser o próximo governador. Como ninguém se manifestou contra
sua candidatura, abriram logo o espaço para que outras pessoas se candidatassem a tesoureiro
e secretário. Preenchidos esses cargos, o governador em exercício, junto a seus companheiros
de junta directiva, dirigiram-se ao centro da sede e entregaram um cesto com uma boa
quantidade de ambil e mambe para o governador eleito. Assim que recebeu, ele agradeceu a
confiança do pessoal daquele cabildo e passou a distribuir o ambil a todos os presentes.

A partir daquele momento, o novo dirigente tornou-se então o cabecilla do ritual


Ujcútso que aconteceria no dia seguinte, de modo que o ambil que partilhava era um “ambil

439
Trata-se de um homem Bora que, tendo vindo da cidade de Pebas, no Peru, vive ao lado de seu sogro na
comunidade Boa. Ele chegou ao Igaraparaná na década de 1990, no Tempo da Máfia. Não possui posições de
prestígio dentro do sistema de carreras rituais, além de contrariar a regra virilocal ao morar junto a seu sogro,
um homem não-primogênito do clã Arara Vermelha.

390
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

de convite” para o ritual. O antigo governador, o secretário, o tesoureiro e o fiscal, junto a


suas respectivas famílias, tornaram-se o grupo “de dentro” ou os donos do ritual440.
Terminada a reunião, o novo governador concentrou-se em exercer sua função de cabecilla:
visitou a casa daqueles que não estavam presentes no encontro para entregar-lhes o ambil e
organizou, junto a sua família e a seu chefe de maloca, as expedições de caça e pesca que os
caçadores-cantores empreenderiam naquela noite. Por sua vez, os dirigentes que se
preparavam para deixar seus cargos retornaram à maloca do clã Tamanduá a fim de seguir
com a preparação de mambe, ambil, beiju, tamales, manicuera e cahuana. Além disso,
passaram a madrugada tocando ininterruptamente o manguaré a fim de animar os convidados
e avisar àqueles que vivem em comunidades mais distantes que um baile iria acontecer.

Desde a madrugada do dia 8 de dezembro alguns caçadores começavam a chegar à


maloca do clã Tamanduá cantando, dançando, entoando suas flautas e esperando que as
mulheres-anfitriãs os esfriassem com manicuera e cahuana. Não era a primeira vez que eu
assistia caçadores chegando à maloca, mas naquela ocasião algo me chamou a atenção:
enquanto alguns deles trouxeram caças bastante apreciadas (como uma serpente comestível
e um macaco parauacu), outros trouxeram em suas varas de caça produtos industrializados
igualmente desejáveis como refrigerantes, biscoitos, balas, pães, roupas e plásticos441.

440
O fiscal desse ano era o chefe da maloca do clã Tamanduá, onde eu havia passado o dia anterior
acompanhando os preparativos do ritual
441
Como a distância entre as malocas bora e os regatões em La Chorrera é considerável (um dia de viagem
fluvial) e a maioria dos Bora não possui salários fixos, não é tão frequente o consumo de tais produtos.

391
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

Fotos 30 e 31 – Caça trazida pelos convidados do ritual Ujcútso

Era a primeira vez que eu via uma quantidade tão grande de produtos manufaturados
sendo trazidos pelos caçadores em um ritual. Em ocasiões anteriores, a chegada de pessoas
trazendo mantimentos e outras mercadorias havia sido interpretada, por meus interlocutores,
como uma evidência da inabilidade do caçador, que não teria sido capaz nem mesmo de
pescar alguns “peixinhos de igarapé” para o baile. Dessa vez, porém, as mercadorias eram
apreciadas tanto quanto as caças mais desejadas, causando uma série de comentários
positivos entre aqueles que acompanhavam a movimentação na maloca. Perguntei-lhes se
aqueles produtos não seriam prova da incapacidade dos caçadores em trazer carne “de
verdade” para o ritual. Explicaram-me, então, que assim seria caso estivéssemos em um baile
titular. Porém, como estávamos em um ritual Ujcútso, era bastante pertinente que se
trouxessem mercadorias. Afinal de contas, como se tratava de um baile relacionado ao
“mundo dos Brancos”, era natural que esses produtos estivessem presentes.

Enquanto as canções eram cantadas e dançadas no pátio central da maloca pelo


pessoal mobilizado pelo cabecilla, outras atividades entretinham os convidados: num

392
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

cantinho da maloca uma mulher vendia refrigerantes e biscoitos em um pequeno isopor, do


lado de fora os jovens aproveitavam a escuridão da noite para paquerar e conversar longe dos
olhos de seus parentes mais velhos e, no mambeadero, os homens do grupo “de dentro”
buscavam encontrar, dentre seus anciãos, aquele que ocuparia o cargo de fiscal.

O fiscal de um cabildo é o único da junta directiva que não é eleito pelo voto ou por
meio do consenso de toda a comunidade. Ao contrário, é incumbência dos abuelos escolher,
dentre eles, quem será aquele que garantirá que o “governo próprio” reja as ações do
governador e de seus companheiros. Assim, o fiscal é uma espécie de intermediário entre os
chefes de maloca e aqueles que transitoriamente ocupam espaços de liderança no “mundo
dos Brancos” ou dos filhos do Deus-do-Machado. Ao menor sinal de que os dirigentes do
cabildo estejam agindo sem levar em consideração os princípios do “governo próprio”, o
fiscal deve convocar uma reunião para debater o tema.

É interessante perceber como no ritual Ujcútsco realizado no âmbito da troca de


governador do cabildo Providencia ocorre uma transformação na lógica de distribuição dos
papéis rituais. Normalmente, os cargos de dono do ritual e cabecilla são ocupados por dois
chefes de maloca que, possuindo a mesma carrera ritual, estabelecem entre si uma parceria
cerimonial que não raro se prolonga por toda a vida. Nos rituais Ujcútso de dezembro,
contudo, o dono do baile é o governador em exercício e seu pessoal é conformado pela junta
directiva e suas famílias. O cabecilla, por sua vez, é o governador eleito e possui como
primeira incumbência em seu cargo a mobilização de seu próprio pessoal para o ritual que se
realiza no dia seguinte à sua posse. Mesmo que nem governador nem cabecilla costumem
ser donos de maloca, os dirigentes assumem seus cargos sabendo que o último feito de seu
mandato deverá ser a realização de um ritual Ujcútso em sua maloca de origem, de maneira
que é normal que as malocas levem isso em consideração e busquem se revezar na indicação
de candidatos a assumir cargos no cabildo442. Finalmente, se Ujcútso (um ritual ordinário
em estreita relação o exterior) é a escolha apropriada para se festejar a mudança de
governador do cabildo, refletir um pouco sobre esse tema pode nos ajudar a relacioná-lo com
outras discussões feitas ao longo deste trabalho.

442
No caso do governador eleito em 2017, o ritual em 2018 aconteceu na maloca do clã Amanhecer, cujo chefe
é tio paterno de sua mulher (WMB).

393
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

7.4.2. Um ritual para esfriar o mundo

Já vimos que outros autores, como Urbina (2000) e Tobón (2016), também se
dedicaram a pensar o ritual Ujcútso ou Carijona entre os Povos do Centro. No caso dos
Murui-Muina, grupo com quem ambos trabalharam, entendemos no capítulo precedente que
o baile se chama Riama, vocábulo usado para fazer referência tanto aos antigos Carijona
quanto àqueles que se enquadram na categoria de blancos ou, em Bora, añúmúuna. Urbina
(2000: 22) argumenta que Carijona é um ritual relativamente recente na paisagem ritual dos
Povos do Centro, tendo surgido a partir de relações de inimizade travadas entre o grupo Carib
e os povos do interflúvio do Caquetá-Putumayo. O autor especula, assim, que seu surgimento
data de no máximo dois séculos atrás – portanto, antes do contato intenso dos Povos do
Centro com os caucheiros peruanos. Vimos também que os Murui-Muina contam ainda que,
entre eles, o ritual surgiu de forma um pouco diferente daquela narrada pelos Bora:

Conta-se que em meio aos diálogos e intercâmbio recíproco de substâncias


sagradas, finalmente se pactuou que se realizaria, a modo de acordo de paz,
um baile maloqueiro, um suntuoso ritual no qual os dois povos encontrar-
se-iam para cantar até o amanhecer, beber e comer e assim conseguir
espantar a morte e selar a reconciliação. O baile se levaria a cabo na maloca
de Guamayirai, cuja comunidade seria a anfitriã. Por sua vez os Karijona
propuseram que aquele baile se realizasse com as canções de seu povo, para
isso ensinaram aos muina, segundo os narradores atuais, mais de 300
canções em língua Karijona. (Tobón, 2016: 156)

Assim, o ritual Carijona, para os Murui-Muina, seria como um “acordo de paz” entre
dois grupos inimigos que, insatisfeitos com suas relações hostis, decidiram pôr fim aos
ataques por meio da realização de um ritual. Urbina argumenta que ao desaparecimento do
conflito entre os Povos do Centro e os Carijona seguiu-se a consolidação de um estado de
hostilidade com outro conjunto de pessoas conhecidas como riama:

Cuando estas coyunturas pierden vigencia frente al la arrasadora presencia


blanca, lo que se da de inmediato y urgente es la guerra con el «civilizado»,
algo más temible a la ocurrida con el karijona, razón de más para continuar
apuntalando la analogía entre el rïama (karibe) con el rïama (blanco); razón
suficiente para preferir este rito que permite el manejo de lo más urgente:
tratar con el temible blanco. (Urbina, 2000: 132)

Vimos, no capítulo anterior, que a origen do baile Ujcútso, entre os Bora, não
menciona um episódio específico no qual os Carijona ensinaram suas canções aos Povos do
Centro, muito embora meus interlocutores afirmem que as canções desse baile estejam no
idioma desses antigos inimigos. De maneira mais geral, a origen do ritual fala sobre a

394
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

obtenção das canções não de um, mas de todos os rituais a partir do contato de dois irmãos
com o Jaguar-dos-Cantos-de-Jusante. Como já argumentei, Jaguar-dos-Cantos-de-Jusante é
uma figura que condensa em si uma série de outros seres com quem os Bora travaram e
travam relações pacíficas e violentas de troca, de modo que podemos afirmar que ele é a
tradução, nas narrativas de origen, daquilo que vem de fora, que é estrangeiro. Em larga
medida, ele se alinha a outro personagem que já mencionamos, Deus-do-Machado: se do
primeiro os Bora obtiveram canções e do segundo instrumentos de metal, ambos vivem à
jusante dos rios principais ou no espaço-conceito que venho nomeando, ao longo desse
trabalho, como Oriente.

Embora as orígenes do ritual Ujcútso ou Carijona entre os Murui-Muina e os Bora


difiram em seu conteúdo, a correlação entre a noção de riama para os primeiros e a
centralidade do mundo estrangeiro nos rituais Ujcútso para os Bora revelam que, em ambos
os casos, trata-se de um ritual diretamente vinculado à relação dos Povos do Centro com o
exterior. Se, entre os Murui-Muina, Ujcútso ou Carijona é um ritual “para fazer a paz”
(Tobón, 2016), esse não é discurso explícito entre os Bora. Contudo, é interessante notar que
o baile que mais se relaciona com o “mundo exterior” é realizado justamente quando existe
o perigo de que as formas de governar dos filhos do Deus-do-Machado se sobreponham ao
“governo próprio”, isto é, à maneira correta de gerir as relações sociais.

São frequentes, em todas as gestões dos cabildos, acusações de má administração,


desvio de recursos ou concessão indevida de benefícios. Essas contendas bem
frequentemente geram rusgas que dividem as famílias, fazendo com que algumas decidam
migrar para outro cabildo ou mesmo fundar um novo núcleo. Dessa forma, enquanto o ritual
Méémeba busca apaziguar as relações de inimizade entre humanos e animais por meio do
consumo da caiçuma de pupunha, o ritual Ujcútso é feito no intuito de manter boas relações
com o Oriente (esteja ele expresso na figura do inimigo Carijona ou dos Brancos) e, ao
mesmo tempo, garantir que o que chega de fora não desestabilize ou cause danos ao mundo
circunscrito pelas malocas, os chefes e seu pessoal.

Introduzir elementos pouco usuais nos rituais como a transformação dos papeis de
dono-anfitrião e cabecilla ou a presença de mercadorias manufaturadas seria, portanto, uma
forma de relacionar-se ritualmente com o mundo do Oriente – isto é, de trazê-lo para dentro

395
Capítulo 7 – Cantar para Amanhecer: cestos tampados e retomadas

da maloca, para o verdadeiro centro do mundo, onde os chefes e seu pessoal possuem os
elementos necessários para estabelecer relações apropriadas, frias e pacíficas.

Lembremos que os governadores são os responsáveis por gerir e distribuir às


comunidades benefícios sociais como a transferencia (ver cap. 2) e outras iniciativas que
chegam com cada vez mais frequência no Tempo dos Projetos. Com a entrada dos recursos
financeiros, os Bora têm acesso a uma série de produtos e alimentos industrializados que
apareceram, justamente, como a caça trazida às malocas nos rituais Ujcútso de 8 de
dezembro. Como vimos, o pagamento em forma de alimentos vegetais faz parte de um
importante e valorizado processo de esfriamento ou neutralização do potencial predador
contido na carne de caça e nas canções trazidas pelos convidados nos rituais. No caso dos
mantimentos, roupas, ferramentas e outros utensílios por eles ofertados ao grupo “de dentro”
do ritual Ujcútso, não creio que seja diferente, pois entendo que nessas ocasiões busca-se,
por meio da retribuição adequada, fazer com que as desejadas mercadorias não sejam
cotidianamente um motivo de conflito ou de esquentamento das relações os membros de um
cabildo.

Torna-se claro, então, como os Bora se empenharam, ao longo das últimas décadas,
em construir ambientes rituais nos quais a agressividade não tivesse lugar. Nesse intuito,
produziram bailes que tinham como um de seus principais objetivos a consolidação do
Tempo da Abundância, um período marcado, dentre outros, pelo fim da comunicação direta
entre xamãs e espíritos auxiliares, pela neutralização dos ataques dos animais, pela
interrupção da guerra e pela fabricação de corpos e relações frios e doces. Conviver com o
mundo do Deus-do-Machado no ambiente controlado dos rituais, ocasiões potentes para a
produção de frialdade nas relações sociais desde que observadas as necessárias precauções,
seria assim mais uma forma encontrada pelos Bora de conduzir as transformações internas
que, por algumas vezes, denominei ao longo desta tese como um processo de reorganização
ou “reforma social” (Fausto et al., 2016).

