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O Português Quinhentista

Estudos Lingüísticos

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA
Reitor DE SANTANA
Naomar de Almeida Filho Reitora
Anaci Bispo Paim

Vice-Reitor
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www.edufba.ufba.br

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Rosa Virgínia Mattos e Silva
Américo Venâncio Lopes Machado Filho
(organizadores)

O Português Quinhentista
Estudos Lingüísticos

EDUFBA/UEFS
Salvador/2002

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©2002 by Rosa Virgínia Mattos e Silva e
Américo Venâncio Lopes Machado Filho.
Direitos para esta edição cedidos à Editora da
Universidade Federal da Bahia.
Feito o depósito legal.

Projeto gráfico e editoração: Josias Almeida Junior

Capa: Reprodução da gravura apresentada na portada da


Grammatica de João de Barros, Séc. XVI

Origem das separatrizes:Imagens da Grammatica de João de


Barros, Séc. XVI

Revisão: Os organizadores

P853 O Português quinhentista : estudos lingüísticos / Rosa Virgínia Mattos e Silva,


Américo Venâncio Lopes Machado Filho (organizadores) . – Salvador :
EDUFBA ; Feira de Santana : UEFS, 2002.
376 p. : il.

ISBN 85-232-0274-9

1. Língua portuguesa – História. 2. Língua portuguesa – Gramática histórica. 3. Lingüística


histórica. 4. Lingüística – Pesquisa. I. Silva, Rosa Virgínia Mattos e. II. Machado Filho, Américo
Venâncio Lopes. III. Universidade Federal da Bahia. IV. Universidade Estadual de Feira de
Santana.

CDU – 811=134.3(091)
CDD – 469.09

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Mas tornãdo a nosso propo-
sito a estas dições alheas cõ neçessidade e não façilme!te trazidas
chamarlhemos alheas em quãto fore! muito nouas de tal feição q!
não possamos negar seu naçime!to: e despoys pelo te!po a diãte
cõformadoas cõ nosco chamarlhemos nossas/porq! desta manei-
ra forão as q! agora chamamos comu!s
Fernão de Oliveira, Grammatica da lingoagem portuguesa, capítulo XXXII.

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Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq

À Editora da Universidade Federal da Bahia – EDUFBA

À Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS

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Sumário

Apresentação.........................................................................................................................13

Reconfigurações socioculturais e lingüísticas no Portugal de


quinhentos em comparação com o período arcaico
Rosa Virgínia Mattos e Silva ....................................................................... 27

Notas sobre avaliações lingüísticas nos gramáticos


Fernão de Oliveira e João de Barros
Rosa Virgínia Mattos e Silva ....................................................................... 43

A Obra Pedagógica de João de Barros: a sintaxe da


ordem nas sentenças encaixadas
Ilza Ribeiro .................................................................................................. 61

A sintaxe dos clíticos: o século XVI, o século XX


e a constituição da norma padrão
Tânia Lobo .................................................................................................. 83

A definição da oposição entre ser/estar em estruturas


atributivas nos meados do século XVI
Rosa Virgínia Mattos e Silva ..................................................................... 103

Vitórias de ter sobre haver nos meados do século XVI:


usos e teoria em João de Barros
Rosa Virgínia Mattos e Silva ..................................................................... 119

A variação ser/estar e haver/ter nas Cartas de D. João III


entre 1540 e 1553: comparação com os usos
coetâneos de João de Barros
Rosa Virgínia Mattos e Silva ..................................................................... 143

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Observações sobre as conjunções no século XVI
Therezinha Maria Mello Barreto ............................................................... 161

Adverbiais portugueses no século XVI


Sônia Bastos Borba Costa ........................................................................ 195

Comparação entre algumas preposições portuguesas


documentadas no século XVI e no século XIV
Rosauta Maria Galvão Fagundes Poggio .................................................. 217

Locuções prepositivas nas Cartas de D. João III


em comparação com documentos notariais particulares
coetâneos portugueses e galegos
Anna Maria Nolasco de Macêdo ............................................................... 237

A natureza do texto como um dos fatores que


condicionam o sistema de demonstrativos nos séculos XV e XVI
Sílvia Santos da Silva Gonçalves ............................................................... 263

O uso do artigo definido diante de nome próprio de


pessoa e de possessivo do século XIII ao século XVI
Iraneide Costa .......................................................................................... 283

Verbos de padrão especial no português do século XVI


Zenaide de Oliveira Novais Carneiro ........................................................ 307

A pontuação em João de Barros: preceitos e usos


Américo Venâncio Lopes Machado Filho .................................................. 351

A pontuação na Carta de Pero Vaz de Caminha


comparada à proposta de João de Barros
Eliéte Oliveira Santos ............................................................................... 367

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Os autores

Rosa Virgínia Mattos e Silva


Professor da Universidade Federal da Bahia – UFBA

Ilza Ribeiro
Professor da Universidade Federal da Bahia – UFBA

Tânia Lobo
Professor da Universidade Federal da Bahia – UFBA

Therezinha Maria Mello Barreto


Professor da Universidade Federal da Bahia – UFBA

Sônia Bastos Borba Costa


Professor da Universidade Federal da Bahia – UFBA

Rosauta Fagundes Poggio


Professor da Universidade Federal da Bahia – UFBA

Anna Maria Nolasco de Macêdo


Professor da Universidade Federal da Bahia – UFBA

Sílvia Santos da Silva Gonçalves


Coordenadora do Curso de Letras da União Metropolitana de Educação
e Cultura – UNIME

Iraneide Costa
Professor da Universidade do Estado da Bahia – UNEB

Zenaide Carneiro
Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS

Américo Venâncio Lopes Machado Filho


Doutorando em Letras e Lingüística pela Universidade Federal da Bahia
Professor da Universidade Federal da Bahia – UFBA

Eliéte Oliveira Santos


Graduanda em Letras pela Universidade Federal da Bahia – Bolsista de
Iniciação Científica do CNPq

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Apresentação

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa ... *

O
tempo – motor causante de toda a História – é o domínio sobre o
qual muitos estudiosos de diversas áreas do conhecimento se têm
debruçado incessantemente à procura de interpretações para os
mais variados aspectos relacionados com a longa jornada humana.
Conquanto muito já se tenha conseguido desvendar sobre o distante
passado, algumas informações concernentes a alguns períodos históricos
são – assim como o horizonte impreciso cuja visão a fraca luz e a distância
obturam – ainda bastante assistemáticas ou diluídas, nomeadamente em
relação à trajetória das línguas naturais e mais especificamente em relação
à história da língua portuguesa.
Ao eleger, como arco de tempo de estudo da história do português,
suas origens, no período arcaico (cujos primeiros registros escritos remon-
tam aos inícios do século XIII, ou, como pretendem alguns, recentemente,
demonstrar, aos finais dos anos duzentos), até o século XVI e, a partir daí,
infletir para o português brasileiro, o grupo de pesquisa PROHPOR – Pro-
grama para a História da Língua Portuguesa tem, renovadamente, procura-
do priorizar outros ângulos de observação para uma tentativa de
reconstrução, mesmo que aproximativa – como de fato deveriam ser consi-
deradas, pelo bom senso, todas as tentativas de interpretação de dados
lingüísticos – de cada uma das sincronias do período temporal com que
trabalha.
Embora tenha sido o século XVI um dos séculos mais focalizados por
historiadores e especialistas em estudos da cultura (entre esses os literári-
os), os estudos de natureza lingüística têm se concentrado preponderante-
mente sobre o período arcaico da língua portuguesa ou sobre suas
manifestações mais recentes na história do português brasileiro e de certa
forma sobre o europeu.
Não obstante, o lapso de tempo que compreende o período entre os
séculos XVI e XIX ainda demanda muito de toda investigação lingüística
que se tem empreendido, para que se possa compor um quadro histórico

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

talvez menos incompleto com o que se depara hoje a língua portuguesa,


mais especificamente seu processo de constituição na história.
Não se pode, todavia, ignorar que algumas relevantes contribuições,
especificamente sobre o século XVI, já foram implementadas por alguns pes-
quisadores da língua, nomeadamente no âmbito da grafia, do léxico, do
sistema vocálico ou mesmo de seus aspectos morfológicos, tendo,
entrementes, restado, até o momento, a morfossintaxe e a sintaxe quinhen-
tistas à espera de novas pesquisas e de novos autores.
Em 1996, o PROHPOR apresentou um trabalho coletivo de seus mem-
bros, que propunha examinar, então, sob diversas óticas da ciência lingüís-
tica, mas com ênfase na morfossintaxe e sintaxe, o documento inaugural
das coisas do Brasil, dos finais do século XV, inícios do XVI: a Carta de
Pero Vaz de Caminha, cujos resultados foram publicados no livro intitulado
A Carta de Caminha: testemunho lingüístico de 1500.
A mesma inspiração de trabalho temático conjunto, que tem conduzi-
do os esforços do PROHPOR, desde a sua fundação há aproximadamente
10 anos até o presente, sempre renovada pela inserção de novos compo-
nentes, seja de estudantes de graduação que logo cedo descobrem a pai-
xão pela história da língua e muito contribuem com suas ânsias e perguntas
para o desenvolvimento das pesquisas e para o estímulo da docência aca-
dêmica, seja de novos investigadores formados no âmbito geral de seus
trabalhos científicos, traduz-se aqui, na presente coletânea, sob a forma
real de um sonho imaginado, em que
as formas ganham corpo diante de
tão assombroso elemento: a distân-
cia do tempo.
Os estudos aqui coligidos, ori-
ginais à exceção de um único texto,
procuram apresentar uma contribui-
ção para o conhecimento lingüístico
sistemático, sobretudo da morfos-
sintaxe e sintaxe do português qui-
nhentista sobre corpora homogêneos
que privilegiam textos da primeira
metade do século XVI, utilizando-se
para isso de edições confiáveis, ou
mesmo de fac-símiles de originais
Reprodução de um retrato antigo de João
de Barros manuscritos.
Os dezesseis estudos que aqui se
reúnem – nesta apresentação sintetizados e comentados, têm a intenção de
servir de roteiro para a leitura, que – espera-se – aliciatória, do conteúdo de
cada um desses trabalhos, fundados, sobretudo, nos dados da Obra Pedagó-
gica de João de Barros; nas duas primeiras Décadas da Ásia, também de sua
autoria; nas Cartas de D. João III e nas Cartas da Corte de D. João III.

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
O primeiro estudo, Reconfigurações socioculturais e lingüísticas no
Portugal de quinhentos em comparação com o período arcaico, de Rosa
Virgínia Mattos e Silva, é o único que não se centra em dados lingüísticos,
mas busca, em largos traços, delinear características socioculturais e lin-
güísticas que opõem o Portugal de quinhentos em relação ao período ar-
caico do português, que pode estender-se, em alguns desses aspectos, até,
pelo menos, 1536/1540. Os fatos sócio-históricos apresentados e discuti-
dos nesse estudo são: a produção do texto do período arcaico para os
anos quinhentos; a recepção do texto escrito no período arcaico e sua
ampliação, a partir do século XVI; os novos mecanismos de controle do
uso lingüístico no Portugal quinhentista em relação aos séculos anterio-
res; o alargamento do campo literário e a figura do autor nos tempos mo-
dernos que se iniciavam. Tais fatos são considerados pela autora como
reconfigurações socioculturais e lingüísticas que tornam os estudos histó-
rico-diacrônicos dos anos quinhentos mais empiricamente motivados, já
que, para além da documentação remanescente e das teorias lingüísticas
para estudos dessa natureza, o português começa a dispor de controles
normativos incipientes, a partir de 1536, com a Gramática da linguagem
portuguesa de Fernão de Oliveira.
O estudo Notas sobre avaliações lingüísticas nos gramáticos Fernão
de Oliveira e João de Barros, também de Rosa Virgínia Mattos e Silva,
focaliza as “avaliações explícitas” nos dois primeiros gramáticos da língua
portuguesa e arrola anotações do tipo “arcaísmos”, “neologismos”, “regio-
nalismos”, “vícios de linguagem”, detectadas ao longo da leitura das duas
gramáticas. Organiza os dados, considerando primeiro as “avaliações coin-
cidentes” em Fernão de Oliveira e João de Barros; a mais interessante é a
que incide na questão do ditongo nasal final, para ambos já convergente
em [ã"#!], proveniente de vários étimos latinos que, excetuando <-anu->,
resultaram primeiro em vogais nasais. Quanto às “avaliações divergentes”, a
mais interessante delas incide sobre a questão da primeira pessoa do singu-
lar do presente do indicativo do verbo ser. Seguem outras “avaliações”
depreendidas em Fernão de Oliveira e em João de Barros, analisadas nesta
ordem: fônicas, mórficas, lexicais, em cada um desses gramáticos. Vale expli-
car que a autora utiliza a designação “avaliação” no sentido do conceito
“evaluation”, da teoria laboviana sobre a variação e a mudança lingüística.
Destaca que, só a partir dos meados do século XVI, é que os estudos histó-
ricos dos português começarão a dispor da “avaliação” de gramáticos, mais
uma fonte de informação para o nosso passado lingüístico, para além da
documentação remanescente e das teorias histórico-discrônicas, bússolas
para desvendar os mistérios de etapas passadas de qualquer língua.
O estudo A obra pedagógica de João de Barros: a sintaxe da ordem
em sentenças encaixadas, de autoria de Ilza Ribeiro, é a continuação de
seus estudos sobre a ordem sintática na história da língua portuguesa,
iniciados com a sua tese de doutoramento, orientada pela Dra. Charlotte

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Galves e aprovada em 1995, na Unicamp, A sintaxe da ordem no portu-


guês arcaico: o efeito V2 e prosseguindo em seu estudo A ordem dos
constituintes em 1500, tendo como base a Carta de Pero Vaz de Cami-
nha. No presente trabalho, a autora, avançando mais no tempo da língua
portuguesa, apresenta uma análise, no quadro da teoria gerativa, seguindo
o modelo de Princípios e Parâmetros da década de oitenta do século XX,
centrado na Obra Pedagógica de João de Barros. A autora, depois de tecer
considerações sobre esse conjunto de trabalhos de João de Barros, focaliza
a ordem nas sentenças encaixadas. Examina os seguintes fenômenos que
caracterizam a sintaxe do português arcaico: a ordem V2, responsável pela
possibilidade de ordenação de constituintes com inversão sujeito-verbo; a
interpolação, ou seja, a possibilidade de ocorrerem diferentes tipos de cons-
tituintes entre o pronome-complemento clítico e o verbo; o fronteamento
estilístico, resultante da aplicação de uma regra de deslocamento de adje-
tivos, particípios, advérbios, para uma posição pré-verbal e a propriedade
do sujeito nulo, traço sintático que se mantém diacronicamente no portu-
guês europeu. Vale informar que, dos dezesseis estudos apresentados nes-
ta coletânea, este é o único não-inédito, já que foi divulgado no número 19
da revista Estudos Lingüísticos e Literários, do Instituto de Letras da Ufba,
períodico de circulação restrita, o que justifica a sua republicação aqui.
No estudo A sintaxe dos clíticos: o século XVI, o século XX e a cons-
tituição da norma padrão, outro trabalho sobre a ordem sintática desta
coletânea, a autora, Tânia Lobo, retoma dados da sua dissertação de
Mestrado, A colocação dos clíticos em português: duas sincronias em
confronto, defendida na Universidade Clássica de Lisboa em 1993. Especi-
alista na história dos clíticos no português, do período arcaico em direção
ao português brasileiro, defendeu em 2001 a sua tese de Doutorado na
USP, Para uma sociolingüística histórica do português do Brasil. Edição
filológica e análise lingüística de cartas particulares do Recôncavo da
Bahia, século XIX, em que, na análise lingüística, se centra na questão da
posição dos clíticos nas Cartas editadas do século XIX, escritas na Bahia
por portugueses e brasileiros. Confrontou ainda, em artigo publicado em
1996, a sintaxe dos clíticos na Carta de Pero Vaz de Caminha com os
dados dos meados do século XVI. Neste estudo, se centra nos dados das
Cartas da Corte de D. João III, fazendo uma análise quantitativa exaustiva
dos clíticos nessas Cartas dos meados do século XVI e, caminhando para o
presente, compara os usos desses elementos lingüísticos, de ordem mutante
ao longo da história da língua portuguesa, no século XVI com o uso brasi-
leiro chamado culto, tendo, como base de dados para a sincronia do pre-
sente, os inquéritos do corpus compartilhado do projeto Norma Urbana
Culta. Seu objetivo, neste estudo, é o de desvendar coincidências e diver-
gências entre meados de quinhentos e o português brasileiro da segunda
metade do século XX. Nas suas “viagens” sobre o movimento na ordem
dos clíticos, na história do português, Tânia Lobo tem dado uma rica con-

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
tribuição, baseada em dados quantificados rigorosamente, com o auxílio
do programa informatizado VARBRUL, a essa ainda misteriosa questão de
sintaxe histórica da língua portuguesa.
Nos três estudos seguintes, a autora, Rosa Virgínia Mattos e Silva,
retoma uma temática sobre que vem pesquisando há alguns anos, relacio-
nada com mudanças sintático-semânticas que ocorreram com os verbos
ser, estar, haver e ter dos inícios e ao longo do período arcaico até meados
do século XVI, quando se pode admitir que já então se inicia o período
moderno ou clássico da língua portuguesa.
No estudo A definição da oposição ser/estar em estruturas atributivas
nos meados do século XVI, a autora se centra nos dados exaustivos da
Obra Pedagógica de João de Barros e em amostra da Primeira Década da
Ásia do mesmo autor, com o objetivo de determinar se a oposição entre
ser e estar, nas estruturas atributivas, expressando a transitoriedade, tan-
to descritiva como locativa, já se definia em favor de estar, uma vez que, ao
longo do período arcaico, conforme demonstram vários de seus estudos
sobre documentação do período arcaico, a variação ser/estar era usual.
Cresce, ao longo do tempo (do séc. XIII para o XVI), a seleção de estar
sobre ser. Conclui, com base nos dados analisados dos meados do século
XVI, que a oposição já está definida em João de Barros. Mostra ainda que
a baixa freqüência de ser [+ transitório], nesse autor, se caracteriza como
resíduos arcaizantes, na sua maioria decorrentes da intertextualidade, ou
seja, ocorre o uso arcaizante em passagens em que João de Barros cita ou
utiliza fontes documentais mais antigas. Este estudo permite utilizar a
definição dessa oposição como um bom indicador lingüístico para a deli-
mitação entre o período arcaico e o moderno.
No estudo Vitórias de ter sobre haver nos meados do século XVI:
usos e teoria em João de Barros, a autora reúne dados de trabalhos ante-
riores sobre a variação entre os verbos ter e haver, também ser, em três
tipos de estrutura: a. a possessiva; b. com particípio passado e c. a existen-
cial. Nas estruturas possessivas, pôde afirmar que haver só ocorre nelas
em “resíduos arcaizantes”, sobretudo devido à intertextualidade, ou seja,
em citações, ou quando utiliza documentação mais antiga. Com base em
dados quantificados, pôde afirmar que, nos meados do século XVI, o verbo
de “posse” é ter e não mais ter ou haver, fato que permite utilizar esse
dado histórico como um indicador lingüístico para a delimitação o período
arcaico e o moderno da língua portuguesa. Nas estruturas de tempo com-
posto, examina a teoria de João de Barros, na sua Gramática, quanto às
formas verbais “per rodeo”. O autor afirma que ter deverá ser utilizado
para os tempos “per rodeo” do passado e haver para os tempos “per rodeo”
do futuro. Verifica que o autor é coerente com sua teoria e não varia, nes-
ses casos, os usos de ter e haver. Quanto à gramaticalização dos tempos
“per rodeo” do passado, verifica que, quando o particípio passado é de
verbo transitivo, há predominância da forma gramaticalizada, ou seja, sem

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

concordância com o complemento do verbo. Verifica também que João de


Barros ainda usa o verbo ser com verbos não-transitivos (intransitivos e
ergativos), uso próprio ao período arcaico, mas em variação com ter/haver.
Quanto à variação na estrutura existencial, observa que João de Barros
ainda prefere haver, já não utiliza ser nesse tipo de estrutura e já aponta
ter existencial nas Décadas, mas não na Obra Pedagógica. A base de aná-
lise deste estudo é a Obra Pedagógica completa de João de Barros e amos-
tras extensas da Década Primeira, para os itens a e b e ainda uma amostra
extensa da Década Segunda para o item c.
No estudo A variação ser/estar e haver/ter nas Cartas de D. João III
entre 1540 e 1553: comparação com os usos coetâneos de João de Barros,
a autora retoma os quatro verbos nas estruturas indicadas nos dois estudos
anteriores e os examina, em um recorte feito nas Cartas de D. João III,
coetâneas à obra analisada de João de Barros, portanto, Cartas escritas en-
tre 1540 e 1553. Seu objetivo é confirmar ou não nesse outro tipo de texto,
Cartas do rei, redigidas por vários de seus funcionários e duas autógrafas,
que analisa separadamente, o que encontrou e analisou no conjunto das
obras já referidas de João de Barros. Nas suas conclusões, afirma que o ser,
expressão da transitoriedade, é mais freqüente que na obra analisada de
João de Barros, sendo assim mais conservadoras as Cartas. Quanto à varia-
ção haver/ter nas estruturas possessivas, verifica que o haver é residual como
em João de Barros e só se destaca em expressões formulares. Quanto às
estruturas com particípio passado, como João de Barros, o verbo sempre
selecionado é ter quando o particípio passado é de verbo transitivo; com
verbos não-transitivos ocorre, como em João de Barros, ser em variação com
ter. Sobre a gramaticalização do tempo composto, a concordância com o
complemento do particípio passado transitivo ocorre, mas em taxa mais
baixa que em João de Barros, sendo, neste caso, as Cartas reais inovadoras.
Quanto ao ter existencial, ocorre uma vez nas Cartas, numa seqüência am-
bígua, sendo haver o verbo generalizado nesse tipo de estrutura. Nas Cartas
do punho do rei D. João III, há variação de ser/estar, expressando a transito-
riedade; o verbo ter é o exclusivo para as estruturas de posse e também
exclusivo com o particípio passado. Não ocorrem nas duas Cartas do punho
do rei estruturas existenciais. Este estudo comparativo permite afirmar, com
certa margem de segurança, que a oposição ser/estar, em estruturas
atributivas semanticamente transitórias e a exclusão do verbo haver nas
estruturas possessivas já caracterizam o português dos meados do século
XVI, definindo-se, assim, esse momento histórico como já próprio ao perío-
do moderno da língua portuguesa.
Os quatro estudos seguintes tratam de processos diacrônicos de
gramaticalização de conjunções, adverbiais, preposições e locuções
prepositivas, utilizando conceitos de teorias funcionalistas da atualidade.
No estudo Observações sobre as conjunções no século XVI, sua au-
tora, Therezinha Barreto, retoma um tema de que já é especialista, uma

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
vez que, na sua dissertação de Mestrado, aprovada em 1992, tratou das
conjunções e correlações conjuncionais em documentação dos séculos XIII
a XV e, na sua tese de Doutorado, de 1999, trabalhou com os itens
conjuncionais em documentação dos séculos XIII ao XVII, em comparação
com o uso falado contemporâneo no Brasil e em Portugal; revela, discute
e demonstra processos de gramaticalização na formação dos itens
conjuncionais, ao longo da história da língua portuguesa. Neste estudo,
centrado em corpus do século XVI – Cartas de D. João III, Cartas da Corte
de D. João III, Obra Pedagógica completa de João de Barros e amostras da
Primeira e da Segunda Década da Ásia, do referido escritor, encontra 92
itens conjuncionais. Na análise desses itens, destaca nesta ordem: os que
já eram empregados nos séculos anteriores e experimentaram mudanças
no século XVI; itens conjuncionais que só foram empregados até o século
XVI; itens que começam a ser empregados no século XVI, tais como, so-
mente, contudo, de modo que, de feição que, já que, logo, por mais ...
que, cõ quanto, conforme, primeiro que, ora ... ora; itens conjuncionais
que só ocorreram na documentação quinhentista analisada, tais como: a
que, caso que; itens conjuncionais que, aparentemente já em desuso, ao
longo do período arcaico, voltam a ocorrer no século XVI, tais como: a
correlação nom ... senom, ante e ante que. Prossegue o seu estudo com a
comparação entre os processos de formação dos itens conjuncionais nos
dados do período arcaico com os dados dos meados do século XVI. Mos-
tra, por meio de duas fórmulas, as diferenças entre os dois grupos de da-
dos, indicando as permanências e as inovações. Avalia tais processos e
apresenta, nesta ordem, os elementos nucleares mais produtivos na for-
mação dos itens conjuncionais: as preposições e os advérbios, os princi-
pais; os verbos; os nomes e os pronomes. Tendo por base o continuum
proposto por teóricos funcionalistas, verifica que as “categorias menores”,
como a preposição e a “categoria mediana”, como os advérbios, são os
principais formadores de itens, que também são considerados, por esses
teóricos, “categorias menores”. O estudo de Therezinha Barreto é não só
uma contribuição, por apresentar dados precisos para a história da língua
portuguesa, mas também uma contribuição significativa para a teoria da
gramaticalização na diacronia do português.
No estudo Adverbiais portugueses no século XVI, a sua autora, Sônia
Borba Costa, continua pesquisas sobre esses elementos – advérbios e locu-
ções adverbiais – que já vem desenvolvendo sobre documentação do perí-
odo arcaico e, em especial, com base na Carta de Pero Vaz de Caminha,
estando em preparação sua tese de Doutoramento sobre o tema Adverbi-
ais locativos e temporais: indícios diacrônicos de gramaticalização na
história do português. Neste estudo, se centra na Carta de Caminha; nas
Cartas de D. João III; em Cartas da Corte de D. João III; na Obra Pedagó-
gica completa de João de Barros. O estudo se caracteriza pelo levanta-
mento exaustivo dos itens adverbiais no corpus referido; pelo

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

estabelecimento dos processos morfossintáticos de formação desses itens;


pela análise da produtividade desses processos e por observações de inte-
resse, fundamentadas no quadro da teoria funcionalista da gramaticalização.
Depois de discutir, sinteticamente, os conceitos de advérbio e locução ad-
verbial, com base em diversificada bibliografia, a autora passa a descrever
os processos de formação dos adver-
biais no corpus exaustivamente ana-
lisado, destacando os processos mais
produtivos: dos 31 processos forma-
dores depreendidos, considera nove
mais produtivos, sendo que, deles, os
mais recorrentes são os adverbiais pro-
venientes, diacronicamente, de advér-
bios e de adjetivos seguidos do
morfema derivacional –mente. Tece
procedentes reflexões sobre a ques-
tão de produtividade na formação dos
adverbiais, para, em seguida, discutir
indícios de gramaticalização aplicáveis
aos adverbiais encontrados, com base
em conceitos da teoria escolhida. Por
fim, apresenta a relação e listagem dos
185 itens adverbiais encontrados no
corpus. Este estudo, além de ser uma Reprodução de um retrato do século XVI de
contribuição objetiva sobre os adver- D. João III
biais no corpus analisado do português quinhentista, é, certamente, uma
contribuição amadurecida para a reflexão sobre a gramaticalização e, em
especial, sobre a gramaticalização na diacronia do português.
No estudo Comparação entre algumas preposições portuguesas do-
cumentadas no século XVI e no século XIV, a autora, Rosauta Fagundes
Poggio, professora de latim, já especialista no seu tema, uma vez que, em
sua tese de Doutoramento – Relações expressas por preposições no perí-
odo arcaico do português em confronto com o latim (1999), aprofundou
sua reflexão sobre a diacronia das preposições, no quadro teórico
funcionalista, do latim para a primeira fase do período arcaico, com base
no texto latino e na mais antiga verão portuguesa conhecida dos Diálogos
de São Gregório (século XIV). Tal como na sua tese de Doutoramento,
selecionou neste estudo as preposições na função sintática de adjuntos
adverbiais. Aqui o seu corpus, base de sua análise, são os dois primeiros
livros dos Diálogos de São Gregório na versão trecentista e, para o portu-
guês de quinhentos, pesquisou a Obra Pedagógica de João de Barros e
sessenta e uma das Cartas de D. João III (entre 1523 e 1533). Na análise
comparativa que faz entre os corpora trecentista e quinhetista, encontrou
preposições com formas e sentidos equivalentes nos séculos considerados;

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
preposições com formas equivalentes e novos sentidos no século XVI; pre-
posições que apresentam formas modernas no século XVI, tais como: de-
pois, entre, até, após, e preposições que não foram encontradas no corpus
do século XIV e ocorrem no século XVI, tais como: mediante e conforme.
Apresenta ainda o avanço de novas locuções prepositivas do século XIV
para o XVI, tecendo procedentes considerações sobre as do século XVI.
Encerra seu estudo com comentários teóricos sobre processos de
gramaticalização numa perspectiva diacrônica e funcionalista. Acrescenta,
ainda, uma significativa informação sobre o tema no século XVI, que é o
fato de, comparando os dados de João de Barros com os dados das Cartas
de D. João III, apresentarem-se essas últimas como mais conservadoras,
ou seja, mais arcaizantes, fato que, aliás, confirma o que estudos lingüísticos
históricos têm afirmado, ou seja, que a documentação não-literária de na-
tureza jurídica se apresenta como menos inovadora. O estudo de Rosauta
Poggio dá, sem dúvida, uma contribuição valiosa para um melhor conheci-
mento da história das preposições do latim para o português dos séculos
XIV e XVI, além de acrescentar reflexões procedentes sobre processos
diacrônicos de gramaticalização.
No estudo Locuções prepositivas nas Cartas de D. João III em compa-
ração com documentos notariais particulares coetâneos galegos e portu-
gueses, a autora, Anna Maria Nolasco de Macêdo, já tendo trabalhado sobre
esse tema na sua dissertação de Mestrado – Locuções prepositivas na cons-
tituição histórica da língua portuguesa: período arcaico, de 1997, sobre
vasto corpus em prosa do período arcaico do português, retoma-o neste
estudo, centrando-se em dados do século XVI. Neste estudo, seu corpus
está constituído pelo conjunto completo das Cartas de D. João III, que
compara com documentos notariais do século XVI, escritos na área portu-
guesa e na galega. Depois de discutir a conceituação de locuções prepositivas
e de apresentar questões relativas à gramaticalização em geral e das locu-
ções prepositivas em particular, centra-se na análise dessas locuções nos
corpora selecionados e testa a fórmula de sua constituição mórfica, apresen-
tada na dissertação referida, com os dados quinhentistas, confirmando a sua
aplicabilidade à documentação analisada do século XVI. Na documentação
pesquisada na sua dissertação, identifica vinte e oito processos de formação
de locuções prepositivas, em que predominam como centro os advérbios,
seguidos, em igual número, dos nomes e preposições e, por fim, verbos. Nas
Cartas de D. João III, também predominam, como centro, os advérbios,
seguidos pelas preposições e pelos nomes, e, por fim, o verbo. Nos docu-
mentos notariais portugueses e galegos predominam, como centro, os no-
mes, seguidos pelos advérbios, nos documentos portugueses, e pela
preposição, nos galegos. Em ambos, tal como nas Cartas de D. João III, o
verbo ocorre, com baixa freqüência, como centro das locuções em foco, sem-
pre na forma do particípio passado. O trabalho é enriquecido por ampla
exemplificação ilustrativa. É de notar que duas locuções documentadas no

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

período arcaico, d’aprés de e ensembra com já não ocorrem no século XVI.


Este estudo apresenta, sem dúvida, mais uma contribuição da autora para o
conhecimento das locuções prepositivas na história do português e também
do galego, tema em que está investindo na sua tese de Doutoramento, em
elaboração, em que se baseia em documentação não-literária do período
arcaico em direção ao século XVI, tanto do português como do galego. Con-
tribui ainda para o aprofundamento do conhecimento de processos de
gramaticalização numa perspectiva diacrônica.
Os dois estudos seguintes abordam aspectos do funcionamento de
elementos constituintes do grupo nominal.
O estudo A natureza do texto como um dos fatores que condicionam
o sistema de demonstrativos nos séculos XV e XVI, de Sílvia Santos Gonçal-
ves, retoma aspectos, sobretudo os de natureza discursiva, de sua disserta-
ção de Mestrado Demonstrativos, dêiticos e anafóricos: duas sincronias
em confronto (séculos XV e XVI), de 2000. Neste estudo, utiliza o corpus já
analisado em sua dissertação: a Crônica de D. Pedro de Fernão Lopes, da
primeira metade do século XV; a Carta de Pero Vaz de Caminha de 1500; o
Diálogo em Louvor de nossa Linguagem e o Diálogo da Viçiosa Vergonha
de João de Barros, impressos em 1540, e o Livro V da Primeira Década de
1552, também de João de Barros. A seleção dos textos privilegiou o tempo
histórico focalizado e a natureza desses textos, ou seja: um texto
historiográfico do século XV, que, no seu interior, inclui cartas; um texto
historiográfico de meados do século XVI, em que João de Barros narra a
expedição de Pedro Álvares Cabral às Índias; a célebre Carta de 1500, desti-
nada a D. Manuel, que narra a expedição de Cabral até a sua chegada ao
Brasil, e os dois Diálogos de 1540, em que seu autor dialoga ficcionalmente
com seu filho. Com base nessa diversidade de tipos de textos – carta, narra-
tiva historiográfica, diálogo, leva em conta, na sua análise, a natureza do
destinatário: se identificável, se genérico, e faz a sua análise do funciona-
mento discursivo dos demonstrativos este, esse, aquele, e suas flexões no
total dos dados levantados no referido corpus. Tem por objetivo determinar
se o sistema dos demonstrativos é dicotômico ou tricotômico e, com base
na macro-divisão da foricidade, ou seja, endófora e exófora, subdivide esses
dois pólos, refinando a sua análise com os conceitos de anáfora, catáfora e
anáfora-dêitica para a endófora e com conceitos de dêixis espacial, dêixis
temporal e dêixis “am phantasma” para a exófora. Aplica essa chave analítica
a cada texto de seu corpus, apresentando os resultados em gráficos e tabe-
las, resultados das quantificações feitas. Este estudo demonstra a complexi-
dade do funcionamento dos sistemas dêiticos e anafóricos no português
arcaico e no século XVI, contribuindo, certamente, para uma reflexão mais
refinada para a sistematização da dêixis e da anáfora expressas pelas formas
este, esse, aquele, e suas flexões.
O estudo O uso do artigo definido diante de nome próprio de pes-
soas e de possessivos do século XIII ao XVI, de Iraneide Costa, sintetiza a

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
sua dissertação de Mestrado, defendida em 1999. Seu objetivo é verificar
se a variação existente hoje no português brasileiro no uso do artigo dian-
te de possessivos, determinantes de nomes e diante de antropônimos ocorria
já no período arcaico em direção ao século XVI. Para tanto seleciona como
corpus representativo desses séculos: a documentação notarial escrita em
Portugal dos inícios do século XIII aos inícios do século XVI, na edição de
Clarinda de Azevedo Maia; a Crônica de D. Pedro de Fernão Lopes, da
primeira metade do século XV e o Diálogo em Louvor de nossa Lingua-
gem e o Diálogo da Viçiosa Vergonha de João de Barros, impressos em
1540. Levanta todas as ocorrências do uso do artigo ou a sua ausência no
referido corpus nos dois contextos em variação referidos, foco do seu tra-
balho, e apresenta seus resultados em gráficos e tabelas. Realiza a análise
dos dados, utilizando as variáveis lingüísticas independentes propostas em
trabalhos das sociolingüistas brasileiras Giselle Machline de Oliveira e Sil-
va e Dinah Callou, variáveis de natureza morfológica e sintática. Aplica esse
molde de análise da sincronia atual a seus dados do período arcaico para o
moderno e verifica que, desde o século XIII, há variação no uso do artigo
diante de possessivos seguidos de nome, crescendo o uso do artigo ao
longo dos séculos, alcançando cerca de 40% o uso do artigo diante de
possessivos no século XVI. Quanto ao artigo diante de nomes próprios de
pessoa, verifica que não ocorre no corpus pesquisado, exceto em dois ca-
sos excepcionais, um em cada Diálogo de João de Barros: em um deles o
nome próprio é usado genericamente como nome comum (a Madalena);
no outro, o artigo destaca, em uma série de autores clássicos, o Virgílio.
Este estudo não só apresenta dados objetivos sobre esses usos variáveis
do artigo no tempo da língua pesquisado, como mostra, no que concerne
à metodologia usada, que recursos metodológicos utilizados para o estu-
do do presente das línguas podem ser aplicáveis a dados do passado, acre-
dita-se, com sucesso.
O estudo seguinte é o único que trata de um aspecto morfológico na
história do português do período arcaico para o moderno e tem como
tema uma análise sobre mudança dos verbos de padrão especial: do portu-
guês arcaico ao século XVI. A autora, Zenaide Carneiro, se baseia na sua
dissertação de Mestrado, defendida em 1996 – Os verbos de padrão espe-
cial no português do século XVI. Neste estudo utiliza como corpus básico
a Obra Pedagógica de João de Barros, de 1540, e as Cartas de D. João III,
de 1523 a 1540, ou seja, na totalidade da edição utilizada. Como corpus
de confronto utiliza os dados do português arcaico, publicados por Rosa
Virgínia Mattos e Silva nos seus livros de 1989 e de 1994. Como quadro
teórico-metodológico de análise, serviu-se de propostas de Mattoso Câma-
ra Jr., adotadas para o português arcaico por Rosa Virgínia Mattos e Silva.
Os verbos de padrão especial, tradicionalmente designados de irregulares,
estão agrupados em quatro subgrupos: a. os verbos que apresentam varia-
ção no lexema das formas do não-perfeito e têm um lexema específico para

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

as formas do perfeito (subgrupo mais complexo); b. os que apresentam


lexema invariável para as formas do não-perfeito e têm lexema específico
para as formas do perfeito; c. os que apresentam variações nos lexemas do
não-perfeito, sendo o lexema das formas do perfeito a variante mais gene-
ralizada do lexema do não-perfeito; d. os verbos de particípio passado es-
pecial, chamado de particípio forte. Na análise de seus dados, detecta 23
itens verbais de padrão especial nos três primeiros grupos. Apresenta em
esquemas e quadros todas as variantes, inclusive as gráficas, que encon-
trou nesses 23 itens verbais. Destaca, ainda, em quadro, os verbos de par-
ticípio forte encontrados no seu corpus quinhentista. Compara seus
resultados quinhentistas com os dados do português arcaico, organizados
do mesmo modo que aqueles e, por fim, destaca e discute as mudanças
que ocorreram do período arcaico para os meados do século XVI. Na sua
conclusão, apresenta as diferenças entre as duas sincronias que indicam
mudanças de perda, no sentido de regularização, de lexemas de verbos de
padrão especial do período arcaico para o moderno, decorrentes de mu-
danças fônicas e analógicas. Destaca, por fim, que verbos do subgrupo a, o
mais complexo, são aqueles que apresentaram maior regularização. Este
estudo, tal como a dissertação de Mestrado da autora, apresenta uma
análise sistemática, rigorosamente quantificada, que é, certamente, uma
contribuição nova para o conhecimento do tópico focalizado, nesses perío-
dos passados da língua portuguesa, além de mostrar que recursos teórico-
metodológicos utilizados na análise da sincronia atual do português são
válidos para abordar dados do passado, tal como demonstra o estudo
anteriormente comentado.
Os dois últimos estudos desta Coletânea se centram em um aspecto
gráfico do português arcaico e do quinhentista, a pontuação.
No estudo A pontuação em João de Barros: preceitos e usos, o au-
tor, Américo Venâncio Lopes Machado Filho, retoma o tema pontuação,
que explorou a fundo, em códices manuscritos do período arcaico, na sua
dissertação de Mestrado, A pontuação em manuscritos medievais portu-
gueses, defendida em 2000. Neste estudo se centra na primeira proposta
explícita para a pontuação no português, a de João de Barros, que se en-
contra no fim da Ortografia, parte da Gramática da Língua Portuguesa,
desse primeiro gramático prescritivista do português e compara com o que
detectou no corpus de sua dissertação, constituído de manuscritos dos
séculos XIII, XIV e XV, elaborados em diferentes “scriptoria”: as duas ver-
sões do Testamento de Afonso II, manuscritos da chancelaria real; o Livro
das Aves; a versão A dos Diálogos de São Gregório e algumas vidas de
santos do Flos Sanctorum, manuscritos provavelmente escritos em mos-
teiros do Norte de Portugal, trazidos para o Brasil por Serafim da Silva
Neto e hoje depositados na Biblioteca Central da Universidade de Brasília;
a versão B dos Diálogos referidos, comprada de algum mosteiro, no século
XV, para a “Livraria” do mosteiro de Alcobaça, e a versão C dos mesmos

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Diálogos, copiada no “scriptorium” alcobacense, na segunda década do
século XV. Nesse corpus medieval, detectou trinta e três sinais de pontua-
ção e, a partir de sua análise, concluiu que a pontuação então usada refle-
tia aspectos relacionados com a prosódia da língua falada, mas também
era regularmente condicionada por motivações de ordem lógico-gramati-
cal. Nos seus preceitos sobre a pontuação, João de Barros reduz, drastica-
mente, os sinais de pontuação a apenas cinco (cõma, cólo, uergas,
parentisis e interrogaçám), apontando suas conceituações para esses cin-
co sinais no sentido de uma sistemática de pontuação de natureza lógico-
gramatical. Examinado se a teoria do gramático é coerentemente aplicada
na sua gramática, verifica o autor que nem sempre é coerente o seu uso em
relação a seus preceitos, provavelmente porque seus preceitos se fundam
na pontuação da escrita do latim. Este estudo, não só contribui para
aprofundar o conhecimento da história da pontuação no português, mas,
especialmente, para mostrar a mudança que ocorre dos manuscritos medi-
evais portugueses para o texto, já impresso, dos meados do século XVI.
No estudo A pontuação na Carta de Pero Vaz de Caminha em compa-
ração à proposta de João de Barros, a autora, Eliéte Oliveira Santos, bol-
sista de Iniciação Científica do CNPq, no Programa para a História da
Língua Portuguesa (PROHPOR), retoma o estudo anterior de Américo
Venâncio Lopes Machado Filho, que a orientou na sua pesquisa, e compara
a proposta de João de Barros, analisada pelo autor anteriormente referido,
com o uso de Pero Vaz de Caminha, na Carta manuscrita para D. Manuel,
datada de 1500. Motivada não só pelos estudos sobre pontuação realiza-
dos no âmbito do PROHPOR, mas por estar lidando com a Carta de Cami-
nha no Projeto, em andamento, do referido PROHPOR, relativo a um Banco
Informatizado de textos para a História da Língua Portuguesa (BIT-
PROHPOR), debruçou-se a autora sobre a edição justalinear da Carta, re-
centemente apresentada por A. G. Cunha, Heitor Megale e César Cambraia,
levantando todos os sinais de pontuação nela utilizados. Realizada a análi-
se dos dados, verificou que o sistema de sinais usado por Caminha é do
período medieval e, nesse sentido, Caminha é arcaizante, mas já é
modernizante quanto ao caráter lógico-gramatical da pontuação na Carta.
Aventa a hipótese de que esse último fato decorre de a Carta ter sido feita
não para ser lida para uma audiência, mas por apenas uma pessoa, nesse
caso o rei, provavelmente em voz baixa. Com este estudo, a autora apre-
senta mais uma contribuição para o conhecimento do uso da pontuação
na história da língua portuguesa, além de contribuir com mais um traba-
lho sobre a Carta de Caminha, que se soma aos trabalhos apresentados
na Coletânea de 1996, realizada por membros do PROHPOR, intitulada A
Carta de Caminha: Testemunho Lingüístico de 1500, como anteriormen-
te indicado.
O PROHPOR almeja que, com esses dezesseis estudos, sumarizados
nesta Apresentação, esteja dando alguma informação nova para um co-

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

nhecimento mais objetivo sobre o português dos anos quinhentos, perío-


do pouco estudado do ponto de vista lingüístico, como afirma o especialis-
ta português na história da língua portuguesa, o professor doutor Ivo Castro
na sua conferência de 1996, Para a história do português clássico.**

Salvador, dezembro de 2001


Os Organizadores

* Fragmento do poema “Horizonte”, do livro Mensagem, de autoria de Fernando Pessoa.


** O conteúdo do texto e as referências são de responsabilidade dos autores.

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Reconfigurações socioculturais e lingüísticas
no Portugal de quinhentos
em comparação com o período arcaico

Rosa Virgínia Mattos e Silva

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Introdução

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
T
enho como objetivo aqui traçar de maneira sintética algumas
reconfigurações socioculturais e lingüísticas que se implementam no
Portugal de quinhentos, ou seja, o século XVI, com a finalidade de
indicar que, para as pesquisas que tratam da história da língua portuguesa
no seu passado mais remoto, o período arcaico e os inícios do moderno, tais
reconfigurações se refletem na documentação escrita remanescente, base de
que se dispõe para os estudos históricos do passado de qualquer língua não-
ágrafa.
O tema foi motivado como uma reflexão para o projeto coletivo do
“Programa para a história da língua portuguesa (PROHPOR)”, intitulado O
português quinhentista: estudos lingüísticos. Vale dizer que o arco de tem-
po sobre que pesquisa o PROHPOR abarca a história da língua portuguesa
das origens ao século XVI e daí para a frente inflete em direção da história do
português brasileiro.
As características lingüísticas que tipificam o período arcaico do portu-
guês se apresentam consistentemente na documentação remanescente dos
séculos XIII e XIV e até a segunda metade do século XVI algumas delas
permanecem e outras desaparecem (Mattos e Silva, 1994), tanto que, nas
propostas de periodização da língua portuguesa, se costuma propor uma
primeira fase do português arcaico até fins do século XIV e uma segunda,
para alguns autores português médio, cujo limite final é impreciso e diver-
gem os estudiosos da história do português. Uma data simbólica para Ivo
Castro (1991: 243) seria 1536, porque nela foi representado o último auto
de Gil Vicente – Floresta de enganos; morre Garcia de Rezende e se publica

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

o primeiro estudo metalingüístico sobre o português, a Gramática da lin-


guagem portuguesa de Fernão de Oliveira.
Enquanto uma cronologia seriada, relativa e sistemática de fatos
lingüísticos que existiam no período arcaico mais recuado e vão desapare-
cendo do século XIV para o XVI, não se pode propor, com dados
intralingüísticos, os inícios do português moderno ou clássico (prefiro mo-
derno porque clássico implica sempre uma concepção relacionável à docu-
mentação literária e, para os estudos lingüísticos, a produção não-literária
tem status similar como fonte de pesquisa para o passado das línguas), no
Grupo de Pesquisa PROHPOR, temos considerado que 1536/1540 são da-
tas sociolingüisticamente motivadas para os inícios dos tempos modernos
da língua portuguesa, já que se inicia então o processo progressivo de
normativização com a gramática já referida de Fernão de Oliveira e a Gra-
mática da língua portuguesa, de 1540, de João de Barros.
Ivo Castro, na sua conferência Para a história do português clássico
(1996: 137), localiza o português clássico nos séculos XVI e XVII e caracte-
riza como de importância idêntica e interrelacionadas, sem hierarquização,
os seguintes fatos socioculturais e lingüísticos: a entrada do português na
Galáxia de Gutemberg; o desenvolvimento da língua literária; o português
como (meta)linguagem sobre si mesmo e o transbordamento da língua
portuguesa dos limites da comunidade em que inicialmente era usada.
Neste texto desenvolverei esta questão, centrando-me no século XVI,
e considerarei os seguintes aspectos, que, tal como Ivo Castro, considero
como necessariamente interrelacionados e sem hierarquização, mas que,
por clareza expositiva, há que os itemizar:
1 produção do texto do período arcaico para os anos quinhentos;
2 a recepção do texto escrito no período arcaico e sua ampliação, a
partir do século XVI;
3 os novos mecanismos de controle do uso lingüístico no Portugal
quinhentista em relação aos séculos anteriores;
4 o alargamento do campo literário e a figura do autor nos tempos
modernos que se iniciam.

1 A produção do texto do período arcaico para os anos


quinhentos
Seguindo o historiador medievalista Armindo de Souza (1992, v. 2:
532-533), há que se ter claro que o período arcaico (prefiro arcaico a me-
dieval porque, no âmbito lingüístico, características ultrapassam a data
que a História costuma usar para o fim da Idade Média, 1492) se caracte-
riza pela oralidade. Nesse tempo não ultrapassaria o montante de 2% a
“elite intelectual”, a sua grande maioria ligada ao mundo religioso dos
mosteiros e das dioceses, à Igreja Católica, enfim, e a segmentos da nobre-
za. Como diz o Autor, “o povo mesmo é noite para nós” (p. 533).

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Tirante a documentação não-literária, jurídico-notarial, tanto particu-
lar como oficial, que começa a ser escrita em português, concorrendo com
o latim, nos inícios do século XIII (talvez antes, como vem demonstrando
Ana Maria Martins (1999)), que é constante, a partir de então, pela neces-
sidade da organização jurídico-administrativa da sociedade, a documenta-
ção que, genericamente, se pode chamar de literária era de produção restrita.
Escrita por “profissionais da escrita”, os escribas dos scriptoria monásti-
cos sobretudo, mas provavelmente também outros ligados a nobres inte-
lectuais como talvez ocorresse em torno de D. Pedro, conde de Barcelos,
certamente o principal nobre intelectual da primeira fase do período arcai-
co, falecido em 1354.
Nas palavras de outro historiador medievalista, Oliveira Marques:
A divulgação destas e doutras obras [literárias] não se podia alargar a
um público vasto. O livro era caro e raro. A não ser tratando-se de obras religi-
osas, como bíblias, missais, antifonários e demais livros de ofício, cuja necessi-
dade de disseminação punha em movimento dezenas ou até centenas de
tradutores, obras literárias de outra espécie conheciam “tiragens” de um, dois
ou três exemplares. Mandava-se copiar o livro A ou o livro B porque o rei ou um
grande senhor havia manifestado interesse em o possuir (1964: 192).
Decorrente disso é que a tradição textual dos manuscritos medievais
portugueses se caracteriza, em geral, pelo codex unicus, sendo poucas as
obras de que se dispõe de mais de um testemunho, a partir dos quais se
pode, por vezes, fazer um stemma codicum, que indicará testemunhos que
se perderam, por razões inatingíveis, com o passar do tempo. Veja-se, como
exemplo, o stemma proposto por Giuseppe Tavani (1988: 55-121) para as
relações históricas entre os três códices remanescentes do Cancioneiro
medieval profano ou o que propus para as versões medievais portuguesas
dos Diálogos de São Gregório, as três com que trabalhei, dos séculos XIV
e XV e as que provavelmente desapareceram ou ainda não foram encontra-
das (1989: 56).
Outro aspecto significativo para o que intenciono aqui é a questão da
datação e local de produção do texto no período arcaico. Com exceção dos
documentos notariais, localizados e datados, no final, os textos literários
podem ser situados em um momento desse período por fatos referidos no
decorrer do texto, como é o caso, por exemplo, do Orto do Esposo, mas,
na maioria das vezes, essa localização no tempo só poderá ser feita pelas
características paleográficas e/ou lingüísticas do próprio texto. Raro é aquele
que, no final, indica a data de sua realização.
Além disso, muitas vezes, o texto foi escrito pela primeira vez em um
desconhecido momento, mas dele ficou uma cópia posterior. Um bom exem-
plo é o da versão portuguesa da Demanda do Santo Graal, que se supõe
ter sido traduzido do francês no século XIII, mas dela o codex unicus re-
manescente é do século XV. Mais interessante ainda é a cópia manuscrita,
situável entre 1536 e 1546 (Castro, 1979) do José de Arimatéia, também
do ciclo do Graal, tradução talvez contemporânea à da Demanda, mas,

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32
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

desse códice inicial, não restam fragmentos, que mostrem as suas origens
recuadas.
Essas questões da localização no tempo e no espaço dos manuscritos
do período arcaico exigem que, para cada documento a ser trabalhado
lingüisticamente, se busque, com rigor, tentar reconstruir a história textual
de cada um deles, problema que começa a ficar menos complexo já no sécu-
lo XV, quando se pode, com maior clareza e precisão, saber, por exemplo,
quando foi escrita a produção da época da dinastia de Avis. Tanto aquela
escrita pelos príncipes e reis dessa dinastia, como a nova historiografia que
se inicia com Fernão Lopes pela década de vinte do século XV.
Nos anos quinhentos, embora a tradição do livro manuscrito não te-
nha se encerrado de repente (basta lembrar-se dos códices manuscritos e
ricamente decorados da chamada “leitura nova” do tempo de D. Manuel e
a já referida cópia de 1536/1546 do José de Arimatéia) com a imple-
mentação da imprensa, que chega a Portugal cinqüenta anos depois do
invento de Gutemberg, questões de localização no tempo e no espaço de
edições princeps, datadas, já reconfiguram o panorama acima esboçado
sobre características da produção escrita do período arcaico.
Se aceitarmos como textos inaugurais do período moderno, as gra-
máticas de 1536 e de 1540, de Fernão de Oliveira e de João de Barros,
respectivamente, veremos no texto já impresso: na primeira, no colofão
está: “Acabouse de imprimir... em Lisboa, $! casa de Germão Galharde a
XXVIJ dias do mês de janeyro de mjl e %!nh$!tose trinta e seis annos da
nossa salvaçom” e, na portada da segunda, estão em latim indicados o
lugar, Lisboa; o tipógrafo, Luis Rodrigues e a data, em romano, MDXL.
Germão Galharde e Luis Rodrigues estão entre os principais donos de
casas impressoras do Portugal quinhentista, sendo o principal deles,
Valentin Fernandes, o grande primeiro dono de casa impressora portu-
guesa, responsável pela edição da Vita Christi de 1498 que, durante muito
tempo, foi considerado o primeiro livro impresso em Portugal. Pesquisas
recentes recuam essa data para 1487, com a impressão, em hebraico, do
Pentateuco por Samuel Gacon, livro impresso em Faro, além de outros
incunábulos da década de 80 do século XV (Mendes, 1994, s. v.
Incunábulos).
A imprensa não só alargará a divulgação da produção textual, mas
facilitará um aspecto dos estudos histórico-lingüísticos que, com maior
precisão, poderão datar e localizar os dados sobre que se processarão as
análises de fatos lingüísticos.

2 A recepção do texto escrito no período arcaico e sua


ampliação a partir do século XVI
Não ultrapassaria de 2% a elite intelectual dos séculos XII ao XV em
Portugal, como afirma o historiador, já referido, Armindo de Souza, carac-

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
terizando-se esse período pela oralidade. Não obstante havia então esco-
las de vários tipos e podem ser classificadas na tipologia seguinte:
Universidade, escolas catedrais, escolas capitulares, escolas monásticas,
escolas conventuais, ‘escolas palacianas’, escolas municipais, escolas paroqui-
ais e escolas domésticas (Souza, 1993, v. 2: 534).
Depois de descrevê-las, o Autor conclui: “É certo que essa rede de
escolas atinge pouca gente” (p. 540).
No seu livro A sociedade medieval portuguesa, Oliveira Marques des-
creve também essa realidade e afirma: “Aprendia-se portanto a ler e escre-
ver em latim mas ninguém falava já latim no Portugal dos séculos XII a XV,
a não ser com embaixadores estrangeiros” (1964: 187). Acrescento eu que
também, muito provavelmente, no âmbito eclesial, monástico e secular.
O mesmo autor, destacando que desde D. Dinis o português tenha
sido convertido em língua oficial, afirma que:
a verdade é que nunca escolas e mestres particulares o ensinavam até fins da
Idade Média... o português era ouvido no berço, falava-se depois naturalmente
e escrevia-se (os que escreviam) sem nunca se ter aprendido. Daí o fato de a
linguagem escrita se aproximar notavelmente da linguagem falada (p. 187).
A língua de ensino era portanto o latim. Que os textos medievais
manuscritos em vernáculo seriam mais para serem ouvidos que lidos fica
indicado, por exemplo, no sistema complexo da pontuação dos manuscri-
tos medievais que, a par de uma supreendente sistematicidade lógico-gra-
matical, sinalizavam também necessidades prosódicas, como pôde
demonstrar, em recente pesquisa de Mestrado, Machado Filho (1999).
Os inícios do século XVI reconfiguram tal situação tipicamente medi-
eval. Inicia-se, aos poucos, a laicização da cultura letrada, sem desprestígio
do ensino e do conhecimento do latim e da cultura latina, mas, aos pou-
cos, o português começa a ser língua de ensino, alargando o âmbito dos
receptores da documentação escrita em vernáculo.
Sem dúvida, a implementação da imprensa em Portugal, a partir da
penúltima década do século XV e o uso do papel, em substituição ao per-
gaminho, tornaram a produção escrita menos rara e menos cara, diferente
do que ocorre nos séculos anteriores.
Há informações seguras de que cartinhas/cartilhas existiram antes e de-
pois da mais célebre e ricamente ilustrada de João de Barros, impressa em
1539, um ano antes de sua Gramática. Esse tipo de texto foi pressionado,
certamente, pela necessidade da colonização do império ultramarino que se
estabelecia na África e na Ásia.
Conforme M. L. Buescu, e, baseada em Damão de Góis, já em 1504
eram enviados livros para o Congo, entre eles, provavelmente cartinhas; em
1512 e 1515 seguem para a Abissínia e para o oriente novas remessas de
livros de que faziam parte Cartinhas (Buescu, 1971: XXV). Em 1521, D.
Duarte de Menezes manda entregar duzentas cartilhas, um Flos Sanctorum
e trinta e quatro evangelhos para Goa, também Cananor e Malaca (Curto,

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

1998, v. 1: 424). Contudo, conforme esse historiador da cultura quinhentis-


ta afirma, só a partir de meados do século XVI, se poderá falar de “esforços
regulares de exercício de uma política educativa” (id. ibid.).
O mesmo historiador, Ramada Curto, ao levantar a questão sobre
quem melhor protagoniza o uso do vernáculo escrito na Lisboa de qui-
nhentos, informa que:
então no Largo do Pelourinho lisboeta existiam muitos homens assentados
diante de uma mesa, espécie de escrivães, copistas ou notários sem caráter de
oficiais públicos, os quais se entregavam às mais diversas tarefas da escrita:
cartas de amor, elogios, orações, versos, sermões, epicédios e também requeri-
mentos em outros papéis, tanto em estilo chão como pomposo (Curto, 1993, v.
3: 359).
Ainda informa que os “mestres de ensino das primeiras letras”, em
Lisboa, apontam para um aumento ao longo do século XVI: “de 30 ou 34

em 1551-1552 passam a 60” nos inícios do século XVII, também nessa


época duplicava-se a população lisboeta. Questiona, contudo, que pouco
se sabe acerca das diversas formas de alfabetização (id., p. 360). Apresenta
outro indicador para o uso do vernáculo: entre os juízes de Coimbra que
sabiam assinar o nome “de 1533 a 1567, a percentagem mais elevada é de
9%, enquanto de 1572 a 1581 passam a existir percentagens de 15%, 17%
e 20%” (id., ibid.).

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Esses fatos depreendidos pelo historiador da cultura do Portugal qui-
nhentista mostram a implementação do uso escrito do vernáculo, em vári-
as camadas da sociedade, embora as fontes para isso sejam rarefeitas. As
cartinhas/cartilhas, os mestres-escola, os escrivães públicos não-oficiais à
serviço da sociedade em geral, reconfiguram tempos diferentes daqueles
em que a língua de ensino era o latim, quando agora a recepção do verná-
culo escrito espraia-se pela sociedade.
Nesse novo enquadramento social, não é de admirar que comecem a
surgir as reflexões sobre o português como “(meta)linguagem sobre si mes-
mo”, na expressão já referida de Ivo Castro e o desencadeamento do pro-
cesso, que veio a ser contínuo no passar da história, o da normativização
da língua portuguesa, não só pelas exigências do livro impresso e do por-
tuguês como língua de ensino, mas também pela necessidade decorrente
da expansão colonial, em que, como se sabe, desde Nebrija, ou mesmo
anterior, a “língua é companheira do Império” (cf. Asensio, 1991[1974]).
Com essas novas reconfigurações socioculturais, o texto escrito se dis-
tanciará da “voz”, ou seja, da variabilidade do uso falado e fixará escolhas,
que a autoridade dos gramáticos respaldará, o que não ocorria, explicita-
mente até 1536. Esse fato terá efeitos evidentes sobre os estudos históri-
co-lingüísticos sobre a documentação, a partir de quinhentos, em relação
aos séculos anteriores.

3 Os novos mecanismos de controle do uso lingüístico


no Portugal de quinhentos em relação aos séculos
anteriores
Como referido, o português era escrito, a partir do século XIII, sem
que as pessoas o estudassem para escrevê-lo. Escreviam como ouviam e,
certamente, dentro de certas tradições de escrita conhecidas pelos “profis-
sionais da escrita” e próprias aos scriptoria monásticos e seculares do
Portugal medievo.
É do conhecimento geral que, até finais do século XV, não existiam ou
não sobreviveram produções metalingüísticas sobre o português. Oliveira
Marques (1964:187) afirma que entre os séculos XII a XV “usaram-se inter-
nacionalmente dicionários explicativos, mas de latim. Em Portugal ficou-
nos um pequeno glossário de verbos com a forma latina e a tradução
portuguesa”.
Provavelmente outros instrumentos semelhantes necessários ao tra-
balho da tradução latim/língua vernácula, tão implementada durante todo
o período medieval, terão existido, mas até nós só chegou o manuscrito
alcobacense, hoje na Biblioteca Nacional de Lisboa, catalogado como CDIV/
286 (Valle Cintra, 1960: 69 e Cepeda, 1995: 102), editado por Henry Carter
na revista Romance Philology em 1952-1953. Esse indício remanescente

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

pode ser uma evidência de que outros assemelhados tenham existido, que
pesquisas em arquivos poderão vir a revelar.
A partir de finais do século XV, as chamadas “línguas vulgares”, por
oposição ao latim, ou seja, os vernáculos da Europa ocidental, não só ro-
mânica, começam a ser gramatizados. No caso dos “vulgares” da Península
Ibérica, o texto mais famoso é o de António de Nebrija, a sua gramática do
castelhano, publicado em 1492, não por coincidência, ano da unificação
imperial da Espanha e da descoberta da América, sob a égide dos reis cató-
licos Isabel de Castela e Fernando de Leão. A “língua companheira do Im-
pério” motivou o surgimento dessa gramática que veio a ser, senão modelo,
no sentido estrito, das duas primeiras gramáticas sobre o português, a de
Fernão de Oliveira de 1536 e a de João de Barros de 1540, pelo menos foi
móvel e inspiração dos inícios dos estudos metalingüísticos sistemáticos
sobre o “vulgar”, língua portuguesa.
As nossas duas primeiras gramáticas, quase coetâneas, são de orien-
tações claramente distintas e seus autores, que conviveram na corte de
D. João III, são personalidades de perfil e caráter opostos, bem delinea-
dos por Maria Leonor Buescu no seu livro Historiografia da língua por-
tuguesa (1984) e em outros textos de sua autoria, tema de que é
especialista.
Para os estudos histórico-lingüísticos sobre o passado do português,
parece-me muito positivo que se disponha de uma gramática, basicamente
de cunho descritivo, como a de Fernão de Oliveira e outra, auto-de-
finidamente, “preceitiva”, ou, em termos atuais, prescritivo-normativa. A
meu ver, esses textos de orientações distintas se complementam e são
fundamentais para uma aproximação já explicitada sobre vários aspectos
da língua portuguesa da primeira metade de quinhentos.
Fernão de Oliveira se centra nas “vozes” e na forma de sua articula-
ção, dando informações claras sobre fonética e fonologia, como demons-
trou Eugenio Coseriu, no seu clássico estudo Língua e funcionalidade em
Fernão de Oliveira, recém-editado (Torres, A.; Assunção, C., 2000), além
de apresentar precisas informações sobre as “dicções”, parte de sua gramá-
tica que hoje chamaríamos de Morfologia e Lexicologia, na qual inclui pre-
ciosas informações diacrônicas, diatópicas e diastráticas, além de informar
sobre empréstimos.
João de Barros se centra nas “lêteras” e não nas “vozes” e apresenta,
ao fim de sua Gramática, a primeira proposta para a ortografia do portu-
guês. Desenvolve, em grande parte de sua obra, o estudo da “diçam”, num
enfoque que a tradição gramatical sobre o português continua a seguir,
com modificações, é claro, com base nas classes de palavras, considerando
também a sua morfologia.
Ambos pouco tratam da sintaxe. Fernão de Oliveira anuncia outro
livro sobre a “construiçam”, que não fez ou se perdeu. João de Barros, ao
concluir o estudo das “classes”, aborda alguns aspectos da “construiçam

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
das partes”, ao qual se segue um longo estudo sobre as “Figuras”, ou seja,
metaplasmos e figuras da Retórica, segundo a tradição de Quintiliano.
Com esses dois textos inaugurais, iniciam-se os estudos gramaticais
sobre o português, vencendo é claro, nos séculos seguintes, com modifica-
ções, a orientação “preceitiva” de João de Barros.
A propósito dessas duas gramáticas diz o historiador Ramada Curto:
Obras fundadoras de um trabalho de normativização e de reflexão sobre a
língua portuguesa, elas já participam de um novo programa intelectual. Em
primeiro lugar, trata-se de definir um programa, inspirado no já referido tópi-
co de Nebrija, segundo o qual a língua deverá acompanhar o império. Fernão
de Oliveira é quem melhor o apresenta, ao afirmar: ‘Apliquemos o nosso traba-
lho a nossa língua e gente e ficará com maior eternidade a memória dela, e não
trabalhemos em língua estrangeira, mas apuremos tanto a nossa com boas
doutrinas, que sempre a possamos ensinar a muitas outras [gentes]’ (1993, v.
3: 358).
A par dessas gramáticas, surgem também nos meados do século XVI
os primeiros trabalhos lexicográficos com os dicionários – latim/português
e português/latim – de Jerônimo Cardoso com edições sucessivas a partir
de 1552 até 1570 (Teyssier, 1980: 38). Só nos fins do século XVIII – 1789
– teríamos o primeiro dicionário português/português, a primeira edição
do célebre dicionário do brasileiro, em exílio, Antônio Morais e Silva.
Confrontando-se o que ocorreu entre os séculos XIII e XV, com novas
produções metalingüísticas da primeira metade do século XVI e o que veio
a seguir nesse campo, fica evidente que, para os estudos histórico-lingüísticos
sobre o português no período arcaico, só contamos com a documentação
remanescente e os dados que dali depreendemos. Nos estudos sobre o
português quinhentista não podemos ignorar e avaliar as informações e
contribuições das primeiras produções metalingüísticas sobre o português
e os inícios da normativização que neutralizarão, em parte, a variabilidade,
não só grafemática, que caracteriza os textos do período arcaico e os tor-
nam excelentes, embora complexos informantes, para dar pistas sobre os
percursos históricos que tomarão as formas de expressão em português.
Seleções serão feitas pelos escritos posteriores ao século XVI, a partir de
quando, de certo modo, tornam-se menos apreensíveis as realizações con-
viventes dos usos lingüísticos reais.

4 O alargamento do campo literário e a figura do autor


nos tempos modernos que se iniciam
O chamado “campo literário” no período arcaico pode-se admitir que
é de, relativamente, fácil delimitação. Para além da contínua produção não-
literária, a partir da 2ª metade do século XIII, classificada por Cintra (1963)
em: textos notariais, leis gerais, leis locais (forais, foros ou costumes), a
produção literária, em sentido lato e por oposição à documentação não-

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

literária, é geralmente classificada em três categorias, no que se refere à


prosa, a par do Cancioneiro Medieval Profano e Religioso: a. as narrativas
“ficcionais”, que têm como representantes os “romances” de cavalaria do
Ciclo do Graal, traduzidos do francês e o misterioso, quanto às origens,
Amadis de Gaula; b. a prosa religiosa, na sua maioria traduzida do latim,
que é uma produção vasta, melhor exemplo são os numerosos códices da
coleção alcobacense e de Santa Cruz de Coimbra; c. a prosa historiográfica.
Essas três grandes categorias de textos literários, além do Cancionei-
ro Medieval, caracterizam a primeira fase do português arcaico, isto é, até
finais do século XIV e seus autores e/ou copistas, em geral, não são co-
nhecidos, exceto os poetas dos Cancioneiros.
A partir do século XV, com as mudanças histórico-políticas, decorren-
tes da definição do espaço territorial português e da definição da identida-
de nacional, a partir da histórica vitória de Aljubarrota contra os
castelhanos, liderada por D. João I, fundador da dinastia de Avis, o panora-
ma da documentação literária se reformula. Novos tipos de textos, lato
sensu literários, aparecem, como é o caso dos de autoria conhecida da
dinastia de Avis: D. João I, D. Duarte, D. Pedro, duque de Coimbra são
príncipes escritores e vão elaborar textos não só de temática pragmática –
O livro da montaria de D. João I e a Ensinança de bem cavalgar toda sela
de D. Duarte e textos filosóficos, como o Leal Conselheiro de D. Duarte. Já
nessa altura, aponta, no âmbito cortesão, indícios de uma preocupação
com a erudita literatura da Roma clássica, como é o caso das traduções,
vinculadas a D. Pedro, duque de Coimbra, do De Oficiis (O Livro dos ofíci-
os) de Cícero e do De Beneficiis (O Livro da Virtuosa Benfeitoria) de
Sêneca. Começa assim a surgir, na primeira metade do século XV, a figura
do autor.
A historiografia, também já autoral, o que não acontecia na primeira
fase do período arcaico, inflete e se delimita no âmbito da história de
Portugal e não mais, como antes, nas grandes compilações, quais sejam as
Crônicas gerais. Essa inflecção para a história de Portugal aponta e se
inicia com Fernão Lopes, cuja obra se situa entre 1418 e 1454. Seguem-se
a ela os outros vários cronistas oficias do reino, dos quais foi ele o primei-
ro. Desde então estão definidas com clareza datas e autores dos textos
produzidos na historiografia de quatrocentos.
A prosa religiosa continua sempre, como companheira da Igreja Cató-
lica, por toda a Idade Média e nos séculos seguintes. Quanto à poesia,
Garcia de Rezende, que falece em 1536, reúne poemas de vária natureza
que recobrem textos da 2ª metade do século XV aos inícios do XVI.
Há já, portanto, uma reconfiguração no campo literário no século XV
para o XVI, por oposição aos séculos XIII e XIV, a primeira fase do portu-
guês arcaico.
Nos anos quinhentos, mas já na 2ª metade do XV, há já uma nova
orientação na historiografia que, a partir de Gomes de Zurara, centrar-se-á

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
na expansão portuguesa, orientação que terá, certamente, como obra mais
significativa, as Décadas da Ásia ou Ásia de João de Barros, textos cuja
impressão (não são mais manuscritos) se inicia em 1552.
O fato mais relevante, contudo, em oposição ao período arcaico, é o
surgimento, na segunda metade do século XVI, do primeiro cânone literá-
rio, que, em sentido metafórico, representa, de certo modo, uma
“normativização” do literário, quando arrola as obras principais do século
e que está explícito, em 1574, no Diálogo em defesa de nossa linguagem
de Pero Magalhães de Gândavo, historiador e segundo ortógrafo do portu-
guês, que seleciona um elenco de escritores e suas obras para ele as mais
significativas de então:
Francisco de Sá Miranda nas comédias e nos versos, João de Barros, autor da
Àsia, a Imagem da Vida Cristã de Frei Heitor Pinto, a prosa de Lourenço de Cárce-
re, Francisco Morais, Jorge Ferreira de Vasconcelos e Antônio Pinto, os versos de
Luis de Camões ‘de cuja fama o tempo nunca triunfará’, de Diogo Bernardes ou
de Antônio Ferreira e, ainda a Gramática de João de Barros, bem como a Histó-
ria da antiguidade de Évora de André de Rezende (Curto, 1993, v. 3: 161).
Como qualquer cânone, a subjetividade e, provavelmente, a sensibili-
dade em relação às escolhas dominantes na sociedade de então, conduz
este à relação de autores que, para um contemporâneo, serão os mais
significativos.
Assim à normativização progressiva da língua, também se inicia a
“normativização” do campo literário, ambas ausentes do período arcaico e
que vão caracterizar os novos tempos modernos.
Para quem está centrado nos estudos histórico-lingüísticos, tanto as
avaliações iniciais dos primeiros gramáticos, como o recorte canônico de
Gândavo sobre a produção literária, são elementos novos que devem ser
considerados. São guias, a serem criticamente avaliados, para os autores
de pesquisas lingüísticas do português de quinhentos, que, inevitavelmen-
te, não podem deixar de estar conscientes ao definir um corpus documen-
tal para o estudo do português do século XVI. Sem esquecer de que, tanto
para o período arcaico, como para o século XVI, o intermediador, inevitá-
vel, para os estudos histórico-lingüísticos, são as edições confiáveis sobre
que se deve pesquisar, já que não se pode, em geral, trabalhar com os
documentos originais ou manuscritos ou impressos.

5 Finalizando
Os fatores de natureza socio-histórica e cultural selecionados para
problematizar reconfigurações socioculturais de quinhentos, em relação
ao período arcaico, como se disse no início, estão certamente
interrelacionados e se enquadram nas mudanças que distinguem os “tem-
pos modernos” do “tempo dos manuscritos medievais”, que avançavam de
vários pontos da Europa para a sua margem ocidental.

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

As novas formas de produção do texto escrito ampliam a atividade da


escrita e, portanto, da sua recepção, a leitura, e essas, condicionadas não
só pelo livro impresso que avança, mas também pela implementação dos
que escrevem e do ensino das “línguas vulgares” trazem como decorrência
uma necessidade de normativização, de seleção entre os usos orais convi-
ventes, para os escritos. Normativização que não apenas atinge a língua,
mas a sua expressão na literatura, condicionando assim o surgimento de
escolhas literárias, que, pela primeira vez se define no cânone de Gândavo.
A figura do autor diluída na primeira fase do período arcaico, definindo-se
na primeira metade do século XV, impõe-se no século XVI.
A pesquisa lingüística sobre a documentação quinhentista não deve
ignorar esses fatores, pelo menos, que configurarão de forma diferenciada
os corpora a considerar:
• o universo documental, a partir dos anos quinhentos, se amplia;
• apresentam-se explícitos, ou identificáveis, autores, datas, locais
em que os textos foram escritos;
• afasta-se ainda mais da “voz”, dos usos reais, que podiam ser, em
parte, rastreados pela variabilidade da escrita documentada nos manuscri-
tos do período arcaico;
• torna-se assim, pode-se dizer, menos empiricamente motivada, a
partir dos anos quinhentos, a reconstrução histórica do nosso passado
lingüístico.