396
Conclusão

If Native Amazonian people can “hallucinate” other possible modes


of organization, they can engage with then in practice too. (Gow,
1991: 281).

Neste trabalho, comecei por apresentar, na Parte I, um panorama histórico acerca das
transformações pelas quais os Bora e outros Povos do Centro passaram desde o fim do século
XIX até os dias de hoje. Como vimos, esse período de pouco menos de 150 anos é dividido
e classificado pelos Bora em Tempos ou bonanzas – dentre os quais, sem dúvida alguma, o
Tempo dos Peruanos (ou a bonanza do caucho) ocupa um lugar particular443. Sua
especificidade não se justifica apenas pelo injusto regime de trabalho, pela extrema violência
empregada ou pela vertiginosa queda demográfica, mas também (e principalmente) pelo
esfacelamento das malocas e, por extensão, das redes rituais e políticas que as atravessavam.
Diante desse cenário, apresentei ao longo da Parte II o esforço empreendido pelos Bora para
a recuperação de clãs e rituais cujas existências se encontravam francamente ameaçadas no
pós-caucho. Entendemos, então, como o desafio de recriar as condições para a produção de
novos chefes e outras pessoas titulares (sem as quais não há como existirem malocas) estava
no cerne desse processo de recuperação. Porém, vimos também que reconstruir tais condições
não significou meramente repetir ou replicar o que havia no passado. Como procurei mostrar
por meio da análise da fabricação de chefes-Garça nominados em rituais Llaaríwa, os
esforços de reconstituição da vida social e ritual não tinham como objetivo último a
reprodução fidedigna do que havia antes, mas sim a valorização seletiva de certos tipos de
discursos, atitudes e comportamentos considerados mais adequados ou desejáveis que outros.

O tema das transformações ameríndias a partir do contato com os não-indígenas está


longe de ser uma novidade nos estudos sobre as Terras Baixas da América do Sul. São
numerosos os trabalhos que se empenharam em explorar como os povos indígenas, desde o

443
Vimos no capítulo 1 como o comércio de pessoas no Caquetá-Putumayo é anterior ao século XIX. Porém,
seguindo as narrativas de meus interlocutores e a maior disponibilidade de fontes a partir dos anos 1800, adotei
ao longo do trabalho esse recorte para me referir ao Tempo dos Brasileiro.

397
Conclusão

estabelecimento das primeiras relações com os “brancos”, tiveram que lidar com elementos
e instituições antes inexistentes. Se Lévi-Strauss (1991) e outros autores forneceram uma
chave de leitura para se pensar essas transformações enquanto reflexos de um modo
tipicamente ameríndio de relacionar-se com a diferença e com o exterior, ainda carecemos
(ao menos na Amazônia) de trabalhos que se dediquem a conceitualizar transformações que
são, em parte, de outra ordem. Refiro-me aqui a certos processos internos nos quais os povos
indígenas, catapultados por situações de crise extrema, se tornam não são apenas os
protagonistas de suas transformações, como também o fazem de modo deliberado e refletido.
Para que fique mais claro a que tipo de situação me refiro, vejamos um outro caso na
Amazônia Ocidental cujos paralelos com os Bora são evidentes.

Os Matis são um povo de língua Pano que habita a região do Vale do Javari, em Terra
Indígena homônima. Entre o fim dos anos 1970 e o começo dos anos 1980, após os
“primeiros contatos” com não-indígenas, os Matis paulatinamente se aproximaram de um
posto de atração da FUNAI no rio Ituí. Em função da convivência com os funcionários da
instituição e outros atores (como madeireiros e colonos), os Matis contraíram uma série de
doenças, o que os levou a um desastre sanitário de enormes proporções. Tal como ocorreu
entre os Bora, um dos efeitos desse contato foi a queda populacional vertiginosa
(Nascimento, 2008), seguida da alteração das práticas matrimoniais e da composição dos
assentamentos (Erikson, 1990). O que mais nos interessa aqui, contudo, tem a ver com as
transformações subsequentes de certos comportamentos e do uso de algumas substâncias e
adornos corporais. Tais mudanças relacionam-se diretamente com a noção de sho e com a
oposição nativa entre doce e amargo:

Intimamente ligado ao sistema de sabores, o sho apresenta-se sob duas


formas básicas: bata sho (doce) e sho comum, amargo (chimu). A forma
doce, de essência feminina, protege, ao passo que a forma amarga,
masculina, ao contrário, é perigosa: diz-se que estar doente ou sofrer é
literalmente “ficar amargo”, chimwek. Os brancos (...) são conhecidos por
seu forte teor em sho comum (chimu) – daí as epidemias de que são
sabidamente responsáveis – e, principalmente, em bata sho – daí sua
relativa “imunidade” às doenças. (Erikson, 2002: 181)

Antes do contato, a fim de fomentar suas capacidades como caçadores, era comum
que os homens Matis se abstivessem do consumo de substâncias doces (bata sho) e
privilegiassem tudo aquilo que se relacionava ao amargor (chimu): alimentos amargos,

398
Conclusão

picantes ou ácidos, uso de veneno de sapo e líquido irritante nos olhos (buchete),
açoitamentos, tatuagens e perfurações para o uso de adornos faciais, etc. Segundo Erikson, o
amargor para os Matis não se encontra circunscrito apenas ao mundo do paladar, mas
relaciona-se também com o universo da dor e da agressividade. Além disso, ao mesmo tempo
em que o sho amargo é uma forma de fortalecer as habilidades cinegéticas de uma pessoa,
ele pode causar doenças e morte àqueles que o buscam. Dessa maneira, em um cenário no
qual os Matis se viam diretamente afetados pelas epidemias dos anos 1970 e 1980, seguir
privilegiando as práticas e substâncias amargas mostrava-se como algo muito perigoso para
sua própria existência. Nesse momento de crise, dá-se o abandono das atividades, adornos e
substâncias amargas que os expunham às doenças, com a consequente valorização de
alimentos doce ou bata sho – movimento portanto semelhante àquele feito pelos Bora ao
longo do século XX por meio da extrema valorização de tudo o que se relacionava à doçura
e à frialdade444.

De maneira mais ampla, vimos como os Bora buscaram descontinuar práticas


consideradas quentes e violentas em prol de uma vida marcada pela frialdade e o pacifismo.
As justificativas apresentadas por meus interlocutores para essas mudanças giram em torno
de um argumento que é semelhante àquele dos Matis: se mantivessem o modo de vida
anterior ao boom caucheiro, todos eles rapidamente desapareceriam. Tais intenções,
expressas nas palavras dos Bora atuais, ganharam forma ou “amanheceram” por meio de uma
série de transformações correlacionadas que analisei ao longo desta tese. Por exemplo: o
abandono dos rituais de antropofagia e vingança (Túmatsi e Allóco); a valorização dos chefes-
Garça e dos rituais a eles associados (Llaaríwa, Tóóllíuwa e Ihchúba); a maior flexibilidade
em relação à ocorrência de casamentos interétnicos (uma vez que a própria relação de
inimizade entre os Povos do Centro arrefeceu-se); a modificação das canções rituais a fim da
promover bailes cada vez mais pacíficos e curativos; a adoção do tabaco e das orações como
medidas de cura e proteção; e, finalmente, a não-negociação com os espíritos-animais em

444
No post scriptum do mesmo artigo, Erikson menciona como algumas práticas – como as tatuagens e o
consumo da bebida de cipó (tachik) – foram parcialmente retomadas alguns anos mais tarde. Segundo o autor,
passados os primeiros anos do contato, a recuperação demográfica dos Matis teve como um de seus efeitos a
recuperação de elementos relacionados ao amargor.

399
Conclusão

situações de doenças, expedições de caça ou ataque/defesa nas relações com inimigos e


estrangeiros.

Ao realçar esses elementos, é preciso adotar uma certa prudência histórica. Não se
pode imaginar o passado dos Povos do Centro como um estado eminente e generalizado de
guerra e violência, como se àquela época atitudes e corpos quentes fossem a única forma de
vida experimentada445. Antes, a valorização da frialdade revela que, naquele tempo, a
coexistência de substâncias e relações quentes e frias provavelmente assemelhava-se ao
manejo do bata sho (doce) e sho comum (amargo) experimentado pelos antigos Matis. Se no
momento pós-contato os Matis imputaram aos brancos a capacidade de manejar corretamente
o sho (Erikson, 2002: 188), a valorização da frialdade pelos Bora no pós-caucho fez com que
atitudes, comportamentos, pensamentos, substâncias e corpos quentes fossem cada vez mais
atribuídos aos animais, que passaram a ser os detentores de um modo de vida agressivo e
hostil.

Nos dois casos, essas transformações não foram experimentadas de forma passiva
pelos povos nativos, como se o contato fosse uma força externa capaz de modificar estruturas
que, por sua flexibilidade, simplesmente se acomodaram. Ao contrário, Erikson (2002) relata
que observou situações nas quais os Matis viam-se diante de “impasses” e “dilemas” que
fomentavam uma série de debates e discussões acerca dos caminhos que deveriam ou não
tomar diante daquilo que estavam vivendo. Mais do que pensar sobre como os brancos
deveriam ser vistos, o que estava em questão para os Matis era a maneira com que desejavam
ver a si mesmos. Um dos efeitos de se pensar o contato com os não-indígenas e suas
consequências a partir de uma atenção a processos internos nativos é perceber em que medida
os povos indígenas, por meio de uma postura reflexiva diante de situações que se lhes
apresentam, formulam não apenas a narrativa por meio da qual contarão sua história, mas
também modificam os rumos e a forma de seu próprio destino:

À primeira vista, pode se pensar numa certa capitulação diante da história,


evocando a submissão diante dos nawa. Mas, no fim das contas, essa atitude
não significaria, ao contrário, afirmar-se senhor do jogo, assumindo
plenamente seu próprio destino? Pois, olhando mais de perto, ao acusarem

445
Tampouco se deve pensar o passado anterior à invasão caucheira como primevo e intocado. Como mostrei
no capítulo 1, os Povos do Centro fizeram parte de redes de troca e violência colonial, de tal modo que, em
outro momento histórico, a fabricação de corpos quentes pode ter sido enfatizada em detrimento da frialdade.

400
Conclusão

seu excesso de sho, os Matis, na verdade, minimizam o papel dos brancos.


Sua auto-representação modificou-se menos em função de uma imagem
importada do que em virtude de seus próprios princípios, ou seja, de sua
teoria etiológica e sociológica do sho. (Erikson, 2002: 192)

Considero que, entre os Bora, a frialdade e a vida pacífica não são criações ex-nihilo
causadas pelo processo de contato. Em vez disso, penso que a construção de um mundo
interno frio sempre foi uma possibilidade, tanto quanto a predominância das relações quentes.
Se consideramos que a adoção de uma vida fria foi resultado dos debates e dilemas que se
impuseram aos Bora a partir das relações com os caucheiros peruanos no começo do século
XX, poderíamos nos perguntar se a violência e agressividade desapareceram por completo e
definitivamente do panorama de possibilidades.

Não acredito que tenha sido este o caso, pois como vimos em diversas partes deste
trabalho, trata-se antes de um deslocamento: o modo de vida quente é, hoje, atributo
exclusivo dos animais ou, no máximo, de pessoas que eventualmente sejam por eles
capturadas, seduzidas ou dominadas. Esse deslocamento, por seu turno, está no cerne da
passagem do Tempos dos Animais para o Tempo da Abundância que analisei na Introdução
à Parte II. Essa passagem, ademais, possui implicações importantes no tocante à relação entre
chefes e órfãos, algo que uma narrativa que ouvi em campo ajuda a entender.

i. Quando o Bom-Orador derrotou a força dos animais

Em todos esses casos, longe de jogar toda culpa nas costas do invasor,
acusa-se a si mesmo, ou melhor, a uma versão anterior de si, cujo erro se
promete, implicitamente, não repetir. Num último gesto de orgulho, até
mesmo o povo mais esmagado pela intrusão dos brancos pode, assim,
continuar pensando-se senhor de seu próprio destino, assumindo as
desgraças passadas na esperança de um futuro menos sombrio. (Erikson,
2002: 193)

A narrativa abaixo foi colhida em espanhol em junho de 2017, na maloca do clã


Cobra-Grande. Na ocasião, o chefe desse clã buscava recepcionar um grupo recém-chegado
de estudantes universitários de Bogotá que vinha fazer um trabalho voluntário nas
comunidades da região e que queria escutar algo sobre quem eram os Bora. Sem nenhuma
introdução ao tema, essas foram suas primeiras palavras assim que ele se sentou no banco
principal de seu mambeadero:

401
Conclusão

Havia um chefe, o Bom-Orador, ele sentava em seu banco e comandava seu


pessoal, mas as pessoas estavam preocupadas. Havia um servo desse senhor
que perguntava:
- Abuelo, você diz que trabalha para que não nos aconteça nada, para que
não haja nenhuma doença, ódio, guerra. Mas agora, de onde vem esse mal-
estar?
E o Bom-Orador dizia:
- Meu servo, você mesmo escuta a minha palavra muito claramente e você
não ouve nenhum mal no que eu digo. Da minha palavra não sai nada disso.
E assim o Bom-Orador acordava cedo para que no seu trabalho não
houvesse nenhum mal, para que não houvesse nenhum problema. Mas o mal
buscava diferentes formas de aparecer. E outra vez o servo perguntava:
- Abuelo, de onde aparece tanto problema? Você vive sentado e falando
conosco, mas agora, de onde vem esses problemas?
- Meu servo, como sempre lhes disse, onde é que você acha que estou
pronunciando mal as palavras para que haja problema? Em nenhum
momento eu estou pronunciando isso. Pode ser que por aí haja alguém que
invente alguma coisa má, mas nas minhas palavras, no meu banco [de
chefe], em meu cocar, em meu bracelete e em meus adornos [de pessoas
titulares] não existe isso.
E o Bom-Orador continuou com suas palavras curando uns e outros,
defendendo e protegendo para que tudo ficasse bem. Ele prometeu que sua
palavra não teria nenhum mal, ele se comprometeu mesmo. E assim ele
estava fazendo, até que não aguentou, porque sempre os servos lhe
colocavam culpa ao que acontecia de mal. Então o Bom-Orador disse:
- Bom, um de vocês, de meus servos, deve sentar-se no meu banco [de
chefia]. Eu estou saindo do meu banco porque vocês dizem que da minha
palavra é que está saindo o mal. Se vocês vão me acusar, eu vou embora.
Vamos ver se para vocês acontece algo melhor.
E assim o Bom-Orador saiu de seu banco e um de seus servos sentou no
banco do seu senhor. Mas havia um inimigo que olhava com seu próprio
Tabaco-de-Sabedoria446:
- O Bom-Orador já não está no seu banco, já é um dos servos que está
sentado.
Nesse momento, ele aproveitou que ali já não estava aquele que
administrava a boa palavra. Ele pensava: “Onde está o Bom-Orador? Pra
onde ele se foi?”. Com sua sabedoria ele buscava saber onde estava o Bom-
Orador, pra saber se estava com seus vizinhos, se ele já tinha ido se sentar
em outro banco de algum de seus clientes447. Numa maloca vizinha ele o
viu:
- Lá está ele! Ali está aquele a quem chamam o Bom-Orador.
Ele o viu e foi atrás dele, mas logo Bom-Orador se transferiu a outro banco.
E assim ele foi se esquivando. Foi esquivando-se, esquivando-se. Até que
um dia disse:

446
O fato de possuir um Tabaco-de-Sabedoria indica que esse inimigo, cujo nome logo se revelará, era também
um chefe.
447
Ao dizer que buscava “com sua sabedoria”, o narrador informa que o inimigo não estava presente na maloca
do Bom-Orador, mas buscava-o à distância.