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Notas sobre avaliações lingüísticas
nos gramáticos Fernão de Oliveira
e João de Barros

Rosa Virgínia Mattos e Silva

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1 Introdução explicativa

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
O
objetivo destas notas é identificar e arrolar avaliações lingüísticas
explícitas na “primeira anotação que Fernão d’Oliveira fez da Língua
Portuguesa, dirigida ao mui manifico senhor e nobre fidalgo, o se-
nhor dom Fernando d’Almada” ou “Grammatica da lingoagem portuguesa”
(Torres e Assunção 2000: 79-155), impressa por Germam Galharde em Lis-
boa, no ano de 1536 e na “Grammatica da lingua portuguesa” (Buescu 1971:
291-368), seguida de “Da ortografia” (id.: 369-389) e do “Dialogo em lovvor
da nóssa linguágem” (id.: 390-410), obras de autoria de João de Barros,
impressas por Luis Rodrigues em Lisboa, no ano de 1540 e dedicada ao
“principe, nosso senhor” (id.: 292).
Destaco que são avaliações explícitas, porque há muitas informações
implícitas, em que não me deterei, como, por exemplo, na seguinte passagem
de João de Barros, na qual afirma: “Todo nome próprio se rége sem artigo”
(1971[1540]: 316).
Afirmativas desse tipo, que se podem depreender tanto em João de
Barros como em Fernão de Oliveira, permitem a inferência de que, no uso,
seria possível ocorrer o nome próprio “regido” por artigo.
Ou informações interpretáveis, como, por exemplo, a do sistema arcaizante
de quatro sibilantes, ainda vigente em 1536, quando Fernão de Oliveira, no
capítulo XIII, descreve o “modo de pronunciar as consoantes” (Torres e Assun-
ção 2000: 96-97).
Optei pelas informações explícitas, para não alongar este estudo, mas,
sem dúvida, a exploração do implícito e do interpretável será extremamente
significativa para o conhecimento do português da primeira metade do sécu-
lo XVI, na visão dos dois primeiros gramáticos da língua portuguesa: Fernão
de Oliveira, prioritariamente descritivista, no sentido que lhe dá a chamada
Lingüística Moderna, como demonstra Eugenio Coseriu no seu estudo já
clássico sobre esse gramático – Língua e funcionalidade em Fernão de Oli-
veira, republicado recentemente em português (Torres e Assunção 2000: 29-

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46
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

60). João de Barros, decididamente “preceitivo”, ou prescritivo, como se


pode ver no prólogo de sua Gramatica, em que, depois de se referir à sua
Cartinha, isto é, “Cartilha”, diz –“Fica agóra dármos os preçeitos da nossa
Gramatica” (Buescu 1971: 292) e, logo no início, ao definir “gramatica e
suas pártes” explica que as tratará “nam segundo convém á órdem da
Gramatica especulativa, mas como requére a preçeitiva” (id.: 294).
O que aqui designo como avaliações lingüísticas remete para o
evaluation problem, ou seja, avaliações pelos falantes das variantes de
uma variável, da teoria laboviana da variação e mudança lingüísticas, já
definido no texto inaugural dessa teoria – Empirical foundations for a
theory of language change (Weinreich, Labov, Herzog 1968: 181 e ss.). A
teoria laboviana aplica as avaliações lingüísticas, testando os usuários da
língua em foco, na perspectiva do tempo aparente ou das diferentes gera-
ções conviventes, mais recentemente, no tempo real, mas de curta dura-
ção. Quando se trabalha com o tempo real de longa duração, ou seja,
com estágios pretéritos de uma língua, não dispondo o pesquisador, como
é óbvio, dos falantes vivos, pode-se recorrer a avaliações dispersas em fon-
tes documentais de diversos tipos, entre elas, e muito significativo, o teste-
munho matalingüístico dos gramáticos, embora assistemático e eventual.
No caso da história passada da língua portuguesa, só a partir do sécu-
lo XVI, viemos a dispor de
estudos sobre a língua. Só
então o português se torna
“metalinguagem sobre si
mesmo”, na feliz expressão
de Ivo Castro (1996: 167),
não só com Fernão de Oli-
veira e João de Barros, com
os seus trabalhos inaugu-
rais de gramatização do
português, mas com os
ortógrafos do fim do sécu-
lo, Pêro Magalhães de Gân-
davo com suas Regras que
ensinam a maneira de es-
crever e a orthographia da
lingua portuguesa com um
diálogo que, adiante se se-
gue em defensam da mes-
ma língua de 1574 (Buescu
1981) e Duarte Nunes do
Leão com sua Orthogra-
phia da lingua portuguesa
de 1576 e sua Origem da Reprodução da portada da Grammatica de Fernão de
Oliveira

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
lingua portuguesa, já dos inícios do século XVII, 1606 (Buescu 1984: 166).
Além disso, dispõe-se ainda dos primeiros estudos lexicográficos do pri-
meiro dicionarista do português, Jerônimo Cardoso, com os dicionários
latim/português e português/latim, que tiveram edições sucessivas, a partir
de 1552 até 1570 (Teyssier 1980: 38).
Assim sendo, a partir de 1536, diferentemente do que ocorria no perío-
do arcaico do português, além da documentação remanescente do passado
e dos estudos filológicos e lingüísticos, realizados a partir do século XIX,
conta-se com preciosas, embora nem sempre precisas, e circunstanciais in-
formações avaliativas, explícitas, implícitas e interpretáveis dos gramáticos,
decorrente do processo, que se fez ininterrupto, a partir do século XVII, com
a gramatização da língua portuguesa.
O que quero deixar claro é que, a partir do período moderno, para
outros designado de clássico do português, que poderá ter como limite
inicial 1536/1540, para os estudos histórico-diacrônicos de mudança lin-
güística de longa duração na língua portuguesa, a companhia dos gramáticos
se associará à base essencial desses estudos, ou seja, à documentação es-
crita remanescente, nos seus originais manuscritos e/ou impressos ou em
edições confiáveis para estudos lingüísticos, além, é claro, das teorias
interpretativas que nortearão, como bússolas, as análises dos fatos
lingüísticos do passado e suas mudanças no tempo.

2 Breves informações sobre a história de vida de Fernão


de Oliveira e de João de Barros e breve síntese de suas
gramáticas
O que pretendo neste item não é traçar biografias dos dois gramáticos,
mas depreender fatos biográficos que, provavelmente, se refletiram na
vivência lingüística diferenciada de cada um, no que se refere ao português
de sua época, já que, embora contemporâneos – Fernão de Oliveira nasce
em 1507 e morre em 1580 ou 1581 e João de Barros é de 1496 e falece em
1570 ou 1571, vivendo ambos a sua maturidade no reinado de D. João III,
que é coroado em 1521 e morre em 1557. Os fatos aqui selecionados se
baseiam, fundamentalmente, no livro de M. L. Buescu – Historiografia da
língua portuguesa – séc. XVI (1984).
Fernão de Oliveira nasce em Aveiro, na Beira Litoral, passa a infância
na região beirã, mas aos treze anos já é noviço no convento dos dominicanos
de Évora, no Alentejo, convento que abandona em 1532. Vive, portanto,
dos treze aos vinte e cinco anos nessa região. Dedica-se depois a lecionar
jovens fidalgos, inclusive os filhos de João de Barros, do que se pode inferir
que viveu na corte, em Lisboa. De 1540 a 1547 viaja pelo mundo, vivendo
na Itália entre 1540 e 1543. Entre 1547 e 1557 é preso por duas vezes pela
Inquisição, ou por tendências heréticas ou como cismático. Em 1565 ensi-

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

nava numa escola da ordem dos Espatários, em Palmela, ao sul de Lisboa,


na Estremadura litorânea e recebia uma tença do jovem rei dom Sebastião.
Assim, Beira, Alentejo, a corte lisboeta e Palmela, além das viajens por
outras terras, delimitam o espaço conhecido no qual transcorreu a vida de
Fernão de Oliveira.
João de Barros, de família fidalga, nasceu, provavelmente, em Viseu,
na Beira Alta e, sendo bastardo e órfão, é aos treze anos acolhido nos
Paços da Ribeira, centro da corte portuguesa de então, em Lisboa. Aí fará a
sua carreira de alto funcionário do rei, desde a primeira função oficial, a de
moço do guarda-roupa do futuro rei D. João III; em 1520 lhe outorgam o
governo da Fortaleza de São Jorge da Mina, na África, cargo que parece não
chegou a exercer. A partir de 1525 começa a trabalhar na Casa da Índia,
primeiro como tesoureiro e, a partir de 1533, com o alto cargo de Feitor da
Casa da Índia, o que exerce cerca de trinta e cinco anos. Em 1535, conce-
deu-lhe o rei D. João III a Capitania do Maranhão, no Brasil, mas nunca a
ela foi, enviando, associado a outros, uma expedição, que lhe foi desastro-
sa por prejuízos econômicos e pela perda de dois dos seus filhos. Em 1567,
retira-se para sua quinta, em Pombal, Beira litorânea, com avultadas tenças
régias, mas insuficientes para os débitos contraídos com a expedição para
o Maranhão, que seus herdeiros deveriam pagar, como recomenda no seu
testamento. Assim, Beira Alta, Lisboa, Beira Litoral delimitam o espaço
conhecido pelo qual transcorreu a vida de João de Barros, mais restrito,
sem dúvida, que o de Fernão de Oliveira. Não se pode, contudo, deixar de
ressaltar o fato de que, sendo funcionário da Casa das Índias, centro prin-
cipal do comércio do império português, de 1525 a 1567, tenha convivido
com falantes de variadas áreas e classes sociais de Portugal, além de africa-
nos e asiáticos, que por ali transitaram, nesse momento histórico da ex-
pansão portuguesa pelo mundo.
Como curiosidade histórico-lingüística, vale destacar que os primei-
ros gramáticos do português são beirões, área central de Portugal, e aí
passam a sua infância e início da adolescência, já que ambos, aos treze
anos, coincidentemente, é que deixam a sua região natal, seguindo um
para Évora e outro para Lisboa
Esses dados das histórias de vida de Fernão de Oliveira e de João de
Barros permitem afirmar que adquiriram o seu vernáculo ou “dialeto de
casa”, o primeiro no limite norte dos “dialetos meridionais” de Portugal e
o segundo, em área dos “dialetos setentrionais”, deslocando-se depois
ambos para áreas dos “dialetos meridionais” – Évora, Fernão de Oliveira e
Lisboa, João de Barros – segundo as delimitações da Dialectologia do sécu-
lo XX (cf. Lindley Cintra 1964-1971: 81-116).
Com essas breves notas pretendi esclarecer que tanto Fernão de Oli-
veira como João de Barros teriam tido um conhecimento amplo da diversi-
dade do português do seu tempo e, sem dúvida, isso se reflete nas suas
obras gramaticais, filtrado, porém, pelas orientações distintas de cada um
deles, que, resumidamente, podem ser delineadas, como a seguir:

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a. A Anotação de Fernão de Oliveira se centra, fundamentalmente, na
análise do que hoje designamos de fonética articulatória, descrevendo as
“vozes” do português e dando indicações para a sua representação gráfica
(as “lêteras”). É considerado o primeiro foneticista, avant la lettre, do por-
tuguês, com intuições fonológicas, como destaca Eugenio Coseriu, no estu-
do antes referido. Ocupa com isso dez capítulos (VIII a XVIII) dos cinqüenta
da sua obra. Ainda dedica nove capítulos à sílaba (XIX a XVII). Nos capítulos
XXVIII e XXIX trata do acento de palavra. Do capítulo XXX ao XXXIX explo-
ra as “dicções” ou “vocabúlo ou palavra, tudo quer dizer a mesma coisa” (cf.
cap. XXX). O seu estudo aí se centra no que hoje chamamos de morfologia
derivacional e lexicologia. Apresenta a sua classificação de natureza
derivacional, à qual se segue, dos capítulos XXXVI ao XXXIX um estudo das
“dicções”, que hoje se consideraria como de natureza histórica e dialetal, em
que distingue usos regionais, estráticos ou sociais, etários e cultos, na termi-
nologia atual. Do capítulo XL a XLIX (Da analogia) apresenta suas reflexões
sobre a morfologia flexional do português e, no final, anuncia outro livro
sobre a “construiçam ou composição”, ou seja, a sintaxe, obra que, se fez,
não chegou ao presente, pelo menos, até agora.
b. João de Barros se centra nas “lêteras” e não nas “vozes”. Inicia sua
Gramatica com uma curta apresentação histórica da representação gráfi-
ca, com base, explícita, nos gregos e latinos, a que se segue um breve
capítulo sobre a sílaba. Segue-se à Gramatica, no final, a sua Ortografia,
primeira proposta ortográfica para o português, com regras sucessivas e
sistemáticas para o uso de cada “lêtera”, finalizando com observações so-
bre os sinais de pontuação. João de Barros ocupa quase toda a Gramatica,
que não está numerada em capítulos, com a “diçam”, num enfoque, com
base nas classes de palavras. Segue-se a essa classificação circunstanciada
um capítulo que poderíamos chamar hoje de morfossintaxe, em que está
subjacente a noção de função sintática. Apresenta, por fim, um longo capí-
tulo, intitulado “Das figuras” – “figuras e viçios que assi na fala como na
escritura cometemos” (1971[1540]: 357) – segundo a tradição explícita do
gramático latino Quintiliano.

3 Avaliações lingüísticas explícitas depreendidas em


Fernão de Oliveira e em João de Barros
O que designo de “avaliações explícitas”, já esclarecida a denomina-
ção na Introdução explicativa deste texto, abarcarão informações avalia-
das sobre arcaísmos, neologismos, regionalismos, estrangeirismos, usos
em variação, usos “censurados”, que darão informações precisas, muitas
delas, mas outras nem sempre muito claras, segundo a ótica, ou posição
teórica, dos dois gramáticos sobre a língua portuguesa em 1536/1540.
Os fatos detectados estão organizados da seguinte forma: avaliações
coincidentes nos dois gramáticos (3.1); avaliações divergentes neles (3.2);

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

avaliações próprias a Fernão de Oliveira (3.3); avaliações próprias a João


de Barros, anotadas na seguinte ordem: as fônicas, as mórficas, as léxicas.
Para Fernão de Oliveira utilizei, nas transcrições das passagens focaliza-
das, a edição crítica de Amadeu Torres e Carlos Assunção (2000: 79-155) e
para João de Barros, a edição crítica de Maria Leonor Buescu (1971: 291-410).

3.1 Avaliações coincidentes em Fernão de Oliveira e João de Barros


Considerei coincidente, quando os dois autores, tratando de um mes-
mo fato lingüístico, emitem posições que não se opõem, embora as
contextualizações nas respectivas gramáticas sejam distintas e a argumen-
tação própria a cada autor. Dessas avaliações coincidentes só detectei dois
casos:
a. Sobre a convergência das nasais finais [ã] e [õ] no ditongo nasal
[ã"!!]# :
Fernão de Oliveira, no capítulo XLV, ao tratar do número dos nomes,
diz dos nomes em <ão> final:
A parte desta regra que mais compreende é dos nomes que mudam todo o
ditongo, como lição, lições; podão, podões; melão, melões. Estes nomes,
posto que parecem mudar mais que nenhuns dessoutros que já dissemos, toda-
via se olhármos ao singular antigo que já tíveram, não mudam tanto como
agora nos parece, porque estes nomes todos, os que se acabam em ão ditongo,
acabavam-se em om, como liçom, podom, melon, e acrescentando e e s for-
mavam o plural lições, podões, melões, como ainda agora fazem. E outro
tanto podemos afirmar dos que fazem o plural em ães, como pães e cães, dos
quais antigamente era o seu singular pã, cã, cujo testemunho aind’agora dá
Antre-Douro e Minho (147, ls. 10-17).
Por essa exposição, vê-se que a convergência em <ão> já havia ocor-
rido, pelo menos nos nomes, e destaca o regionalismo arcaizante de pã e
cã no norte de Portugal, em Entre-Douro-e-Minho.
João de Barros, ao tratar da “Formaçám dos nomes em o plurár”, diz:
Os mais dos nomes que deviám acabár em –am, se escrevém a este modo:
razão, razões. E se o uso não fosse contrairo, que tem gram força àçerca das
cousas, não me pareceria mal desterrármos de nós esta prolaçam e ortografia
galega. Porque, a meu ver, quando quisérem guardar a verdadeira ortografia
dessas dições, se déve dizer: razám e no plurár razões... Os que pouco sentem
quérem remediar o seu desfalecimento escrevendo agalegadamente, poendo
sempre o final em todalas dições que acabam em am. E se a regra deles fosse
verdadeira, em todolos vérbos que na terçeira pessoa de número plurár acábam
nesta silaba am o deviam usar, e assi em outras muitas como pám e cám. Isto
nam guardam eles, pois vemos que na formação do plurár dizem cães e pães,
porque vem eles, muito ao olho seu erro: que não podem dizer paões e cãóes.
Assi, que a verdadeira formaçám destes nomes terminados em am, quando
vier ao plural diremos formações, convertendo am final em õ, escrito a este
modo, e acreçentando-lho es (317, ls. 7-9 e 318, ls. 1-8).

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Apesar da exposição de João de Barros não ser tão clara quanto a de
Fernão de Oliveira, evidencia ela a convergência de <am> e <om> no
ditongo [ã"!#]. Compara com a “prolaçam e ortografia” galegas, em que a
ditongação não ocorria, criticando as incoerências que destaca nos galegos
e nos que escrevem “agalegadamente”.
b. A outra avaliação coincidente se refere ao léxico, ao neologismo
bombarda:
Ao falar das “dições novas”, no capítulo XXXVII, diz Fernão de Olivei-
ra como se criam neologismos e exemplifica:
Achar dições novas “en parte” e não de todo é quando, para fazer a voz nova que
nos é necessária, nos fundamos em &'()"!a cousa, como em bombarda, que é
cousa nova e tem vocabolo novo, o qual vocabolo chamaram assi por causa do
som que elle lança, que é quasi semelhante a este nome bombarda ou o nome
a elle, e daqui também tiramos estoutro isso mesmo novo, esbombardear
(130, ls. 10-15).
Fernão de Oliveira ressalta a necessidade de “vocabolo novo”, quan-
do surge “cousa nova”.
Ao falar, nas Figuras, da onomatopéia diz João de Barros:
onomatopéia quer dizer fingimento de nomes. Desta figura usaram os antigos
quando, para denotár bombarda, lhe chamaram trom, dô que faz quando tira
(367, ls. 3-5).
João de Barros associa o neologismo bombarda ao antigo trom,
ambos onomatopaicos, embora, pelo dito em Fernão de Oliveira, se
depreende que o neologismo se refere a “cousa nova”, diferente, portan-
to, do trom. De fato, trom e bombarda são peças de artilharia diferenci-
adas, embora semelhantes na sua função e no seu efeito sonoro. Ambos,
contudo, estão de acordo com o fato de bombarda ser uma “dição” nova,
um neologismo.

3.2 Avaliações divergentes em Fernão de Oliveira e João de Barros


Tal como em 3.1, considerarei divergente, quando os dois autores,
tratando de um mesmo fato lingüístico, emitem opiniões contrárias, com
contextualizações distintas nas suas gramáticas e com argumentação pró-
pria a cada um. Também nelas só detectei dois fatos:
a. Trata-se da morfologia da 1a. pessoa do singular do presente do
indicativo do verbo ser.
No capítulo XLVII, ao tratar dos verbos, diz Fernão de Oliveira:
o verbo sustantivo, o qual pronunçiam em om, como som e outros que eu mais
favoreço, em o pequeno, como so. No pareçer da primeira pronunciação com o
e m, que diz som, é o mui nobre João de Barros; e a razão que dá por si é esta:
que de som mais perto vem a formação de seu plural somos. Contudo, sendo eu
moço pequeno, fui criado em São Domingos d’Évora, onde faziam zombaria de
mim os da terra, porque o assi pronunciava segundo o que aprendera na Beira
(150, ls. 22-28 e 151, ls. 1-2).

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Nessa passagem, Fernão de Oliveira apresenta a variação então exis-


tente – som, sou e so, mencionando o seu favorecimento por so, pronúncia
destacada como beirã e a preferência do “mui nobre” João de Barros por
som. Note-se que é esta uma das duas passagens em que Fernão de Olivei-
ra, na sua gramática, se refere a João de Barros, embora este nunca se
refira a Fernão de Oliveira.
Sobre este fato diz João de Barros, ao tratar da “Difinçam e divisám do
verbo”:
Dos primeiros [verbos substantivos] temos este sou, ao qual chamamos
sustantivo porque demóstra o ser pessoal da cousa, como quando digo: eu sou
criatura raçional (325, ls. 7-9).
Ao tratar “Das formações” dos verbos diz:
E o verbo sustantivo sou também careçe da regra geral dos vérbos, por-
que faz infinitivo em er; e, quando ô trazemos ao primeiro presente, dizemos
sou. E por ser mui irrégular em suas formações nam falaremos mais dele (344,
ls. 19-21).
Não confirmam as atestações em João de Barros a afirmativa de Fernão
de Oliveira de que o “mui nobre” gramático preferia som e dá as razões de
João de Barros. De todo modo João de Barros não “favorece” so, como
Fernão de Oliveira. Também não aponta a variação em uso, como o faz
Fernão de Oliveira, afirmando a forma sou. Desse fato, pode-se inferir que
Fernão de Oliveira, ao se referir a João de Barros, não estava se baseando
no texto da Gramática de 1540, já que diz, em 1536, que preferia João de
Barros som.
b. A outra divergência se refere à forma da preposição até.
Fernão de Oliveira, no capítulo XXXV, ao tratar das “dicções juntas ou
compostas”, diz:
Quero dizer deste avérbio até, o qual antre nós responde ao que os latinos
dizem usque, este avérbio, digo,*&'()"!"+ o pronunciam conforme o costume da
nossa língua que é amiga d’abri-la boca; e dão-lhe aquella letra a que digo no
começo. Mas outros lhe tiram esse a e não dizem até mas té, não mais, come-
çando em t, entre os quaes eu contarei três não de pouco respeito na nossa
língua, antes se há de fazer muita conta do costume de seu falar. E são eles:
Garcia de Rezende, em cujas obras o eu li no Cancióneiro português que elle
ajuntou e ajudou; e João de Barros, ao qual eu vi afirmar que isto lhe parecia
bem; e o mestre Baltazar, com o qual falando lhi ouvi assi pronunciar este
avérbio que digo sem a no começo. E contudo a mim me parece o contrário; e
ao contrário o uso, dando-lhe a no começo assi como damos a muitas dições
(126, ls. 10-23).
Fernão de Oliveira admite a variação até/té, a primeira é a que ele
elege e usa e traz testemunhos do uso de té por “três não de pouco respei-
to”. Note-se que é esta a segunda referência de Fernão de Oliveira a João
de Barros e não com base na gramática deste, versão que poderia ter co-
nhecido antes da impressão em 1540, mas “ao qual eu vi afirmar que isto
[té] lhe parecia bem”. Que os dois gramáticos conviveram é certo, sobretu-

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
do porque é um fato histórico o de Fernão de Oliveira ter sido professor de
filhos de João de Barros. Parece contudo que não consideraram as suas
obras gramaticais coetâneas, já que nas duas referências a João de Barros,
Fernão de Oliveira não se baseia nelas (vejam-se como faz as duas men-
ções a João de Barros em a e b) e João de Barros, por sua vez, não se refere
a Fernão de Oliveira.
João de Barros, ao tratar “Das figuras”, inicia com a “Próstesis” e diz:
Prostesis, que é a primeira espeçia [do nosso barbarismo], quér dizer
acreçentamento; comete-se este viçio quando se acreçenta algúa lêtera ou síla-
ba ao principio de qualquer diçam, como quando dizem até qui por té qui,
acreçentando a lêtera a (358, ls. 1-4).
João de Barros admite a variação até/té, como Fernão de Oliveira, e
considera a primeira variante um “viçio”. Acrescento que, nos textos que já
analisei de João de Barros, ele é coerente no seu uso de té, embora não
tenha eu feito uma observação sistemática e exaustiva sobre esse fato na
obra desse autor.

3.3 Avaliações depreendidas em Fernão de Oliveira


Como dito anteriormente, seguirei a seguinte ordem: avaliações fônicas
(3.3.1); avaliações mórficas (3.3.2) e avaliações léxicas (3.3.3).
3.3.1 Avaliações fônicas
Não cabe ao objetivo deste estudo voltar à notável descrição de foné-
tica articulatória, avant la lettre, desenvolvida por Fernão de Oliveira nos
capítulos VIII a XVIII da sua Anotação, já muito interpretada pela filologia
e lingüística histórica sobre o português, destacando-se, sem dúvida, a
análise circunstanciada feita por Eugenio Coseriu, já antes referida, que o
considera não só foneticista, mas com intuições de fonólogo, também avant
la lettre. Nesses capítulos, entre muitos outros fatos, se refere, por exem-
plo, que em 1536 persistia o sistema, próprio ao período arcaico, de qua-
tro sibilantes (duas fricativas ápico-alveolares e duas africadas ou fricativas
predorsodentais).
As avaliações explícitas que depreendi no que se refere ao nível fônico
são as duas seguintes:
a. A primeira se refere à articulação [,-] e não [d,-], já considerada
própria aos “nossos antigos” por Fernão de Oliveira. No capítulo VI, quan-
do trata das “leteras” e “figuras” diz:
...mas )"!& mesma nação e gente de hum tempo a outro muda as vozes e tam-
bém as letras. Porque doutra maneira pronunciavam os nossos antigos este
verbo tanger e doutra o pronunciamos nós (90, ls. 5-8).
Refere-se à perda da africada [d,-], apresentada pelo <g>, em provei-
to da fricativa [,-], o que se pode confirmar, quando, no capítulo XIII, ao
tratar do modo de pronunciar as consoantes diz: “A pronunciação do g
como a do c, com menos força do espirito” (96, l. 13).

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Nessa passagem se infere que, tal como o [,-] sonoro (= “como me-
nos força do espírito”), o c, já não seria também a africada [ts], mas a
fricativa surda [s] predorsodental, que descreve logo no início desse capí-
tulo:
c pronunciase dobrando a lingua sobre os dentes queixaes, fazendo hum certo
lombo no meio della diante do papo, quasi chegando com esse lombo da lín-
gua ò ceo da boca e empedindo o espírito o qual por força faça apertar a lingua
e faces e quebra nos beiços com impeto (96, ls. 4-7).
b. A segunda se refere à variação das consoantes líquidas <l> e <r>
em grupos consonantais. Diz, no capítulo XV, ao tratar das “letras líquidas”:
Porque dissemos que l é letra líquida, saberemos que a forma e melodia de
nossa lingua foi mais amiga de por sempre r onde agora escrevemos às vezes l
e às vezes r, como gloria e flores, onde diziam grorea e froles (100, ls. 19-22).
Além de indicar a variação contemporânea (“onde escrevemos às ve-
zes l e às vezes r”), avalia que antes (“onde diziam”) se preferia o <r>.
3.3.2 Avaliações mórficas
As avaliações mórficas explícitas, duas se referem à morfologia flexional
e duas à morfologia derivacional:
a. A primeira se refere à morfologia flexional do verbo, está no capítu-
lo XXVI, quando trata da “mudança de algh"!as letras”:
E nos verbos, nas derradeiras silabas das segundas pessoas do plural que
acabavam em –des, agora mudamos o –des em –is e ajuntamo-lo em ditongo
com a vogal que ficaria antes, como fazeis por fazedes e amais por amades (110,
ls. 2-4).
Fernão de Oliveira nessa passagem não só se refere ao –des etimológico
como arcaísmo (“acabavam em –des), mas já indica a ditongação, decor-
rente do hiato que se fez com a síncope do –d–. A mudança no morfema
flexional de segunda pessoa do plural já estava completa em 1536, segun-
do a descrição clara do gramático.
b. A segunda, que também se refere à morfologia flexional, está no
capítulo XLV, quando trata do número dos nomes de lexemas terminados
em <l>, que considera como exceções à regra geral:
Dos nomes acabados em ol parece que devíamos tirar &'()"!a eiceção, porque
alghuns nomes temos cuja rezã e boa voz requere que se não acabem em ois,
posto que o costume não seja por )"!& parte mais que outra, como são portacol,
portacolos, e não portacois nem portacoles; este porque soa assi melhor. E sol
fará soles e não sóis; e rol, roles, por diferença das segundas pessoas destes verbos
verbos soio, soes por acostumar, e roio, roes por roer (148, ls. 11-13).
Aqui Fernão de Oliveira aconselha plurais que fogem à regra geral ou
porque soa melhor – portacolos, ou para distinguir de formas verbais
homófonas – o caso de soles e roles. Este fato é interessante para a histó-
ria da língua portuguesa, porque o sugerido pelo gramático de 1536 impli-
ca que haveria variação na sua época, nesses casos; também se torna
significativo porque a norma que virá a ser estabelecida selecionará proto-

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
colos, como ele propõe, com a metátese do <r> da primeira sílaba, mas
selecionará, ao contrário do que propõe Oliveira, sóis e róis.
c. No capítulo XLI, sobre as “dições tiradas ou dirivadas” apresenta
derivações sufixais de base nominal em que o sufixo destacado é variável e
nem sempre coincide com o que o correr da língua seleciona:
E também dizemos sarnoso e não sarnento; mas ao contrairo chamamos ao
cheo de sarapulhas, sarapulhento e não sarapulhoso. E de pedras dizemos pedre-
goso, mas d’area areento e do pó, nem poento nem pooso, mas em outra figura
e sinificação, empoado (137, ls. 12-15).
Adverte ele, com toda procedência, ao iniciar o parágrafo: “E mais
saberemos que não todas as especeas das dições tiradas são assi livres
para poderem andar por onde quiserem”(137, ls. 2-3).
Hoje selecionamos, dos exemplos dados, sarnento, mas arenoso, con-
tinuamos a usar pedregoso. Empoeirado será o derivado de pó e empoado,
de fato, tem “outra figura e significação”. Sarapulhas, sarapulhento terá a
ver com o substantivo atual sarapilheira (‘aniagem’)?
d. No capítulo XLV, em que trata de “outras dições tiradas e eiceições”,
chama a atenção para advérbios que acabam em mente e associa a deriva-
dos de verbos em mento, que já seriam arcaísmos:
...Os avérbios, os quaes, quando são tirados, polla maior parte ou sempre
acabam em mente, como compridamente, abastadamente, chammente; e pórem
não há hi muitos que não são tirados, como antes, depois, asinha, logo. E quasi
podemos notar que os avérbios acabados em mente sinificam calidade; e não
todos os que sinificam calidade acabam em mente porque já agora não dire-
mos prestemente, como disseram os velhos, e nem raramente, os quaes velhos
também foram amigos de pronunciar huns nomes verbais em mento, compri-
mento, afeiçoamento e outros que já’gora não usamos (140, ls. 15-19).
Vale notar, nesta passagem, que raramente não nos parecerá “velho”,
mas, de mais interesse, é a menção aos “velhos amigos de pronunciar”
derivados de verbo com o sufixo mento, como se sabe, muito usado na
morfologia sufixal no período arcaico.
3.3.3 Avaliações léxicas
Suas avaliações sobre o léxico, a “dicções”, indicam arcaísmos, neolo-
gismos, etimologias, estrangeirismos. Tratarei delas, na seqüência em que
ocorrem no seu texto.
No capítulo XXX, ao iniciar a parte referente a “Das dições”, na classi-
ficação que apresenta dessas “dições” (nossa, alhea, comum, apartadas,
velhas, novas e próprias) exemplifica arcaísmos, neologismos e palavras
do uso corrente:
E cada )"!& destas... ou são velhas, como ruão, compengar, cicais, ou novas, como
peita e arcabuz, ou usadas como renda, sisa, casa, corda (118, ls. 28-29).
No capítulo XXXI, em que trata da “etimologia das dições”, diz que as
nossas “dições” são as que nasceram entre nós ou que são antigas que não
sabemos se vieram de fora. Nesses casos a gramática deve procurar saber

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

“donde, quando, porquê e como foram feitas” e exemplifica, dando infor-


mações histórico-lingüísticas significativas:
...donde foram feitas, como pelota de pele, assi como também já foi, em tempo
del-rei dom Afonso Amriquez, capa-pelle; quando foram feitas, como sisa em
tempo del-rei dom João o primeiro; porque foram feitas, como Aveiro, nome de
lugar, porque nessa terra morava hum caçador d’aves... (119, ls. 7-11).
Fica-se assim informado que capa-pelle remonta, pelo menos, ao sé-
culo XII e sisa, pelo menos, aos fins do XIV.
No capítulo XXXII, ao tratar das “dições alheas”, além de justificar a
razão de estrangeirismos, informa sobre o tempo do empréstimo:
As dições alheas são aquellas que doutras linguas trazemos à nossa por &'()"!&
neçessidade de costume, trato, arte ou cousa &'()"!& novamente trazida à terra.
O costume novo traz à terra novos vocábulos, como agora pouco nos trouxe este
nome picote, que quer dizer burel... e alguicé tão-pouco é vestido de nossa terra;
por isso também traz o nome estrangeiro consigo. E arcabuz há sete ou oit’annos
pouco mais ou menos que veo ter a esta terra, com seu nome nunca conhecido
nella (121, ls. 4-10).
Fica-se a saber, por estes exemplos, que picote é empréstimo recente
e, em arcabuz, o empréstimo está cronologicamente preciso.
No capítulo XXXVI, em que trata das “dições velhas” apresenta um
grande rol de arcaísmos já no seu tempo:
As dições velhas são as que foram usadas, mas agora são esquecidas como Egas,
Sancho, Diniz, nomes próprios; e ruão, que quis dizer cidadão... em tempo del-
rei dom Afonso Amriquez capa-pelle era nome de uma certa vestidura. E não
somente de tanto tempo, mas também, antes de nós hum pouco, nossos pais
tinham &'()"!&+ que já não são agora ouvidas, como compengar, que queria
dizer comer o pão com a outra vianda e nemichalda, o qual valia como agora
nemigalha... A carão que quer dizer junto ou a par e samicas, que sinifica
porventura, e outras piores vozes ainda agora as ouvimos e zombamos dellas.
(128, ls. 3-23).
Ainda neste capítulo destaca arcaísmos recentes, ainda ouvidos em
áreas regionais e rurais, tornando-se portanto regionalismos:
...&'()"! & s dições que há pouco são passadas, são já agora muito
arvorreçidas como abém, ajuso, acajuso, assuso e hoganno, algorrém e outras
muitas. E porém se estas e quaesquer outras semelhantes se as metéremos em
mão d’h"! homem velho da Beira ou aldeão, não lhe parecerão mal (125, ls. 13-
18).
No capítulo XLIII trata da lexia el-rei e dá seu “parecer”.
Aqui quero lembrar como em Portugal temos )"!& cousa alhea e com grande
dissonância onde menos se devia fazer, a qual é esta: que a este nome rei damos
lhe artigo castelhano chamando-lhe el-rei. Não lhi haviamos de chamar senão
o rei, posto que alghuns doces d’orelhas estranharão este meu parecer, se não
quiseram bem olhar quanto nelle vai. E contudo isto abasta para ser a minha
milhor musica que a destes, porque o nosso rei e senhor, pois tem terra e
mando, tenha também nome próprio e destinto por si, e a sua gente tenha fala
ou linguagem não mal mesturada mas bem apartada (142, ls. 21-29).

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Apresenta-se aqui um fato sociolingüístico, ideologicamente funda-
do, que bem reflete uma questão de política lingüística e de identidade
nacional no século XVI ibérico. Nota-se, contudo, que se pode verificar, em
passagens anteriores, que, apesar de sua crítica explícita, respeita ele o
uso, que considera castelhanismo, de el-rei.

3.4 Avaliações depreendidas em João de Barros


Seguirei o mesmo percurso, considerando as avaliações fônicas (3.4.1);
as mórficas (3.4.2) e as léxicas (3.4.3). Como seria de esperar, pela nature-
za “preçeitiva”, estruturada já como uma “ars grammatica”, da obra de
João de Barros, fundada, basicamente, na “lêtera” e não na “voz”, as avali-
ações buscadas são menos freqüentes, mas existem.
3.4.1 Avalições fônicas
Contrastando com Fernão de Oliveira que a partir das “lêteras” des-
creve, circunstanciadamente, as “vozes”, ou seja, como são as letras articu-
ladas ou pronunciadas, João de Barros tem por objetivo estabelecer “regras”
para a escrita. Assim, na sua Da ortografia (1971: 365-388), encontra-se,
a cada passo, o como “devemos escrever” ou o “não podemos escrever”.
Difícil seria aí encontrar informações avaliativas sobre usos variáveis no
seu tempo .
Contudo, quando trata das Figuras, apresenta informação sobre rea-
lização fônica antiga, ao exemplificar a “paragoge”:
Paragoge quer dizer acreçentamento; comete-se este viçio quando em fim d’alg"!a
palávra se acreçenta lêtera ou silaba, como se fáz nos rimançes antigos que, por
fazerem consoante, diziam: ôs que me querem guardare por guárdar (358, ls. 18-
21).
Se estivesse buscando inferir informações, a partir de suas “regras”,
provavelmente, encontraria outros dados, mas como já declarado anterior-
mente, está-se aqui a buscar avaliações explícitas, como esta última, sobre
avaliações fônicas.
Avaliações mórficas
Quanto às avaliações mórficas, encontrei três informações significati-
vas e explícitas. Uma sobre a morfologia nominal (a), duas sobre a verbal
(b e c) e um fato morfossintático diacrônico (d).
a. Ao tratar “Da formaçám dos nomes em o plurár”, diz sobre o plural
de palavras em <ál>: “mál e cál de moinho, pareçe que os [h]ouvemos de
Castela, porque ôs formamos acrescendo-lhe es e dizemos: máles, cáles”
(317, ls. 2-4)
Realizações que considera empréstimos do castelhano e fogem à sua
regra:
ôs que se acábam em ál, él, ól, ul, formam-se perdendo a lêtera l e tomando esta
silaba es, e dizemos: cardéal, cardeaes; papél, papées; faról, faróes; taful, tafues.