402
Conclusão

- Bom, o que está acontecendo com esse Deus-dos-Animais, o que ele quer?
Ele sabe que eu não sou disso. Mas se ele quer competir comigo...
O Deus-dos-Animais queria deixar o Bom-Orador por baixo, ele queria
superá-lo, estar por cima. Era isso que ele buscava. Então o Bom-Orador já
não aguentou:
- Queira ou não queira, vou ter que responder. Minhas obras não são assim,
mas ele está me perseguindo muito, eu já não aguento mais. Daqui mesmo
do meu banco vou responder.
Assim se comprometeu o Bom-Orador. Então ele olhou quanta força seu
inimigo tinha para estar lhe perseguindo tanto. Mas Deus-dos-Animais
trabalhava com cada animal, com cada espécie que existe. Era dali que
tirava sua força, de cada animal. Da mesma forma, com a força que mora
na água, era dali que ele tirava poder para causar dor de barriga e vertigem.
Para dominar esse mal, o Bom-Orador usou seu Tabaco-de-Sabedoria-e-de-
Conhecimento, que funcionou com um espelho onde se vê tudo. O Bom-
Orador o colocou, como uma máscara, esse Tabaco-de-Garça448.
Com essa máscara ele viu tudo que Deus-dos-Animais fazia. Ele viu tudo,
e com isso foi enumerando. E tudo que ele via, ele ia tirando, tirando. Ele ia
anotando, assim como fazem os Brancos. E sobre as força da água também,
ele via tudo o que estava acontecendo. A força da cobra-grande, do polvo,
do boto, dos bagres, do jacaré-açu, do jacaré-pequeno, de todos os que
existem na água. Ele olhava, até que tudo se completou e ele olhou tudo
junto.
- Já sei que é assim que trabalha o Deus-dos-Animais. Eu vou respondê-lo.
Minha obra, meu trabalho, não é fazer competição. Mas com ele está
fazendo o mal, eu tenho que respondê-lo.
E assim o Bom-Orador já viu todos os segredos de como trabalhava o Deus-
dos-Animais. Então, ele saiu por aí. Assim como nós [Povos do Centro] que
utilizamos esse ambil, era esse mesmo tabaco que ele utilizava. Em todos
os bancos [de mambeadero] que usavam [ambil], ele ia passando, fazendo
sua viagem e deixando seu tabaco, seu Tabaco-de-Sabedoria-e-
Conhecimento. Ele andou muito e outra vez chegou onde estavam os seus
servos. E ele perguntou:
- Meus servos, como vocês estão? Vocês estão bem? Porque vocês
colocavam culpa em mim dizendo que a minha palavra fazia mal a vocês,
então eu saí do meu banco. Vocês já encontraram uma palavra boa?
- Abuelo, nem nos pergunte. Desde que você saiu daqui o mal nos atingiu
em cheio. Ele nos faz o que quer fazer.
- Viram, meus servos? Era outra pessoa que queria fazer o mal. Vocês
estavam colocando culpa em mim, mas agora se deram conta. O Deus-dos-
Animais está me perseguindo. Eu não sou disso, mas vou responder. Então
vamos enfrentar com meu poder esse mal, que não é de brincadeira. Antes
disso, vou dar a vocês um coração doce e frio, porque é assim que vamos
enfrentar esse mal que é como uma faísca de fogo que está prestes a
explodir. Mas antes disso tenho que colocar em vocês uma defesa muito
forte.

448
Uma vez que os chefes-Garças detém o Tabaco-de-Sabedoria (ver cap. 6), o Tabaco-de-Garça é equivalente
ao primeiro.

403
Conclusão

Então o Bom-Orador colocou esse ar de manicuera dentro do coração de


seus servos. E assim ele também preparou um tabaco de defesa poderoso,
que destinou para eles449.
Depois de fazer isso para salvar seus servos e seus filhos, o Bom-Orador já
se transformou em um raio. Com sua sabedoria, ele se fez brilhar, assim
como um trovão antes de arrebentar brilha também. Assim mesmo fez o
Bom-Orador. Ele se foi, arrebentou [como trovão] e foi até o extremo, onde
nasce a água450. Com o que ele havia visto dentro d’água, onde trabalhava
esse poder que fazia o mal, ele foi eliminando, eliminando. Até que ele
terminou o trabalho na água e saiu sobre a terra. Todo animal tem seu poder,
e é com esse poder que trabalhava o Deus-dos-Animais. Mas tudo isso o
Bom-Orador eliminou, até que não sobrou nada:
- Deus-dos-Animais, você luta contra mim para que eu fiquei assim debaixo
dos seus calcanhares. Essa é a competição que você está fazendo comigo.
Se é assim, vamos nos enfrentar. Se você me derrotar, me colocar debaixo
dos seus pés, você vai receber todo o meu poder. Em troca, se eu te deixo
sob meu poder, então você perderá tudo. Assim vai ser.
Assim se enfrentaram. O mau ia correndo e atrás o Bom-Orador ia. Eles
foram dando a volta ao mundo, dando a volta.
- Deus-dos-Animais, me espere. Por que você está correndo de mim?
Espere-me! Eu quero ver qual é o seu valor, qual é o seu orgulho. Se você
me quer debaixo dos seus pés, venha, aqui eu estou. Senão você vai ficar
sob o meu poder.
E assim o Bom-Orador o agarrou e o dominou. Ele teve a vitória, o Bom-
Orador:
- Ai está! Você queria ser mais que eu, mas você não serve de nada. Aí está!
O que menos faz, mais faz. Você quis ser muito grande, e veja onde
terminou.
Assim, o Bom-Orador terminou e ganhou a batalha. Por isso esse ambil está
por cima de tudo e o poder dos animais fica embaixo. Isso porque o Bom-
Orador tem o coração doce, frio. Por outro lado, o Deus-dos-Animais tem o
coração quente, de puro fogo. Mas toda a quentura que ele tinha, a
manicuera esfriava. O Deus-dos-Animais tinha seu tabaco, que era puro
fogo, mas com a doçura ele se apagava. É por isso que Deus-dos-Animais
não gosta de obras doces e boas. Toda a força dos animais, da floresta e dos
“lugares sagrados”451, com a doçura se apaga.

Este relato narra em chave mítica um evento que busquei apresentar, ao longo desta
tese, como um longo processo histórico-cosmológico: a passagem do Tempo dos Animais
para o Tempo da Abundância. No começo da narrativa, vemos como o chefe, reconhecido
por sua habilidade com as palavras (afinal de contas, trata-se do Bom-Orador), tem sua
capacidade de chefia contestada por seu pessoal ou seus servos. Todas as doenças e

449
Sobre o tabaco de defesa, ver Introdução à Parte II.
450
O narrador refere-se aqui ao mundo subaquático - e não à cabeceira dos rios.
451
Ao falar em “lugares sagrados” os Bora geralmente referem-se àquelas paisagens como lagos, montanhas e
barreiros (ver Int. à Parte II) que possuem donos não-humanos com os quais, no passado, os xamãs negociavam.

404
Conclusão

infortúnios que os atingiam eram atribuídos à ineficácia do Bom-Orador em proteger, por


meio de suas palavras, aqueles que viviam em sua maloca. Em razão dessa insatisfação,
subverteu-se a própria posição de chefia com um servo passando a ocupar o banco no
mambeadero de seu chefe. Afastado de seu banco de chefe, logo o Bom-Orador percebeu
que Deus-dos-Animais era quem buscava prejudicar seu pessoal. Apesar de inicialmente
furtar-se ao conflito, ele termina por aceitar confrontar-se com seu inimigo.

No duelo entre o Bom-Orador e o Deus-dos-Animais, o Tabaco-de-Sabedoria (cf.


cap. 7) é fundamental. Após distribuir essa substância aos mambeadores, Bom-Orador a
utiliza para derrotar Deus-dos-Animais. A eficácia do Tabaco-de-Sabedoria, típico dos
chefes titulares, encontra-se em sua frialdade e doçura, capazes por sua vez de neutralizar ou
aniquilar o calor dos inimigos. Se olharmos mais de perto, os resultados dessa batalha são
decisivos: é a partir da vitória do Bom-Orador sobre o Deus-dos-Animais e da entrega do
Tabaco-de-Sabedoria aos mambeadores que os Bora puderam finalmente se fixar na posição
de humanos verdadeiros – em contraposição aos animais, humanos incompletos ou
imperfeitos. Observamos, então, que a principal consequência desse conflito não foi o
desaparecimento do mundo quente e violento, mas sim seu deslocamento para o exterior do
campo de relações de troca e de parentesco, onde a partir de então também se encontram os
espíritos-animais, antigos parceiros dos xamãs. Esses espíritos-animais, por sua vez, sempre
poderão ser novamente derrotados pelos humanos desde que os últimos utilizem a substância
adequada de proteção: o Tabaco-de-Sabedoria que lhes foi entregue pelo chefe ancestral.

Não é difícil perceber como essa discussão guarda semelhanças evidentes com o
discurso cristão encontrado do livro de Gêneses. Se lembramos que ali Deus fez os humanos
“à sua imagem e semelhança” e ordenou que eles dominassem todos os animais, a vitória de
Bom-Orador sobre Deus-dos-Animais poderia ser interpretada como uma releitura nativa da
narrativa cristã. Soma-se a isso o fato de que a passagem do Tempo dos Animais para o
Tempo da Abundância, central para se entender o relato acima, tem início precisamente após
a chegada dos padres capuchinhos no baixo Caquetá-Putumayo. Dada a relativa ausência de
reflexões sobre o tema do cristianismo ao longo desse trabalho, podemos nos perguntar se
não estaríamos, em razão do vício da análise antropológica, caindo na armadilha de olhar a
cristianização dos Bora apenas pelas lentes da continuidade (Robbins, 2007) – ou seja, como

405
Conclusão

se a influência dos missionários capuchinhos não tivesse sido capaz de provocar alterações
significativas nos modos de pensar e viver dos Bora.

Mantive esse questionamento em mente ao longo da elaboração de todo o trabalho,


mas logo dei-me conta de que, seguindo a trilha de meus interlocutores, a ruptura (em maior
ou menor escala) era um tema que se encontrava, para eles, repetidamente em primeiro plano.
Entendi que tais rupturas, por sua vez, apenas poderiam ser pensadas se levamos em
consideração que muitas vezes os Bora não possuíam muitas escolhas (afinal de contas,
nunca lhes foi apresentada a opção de não serem afetados pela ação dos caucheiros ou dos
padres capuchinhos). Então, quando digo que busco analisar a maneira pela qual os Bora se
colocam como protagonistas de seu próprio destino, afirmo com isso que quero pensar
também sobre suas reações diante daquilo que lhes era imposto. Vimos, em diferentes
momentos, que tais reações foram dos mais diversos tipos: aliaram-se aos comerciantes de
escravos no Tempo dos Brasileiros, resistiram com armas às investidas dos caucheiros no
Tempo dos Peruanos, predaram felinos ameaçadores no Tempo da Tigrillada, aproximaram-
se das instituições estatais em buscas de recursos no Tempo dos Projetos, etc. Voltemo-nos
para a relação com os missionários católicos sobre esse prisma, buscando entender, portanto,
como a postura dos Bora diante da mensagem dos religiosos é acompanhada de certo tipo de
transformação.

Como mencionei algumas vezes, os Bora não possuem um discurso sobre sua
conversão. Ao contrário, consideram a história contada pelos padres uma versão distinta ou
mesmo imprecisa do conhecimento que lhes fora ensinado por seus ancestrais e que eles
seguem transmitindo, hoje, nos mambeaderos. Aproximam-se, assim, da descrição
apresentada por Pierri para os Guarani, que “não consideram o cristianismo propriamente
falso, mas em certa medida míope” (2014: 286), ao mesmo tempo em que se afastam dos
Wari’, os quais “não refazem a história pré-cristã afirmando já terem conhecido Deus”
(Vilaça, 2008: 189). Retomar a comparação iniciada na Introdução à Parte II entre os casos
Bora e Wari’ pode nos ajudar a extrair algumas considerações e hipóteses finais.