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En esta regra não entram os nomes de "!a silába como: sál, mél, sól, sul, porque
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

são irregulares e não tem plurár (316, ls. 21-23 e 317, 1-2).
Veja-se, no item 3.3.2b, o que propõe Fernão de Oliveira para sol e rol.
b. Quando trata das Figuras, ao definir a antitésis, exemplifica com a
variação gráfica e, provavelmente, fônica, do perfeito dixe/disse do verbo
dizer:
Antitésis quér dizer postura de lêtera "!a por outra, como quando dizemos [grifo nosso]
dixe por disse. A qual figura é açerca de nós mui usáda, prinçipalmente nestra lêtera x
que tomámos da pronunciaçám mourisca, ainda que alguns digam que devem dizer
dixe porque o preteríto latino deste vérbo dico faz dixi (355, ls. 17-21).
A sua regra é favorável a disse e considera a variante dixe interferência
da pronúncia dos árabes (“mourisca”).
c. Trata-se do particípio passado dos verbos da 2ª. conjugação. Diz a
regra de João de Barros:
Tódo verbo de segunda conjugaçám fáz no preterito perfeito em i e no
partiçipio em –ido, como: leo – li – lido. Tiram-se desta regra aprouve, trouve,
coube (342, ls. 4-7).
Embora não esteja explícito, fica claro que para o normativista de
1540 o particípio passado dos verbos da “segunda conjugaçám” não fa-
zem mais o particípio em <udo>.
d. Na Ortografia, ao tratar da “lêtera u”, apresenta uma informação
diacrônica precisa:
O segundo u sérve na composiçám das dições e antigamente servia per si de
avérbio local, como quando se dizia: U vás? U moras? A qual já não usamos
(380, ls. 1-3).
Embora não seja este um fato estritamente mórfico, mas antes
morfossintático, foi incluído aqui, sobretudo, pela avaliação diacrônica so-
bre o seu caráter arcaico em 1540.
3.4.3 Avaliações léxicas
Ao iniciar o que designa de terceira parte de sua Gramatica, “Da diçam”,
recusa-se a apresentar etimologias porque “se quisérmos buscar o funda-
mento e raiz donde vieram os nossos vocábulos, seria ir buscar as fontes do
Nilo”. Mas afirma que:
Basta saber que temos latinos, arávigos e outros de diversas nações que
conquistámos e com que tivémos comérçio – assi como eles tem outros de nós
(198, ls. 16-18).
Admite, portanto, os empréstimos lexicais e nomeia suas origens, con-
siderando, em destaque, os “latinos” e ‘arávigos”. Genericamente outros,
dando as razões para isso.
No Diálogo em louvor de nossa linguagem volta aos empréstimos,
respondendo a uma pergunta do “Filho”, seu interlocutor:
Mas agóra, em nossos tempos, com ajuda da empressam, deu-se tanto a gente
castelhana e italiana e francesa às treladações latinas, usurpando vocábulos,
que ôs fez mais elegantes de que foram óra [h]á çincoenta anos. Este exerçiçio, se

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
ô usáramos, já tiverámos conquistada a lingua latina, como temos África e Ásia,
á conquista das quáes nos máis demos que às treladações latinas. E o sinal desta
verdáde, é que, nam sòmente temos vitória déstas pártes, mais ainda tómamos
muitos vocábulos, como podemos ver todolos que começam em ÁL e em XÁ, e os
que acabam em Z, os quais são mouriscos. E agóra, da conquista da Ásia, tomámos
CHATINAR por mercadejar; BENIÁGA por mercadoria; LASCARIM por homém de
guerra; CUMBAIA por mesura, cortesia e outros vocábulos que sam já tam naturáes
na boca dos hómens que naquelas partes andáram, como o seu próprio portugu-
ês (401, ls. 5-24 e 402, ls. 1-3).
Nessa passagem, João de Barros afirma que os novos empréstimos ao
latim feito pelos castelhanos, italianos e franceses, não se fizeram no portu-
guês, porque o povo português se dedicou antes à conquista de África e Ásia
do que “às treladações latinas”, destacando empréstimos do árabe (mouriscos)
como de línguas da Ásia, que não identifica. Seus exemplos são indicações
explícitas significativas para a história lingüística do léxico do português.

4 Nota final
O que se conseguiu depreender sobre avaliações lingüísticas em Fernão
de Oliveira e João de Barros mostra que já nos dois primeiros estudos
metalingüísticos sobre o português ocorrem informações significativas ex-
plícitas para a história da língua portuguesa.
Como se poderia esperar, a originalidade descritiva de Fernão de Oli-
veira na sua Anotação é mais rica em informações avaliativas – diacrônicas,
variações sincrônicas – sobre o uso real em 1536, do que a “arte de
gramatica” de natureza prescritiva, em relação à “norma padrão” preferen-
cial, portanto de natureza mais dogmática e, intencionalmente, pedagógi-
ca de João de Barros.
Vale ressaltar, para finalizar, que, reunindo avaliações dos dois pionei-
ros na gramatização da língua portuguesa, podem ser confirmados fatos
que a tradição filológica considera como definidores do período arcaico e o
seu desaparecimento podem ser delimitadores – por fatos intralingüísticos
– como indicadores de um novo período, moderno ou clássico, na história
da língua portuguesa (cf. Castro et alii, 1991: 243-248 e Mattos e Silva,
1994: 252-256). Assim há indicações explícitas de hiatos arcaicos desfei-
tos (cf. item 3.3.2a); da convergência das nasais finais no ditongo nasal
<ão>, pelo menos nos nomes (cf. 3.1a); da mudança morfofônica no
morfema de 2ª. pessoa do plural dos verbos (cf. 3.3.2a); da substituição do
morfema <u> por <i>, nos particípios passados dos verbos da 2ª. Conju-
gação (cf. 3.4.2c).
E termino com Fernão de Oliveira:
.'()"!+ que escrevem livros o costumam fazer, nos prinçipios, prologos de
sua defensão, o que eu não fiz. E tento esta razão: que me não quero queixar
antes de ser ofendido” (153, ls. 26-28).

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60

Referências bibliográficas
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

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Faculdade de Letras.
BUESCU, M. Leonor. (1981[1574]). Regras que ensinam a maneira de
escrever e a ortografia da língua portuguesa com o diálogo que adiante se
segue em defensão da mesma língua, de Pêro de Magalhães de Gândavo.
Edição facsimilada e Introdução. Lisboa: Biblioteca Nacional.
BUESCU, M. Leonor. (1984). Historiografia da língua portuguesa. Lisboa: Sá
da Costa.
CASTRO, Ivo et alii. (1991). Curso de história da língua portuguesa. v. 1.
Lisboa: Universidade Aberta.
CASTRO, Ivo. (1996). Para uma história do português clássico. In Actas do
Congresso Internacional sobre o Português. v. II. Lisboa: Colibri. p. 135-150.
CINTRA, Luis Filipe Lindley. (1964-1971). Nova proposta de classificação dos
dialetos galego-portugueses. Boletim de Filologia, XXXI: 81-116.
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MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. (1994). Para uma caracterização do período
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TEYSSIER, Paul. (1980). História da língua portuguesa. Lisboa: Sá da Costa.
TORRES, Amadeu e ASSUNÇÃO, Carlos (2000[1536]). Gramática da lingua-
gem portuguesa. Edição crítica, semidiplomática e anastática. Lisboa: Acade-
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WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Mervin. (1968). Empirical
foundation for a theory of language change. In LEHMANN, Winfrid e
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of Texas Press. p. 95-188.

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A Obra Pedagógica de João de Barros: a
sintaxe da ordem nas sentenças encaixadas

Ilza Ribeiro

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1 A ordenação dos constituintes nas sentenças

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
encaixadas

S
abe-se que, em relação à ordem dos constituintes na sentença, o por-
tuguês é historicamente analisado como uma língua SVO. Assim, a
ordem SVO nas encaixadas é um fato bem estabelecido, sendo consi-
derada a ordem padrão. Contudo, pode-se observar, a partir do Quadro 1
abaixo, que outros tipos de ordenação também são atestados nos domínios
encaixados. Os números do Quadro 1 mostram também que são SV(C), XV(C)
e V(C) as ordens mais freqüentes nas sentenças encaixadas, perfazendo um
total de 0.80% dos dados, distribuídos entre essas três ordens. As ocorrênci-
as da ordem V(C) ilustram uma outra propriedade diacronicamente reconhe-
cida no português, a de língua de sujeito nulo. As demais ordens apresentam
porcentagens bem menores.1
ORDENS/SENTENÇAS RELATIVA ADVERBIAL COMPLETIVA TOTAL
S V (C) 83 - 0.165% 56 - 0.210% 36 - 0.268% 175 - 0.193%
X V S (C) 05 - 0.009% 13 - 0.048% 08 - 0.059% 26 - 0.028%
X V (C) 61 - 0.121% 29 - 0.109% 18 - 0.134% 108 - 0.119%
X V X S (C) ---- 02 - 0.007% 01 - 0.007% 03 - 0.003%
V S (C) 29 - 0.057% 20 - 0.075% 16 - 0.119% 65 - 0.071%
VC 304 - 0.604% 113 - 0.424% 41 - 0.305% 458 - 0.507%
V X S (C) 01 - 0.001% 08 - 0.030% 03 - 0.022% 12 - 0.013%
S X V (C) 11 - 0.021% 10 - 0.037% 06 - 0.044% 27 - 0.029%
X S V (C) 02 - 0.003% 06 - 0.022% ---- 08 - 0.008%
X X V S (C) ---- 04 - 0.015% ---- 04 - 0.004%
X X V (C) 07 - 0.013% 05 - 0.018% 03 - 0.022% 15 - 0.016%
X X V X S (C) ---- ---- 02 - 0.014% 02 - 0.002%
TOTAL 503 - 0.557% 266 - 0.294% 134 - 0.148% 903
Quadro 1: Ordens dos constituintes nas sentenças encaixadas dos três documentos.

Discutem-se, aqui, essas possibilidades de ordenação de constituintes,


nestes documentos, dividindo a apresentação em 5 partes, como segue. No
item 1.1, discutem-se as ordens V2,2 a saber, SV e XV, e considera-se serem
elas resultantes de deslocamento dos constituintes X e S para a esquerda da
sentença. Em 1.2, abordam-se outros tipos de fronteamento de constituin-
tes nas sentenças encaixadas: o fronteamento estilístico, a focalização com é
que e as “deslocadas à esquerda”. No item 1.3, apresentam-se as constru-
ções V1 e, em 1.4, tecem-se algumas reflexões sobre a interpolação de ele-

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

mentos entre o clítico e o verbo. Em


1.5, discute-se a possibilidade de re-
alização estrutural do sujeito nulo
pro. Em diversas ocasiões, serão fei-
tas comparações entre estes docu-
mentos e outros documentos do PA,
estudados por Ribeiro 1995.3

1.1 As ordens SV(C) e XV(S) nas


encaixadas
O Quadro 1 mostra que a or-
dem SV(C) corresponde a 0.19% dos
dados, não se caracterizando como
a mais freqüente no corpus em es-
tudo. Alguns exemplos típicos des-
sa ordem, com sujeito lexical e
pronominal, são apresentados abai-
xo:4
(1)
a) quamanho mô tu man- Portada da Gramática de João de Barros (cf.
dáste (GLP.214) Buescu, 1971)
b) e outros que o uso nos fez próprios (GLP.284)
c) e que cada um deles tenha suas péças póstas em cásas próprias e
ordenádas (DVV.15)
d) com leies do que cada " !a déve fazer (DVV.16)
e) porque o tempo em que se as tróvas faziam e os hómens nam
perdiam sua autoridáde por isso é degradádo destes nóssos reinos
(DVV.108-10)
f) assi como eles tem outros de nós (GLP.121)

A comparação destes documentos com outros do PA mostra que a


proporção de ocorrências de SV(C) em domínios encaixados é relativamen-
te a mesma, como indicam os números do Quadro 2 abaixo:5
Tipos de Ss Ordem/Texto FR DSG CDP CPVC BARROS
Encaixada SV(C) 262 - 0.18% 279 - 0.18% 269 - 0.20% 80 - 0.16% 175 - 0.19%
Raiz SV(C) 97 - 0.16% 119 - 0.14% 134 - 0.16% 81 - 0.15% 149 - 0.24%
Quadro 2: Porcentagens da ordem SV(C) em sentenças raízes e encaixadas.

Se a comparação é estabelecida nos domínios raízes, nota-se um au-


mento na freqüência dessa ordem. O aumento de SV em domínios raízes
explica-se pela maior rigidez da propriedade V2 deste documento em rela-
ção aos outros, conforme discussão apresentada em Torres-Morais (1997).
A ordem XV(S), correspondendo a 0.13% dos dados, representa cons-
truções em que algum constituinte X, argumento ou adjunto, é deslocado

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
para o início da sentença e o verbo ocupa, linearmente, a segunda posição.
O sujeito foneticamente realizado é pós-verbal. Exemplos dessas constru-
ções são apresentados abaixo:

(2) XV (0.11% das sentenças encaixadas)


a) sem os quáes /$/)"!& déstas se póde entender nem acabár (GLP.36-
7)
b)que em "!as mesmas óbras déram divérsos frutos, por divérsas cáusas
(DVV.34-5)
c)por razám dos efeitos que déla proçédem (DVV.183)
d)como já disse (GLP.273)
e)peró que de todos nam tráte (DVV.213)
f)porque a cáda folha coméça novamente conhecer a diferença da
lêtera (DLNL.358-9)
g)pois nunca navegára (DLNL.102)
h)Peró [h]avemos de consirár que a uns relativos chamamos de
sustânçia por fazerem...(GLP.190-1)
i)Ante queria que, quando ouvisses os termos désta má çiência,
tevésses a indústria da serpente (DVV.356)
j)que em /$/)"!& maneira falásse ante eles (DLNL59)
k)Per onde claramente vemos que, ... (GLP.445)

(3) XVS (0.02% das sentenças encaixadas)


a)ARTIGO é "!a das pártes da óraçam, a quál, como já dissémos, nam
tem os Latinos (GLP.437-8)
b)das quáes h tem os Latinos ser espiraçám e nam lêtera (GLP.57-8)
c)o louvor de nóssa linguágem, que, sendo nóssa, â entenderá o
latino porque é sua (DLNL.177-8)
d)COMO em o nome e vérbo está a força de toda a linguágem,...
(GLP.462-3)
e)porque cási máis espéra a nóssa orelha o consoante que a
cantidáde (GLP.99-100)
f)pois néla está todo nósso edifíçio (DLNL.24-5)
g)porque nésta linguágem confessou [H]abrám a Deos (DLNL.74-5)
h)pois nisto consiste toda a deleitaçám dele (DLNL.82-3)
i)E, por ser neles naturál, dizia Catám que máis ô contentávam os
mançebos que se faziam vermelhos, que... (DVV.163-5)
j)E paréçe que isto reçeáva a rainha Dido (DVV.172)
k)Diz Juvenál que nenhum mál máis duro tem a pobreza em si que
fazer aos hómens que â têm poderem ser zombádos e ridos (DVV.380-
1)

Observa-se que o elemento X pré-verbal da ordem XV(S) pode ser


realizado por diferentes tipos de constituintes, embora mais freqüentemente
esses constituintes sejam ou um advérbio ou um PP. O Quadro 3 abaixo
mostra tal distribuição:

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

VALOR de X /TIPO de S RELATIVA ADVERBIAL COMPLETIVA TOTAL


Objeto indireto 05 06 03 14
Advérbio 27 14 08 49
Sentença adverbial 07 05 05 17
Predicativo 02 02 --- 04
Sintagma preposicionado 21 16 07 44
Objeto direto 02 03 04 09
TOTAL 66 44 27 137

Quadro 3: Estatuto do elemento X que antecede o verbo finito nas construções


XV(X(S))encaixadas

Construções dos tipos em (2) e (3) podem ser analisadas como V2, ou
seja, como resultantes do fronteamento dos constituintes X para Spec/CP
e do V para o núcleo C, desde que se admita a possibilidade do nódulo CP
ser recursivo, apresentando, assim, uma posição extra para alojar elemen-
tos deslocados. A derivação está representada em (4) abaixo:

(4)

A representação em (4) indica que o primeiro núcleo C (=C1) é o


hospedeiro dos elementos introdutores de sentença encaixadas. Desse
modo, o V não pode se deslocar para tal posição, por ela já estar fonetica-
mente preenchida.6 Portanto, para se obter uma ordem XV(S) em domíni-
os encaixados, é preciso que haja algum outro núcleo funcional disponível
para alojar o V e o constituinte X deslocados. Mantém-se a proposta já
defendida em Ribeiro 1995 e por outros lingüistas (Cf. Salvi, 1990, e
Benincà, 1995) de que construções desse tipo devem envolver recursividade
do nódulo CP, como representado em (4). Assim, o V pode se deslocar para
o núcleo C2 e um constituinte X qualquer para Spec/CP2 (embora os fatos
não sejam tão claros assim, sobretudo em relação às construções XV, com
sujeito nulo. Volta-se a esta questão no subitem 1.2.2.
Comparando-se as porcentagens dessa ordem com as dos documen-
tos estudados em Ribeiro 1995, observa-se uma oscilação na freqüência:
nas sentenças raízes, do FR a CDP vê-se uma tendência a um menor uso
dessas construções, mas da CDP a Barros tende-se a aumentá-la. Um movi-
mento inverso se observa nas encaixadas, apresentando um aumento de
freqüência do FR à CDP, sendo que a CDP apresenta mais do dobro de

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ocorrências de XV(S) do que o FR, passando a diminuir nos outros docu-
mentos. O Quadro 4 abaixo apresenta os números relevantes:
Tipos de Ss Ordem/Texto FR DSG CDP CPVC BARROS
Raiz XV(X(S) 266 - 0.44% 293 - 0.36% 271 - 0.32% 176 - 0.33% 222-0.36%
Relativa 43 - 0.03% 157 - 0.10% 138 - 0.10% 50 - 0.10% 66-0.07%
Adverbial XV(X(S) 95 - 0.06% 67 - 0.04% 77 - 0.05% 19 - 0.03% 44-0.05%
Completiva 16 - 0.01% 45 - 0.02% 87 - 0.06% 16 - 0.03% 27-0.02%
Total nas 154 - 0.10% 269 - 0.17% 302 - 0.22% 85 - 0.17% 137-0.15%
encaix.

Quadro 4: Porcentagem da ordem XV(X)(S) em sentenças raízes e encaixadas

Apesar disso, pode-se dizer que a ordem XV(X(S))mantém-se, do séc.


XIII ao séc. XVI, possivelmente com as mesmas características sintáticas.

1.2 Outros tipos de deslocamento nas encaixadas


O fronteamento de constituintes nas línguas românicas arcaicas tem
sido um tópico de interesse para muitos pesquisadores. Na realidade, pode-
se observar que os fronteamentos ou deslocamentos de constituintes para
a esquerda da sentença não se caracterizam como um fenômeno homogê-
neo, relacionado com uma única possibilidade estrutural. Desse modo, é
possível se detectar diferentes propriedades dessas construções, embora,
em muitos casos, elas sejam superficialmente semelhantes. Apresentamos
a seguir algumas reflexões sobre outros tipos de fronteamentos.
1.2.1 As ordens XSV, SXV e XXV
Com base nos dados dos documentos anteriormente estudados (Ribeiro
1995), pode-se dizer que essas ordens, em que o verbo linearmente está ante-
cedido por mais de um constituinte, por isso denominadas V>2, nunca foram
freqüentes no português do séc. XIII ao XVI, como os números no Quadro 5
atestam:

FR DSG CDP CPVC BARROS


Encaixada 49-0.03% 87-0.05% 61-0.04% 44 –0.04% 56-0.06%
Quadro 5: Porcentagem das construções XSV, SXV e XXV em sentenças encaixadas

Diferentes tipos de constituintes podem anteceder o verbo, embora


mais freqüentemente ocorram um advérbio ou um PP como um dos cons-
tituintes. Os números do Quadro 6 revelam tal distribuição:

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( )
sujeito + sintagma prep. 04 07 02 13
sujeito + advérbio 07 03 03 13
sujeito + predicativo -- -- 01 01
objeto direto + sujeito -- 01 -- 01
sintagma prep. + sujeito -- 03 -- 03
advérbio + sujeito 02 02 -- 04
sentença adv. + sentença adv. -- -- 01 01
sentença adv. + advérbio 01 04 03 08
objeto + advérbio -- 01 -- 01
sintagma prep. + advérbio 04 04 01 09
advérbio + sintagma prep. 02 -- -- 02

Quadro 6: Valor(es) do constituinte X nas ordens V>2 em Barros

Exemplos são apresentados a seguir:

(5) XSV
a)quando depois do dilúvio, Deucalion e Pirra reparáram a perda
do género humano (DLNL. 35-7)
b)como da perfeiçám déstas potênçias, os hómens se gloriam máis
que.. (DVV.228-9)
c)a linguágem que entám os hómens falávam (DLNL.39-40)

SXV
d)a que nós pròpriamente chamamos artelho (GLP.440)
e)quando, alguém em si conhéçe defeitos inteleituáes (DVV.235)

XXV(S)
f)pera que, mediante élas, assi na fála como na escritura, venhamos
em conhiçimento das tenções alheas (GLP.9-11)
g)porque, partido em duas pártes, sempre per "!&* délas entendemos
cousa &'("!&* (GLP.309-10)

Se se assume a proposta de Kayne 1993, de que cada constituinte XP


deve ocupar a posição de especificador de uma projeção máxima, então,
com base nas construções acima, pode-se propor que deve haver mais de
uma posição de especificador disponível para hospedar constituintes
frontalizados nos domínios encaixados. A alternância livre entre S X ~ X S
indica que esses dois constituintes se alojam em uma posição não-especí-
fica de sujeito.7 Isto significa dizer que, mesmo na ordem XSV, em que S
está linearmente adjacente a V, o constituinte S não ocupa a posição canônica
de sujeito, não sendo S, assim, o sujeito da sentença no sentido estrito do
termo.8 Em Ribeiro 1995 propôs-se que, nessas ordens, os constituintes S
e X são enfáticos. Assim, essas ordens são derivadas da aplicação de uma
regra de fronteamento dos constituintes S e X para uma posição em que
possam satisfazer o traço [+ênfase]. Desde que atribuição de [+ênfase] a
um determinado constituinte é opcional, entende-se por que esse proces-
so de fronteamento não é tão freqüente.

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1.2.2. A ambigüidade das construções X V

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
A ambigüidade das construções X V é melhor evidenciada nos enunci-
ados em que há um clítico e o constituinte S está foneticamente realizado,
o que permite distinguir três diferentes estruturas: (i) uma relacionada
com as ordens CL X S V / CL S X V; (ii) outra com a ordem X CL S V e (iii)
uma outra com a ordem X CL V S. Assim, a simples realização de uma
sentença X V diz pouco sobre sua estrutura sintática. Também ambígüas
podem ser consideradas as construções SV. Discutimos cada uma delas a
seguir.

1.2.2.1 A ordem CL X (S) V / CL S (X) V; o fronteamento estilístico


Considera-se que algumas das construções X/SV encaixadas, como as
apresentadas em (1), (2) e (3), não são estruturas V2. São, na realidade,
construções de fronteamento estilístico, um tipo de construção bem
atestatado no islandês e no iídiche. Os conjuntos de enunciados abaixo
permitem uma melhor ilustração para a discussão desses fatos:

(6)
a)por razám dos efeitos que déla proçédem (DVV.183)
a que nós chamamos sobrenome (GLP.235)
os espirituáes, que máis estimam. (DVV.249)
b)ármas com que se déla pódem defender (DVV.13-4)
de quem âs nós reçebemos (GLP.54)
quanto me tu mandáste (GLP.210)
 que se máis confórma com a latina (DLNL.147)
c)cá destes nos devemos muito prézar (DLNL.265)
e outros que o uso nos fez próprios (GLP.284)
mostra que muitos se perderam na confiança dos bens naturáes e
temporáes (DVV.402-3)
os quáes tanto se detem no ponto désta primeira figura (GLP.96-7)
dizia Catám que máis ô contentávam os mançebos que se faziam
cvermelhos (DVV.164-5)

As construções X/SV em (b) se realizam com a ordem CL X/S V, um tipo


de construção de fronteamento estilístico, com deslocamento do constitu-
inte X/S para uma posição funcional abaixo de CP. Por outro lado, as em (c)
são realizações de X/S CL V, mais semelhantes às construções V2, com du-
plo CP. Desse modo, os enunciados em (a) são ambígüos, podendo resul-
tar de uma dessas duas estratégias de fronteamento. Considera-se, assim,
que, a depender da posição de realização dos clíticos e dos constituintes X
ou S, duas diferentes estruturas estão em uso nas construções X/S V, não só
nos exemplos em (6), como também naqueles apresentados em (1), (2) e
(3). Só em relação às construções em (3b), (3e) e (3g), em que o S está
acima do sintagma verbal, por a forma verbal infinitiva ou o complemento
objeto seguirem o sujeito, apresentando as ordens - X Auxiliar S Infinitivo,

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X Verbo finito S Complemento objeto - pode-se dizer ter-se evidências po-


sitivas de construções V2 em sentenças encaixadas.

1.2.2.2 A focalização; ordem X CL S V


É possível um outro tipo de organização dos constituintes nas cons-
truções X/S V quando ocorre um clítico, a saber, a ordem X CL S V. Esta
ordem é rara nos dados do PA (Ribeiro 1995 e Martins 1994), embora não
se possa deixar de observar que, apesar de rara, é constante nos documen-
tos dos séculos XIII a XVI, em sentenças raízes (exemplos em (h-n) e encai-
xadas (exemplos em (a-g)):

(7)
a) tam bem dizer que mujto mjlhor ho estoutros nom digam
(CPVC.F6.29-30)
b) E sse pela u$!tura uos Algu$! enbargar (Lx, 1294) (Martins 1994:171-
17)
c) e que sempre a os Moesteyro de Anssedj e de Arnoya usarõ e
possoyrã (NO, 1285) (Martins 1994:171-17)
d) e disse aos mandadeiros que se veessen e que logo se el verria
depós eles (DSG.1.31.5)
e) E sse pela u$!tura uos Algu$! enbargar (Lx, 1294) (Martins 1992:171-
17)
f) E sse pela u$!ntujra uos algu$! enbargar (Lx, 1296) (Martins 1992:171-
17 )
g) e que sempre a os Moesteyro de Anssedj e de Arnoya usarõ e
possoyrã (NO, 1285) (Martins 1992:171-17)
h) E logo lhe el-rrei taxava que ouvesse por dia quatro soldos, e
mais nom (CDP.4.64-65)
i) e portanto as homen cree por mais verdadeiras quanto el foi mais
presente (DSG.1.17.3)
j) O conselho já o eu filhei (CA.4195) (Huber,1933:284)
k) ca todas aquelas cousas que a Deus pede todas lhas el compre
(DSG.1.28.11)
l) todo nos este uemtre come (Lobo 1990:11)
m) Ajmda nos este dout[or ensin]a (Lobo 1991:161)
n) E a mha cabeça, ja a el ten metuda na sa boca (DSG.4.36.17)

Em Ribeiro (1995), analisam-se essas construções como de focalização


do constituinte X que antecede o clítico, geralmente um advérbio ou um
quantificador.
Nos dados organizados dos documentos de Barros, a ordem X CL S V
não é atestada nos domínios encaixados. Há um único exemplo em sen-
tença raiz:

(8) E assi, nunca se as cousas dam a quem bem milita nélas, mas a quem
âs blasona por suas (DVV.262)

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Os dois exemplos atestados de focalização, semelhantes a X CL S V, se
realizam como:

(9)
a)pois a órdem da vida que tenho me nam deu mais tempo que
pera o primeiro (DLNL.18-9)
b)pois Isidóro, nas suas Etimologias, â nam pôde achár a muitas
cousas (GLP. 117-8)

em que a ordem é S CL Neg V, e o elemento que antecede o V é sempre a


Neg, e não o constituinte S. Observa-se ainda, em (9), que o elemento que
antecede o CL não é um advérbio nem um quantificador.
Contudo, não se pode deixar de comentar que os 0.06% de constru-
ções XSV, SXV e XXV, sem clíticos, podem ser realizações desse tipo de
focalização. Pressupõe-se, portanto, que, se houvesse um clítico nas cons-
truções em (5), ao menos algumas delas poderiam ser realizações de X CL
S V, ou S CL X V, ou ainda X CL X V.

1.2.2.3 A ordem X CL V
O fato de se apresentarem nos dados as ordens X CL S V e X CL V S
mostra de imediato a grande ambigüidade das construções XV, mesmo quan-
do se realiza com um clítico, X CL V, se o constituinte S não é foneticamen-
te realizado. Se se pode propor que construções X CL V S resultam de
recursividade de CP, como representado em (4) acima, o mesmo não é
possível para os exemplos abaixo (cf. também discussão em 1.2.2.1):

(10)
a)à semelhança dos músicos, os quáes tanto se detem no ponto
désta primeira figura, bár, como nas duas derradeiras, bo-ra (GLP.96-
7)
b)E dádo que em &'("!& maneira nos podéramos estender com régras
pera a cantidáde e açento das nóssas sílabas, leixamos de ô fazer
(GLP.104-6)
c)quando, depois que Adám pecou, s’escondia antre as árvores do
paraíso (DVV.90-1)
d)quando, com os rostros virádos, da desonestidáde que o vinho
causou em seu pái, ô cobriram com suas cápas (DVV.111-2.)

Construções desse tipo podem ser resultantes de topicalização V2 (X


CL V S) ou de focalização tipo X CL S V, ambas com S foneticamente nulo.
Nada nos dados permite, até onde podemos ver, uma análise segura para
distinguir as duas construções, exceto quando o S está foneticamente rea-
lizado. Assim, ter-se dito acima que X CL S V não se realiza nos dados pode
ser falso, desde que as construções em (10) podem resultar, na realidade,
de estruturas X CL pro V, em que S é um pronome foneticamente nulo
(=pro).

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1.2.3 As clivadas com é que


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As clivadas com é que ilustram uma estratégia comum de focalização


nestes documentos. Embora se costume registrar como a partir do final do
séc. XVIII9 as primeiras ocorrências da expressão expletiva é que em docu-
mentos do português, estes três documentos de Barros requerem recuar
essa data para o século XVI:

(11)
a) E o sinál désta verdáde, é que, nam sòmente temos vitória déstas
pártes... (DLNL.246-7)
b) Verdáde é que bem pósso dizer: Eu andei muitas térras e nunca vi
tam bõa fruta como â do termo de Lisboa (GLP.367-9)
c) Çerto é que poucas vezes se supre um defeito temporál, sem
algua comissám ou permissám da vontáde (DVV.347-8)
d) Porém, de crer é que, ao tempo da edificaçám de Babilónia, em
que a linguágem éra toda "!a, [h]averia muitas cousas invéntadas
pera o uso daquele edifíçio (DLNL.105-8)

As clivadas com é que podem mesmo ser realizadas sem a cópula


verbal, o que pode indicar a integração desta construção na gramática da
época. Em (12) abaixo, por exemplo:

(12)
Que dou a entender, neste relativo quál, que assi tórno enviár o
livro limpo e sam (GLP.204-5)

a clivagem ocorre só com a forma que. As clivadas são construções de


focalização marcada, do tipo: Foco + é que + X.

1.2.4 As Deslocadas à Esquerda


Podem-se distinguir dois tipos de construções iniciadas por um obje-
to direto, as Deslocadas à Esquerda e as V2, como em:

(13)
a) Sábe que estes defeitos espirituáes e corporáes, ou a imaginaçam
deles, nam ôs deu Deos a alguém pera com eles ô avergonhár pera
mal (DVV.296-8. )
b) porque a liçenca que Horáçio, em sua Árte Poética, <Horatius in
Arte Poetica> dá aos latinos pera compoerem vocábulos nóvos,
contanto que saiam da fonte grega, éssa poderemos tomár se ôs
derivármos da latina (DLNL.228-31)
c) E paréçe que isto reçeáva a rainha Dido, segundo Vergílio conta
(DVV.172-3)
d) peró que estes e outros louvores [h]ája déla (DVV.195-6)
e) quem algum destes nomes levár ao plurár (GLP.388)

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O exemplo em (a), em que o objeto deslocado é retomado por um
pronome complemento, ilustra um tipo de construção denominado
“deslocada à esquerda clítica”; o em (b), é uma “deslocada à esquerda de
tópico pendente”, por o objeto deslocado ser retomado por um pronome
demonstrativo (Cf. Mateus et alii 1989). Por outro lado, nos exemplos em
(c-e), o objeto deslocado não é retomado por qualquer tipo de pronome.
Evidentemente, para se dar conta da realização e da não-realização da reto-
mada pronominal, deve-se olhar esses dois tipos de construção como re-
sultantes de diferentes processos sintáticos. Analisam-se as “deslocadas”
em (a) e (b) como construções em que o objeto “deslocado” não sofre
movimento, ou seja, é gerado na base numa posição acima de CP. Os em
(c), (d) e (e) como resultante dos mesmos processos sintáticos que atuam
nas construções V2 em (6) acima, ou seja, fronteamento do objeto para
Spec/CP. As duas possibilidades estão ilustradas abaixo:

(14)
a) b)

Quando o OB é gerado em Spec/TOPP (representação em (14a)), as


construções se realizam como as em (13a/b), em que o OB em TOP está
vinculado a um pronome, clítico ou não, na sentença encaixada. Quando o
OB se desloca para Spec/CP (representação em (14b)), sua posição de ori-
gem, abaixo de IP, fica foneticamente vazia.

1.3 As encaixadas V(S(C))


As construções V(C), ou V1, perfazem 0.50% dos dados e as VS, 0.07%.
Alguns exemplos de construções V(S(C)), com ou sem sujeito foneticamen-
te realizado, são como:

(15)
a)a que responde a construçám (GLP.28-8)
b)como diz Páulo (DVV.358)
c)a moéda e outras cousas que se contam e numéram (GLP.211-2)

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As construções V1 são bem freqüentes não só em Barros, mas tam-


bém nos outros documentos estudados, em sentenças raízes e encaixadas.
Contudo, os números do Quadro 7 abaixo mostram que em Barros há um
considerável decréscimo da ordem V1 em domínios raízes e uma relativa
estabilidade da porcentagem desta ordem nas encaixadas.

Tipos de Sentença FR DSG CDP CPVC BARROS


Raiz 124 - 0.20% 299 - 0.37% 316 - 0.38% 228 - 0.43% 103 - 0.16%
Encaixada 946 - 0.67% 895 - 0.58% 700 - 0.52% 272 - 0.56% 535 - 0.59%

Quadro 7: Porcentagem da ordem V(C) do séc. XIII ao séc. XVII, em sentenças


raízes e encaixadas

1.4 Algumas outras observações sobre os pronomes clíticos nas


encaixadas
A distribuição dos pronomes complemento nas sentenças encaixadas
está representada no Quadro 8 a seguir:

ORDENS/SENTENÇAS RELATIVA ADVERBIAL COMPLETIVA TOTAL


CL S V 14 03 01 18
CL Neg V (S) 02 09 -- 11
S Cl Neg V -- 01 -- 01
S X CL Neg V -- 01 -- 01
X Cl Neg V -- 01 -- 01
CL X V (S) 06 01 01 08
Cl X X V 01 -- -- 01
CL S X V 01 -- -- 01
S CL X V 01 -- -- 01
CL V (X(S) 66 25 12 103
S CL V 07 04 08 19
S X CL V -- 02 -- 02
X CL V (S) 04 10 02 16
X Adv CL V 01 02 -- 03
X Neg CL V (S) 01 -- 01 02
Neg Cl V (S) 01 01 -- 02
TOTAL 104 61 25 190
Quadro 8: Distribuição dos clíticos nas sentenças encaixadas

Observa-se que, na ordem mais freqüente de colocação de clíticos, a


ordem CL V (S), com 0.54% de realizações, o Cl e o V estão linearmente
adjacentes:

(16)
a) segundo o ofiçio que lhe foi dádo (GLP.16)
b) a cousa a que ô ajuntamos per semelhante exemplo (GLP.268-9)
c) o primeiro imigo que ôs cométe (DVV.12)
d) porque se escrévem désta maneira: A, B, C (GLP.50)
e) quando â presentáram a Cristo que â condenásse (DVV.96-7)
f) quando se envergonham com os defeitos temporáes (DVV.399)

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Contudo, sabe-se que a interpolação de constituintes diversos entre o

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
clítico e o V é fato atestado em diferentes documentos de todo o período
medieval do português. Alguns exemplos de construções com interpolação,
em Barros, são apresentados a seguir (cf. também exemplos em (14b)):

(17) ordem CL Neg V

a) aquele que se nam póde atribuir a máis que a "!a só cousa (GLP.136-7)
b) se algum é tam çégo que ôs nam conhéçe (DVV.231-2)
c) Todo nome que se nam conhéçe per significaçam (GLP.347)

Mas a ordem Neg CL V (S) também ocorre, como nos seguintes exem-
plos:

(18)
a) porque nam se afea o ânimo com a deformidáde do corpo
(DVV.335-6)
b) as quáes nam se pódem escrever (DLNL.159-60)

O constituinte S pode ser o elemento entre o CL e o V, como em:

(19) ordem CL S V

a) de quem âs nós reçebemos (GLP.54)


b) quanto me tu mandáste (GLP.211)
c) posto que âs Adám visse em revelaçam (DLNL.98)

Contudo, os números do Quadro 8 mostram que ordem S CL V tam-


bém é atestada:

(20)
a) pera quando o uso ô requerer (GLP.110)
b) ...móstra que muitos se perderam na confiança dos bens naturáes
e temporáes (DVV.402-3)
c) E daqui vem que uns se fázem moucos, outros de curta vista
(DVV.250)

Além da negação e do S, outros tipos de constituintes podem estar


intercalados entre o CL e o V:

(21) ordem CL X V

a) e por que se milhór entendam, poeremos o seguinte exemplo


(GLP.202-3)
b) que eles queriam que se deles tevésse (DVV.246-7)
c) ármas com que se déla pódem defender (DVV. 13-4)

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Entretanto, constituintes destes tipos podem também anteceder o


CL, como ilustrado em vários exemplos de ordem X CL V, apresentados
acima (cf. exemplos em (2a), (3c/i) e (6c)).
As duas construções em que se realizam dois constituintes entre o CL
e o V são:

(22)
a) [h]ás-de consirár o modo e limitaçám que lhe sam Gregório nestas
palávras dá (DVV.197-8)
b) onde se isto máis claro vê, é na musica (DLNL.180-1)

A análise proposta considera que os clíticos ocupam uma posição fixa


na sentença (cf. Ribeiro 1995). Desse modo, as diferentes posições dos
constituintes X e S em relação ao clítico refletem diferentes estratégias de
deslocamento de constituintes, como já discutido no item 3.1, definidas
resumidamente como: os exemplos com a ordem X CL V podem ser cons-
truções com um tipo de focalização V2 do constituinte X; os com
interpolação perecem ser construções de fronteamento estilístico.
Deve-se observar, contudo, que uma das características do
fronteamento estilístico – o fronteamento de formas verbais não finitas –
não foi atestado no corpus e que o fenômeno da interpolação/ fronteamento
estilístico não é freqüente, como se pode observar nos números do Qua-
dro 9 abaixo. Dos 190 casos de construções com clítico nos documentos
de Barros em estudo, só 0.23% se realizam com interpolação. Em outros
documentos do séc. XVI, estudados por Lobo(1992), a interpolação se re-
aliza em 0.40% das construções com clítico.
ORDENS/SENTENÇAS RELATIVA ADVERBIAL COMPLETIVA TOTAL
CL S V 14 03 01 18 - 0.09%
CL Neg V 02 12 -- 14 - 0.07%
CL X V 08 01 01 10 - 0.05%
CL S X V 01 -- -- 01 - -------
Cl X X V 01 -- -- 01 - -------
TOTAL 26 16 02 44 - 0.23%

Quadro 9: A interpolação em Barros

Sabe-se que a interpolação desapareceu do português, exceto em al-


guns dialetos do norte de Portugal (Rouveret 1992), que permitem a
interpolação da Neg. e do sujeito pronominal. Segundo Said Ali (1957:22),
a partir do séc. XVII só se verifica a interpolação com a partícula de nega-
ção não. Desse modo, a menor porcentagem de construções com
interpolação nos dados de Barros pode ser indicativo de uma mudança já
em curso, que culminará com o desaparecimento desse tipo de construção
no português.

Português 500.p65 76 22/7/2005, 14:55


77

1.5 Sobre o sujeito lexical e o sujeito nulo nas encaixadas

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
O Quadro abaixo apresenta as porcentagens de realização do consti-
tuinte S em diferentes estruturas:

ORDENS/SENTENÇAS RELATIVA ADVERBIAL COMPLETIVA TOTAL


X V S (C) 05 - 0.009% 13 - 0.048% 08 - 0.059% 26 - 0.028%
X V X S (C) ---- 02 - 0.007% 01 - 0.007% 03 - 0.003%
V S (C) 29 - 0.057% 20 - 0.075% 16 - 0.119% 65 - 0.071%
V X S (C) 01 - 0.001% 08 - 0.030% 03 - 0.022% 12 - 0.013%
X X V S (C) ---- 04 - 0.015% ---- 04 - 0.004%
X X V X S (C) ---- ---- 02 - 0.014% 02 - 0.002%
S V (C) 83 - 0.165% 56 - 0.210% 36 - 0.268% 175 - 0.193%
SXV 11- 0.021% 10 - 0.037% 06 - 0.044% 27 - 0.029%
XSV 02 - 0.003% 06 - 0.022% ---- 08 - 0.008%
TOTAL 131 -0.260% 119 - 0.447% 72 - 0.537% 322 - 0.356%

Quadro 10: Realizações de S em sentenças encaixadas

Observa-se que, em 0.35% das sentenças encaixadas, o constituinte S


é fonologicamente realizado, sendo a sua ocorrência mais freqüente nas
estruturas S V (C), 0.19%, e V S (C), 0.07%. As ordens X V S e S X V perfa-
zem, cada uma, 0.02% dos dados de sentenças encaixadas.
As descrições apresentadas sobre as ordenações dos constituintes mos-
tram que linearmente o sujeito lexical ocorre em diferentes posições em
relação ao verbo finito e aos constituintes argumento ou adjunto, como
esquematizado abaixo:

(23)
a) V1 b) V2 c) V>2
VS SV SXV
VXS XVS XVS
XVXS XXVS
XXVXS

Os possíveis arranjos entre o sujeito, verbo e complementos/adjuntos


levantam questões cruciais sobre a posição dos sujeitos nulos nas ordens
V1, V2 e V>2. Pode-se considerar, então, que as posições de S em (23)
acima são as mesmas válidas para o sujeito nulo, admitindo-se as seguin-
tes possíveis estruturas para pro:

(24)
a) V1 1b) V2 c) V>2
V pro proV pro X V
V X pro X V pro X pro V
X V X pro X X V pro
X X V X pro

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78
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Contudo, determinar a posição de pro não é uma questão trivial, de


fácil derivação a partir das representações em (24) acima. Pretende-se dis-
cutir nesta seção algumas ambigüidades em relação à realização de S lexical
e mostrar que nem todas as posições de realização de S alternam com um
sujeito nulo.
Assim, as questões a serem colocadas em relação à posição de sujeito
podem ser formuladas como: (a) nas construções com S pré-verbal, este
constituinte ocupa sempre a mesma posição? (b) nas construções com S
pós-verbal, qual a posição (e se é sempre a mesma) ocupada por S? (c) o
sujeito nulo pro apresenta a mesma distribuição do constituinte S?
Recorrendo mais uma vez à realização do clítico para sanar ambigüi-
dades, e tomando como ponto de partida a análise desenvolvida em Ribei-
ro 1995, assume-se também aqui que a posição dos clíticos é fixa, quer
dizer, considera-se que os clíticos ocupam sempre a mesma posição nas
sentenças encaixadas e que as diferentes ordenações encontradas resul-
tam de movimento de constituintes para posições à esquerda do clítico.
Desse modo, construções com realização de clíticos, como as já apresenta-
das, esclarece um pouco da ambigüidade sintática quanto à realização de
S. Assume-se também a hipótese de que o sujeito pronominal nulo ou
fonologicamente realizado, tópico não marcado, ocupa sempre a posição
de especificador de IP.
Partindo desses pressupostos, pode-se dizer que, nas construções SV,
duas análises estão disponíveis, como esquematizado a seguir:

(25)
a) S V b) CL S V c) S CL V

Em (b), o S pode estar ocupando a posição canônica do sujeito, Spec/


IP, ou ser um constituinte enfático, deslocado para uma posição acima de
IP; em (c), por outro lado, S certamente é um constituinte focalizado ou
topicalizado para uma posição à esquerda do clítico. Considera-se, assim,
que CL S V pode corresponder a uma ordem não marcada, nos domínios
encaixados, na gramática quinhentista, enquanto S CL V corresponde sem-
pre a uma ordem estilisticamente marcada. Desse modo, o sujeito nulo
pro pode ocorrer em uma estrutura como (25b) - CL pro V -, com pro em
Spec/IP, mas não em *pro CL V, semelhante a (25c), por não se esperar que
uma categoria foneticamente vazia seja topicalizada ou focalizada.
Em relação à ordem V S, também duas possíveis estruturas poderiam
estar disponíveis:

(26)
a) V S b) CL V S c) V CL S

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
A ordem CL V S, que totaliza 0.07% das sentenças encaixadas com
clítico, se realiza com verbos inacusativos/passivos (09 casos) e declarati-
vos (05 casos). Portanto, parece ser construção em que o S ocupa uma
posição mais baixa do que a posição canônica de sujeito, Spec/IP.1 0 Desse
modo, não se espera que à ordem CLVS corresponda uma ordem CLVpro,
desde que pro deve ser licanciado em Spec/IP. Assim, quer para CLVS, quer
para CLSV, a única estrutura possível com S foneticamente nulo é CLproV,
estando pro e V em IP. De modo semelhante, fica também esta possibilida-
de para a ordem V X S, ou seja, CL V X S. Considera-se, assim, que, se os
sujeitos pós-verbais estão abaixo de IP, é provável que as estruturas dessas
construções sejam CLproVS e CLproVXS, em que Spec/IP é realizado pelo
sujeito nulo.
A ordem V CL S, uma estrutura com ênclise, possivelmente derivada
de movimento do V para uma posição acima da do clítico, não foi atestada
em sentenças encaixadas destes documentos. Em um outro documento
quinhentista, a Carta de Pero Vaz de Caminha, os seguintes exemplos
foram encontrados:

(27)
e amdauam asy mesturados cõ eles. que eles se esquijuauam e
afastauanse e hianse deles peracjma onde outros estauam
(CPVC.6v.19-22)

Em (27), duas adverbiais coordenadas ocorrem com as ordens V CL e


V CL S, respectivamente. É possível que essas construções resultem de
recursividade de CP, como representado em (4) acima. Mesmo assim, há,
nessas ordens, duas possibilidades de análise para a realização do consti-
tuinte S – em Spec/IP ou abaixo de IP – mas uma só para pro – em Spec/IP:
VCLpro. Sendo partitivo o sujeito deles em (27), admite-se a sua possível
realização abaixo de IP, tendo-se, neste caso, uma construção com a estru-
tura VCLproS.
Vejam-se agora as ordens S X V e X S V, e as possíveis ordenações com
um clítico:

(28)
a) S X V S CL X V b) X S V X CL S V
S X CL V X S CL V
CL S X V CL X S V

Desde que há seis possibilidades, fica difícil determinar a posição exa-


ta do sujeito nulo nas ordens S X V e X S V, considerando-se que se assu-
mem as seguintes análises para essas ordens:

I - nas ordens CL S X V e CL X S V, com interpolação dos constituintes


S X / X S entre o clítico e o verbo, como já se comentou acima, a alternância

Português 500.p65 79 22/7/2005, 14:55


80
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

livre entre S X ~ X S indica que, mesmo na ordem CL X S V, em que S está


linearmente adjacente a V, o constituinte S não ocupa a posição canônica
de sujeito. Desse modo, não se pode derivar a posição de pro pela de S
realizado foneticamente.

II - nas construções com as ordens S CL X V e X CL S V, se os constitu-


intes X e S imediatamente pré-verbal podem se alternar livremente, espe-
ra-se que ocupem um mesma posição, não sendo ela uma posição restrita
a sujeito.

III - nas ordens S X CL V e X S CL V, se são estruturas do tipo:

(29)
[TOP S/X [CP S/X CL V [IP pro .... ]]]

os constituintes S e X iniciais são tópicos marcados, uma leitura não dispo-


nível para pro. Os constituintes S e X adjacentes ao clítico são focos ou
tópicos não marcados, deslocados para CP, um tipo de movimento não
motivado para pro. Assim, a única possibilidade para pro é a posição Spec/
IP.

2 Conclusão
Em resumo, pode-se considerar os seguintes fatos gerais sobre a sin-
taxe da ordem, nas sentenças encaixadas, na Obra Pedagógica de João de
Barros: (i) embora seja uma das mais freqüentes, a ordem XV é ambígüa,
podendo resultar de diferentes estratégias de fronteamento do constituin-
te X. Só nas construções em que se realizam um CL e/ou o constituinte S
pode-se ter evidências claras de qual das estratégias está sendo usada; (ii)
os clíticos, sempre pré-verbais, podem ocorrer separados do V por diferen-
tes tipos de constituintes. De acordo com sua colocação em relação aos
demais constituintes da sentença, pode-se concluir que diferentes estraté-
gias de fronteamento de constituintes atuam na gramática refletida por
esses dados: a topicalização ou focalização V2 para Spec/CP, a topicalização
externa a CP, para Spec/TOPP, a focalização para uma posição abaixo de CP,
um fronteamento para atribuir ênfase a um dado constituinte; (iii) a or-
dem V1, sem sujeito foneticamente realizado, a mais freqüente no corpus,
atesta a propriedade de sujeito nulo desse sistema lingüístico. Esse é um
traço sintático que se mantém diacronicamente no português europeu; (iv)
em geral, o constituinte S das diversas ordens, com exceção da ordem CL S
V, é um constituinte focalizado ou topicalizado, não sendo, assim, o sujei-
to, no sentido estrito do termo. Desse modo, o número de sentenças com
sujeito nulo aumenta consideravelmente, pois muitas das construções com
S realizado são estruturas de sujeito nulo.

Português 500.p65 80 22/7/2005, 14:55


81

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
1 As porcentagens são apresentadas com três casas decimais, para evitar a representação só de
zeros em alguns tipos de ordem.
2 Neste texto, usamos os termos ‘V1’, ‘V2’ e ‘V>2’ em dois sentidos: (a) descritivamente,
significa que o verbo finito ocupa a primeira posição da sentença, não estando antecedido por
qualquer constituinte lexical (V1), ou ocupa a segunda posição, estando, neste caso, antecedido
por um constituinte lexical (V2), ou está antecedido por mais de um constituinte lexical
(V>2): (b) teoricamente, V2 significa que o verbo finito está alojado no núcleo funcional C de
CP. Esperamos que os contextos deixem explícitos os dois usos. Sobre a questão teórica da
propriedade sintática V2, cf. Ribeiro 1955.
3 Os documentos são os seguintes: Foro Real (séc. XIII), Diálogos de São Gregório (séc. XIV),
Crônica de D. Pedro (séc. XV) e Carta de Pero Vaz de Caminha (início do séc. XVI). Os
exemplos serão citados seguidos da sigla do documento e de números, da seguinte forma: FR
e nos do livro, do título e do fólio; DSG e nos do livro, capítulo e linha(s); CDP e nos da(s) linha(s);
CPVC e nos do(s) fólio(s) e da(s) linha(s).
4 Os exemplos serão citados pelas siglas GLP (Gramática da língua portuguesa), DVV (Diálogo
da viçiosa vergonha) e DLNL (Diálogo em louvor da nossa linguagem), seguidas do(s) no(s)
da(s) linha(s).
5 Cf. nota anterior.
6 Ou estar comprometida com os introdutores de sentenças, como no caso das encaixadas-QU.
7 Considera-se Spec/IP a posição específica de sujeito. Cf. representação em (4) acima.
8 Analisam-se essas construções como de sujeito nulo.
9 Cf. Duarte (1992) e Lopes Rossi (1993) em relação ao elemento é que nas interrogativas. Cf.
também Lopes Rossi (Tese de Doutorado – em preparação) para uma análise ampla de clivadas
na história do português.
10 Isto significa que a ordem V S nesse tipo de encaixada não resulta de estrutura com
movimento de V para C, como ocorre nas sentenças raízes. Mesmo porque, se houvesse
movimento de V para C, a ordem resultante deveria ser V CL S.

Referências bibliográficas
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Português 500.p65 82 22/7/2005, 14:55


A sintaxe dos clíticos:
o século XVI, o século XX e a
constituição da norma padrão

Tânia Lobo

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Português 500.p65 84 22/7/2005, 14:55
85

1 Preliminar

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
C
omo, nestes últimos cinco anos, nos dedicamos à elaboração da
Tese de Doutoramento – Para uma sociolingüística histórica do
português no Brasil: edição filológica e análise lingüística de car-
tas particulares do Recôncavo da Bahia, século XIX –, defendida e aprova-
da na Universidade de São Paulo em setembro de 2001, que envolve,
basicamente, a análise da sintaxe dos clíticos em documentação brasileira
do século XIX por nós editada, não tivemos tempo para elaborar um texto
específico para esta nova Coletânea do Programa para a História da Língua
Portuguesa (PROHPOR). Instada pelos organizadores da Coletânea, concor-
damos, embora sem muita satisfação, em apresentar esta contribuição, que
também envolve dados e análises do português quinhentista. Na sua primei-
ra versão, este texto foi apresentado, oralmente, em Mesa-Redonda da Jor-
nada do Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste (GELNE), realizada em
Recife, em 1997. Na base desse texto, estão os dados da nossa Dissertação
de Mestrado – A colocação dos clíticos em português: duas sincronias em
confronto –, defendida na Universidade de Lisboa em março de 1993.
Entre a Dissertação de Mestrado e a Tese de Doutoramento, muito estu-
do dedicamos à sintaxe dos clíticos na história da língua portuguesa e diver-
sas leituras de natureza teórica e empírica fizemos sobre clíticos em geral e,
em especial, na língua portuguesa; daí a não “muita satisfação”, antes referi-
da, em publicar esse texto. Contudo, a insistência amiga dos colegas
organizadores da Coletânea nos levou a concordar com a sua publicação, já
que um dos seus aspectos incide sobre o português quinhentista, foco deste
novo trabalho coletivo do PROHPOR.

2 Observações introdutórias
Um dos aspectos lingüísticos mais referidos como divisor do português
nas suas variantes européia e brasileira é a colocação dos clíticos nas frases.

Português 500.p65 85 22/7/2005, 14:55


86
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

As diferenças na forma de colocação dos pronomes átonos entre o portu-


guês brasileiro e o europeu, assim como uma série de outras diferenças
sintáticas, começam a ser apontadas no século XIX, fazendo-se notar de
forma mais clara exatamente no momento em que, pela primeira vez, a
literatura brasileira, no bojo do Romantismo, passa a buscar um veículo de
expressão que se elabore em moldes distintos dos estabelecidos pelos
cânones literários portugueses. É facilmente presumível que, figurando na
língua literária do século XIX, tais distinções já devessem estar consolida-
das há muito mais tempo na língua oral.
Partindo destas constatações, o objetivo deste trabalho é analisar o
problema da colocação dos pronomes oblíquos átonos dentro de duas pers-
pectivas:
— Em primeiro lugar, sob uma perspectiva diacrônica, estabelecen-
do um diálogo entre duas sincronias — o século XVI e o século XX. A
opção pelo século XVI deve-se à intenção de vislumbrar a norma de coloca-
ção pronominal vigente no momento em que se iniciou o processo de trans-
plantação do português para o Brasil. Já em relação ao século XX, a
preocupação é analisar a norma vernácula e a norma oral culta de coloca-
ção pronominal do português brasileiro contemporâneo, a fim de contrastá-
las e de estabelecer como os falantes escolarizados brasileiros, integrantes
do estrato sociolingüístico supostamente mais conservador, se comportam
relativamente às distintas possibilidades de posicionamento do clítico na
frase. O contraste entre o século XVI e o século XX permitirá identificar as
mudanças ocorridas;
— A seguir, e levando em conta as conclusões anteriores, será aborda-
do o tratamento dado pelas gramáticas normativas à questão da ordem
dos clíticos na frase, com o intuito de discutir o modelo a partir do qual
ainda hoje se faz o ensino deste aspecto da estrutura sintática do portu-
guês nas escolas brasileiras. Aqui, as perguntas fundamentais são: em que
medida o comportamento lingüístico dos falantes escolarizados brasilei-
ros reflete o padrão veiculado pela escola? Há justificativa histórica para a
adoção desse padrão? Não se justificando, hoje, tal padrão, haveria pro-
postas alternativas?

3 Perspectiva diacrônica: do presente para o passado


Já dispomos hoje de uma série de trabalhos sobre a sintaxe dos clíticos,
os quais, quer realizados a partir de uma perspectiva teórica gerativista,
quer a partir de uma perspectiva teórica sociolingüística, demonstram que
a posição imediatamente pré-verbal é a forma normal de colocação do clítico
no português vernáculo brasileiro contemporâneo. Ou seja, independente-
mente de qual seja o contexto sintático, o clítico ocorre adjacente ao ver-
bo, posiciona-se antes dele e dele depende fonologicamente, sendo-lhe,
portanto, proclítico.

Português 500.p65 86 22/7/2005, 14:55


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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Como veremos, a seguir, a partir da comparação da situação atual
com a do século XVI, houve, no português vernáculo brasileiro, uma mu-
dança radicalmente qualitativa, na medida em que, enquanto, no século
XVI, o clítico ocupava uma posição pré ou pós-verbal a partir de contextos
sintáticos muito claramente definidos, no português vernáculo brasileiro,
os contextos sintáticos foram sobrepujados, generalizando-se a anteposição
do clítico ao verbo em qualquer situação.
Isto posto, podemos, a seguir, nos colocar uma questão relevante do
ponto de vista sociolingüístico e com claras implicações no plano do ensi-
no da língua materna, a qual será discutida posteriormente: quanto a esse
aspecto da sintaxe, haveria, no Brasil, diferenças entre a norma vernácula,
no sentido laboviano do termo, e a norma dos indivíduos cultos em situa-
ção formal de comunicação oral?1
Para caracterizar a norma oral culta de colocação dos clíticos do por-
tuguês brasileiro contemporâneo, descrevemos uma amostra lingüística
constituída por 15 inquéritos de natureza formal que integram o Corpus
Compartilhado do Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta
— Projeto NURC2 , tendo sido obtidos os seguintes resultados:

3.1 A norma oral culta de colocação dos clíticos no português


brasileiro contemporâneo

3.1.1 Orações não-dependentes


3.1.1.1 Absolutas/principais
a)Verbo em posição inicial – variável, com ligeira preferência pela
colocação pré-verbal: 55%

• ME impressionou notadamente uma ... uma série de artigos do


historiador e sociólogo Oliveira Viana SP. III. M
• Chama-SE esta mastectomia de mastectomia alargada SSA. II. F

b)Verbo precedido por sujeito nominal – variável, com ampla prefe-


rência pela colocação pré-verbal: 90%

• O ameninado príncipe SE transforma num velho POA. III. M


• O povo de Roma levantou-SE contra esta decisão SSA. III. M

c)Verbo precedido por sujeito pronominal pessoal – colocação pré-


verbal categórica

• Eles SE classificam em: virgens de tratamento, PS, ou possivel-


mente sensível, crônico I e crônico II SSA. I. F

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88
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Note-se, porém, que, sendo o verbo precedido por sujeito pronomi-


nal pessoal “lembrete” – por exemplo, em a glândula mamária, ela SE
acha constituída... SSA.II.F e em então, o homem, ele acha-SE... RE.II.F ,
a ordem do clítico na frase se apresentou variável, com ampla preferência
pela colocação pré-verbal: 90%.

d)Verbo procedido por negação – colocação pré-verbal categórica

• Não ME parece que possa ser já POA. III. M

e)Verbo precedido por SADV ou SP adverbial – variável, com ampla


preferência pela colocação pré-verbal: 88%

• Então, dessa maneira, SE faz diagnóstico SSA. I. F


• No prólogo do fi ... filme, lia-SE: “numa luta entre irmãos, não há
vencedores nem vencidos” SP. III. M

f)Verbo precedido por oração subordinada adverbial – variável, com


preferência pela colocação pré-verbal: 67%

• Quando... ah... se faz uma análise crítica de uma determinada ...


determinada idéia, SE coloca não para derrubar RE. I. F
• Se você parou nesta fase, liquidou- SE o assunto RJ. III. M

3.1.1.2 Coordenadas
a)Aditivas introduzidas pelo conectivo E – variável, com preferência
pela colocação pré-verbal: 64%

• E daí vocês façam o cruzamento e ME digam o que deu POA. I. F


• Resolve, então, chamar o filho e pergunta-LHE POA. III. M

b) Adversativas introduzidas pelo conectivo MAS – variável, com pre-


ferência pela colocação pré-verbal: 67%

• mas filmava-SE em São Paulo, no Rio SP. III. M


• mas SE diz que uma face plana SSA. II. F

3.1.2 Orações dependentes


3.1.2.1 Com tempo
3.1.2.1.1 Desenvolvidas (completivas, relativas e adverbiais) — variá-
vel, com ampla preferência pela colocação pré-verbal: 98%

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
• Vamos dizer que o progresso SE deve a todos RE. I. F
• E temos visto, de fato, que a UNESCO ligou-SE SSA. III. M

3.1.2.2 Sem tempo


3.1.2.2.1 Reduzidas de infinitivo:
a)Não regidas por preposição3 – variável, com preferência pela colo-
cação pré-verbal: 71%

• Precisa SE manter a ... a cor da tez SP. II. F


• Nesse clima, não seria possível estabelecer-SE o desejo de uma
contratação razoável RJ. III. M

b)Regidas por preposição4 – variável, com preferência pela colocação


verbal: 73%

• De acordo com a possibilidade que ele tem de SE recuperar SSA.


I. F
• Ele pode atuar sobre a comunicação sem modificar-LHE o sentido
POA. II. F

3.1.2.2.2 Reduzidas de gerúndio:


a)Não regidas por preposição5 : variável, com ampla preferência pela
colocação pós-verbal: 82%

• Se, na mulher, se retiram os ovários, SE retirando, portanto, a


fonte prod ... eh ... eh ... elaboradora de hormônio feminino, o ...
as glândulas mamárias, elas se atrofiam SSA. II. F
• Colocam uma interpretação nas suas sentenças, fundamentando-
SE em conhecimentos RE. II. F

A partir da análise dos resultados, podemos agora responder à ques-


tão anterior: no Brasil, enquanto, na norma vernácula, a colocação dos
clíticos é pré-verbal, na norma culta, em situação formal de comunicação
oral, a posição dos clíticos é variável, na grande maioria dos contextos
sintáticos. Os resultados acima apresentados podem ser assim sintetiza-
dos:

• Total de contextos sintáticos analisados: 12

• Total de contextos sintáticos com regra categórica: 2


a) colocação pré-verbal: 2 contextos
b) colocação pós-verbal: nenhum contexto

• Total de contextos sintáticos com regra variável: 10

Português 500.p65 89 22/7/2005, 14:55


90
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

a) preferência pela colocação pré-verbal: 9 contextos


b) preferência pela colocação pós-verbal: 1 contexto

Para se explicar a variabilidade posicional dos clíticos na norma oral


culta do português brasileiro contemporâneo, ou, mais restritamente, a
manutenção de significativas freqüências da variante pós-verbal de coloca-
ção dos clíticos, deve-se buscar não apenas o encaixamento social do fenô-
meno – aqui caracterizado, fundamentalmente, a partir da ação exercida
pela norma padrão difundida pelo sistema escolar sobre os usos lingüísticos
dos indivíduos escolarizados –, mas também o encaixamento lingüístico,
na medida em que a freqüência de ocorrência da colocação pós-verbal não
é idêntica em todos os contextos sintáticos, passando do pólo extremo de
freqüência nula ao pólo extremo oposto de regra categórica.
Segundo os resultados anteriormente apresentados, apenas um con-
texto sintático – reduzidas de gerúndio não regidas por preposição – foi
favorecedor da colocação maioritariamente pós-verbal do clítico (82%). To-
davia, uma análise mais refinada permite destacar ainda alguns outros re-
sultados que, à primeira vista, ficam encobertos. Assim, para além desse
contexto, outro também deve ser destacado:

• a ocorrência da colocação categoricamente pós-verbal do clítico


acusativo de terceira pessoa diante de infinitivo verbal não flexionado

Sobre o clítico acusativo de terceira pessoa, é sabido que a sua ocor-


rência no português brasileiro contemporâneo é produto da ação da esco-
la, já não sendo, portanto, esse clítico um elemento do vernáculo para nós.
Os quadros a seguir, adaptados por Nunes (1993), a partir de Corrêa (1991),
demonstram de forma incontroversa esse fato:
Adultos Série (%)
Tipo de Total (%)
Analfabetos 1a / 2 a 3a / 4a 5a / 6a 7a / 8a Univers.
Objeto
(%)
Obj. Nulo 66,6 72,4 77,7 71,2 71,1 67,8 72,0
Pron. 25,6 24,1 8,6 19,1 20,1 7,1 18,2
Tônico
NP 7,6 3,4 3,6 7,4 7,6 14,2 8,3
Anafórico
Clíticos — — — 2,1 0,9 10,7 1,3

Quadro 1: Objetos diretos anafóricos encontrados na fala (Corrêa 1991, apud


Nunes 1993: 17)

Série (%)
Tipo de Total (%)
Objeto 1a / 2a 3a / 4a 5a / 6a 7a / 8a Univers.
Obj. Nulo 57,5 65,6 52,3 53,5 9,5 51,4
Pron. Tônico 7,5 6,2 15,3 10,7 — 9,8
NP Anafórico 35,0 18,7 13,8 5,3 4,7 15,4
Clíticos — 9,3 18,4 30,3 85,7 23,3

Quadro 2: Objetos diretos anafóricos encontrados na escrita (Corrêa 1991,


apud Nunes 1993: 218)

Português 500.p65 90 22/7/2005, 14:55


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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Entender a regra categórica de colocação pós-verbal quando o clítico
acusativo de terceira pessoa ocorre junto a infinitivos verbais significa, pois,
entender como um elemento não-vernáculo assume categoricamente uma
posição não-vernácula, a posição pós-verbal, em um contexto morfos-
sintático específico.
A resposta a tal questão não deve passar ao largo do fato de que a
ênclise do clítico o(s), a(s) ao infinitivo permite a reestruturação do padrão
silábico CV, constituindo-se, por assimilação ao morfema –r do infinitivo
verbal, as variantes lo(s), la(s) do clítico acusativo de terceira pessoa; tal
resposta, portanto, não deve passar ao largo dos processos de licenciamento
do onset da sílaba do clítico acusativo de terceira pessoa. Por outro lado,
inicialmente, pareceu também não dever passar ao largo da observação de
que a seqüência infinitivo + clítico vai sempre corresponder a um vocábu-
lo fonológico paroxítono. A importância explicativa do padrão acentual
paroxítono parecia se confirmar, na medida em que as variantes no(s),
na(s) – como em Eles mandaram-no(s)/na(s) sair –, que também apresen-
tam o padrão silábico CV, não apresentam, na norma culta, a mesma fre-
qüência das variantes lo(s), la(s): o vocábulo fonológico resultante nos
contextos relevantes para a constituição das variantes no(s), na(s) do clítico
acusativo de terceira pessoa será sempre proparoxítono. Na amostra lin-
güística discutida neste trabalho,
não houve sequer uma atestação
das variantes no(s), na(s). Consi-
derando-se a regra variável, com
preferência maioritária pela colo-
cação pós-verbal, em reduzidas de
gerúndio, observa-se, contudo,
que a seqüência gerúndio + clítico
vai sempre corresponder a um vo-
cábulo fonológico proparoxítono,
o que nega a importância do pa-
drão acentual paroxítono, anteri-
ormente referida, para explicar
que, diante de infinitos verbais, o
clítico acusativo de terceira pessoa
ocorra sempre em posição pós-ver-
bal.
Finalmente, ainda quanto à
ocorrência da colocação pós-verbal
do clítico, vale mencionar a obser-
vação de Mattoso Câmara
(1979:254) de que, no Brasil, só
seria espontânea em se tratando
“da partícula pronominal se em
Reprodução de retrato antigo de D. João III

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92
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

perífrase verbo-pronominal para indicar uma atividade sem sujeito deter-


minado”, como, por exemplo, em vende-se o livro, cuja interpretação se-
ria o livro está à venda. Segundo esse autor, “a anteposição da partícula se
ao verbo, associada à anteposição de um nome substantivo paciente, dá a
esse nome substantivo uma função de sujeito ativo” (idem, ibidem); este
seria o caso de o livro se vende, correspondente a o livro sai, o livro tem
boa aceitação do público. Ainda de acordo com Mattoso Câmara, o con-
traste entre estas duas construções já teria sido assinalado Said Ali, que,
contudo, só o teria atribuído à anteposição/posposição do nome substan-
tivo, sem atentar para a importância da posição ocupada pelo clítico se.
Passemos agora aos resultados obtidos a partir da descrição de um
corpus lingüístico do século XVI; o enquadramento histórico do problema
da ordem dos clíticos permitirá traçar as mudanças que se processaram
entre as duas sincronias.
A norma de colocação dos clíticos que, a seguir, se vai depreender
para o século XVI será objeto de comparação com a estabelecida como
característica do português brasileiro oral culto contemporâneo. Qualquer
comparação pressupõe, como é evidente, que os termos considerados se-
jam relacionáveis. Daí, portanto, na constituição do corpus do século XVI,
ter-se buscado selecionar textos que, além de não serem literários, permi-
tissem uma aproximação da norma oral culta do português quinhentista.
Com tal objetivo, constituiu-se, assim, um corpus com um conjunto de
documentos extraídos da edição crítica intitulada Letters of the court of
John III, king of Portugal, realizada por J. D. M. Ford e L. G. Moffat (1933).
Tais documentos, abrangendo o período que se estende de 1524 a 1562,
correspondem a cartas de familiares do rei D. João III e de personalidades
de sua corte. A seguir a cada uma das ocorrências lingüísticas relativas ao
século XVI, apresentam-se o número da carta da qual a ocorrência foi reti-
rada e o ano em que tal carta foi escrita; o sinal de interrogação vai indicar
que o ano de escrita da carta foi inferido pelos editores.

3.2 A norma culta de colocação dos clíticos no português


quinhentista

3.2.1 Orações não-dependentes


3.2.1.1 Absolutas/principais
a)Verbo em posição inicial – colocação pós-verbal categórica

• Peço LHE que por vos me mãde escrever 26. 34-35 (?)
• Dise ME que nõ tem outro dinheiro 38. 38

b)Verbo precedido por sujeito nominal – colocação pré-verbal categó-


rica

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
• Joã Mõteyro ME dixe oye pola manhã que tynha vystos e eme)dados
os apomtame)tos 4. 34(?)
• Dona Isabel Freire ME escreveo, pedindome que pedisse por merce
a elRei, meu senhor, que a mandase viir 143. 34

c)Verbo precedido por sujeito pronominal pessoal – colocação pré-


verbal categórica

• Eu O vi em Coimbra 43. 48

d)Verbo precedido por negação – colocação pré-verbal categórica

• Estive hu!u grãde pedaço com papel e tinta com ele; nunca ME
disse nada 131. 32
• Nam VOS Respondi por Luis Afonso por nam se deter em quanto
eu escrevia 131. 32

e)Verbo precedido por SADV ou SP adverbial – variável, com ampla


preferência pela colocação pré-verbal: 98% e 92%, respectivamente

• Tambe! ME lembra agora aquy outra Razã 101. 31


• mandey hu!ua posta a saber se vynha frey Diogo; e nam avya d’isso
memoria, somente escreveo ME Gonçallo Machado que dezia frey
Diogo que nam avya de ffallar a S.A. 101. 31
• Por derradeiro pedio LHE a mão pera lhe tomar a menage! 114.
31
• Por amor de Deus LHO peço e pollas suas chagas lho Requeiro
98. 31

f) Verbo precedido por oração subordinada adverbial – variável, com


preferência pela colocação pré-verbal: 78%

• Quando de qua fostes VOS fallei e emcomemdei que, ante de


vyrdes d’esa cidade, asemtes cõ hos mercadores 50. 33
• Se dom Garcia for partido, e ouver de hir algu!a caravela pera lla
apos ell, peço VOS 143. 34

3.2.1.2 Coordenadas:

a) Aditivas introduzidas pelo conectivo E – variável, com preferência


pela colocação pós-verbal: 73%

• a primeira parte de Reposta que lhe dey foy lançarme a seus pees
e beijarlhe a mão; e LHE Respondii ho que Deus ensinou 136. 33

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

• Bernardo Peixoto, escudeiro da casa d’elRey, meu senhor, que


vos esta dara, foy meu criado e servio ME tantos anos 64. 42

b) Adversativas introduzidas pelo conectivo MAS – colocação pós-ver-


bal categórica

• mas pareceoME que era necessario 46. 48

3.2.2 Orações dependentes


3.2.2.1 Com tempo
3.2.2.1.1 Desenvolvidas (completivas, relativas e adverbiais) – coloca-
ção pré-verbal categórica

• elle deseja muito que SE faça a emquysyçãm 20. 35


• e este sou eu, pi!tado polo naturall; e creo que acharaa vossa
alteza em vosso Reino poucas pinturas que SE pareçã cô esta 86.30
• acabo a carta, e deixo o mais para quãdo NOS virmos 9. 35

Apesar da regra acima enunciada, a colocação pós-verbal não está de


todo ausente dos dados já conhecidos do português clássico. Afirma Martins
(1994:100) que em completivas introduzidas por verbos da classe de dizer
e em adverbiais consecutivas se pode verificar a posposição do clítico ao
verbo na história da língua portuguesa. No corpus aqui considerado, em
um universo de 847 ocorrências de orações dependentes finitas, apenas
uma vez não se observou a regra de colocação pré-verbal do clítico, poden-
do-se considerar a ocorrência em questão uma completiva introduzida por
verbo dizer, apesar de o verbo não estar explícito:

• E porque eu anteparey pollo Recado que sua alteza e vos, senhor,


me mandastes por meu filho que, se tardar, desmancharSEMEhaa
tudo, Relleva me a vida ser Francisco de Mello comiguo dentro
nesta somana com boa Reposta, ou com maa, ou sem ella

Admite-se, para a ocorrência acima, uma leitura como:

• E porque eu anteparey pollo Recado que sua alteza e vos, senhor,


me mandastes por meu filho [dizendo] que, se tardar,
desmancharSEMEhaa tudo, Relleva me a vida ser Francisco de Mello
comiguo dentro nesta somana com boa Reposta, ou com maa, ou
sem ella

Português 500.p65 94 22/7/2005, 14:55


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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
3.2.2.2 Sem tempo
3.2.2.2.1 Reduzidas de infinitivo:

a) Não regidas por preposição6 – colocação pós-verbal categórica

• E para isto comvem, primeiro que tudo, darSSE conta ao Reitor


da rrezão d’esta mudança 46.48
• Eu tomo a muy boa dyta vyrem ME cartas do governador da Yndia
39. 38

b) Regidas por preposição7 – variável, com ampla preferência pela


colocação pré-verbal: 95%

• O come!dador moor de Avys lhe deu esperança de casaLLA com


dõ Jorge, seu filho 86.30
• ellRey, meu senhor, lhe tomara huum oficio d’escrivão da feitoria
da Ilha de Cabo Verde, que tinha por seis annos, poLO dar a Luis
Allvarez 2. 33
• a milhor festa que hi ha, he fazer homem cousas pera SE rirem
d’elle 151. 37
• Eu não vejo outro Remedyo senã vyre! ME cavalos da cydade ao
barco de Sacave! 12. 35 (?)