Vimos que o Tempo da Abundância se relaciona diretamente com a capacidade que


os humanos possuem de ter à sua disposição uma grande quantidade de alimentos. Dentre
eles, se destacam sem dúvidas os animais comestíveis (seres que, por sua origem, são

406
Conclusão

sensivelmente mais perigosos que os vegetais452). Já vimos também que, segundo Vilaça, a
possibilidade de comer sem se preocupar com o potencial agressivo dos alimentos-presa está
no cerne da conversão dos Wari’ ao cristianismo:

O mundo é diferenciado entre predadores e presas, e o que se valoriza é a


primeira posição. O que acontece nesse novo mundo cristão é que os
animais não são mais percebidos como humanos, e os afins são agora vistos
como consangüíneos. A consequência disso é que a predação, que se dava
em dois sentidos, passa a ser uma capacidade exclusiva dos Wari’, e voltada
somente para fora, tendo sido suprimidas as agressões internas que
caracterizavam a afinidade. (2008: 196)
A predação unidirecional, ainda de acordo com a autora, é ameaçada apenas quando
o diabo (enquanto entidade cristã) se apodera de humanos ou animais. Dessa maneira, afirmar
que os Wari’ se fixaram na posição de predadores também significa dizer que os animais
idealmente perderam sua potência agressiva e passaram a ser consumidos sem dificuldade.

Ao longo desse trabalho, não pude explorar a fundo as práticas alimentares bora.
Contudo, a relativa recusa que apresentam em caçar e consumir alguns mamíferos maiores
(antas, veados, queixadas, etc.), aliada à preferência que apresentam por peixinhos de
igarapés pequenos, sempre foram apontadas por meus interlocutores como medidas
profiláticas adotadas por aqueles que desejam se esquivar do potencial agressivo dos animais.
Além disso, afirmei, na Introdução à Parte II, como os Bora desde o Tempo da Abundância
passaram a viver em mundo que, embora seja internamente pacífico, é cercado por inimigos.
Nesse sentido, é como se os Bora tivessem empreendido apenas uma parte do movimento
feito pelos Wari’ que, além de suprimirem as agressões internas, foram capazes de se fixarem
definitivamente na posição de predadores dos animais. Se entre os Wari’ os animais já não
são capazes de serem humanos (tornando-se no máximo instrumentos para a ação do diabo),
penso que entre os Bora os animais são seres daninhos e predadores exatamente porque
também são, como vimos, incompleta ou inadequadamente humanos. Os Bora atuais
afirmam, porém, que isso não furtava os antigos xamãs de estabelecerem com eles relações
de troca e comunicação, pois em alguma medida tais xamãs eram capazes de controlar ou
“manejar sus espíritus”. A partir da atuação dos caucheiros peruanos e do cenário de crise
enfrentado pelos Bora e pelos demais Povos do Centro, tais relações com os animais foram

452
Sobre o uso dos alimentos vegetais como forma de esfriar ou neutralizar o perigo dos animais nos rituais,
ver cap. 6.

407
Conclusão

suspensas e paulatinamente abandonadas. Mais do que isso, diante da situação em que se


encontravam, passou-se a temer a possibilidade de que o mundo bora “esquentasse” de
maneira descontrolada, fazendo assim com que a própria existência dos humanos fosse
colocada em risco. Todas essas eram preocupações expressas, por exemplo, pelos chefes que
sobreviveram à Casa Arana e se estabeleceram na primeira metade do século XX em
pequenas malocas no rio Cahuinari453. Essa é a época em que, como vimos, chegam os
capuchinhos catalães à região na tentativa de reunir os “órfãos” deixados pelos caucheiros
peruanos.

Não acredito que o cristianismo fez com que os Bora tenham se fixado na posição de
predadores. Se assim fosse, como explicaríamos o fato de que vivem todos os dias
preocupados com a latente possibilidade de que os animais os ataquem? Se os animais
seguem sendo seus predadores por excelência, suspeito que uma das principais diferenças a
partir do Tempo da Abundância é que os Bora (por meio de uma série de medidas que
conhecemos ao longo da Parte II) buscaram se fixar na posição de chefes dos animais. Vimos,
principalmente nos capítulos 4 e 7, que um chefe pode sofrer inúmeras investidas contra si.
Contudo, ao invés de ser conhecido por sua capacidade guerreira (como era o caso no Tempo
dos Animais), ele hoje se destaca pela aptidão que tem em defender-se daqueles que o atacam
(ou, se quisermos, em controlá-los). Assim, apesar de dominarem um extenso corpus de
conhecimentos relacionados à agressividade e ao calor, os chefes bora atuais (tal como o
Bom-Orador) tentam de todos os modos evitar o conflito por meio de uma série de medidas
de proteção e profilaxia. Assim, eles protegem seus filhos ou seu pessoal ao mesmo tempo
em que buscam controlar o exterior.

Vilaça (2008: 187) menciona como a tradução bíblica do livro de Gênesis feita pelos
missionários protestantes coloca os humanos como “líderes” dos animais454. Apesar de não
desenvolver muito o tema (talvez em função do próprio caráter da chefia wari’), chama-me

453
As afiliações clânicas por via materna e a nominação de pessoas em rituais titulares no começo do século
XX (antes da migração ao Igaraparaná e possivelmente também da chegada de Igualada ao Cahuinari)
demonstram como a retomada dos rituais era uma preocupação anterior à atuação dos missionários católicos
(ver. cap. 7, Tabela 9).
454
Não há, na Colômbia, bíblias traduzidas para o idioma Bora. Uma comparação do mesmo trecho nas versões
mais usadas na América hispânica pelos clérigos católicos revela que, no versículo 26 do livro de Gênesis, diz-
se que Deus fez os homens para que “manden” (La Biblia de Jerusalén), “dominen” (La Santa Biblia) ou “tengan
autoridad” (Biblia Latinoamericana) sobre os animais.

408
Conclusão

atenção como, no caso bora, convergem a narrativa cristã e o anseio indígena455. Se antes da
atuação da Casa Arana os Bora eram capazes de se relacionar sem grandes problemas com
os animais, a brutalidade dos caucheiros mudou radicalmente esse cenário: em muito menor
número, sem malocas, sem chefes e sem xamãs que soubessem como lidar com os espíritos-
animais, os Bora se encontravam à mercê de ataques vindos do exterior. Já percebemos como
a convivência nos internatos religiosos e o ensino do espanhol foram fundamentais para a
disseminação dos casamentos interétnicos, para a suspensão das relações guerreiras e para a
recuperação demográfica (mesmo que tímida) dos Povos do Centro. Para além disso,
entendemos agora que se era (e ainda é) impossível aos Bora conceber um mundo em que os
animais não fossem seus principais predadores, a proposta cristã do estabelecimento de uma
vida pacífica na qual os humanos são capazes de se fixar na posição de “líderes” ou chefes
dos animais estava, naquele momento, em consonância com suas preocupações.

Nesse sentido, a aceitação do discurso da fraternidade e do pacifismo cristão


apresentado pelos missionários católicos aos Bora (por sua vez traduzidas nos termos da
frialdade e da doçura) era retroalimentada pelo fato de que eles estavam sendo, no começo
do século XX, brutalmente atacados. É notável que, com o passar do tempo, a influência dos
padres católicos se tornou cada vez menor456. Seguindo uma demanda dos próprios indígenas,
eles abandonaram a administração das instituições educativas e, nos dias de hoje, limitam
sua presença a um padre e uma ou duas freiras que vivem intermitentemente em La Chorrera,
onde, sem muito sucesso, buscam envolver a comunidade nas celebrações dominicais e
combater algumas práticas por eles consideradas repreensíveis, como o consumo exagerado
de bebida alcoólica e as festas onde se escuta no último volume vallenato e reggaeton457.
Porém, apesar de não assistirem com frequência às missas, os Bora com quem trabalhei
parecem não ter abandonado a ideia, reforçada e incentivada pelos missionários católicos, de

455
Porém, tal como demonstrei ser o caso para a noção de “órfão”, parece que estamos, também em relação à
ideia de “chefe”, diante de um equívoco gerado a partir do encontro dos padres com os Povos do Centro. Ou
seja, também há aqui importantes ruídos em relação ao que índios e missionários entendem por “chefes”.
456
Em paralelo, os Bora que vivem no rio Igaraparaná rejeitam veementemente a entrada de missionários
protestantes em seu território. Justificam a recusa dizendo que já são católicos e que os evangélicos, além de
serem muito insistentes, buscam convencê-los de que os ensinamentos deixados por seus ancestrais são
equivocados, repreendendo ainda o uso do mambe e do ambil.
457
Ritmos musicais muito difundidos na Colômbia e em outros países de fala hispânica na América do Sul.

409
Conclusão

que são humanos verdadeiros e completos – em detrimento da posição ocupada pelos


animais.

Cumpre pontuar que o tema da relação entre humanidade e animalidade já foi


abordado, ainda que em outros termos, por alguns autores que trabalharam no Caquetá-
Putumayo. Echeverri (2002), por exemplo, faz uma comparação entre o processamento de
certas substâncias e a separação, feita pelos Povos do Centro, entre natureza e humanidade458.
O autor observa que, no Caquetá-Putumayo, diversas substâncias vegetais cultivadas, para
serem transformadas em elementos centrais ao sustento dos corpos humanos, devem passar
por um algum tipo de filtragem459. Assim, a goma de tapioca, o mambe, o ambil e o sal
vegetal são resultado de um processo que gera bagaços ou sobras que, por serem subprodutos
inferiores, geralmente são descartados. O autor argumenta então que, para os Povos do
Centro, “a natureza é o bagaço e a humanidade é a goma de tapioca”:

El proceso técnico del filtrado nos sirve de punto de partida para reconstruir
una cosmología nativa a partir de procesos domésticos de transformación e
incorporación de los alimentos. Este primer punto nos llevar a entender el
carácter moral de la construcción de la relación de los humanos con la
naturaleza; quiero mostrar cómo los espacios y las especies naturales, así
como las relaciones sociales, se representan mediante un modelo
concéntrico – una suerte de “geografía moral” que establece un “centro”
humano purificado y moralmente superior, con una periferia impura,
patogénica e inmoral (cf. Griffiths, 1998: 72). En este punto entendemos
que “la naturaleza” no es algo que “exista” allá afuera, sino que es más bien
un producto de un proceso de transformación: es el bagazo que le sobra al
Creador luego de extraer el almidón puro de la humanidad. (Echeverri,
2002: 15).

Ao cotejar seus próprios dados com aqueles disponíveis para os povos do Vaupés,
Echeverri encontra uma importante diferença a respeito dos “modelos de relação com o
mundo natural” operantes em cada um desses lugares. No caso dos Tukano, por exemplo, o
autor salienta como os humanos, ao verem os seres naturais como seres sociais, estabelecem

458
Griffiths (1998), Karadimas (2001) e Londoño Sulkin (2004) também abordam, em suas monografias, a
especificidade da relação entre humanos e animais entre os Povos do Centro.
459
Echeverri entende por filtragem o uso de quaisquer artefatos (filtros de tecido, peneira de fibras vegetais,
funil, etc.) que, ao criarem uma barreira física, são capazes de realizar uma separação dos subprodutos da
matéria processada (por exemplo, o bagaço de mandioca e a goma de tapioca ou talos de folhas de coca e o
mambe).

410
Conclusão

com os últimos relações recíprocas de intercâmbio. Como resultado, ali as relações entre
humanos e animais são concebidas em termos de afinidade ou aliança.

Já vimos, em algumas partes deste trabalho, como os Bora percebem os animais como
seres sociais, pois eles também possuem malocas, chefes e parentes. Isso não é suficiente,
contudo, para que meus interlocutores considerem ser apropriado estabelecer com eles
qualquer tipo de relação de troca recíproca ou parentesco. Na verdade, muitas foram as vezes
em que escutei que os animais apenas pensam que, por exemplo, os lagos ou barreiros são
suas malocas. Isso porque eles não saberiam que as malocas verdadeiras são construídas e
mantidas pelos humanos, de modo que os animais muito frequentemente são caracterizados
como seres inferiores e inábeis em compreender a maneira correta e verdadeira de existir no
mundo – e, justamente por sua incapacidade em levar uma vida fria, eles são considerados
os causadores por excelência de doenças e infortúnios460.

Como já vimos, a transformação da relação entre humanos e animais a partir de uma


mudança no local ocupado por cada um deles no universo de relações bora é um dos grandes
marcadores da passagem do Tempo dos Animais para o Tempo da Abundância. A
valorização e a produção de chefes-Garça foi também um dos elementos chave que, ao longo
de várias décadas, consolidou essa transição. No cerne da fabricação dos novos chefes, como
também vimos, encontra-se a relação com aqueles que estão temporária ou definitivamente
na posição de órfãos. Nesse sentido, é válido que nos perguntemos em que medida podem
coincidir ou não as relações entre humanos e animais e entre chefes e órfãos no Tempo da
Abundância.

ii. Algumas vias possíveis para se pensar sobre o deslocamento da violência

Na Introdução à Parte II, observei que havia um certo descompasso entre as


descrições disponíveis sobre os Povos do Centro até o período caucheiro e as etnografias
feitas entre esses mesmos povos já na segunda metade do século XX. Como sugeri, tal

460
Nesse sentido, é interessante observar que são justamente os produtos vegetais produzidos a partir da
extração do bagaço (goma, mambe, ambil, sal vegetal) que serão usados como substâncias de proteção e cura
nos rituais (ver cap. 6 sobre pagamento de caça e canções) e nas ações terapêuticas dos xamãs.

411
Conclusão

descompasso se relaciona, ao menos entre os Bora, com um movimento de transformação


pensado pelos indígenas nos termos de uma passagem do Tempo dos Animais para o Tempo
da Abundância. A segunda parte deste trabalho foi dedicada a descrever, de forma mais
detalhada, o desenrolar desse processo. Ao longo da exposição, percebemos que houve um
grande esforço, por parte dos Bora, em privilegiar a manutenção da vida nas malocas. Vimos
ainda como estes espaços de convivência diária são locais indispensáveis para a realização
de rituais e para o adequado consumo noturno de mambe e ambil nos mambeaderos. Para
meus interlocutores, o fato de permanecerem nas malocas relaciona-se diretamente com o
sucesso que têm, até o momento, em controlar as consequências negativas do contato com os
não-indígenas:

Se acabam as malocas, se acaba tudo o que existe ao redor. Se acaba


o conhecimento tradicional, entra a exploração. Entram muitas
coisas... A cultura é que nos deu a direção para que todas essas coisas
fossem barradas. (Gifichiu apud Lucas e Rossini, 2018, 21 min.).