3.2.2.2.2 Reduzidas de gerúndio:

a) Não regidas por preposição: colocação pós-verbal categórica

• Dona Isabel Freire me escreveo, pedindoME que pedisse por merce


a elRei, meu senhor, que a mandase viir 143, 34

Sintetizando os resultados, temos, então:

• Total de contextos sintáticos analisados: 12

• Total de contextos sintáticos com regra categórica: 8


a) colocação pré-verbal categórica: 4 contextos
b) colocação pós-verbal categórica: 4 contextos

• Total de contextos sintáticos com regra variável: 4


a) preferência pela colocação pré-verbal: 3 contextos
b) preferência pela colocação pós-verbal: 1 contexto

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

No século passado, a partir da observação do francês e do italiano


antigos, Tobler e Mussafia constataram que nessas línguas não se verificava
a ocorrência de clítico em primeira posição na frase; de tal constatação,
resultou a conhecida “lei de Tobler e Mussafia”. Posteriormente, Wackernagel
afirmou que, não apenas nas línguas românicas, mas nas línguas indo-
européias de modo geral, as palavras não acentuadas dependiam
fonologicamente do primeiro elemento acentuado da frase; ou seja, eram
enclíticas ao primeiro elemento. Assim, de acordo com Martins (1994:48),
“passa a explicar-se a impossibilidade de ocorrência dos pronomes clíticos
em posição inicial de frase como resultado da aplicação da chamada lei de
Wackernagel”. Desconsiderando-se o fenômeno da interpolação, que aqui
não foi tratado, pode-se dizer que a sintaxe dos clíticos, no século XVI, é a
representação mais evidente da aplicação da “lei de Wackernagel”, poden-
do ser descrita a partir de um simples esquema:

• V-cl
• X-cl V

Ou seja, se o verbo ocupa a primeira posição, o clítico ocorre em


posição pós-verbal (enclítico ao verbo); porém, se o verbo está precedido
por algum elemento, o clítico ocorre em posição pré-verbal (enclítico ao
elemento que precede o verbo). É com base neste tipo de arranjo sintático
que ocorreu na língua portuguesa no período clássico da sua história que a
tradição gramatical, ao fixar uma norma padrão para a sintaxe dos clíticos,
desenvolveu a chamada “teoria da atração”. No conjunto das línguas româ-
nicas, esta situação parece manter-se apenas no português europeu e no
galego contemporâneos. Nas demais línguas românicas, assim como no
português brasileiro, passou a ser possível o clítico ocorrer em posição
inicial absoluta.
As razões por que tal mudança se operou no português brasileiro são
ainda hoje objeto de discussão entre os estudiosos, os quais quase sempre
optam por uma perspectiva estritamente sintática ou estritamente fonológica
na abordagem do tema, sendo mais raras as análises que buscam a interface
sintaxe/fonologia.
Ao longo da década de 90, sob o escopo teórico do que se convencionou
chamar de Sociolingüística Paramétrica, desenvolveram-se importantes tra-
balhos sobre os clíticos, indagando-se as razões de natureza sintática que
teriam definido a sua mudança de ordem na frase no português brasileiro.
Dentro dessa perspectiva, Pagotto (1993), por exemplo, defende que o
processo de mudança do qual resultou a sintaxe vernácula dos clíticos no
português brasileiro se caracterizou pela perda do movimento do clítico e
pela perda do movimento do verbo. A teoria gerativa, segundo o modelo
dos Princípios e Parâmetros, trata todo um conjunto de mudanças em ter-
mos de um novo assentamento no valor de um único parâmetro. Quando
se fala de mudança paramétrica, fala-se, pois, não de uma mudança, mas

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
necessariamente de um conjunto de mudanças inter-relacionadas. A des-
peito de a questão central ainda permanecer controversa – a que mudança
paramétrica se relaciona a mudança na ordem dos clíticos na frase? – , todo
um conjunto de relações entre a mudança na ordem dos clíticos, o desapa-
recimento do clítico acusativo de terceira pessoa e a emergência de objeto
nulo/pronome tônico no preenchimento da função sintática de objeto di-
reto pôde ser desvendado, sendo este um dos maiores saldos dos traba-
lhos dos sintaticistas gerativistas.
Nunes (1993) também assume que a mudança na ordem dos clíticos, o
desaparecimento do clítico acusativo de terceira pessoa e a emergência de
objeto nulo/pronome tônico no preenchimento da função sintática de obje-
to direto são três mudanças sintáticas inter-relacionadas. Contudo defende
que, no século XIX, no Brasil, uma mudança de natureza fonológia – a mu-
dança na direção da cliticização fonológica – seria a explicação para a mu-
dança que se operou na sintaxe dos clíticos: ou seja, enquanto, no português
antigo e no português europeu contemporâneo, a direção da cliticização
fonológica seria da direita para a esquerda, sendo os clíticos sempre enclíticos
fonologicamente; no português brasileiro, teria havido uma mudança na di-
reção da cliticização fonológica, que passou a ser da esquerda para a direita,
tornando os clíticos sempre proclíticos. A mudança na direção da cliticização
fonológica não apenas teria permitido a ocorrência de clíticos em primeira
posição na oração, uma vez que passaram a poder apoiar-se em um elemen-
to à sua direita, como teria sido responsável também pelo desaparecimento
do clítico acusativo de terceira pessoa, o qual, devido à sua estrutura silábi-
ca, não poderia ser licenciado em posição inicial absoluta.
Além das razões por que as mudanças ocorreram, também é relevante
para o historiador da língua identificar quando ocorreram. Todavia, a dificul-
dade para fazê-lo é grande, na medida em que o caráter conservador dos
textos escritos geralmente impede o registro as mudanças no ritmo em que
elas se processam na língua falada. Embora Nunes (1993), conforme já se
referiu anteriormente, tenha proposto o século XIX como o momento em
que teria ocorrido a mudança na ordem dos clíticos no português brasileiro,
Cyrino (1997) defende que a mudança na direção da cliticização fonológica,
em curso já desde o século XVII, estava implementada no século XVIII.
Para corroborar a sua proposta de recuo da datação da mudança na
direção da cliticização fonológica, Cyrino (1997:258-260) apresenta, em
textos de Gregório de Mattos, representativos, portanto, do século XVII,
“inúmeros exemplos de clíticos de primeira e segunda pessoa aparecendo
em início de verso, em posição em que não poderiam ter se cliticizado a
nenhuma palavra anterior”, alguns dos quais vêm abaixo transcritos:
Todos estão com saúde
ME disse o crioulo esquivo
Um tanto triste de cara,
Pouco alegre de focinho.
(7 sílabas)

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

E como isto lhe vem por geração


LHE ficou por costume em seus tetrós
Morder os que provêm de outra nação
(10 sílabas)

Com base, portanto, em uma análise métrica de versos como os ante-


riormente referidos, Cyrino (1997) propôs o século XVII como o momento
para a datação da emergência de uma ordem brasileira de colocação dos
clíticos na frase.

4 A sintaxe dos clíticos e a norma padrão


Afirmamos, anteriormente, que a ocorrência da colocação pré-verbal
na norma oral culta brasileira não reflete padrões vernáculos de uso da
língua; estamos assumindo, portanto, que a colocação pós-verbal é reflexo
da recuperação de uma perda diacrônica através da escolarização. Este fato
sociolingüístico é também acompanhado de uma conseqüência
sociolingüística, ou seja, a elevação da colocação pós-verbal à condição de
variante de prestígio. Cabe perguntar, então, em que medida o comporta-
mento lingüístico dos falantes escolarizados brasileiros reflete o padrão de
ordem dos clíticos prescrito pelas gramáticas tradicionais e que se supõe
ser o veiculado pela escola. Para este fim, vejamos os resultados apresenta-
dos no Quadro 3, a seguir, em que a obediência / desobediência dos falan-
tes cultos à norma padrão é correlacionada à sua faixa etária:

Faixa Etária Obediência Prescrição Gramatical


Pré-verbal Pós-verbal
Faixa I Sim 110 – 100% 12 – 26%
Não 35 – 74%
Faixa II Sim 82 – 99% 11 – 22%
Não 01 – 01% 39 – 78%
Faixa III Sim 138 – 95% 37 – 45%
Não 07 – 05% 46 – 55%
Total Sim 330 – 98% 60 – 33%
Não 08 – 02% 120 – 67%

Quadro 3: Faixa etária X obediência / desobediência à norma padrão (Lobo 1992:


222)

Os resultados referentes à obediência / desobediência às regras que


indicam a colocação pré-verbal devem ser a priori desconsiderados, pois
esta é a forma vernácula de colocação do clítico no português brasileiro
contemporâneo. Todavia, é interessante notar que a hipercorreção – aqui
definida como a utilização da colocação pós-verbal em contextos para os
quais se prescreva colocação pré-verbal –, não é atestada entre os falantes
da faixa etária III.

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Segundo o modelo da língua padrão ainda hoje vigente no Brasil,
constituiria tarefa para o estudante brasileiro aprender a dominar os se-
guintes contextos para os quais se prescreve a colocação pós-verbal do
clítico8 .

• verbo iniciando período;


• verbo precedido apenas por conjunção coordenativa, exceto quan-
do se trata de conjunção alternativa;
• verbo precedido por sujeito nominal;
Obs.: O gramático Rocha Lima (1976) também indica a colocação pós-
verbal no contexto Verbo precedido por sujeito = pronome pessoal.
• verbo no imperativo afirmativo;
• orações reduzidas de gerúndio; exceto as introduzidas pela conjun-
ção em;
• orações reduzidas de infinitivo, com ou sem marcas de flexão, não
regidas por preposição.
Obs.: Nas reduzidas de infinitivo não-flexionado, regidas por preposi-
ção, admite-se a variabilidade posicional do clítico, exceto quando se
trata de ocorrência do clítico o(s), a(s) em reduzidas de infinitivo regidas
pela proposição a, caso em que se indica a colocação pós-verbal;
• pausa entre o verbo e o termo antecedente que provoque a
anteposição do clítico ao verbo.

A partir do Quadro 3, percebe-se, quanto aos resultados referentes à


obediência / desobediência às regras que indicam a colocação pós-verbal,
que, em nenhuma faixa etária, os índices de obediência superaram os de
desobediência; por outro lado, percebe-se também um claro desnível entre
as faixas etárias: os falantes das faixas etárias I e II apresentam freqüências
de 26% e 22%, respectivamente, de obediência à norma padrão; já entre os
falantes da faixa etária III os índices de obediência ao padrão crescem para
45%. O que, em síntese, esses números revelam é que a ocorrência da
colocação pós-verbal do clítico parece ter os seus dias contados mesmo na
fala dos brasileiros escolarizados em situação formal de comunicação.
Historicamente, qual a base empírica sobre a qual se assenta o pa-
drão? É interessante notar que o modelo de colocação dos clíticos prescri-
to pelas gramáticas normativas brasileiras se aproxima do modelo de
colocação dos clíticos vigente no português europeu contemporâneo, o
qual se delineia a partir do século XIX, e não do século XVI, conforme
supuseram alguns filólogos do passado. Tal modelo, claro está, não encon-
tra fundamento não apenas na norma vernácula, como também na norma
culta brasileira. Resta saber se, não se justificando, hoje, tal padrão, have-
ria propostas alternativas e a quem caberia formulá-las.

1 Sobre os conceitos de norma(s) vernácula(s) e norma(s) culta(s), cf. Lucchesi, 1994.


2 O chamado Corpus Compartilhado do Projeto NURC é um mini-corpus que preserva as

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100
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

características do corpus total. Cf., a este respeito, Lobo 1992:23-25.


3 Não houve ocorrências de infinitivas flexionadas não regidas por preposição.
4 Houve apenas quatro ocorrências de infinitivas flexionadas regidas por preposição, estando
o clítico, em todas elas, em posição pré-verbal.
5 Não houve ocorrências de gerundivas regidas por preposição.
6 Nas reduzidas de infinitivo não regidas por preposição, independentemente de o infinitivo
ser ou não flexionado, a colocação dos clíticos foi categoricamente pós-verbal.
7 Nas reduzidas de infinitivo regidas por preposição, independentemente de o infinitivo ser
ou não flexionado, a colocação dos clíticos foi variável.
8 De acordo com Bechara, 1982; Cegalla, 1981; Cunha, 1981; Cunha e Cintra, 1985 e Rocha
Lima, 1976.

Referências Bibliográficas
BECHARA, Evanildo. (1982). Moderna gramática portuguesa. 27 ed. São
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Português 500.p65 100 22/7/2005, 14:55


101

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
ROBERTS, Ian e KATO, Mary. (Orgs.). Português brasileiro: uma viagem
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Português 500.p65 101 22/7/2005, 14:55


Português 500.p65 102 22/7/2005, 14:55
A definição da oposição entre ser/estar
em estruturas atributivas nos meados
do século XVI

Rosa Virgínia Mattos e Silva

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105

1 Colocando o problema

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
O
objetivo deste estudo é demonstrar que, nos meados do século
XVI, o verbo ser deixa de ter o traço semântico de transitoriedade
ou, dito de forma mais elaborada, deixa de expressar “proprieda-
des temporalmente limitadas de individual” (Mateus et alii 1983: 138),
possibilidade que ocorre por todo o período arcaico, em variação com o
verbo estar e expressará “propriedades de individual”, ou seja, o traço
semântico de permanência, o que ocorre desde as origens do português
até hoje em estruturas atributivas, tanto descritivas como locativas: espaci-
ais, temporais e nocionais.
A variação ser/estar, expressando a transitoriedade, pode ser vista já
documentada no primeiro texto de “scripta inovadora” (Martins 1999) em
português, o Testamento de Afonso II de 1214 (Costa 1979), como na
seqüência seguinte:
(1) Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e
saluo (l. 1) [= ‘estando’].
(2) ... e todas aquelas cousas que Deus mi deu em poder sten em paz e em
folgãcia (l. 2) [= ‘estejam’].

A alta ocorrência de ser nessas estruturas que expressam a transitori-


edade, ao longo do período arcaico, ficou patente em estudos elaborados
por mim em documentação dos séculos XIII e XIV (1997 e 1989) e do
século XV (Sepúlveda Netto 1989 e Mattos e Silva 2000a), a par do aumen-
to progressivo do uso de estar nessas estruturas. Essa predominância é um
dos fatores que levam à alta freqüência de ser na documentação do perío-
do arcaico, mas não o único. No levantamento exaustivo que fiz das pala-
vras lexicais na versão portuguesa trecentista dos Diálogos de São Gregório
(1971, v. IV), o verbo ser tem a taxa de ocorrência de 1648, enquanto estar
apresenta a de 238.

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106
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Outro fator que contribui para a alta freqüência de ser, em relação a


estar, é que o primeiro é usado em várias estruturas sintático-semânticas:
a) pode ser um verbo nominal, pleno, de natureza ergativa, significando
‘estar sentado’, de acordo com o étimo sed!"re; b) pode ser um verbo fun-
cional (Franchi et alii 1998: 110), semanticamente existencial, em varia-
ção com haver, predominando este nessa estrutura; c) pode ocorrer em
estruturas clivadas, pouco freqüentes, desde o século XIII, mas documen-
tadas no período arcaico, como, por exemplo, na seqüência seguinte das
Cantigas de Santa Maria (Mettmann 1959-1972) – Gram dereito é que
fill’o demo por escarmento (C. 34, l. 3); d) pode ainda ocorrer, com fre-
qüência alta, como verbo equativo de ligação, por exemplo, nas Cantigas
de Santa Maria – que de Deus é madre e filha (C. 19, l. 2); e) também
ocorre como verbo auxiliar formador de tempo composto de verbos não-
transitivos, tanto intransitivos como ergativos, como na seqüência das Can-
tigas de Santa Maria – muito valera mais que non fossemos nados
[=‘nascidos’] (C. 30, l. 22); f) ainda, com muita freqüência, como auxiliar
formador de voz passiva com ou sem agente expresso, tal como hoje; g)
também ocorre como verbo de posse, seguido da preposição de (ser de),
em variação com haver e ter (Mattos e Silva 1997: 216-262), possibilidade
que perdura também até hoje em variação com ter, mas não com haver,
como ocorreu até, pelo menos, o século XVI.
O verbo estar,
contudo, além das
estruturas atribu-
tivas em foco, pode
ocorrer, tal como
ser, como verbo
nocional pleno,
ergativo, significan-
do, de acordo com
seu étimo, st #" r e
‘estar de pé’; como
auxiliar aspectual,
seguido de par-
ticípio passado,
expressando o as-
pecto concluído e
Fragmento do fólio 18r da Grammatica de João de Barros como auxiliar aspec-
tual, seguido de
gerúndio, expressando a continuidade do processo.
As nove possibilidades de uso de ser, aí incluídas as de atributo tran-
sitório e permanente, contrapõem-se às quatro de estar. Daí se infere, com
clareza, a alta freqüência de ser, em relação a estar.

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107

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Vale informar que, como verbo pleno, tanto ser como estar caem em
desuso na segunda fase do período arcaico, que admito se situe na passa-
gem do século XIV para o XV (1989: 35). O uso como auxiliar de tempo
composto de verbo não-transitivo de ser ainda perdura, pelo menos, até o
século XVI, em variação com haver e ter (Mattos e Silva 2000b) e o traço
semântico de transitoriedade de ser, foco deste estudo, será já um resíduo
arcaizante nos meados do século XVI, como buscarei aqui demonstrar (cf.
2 e 3).
Apesar da multiplicidade de usos do verbo ser ao longo do período
arcaico, ainda no século XVI e até hoje, os dois primeiros gramáticos que
refletiram e escreveram sobre a língua portuguesa, Fernão de Oliveira, em
1536, e João de Barros, em 1540, pouco dizem sobre esse verbo.
João de Barros no seu relativamente longo estudo intitulado “Do ver-
bo” (Buescu 1971: 324-344) se refere a ser no item “Difinçam e diuisam
do verbo”, e diz:
Os Latinos pártem os seus verbos em sustantivos e ajetivos. Dos primeiros
temos este só verbo, sou, ao qual chamamos sustantivo porque demonstra o ser
pessoal da cousa, como quando digo: eu sou criatura racional (p. 325).

Ao tratar dos “verbos impes[s]oais” (Buescu 1971: 327) afirma: “Es-


tes verbos impes[s]oais sam em duas maneiras: a uns chamam da voz ativa
e [a] outros da voz passiva”.
Esperaríamos que falasse do ser da voz passiva ao tratar, a seguir, dos
“vérbos impessoais da voz passiva”, mas o que sobre isso diz é o seguinte:
Nós nam temos estes vérbos, mas, quando falámos per este módo, tomámos o
vérbo em a terceira pessoa do numero singular e este pronome de terçeira, se,
e, reçiprocando, dizemos: Na praça se pragueja fortemente (p. 327).

O se impessoal é, para ele, a expressão da voz passiva e não menciona


a passiva formada por ser, seguido de particípio passado. Ainda afirma
mais adiante:
Nós conjugamos os nossos vérbos per estes discursos: pelo primeiro, presente,
pretérito, infinitivo, gerúndio de ablativo e per o particípio pretérito, tudo na
voz autiva, por nam termos vóz passiva, tirando o partiçipio que é formado na
passiva (p. 332, grifos nossos).

Portanto, sobre o verbo ser apenas afirma que é o nosso único “verbo
sustantivo”, interpretação que, segundo M. Leonor Buescu, é devida a
Prisciano (1971: 327, nota 1). Não leva em conta, assim, os pelo menos
outros sete usos sintático-semânticos de ser, correntes nos séculos XIII ao
XVI, já que o nono, em nossa análise, o ser ‘estar sentado’, deixa de ser
usado já do século XIV para o XV. O ser ‘sustantivo’ equivaleria, talvez, ao
verbo de ligação equativo, o que depreendo do exemplo dado: “Eu sou
criatura racional”.

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108
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Fernão de Oliveira em sua Gramática da linguagem portuguesa de


1536, no capítulo XLIX, informa que “da construição ou composição da
língua” (Torres e Assunção 2000: 153) tratará em outra obra que “temos
começada”, como diz. Tal obra ou não a fez ou não chegou ela até nós. Ao
tratar dos verbos, no capítulo XLVII, menciona apenas um interessante
aspecto morfo-fonêmico do verbo ser:
Nos generos dos verbos não temos mais que )"!& só voz acabada em o pequeno,
como ensino, amo e ando, a qual serve, como digo, em todos os verbos, tirando
alghuus poucos como são estes: sei, de saber, e vou e dou e estou e mais o verbo
substantivo, o qual huns pronunçiam em om, como som e outros em ou, como
sou, e outros em ão, como são; e também outros que eu mais favoreço, em o
pequeno, como so. No parecer da primeira pronunciação com o e m, que diz
som, é o mui nobre João de Barros; e a razão que dá por si é esta: que de som
mais perto vem a formação do seu plural, o qual diz somos. Contudo, sendo eu
moço pequeno, fui criado em São Domingos d’Évora, onde faziam zombaria de
mim os da terra, porque o eu assi pronunciava segundo que o aprendera na
Beira (Torres e Assunção 2000: 150-151).

Mas nada diz sobre usos sintático-semânticos de ser, que, tal como
João de Barros, chama de “verbo substantivo”, como se vê na seqüência
acima. A referência a João de Barros preferir som, não condiz com o que
ocorre na Gramática da língua portuguesa de Barros que aí utiliza sou (cf.
Buescu 1971: 325 e 344). A da página 325 é a já referida ao definir o autor
o “verbo substantivo” sou e a da página 344 está quando discorre sobre
“Formações” dos verbos e menciona outra vez o verbo substantivo, mas
não trata do valor semântico de transitoriedade, que o verbo ser perderá
nos anos quinhentos (cf. 2 e 3), mas que é um dos indicadores
intralingüísticos que caracteriza o período arcaico em relação ao moderno
ou clássico.
Para demonstrar a perda do traço semântico de transitoriedade do
verbo ser em estruturas atributivas descritivas e locativas nos meados do
século XVI, utilizarei, como base documental, a chamada Obra Pedagógi-
ca de João de Barros, com exceção da Cartinha, portanto a Gramática
(GLP), o Diálogo em louvor da nossa linguagem (DLNL) e o Diálogo da
Viçiosa Vergonha (DVV), obras impressas em 1540, que, na edição utiliza-
da (Buescu 1971), perfazem 4.266 linhas de texto. Confrontarei os dados
encontrados com uma amostra de 2.133 linhas da Primeira Década da
Ásia do mesmo autor, impressa em 1552. Utilizarei a edição de Antônio
Baião de 1932, conforme a edição princeps de 1552, republicada em 1988
pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
O confronto dos dados do texto da Obra Pedagógica com a Primeira
Década foi motivado com o objetivo de verificar se se confirma ou não o
que ocorre na escrita supostamente mais “monitorada” da Obra Pedagógi-
ca com o que está na Década Primeira, narrativa historiográfica, em que,
suponho, o autor tenha deixado correr a pena mais livremente.

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109

2 O percurso diacrônico da variação ser/estar em

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
estruturas atributivas transitórias: do século XIII a 1540

2.1 Os dados quantificados


Buscarei distinguir os atributos transitórios do tipo locativo ([loc.
trans.]) dos atributos transitórios descritivos ([desc. trans.]). Nos locativos
tenho feito recortes mais estreitos de caráter semântico, como seja: a loca-
lização propriamente dita, ou espacial; a localização temporal; a localiza-
ção nocional; a localização geográfica, mas aqui tratarei os locativos em
conjunto.
No texto que deu partida à pesquisa deste problema, a versão do
século XIV dos Diálogos de São Gregório (DSG), já havia uma indicação
clara de que a substituição de ser por estar começou nos contextos locativos
e daí transitou ou se difundiu para os contextos descritivos. A análise da
documentação quatrocentista (S. Netto 1989) confirmou o encontrado no
século XIV e, recuando mais para o passado, o exame de uma extensa
documentação ducentista (Mattos e Silva 1997) indicou, confirmando o
encontrado no século XIV, que no século XIII a predominância de ser nes-
ses predicados transitórios era maciça, mas estar ocorria nos dois contex-
tos com relevante predominância nas estruturas locativas. No outro extremo
dessa diacronia, 1540, já quase desaparecido ser nessas estruturas, estar
ainda predomina nas locativas em relação às descritivas.
A Tabela 1 resume a transição diacrônica acima descrita, do séc. XIII a
1540. Antes, porém, para ilustração do problema, vejam-se os exemplos
da variação em causa nos contextos selecionados:

(3) Locativas transitórias


a. Dementre no mundo era (DSG 2.1.4, séc. XIV).
b. Cousas que derredor estavan (DSG 3.1.9, séc. XIV).

(4) Descritivas transitórias


a. Ca as donas que enton presentes foron, contaron-no aas outras
(DSG 4.11.27, séc. XIV).
b. Fez sa oraçon estando el-rei presente (DSG 3.27.6, séc. XIV).

séculos XIII XIV XV 1540


contextos
/loc. trans./ ser 76% 29% 26% 7%
estar 24% 71% 74% 93%
/desc. trans./ ser 93% 92% 78% 16%
estar 7% 8% 22% 84%
Tabela 1

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110
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Os dados da Tabela 1 mostram o decréscimo de ser tanto nas locativas


como nas descritivas do séc. XIII para 1540, sendo que nas locativas a
difusão de estar sobre ser começou com taxas mais altas e assim se man-
teve por todo o período até 1540 (de 24% para 93% nas locativas e de 7%
para 84% nas descritivas).
Esses dados são indicadores de que a difusão ou transição pela estru-
tura do verbo inovador partiu das locativas para as descritivas. Permitem
ainda especular sobre o encaixamento da mudança na sua história pregressa:
estar tem como étimo de $%#"&!, ‘estar de pé’, e, nessa acepção, está docu-
mentado no português até fins do século XIV, enquanto ser tem uma histó-
ria de convergência dos verbos latinos $!'!"&!, ‘estar sentado’ – ainda em
uso, nessa acepção, pelo menos até fins do século XIV – e esse, ‘ser’. Esse
dado histórico-etimológico permite que se afirme que o traço /+transitó-
rio/ é próprio, desde sua origem, a estar, enquanto em ser confluem o /
+transitório/ de $!'!"&! e o /+permanente/ de esse. Não é, portanto, sem
razão histórico-diacrônica o uso de ser, tanto expressando o atributo per-
manente como o transitório e, ao definir-se a oposição no português, ter
sido estar o verbo selecionado para expressar “propriedades de individual
temporalmente limitado”, ou seja, a transitoriedade.

2.2 O exame qualitativo dos usos arcaizantes de ser como predicador


de atributos transitórios na Obra pedagógica de João de Barros
A análise qualitativa das ocorrências conservadoras ou arcaizantes de
ser em atributo transitório – total de seis – leva à reformulação dos dados
antes quantificados.
Das seis ocorrências arcaizantes de ser, três são de atributo descritivo
e três de locativo. Nenhuma delas ocorreu na Gramática da língua portu-
guesa: duas de descritivo estão no Diálogo em louvor de nossa linguagem
e outra no Diálogo da Viciosa Vergonha, também nesse último texto es-
tão as três ocorrências de locativo transitório.
São as seguintes as atestações de ser “conservador” no DLNL:

(5) E a este módo trastocou Deos o intendimento de tantas nações


como foram presentes ao Sermán de Pedro 396, 3 (ADT).
(6) As plantas nóvas nam quérem logo o ferro ao pé; depois que
sam duras e bem enramadas, entám lhe/s/ convém o podám, para âs
desafogár 408, 6 (ADT).

e no DVV:

(7) Que culpa tem os hómens nos defeitos da natureza pois nam
foram em sua mam, cá, das cousas que nos vem, per natureza, nem
somos louvádos nem vituperados? 424, 11 (ALT).

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111

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
(8) Peró, tanto que o imigo era na praça... aquela fúria de liám... se
convertia em mansidam de cordeiro 45, 13 (ALT).
(9) “Serám estas palavras em vósso coraçám em todolos dias de vóssa
vida” 437, 14 (ALT)
(10) “Senhor, ouvi a tua voz e escondi-me, porque era nu” 416, 9 (ADT).

As ocorrências (9) e (10) são citações de textos bíblicos. A primeira do


Deuteronômio e a segunda do Gênesis, identificadas e aspeadas na leitura
crítica pela autora da edição. Muito provavelmente João de Barros teria
feito a citação por versões mais antigas da Bíblia, texto traduzido, copiado
e recopiado em todo o período arcaico. Se essa interpretação for correta,
as ocorrências arcaizantes se reduzem a quatro, duas de atributo descritivo
e duas de locativo, o que levará a uma reformulação dos dados da Tabela 1,
descendo para 5% os locativos transitórios com ser e para 11% os descriti-
vos transitórios com esse verbo (cf. Tabela 1a):

séculos XIII XIV XV 1540


contextos
/loc. trans./ ser 76% 29% 26% 5%
estar 24% 71% 74% 95%
/desc. trans./ ser 93% 92% 78% 11%
estar 7% 8% 22% 89%
Tabela 1a

Dessa forma, os dados da Obra Pedagógica de João de Barros funda-


mentam a interpretação de que as quatro ocorrências arcaizantes de ser
com atributos transitórios descritivos e locativos sobre 58 de estar reuni-
dos descritivos e locativos (6% e 94%), serão resíduos do uso antigo. Pon-
to de vista que considero confirmado pelo fato de que na Gramática da
língua portuguesa, seguida da Ortografia, o pedagogo normativista só
usa a forma inovadora, deixando esgueirar-se as quatro ocorrências
arcaizantes nos dois Diálogos.
Diante desses dados, pode-se afirmar que o uso, vamos dizer,
“monitorado” de João de Barros indica que a oposição semântica entre
ser, como “predicador de propriedades de individual” já se estabelecera.
Para confirmar ou não essa afirmativa, a seguir analisarei uma amostra da
Primeira Década da Ásia.

3 O que mostram os dados da amostra da Primeira Década


da Ásia sobre a variação ser/estar em estruturas de atributos
transitórios

3.1 Os dados quantificados


A amostra de 2.133 linhas da Primeira Década de João de Barros,
obra impressa em 1552, tal como a Obra Pedagógica, estando vivo o au-

Português 500.p65 111 22/7/2005, 14:55


112
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

tor, recobre o Prólogo e treze capítulos do Livro Primeiro. O capítulo


primeiro é claramente introdutório: apresenta João de Barros, sumaria-
mente, a história da Espanha, a partir da sua conquista pelos “mouros”;
centra-se na formação do “reino de Portugal” e logo passa a suas “conquis-
tas” nas partes de África como nas de Ásia”. Os outros doze capítulos ana-
lisados, do segundo ao décimo terceiro, tratam, todos eles, de “descobertas”
do tempo do Infante D. Henrique de Avis, mais de um século antes da
escrita da Primeira Década: “descobertas da costa ocidental da terra de
África até o Cabo Bojador e o Cabo Verde”; das ilhas do arquipélago da
Madeira e do arquipélago das Canárias.
Trago essas informações sobre o conteúdo da amostra selecionada,
porque vão interessar, a seguir (cf. 3.2), quando tecerei alguns comentári-
os de natureza qualitativa sobre os dados encontrados.
Na análise seguinte não distingui, como antes, os atributos descriti-
vos dos locativos, tratarei, portanto, dos “predicadores temporalmente li-
mitados de individual” no seu conjunto.
Nessa amostra antes descrita, foram encontradas 426 ocorrências do
verbo ser, nas suas várias possibilidades semântico-sintáticas; dessas re-
cortei as que expressam estruturas atributivas, que perfazem o total de
332 ocorrências, estrutura mais freqüente, como se pode ver (426 para
332), do verbo ser. Desses 332 dados de ser atributivo, tem-se o que se
pode ver na Tabela 2, tanto semanticamente permanente (AP), como se-
manticamente transitório (AT):

ATRIBUTOS
VERBO AP AT
N % N %
SER 312 94 20 6
Tabela 2

Do verbo estar, encontraram-se 71 ocorrências – note-se que ser, no


geral, continua muito mais freqüente que estar – sendo 56 em atributivas
transitórias e, em 15, estar vem seguido de particípio passado, expressan-
do o aspecto concluído, respectivamente 79% e 21%. É nas estruturas
atributivas transitórias que esse verbo se destaca.
Considerando, agora, apenas as estruturas atributivas transitórias, tan-
to com ser como com estar, tem-se o que mostra a Tabela 3, tanto em
número de ocorrências como em percentuais:
VERBOS ATRIBUTOS TRANSITÓRIOS
N %
SER 20 26
ESTAR 56 74

TOTAL 76 100
Tabela 3

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113

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Os dados quantificados sugerem um maior uso de ser em estruturas
de atributos transitórios – 20 ocorrências – do que o encontrado na Obra
Pedagógica de João de Barros – 04 ocorrências, depois da análise qualita-
tiva, apresentada em 2.2.
A análise qualitativa das 20 ocorrências de ser, como expressão de
atributos transitórios, permitirá, como se verá a seguir, a redução dessa
taxa de 20 ocorrências, que indicaria, como na hipótese levantada em 2.2,
que, no supostamente uso mais “monitorado” da Obra Pedagógica, João
de Barros seria menos arcaizante.

3.2 O exame qualitativo dos usos arcaizantes de ser como predicador


de atributo transitório na amostra da Primeira Década
A análise qualitativa das 20 ocorrências de ser como expressão de
atributo transitório permite dizer – se nossa interpretação estiver correta –
que apenas cinco das vinte são próprias, sem dúvida, ao discurso/escrita de
João de Barros.

a. Três delas se encontram no Prólogo em que o autor explicita os


objetivos de suas volumosas Décadas, as três primeiras concluídas e im-
pressas durante a sua vida, ficando a Quarta incompleta, por outro com-
pletada e depois impressa. São as ocorrências seguintes, indicadas página
e linhas:

(11) ... nos primeiros que foram no principio delle [=‘ princípio
do mundo’] 2.17 [=‘estiveram’].
(12) na qual pintura por ser em nome de Vossa Alteza, assy conten-
tou a el rey vósso padre 3.26 [=‘estar’].
(13) Por a qual confiança lhe beijey a mão per ante pessoas que já
sam viuas 3.33 [=‘estão’].

b. As duas outras estão em comentários claros, opinativos, do próprio


João de Barros; uma no capítulo XI e outra no XIII:

(14) E per este módo tam bem pereçeram algu"!s canários; porque
e0rã confiados no uso daquelles lugáres corriam mais sem t$!to 45,
27-29 [=‘estavam’].
(15) Mas elles estavam tam çafaros da cobiça daquellas cousas e tam
escandalizados do que lhe Alvaro Fernandez fez, que nam sómente
as nam quis$0ram, mais ainda as quebraram e romperã tudo, como se
nellas fóra alg"!a peçonha ou p$0ste que lhis podia enpeecer 53, 3-7
[=‘estivera’].

c. Das outras 15 ocorrências de ser arcaizante, duas são, sem dúvida,


discurso reportado por João de Barros de outros personagens históricos:

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114
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

uma repete a fala do capitão Lançarote no processo de descoberta e con-


quista das ilhas Canárias. Trata-se de um longo discurso do capitão, evento
ocorrido um século antes, pelo menos, da escrita da Década Primeira.

(16) ... ao seguinte dia ajuntou o capitam Lançarote todolos capi-


tães e pesóas principaes darmáda, e prepos lhe estas palavras. Bem
sabeis, senhores e amigos que... ora deos seja louuado vos o tendes
feito tam honradamente e tanto a seu serviço e prazer do Jnfante,
que vos é elle porisso em obrigaçam de honra e merçee, o que
todos deveis esperar cada h"! em seu grão... 43, 18-26 [=‘está’].

A outra que interpreto como não sendo própria, certamente, a João


de Barros, reporta-se a uma simulação da fala de pastores das Canárias,
hipótese que é reforçada pelo “como se lhe disseram”, expresso nesta se-
qüência textual:

(17) Os quáes [pastores] tanto que ouu$0ram vista dos nóssos, assy
tinhã costumado este gádo, que a h"! çerto final de apupos que
deram: começou todo correr pera h"! valle que estava antre duas
s$0rras de ásperos rochedos, como se lhe disseram aqui sam os inimi-
gos 45, 19, 22 (grifos nossos) [=‘estão].

As outras treze de ser transitório arcaizante, páginas e linhas indicadas,


estão em 6, 20; 13, 35; 15, 29; 15, 31; 16, 24; 17, 18; 18, 10; 21, 3; 24, 17;
34, 13; 38, 8; 41, 10 e 44, 20 e podem ser interpretadas como reflexo de
fontes historiográficas pretéritas, utilizadas por João de Barros para narrar
fatos históricos ocorridos na primeira metade do século anterior, já que se
referem, todas, à expansão e conquistas dos portugueses no tempo do
Infante D. Henrique.
Esse apelo à intertextualidade não me parece desarrazoado, porque
se sabe que João de Barros utilizou fontes históricas diversas para compor
as suas Décadas (cf. Baião 1988: LVI-LVII) e não era próprio ao seu tempo
a obrigatoriedade da referência explícita às fontes utilizadas. O próprio
João de Barros “ no capítulo I do Livro II da Década I, alega não ter sido
pequeno o seu trabalho em ajuntar cousas derramadas e per papeis rótos
e fóra de ordem” (Baião 1988: LVII, o grifado corresponde a palavras de
João de Barros).
Se essas interpretações avaliativas, de natureza qualitativa, forem ade-
quadas, só se teria na amostra analisada apenas cinco ocorrências
arcaizantes próprias, sem dúvida, ao discurso/escrita de João de Barros (as
seqüências (11) a (15)). Se assim for, a Tabela 2 passa a apresentar a se-
guinte configuração, expressa na Tabela 2a,

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115

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
ATRIBUTOS
VERBO AP AT
N % N %
SER 312 98 5 2
Tabela 2a

já que as outras quinze ocorrências de ser, como expressão de atributo


transitório, podem não ser próprias ao discurso/escrita do autor. Assim
sendo, as ocorrências arcaizantes na amostra da Primeira Década analisa-
da, como expressão de “propriedades temporalmente limitadas de indivi-
dual”, seriam apenas 5, próprias a João de Barros, no total das estruturas
atributivas expressas por ser, que, nas suas 312 ocorrências são a expres-
são de “propriedades de individual”.

4 Observações finais
Comparando-se os dados da Obra Pedagógica de João de Barros com
a amostra da Primeira Década, pode-se admitir que, em ambas as obras
desse autor, os usos arcaizantes de ser, como expressão de “propriedades
temporalmente limitadas de individual”, podem ser considerados resíduos
do uso de ser, expressão da transitoriedade, mesmo que não se concorde
com a análise qualitativa , que reduz a cinco (2%) os usos de “ser transitó-
rio”, nas Décadas e as vinte ocorrências quantificadas correspondem a 6%
das 312 ocorrências de ser atributo em geral, na Obra Pedagógica. Pode-
se, portanto, inferir dessa análise que, em João de Barros, a expressão de
“propriedades temporalmente limitadas de individual” seleciona o verbo
estar, com prioridade quase absoluta.
Vale ressaltar que, das cinco ocorrências consideradas, na análise qua-
litativa (cf. 3.2), da amostra da Primeira Década, como próprias ao discur-
so/escrita de João de Barros, três delas estão no Prólogo e não nas narrativas
históricas que apresenta nos treze capítulos analisados da Década Primei-
ra. O Prólogo, sem dúvida, apresenta uma escrita de natureza retórica
muito mais complexa e elaborada do que os fatos históricos contados com
mais fluência e linearidade. Talvez, por isso, tenha buscado recursos
lingüísticos menos usuais já no seu tempo no Prólogo. É óbvio que esse
ponto de vista teria de ser avaliado, confrontando o aqui enfocado, com
outras características próprias ao período arcaico da língua e ainda con-
frontar com os Prólogos da Segunda e Terceira Décadas e as narrativas
históricas que os sucedem.
Apesar dessas ressalvas, julgo que os dados da amostra da Primeira
Década permitem confirmar o que foi analisado e mostrado no estudo da
Obra Pedagógica e dão validade à afirmativa de que a definição da oposi-
ção semântica em estruturas atributivas, permanentes e transitórias, já está
expressa em meados do século XVI por ser e estar, respectivamente.