Essas palavras, ditas pelo filho primogênito de Fernando, o órfão que se fez chefe no
clã Tamanduá (ver cap. 7), revelam como atualmente garantir a existência das malocas é uma
preocupação presente não apenas entre os abuelos. De uma maneira geral, os Bora
concordam ainda que as malocas devem se esforçar em promover rituais e mambeaderos que
produzam relações humanas marcadas pela frialdade e pelo pacifismo. Porém, se o
deslocamento da violência e do calor para o mundo dos animais modificou profundamente
os atributos esperados de um chefe ou dono de maloca, em nenhum momento parece ter sido
colocada em xeque a própria existência dos mesmos. Dito de outro modo, embora as malocas
tenham se modificado no pós-caucho, elas continuaram a depender de pessoas que
ocupassem a posição de chefia – as quais, por sua vez, dependem diretamente da existência
daqueles que são classificados como órfãos. Vale, nesse caso, a máxima: se sem chefes não
há maloca, tampouco pode haver chefes sem órfãos. Apresento, a seguir, algumas vias
possíveis para que pensemos, no futuro, sobre as implicações e os alcances dessa oposição
complementar entre chefia e orfandade.

Vimos, ao longo deste trabalho, como a capacidade de um chefe em atrair e manter


perto de si diversos órfãos é fator fundamental para a construção de seu prestígio. Nos dias
de hoje, esses órfãos costumam ser seus netos, genros, cunhados ou sobrinhos classificatórios

412
Conclusão

que, por alguma razão, passaram a viver no novo assentamento. Contudo, ainda é frequente
encontrar pessoas não-aparentadas vivendo em malocas estrangeiras, onde são responsáveis
pela realização de uma série de tarefas cotidianas. Diferentemente do que acontecia no
passado, porém, não ocorre que elas sejam consideradas servos ou cativos dos chefes dessas
malocas – eles serão, no máximo, seus “ajudantes” ou muchachos (ver Introdução)461. Se
recuperamos a discussão sobre os “gradientes de orfandade”, onde tracei uma
correspondência entre a servidão e a orfandade radical, notamos que não há nas malocas
atuais pessoas que estabeleçam relações servis com seus chefes ou que possam ser
classificados como órfãos “puros” ou “ideais” (ver Figura 10). Cabe salientar (como o fiz no
cap. 4) que a orfandade “pura” ou “ideal” é uma posição que, na prática, não era ocupada
nem mesmo por servos ou cativos de guerra, uma vez que a própria vivência que
experimentavam na maloca que os acolhia, ainda que não gerasse laços de consanguinidade
ou afinidade, era entrecruzada por relações de corresidencia e relativa consubstancialidade
que, como em outras partes da Amazônia, contribuem para a construção de alguma relação
de parentesco462.

Porém, tal qual argumentei anteriormente, é necessário notar como a orfandade


radical nunca desapareceu do universo de possibilidades bora. Por um lado, a condição ideal
de orfandade pura ajuda-nos, enquanto conceito, a compreender a relação real entre chefes e
órfãos. Por outro, ela está presente nas narrativas míticas e nas reflexões nativas acerca do
lugar dos chefes no Tempo dos Animais e no Tempo da Abundância. Afirmei ainda que os
órfãos-puros ou órfãos-ideais seriam aqueles que, vivendo em uma maloca estrangeira, não
possuem ali nenhum tipo de parentesco previamente estabelecido, não são adotados por meio
de quaisquer relações de consanguinidade ou afinidade ou tampouco constroem em sua nova
maloca alguma relação de parentesco. Portanto, os órfãos-ideais, ao não possuírem parentes,

461
Em várias narrativas de origen que apresentei neste trabalho, o pessoal de um chefe é descrito ora como seus
“filhos”, ora como seus “servos”. Enquanto os primeiros compõem o conjunto de pessoas que pertencem ao
mesmo clã patrilinear que o chefe, acomodam-se na categoria de servos pessoas que vivem em uma maloca
sem possuir quaisquer relações prévias de parentesco com o chefe ou seu pessoal. Vimos que esse era o caso,
por exemplo, dos cativos de guerra que desapareceram no século XX após o abandono das práticas
antropofágicas.
462
Digo relativa consubstancialidade porque, mesmo nos dias de hoje, há notáveis diferenças alimentares entre
o pessoal de uma maloca e seus órfãos. É importante salientar que, como espero que já tenha ficado claro, viver
juntos e comer juntos entre os Bora não é suficiente para a construção de relações de parentesco legítimas.

413
Conclusão

estariam realmente sós no mundo463. Procurei mostrar também, no mesmo capítulo 4, como
essa posição é singular na medida em que os laços de parentesco com o pessoal de uma
maloca são a própria condição da constituição da humanidade completa de alguém. Com isso
em mente, ao pensarmos sobre a composição atual das malocas bora, poderíamos mesmo nos
perguntar se o caráter menos servil da relação entre chefes e órfãos nos dias atuais não seria
uma tentativa de deliberadamente alijar-se da possibilidade de convivência com órfãos
próximos àquilo que venho denominando como orfandade pura ou ideal. É possível que
indaguemos, ainda, em que medida esse afastamento guarda semelhança com as medidas
tomadas na segunda metade do século XX pelos Matis, que decidiram (ao menos por um
tempo) abandonar boa parte daquilo que pudesse os colocar em uma situação de
vulnerabilidade.

Digo isso porque, entre os Bora, cativos e servos, por não possuírem relações de
parentesco suficientemente estáveis com o pessoal da maloca que os acolhe, gozariam de
uma humanidade mais frágil, menos “verdadeira” (Londoño Sulkin, 2004) e, por
consequência, vicinal àquela dos animais. Em outras palavras, no passado um chefe, ao
resolver manter perto de si pessoas em condições próximas ao que denominei como
orfandade ideal (isto é, cativos de guerra, inimigos, servos não aparentados, etc.), devia ser
capaz de lidar com a latente possibilidade de que, em dado momento, se rompessem os tênues
laços que constituíam a humanidade desses órfãos.

Nessa chave de leitura, ao olharmos mais de perto a correlação que propus entre a
animalidade e a orfandade ideal (cf. cap. 4), percebemos que os espíritos-animais que antes
auxiliavam os xamãs, por sua própria condição de humanidade incompleta, foram extraídos
do universo das malocas no Tempo da Abundância. De maneira similar, aquelas pessoas que
mais se aproximavam da categoria de orfandade pura ou ideal também deixaram de existir.
Nesse processo, enquanto a relação entre chefes e órfãos passou a ser menos marcada pela
servidão, os espíritos-animais passaram a habitar o exterior da maloca. Entendo, assim, que
se no Tempo dos Animais xamãs e espíritos-animais estabeleciam relações de troca e se

463
A situação de “desamparo” decorrente da ausência de relações de parentesco foi notada por Gow entre os
Piro (2000) e parece ser semelhante àquela atribuída aos órfãos entre os Bora – principalmente quando se trata
de uma criança pequena que se encontra longe de seu pai legítimo.

414
Conclusão

comunicavam, no Tempo da Abundância todos os Bora se fixaram na posição de humanos


verdadeiros – enquanto os animais, como acabamos de ver, se encontram na posição de
predadores. A essa inconfortável situação na qual os humanos deveriam lidar a todo o
momento com as ofensivas predatórias dos animais, contrapõe-se o fato de que os chefes-
Garça são descritos atualmente, nas narrativas míticas e nos discursos políticos dos
mambeaderos, como os seres mais hábeis em derrotar os animais e seu potencial predador
por meio de práticas e substâncias frias.

Nos dias de hoje, a interação entre os pacíficos chefes-Garça e os espíritos-animais


predadores não passa, assim, pelo estabelecimento de relações de parentesco ou troca – e o
mesmo se estende às demais pessoas de uma maloca que se encontrem fixadas, desde o ponto
de vista de seus parentes e convivas, na posição de humanos verdadeiros. Ao contrário,
suspeito que chefes-Garça e seu pessoal buscam fazer com que os animais se fixem em
posição análoga àquela ocupada, no passado, por servos e cativos de guerra. Se a orfandade
pura e radical dos animais está intimamente relacionada a seus comportamentos agressivos,
quentes e causadores de doenças, colocá-los numa posição de servidão pode ser uma maneira
de controlar aqueles que buscam, a todo o tempo, predar os humanos verdadeiros.

Retomando os polos relacionais (proteção-feeding/controle-servidão) que nos


guiaram no capítulo 4 ao lidamos com as nuances da relação entre chefe e órfãos, vemos que
os humanos verdadeiros, ao serem capazes de exercer controle sobre a natureza por meio de
processos de defesa e esfriamento, podem por consequência contar com os animais à sua
disposição, consumindo-os sem que seja necessário negociar com seus mestres as condições
de suas atividades de caça – e, nesse sentido, os animais serviriam aos humanos. Dito de
outra maneira, nos dias de hoje os humanos podem consumir com fartura uma série de
alimentos porque eles mesmos se encontram na posição de chefe dos animais.

Vimos, no capítulo 1, como a oposição complementar entre chefia e orfandade é


anterior à chegada da Casa Arana no Caquetá-Putumayo. Porém, se a relação entre chefes e
órfãos não foi engendrada pelo contato com os caucheiros peruanos ou com os padres
capuchinhos, entendo que ela serviu de base para algumas transformações que se seguiram
entre os Bora após o contato com esses agentes. Encontrando-se numa situação de extrema
crise, os Bora parecem ter achado na narrativa cristã algo que ia ao encontro dos problemas

415
Conclusão

que lhes eram apresentados – algo que, por sua vez, talvez ilumine melhor nossa
compreensão sobre o discurso da não-conversão e da miopia do cristianismo dos padres
capuchinhos. Enquanto filhos legítimos do Tabaco (que os criou a partir de seu próprio
corpo), a leitura nativa da homilia cristã os permitia serem líderes dos animais, controlando
suas ações tal qual um chefe controla seus servos. Ainda que permanecessem agressivos,
dada a incompletude da humanidade de que gozam, os animais apenas causariam problemas
àqueles que não levassem uma vida fria e moralmente adequada (Londoño Sulkin, 2001). A
promoção da frialdade nas relações humanas, por sua vez, passa a ser incumbência central
dos chefes dos humanos – isto é, dos donos de maloca detentores de carreras titulares.
Assim, no Tempo da Abundância, enxergar determinadas ações de um chefe titular com um
meio para que seu próprio pessoal possa fixar-se na posição de chefe dos animais pode nos
ajudar a melhor perceber o esforço empreendido pelos Bora na fabricação de pessoas nessas
posições464.

Dessa maneira, a relação existente entre os chefes-Garça e os órfãos que compõem


seu pessoal parece se localizar na mesma grade relacional que aquela existente entre os
humanos e os animais. Porém, enquanto os chefes-Garça de hoje desejariam ter a seu redor
órfãos com os quais a relação de servidão não é tão marcada, os humanos buscariam
neutralizar ou combater a periculosidade e o calor dos animais controlando-os e fazendo que
eles fossem, enquanto alimentos saudáveis e frios, como seus servos. Isto nos leva a indagar,
portanto, se a relação entre chefia e orfandade não operaria, entre os Bora, como um modelo
relacional que extrapola o universo das relações entre os humanos. Sem que seja possível no
presente fornecer uma resposta definitiva a essa pergunta, já sabemos ao menos de que forma
tal modelo foi valorizado e reiterado no Tempo da Abundância e no correlato processo de
Amanhecer cujos caminhos procurei percorrer ao longo deste trabalho.

464
Vale lembrar que os chefes e donos de maloca podem temporariamente abrir mão de sua benevolência e
passividade quando se faz necessário, como é o caso da cura de doenças por meio de substâncias eficazes em
atacar os animais ou das investidas de Garça e do Bom-Orador contra, respectivamente, Cobra-Grande-da-
Guerra e Deus-dos-Animais

416
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435
Anexo 1
Inventaire du Fonds Guyot

Rapport d’activités - Septembre à Novembre / 2016

Maria Luísa Lucas


Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional
(UFRJ / Rio de Janeiro)

Legs Lelong 2015/2016 - Catégorie 2

Les tableaux ci-dessous sont une tentative de systématiser les données trouvées dans le Fonds Guyot.
Je présente d'abord un résumé de l'inventaire du Fond et les tables correspondantes pour chaque boîte
de fichier. Les noms de chaque document sont les mêmes que ceux trouvés dans les fichiers
numérisés.

Toute la systématisation suit la classification qui avait déjà été faite par M. Guyot et ceux qui ont
organisé leur matériel après qu'il soit déposé au EREA.

Les photos et les négatifs suivent également le code laissé par M. Guyot et peuvent être liés, la plupart
du temps, aux inventaires également numérisés.

Les enregistrements sont disponibles dans les website du CREM sur les liens suivants (où, pour
chaque enregistrement, est indiqué son titre et le document transcrit - boîte 3):

http://archives.crem-cnrs.fr/archives/collections/CNRSMH_I_2016_037/

http://archives.crem-cnrs.fr/archives/collections/CNRSMH_I_2016_038/

La taille approximative des fichiers numérisés au Fond Guyot est de 40,6 Go. Les fichiers et leurs
titres sont présentés en espagnol ou en français, selon les propres dossiers de M. Guyot.

436
Résumé du Inventaire

Contenu Général Information Autres informations


numérisé
Boîte 1 Mythes transcrites 89 Documents Mythes organisés de M1 à M75
(fg_b1) (Français et Espagnol) PDF
Boîte 2 3 dossiers avec 79 Documents Dossier 1 - Publications, Curriculum Vitae, Rapport
(fg_b2) documents divers PDF d’Activités, etc. ; Dossier 2 - Publications, Rapport
d’Activités, etc.; Dossier 3 - Notes personnels, Formulaires,
etc
Boîte 3 Transcription des 9 Documents Cahiers de terrain et matériel systématisé sur la transcription et
(fg_b3) chants rituels PDF traduction des chantes rituels
Boîte 4 Cahiers de terrain 16 Documents Cahiers de terrain avec informations sur parenté, organisation
(fg_b4) PDF social et mythologie
Boîte 5 4 dossiers avec 38 Documents Dossier 1 – Vocabulaire ;
(fg_b5) documents divers PDF Dossier 2 - Dessins, Dossier 3 - Exposition Neuchâtel ;
Dossier 4 - Sources d’Information sur le Caquetá-Putumayo

Boîte 6 Cahiers de terrain 21 Documents Cahiers de terrain avec informations sur mythologie et
(fg_b6) PDF linguistique
Boîte 7 Sources d’Information 45 Documents Sources d’information sur le Caquetá-Putumayo et ethnologie
(fg_b7) PDF en général
Boîte 8 2 dossiers de courrier 125 Documents Dossier 1 - Courrier Personnel ; Dossier 2 - Courrier Travail
(fg_b8) PDF
Boîte 9 2 dossiers avec 97 Documents Dossier 1 - Informations sur des fêtes et rituels Bora-Miraña ;
(fg_b9) documents divers PDF Dossier 2 - Notes de terrain divers
Boîte 10 Journaux de terrain 9 Documents 9 Journaux de terrain et 1 enveloppe avec insectes collecté au
(fg_b10) PDF terrain
Photos Photos systématisées 975 photos 975 photos en format négatif couleur, négatif monochrome,
1 en 7 dossiers selon format .TIF négatif positif et papier photographique
(fg_ph1) enveloppes et boîtes
déjà organisés par M.
Guyot
Photos Photos systématisées 906 photos 906 photos en format négatif couleur, négatif monochrome,
2 en 8 dossiers selon format .TIF, 2 négatif positif et papier photographique
(fg_ph2) enveloppes et boîtes documents .PDF
déjà organisés par M.
Guyot
Audio 1 12 Bandes 203 fichiers Fichiers disponibles en: http://archives.crem-
Magnétiques audio format cnrs.fr/archives/collections/CNRSMH_I_2016_037/ (Accès
.WAV restreint)
Audio 2 13 Bandes 13 fichiers audio Fichiers disponibles en: http://archives.crem-
Magnétiques format .WAV cnrs.fr/archives/collections/CNRSMH_I_2016_038/ (Accès
restreint)
Autres Catalogue sur ethno- 79 fichiers PDF Dossier 1 - Documents Divers ; Dossier 2 - Rapports; Dossier
* botanique, dessins, 3 - Sources d’information
(fg_aut) rapports et autres
documents (3 dossiers)
Total 2.704 documents (formats PDF, TIFF et WAV)

437
Boîte 1 (Mythes) - 89 documents .pdf

fg_b1_ Baile de Charapa


fg_b1_ Baile de Charapa (mito)
fg_b1_ Inventario de los mitos.pdf
fg_b1_ M1 .pdf
fg_b1_ M1.pdf
fg_b1_ M1b.pdf
fg_b1_ M2.pdf
fg_b1_ M3.pdf
fg_b1_ M4.pdf
fg_b1_ M5.pdf
fg_b1_ M6.pdf
fg_b1_ M7.pdf
fg_b1_ M8.pdf
fg_b1_ M9.pdf
fg_b1_ M10.pdf
fg_b1_ M11.pdf
fg_b1_ M12.pdf
fg_b1_ M13.pdf
fg_b1_ M14.pdf
fg_b1_ M15.pdf
fg_b1_ M16.pdf
fg_b1_ M17.pdf
fg_b1_ M19.pdf
fg_b1_ M20.pdf
fg_b1_ M21.pdf
fg_b1_ M22a.pdf
fg_b1_ M22b.pdf
fg_b1_ M22c.pdf
fg_b1_ M22d.pdf
fg_b1_ M23.pdf
fg_b1_ M24.pdf
fg_b1_ M25.pdf
fg_b1_ M26.pdf
fg_b1_ M27.pdf
fg_b1_ M28.pdf
fg_b1_ M29.pdf
fg_b1_ M30.pdf
fg_b1_ M31.pdf
fg_b1_ M32.pdf
fg_b1_ M32b.pdf
fg_b1_ M33.pdf
fg_b1_ M33b.pdf
fg_b1_ M34.pdf
fg_b1_ M35.pdf
fg_b1_ M36.pdf
fg_b1_ M37.pdf

438
fg_b1_ M38.pdf
fg_b1_ M39.pdf
fg_b1_ M40.pdf
fg_b1_ M41.pdf
fg_b1_ M42.pdf
fg_b1_ M43.pdf
fg_b1_ M44.pdf
fg_b1_ M45.pdf
fg_b1_ M46.pdf
fg_b1_ M46b.pdf
fg_b1_ M47.pdf
fg_b1_ M48.pdf
fg_b1_ M49.pdf
fg_b1_ M50.pdf
fg_b1_ M50b.pdf
fg_b1_ M51.pdf
fg_b1_ M52.pdf
fg_b1_ M53.pdf
fg_b1_ M54.pdf
fg_b1_ M55.pdf
fg_b1_ M56.pdf
fg_b1_ M57.pdf
fg_b1_ M58.pdf
fg_b1_ M59.pdf
fg_b1_ M60.pdf
fg_b1_ M61.pdf
fg_b1_ M62.pdf
fg_b1_ M63.pdf
fg_b1_ M65.pdf
fg_b1_ M66.pdf
fg_b1_ M67.pdf
fg_b1_ M68.pdf
fg_b1_ M69.pdf
fg_b1_ M70.pdf
fg_b1_ M71.pdf
fg_b1_ M72.pdf
fg_b1_ M73.pdf
fg_b1_ M74.pdf
fg_b1_ M75.pdf
fg_b1_ M75b.pdf
fg_b1_ M75c.pdf
fg_b1_ M75d.pdf
fg_b1_ Mito Origen del Chontaduro (Benito y José Ramón)

Boîte 2 - 79 documents .pdf


Dossier 1
fg_b2_d1_ Cantos del Hacha
fg_b2_d1_ Cantos del Hacha B
fg_b2_d1_ Coleccion Witoto

439
fg_b2_d1_ Collection Witoto
fg_b2_d1_ Culture sur brulis et evolution du millieu forestier en Amazonie du Nord-Ouest
fg_b2_d1_ Curriculum Vitae
fg_b2_d1_ Descrição Objetos
fg_b2_d1_ Documentation linquistique mise à la disposition de l'ERA-431 par Mireille Guyot
fg_b2_d1_ Enquete dans la region du Moyen-Caquetá
fg_b2_d1_ Historique succint de la recherche et de la participation personelle au programme de la RCP
316
fg_b2_d1_ Investigacion en la área del Medio-Caqueta
fg_b2_d1_ L'horticulture Witoto
fg_b2_d1_ Le Masculin et le Féminin dans la Société des Indiens Bora-Miraña
fg_b2_d1_ Mission ethnographique
fg_b2_d1_ Mito Origen del Chontaduro (Benito y José Ramón)
fg_b2_d1_ Noticia - Mito dos índios Miraña
fg_b2_d1_ Problèmes poses par l'enquete sur le terrain
fg_b2_d1_ Projet Mireille Guyot
fg_b2_d1_ Publications
fg_b2_d1_ Rapport d'Activités 1973-1976
fg_b2_d1_ Rapport d'Activités 1977-1978
fg_b2_d1_ Rapport d'Activités 1978-1979
fg_b2_d1_ Rapport d'Activites 1979-1980
fg_b2_d1_ Rapport d'Activites 1981-1982
fg_b2_d1_ Resenha - Terre du Feu
fg_b2_d1_ Resenha - Terre du Feu (Needham)
fg_b2_d1_ Resenha - Terre du Feu 2
fg_b2_d1_ Resenha - Terre du Feu 3
fg_b2_d1_ Resenha - Terre du Feu 4

Dossier 2
fg_b2_d2_ Actividades realizadas de noviembre de 1977 a noviembre de 1978
fg_b2_d2_ Actividades realizadas en 1978 en la cuenca del Ampiyacu entre los Bora
fg_b2_d2_ Actividades realizadas en 1978 en la cuenca del Ampiyacu entre los Bora C
fg_b2_d2_ Actividades realizadas en 1978 en la cuenca del Ampiyacu entre los Bora D
fg_b2_d2_ Actividades realizdas en 1978 en la cuenca del Ampiyacu entre los Bora B
fg_b2_d2_ Amazonia en Suiza/ La responsabilidad de la investigacion extranjera en Colombia
fg_b2_d2_ Compte rendu de la deuxieme phase de recherches pluridisciplinaires sur le terrain 1977-
1978
fg_b2_d2_ Culture sur brûlis et évolution du milieu forestier en Amazonie du NO
fg_b2_d2_ El cultivo de corte y quema y la evolución del medio forestal en el Noroeste amazonico
fg_b2_d2_ El cultivo de Corte y Quema y la Evolución del Medio Forestal en la Amazonia del
Noroeste
fg_b2_d2_ Influencia de las tecnicas de cultivo Bora sobre la herpetofauna (Informa Miguel Rodriguez
y Jean Lescure)
fg_b2_d2_ Informe Oscar Paredes
fg_b2_d2_ Informe preliminar 1977
fg_b2_d2_ Informe preliminar Agosto-Septimebre 1977
fg_b2_d2_ La explotación de madera por los Bora
fg_b2_d2_ Lista de chacras
fg_b2_d2_ Los Bora del Ampiyacu (JP Razon)
fg_b2_d2_ Mapas

440
fg_b2_d2_ Museo de la Esclavitud Negra en Colombia y Museo Afro-Americano de Historia y Cultura
en Filadelfia
fg_b2_d2_ Problemas de la educacion en Colonia
fg_b2_d2_ Propositions por l'organisation du travail dans le cadre du programme de recherche
fg_b2_d2_ Quelques réaction en vrac à la lecture de votre texte
fg_b2_d2_ Rapport d'Activité 1977-1978 Mission au Pérou
fg_b2_d2_ Rapport d'Activité pour 1978 et 1977 A
fg_b2_d2_ Rapport d'Activités pour 1978 et 1977 B
fg_b2_d2_ Rapport d§ Activité pour 1978 et 1977
fg_b2_d2_ Récapitulation des activités de la RCP 316 depuis sa création en 1973
fg_b2_d2_ Resumé Informe Oscar Paredes
fg_b2_d2_ Resumen Esquematico de las Actividades Realizadas en la Primera Fase Pedologica de
Investigacion en las Cuencas de los Rios Yubineto y Ampiyacu 1978
fg_b2_d2_ Suelos Ampiyacu

Dossier 3
fg_b2_d3_ Apuntes Generales
fg_b2_d3_ Apuntes Generales B
fg_b2_d3_ Apuntes Generales C
fg_b2_d3_ Atlas Ethno-Arqueologique D'Amerique du Sud
fg_b2_d3_ Bibliographie sur l'agriculture sur brûlis en Amérique du Sud
fg_b2_d3_ Deuxième partie du travail (à écire prochainement)
fg_b2_d3_ El rol de la mujer campesina quechua (Irene Nuñez)
fg_b2_d3_ Exposé de M. Michel Jouin (Compte Rendu de mission au Haut-Xingu)
fg_b2_d3_ Formulário de Coleta de Dados
fg_b2_d3_ Formulário de Coleta de Dados B
fg_b2_d3_ La Création (Preuss 1)
fg_b2_d3_ La Genese (Witoto)
fg_b2_d3_ Mythe de Llijchurï
fg_b2_d3_ Notes pour le séminaire
fg_b2_d3_ Notes Seminaire 1973
fg_b2_d3_ Parenté (Machiguenga?)
fg_b2_d3_ Plan de la grille pour le fichier sur l'agriculture sur brûlis
fg_b2_d3_ Poxe Pino (Alto Rio Negro)
fg_b2_d3_ Rapport Scientifique 1977-1978
fg_b2_d3_ Seminaire 1980
fg_b2_d3_ Seminaire 1980 B

Boîte 3 (Musique) - 9 documents .pdf


fg_b3_ C1 - Cantos Miraña
fg_b3_ C2 - Cantos Miraña
fg_b3_ C3 - M2 - Mitos Miraña
fg_b3_ Cantos 1
fg_b3_ Chants Bora
fg_b3_ Inventário Bandas Gravadas
fg_b3_ Musique Bora 1-26
fg_b3_ Musique Bora Diversos
fg_b3_ Unção de "dïri"

441
Boîte 4 (Cahiers de terrain) - 16 documents .pdf
fg_b4_ Animaux
fg_b4_ Boras Colonia - M 58, 59, 60, 61, 62, 63
fg_b4_ Cahier Rouge Bora.pdf
fg_b4_ Cantos Avulsos
fg_b4_ Colonia - 1978
fg_b4_ Colonia 1981
fg_b4_ Familias y casas - Grupos Miraña - La Maloca - Chacras, rastrojo, selva - M5
fg_b4_ Hojas Avulsas
fg_b4_ Inventaire des Objects et Produits por le Terrain
fg_b4_ Liste de Swadesh
fg_b4_ M2
fg_b4_ M3 Mitos Miraña
fg_b4_ Mitos 1 Miraña 1975
fg_b4_ Mitos 2 - M 64 e M65
fg_b4_ Mitos 2 Miraña 1975
fg_b4_ Plantas

Boîte 5 - 38 documents .pdf


Dossier 1
fg_b5_d1_ Vocabulario Bora - Castellano
Dossier 2
fg_b5_d2_ Dibujos
Dossier 3 (Exposition Neuchâtel)
fg_b5_d3_ Apuntes + Collection Bora-Miraña du Musée d'Ethnografie de Bâle
fg_b5_d3_ Apuntes Exposition
fg_b5_d3_ Apuntes Generales
fg_b5_d3_ Cartas
fg_b5_d3_ Chant La Luciole
fg_b5_d3_ Collection Witoto-Bora (Gasché-Guyot)
fg_b5_d3_ Espace 3
fg_b5_d3_ Inventaire Collection Witoto-Bora-Miraña-Ocaina-Muinani
fg_b5_d3_ Objets bora-miraña
fg_b5_d3_ Photos et Diapositives
fg_b5_d3_ Propositions de quelques idées a resilier dans l'EXPO
fg_b5_d3_ Quelques idées pour un scénario d'exposition
fg_b5_d3_ Réunion du mercredi 27/11/74
fg_b5_d3_ Suggestions pour mettre en parallèle avec les objects et la pensés indigènes présentés
certains "dires"de notre société
fg_b5_d3_ Table des Matiers
Dossier 4 (Sources d’informations)
fg_b5_d4_ Apuntes - Les Héros Culturel
fg_b5_d4_ Apuntes Bibliografia
fg_b5_d4_ Apuntes de Lectura
fg_b5_d4_ Apuntes Generales B
fg_b5_d4_ Apuntes HBSA
fg_b5_d4_ Caracterizacion y Cambios Fisico-Quimicos Producidos por Alteración del Ecosistema en
los Suelos del Igaraparana (Amazonia Colombiana)
fg_b5_d4_ Daryll Forde - The Boro (Fichamento Maloca)
fg_b5_d4_ Daryll Forde - The Boro (Fichamento)
442
fg_b5_d4_ Departamento de Loreto - Viajes i exploraciones, tercera parte - inmigración i
colonización
fg_b5_d4_ Die Miranhas
fg_b5_d4_ HBSA
fg_b5_d4_ Koch-Grunberg - Die Miranya
fg_b5_d4_ Manioc
fg_b5_d4_ Manioc B
fg_b5_d4_ Marcoy Paul - Le Tour du Monde
fg_b5_d4_ Martius - Fichamento
fg_b5_d4_ Rivet - Affinités du Miranya
fg_b5_d4_ Rivet - Affinités du Miranya B
fg_b5_d4_ Situation Geographique
fg_b5_d4_ Whifen (Fragmento)
fg_b5_d4_ Whiffen 1915 - Apuntes