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116
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Esse fato permite que se proponha, como indicador intralingüístico,


entre outros, para delimitar o período arcaico, em relação aos inícios do
moderno ou clássico, a definição da oposição entre ser e estar nas estrutu-
ras atributivas semanticamente expressão de transitoriedade: ser [+transi-
tório], pelo menos entre 1540 e 1552, datas da impressão, respectivamente,
da Obra Pedagógica e da Primeira Década, já se apresenta, quando utiliza-
do, como resíduo arcaizante.
Para finalizar, apresento uma breve reflexão metodológica, em rela-
ção à utilização de documentação do passado, necessária aos estudos de
mudança lingüística.
Os estudos de mudança lingüística no tempo real de longa duração
não podem se restringir a um levantamento mecânico dos dados focaliza-
dos. Uma volta ao texto para observar questões de camadas textuais de
idades diferentes se faz essencial na análise da documentação arcaica ma-
nuscrita, em que em um manuscrito podem estar presentes reflexos de
modelos anteriores utilizados no processo sucessivo das cópias. No caso
de documentação já impressa, como se viu, por exemplo, no conjunto da
Obra Pedagógica e na amostra da Primeira Década, de João de Barros, há
que voltar aos documentos depois de segmentados os dados selecionados,
para observar pelo menos questões de intertextualidade como as
depreendidas neste estudo: citações de textos mais antigos; reflexos de
usos próprios a determináveis personagens; usos metalingüísticos; prová-
veis locuções idiomáticas fossilizadas etc.
O texto remanescente do passado, “informante” nos trabalhos de mu-
dança de longa duração, não é o resultado de entrevistas tecnicamente
elaboradas e em acordo com os objetivos pesquisados, tal como deve ocor-
rer nos estudos de mudança no tempo aparente e no tempo real de curta
duração.

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Vitórias de ter sobre haver nos
meados do século XVI: usos e teoria em
João de Barros

Rosa Virgínia Mattos e Silva

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
... das cousas naçem as palavras e não das palavras as cousas...
(Fernão de Oliveira, Grammatica, cap. I, ls. 11-12).

1 Por que razão meados do século XVI?

E
m janeiro de 1536 saía dos prelos de Germão Galharde a Grammatica
da lingoagem portuguesa, assim está na portada da edição princeps,
ou “primeyra anotação da lingua portuguesa”, como se encontra na
primeira linha do texto, também no colofão da mesma edição. Em 1540, dos
prelos de Luiz Rodriguez, vinha a público o que se veio a chamar de Obra
pedagógica de João de Barros – Grammatica da língua portuguesa, finali-
zada pela Ortografia; seguida dos dois diálogos – Dialogo em louvor da
nossa lingoagem e Dialogo da viçiosa vergonha, precedido esse conjunto
da Cartinha, datada de 1539.
Iniciava-se, com a “primeyra anotação da lingua portuguesa” e a chama-
da obra pedagógica de João de Barros, o percurso infindo da língua portu-
guesa como “(meta)linguagem sobre si mesmo”, na expressão adequada de
Ivo Castro em “Para uma história do português clássico” (1996: 137).
Em 1552 e 1553, dos prelos de Germão Galharde, saíram, respectiva-
mente, a Primeira e a Segunda Décadas da Ásia de João de Barros (cf. Cintra,
1974: V-VI).
O centro deste estudo é o uso variável dos verbos haver e ter em estru-
turas, semanticamente de posse, examinadas todas as ocorrências na obra
pedagógica de João de Barros (4.266 linhas de texto), exceto a Cartinha; o
uso variável de haver e ter nos «tempos per maneira de rodeo», referentes ao
passado, depois chamados de tempos compostos, examinadas a obra peda-
gógica e uma amostra da Primeira Década da Ásia (2.133 linhas de texto)
e, ainda, o uso variável de haver e ter, como verbo existencial, examinadas
as obras anteriores e uma amostra correspondente à da Primeira Década na
Segunda Década.
Contudo, a pesquisa sobre os dados do primeiro gramático “preceitista”
ou prescritivista da língua portuguesa forneceu-me dados que considero sig-
nificativos, como novos indicadores lingüísticos para definir os limites

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122
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

finais do período arcaico: em João de Barros o traço semântico de transito-


riedade ou de “predicador de propriedades temporalmente limitadas de
individuais“ (Mateus et alii 1983: 138) do verbo ser já era um resíduo
arcaizante, como busquei mostrar em outros trabalhos (1999 e 2000), ou
seja, a oposição semântica entre ser e estar estava definida na obra peda-
gógica de João de Barros. Também o uso de haver como predicador de
posse já era um resíduo arcaizante na referida obra (1999 e 2000). A exclu-
são de ser, na expressão da transitoriedade, e o de haver, na de posse,
podem ser indicadores lingüísticos que marcam 1540 como um forte can-
didato para, juntamente com outros indicadores intralingüísticos e
extralingüísticos, delimitar os finais do período arcaico da língua portu-
guesa.
Como se sabe, as questões de periodização, embora não essenciais, a
meu ver, na história das línguas, são um tema recorrente nos estudos his-
tóricos em geral e, conseqüentemente, nos estudos de história das lín-
guas.
No caso da história do primeiro período documentado da língua por-
tuguesa, o período arcaico, o seu limite inicial se pauta sempre pelo
surgimento de documentos escritos em português. Esse limite a quo tem
sido revisto: na tradição filológica mais antiga se situava no fim do século
XII, com o Auto de Partilhas e o Testamento de Elvira Soares; na década
de sessenta, Lindley Cintra, Avelino de Jesus da Costa e Rui Pinto de Azeve-
do (Cintra, 1963) demonstram que tais documentos são falsificações dos
fins do século XIII e propõem como os mais antigos documentos em por-
tuguês o Testamento de Afonso II, datado de 1214, e a Notícia de torto,
situável entre 1212 e 1216. Nesta última década, as pesquisas de Ana Ma-
ria Martins na Torre do Tombo (Martins, 1999), desvelando documentos
de scripta conservadora, alatinada, mas já em português, faz outra vez
recuar, com novas informações, esse limite inicial para as últimas décadas
do século XII.
Quanto ao limite final do período arcaico, estudos de filólogos e lin-
güistas historiadores da língua portuguesa demonstram uma notável falta
de consenso, como busquei mostrar em artigo de 1994, intitulado «Para
uma caracterização do período arcaico do português». Examinando pro-
postas de doze especialistas, os finais do período arcaico variam entre 1500,
com o término da fase principal da expansão portuguesa, e 1572, com a
publicação de Os Lusíadas. Esses autores, em geral, se pautam por fatores
ou da história social de Portugal, ou seja, a tradicionalmente chamada
história externa; ou se pautam por fatores da história da literatura; ou,
ainda, por um fator que chamarei de sociolingüístico, que é o surgimento
das primeiras reflexões sobre a língua portuguesa – 1536, 1540. Esse últi-
mo fator reúne muitos dos filólogos e lingüistas pesquisados. No meu tra-
balho referido, de 1994, problematizo essa questão e proponho que, sem
uma cronologia relativa de fatos intralingüísticos que caracterizam o perío-

Português 500.p65 122 22/7/2005, 14:55


123

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
do arcaico e vão sendo desusados do século XV para o XVI, um limite final
de base lingüística, ou de história interna, na designação tradicional, se
faz, a meu ver, essencial.
Em geral, nos estudos de filólogos e lingüistas, que trabalham sobre o
período arcaico e sobre questões referentes à periodização, fatos gráfico-
fônicos, morfo-fônicos e mórficos, que caracterizam esse período, têm sido
utilizados. Cito, como exemplo, a tese de Evanildo Bechara – As fases his-
tóricas da língua portuguesa (1985: 50-64); o Curso de história da lín-
gua portuguesa de Ivo Castro et alii (1991: 244-248); a dissertação de
mestrado de Maria José Carvalho – Do português arcaico ao português
moderno (1986) e o estudo de Clarinda Maia – “Periodização na história
da língua portuguesa: ‘status quaestionis’ e perspectivas de investigação”
(1999: 21-40), em que revê, problematiza e indica novos caminhos de pes-
quisa.
São privilegiados, em geral, nesses trabalhos, que utilizam indicado-
res lingüísticos, os fatos fônicos referentes ao sistema de sibilantes; a con-
vergência das vogais nasais finais em um ditongo nasal; os chamados “hiatos
desfeitos”, refletidos de várias maneiras na grafia da documentação preté-
rita; os fatos morfo-fônicos referentes ao desuso do particípio passado <-
u-do> em proveito do <-i-do> para os verbos da 2ª. conjugação; a perda
do <-d-> etimológico na 2ª. pessoa do plural dos verbos; os mórficos se
referem, em geral, ao desaparecimento dos chamados “possessivos áto-
nos” <ma, ta, sa>; a perda das formas reforçadas dos demonstrativos do
tipo <aqueste, aquesse> e também mudanças fônicas e/ou analógicas no
sistema dos verbos de padrão especial, ou seja, os verbos irregulares.
Entre outros fatos morfossintáticos, morfossemânticos e sintáticos que,
no meu trabalho referido de 1994, proponho que sejam examinados, para
delimitar o final do período arcaico, estão a questão da variação dos ver-
bos ser/estar em estruturas de atributos semânticos transitórios; a da vari-
ação haver/ter como predicadores de posse e a da gramaticalização do
tempo composto.
Sobre os dois últimos fatos lingüísticos e sobre a emergência do ter
existencial em João de Barros, centrar-me-ei neste estudo e pretendo que
ele mostre que os meados do século XVI pode ser uma proposta significa-
tiva para os finais do período arcaico e os inícios do moderno, por outros
designado como período pré-clássico ou clássico. Somar-se-ão assim ao
fator sociolingüístico antes referido – o surgimento da reflexão sobre a
língua portuguesa, fatores intralingüísticos que não se cingem aos níveis
fônicos, morfo-fônico e mórfico, mas, fundamentalmente, estará centrado
este estudo no avanço do verbo ter sobre campos de uso de haver, antes
indicados, questão semântico-sintática.

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124

2 Vitórias do verbo ter: do século XIII para os meados


O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

do século XVI
O que me despertou para as questões que serão apresentadas e ana-
lisadas a seguir foi, sem dúvida, a desproporção de ocorrências que encon-
trei na versão trecentista dos Quatro livros dos ‘Diálogos de São Gregório’,
texto de que fiz uma edição, ainda inédita, e veio a ser a minha tese de
doutoramento (1971). No IV volume dessa tese – Índice geral das pala-
vras lexicais – ressaltou a referida desproporção, tanto para haver/ter,
respectivamente, 803 e 119 ocorrências, como para ser/estar, 1648 e 238,
respectivamente. A partir dessa informação quantitativa de base, iniciei,
posteriormente, pesquisas sobre haver/ter em documentação ducentista
(1997) e quatrocentista (1995 e 1996), também sobre ser/estar.
Aqui vou focalizar, apenas, três tipos de uso, já referidos, dos verbos
haver/ter, nas obras, indicadas em 1, de João de Barros, impressas entre
1540 e 1553, meados do século XVI.
João de Barros já no século XVI era considerado “famoso e excellente
escriptor”, veja-se, por exemplo, que no primeiro cânone para a literatura
portuguesa, o de Pêro Magalhães de Gândavo no seu Diálogo em defesa
da língua portuguesa, que segue as suas Regras que ensinam a maneira
de escrever e a ortografia, impressas em 1579, refere-se Gândavo, entre
outros autores, a João de Barros – “Vede a Asia daquelle famoso & excellente
escriptor Joam de Barros” (Buescu, 1981: 61). Além de “excellente
escriptor”, foi João de Barros o autor da primeira gramática com intenção
pedagógica e prescritiva sobre o português. Assim, João de Barros, base
deste trabalho, será um lídimo representante, não só do uso culto, no seu
registro mais alto, do português quinhentista, mas também do uso da cor-
te de D. João III. Isso porque, além de homem de cultura, viveu desde os
treze anos na corte, primeiro como “moço do guarda roupa” do ainda In-
fante D. João e depois como seu alto funcionário, na Casa das Índias, pri-
meiro como Tesoureiro (1525-1528) e, em seguida, durante 15 anos (Buescu
1984), como o Feitor dessa instituição, essencial à administração real de
D. João III.
Com base nesses fatos históricos, temos em João de Barros um “infor-
mante lingüístico” bem definido: representante do uso culto e cortesão,
próprio ainda a alguém que primeiro, com sistematicidade, refletiu sobre
o português. Ao escrever as obras que serão base de nossos dados, entre
1540 e 1553, estava na maturidade (nasceu em 1496 e morreu em 1570/
1571). Embora nascido na Beira, em Viseu, aos 13 anos já estava nos Pa-
ços da Ribeira, em Lisboa. Portanto o perfil do nosso “informante”, em
síntese, o define como o de um homem na sua maturidade, portador da
variante culta e da corte do seu tempo. Com isso quero deixar claro que os
dados analisados representam o registro mais alto da língua portuguesa
de meados de quinhentos de um homem entre 44 e 59 anos.

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125

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Certamente no diassistema do português de quinhentos, examinados
outros corpora de natureza e de autores diversos, os resultados seguintes
podem ou não ser confirmados, já que as mudanças lingüísticas não se
difundem de uma só vez, nem na sociedade nem na área geográfica de uma
língua histórica. Além disso, a representação da diversidade real desse
diassistema tem, como interveniente inexorável, a também diversificada,
por razões várias, documentação escrita remanescente do nosso período.
Todos que trabalhamos com a história passada de uma língua temos disso
consciência, decorrente disso sempre será necessária a avaliação crítica das
fontes documentais, base para as depreensões e análises de fatos
lingüísticos.
As obras de João de Barros, em que estará fundado o presente estudo,
já são obras impressas. A imprensa, nessa altura, já estava em grande ex-
pansão em Portugal. Talvez João de Barros tenha acompanhado a sua im-
pressão nas oficinas gráficas de Luiz Rodriguez – a obra pedagógica, e de
Germão Galharde – a Primeira e a Segunda Décadas.
Foram utilizadas, neste estudo, edições que apresentam reproduções
das edições princeps, como é o caso da obra pedagógica (Buescu, 1971).
Para as Décadas, a edição de Antônio Baião «conforme a edição princeps»,
republicada pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda (1974 e 1988).

2.1 Ter e haver verbo de posse: usos e teoria na obra pedagógica


de João de Barros
Busquei distinguir, como já publiquei em outros trabalhos (1989,
1995, 1997 e 2000), nas estruturas de posse a natureza semântica do com-
plemento do verbo, o chamado «objeto possuído» em três tipos que se
evidenciaram para mim na análise do corpus trecentista dos Diálogos de
São Gregório. Recortei então três tipos semânticos para o complemento,
que a seguir ilustro com exemplos dos DSG (séc. XIV):

• propriedades inerentes (PI) ao possuidor como em: - barvas; -


ceguidade; - cinqüenta anos...;
• propriedades adquiríveis imateriais (PAI), morais, espirituais, inte-
lectuais, afetivas, sociais, como em: - fé; - graça; - poderio; - poder; -
ira...;
• propriedades adquiríveis materiais (PAM), objetos materiais exter-
nos ao possuidor, como em – remédio; - mezinhas; - carneiros; -
ovelhas...

Os dados do século XIV, que deram partida a esta pesquisa, indicaram


que a difusão de ter nas estruturas de posse se iniciou nos contextos do
tipo PAM e daí se difundiu para o PAI, sendo o contexto do tipo PI o último
a ser atingido. O exame de ampla documentação mais recuada no tempo,
o século XIII (1997), confirmou o encontrado no século seguinte (PAM /

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126
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

PAI / PI). Os dados de 1500 (1996) mostraram que ter suplanta haver em
todos os contextos, o que seria de esperar, pois em documentação da pri-
meira e da segunda metades do século XV (1995) já ter variava com haver
em todos os três contextos, predominando ter nos documentos da 2ª me-
tade daquele século nos três contextos. Esses dados do século XV não
constam da Tabela 1 porque foram levantados como sondagens e a partir
dos glossários das edições utilizadas e não dos documentos, como ocorreu
nos outros casos. Assim, na Tabela 1, constam os dados que foram levanta-
dos diretamente nos documentos correspondentes analisados para cada
momento considerado.

séculos XIII XIV 1500 1540


contextos
PAM haver 70% 20% 11% 14%
ter 30% 80% 89% 86%
PAI haver 85% 80% 45% 5%
ter 15% 20% 55% 95%
Tabela 1

Nessa Tabela excluí o contexto PI que é categoricamente preenchido


por haver na documentação dos séculos XIII e XIV e categoricamente por
ter em 1500 e 1540. A variação nesse contexto ocorre na documentação da
primeira e segunda metades do século XV, não tabulada pela razão antes
expressa. Esses dados contudo dizem que do século XIV, os Diálogos são
anteriores a 1380, para 1500 o verbo ter vai suplantando haver. Nessa
Tabela chama a atenção o fato de que o contexto PAM, por onde se iniciou
a mudança, pelo menos desde o século XIII, em 1540 apresenta taxa mais
alta (14%) que em 1500 (11%), enquanto há 5% de ocorrências de haver
em PAI e não ocorre haver em PI.
O exame qualitativo dos usos arcaizantes de haver em 1540, que
perfazem, como visto na Tabela 1, os percentuais de 14% para o tipo PAM
e 5% para o tipo PAI correspondem a dezoito ocorrências de haver, onde já
seria de esperar ter, duas no primeiro tipo para 12 de ter e dezesseis no
segundo tipo para 317 ocorrências de ter. No total dos dados há portanto
nesses contextos 18 ocorrências de haver para 329 de ter.
As duas ocorrências conservadoras em PAM, que perfazem 14% do
total de contextos desse tipo, ocorrem numa mesma seqüência textual:

(1) ...vós havereis çem mil reaes e a móça novéçentos, porque éla
/h/á de /h/aver aquilo que vós quereis da fazenda do testador (364,
11-13).

Essa seqüência está na Gramática (GLP), ao narrar João de Barros,


como exemplo, uma estória de um testamento em que reproduz o diálogo,
em discurso direto, entre um juiz e um herdeiro e estão na fala do juiz.
Pode-se admitir que nesses contextos únicos em que na sua obra pedagó-

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
gica João de Barros seleciona haver no tipo PAM, como visto, ponto de
partida da mudança, esteja ele a reproduzir características de um discurso
que não é o seu para caracterizar a fala de um mais velho e juiz, Como se
sabe, a linguagem jurídica costuma ser arcaizante. De posse dessa
contextualização de natureza sociolingüística das duas ocorrências de ha-
ver no tipo PAM, pode-se propôr a exclusão desse uso no discurso próprio
a João de Barros e admitir que ter era o verbo de posse nesse tipo de
estrutura.
Das dezesseis ocorrências de haver em contextos de tipo PAI, seis
estão na Gramática, uma no Diálogo em louvor de nossa linguagem (DLNL)
e as outras nove no Diálogo da Viçiosa Vergonha (DVV). Passarei a avaliá-
las qualitativamente.
Quatro das seis da GLP ocorrem em um contexto metalingüístico em
que o gramático explica que, com o verbo haver, se podem suprir verbos
que a língua latina tem e a portuguesa não.

(2) Temos mais este verbo /h/ei, /h/ás que é de gênero divérso polo
oficio que tem. Quando se ajunta com nome soprimos muitos ver-
bos da língua latina que a nóssa nam tem: /h/ei vergonha, /h/ei
medo, /h/ei fome, /h/ei frio e outros muitos significados que tem
quando o ajuntamos a nomes substantivos desta calidade (327,19 –
328,2)

Outra ocorrência na GLP está também em contexto metalingüístico,


ao exemplificar verbos que regem genitivo ou ablativo.

(3) .. E assi outros verbos ao exemplo destes; /h/ei piedade de ti e


tenho vergonha da mentira e tristeza do pecado (353, 3-5)

Note-se a contradição entre o que teoriza em (2) e o exemplo coeren-


te em (3) – hei piedade –, mas logo seguido do tenho vergonha, que,
segundo sua teoria, explicitamente deveria ser hei vergonha. Julgo que
essas ocorrências metalingüísticas podem ser excluídas, porque não pare-
cem corresponder ao uso efetivo de João de Barros, como se verifica no
próprio exemplo (3).
Excluir-se-ão assim, com esse argumento, cinco ocorrências «conser-
vadoras» de PAI.
O contexto hei vergonha vai cobrir, além daquele de (2), mais seis
das ocorrências no DVV (418,8; 420,19; 420,22; 420,2; 457,15-16; 459,7),
em que o autor segue a sua formulação teórica expressa em (2). Três deles,
julgo poderem ser excluídos.
São assim constituídos: dois de uma glosa à citação bíblica, do
evangelista Lucas, que vem em seguida. Poderão ser excluídos com o argu-
mento de serem reflexos da linguagem arcaizante da Bíblia. É a seguinte a
passagem focalizada:

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

(4) E aquele que /h/á vergonha do mal que fez, virá a ter liberdade
da vida, mas o que /h/a vergonha de fazer bem, este cái do estado
da virtude e vai ter a condenaçam, como diz o Redentor: «Aquele
que /h/á vergonha de mi, /h/á dos meus sermões» (420, 21-25).

A propósito ainda da seleção de haver/ter seguidos de vergonha pro-


curei verificar se ocorriam no corpus outras atestações de vergonha com o
verbo inovador, ou seja, ter; encontrei mais três ocorrências de ter vergo-
nha, uma na GLP e duas no DVV.
Assim, apesar de sua teorização prever haver vergonha, ele usa tam-
bém ter vergonha pelo menos uma vez na própria Gramática e mais duas
no Diálogo referido.
Aceitando-se as exclusões sugeridas, por serem cinco de natureza
metalingüística e três, reflexo do texto bíblico, restam, além das três de
haver vergonha não excluídas, cinco outras. Passo ao seu exame:
Há duas ocorrências com haver a bênçam:

(5) Hájas tu a bênçam de Deos e a minha (DLNL 393,9).


(6) Hájas tu a sua bênçam e a minha (DVV 414,4).

Haver a bênçam, que não varia no corpus com ter a bênçam, parece
ter caráter de uma expressão idiomática arcaizante e ocorreu, nos dois
casos, em situação em que o pai (João de Barros), abençoa o filho (Antô-
nio), com quem está dialogando. Por sugerirem uma fossilização idiomáti-
ca, poderiam ser excluídas também das ocorrências conservadoras.
As três restantes de PAI são:

(7) E estas meas vogaes l, m, r, se chamam líquidas e houveram este


nome açerca dos latinos (GLP 371,7).
(8) Que os çegos a nam tenham, ainda que ouçam cousas de que se
possa haver (DVV 427, 1-2).
(9) Posto que eles ham esta regra por çerta (DVV 451, 21).
(10) Outra regra tem eles por çerta (DVV 452, 23).

O uso de ter regra ainda vai aparecer mais quatro vezes (GLP, DLNL,
DVV); ter cousas vai ocorrer duas vezes (GLP, DVV) e ter nome, quatro
vezes (GLP). Assim as ocorrências de ter seguido de regra, cousa, nome
são mais freqüentes com ter, já que só uma vez ocorre com o verbo conser-
vador.
Julgo então, depois dessas considerações, poder admitir que das 16
ocorrências conservadoras de haver no tipo PAI, dez poderiam ser excluí-
das pelas razões apresentadas e as seis restantes seriam resíduos do uso
antigo, já que em todos os casos – haver vergonha (03 oc.), haver nome
(01), haver cousa (01), haver regra (01) também está documentado o uso
inovador com ter.

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Diante dessas interpretações, os dados apresentados na Tabela 1 pas-
sam aos da Tabela 1a.

Séculos XIII XIV 1500 1540


contextos
PAM haver 70% 20% 11% ∅
ter 30% 80% 89% 100%
PAI haver 85% 80% 45% 2%
ter 15% 20% 55% 98%
Tabela 1a

Diante da avaliação qualitativa dos usos conservadores de haver nes-


sa documentação de 1540, pode-se admitir que as seis ocorrências de ha-
ver, em que varia com ter com os mesmos itens lexicais como seu
complemento direto, seriam os resíduos arcaizantes no uso de haver, ver-
bo de posse, na obra pedagógica de João de Barros. Poder-se-ia assim afir-
mar, pelo menos, que, nesse registro alto da língua portuguesa de 1540, o
verbo ter como verbo de posse teria já substituído o verbo haver, caracte-
rístico do período arcaico.

2.2 Ter / haver nos ‘tempos per maneira de rodeo’: usos e teoria
em João de Barros
Sobre a «questão do tempo composto», «tempos per maneira de rodeo»
para João de Barros, no período arcaico, a investigação sobre dados na
documentação remanescente tem feito recuar essa estrutura já para o sé-
culo XIII (Mattos e Silva 1997). Autores mais antigos, como Epiphânio
Dias (1959: 250 e 326), Said Ali (1964: 160), consideram que o «tempo
composto» do período arcaico era formado de ser mais particípio passa-
do (PP) de verbos não-transitivos e que o «tempo composto» formado de
ter mais PP só virá a ocorrer no português moderno, quando deixa de
haver a concordância do PP [adjetivo] de verbos transitivos com o seu com-
plemento direto (CD). Também tem essa opinião Mattoso Câmara Jr. (1975:
166).
Em documentação que analisei do século XV já encontrei variação
nessa concordância (1981) e Naro e Lemle, em artigo de 1977, mostram a
difusão de ter/haver mais PP de verbos não-transitivos no século XV e
propõem que se pode recuar a data de existência do «tempo composto»
com ter/haver gramaticalizado como auxiliar para o século XIV.

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

O estudo feito
em diversificada
documentação do
século XIII – Testa-
mento de Afonso II,
Cantigas de Santa
Maria, Cancionei-
ro da Ajuda e Foro
Real (1997) – per-
mite afirmar que já
no século XIII ocor-
Fragmento do fólio 25r da Grammatica de João de Barros re, com freqüência
muito baixa, contu-
do – voltarei a isso
na parte final deste item – o tempo composto com haver/ter com particí-
pio de qualquer tipo de verbo e, quando transitivo o PP, já ocorre a varia-
ção na concordância.
Haveria assim, na gramática do português ducentista, o tempo com-
posto com haver/ter, gramaticalizados como verbo auxiliar, embora o uso
de ser mais PP de verbos não-transitivos e a concordância do PP [adjeti-
vos] de verbos transitivos com seu CD perdurem ao longo do período arcai-
co até, pelo menos, como veremos, nos meados do século XVI, finais desse
período.
Nos dados analisados dos meados do século XVI, tendo como objeto
de observação as seguintes obras de João de Barros – a Obra pedagógica –
Gramática da língua portuguesa (GLP), Ortografia (ORT), Diálogo em
louvor da nossa linguagem (DLNL), Diálogo da viçiosa vergonha (DVV),
4.266 linhas impressas e a já referida amostra de 2.133 linhas da Primeira
Década da Ásia – encontrou-se o que segue.
Na GLP, João de Barros teoriza sobre o tempo composto, na sua
metalinguagem «tempo per rodeo» referentes ao passado. Explicita que é
composto com o verbo ter; o verbo haver, para ele, formará o “tempo per
rodeo vindoiro”, ou seja, o futuro (haver de amar, p. ex.). Especifica quais
os tempos “per rodeo” referentes ao passado (Buescu, 1971: 339-440):

tivera amado, lido, ouvido, sido: tempo passado e mais acabado do


modo para desejar [=optativo];
ter amado, lido, ouvido, sido: modo infinitivo não acabado;
tinha amado, lido, ouvido, sido: tempo passado mais que acaba-
do do modo para demonstrar;
teria amado, lido, ouvido, sido: tempo passado nam acabado do
modo para ajuntar (=subjuntivo
ou “ajuntador”).

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Não menciona outros tempos “per rodeo” do passado, nem as estru-
turas do tipo “ser seguido de particípio passado”, nem a concordância do
particípio passado de verbos transitivos com o complemento direto, quan-
do permissível pelo contexto.
O exame do uso que fez João de Barros dos tempos do passado “per
rodeo”, ou seja, de seqüências de ser ou haver/ter seguidas de particípio
passado (PP), consideradas as 6.339 linhas de textos escritos por ele aci-
ma indicados, permite as seguintes observações:
Há uma coerência notável na escrita de João de Barros no que se
refere à seleção de ter e nunca de haver nos tempos “per rodeo” do passa-
do. Nesse aspecto segue o preceito de sua Gramática e não prossegue no
uso variável de haver ou ter, como na documentação arcaica que analisei,
variação que prossegue até hoje, como sabemos.
Quanto à seleção de ser, seguido de particípio passado, que não men-
ciona na sua Gramática, mas que era corrente por todo o período arcaico
com verbos [-transitivo], tanto ergativos como intransitivos, encontrei na
Primeira Década 05 ocorrências de ser nessas estruturas, tal como na
documentação já analisada do período arcaico:

(1) a isso era aly uiindo 26.34


(2) sendo já passados oyto dias 31.16
(3) outros já eram idos 34.24
(4) eram já passados sete meses 36.23
(5) e como o negocio a que eram idos 43.18

e 02 ocorrências de verbos [-transitivo] seguidos de particípio com o auxi-


liar ter:

(6) e tendo andado um bom pedaço 26.28


(7) e tendo passado a ponta de Sanctana 53.36

Portanto, 05 ocorrências arcaizantes e 02 inovadoras. Note-se que


esse tipo de “tempo composto” não ocorre na obra pedagógica (GLP, ORT,
DLNL e DVV).
Centrar-me-ei agora no exame dos dados de ter seguido de particípio
passado de verbos transitivos. Embora teorize sobre os “tempos per rodeo”
do passado com o verbo ter, esse tipo de estrutura não foi utilizada pelo
autor nem na Gramática nem na Ortografia. No DLNL e no DVV há 07
ocorrências de ter seguido de PP; 04 no DLNL e 03 no DVV, todas elas com
PP de verbo transitivo.
Dessas ocorrências, 03 seguem o padrão atual, por condicionamento
contextual, ou seja, não há possibilidade de concordância do PP com o
complemento direto (CD):

(8) nem por eu ter dirigido a su’alteza o trabalho (DLNL 390, 12)

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

(9) Como ô tem feito em os estudos de Coimbra (DLNL 409, 23)


(10) a que tinha prometido dar (DVV 459, 3)

Duas ocorrências são arcaizantes, já que apresentam a concordância


no particípio passado:

(11) a nossa linguagem que temos pósta em arte (DLNL 391, 4)


(12) a qual obra será pósta no catalogo das mercês que estes reinos
dele tem recebidas (DLNL 410, 1-2)

Uma ocorrência de acordo com o padrão moderno:

(13) os quaes já das escolas tendes ouuido ditos e sentenças (DVV


414, 21)

E uma ocorrência que considero ambígüa:

(14) soma de dinheiro que lhe tinha tomado a logro (DVV 458, 5)

porque tomado pode referir-se ao núcleo do SN (soma) ou ao adjunto do


núcleo (de dinheiro).
Pode-se assim concluir que nos dois Diálogos, parte da obra pedagó-
gica de João de Barros, ainda ocorrem duas vezes as estruturas do tipo
arcaizante.
No exame da amostra de 2.133 linhas da Primeira Década da Ásia,
encontrei 45 ocorrências de ter, nunca haver – coerentemente com sua
teoria – seguido de PP de verbos transitivos.
Quatro ocorrências são do tipo arcaizante:

(15) foy alimpar a casa desta infiel gente dos Arabeos que lha tinhã
ocupada 9.6
(16) restituindo à Ygreja Romana a juridiçã que naquellas partes
tinha perdida 9.20
(17) fico sem aquella superioridade que o senhor infante me tinha
dada 43.35
(18) E de my lhe sey dizer, nam por parte da honrra, porque a deos
mercês có nossa ajuda, eu a tenho guardada nesta terra pera po-
der ir contente pera o reyno 43, 34-35

Vale destacar que em (17) e (18) João de Barros repete a fala do Capi-
tão Lançarote, no tempo do Infante D. Henrique, cerca de um século antes
da data em que escreve a Primeira Década – 1552 – e em (15) e (16)
reproduz escritos históricos de remoto passado, ou seja, o tempo dos pri-
meiros reis de Portugal, no período da Reconquista do território aos ára-
bes. Sabe-se que João de Barros consultou fontes históricas numerosas

Português 500.p65 132 22/7/2005, 14:55


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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
para compor suas Décadas, talvez essas ocorrências sejam efeito da docu-
mentação arcaica utilizada. Nas outras 41 ocorrências da estrutura em foco
não ocorre a concordância do particípio passado. Em 24 delas porque o
contexto não permitiria a concordância, ou por ser o CD masculino singu-
lar, ou neutro (quanto, p. ex.) ou vazio (Ø). Por exemplo:

(19) recebe o mayor prazer que té quelle t$!po tinha visto 16.5
(20) ...que quanto outros tem recebido 4.25
(21) achando que el rey uosso padre tinha escripto (Ø) a dom
Francisco Dalmeyda 4.7

Nas outras 17 ocorrências o contexto permitiria a concordância, mas


ela não ocorre. Por exemplo:

(22) a quem tinha encomendado a escriptura destas partes 4.13


(23) que tinha feito grandes despesas 29.16
(24) que deus os tinha liurado 6.28
(25) em satisfaçã dos trabalhos e despesas que o infante dõ Anrique
tinha feito neste descobrimento 30.13

Os dados analisados permitem concluir o seguinte sobre o uso do


“tempo composto” nos meados do século XVI, à volta de 1540, quando
João de Barros publica a sua obra pedagógica e inicia a escrita de suas
volumosas Décadas da Ásia, a primeira publicada em 1552:

a.tal como na documentação analisada sobre esse tema em textos do sécu-


lo XIII ao fim do XV (1981, 1989, 1996, 1997), o “tempo composto” ou
o seu antecessor não gramaticalizado é de freqüência baixa de uso;
b.apesar de não teorizar sobre ser seguido de PP de verbos não transitivos,
quando trata dos tempos “per rodeo” na sua Gramática, João de Barros
usa a estrutura arcaica com o verbo ser 05 vezes na Primeira Década (cf.
(1) a (5)) e, nela também, por duas vezes, usa a estrutura inovadora com
o verbo ter (cf. (6) e (7));
c.com particípio passado de verbo transitivo, João de Barros apresenta ain-
da resíduos do uso arcaizante. Em 07 ocorrências nos dois Diálogos e
em 45 das Décadas, portanto 52 ocorrências, 06 são do tipo arcaico – 02
no DLNL (cf. (11) e (12)) e 04 nas Décadas (cf. (13) a (18)). As ocorrênci-
as das Décadas permitem admitir ter havido reflexo de fontes documen-
tais arcaicas no texto de João de Barros. Se essa hipótese for correta, só
serão apenas 02 as ocorrências arcaizantes do tipo particípio passado
flexionado de verbo transitivo no uso de João de Barros;
d.considerando o dito em b e c, pode-se afirmar que João de Barros se
apresenta mais arcaizante quando usa ser com PP de verbo [- transitivo]
(05 vezes arcaizante contra duas ocorrências inovadoras, portanto 77%
de estruturas próprias ao período arcaico e 23% inovadoras), do que

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

quando usa ter com PP de verbo [+ transitivo] com concordância (de 52


apenas 06 são do tipo arcaizante, ou seja, 11% com concordância do PP
e 89% sem concordância, ressalvando-se que 04 das 06 podem ser refle-
xo de fontes antigas);
e.Se 04 das 06 ocorrências de ter + PP com concordância são reflexo de
fontes arcaicas utilizadas por João de Barros, reduz-se a 3% a estrutura
arcaica, podendo-se considerar essas ocorrências resíduos arcaizantes
na amostra analisada da obra de João de Barros;
f. diferentemente do que ocorre na documentação do período arcaico já
analisada, João de Barros obedece ao seu preceito quanto à seleção de
ter, que não ocorre em variação com haver, para os tempos “per rodeo”
do passado;
g.do analisado se pode concluir que a estrutura de ser mais PP de verbo [-
transitivo] perdura por mais tempo do que a de haver/ter mais PP de
verbo [+ transitivo] com concordância. Assim sendo, a gramaticalização
de haver/ter como formador de tempo composto de qualquer tipo de
verbo ultrapassa, no uso, os limites últimos do período arcaico, embora
já exista sua possibilidade na gramática do português – portanto, a pos-
sibilidade de sua seleção no uso – pelo menos desde o século XIII, mo-
mento em que o português começa a ser documentado pela escrita, como
os dados que analisei no corpus ducentista demonstraram (1997): nessa
documentação do século XIII, de 56 ocorrências de haver/ter, predomi-
nando haver (52 oc.) mais PP de verbo [+ transitivo], há 03 sem concor-
dância do PP (7.1%); em 57 ocorrências de ser mais PP de verbo [- tran-
sitivo] há 01 ocorrência com haver (0.2%). Em meados do século XVI, de
7.1% passa-se para 89% ou 97% (cf. d e e), no primeiro caso, e de 0.2%
para 23% no segundo (cf. d).
A Tabela 2 sintetiza as conclusões acima arroladas:

estruturas focalizadas século XIII meados do século XVI


ter/haver + PP [+ trans.] 7.1% 89% ou 97%
sem concordância

ter/haver + PP [- trans.] 0.2% 23%


Tabela 2

Diante dos dados analisados, pode-se afirmar que ter é o «verbo vito-
rioso» para a expressão dos “tempos per rodeo” referentes ao passado, já
que João de Barros na sua Gramática “preceitiva” seleciona ter para essas
estruturas e haver para os “tempos per rodeo vindoiro”.
No seu uso, é coerente sempre, pelo menos na amostra extensa ob-
servada: não varia o ter com o haver. Apresenta, contudo, estruturas não
gramaticalizadas com verbos transitivos no particípio passado, já que a
concordância ainda ocorre com a baixa freqüência depreensível da Tabela 2
e ainda usa o verbo ser com o particípio passado de não-transitivos. Sobre
esses dois últimos fatos, o gramático prescritivista não se manifesta. Não

Português 500.p65 134 22/7/2005, 14:55


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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
havia, portanto, ainda se generalizado o uso de ter/haver com verbos não-
transitivos e o tempo composto gramaticalizado com particípio passado
ainda tem como concorrente, embora com baixa freqüência, a seqüência
não-gramaticalizada, em que o particípio passado concorda com o seu com-
plemento.