Boîte 6 (Cahiers de terrain) - 21 documents .pdf


fg_b6_ Anexo Mitos 3 .pdf
fg_b6_ Brillo Nuevo - Colonia 1981, 1982
fg_b6_ Brillo Nuevo 1981
fg_b6_ Cahier O'ioi - Raul Teteye
fg_b6_ Cantos C1 a C202
fg_b6_ Cantos II
fg_b6_ Chimatsi Jean-Patrick
fg_b6_ Colonia 1981
fg_b6_ Linguistique 3 - Cantos - Mitos Fin 4
fg_b6_ Linguistique Bora n. 1
fg_b6_ Linguistique Bora n. 2
fg_b6_ M1 - Mythes Miraña
fg_b6_ M3 Colonia
fg_b6_ M4 . Notes Jean-Baptiste
fg_b6_ M4 Colonia
fg_b6_ M5 Colonia
fg_b6_ Mitos 3 - Bora - M5-140
fg_b6_ Mitos 4 - Bora M145 - 304
fg_b6_ Mitos Bora 5 - M305-498
fg_b6_ Mythes Bora - Providencia - Set. Out. 1989
fg_b6_ Mythes Bora Providencia II

Boîte 7 (Sources d’information) - 45 documents .pdf


fg_b7_ ARGUEDAS, J. La Agonia de Rasu Ñiti
fg_b7_ Bamberger, J. Naming and the Transmission of Status in a Central Brazilian Society.
fg_b7_ BARRAU, J., GASC, J-P. L'histoire naturelee aujourd'hui?
fg_b7_ BASTIDE, R. La Pensée Symbolique
fg_b7_ BASTIDE, R. Le Probleme des Mutations Religieuses
fg_b7_ BOITEAU, P, SASTRE, C. Sue l'arille des Macoubea et la Classification de la sous-famille des
Taberneae Montanoidées
fg_b7_ Budowski, G. Scientific Imperialism
fg_b7_ CARNEIRO, R. Hunting and Hunting Magic Among the Amahuaca of the Peruvian Montaña

443
fg_b7_ CARNEIRO, R. Slash-and-Burn Cultivation among the Kuikuru and its implications for Cultural
Development in the Amazon Basin
fg_b7_ Carta e Capa Livro Michel Perrin
fg_b7_ CHAPMAN, A. Lupire, fille de la montagne
fg_b7_ Delvert, J. Une contribution fondamentale à l'étude de la culture sur brûlis en pays tropical
fg_b7_ Folha perdida Godelier
fg_b7_ Fragmento Bastide 1966
fg_b7_ FRIGOUT, A. Le repos des nuages
fg_b7_ FULOP, M. Aspectos de la Cultura Tukana/ Cosmogonía
fg_b7_ GASC, J-P. A Propos du Concept d'Adaptation
fg_b7_ GASCHÉ, J. Reflexions sur la pertinence politique du problème de la division sexuelle du travail
fg_b7_ GODELIER, M. Économie Politique et Anthropologie Économique/ a propos des Siane de
Nouvelle-Guinée
fg_b7_ JARA, A. Salario en una Economía Caracterizada por las Relaciones de Dependencia Personal
fg_b7_ Jornais 1.pdf
fg_b7_ Jornais 3
fg_b7_ Jornais 4 + Levi-Strauss
fg_b7_ Journais 2
fg_b7_ KARUKINKA. Cuaderno Fueguino. Enero 1976
fg_b7_ La tête dedans - Mythes, récits, contes, poèmes des Indiens d'Amérique latine (Baldran,
Jacqueline et Bareiro-Saguier, Ruben) 1980
fg_b7_ Latin American Digest, Vol 11, No. 2 1977
fg_b7_ LEIRIS, M. Miroirs a Pèlerins
fg_b7_ Ley de Comunidades Nativas y de Promoción Agropecuaria de las Regiones de Selva y Ceja de
Selva, 1974
fg_b7_ Mapa Lima
fg_b7_ MURRA, J. L'Étude de Huánuco-Viejo/ une expérience interdisciplinaire
fg_b7_ RAPPAPORT, R. Nature, Culture, and Ecological Anthropology
fg_b7_ RAULIN, H. Folklore et Ethnologie/ a propos de cérémonies agraires dans les Alpes du Nord
fg_b7_ RAULIN, H. Le droit des personnes et de la famille en Cote d'Ivoire
fg_b7_ RAULIN, H. Notes et Matériaux/ notes sur les Martinets
fg_b7_ REICHEL-DOLMATOFF, G. Cosmology as Ecological Analysis/ a view from the rain forest
fg_b7_ REICHEL0DOLMATOFF, G. Desana Curing Spells/ an Analysis of Some Shamanistic
Metaphors
fg_b7_ SACCHETTI, A. Forme mandaliche nem mondo andino
fg_b7_ SACCHETTI, A. Il contributo italiano alla proclamazione dei diriti delle popolazioni indigene
americane
fg_b7_ Schelesier, K. The Strategy of the Southern Cheyenne Action Anthropology
fg_b7_ SCHINDLER, H. Los Guayabero en el Oriente de Colombia
fg_b7_ SIMONI, M. La femme dans 'Amérique Précolombienne
fg_b7_ THERY, H. Pourquoi l'Amazonie? Presentation d'une Recherche et d'un Espace
fg_b7_ TUAN, Y. Environmental Psychology/ a Review
fg_b7_ VARGAS, H., PINEDA, R. Etnohistória del Gran Caquetá (siglos XVI-XIX)

Boîte 8 (Courrier) - 125 documents .pdf


Dossier 1 - Personel
fg_b8_d1_ ARGUEDAS, J. La Agonia de Rasu Ñiti
fg_b8_d1_ Apuntes Generales
fg_b8_d1_ Carta 1974b
fg_b8_d1_ Carta 1968

444
fg_b8_d1_ Foto ?
fg_b8_d1_ Carta 1979c
fg_b8_d1_ Carta 1973 (Kuiru)
fg_b8_d1_ Carta 1981b
fg_b8_d1_ Carta 1982
fg_b8_d1_ Carta Hugo Riveros
fg_b8_d1_ Carta 1970 (La Chorrera)
fg_b8_d1_ Carta 1970 (Leguizamo)
fg_b8_d1_ Carta 1981 (Estiron)
fg_b8_d1_ Carta 1979
fg_b8_d1_ Carta 1980b
fg_b8_d1_ Carta 1981
fg_b8_d1_ Carta 1980
fg_b8_d1_ Carta 1974
fg_b8_d1_ Fichamento Jackobson
fg_b8_d1_ Projet Scientifique
Dossier 2 - Travail
fg_b8_d2_ Carta (Quién?) 1976
fg_b8_d2_ Carta 1974c
fg_b8_d2_ Carta 1976
fg_b8_d2_ Carta 1979b
fg_b8_d2_ Carta Abierta Sociedad Antropologica de Colombia 1975
fg_b8_d2_ Carta Ambassade de Suisse en Colombie
fg_b8_d2_ Carta Ambassade du Pérou
fg_b8_d2_ Carta CIDINT (Centro Interamericano de Desarollo Integral de Aguas y Tierras)
fg_b8_d2_ Carta Conrado
fg_b8_d2_ Carta Conseiller Culturel - Ambassade de France
fg_b8_d2_ Carta Conseiller Culturel - Ambassade de Suisse (Borrador)
fg_b8_d2_ Carta Conseiller Culturel de l'Ambassade de Suisse
fg_b8_d2_ Carta Coopération au Développément
fg_b8_d2_ Carta Dimas Malagón
fg_b8_d2_ Carta Director del Instituto Colombiano de Antropologia
fg_b8_d2_ Carta Enrique Miraña.pdf
fg_b8_d2_ Carta FNSRS
fg_b8_d2_ Carta Instituo Colombiano de Antropologia 1976
fg_b8_d2_ Carta Instituto Colombiano de Antropología
fg_b8_d2_ Carta Jasché au CNRS
fg_b8_d2_ Carta John Murra
fg_b8_d2_ Carta Laboratoire de Phanérogamie B
fg_b8_d2_ Carta Laboratoire de Phanérogamie C
fg_b8_d2_ Carta Laboratoire de Phanérogamie D
fg_b8_d2_ Carta Laboratoire de Phanérogamie E
fg_b8_d2_ Carta Laboratoire de Phanérogamie F
fg_b8_d2_ Carta Lévi-Strauss
fg_b8_d2_ Carta Lévi-Strauss B
fg_b8_d2_ Carta M. Hotz (FNRS)
fg_b8_d2_ Carta Musée de L'Homme (Jean Guiart)
fg_b8_d2_ Carta Musée de L'Homme B
fg_b8_d2_ Carta Musée de L'Homme C
fg_b8_d2_ Carta Oscar
445
fg_b8_d2_ Carta Reicheil-Dolmatoff
fg_b8_d2_ Carta Reichel-Dolmatoff B
fg_b8_d2_ Carta Salvador
fg_b8_d2_ Carta Survival International
fg_b8_d2_ Carta Survival International B
fg_b8_d2_ Carta Winsconsin f
fg_b8_d2_ Carta Wisconsin
fg_b8_d2_ Carta Wisconsin b
fg_b8_d2_ Carta Wisconsin c
fg_b8_d2_ Carta Wisconsin e
fg_b8_d2_ Cartão Postal
fg_b8_d2_ Cartas Fran-Marie (IFEA)
fg_b8_d2_ Cartas Musée de L'Homme e Laboiratoire de P.
fg_b8_d2_ Cartas Oscar B
fg_b8_d2_ Centre Technique du Bois
fg_b8_d2_ Director del Instituto Colombiano de Antropologia (1977)
fg_b8_d2_ Documento en Japonés
fg_b8_d2_ Dr. Hödl (Zoologisches Institut) B
fg_b8_d2_ Dr. Höld (Zoologisches Institut)
fg_b8_d2_ Dr. Parodi (Zona Agraria Octava - Ministerio de Agricultura)
fg_b8_d2_ Dr. Parodi (Zona Agraria Octava - Ministerio de Agricultura) B
fg_b8_d2_ École de Pharmacie
fg_b8_d2_ Fond National Suisse de La Recherche Scientifique
fg_b8_d2_ Fond National Suisse de la Recherche Scientifique 1976
fg_b8_d2_ Hortz (FNSRS)
fg_b8_d2_ Importateur de tronçonneuses DANARM
fg_b8_d2_ Institut de Botanique
fg_b8_d2_ Inventário Bandas Gravadas
fg_b8_d2_ Investigacion Antropologica Extrangera en Colombia
fg_b8_d2_ La Tenquita (raconté par Polonia Gonzalez de Colchagua)
fg_b8_d2_ Laboratoire de Phanérogamie
fg_b8_d2_ Laboratoire de Phanérogamie B
fg_b8_d2_ LAS / Collége de France
fg_b8_d2_ Memorandum Investigación
fg_b8_d2_ Monsieu Oldman B
fg_b8_d2_ Monsieur Jean Gabus (Directeur du Musée d'Ethnographie)
fg_b8_d2_ Monsieur JPG, Centre ORSTOM de Cayenne
fg_b8_d2_ Monsieur Oldman
fg_b8_d2_ Monsieur Oldman C
fg_b8_d2_ Monsieur Reverdin (FNSRS)
fg_b8_d2_ Notas Reunión 13.10.76
fg_b8_d2_ Noticia Chirif y Carlos Mora (Niawa)
fg_b8_d2_ Ordre de Mision CNRS
fg_b8_d2_ Ordre de Mission de Mireille Guyot
fg_b8_d2_ Ouverture de Crédit Fonds National Suisse de la Recherche Scientifique
fg_b8_d2_ Permiso Instituto Colombiano de Antropologia
fg_b8_d2_ Programme Belaunde pour la Selva 1980
fg_b8_d2_ Programme de Travail 1978
fg_b8_d2_ Progress Report for the Period 1981
fg_b8_d2_ Projet Scientifique (cont.)
446
fg_b8_d2_ Propositions pour l'organisation du travail dans le cadre de notre programme
fg_b8_d2_ Propositions pour l'organisation du travail dans le cadre du programme
fg_b8_d2_ Rapport au Fond National Suisse
fg_b8_d2_ Recherche Cooperative sur Programme 316 (Culture sur brûlis ... )
fg_b8_d2_ Recibos Bancários
fg_b8_d2_ Réponse Fran-Marie (IFEA)
fg_b8_d2_ Resolución Instituto Colombiano de Cultura
fg_b8_d2_ Respuesta a Nina Friedemann (ver Micronoticias Enero 1976)
fg_b8_d2_ Respuesta a Nina Friedmann (ver Micronoticias , enero 1976)
fg_b8_d2_ Resumé RCP 316/ Culture sur brûlis et évolution du milieu forestier en Amazonie du NO
fg_b8_d2_ Reunión de la RCP 316 1976
fg_b8_d2_ Reunión de la RCP 316 Janvier 1976
fg_b8_d2_ Reunión de la RCP 316 Septembre 1976
fg_b8_d2_ Reunión RCP 316 Janvier B
fg_b8_d2_ Reunion RCP 316 Janvier C
fg_b8_d2_ Reunion RCP 316 Janvier D
fg_b8_d2_ Reunón de RCP 1997 - Propos en vrac
fg_b8_d2_ Siegfried, A. - L'ame des peuples
fg_b8_d2_ Solicitud de Cooperacion Tecnica Internacional
fg_b8_d2_ Télégramme Instituto Colombiano de Antropología
fg_b8_d2_ Universidad Nacional Mayor de San Marcos
fg_b8_d2_ Universidad Nacional Mayor de San Marcos B

Boîte 9 - 97 documents .pdf


Dossier 1 - Fêtes
fg_b9_d1_ Apuntes Generales B
fg_b9_d1_ Apuntes sobre Bailes
fg_b9_d1_ Apuntes sobre Bailes y Mitos
fg_b9_d1_ Apuntes sobre Scheneider
fg_b9_d1_ Baile de Allóoco
fg_b9_d1_ Baile de Apújco
fg_b9_d1_ Baile de Baaha
fg_b9_d1_ Baile de Llaacomi
fg_b9_d1_ Baile de Llaaríwa
fg_b9_d1_ Baile de Pichohpa
fg_b9_d1_ Baile de Tolliwaha
fg_b9_d1_ Baile de Ujcutso
fg_b9_d1_ Bal de Chontaduro Yukuna
fg_b9_d1_ Canoes
fg_b9_d1_ Equivalences Semantiques
fg_b9_d1_ Fiestas Miraña
fg_b9_d1_ Hierarchie des fêtes
fg_b9_d1_ Hierarchie des fêtes (Miraña)
fg_b9_d1_ Le Bal de Chontaduro - Bora et Miraña
fg_b9_d1_ Le Bal de Chontaduro - Yukuna
fg_b9_d1_ Meemeba, ferte de chontaduro (Yukuna x Bora)
fg_b9_d1_ Pineda - El Baile de los Pescados, o el Rito de Chontaduro dentro de los Indigenas
Andoques del Caquetá
fg_b9_d1_ Plan de Travail

447
fg_b9_d1_ Relacciones Mitos y Bailes
Dossier 2
fg_b9_d2_ Le corps humain miraña (métaphores)
fg_b9_d2_ Apuntes Parentesco
fg_b9_d2_ Fichamento Collier Richard
fg_b9_d2_ Vida de Luis Miraña
fg_b9_d2_ Creation
fg_b9_d2_ Notes sur la création du monde
fg_b9_d2_ Journal, jeudi 29/11/73 (horizontal x vertical)
fg_b9_d2_ Déluges de feu
fg_b9_d2_ Borrador - La influencia de los misioneros
fg_b9_d2_ Fichamento técnica prehistórica para cortar árboles
fg_b9_d2_ Noms que les Bora et Miraña donnent à leus voisins
fg_b9_d2_ La Chasse en Amazonie
fg_b9_d2_ Carte du Bassin du rio Cahuinari
fg_b9_d2_ Mythes Miraña - Index
fg_b9_d2_ Mythes Bora - Index
fg_b9_d2_ Dibujos
fg_b9_d2_ Indigène x Monde Industriel
fg_b9_d2_ Apuntes Generales
fg_b9_d2_ Acculturation/Indiens Bora, Putumayo-Caquetá
fg_b9_d2_ Comparaison entre trois mythes récités en Colombie et au Pérou
fg_b9_d2_ Groupes Exogamiques Connus
fg_b9_d2_ Relations Groupes-animaux-plantes
fg_b9_d2_ Caracterización Bora
fg_b9_d2_ Fragmento M. de la Condamine, 1745
fg_b9_d2_ Enquête faite sur les Amphibiens courants du moyen Caquetá et du rio Yahuasyacu
fg_b9_d2_ Espécies Comestíveis
fg_b9_d2_ Apuntes Reunión
fg_b9_d2_ Colonia - Animales Recojidos por Patricio
fg_b9_d2_ Commentaire au dessin de plantation de chacra à Colonia, 1978
fg_b9_d2_ Enquête Ethno-pedologique (Ampiyacu)
fg_b9_d2_ Informe CCNN Bora de Colonia y Brillo Nuevo
fg_b9_d2_ Informe complementario CCNN Bora de Colonia y Brillo Nuevo
fg_b9_d2_ M18 - 1ère génération
fg_b9_d2_ M18
fg_b9_d2_ Structure, continuité et réajustements chez les indiens Bora y Miraña
fg_b9_d2_ Parenté Bora
fg_b9_d2_ Whiffen's Map
fg_b9_d2_ Apuntes Generales B
fg_b9_d2_ Noms de Groupes
fg_b9_d2_ Nombres Canangucho
fg_b9_d2_ Nombres Caimo
fg_b9_d2_ Nombres Tamarinos
fg_b9_d2_ Nombres Guacamayo-Rojo
fg_b9_d2_ Nombres Chucha
fg_b9_d2_ Nombres Venados
fg_b9_d2_ Nombres Gavilán
fg_b9_d2_ Nombres Chupadores de Fruta (?)
fg_b9_d2_ Nombres Oso-Hormiguero
448
fg_b9_d2_ Nombres Chontaduro
fg_b9_d2_ Nombres Gente de un laguito del Cahuinari (?)
fg_b9_d2_ Nombres Loritos Pequeños
fg_b9_d2_ MX-M266N_20160927_165021.pdf
fg_b9_d2_ Bora de La Sabana
fg_b9_d2_ Encuesta linguistica
fg_b9_d2_ Forêt primaire
fg_b9_d2_ Mythe du Caquetá
fg_b9_d2_ Situation actuelle et origine des groups
fg_b9_d2_ Mapa Clanes
fg_b9_d2_ Organisation des groups exogamiques
fg_b9_d2_ Le systeme cultural bora-miraña
fg_b9_d2_ Notícias Antiguas
fg_b9_d2_ Apuntes reunión Programa de Apoyo a comunidades nativas
fg_b9_d2_ Apuntes Generales - Censo
fg_b9_d2_ Apuntes Generales C
fg_b9_d2_ Correspondance Clan-Vegetal-Animal-etc.
fg_b9_d2_ Colonia, Cuenca del Ampiyacu - Indiens Bora
fg_b9_d2_ Colonia Yahuasyacu
fg_b9_d2_ Cycle Annuel (Ecologie)
fg_b9_d2_ "Rastrojo"
fg_b9_d2_ Chacras
fg_b9_d2_ Ethno-botanique et ethno-zoologie/thème de la RCP
fg_b9_d2_ Ciclo Anual (Ecología)
fg_b9_d2_ Dibujo Personal

Boîte 10 (Cahiers de terrain) - 9 documents .pdf


fg_b10_ Insects
fg_b10_ Journal 1 - Janv. 1969
fg_b10_ Journal 2 - Set. 1969
fg_b10_ Journal 3 - 1973 1974.pdf
fg_b10_ Journal 3 - Fev. 1970
fg_b10_ Journal 3 - Mars 1970
fg_b10_ Petit Journals
fg_b10_ Resumé Fond Cahier Bleu.pdf
fg_b10_ Table de Matiers Résumé Fond - Cahier Bleu.pdf

Boîte Autres - 79 documents .pdf


Dossier 1 – Sources d’information
fg_aut_d1_ BACHELARD, G. - La poétique de l'éspace (Fichamento)
fg_aut_d1_ BAER, G. - The pahotko-masks od the Piro (Eastern Peru)
fg_aut_d1_ BARBOTIN, P. - Tentative d'explication de la forme et du volume des haches
precolombiennes
fg_aut_d1_ BERTHE, L - Âines et Cadets L'alliance et la Hiérarchie chez les Baduj, Java occidental
fg_aut_d1_ BOLENS, J. - Mythe de Jurupari Introduction a une analyse
fg_aut_d1_ CHAPMAN, A. - La fin d'un monde
fg_aut_d1_ COOPET, ELIET e PANOFF - Esquisse pour un glossaire de la parenté
fg_aut_d1_ COSTER, M. - L'acculturation
fg_aut_d1_ DELUZ, A. - L'initiation d'un chamane embera
449
fg_aut_d1_ DEVEREUX, F. Considérations Ethnopsychanalytiques sur la notion de parenté
fg_aut_d1_ DORST, J. - Problèmes actuels de la biosphère
fg_aut_d1_ DUMONT, L. - Hiérarchie et Alliance
fg_aut_d1_ EKHOLM, G. - The Archaelogical Significance of Mirrors in the New World
fg_aut_d1_ EMBER, EMBER. - Conditions Favoring Matrilocal Versus Patrilocal Residence
fg_aut_d1_ FORDE, D. - The Boro of the Western Amazon Forest
fg_aut_d1_ GASCHÉ, J - Exposé sur "Le concept de l'adaptation en biologie"
fg_aut_d1_ GASCHÉ, J. L'utilisation du concept d'adaptation dans les sciences humaines
fg_aut_d1_ GIRARD, R. - Mito de Origen de la Humanidad y Cultura Bora
fg_aut_d1_ GIRARD, R. Indios Selváticos de la Amazonia Peruana (Fichamento)
fg_aut_d1_ GRENAND, P. - Deux nouvelles versions du mythe des jumeaux chez les Wayãpi de
Guyane
fg_aut_d1_ HARDENBURG, W. - The Putumayo ... - Fichamento
fg_aut_d1_ HARTMANN, G. Tribus 19 1970 - Masks
fg_aut_d1_ JIMENEZ, A. Bora au Putumayo
fg_aut_d1_ KIRENHOFF, P - Die Uitoto-Boragruppe Uitoto, Bora, Okaina, Muinane
fg_aut_d1_ La Baie James des Amérindiens (Fichamento)
fg_aut_d1_ LEIRIS, M. - Mazmur le clerc
fg_aut_d1_ LELONG, B. - Art de vivre et philosophie des sociétés amazoniennes
fg_aut_d1_ Levantamento biliográfico Guyot
fg_aut_d1_ LLOSE, J. - La imagen del mundo en el antiguo Perú
fg_aut_d1_ MÉTRAUX, A. - Le Bâton de Rythme
fg_aut_d1_ RODAS, P. - El caucho en la selva amazónica
fg_aut_d1_ ROUSSEAU, J. - La Caractérologie du Blanc dans la Perspective amérindienne
fg_aut_d1_ SORENSEN, A. - Multilingual in the northewest Amazon
fg_aut_d1_ WHIFFEN - Fichamento
fg_aut_d1_ LEVI-STRAUSS - Le masque
fg_aut_d1_ REICHEL-DOLMATOFF - El contexto cultural de un aluciogeno aborigen - banisteriopsis
caapi
fg_aut_d1_ COBO - Hisotira del Nuevo Mundo
fg_aut_d1_ RODRIGUZ TENA - Introducion al aparato de la cronica de la santa provindia de los doce
apostoles
fg_aut_d1_ RODRIGUEZ TENA- Descalzos
fg_aut_d1_ CALLE - El processo de aculturacion y el equilibrio ecologico de las culturas amazonicas
fg_aut_d1_ VARESE - Situacion y problematica antropologica de los territorios missionales en el
oriente peruano
fg_aut_d1_ CIVRIEUX - Cumanagoto, a network of modern confusion
fg_aut_d1_ LELONG - La conquete continue
fg_aut_d1_ VARESE - La mision, las sociedades indigenas y su liberacion
fg_aut_d1_ La organizacion social de las comunidades Huitoto y Ocaina del rio Ampiyacu - Jurg
Gasché
fg_aut_d1_ VARESE - Situacion Anthropologique des Territoires de Mission du Perou Oriental
fg_aut_d1_ VARESE - Estrategia étnica o estrategia de clase
fg_aut_d1_ GUARIN - La societé moderne plus avancée que la societé primitive?
fg_aut_d1_ Le rôle de l'etat dans le processus de developpement
Dossier 2 – Documents Divers
fg_aut_d2_ Dessins 1
fg_aut_d2_ Dessins 2
fg_aut_d2_ Ethnobotanique A - C
fg_aut_d2_ Ethnobotanique E - L
fg_aut_d2_ Ethnobotanique M - P
450
fg_aut_d2_ Ethnobotanique Q - S
fg_aut_d2_ Ethnobotanique T - Z
fg_aut_d2_ Buchisapillo n. 4
fg_aut_d2_ Buchisapillo n.1
fg_aut_d2_ Buchisapillo n.3
fg_aut_d2_ Entretiens avec Lévi-Strauss par André Parinaud
fg_aut_d2_ La Genese
fg_aut_d2_ Le Philosophe de Chazuta
fg_aut_d2_ Les Lamistas
fg_aut_d2_ Mushkill Gusha
fg_aut_d2_ Apuntes diversos
Dossier 3 – Informes
fg_aut_d3_ Anexo Informe Jivaro y Kandoshi
fg_aut_d3_ Informa CCNN Urarinas
fg_aut_d3_ Informa CCNN Yagua Irene B.
fg_aut_d3_ Informe CCNN Bora de Colonia
fg_aut_d3_ Informe CCNN Huitoto y Ocaina
fg_aut_d3_ Informe CCNN Olivia Inga del Cuadro
fg_aut_d3_ Informe CCNN Secoya Medicina
fg_aut_d3_ Informe CCNN Yagua
fg_aut_d3_ Informe CCNN Yaguas
fg_aut_d3_ Informe Ordeloreto Achuar
fg_aut_d3_ Informe Ordeloreto Reconocimiento de la zona Tigre-Corrientes
fg_aut_d3_ Informe Ordeloreto Ticuna
fg_aut_d3_ Informe Reserva Nativa Matses
fg_aut_d3_ Informe Socioeconomico de la comunidad nativa Urarina de Sta. Rosa

Photos - 1881 images et 4 documents .pdf


fg_ph1_b1_ Boîte 1 160
fg_ph1_e1_ Enveloppe 1
1.1 María Manteca Techo Nuevo 29
1.2 Paisajes - Animales - Malocas 23
1.3 Personas 29
1.4 Retratos 15
1.5 Chagras - Fabricación de Canoa 17
fg_ph1_e2_ Enveloppe 2 35
fg_ph1_e3_ Enveloppe 3 38
fg_ph1_e4_ Enveloppe 4 117
fg_ph1_e5_ Enveloppe 5 90
fg_ph1_ Negatif 421
fg_ph2_ Acculturation - Colons et Lancha 16
fg_ph2_ Caqueta Le Porte 21
fg_ph2_ Colonia - Yahuasyacu 19
fg_ph2_ Desconocido 167
fg_ph2_ Intruments Musique Miraña 21
fg_ph2_ 1970 251 (+1 inventaire)
fg_ph2_ 1969 226 (+1 inventaire)
fg_ph2_ Miraña 1973 - 1974 185 (+ 2 inventaires)

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Anexo 2
Acta de entrega e Acuerdo sobre el acesso

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