2.3 O despontar do verbo ter, verbo existencial, em João de Barros


Mostrarei a seguir o que nos diz o mesmo corpus, reforçado por uma
amostra complementar da Segunda Década da Ásia (2.133 linhas tam-
bém), sobre o verbo que preenche as estruturas semanticamente “existen-
ciais”, que “entram na classe fechada de ‘verbos funcionais’, não
predicadores, mas operadores funcionais em que a predicação se estabele-
ce entre os elementos da ‘coda’ das orações existenciais” (cf. Franchi, Negrão
e Viotti, 1998: 110). João de Barros não teoriza na sua Gramática sobre os
verbos existenciais; ao tratar “dos vérbos impessoáes”, não inclui haver
(Buescu, 1971: 327).
Um breve percurso sobre a seleção do verbo “existencial” no período
arcaico do português mostra que concorriam nesse contexto os verbos ser
e haver. Ser, existencial, continua o uso latino do verbo esse. Contudo, já
no chamado “latim vulgar” (#)!"&!, verbo de posse no latim padrão, está
documentado nos séculos IV e V como existencial, segundo Grandgent, na
sua Introdução ao latim vulgar (1952: 27-28).
No extenso corpus por mim pesquisado do século XIII (1997) e já
referido, encontrei a predominância de ser como verbo “existencial” (ser
56% e haver 44%), notando-se que a seleção de ser se verificou preferenci-
almente em documentos notariais (no Testamento de Afonso II, na docu-
mentação notarial editada por Clarinda Maia, no Foro Real de Afonso X) e
a de haver, predominando nas Cantigas de Santa Maria, documento lite-
rário, portanto. Embora não tenha feito uma quantificação dos verbos exis-
tenciais no estudo dos Diálogos de São Gregório (1989, 513-517 e
524-525), texto religioso do século XIV, anterior a 1380, ficou evidente a
predominância de haver e raro o uso de ser existencial. Ao findar o século
XV, na Carta de Caminha (1996: 182-193), encontrei apenas haver como
“existencial” e uma ocorrência, em que já o verbo ter pode ser interpreta-
do como existencial. Adiante voltarei a esse dado.
A questão em que me centrarei daqui por diante é verificar a emergên-
cia de ter “existencial” em João de Barros, uso generalizado hoje pelo me-
nos no português brasileiro vernáculo, mas ainda censurado por gramáticos
prescritivistas.
Na clássica Syntaxe histórica portuguesa de Epiphânio Dias (1959),
ao tratar do que designa de orações impessoais, afirma que “haver acom-
panhado de objeto direto, significa no seu conjunto a existência de uma
pessoa ou coisa” (p. 17) e não menciona a possibilidade do verbo ter no
passado do português nesse tipo de contexto. Said Ali, no seu estudo so-

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136
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

bre haver e ter, parte da sua obra Dificuldades da língua portuguesa,


afirma que:
na genuína oração existencial não há lugar para possuir nem ainda para ter.
Em todos os documentos de português literário, antigo ou moderno, debalde
buscaremos entre a imensa multidão de orações do tipo há homens bons e
maus neste mundo provas da possibilidade de se substituir há por qualquer
dos supostos equivalentes (1957: 118).

Na sua Gramática histórica da língua portuguesa (1964), afirma tam-


bém que “haver, fazendo as vezes de existir, usa-se no singular ainda quando
se refira à existência de muitos seres expressos por substantivo plural” (p.
305); mais adiante, contudo, destaca que “em escritores notáveis do sécu-
lo XIX tem-se apontado vários exemplos de orações existenciais com hou-
veram, houvessem etc no plural”. E continua: “mas a novidade vem de
mais longe. De Matias Aires de 1752, século XVIII”. Os dados pesquisados,
a que a seguir me referirei, permitem recuar a “novidade” para o século
XVI.
Nos dados de João de Barros, em textos escritos nos anos quarenta e
cinqüenta do século XVI, encontrei evidências, embora raras, tanto do ter
“existencial”, não mencionado pelos clássicos estudos de sintaxe histórica
antes referidos, como do haver existencial com concordância, encontrado
como “novidade” por Said Ali no século XVIII.
Esses dois aspectos da história dos verbos existenciais no português já
tinham aflorado nos dados de 1500 da Carta de Caminha: nesse documen-
to ocorrem 24 contextos de haver como verbo existencial, em geral seguido
do locativo próprio a todo o período arcaico, nas grafias <hi, y, i>.
Há, contudo, uma seqüência em que ter pode ser interpretado como
existencial:

(1) ... se metiam en almadias duas ou tres que hy tinham (CPVC,


fol. 5, 31-32).

A interpretação “existencial” teria o sujeito Ø e a interpretação como


“verbo de posse”, com o sujeito marcado na flexão. A questão da concor-
dância marcada na forma plural do verbo favorece a interpretação possessi-
va, contudo a Carta também nos fornece outro dado sugestivo que é o de
haver, existencial, flexionado:

(2) nõ duvido que per esse sertãão ajam muitas aves (CPVC, fol.
10-11).

Esse haver flexionado não pode ser interpretado como verbo de pos-
se, já que esse tipo de verbo exige dois argumentos nominais. Em outras
seqüências da Carta, com SN seguinte no plural, o haver existencial vai
estar sempre no singular (cf. fólios 7v, 3-4; 9, 8-9; 10, 1-2; 11, 14).

Português 500.p65 136 22/7/2005, 14:55


137

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
No exame da obra pedagógica de João de Barros e na amostra analisa-
da das Décadas, encontrei evidências, embora raras, da possibilidade já de
variação entre haver/ter como verbo «existencial» e também da concordân-
cia de haver com o SN que o segue no plural.
Os dados gerais encontrados no conjunto da obra pedagógica e na
Primeira Década, quanto à seleção do verbo «existencial» por João de
Barros são os da Tabela 3:
GLP ORT DLNL DVV Déc. I Total
ser 01 0 0 0 05 06
haver 10 02 08 25 34 79
ter 01 01 0 0 02 04
total 12 03 08 25 41 89
Tabela 3

Nas 89 ocorrências de contextos “existenciais” predomina, tal como


no período arcaico, o verbo haver, verbo “existencial” preferencial; o
etimológico, provindo do latim padrão, ser, ainda ocorre com baixa fre-
qüência de uso, seis vezes. O inovador ter aponta em quatro ocorrências
que interpretei como “existencial”.
A ocorrência na GLP está numa seqüência (cf. ex. (3)) em que o
gramático João de Barros teoriza sobre o verbo haver, funcionando como o
que hoje se denomina de verbo suporte:

os verbos suporte são verbos de significado bastante esvaziados


que formam com o seu complemento (objeto direto) um significa-
do global, geralmente correspondente ao que tem um outro verbo
da língua (Neves, 2000: 53).

A esse tipo de uso de haver vai o gramático chamar de ‘verbo neutro’


(Buescu, 1971: 328).

(3) Temos mais este verbo [h]ei, [h]ás que é de genero diverso pelo
oficio que tem. Quando se ajunta com nome soprimos muitos ver-
bos da língua latina que a nossa não tem: [h]ei vergonha, [h]ei
medo, [h]ei frio e outros muitos significados que tem quando ô
ajuntamos a nomes substantivos desta calidade. (GLP 327, 9 – 328,2).

O tem em destaque pode ser interpretado como equivalente a ha


“verbo existencial”, mas pode também ser interpretado como verbo de
posse. Parece, portanto, ser ambígua essa ocorrência.
A ocorrência, na Ortografia, finaliza uma seqüência de características
que apresenta o ortógrafo João de Barros sobre a letra <n>:

(4) Ésta lêtera N àçerca de nós sérve no prinçipio e fim da sílaba e


nunca em fim de diçam... E muitas vezes o til ô escusa do seu traba-
lho quando é final de sílaba, como fáz ao m. Tem máis, que às vezes

Português 500.p65 137 22/7/2005, 14:55


138
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

se quer dobrado em alg"!as dições que reçebemos dos latinos, como


anno.

Esse tem equivale a há/existe.


As duas ocorrências na Primeira Década estão em narrativas descriti-
vas de fatos históricos sobre que escreve João de Barros nesse texto:

(5) Porque partido Antã Gõçalve teue no caminho h"!u temporal tã


grande, que dizia Baltasar que já vira o %! desejaria, mas não sabia se
o poderia contar. (Déc. I, 31, 5).

O teue equivale a houve ou ocorreu.

(6) Concertou-se com o infante dom Anrique sobre o que nellas


[nas ilhas] tinha, e elle passouse a ilha de Madeira onde assentou
sua uiuienda (Déc. I, 46-38).

O exemplo (6) pode ser ambíguo; poderá ser interpretado como ver-
bo de posse; estava apagado o sujeito que seria referente a dom Anrique.
Com esses indícios, estendi mais o corpus e examinei uma amostra,
de extensão correspondente à da Década Primeira, na Década Segunda,
levantando apenas as ocorrências que avalio como “inovadoras”, no caso,
as “existenciais” com o verbo ter, por essa razão não apresentei os dados
na Tabela 3 que inclui as “existenciais” com ser e haver.
Encontrei mais uma ocorrência de ter existencial (cf. (7)) e outra (cf.
(8)) em que haver «existencial» concorda com o SN plural que o segue:

(7) O qual rey senhoreária da ilha de Ger"! ate a de Baharem, tendo


per vezinho hum rey per nome Gordunxá, cujo estado era na terra
da Pérsea de fronte desta ilha Gerum em hua comarca per nome
Mogotá %! quer dizer polmar em língua Persea rustica, e em Perseo
antigo Ormuz: onde tinha h"!a cidade deste nome que nos tempos
passados foy tã celebre que Ptolomeu... (Déc. II, 48, 36-49, 1).
(8) Cá neste tempo éra em Lisboa tã grãde peste %! ouuerã muytos
dias de c$!to e vinte pesóas [morrerem]... no proprio nauio de Tristã
da Cunha primeiro que partissem morrerã seys ou sete (Déc. II, 4,
5).

Com os dados da amostra da Década Segunda, foram encontradas,


portanto, cinco ocorrências de ter existencial nos finais do período arcai-
co, duas delas talvez ambíguas, e uma de haver existencial concordando
com o SN subseqüente, a “novidade” do século XVIII, segundo Said Ali,
como referido antes, que já ocorre em 1500, na Carta de Caminha (cf. ex.
(2) acima). Usos tão comuns hoje no português brasileiro falado, pelo
menos. A concordância com o SN plural subseqüente é considerada «corre-
ta» com o verbo existir, equivalente semântico de ter e haver “existen-

Português 500.p65 138 22/7/2005, 14:55


139

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
ciais”, item verbal que só entrará no léxico do português no século XVIII,
segundo os dicionários histórico-etimológicos de J. P. Machado (1990, s.
v.) e de A. G. Cunha (1982, s. v.). De fato, no exame que já fiz em alguns
glossários exaustivos de textos do período arcaico (o do Foro Real, séc.
XIII; o dos Diálogos de São Gregório, séc. XIV; o da Versão galega da
Cronica geral de Espanha, séc. XIV; o da Cronica do Pedro, de Fernão
Lopes, séc. XV, 1ª. metade) não encontrei documentado esse item verbal
nesse período histórico do português.
Despontam assim alguns indícios em João de Barros do uso, nos me-
ados do século XVI, do ter como verbo existencial.

3 A modo de conclusão
Para concluir, quero assinalar o percurso diacrônico do processo de
gramaticalização dos verbos haver e ter no período arcaico do português
até a sua provável fase final. Ambos são no latim “verbos plenos”. Segundo
Gaffiot (1934, s. v. (#)!"&!), a acepção principal de (#)!"&! é “ter posse em”
e, subseqüentemente, ocorre em usos figurados como “ter na mão”, “ob-
ter”. T!*!"&! depois %!*!"&! (id, s.v. %!*!"&!) tem como acepção básica “ter
algo na mão”, “obter”, sendo acepções secundárias “manter”, “reter”.
Grandgent (1952) informa que no “latim vulgar” (#)!"&! já ocorre com
acepção genérica de verbo existencial, verbo funcional, portanto, o mesmo
não sendo atestado para %!*!"&!.
Quando o português aparece documentado pela escrita no século XIII,
é haver o verbo lexical ou pleno generalizado para qualquer tipo de posse
(de objetos materiais adquiríveis à posse inerente); ao longo desse perío-
do ter vai se expandindo para os diversos tipos de posse: primeiro a posse
de objetos materiais e por fim a posse inerente (Mattos e Silva, 1997 e
1999) e exclui haver nesses contextos de posse pelos meados do século
XVI (cf. item 2.1); em alguns casos pode ser interpretado como verbo su-
porte (p. ex.: haver medo > ter medo; haver vergonha > ter vergonha); o
verbo haver, que não era auxiliar no latim, será o mais selecionado para a
formação dos “tempos compostos”, que são inovações românicas, e será
superado por ter, pelo menos na teoria e no uso de João de Barros (cf. item
2.2); como “existencial”, haver, dominante no período arcaico, supera o
etimológico ser, e, já no século XVI, ter “existencial” entra na cena da
língua portuguesa, como verbo funcional existencial, concorrendo com haver
e, excepcionalmente, com ser.
Assim, esses verbos, em momentos diferentes, mas paralelos, pelo me-
nos do que se pôde depreender da documentação examinada, seguem per-
cursos análogos, com evidente recesso histórico de haver e sucesso de ter:

a. verbos plenos, em variação na posse de objetos materiais, desde o


século XIII (p. ex.: eu havia uma morada / eu tinha uma morada);
b. verbos suportes, em variação pelo menos desde o século XV (p. ex:

Português 500.p65 139 22/7/2005, 14:55


140
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

haver vergonha / ter vergonha). Em desuso o verbo haver em a e b em


João de Barros;

c. verbos auxiliares, formadores de tempos compostos, em variação des-


de o século XIII, com baixíssima freqüência de ter. Vitorioso este em
meados do século XVI, pelo menos na teoria e no uso de João de Barros,
mas ainda em variação com haver predominando, provavelmente, no
português brasileiro pelo menos o verbo ter;

d. verbos funcionais, existenciais, haver dominante, em variação com o


etimológico ser, por todo o período arcaico, mas ter, abrindo o seu espa-
ço no século XVI, predominando hoje, pelo menos, no português verná-
culo brasileiro.

Afinal os usos reais das línguas não são tão “lineares”, “unidirecionais”
(verbo pleno>verbo suporte>verbo funcional>verbo auxiliar) (cf. Castilho,
1997: 35); nem tão “categóricos” (se ocorre ter como verbo pleno de pos-
se, ocorrerá como existencial e auxiliar) (cf. Ribeiro, 1993: 352), como
postulam, generalizando, algumas teorias lingüísticas.
E termino, como comecei, com Fernão de Oliveira: “...os homens fa-
zem a língua...” (Gramática, cap. IV, ls. 27 e 28).

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Português 500.p65 142 22/7/2005, 14:55


A variação ser/estar e haver/ter nas
Cartas de D. João III entre 1540 e 1553:
comparação com os usos coetâneos de João
de Barros

Rosa Virgínia Mattos e Silva

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145

1 Explicações preliminares

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
T
enho como objetivo neste texto analisar os usos de ser/estar em estru-
turas atributivas, expressão de “propriedades temporalmente limita-
das de individual” (Mateus et alii 1983: 138), ou seja, atributos se-
manticamente transitórios e os usos de haver / ter, como verbo de posse, em
estruturas de tempo composto e como verbo existencial, em uma amostra
das Cartas de D. João III (Ford 1931), em comparação com o que já pesquisei
e escrevi sobre esses verbos na Obra Pedagógica de João de Barros (Buescu
1971) e em amostra da Primeira e Segunda Décadas da Ásia do mesmo
autor (Baião 1988) nos textos A definição da oposição ‘ser’ / ‘estar’ em
estruturas atributivas nos meados do século XVI e Vitórias de ‘ter’ sobre
‘haver’ nos meados do século XVI: usos e teoria em João de Barros (neste
livro).
A intenção deste trabalho é, portanto, verificar se o encontrado em João
de Barros nas obras referidas se confirma, ou não, em documentação de
outra natureza textual – não-literária, oficial – coetânea aos escritos do eru-
dito escritor dos meados do século XVI.
Em 1931, J. D. M. Ford editou pela Universidade de Harvard 372 docu-
mentos de D. João III, rei de Portugal de 1521 a 1557. João de Barros, por sua
vez, desde muito jovem, sendo bastardo e órfão, foi acolhido nos Paços da
Ribeira e, na corte de D. João III, exerceu várias funções oficiais: iniciando,
muito cedo, como moço do Guarda-roupa do futuro rei D. João III, já em 1525
era Tesoureiro da Casa da Índia, Mina e Ceuta e, em 1553, Feitor da Casa da
Índia, cargo que exerceu durante 35 anos. Em 1535 o rei lhe concedeu a Capi-
tania do Maranhão, que não chegou a dirigir pelo conhecido episódio do nau-
frágio da expedição colonizadora que enviou ao Brasil e que o deixou em
dívidas pelo resto da vida. Morre em 1570 ou 1571 (Buescu 1984).
Por essas informações biográficas, vê-se que João de Barros viveu no
tempo de D. João III e conviveu desde cedo no interior da sua corte como
alto funcionário do reino. Assim se justifica a comparação da escrita literária

Português 500.p65 145 22/7/2005, 14:55


146
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

de João de Barros com a não-literária das cartas oficiais do rei. Na maioria


são elas dirigidas a Dom Antônio de Ataíde, Vedor da Fazenda, com exce-
ção de seis – uma para Afonso de Albuquerque; uma para o Papa Clemente
VIII; três para Tomé de Souza e uma para Lopo de Souza. Há ainda cinco
ordens especiais e dois alvarás, também editados (Ford 1931: XI – XII). A
edição utilizada recobre um total de 372 documentos, datados de 1523 a
1557. A grande maioria é da década de trinta do século XVI (documentos
de nº. 6 até o de nº. 322).
Desse conjunto de 372 documentos, recortei quarenta e sete cartas,
que perfazem 1003 linhas impressas (documentos: nº. 323 a 369), escritas
entre 1541 e 1551, sessenta e seis cartas, no lapso de tempo que se ajusta,
por sua coetaneidade, à Obra Pedagógica de João de Barros (impressa em
1540, exceto a Cartinha/Cartilha, que é de 1539) e à Primeira e à Segunda
Décadas da Ásia, impressas em 1552 e 1553, respectivamente. Desse modo
tem-se para comparação textos de natureza diferente, escritos no mesmo
tempo histórico e no âmbito da corte de D. João III. Quero deixar logo claro
que esta é uma com-
paração aproximativa,
já que analisei 4.266
linhas impressas da
Obra Pedagógica de
João de Barros; 2.133
linhas, em cada Déca-
da e 1003, nas Cartas
de Dom João III.
As Cartas do
rei, vale deixar claro,
são todas assinadas
por ele, mas quem as
escreveu é um conjun-
to de, provavelmente,
funcionários a seu ser-
viço. Com exceção de
duas (Documentos
371 e 372), autó-
grafas de D. João III,
que perfazem apenas
trinta e três linhas im-
pressas, sem data, de
que tratarei no item
4, como curiosidade
histórico-lingüística.
Quase todos os docu-
Fac-símile de carta autógrafa de D. João III (cf. Ford, 1931)
mentos acabam, de

Português 500.p65 146 22/7/2005, 14:55


147

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
maneira formular, indicando quem o “fez”, o local e a data, como, por
exemplo, na Carta 323: “Fernam d’Alvarez a fez, em Almeyr1!, aos XXX
dias de Janeiro de 1541” (Ford 1931: 358).
Considerando as quarenta e sete cartas analisadas, foram, no total,
oito escrivães que as redigiram, além dessas, oito cartas estão sem escrivão
explícito (v. Q 1) e o rei assina no final. Indicarei o nome desses escrivães,
porque, com essa diversidade de mãos, não havendo ainda uma norma
estabelecida e estabilizada para a escrita, o conjunto, por natureza, indica-
rá, inevitavelmente, idiossincrasias, sobretudo de natureza gráfica.

Escrivães nº. das


Cartas
André Soarez 11
Adrian Lucio 09
Fernan d’Alvarez 07
Antônio Ferraz 05
Pedro Amriquez 02
Antonio de Mello 02
Francisco Velho 02
Manuel da Costa 01
Sem escrivão explícito 08
Quadro 1: Escrivães de D. João III

Na análise a seguir (itens 2 e 3), busquei verificar:

a.se a oposição entre ser/estar, como verbo de “atributo permanente” e


verbo de “atributo transitório”, respectivamente, está já estabelecida (cf.
2), como verifiquei estar em João de Barros, conforme demonstrado no
estudo referido no início deste item;

b.se ter já é o verbo selecionado para as estruturas semanticamente de


posse, em detrimento de haver (cf. 3.1); se, nas estruturas de tempo
composto, ter é o auxiliar selecionado, como ocorre sistematicamente
em João de Barros, e se há ainda variação na concordância do particípio
passado de verbos [+ transitivo], como ocorre em João de Barros e
também se ser é ainda selecionado para o tempo composto de verbos [-
transitivos], como também ainda ocorre em João de Barros (cf. 3.2). Por
fim, se já ocorre o ter existencial, que aponta em João de Barros (cf. 3.3).
Esses usos de João de Barros estão analisados no estudo mencionado no
início deste texto.

No item 4, concentrar-me-ei nas duas cartas autógrafas do rei, para


verificar o que nos diz a escrita de D. João III, sem as intermediações dos
seus escrivães, sobre os tópicos aqui focalizados.

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148

2 Ser/estar em estruturas atributivas


O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Nas quarenta e sete Cartas analisadas há setenta ocorrências de ser e


24 de estar. Tal como no período arcaico ser é muito mais freqüente que
estar (cf. Mattos e Silva 1989, 1997) pelas razões expostas no estudo A
definição da oposição ‘ser’/‘estar’ em estruturas atributivas nos meados
do século XVI.
Das setenta ocorrências de ser, quarenta e sete estão em estruturas
atributivas semanticamente permanentes (AP), ou seja, a expressão de “pro-
priedades de individual” (Mateus et alii 1983: 138). Há dez ocorrências de
ser, à moda arcaica – não distinguirei aqui, como o fiz em outros trabalhos
(1989, 1997, 1999, 2000) os atributos descritivos dos locativos – expres-
sando “propriedades temporalmente limitadas de individual” (AT), portan-
to cinqüenta e sete ocorrências de ser em estruturas atributivas.

ESTRUTURA
VERBO AP AT
N % N %
SER 47 82 10 18
Tabela 1

Além se ser as atributivas a estrutura mais freqüente entre os usos do


verbo ser nas Cartas, o ser expressão do atributo transitório só ocorre em
18% dos casos, enquanto em atributo permanente, em 82%. Vale ressaltar
que o uso arcaizante em número de ocorrências é apenas de dez, em rela-
ção aos quarenta e sete, como expressão do não-transitório. Assim, o traço
semântico de transitoriedade expresso pelo verbo ser está em claro descenso.
As outras ocorrências de ser, para além das cinqüenta e sete atributivas,
se distribuíam em: equativas; de tempo composto de verbo de particípio
passado [– transitivo]; como verbo de posse, seguido de de – ser de – e
uma estrutura clivada.
O verbo estar, nas suas vinte e quatro ocorrências, expressa sempre
estruturas atributivas semanticamente transitórias. A tabela 2 mostra o
número de ocorrências e os percentuais de estar e de ser, expressando
atributo transitório:
ESTRUTURA
VERBO ATRIBUTIVA TRANSITÓRIA
N %
SER 10 29
ESTAR 24 71
TOTAL 34 100

Tabela 2

Sem dúvida, comparando os “resíduos arcaizantes” de ser transitório


no estudo referido no início deste item, as ocorrências dessa estrutura
arcaizante nos meados do século XVI é mais alta nessa documentação não-
literária que na escrita de João de Barros. No estudo referido, depois da

Português 500.p65 148 22/7/2005, 14:55


149

análise qualitativa, examinando questões de intertextualidade, citações,

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
falas reportadas etc, o que não ocorre nas Cartas, encontrou-se, por fim,
quatro ocorrências arcaizantes na Obra Pedagógica – nenhuma na “gramá-
tica preceitiva” de João de Barros e cinco, nas Décadas. Nas Cartas são dez
as ocorrências desse tipo, 29% em relação às 71% de estar. Infere-se des-
ses dados que as Cartas mostram um uso mais freqüente do ser arcaizante
que a escrita de João de Barros, mas que o ser, expressão da transitorieda-
de, está, sem dúvida, em descenso.
De posse desses dez usos arcaizantes nas quarenta e sete Cartas ana-
lisadas, busquei verificar se ocorriam nas mais recuadas – essas Cartas vão
de 1541 até 1551 – e, também, se se concentrariam em algum escrivão. As
respostas a essas buscas são as seguintes:

a.duas estão nas Cartas 326 e 328 de 1541; as outras oito estão em Car-
tas de 1550, 1551, 1552. Então a hipótese de serem as Cartas mais
antigas aquelas que apresentavam o uso de ser arcaizante não se confir-
mou.

b.três das ocorrências (Cartas 326 e 343, duas vezes) estão entre aquelas
oito Cartas que não têm escrivão explícito (cf. Q 1); as outras estão, o
que é interessante, nos escrivães que “fizeram” mais Cartas para o rei:
André Soarez, onze Cartas, uma ocorrência (Carta 348); Adrian Lucio,
nove Cartas, três ocorrências (Carta 350, duas vezes e Carta 368); Fernam
Alvarez, sete Cartas, uma ocorrência (Carta 328); Antonio Ferraz, cinco
Cartas, duas ocorrências (Cartas 356 e 357).

Adrian Lucio foi, portanto, o escrivão que mais vezes utilizou o uso
arcaizante, entre aqueles que “fizeram” mais cartas para o rei. No cômputo
geral, o mais interessante, é que se pode admitir que, quanto mais escre-
vessem, talvez mais ser, expressão da transitoriedade, seria mais usado.
Vale chamar atenção para um dado interessante, em relação à varia-
ção ser/estar, nessa estrutura focalizada, ainda em uso na escrita não-lite-
rária oficial, já de caráter residual, nos meados do século XVI, o que para
mim ficou claro no exame da escrita de João de Barros. Trata-se de, numa
mesma seqüência textual, o uso de estar e ser em duas Cartas “feitas” por
Antonio Ferraz, que escreveu, como visto, cinco das analisadas; são Cartas
do rei para o Conde de Castanheira, seu amigo e “Vedor-mor da Fazenda”
do reino:

(1) Muito vos encomendo que me escrevaes como aguora estaes e


vos achaes, por que de saber que he tam bem como vos desejaes
Receberey muito contentamento (Carta 356 de 1551).
(2) Muito vos encomendo que me escrevaes como ficastes depois
da sangria, e como estais aguora; e espero em Nosso Senhor que
seja bem tam bem como vos desejaes (Carta 367 de 1551).

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Ser, expressando a transitoriedade, ainda não morrera na pena de


Antonio Ferraz, mas estar, por sua vez, está ali presente. Talvez decorrente
de um recurso de estilo, o escrivão não repetiu o estar, que, como se vê,
ocorre em ambas as seqüências em primeiro lugar.

3 Haver/ter
Examinarei a seguir, nesta ordem – estruturas possessivas; estruturas
de tempo composto e estruturas existenciais – no conjunto selecionado
das quarenta e sete Cartas de D. João III, de 1514 a 1551, para verificar se
confirmam ou não os dados analisados em João de Barros e expostos no
estudo Vitórias de ‘ter’ sobre ‘haver’ nos meados do século XVI: usos e
teoria em João de Barros.
No total das ocorrências desses verbos, tem-se, na amostra das Car-
tas de D. João III, o que mostra a Tabela 3, cujos dados serão interpreta-
dos a seguir:
ESTRUTURA
VERBOS Possessivas Tempo Existencial Total
Composto
TER 24 23 01 (?) 48
HAVER 26 00 11 37
TOTAL 50 23 12 85

Tabela 3

3.1 Haver/ter: verbo de posse


Considerarei aqui haver/ter nas estruturas possessivas em geral, sem
distinguir, como o fiz em outros trabalhos (1989, 1995, 1997, 2000), a
natureza semântica do complemento do verbo, ou seja, o chamado obje-
to possuído – posse de propriedades inerentes; de propriedades
adquiríveis imateriais e de propriedades adquiríveis materiais – que per-
mitiu verificar que a difusão de ter sobre haver se iniciou nas últimas
para atingir por fim as primeiras, permitindo assim indicar a difusão da
mudança ou transição da mudança que substituiu haver por ter nessas
estruturas de posse.
Neste texto apenas quero confirmar ou não se, nessas Cartas, docu-
mentos não-literários oficiais, coetêneos à Obra Pedagógica e às duas pri-
meiras Décadas da Ásia do mesmo autor, os usos de haver nessa estrutura
já podem também ser um resíduo arcaizante, como busquei demonstrar
no estudo mencionado no início do item 3.
Sem dúvida, olhando a Tabela 3, surpreende, de saída, a superiorida-
de de ocorrências de haver sobre ter nas estruturas de posse, o que
desconfirmaria o encontrado nos escritos analisados de João de Barros.
Examinadas as vinte e seis ocorrências textuais em que ocorre haver
como verbo de posse, verificou-se que vinte e uma delas ocorrem em con-

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
textos claramente formulares, sedimentados pela tradição: quatorze delas
na expressão aver por bem (Cartas 329, 331, 333, 341, 349, 350, 355 (2
vezes), 360, 361 (três vezes), 365, 368); sete vezes em aver por meus
serviços (Cartas 323, 324, 334, 341, 246, 347 e 355), como nos exem-
plos:

(3) e lhe dires de minha parte que eu ey por bem que ele os tenha,
pera lhos dar quando em bõa ora ordenar (Carta 329 de 1541).
(4) Como tinha ordenado que fosse, ouve por b$! de $!carreguar de
capitãao do gualeão Sam Miguel (Carta 368 de 1551).
(5) por que assy averey por muito meu serviço (Carta 323 de 1541).
(6) Ey por meu serviço arrematarse o dito trato por alg"!us anos (Car-
ta 355 de 1552).

Escolhi, como se vê, exemplos nos limites temporais das Cartas – 1541
e 1551 – para mostrar que por esse tempo a expressão formular era normal-
mente utilizada e indiquei o número das Cartas, em que ocorrem tais ex-
pressões, para que se veja que se espraia, em geral, nos escrivães do rei.
Em uma outra Carta ocorre haver numa seqüência que analisei como
expressão fixa – sancta gloria aja, na Carta 335; expressão arcaizante que até
hoje se usa, por exemplo – que Deus o haja na santa glória, variando com
que Deus o tenha. A ocorrência na Carta 335 é a seguinte, em seu contexto:

(7) Devemos de lembrar o que me dizieis pera me dever de cõsolar


do falecim$!to da princesa, minha filha, que santa gloria aja (Carta
335 de 1548).

Explicáveis assim vinte e duas ocorrências das vinte e seis ocorrências


arcaizantes de haver, como verbo de posse, restaram, de fato, quatro ocor-
rências residuais de haver, à moda antiga. São elas:

(8) trabalhey por se aver a nau Capitanya (Carta 325 de 1541).


(9) e aja sua morada e soldo (Carta 327 de 1541).
(10) de maneira que não possa aver detença nem dillaçam (Carta
330 de 1541).
(11) nom levaram provisões minhas, e que nom sabeis se am d’aver
ordenado nesta viagem (Carta 331 de 1541).

Note-se que as quatro ocorrências arcaizantes, eliminadas as expres-


sões formulares e fixas, estão todas em Cartas de 1541, ano mais recuado
entre as Cartas analisadas.
A partir dessa avaliação qualitativa dos dados, tem-se, portanto, ape-
nas quatro ocorrências de haver para as vinte e quatro de ter, o que, em
número de ocorrências e percentuais, mostra a Tabela 4:

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

VERBOS estrutura possessiva


N %
TER 24 86
HAVER 04 14
TOTAL 28 100

Tabela 4

Esse recorte das Cartas coetêneas de D. João III, comparado com os


dados do estudo referido no início do item 3, sobre a obra analisada de
João de Barros, permite confirmar que, também nessa documentação não-
literária oficial, o uso arcaizante de haver como verbo de posse, quatro
ocorrências, é residual, estabelecido já o verbo ter como verbo de posse.
Deve-se destacar o fato de que as expressões formulares arcaizantes carac-
terizam, em geral, a documentação de natureza jurídica, desde o período
arcaico mais recuado (cf., por exemplo, Mattos e Silva 1997) e, persiste,
mesmo que, eventualmente, até hoje.

3.2 Haver/ter em estruturas de tempo composto


No estudo referido no início do item 3, no item 2.2 – ‘Ter’/‘haver’ nos
tempos ‘per maneira de rodeo’: uso e teoria em João de Barros, exami-
nada a Obra Pedagógica no seu total e uma amostra da Primeira Década
da Ásia, os dados evidenciaram a coerência notável de João de Barros quan-
do preceitua que ter é o verbo dos “tempos per rodeo” de passado, ou
seja, os tempos compostos, enquanto haver formará os “tempos per rodeo
vindorio”, ou seja, o futuro. João de Barros só usa, no corpus referido, o
verbo ter na formação de tempos compostos de verbos transitivos. Eviden-
ciaram também esses dados de João de Barros a predominância do tempo
composto já gramaticalizado, ocorrendo também estruturas não
gramaticalizadas com verbo transitivo, em que o particípio passado con-
corda com o complemento direto, numa taxa de 11% que baixa para 3% na
análise qualitativa ali feita. Evidenciaram ainda a variação de ‘ter’/‘ser’ com
verbos de particípio passado não-transitivos, estrutura que não ocorre na
Obra Pedagógica, mas na amostra das Décadas, em que há cinco ocorrên-
cias dessas estruturas com o verbo ser e duas com ter.
Nas quarenta e sete Cartas coetâneas de D. João III, encontrei os
seguintes dados sobre as estruturas de tempo composto, vinte e três ocor-
rências, sumarizadas na Tabela 5:

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
VERBOS OCORRÊNCIAS
HAVER + PP 0

TER + PP
(s/ concordância) 07

TER + PP
(c/ concordância) 05

TER + PP
(concordância impossível) 09

SER + PP [- transitivo] 02
TOTAL 23

Tabela 5

O primeiro fato a destacar é que, tal como João de Barros preceitua e


usa, os escrivães de D. João III não selecionaram nem uma vez haver, como
auxiliar de tempo composto, mas sempre ter, com particípio passado de
verbo [+ transitivo].
Além disso, ressalte-se logo que as duas ocorrências de ser se apre-
sentam com particípio passado de verbos [- transitivo], ergativos. São elas:

(12) Fernam d’Alvarez me deu conta que a armada da Malageta era


chegada a essa cidade (Carta 323 de 1541).
(13) Vi a carta que me escrevestes de XI d’este mes de março, e por
ella soube como erã partidas as quatro naos pera a Índia (Carta 363
de 1551).

As datas de 1541 e de 1551 indicam que por esse período, que são os
limites cronológicos das cartas analisadas, a seleção de ser com verbo [-
transitivo] era usual. Essas Cartas “foram feitas” por Fernan d’Alvarez e
por Andre Soarez, respectivamente. Não ocorreu nenhum caso de variação
com ter com verbo [- transitivo], nessa amostra, como vimos acontecer na
Década Primeira de João de Barros, conforme se pode verificar no item
2.2 do estudo referido em 3, deste texto, sobre os usos de ter / haver em
João de Barros, nos tempos “per rodeo” do passado.
As nove ocorrências de “concordância impossível” decorrem do fato
de: ou o complemento não estar explícito (14), ou é um sintagma nominal
masculino singular (15), ou pode ser um pronome neutro, recuperável pelo
contexto (16) ou, ainda, uma sentença como complemento direto (17),
como por exemplo:

(14) como volo tenho escrito (Carta 371).


(15) Agora tenho nomeado o bispado do Brasil (Carta 344).
(16) Porque, como tereis sabido [isso], João da Silva do Camto
adoeceo (Carta 368).
(17) E está $! tal disposiçã que nam pode ir servir nas Ilhas Terceiras,
como tinha ordenado que fosse (Carta 368).

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Das cinco ocorrências arcaizantes, ou seja, com concordância do par-


ticípio passado com o complemento direto, tratarei em seguida:

(18) tendo por assentada a gente (Carta 326 de 1542).


(19) que vos deve teer apresentada [sua provisom] (Carta 331 de
1541).
(20) artelharia que pode ser que os mouros tenhão posta (Carta
333 de 1545).
(21) pois já tendes dadas a Vosso Senhor as graças (Carta 335 de
1548).

Note-se que nessa mesma última Carta, mais adiante, ocorre, no


mesmo contexto semântico, o tempo composto sem concordância:

(22) o que Nosso Senhor quis que fose feito, e de que elle vos já
tendes dado por isso muytas graças (Carta 335 de 1548).

Essa Carta, em que a variação aparece na pena de um mesmo escri-


vão, está entre as que não traz escrivão explícito.
Também na Carta 326, “feita” por Fernam d’Alvarez em 1542, numa
mesma seqüência textual aparece o tempo composto com e sem concor-
dância do particípio passado:

(23) ... e que, tendo jaa assentada a gente que tenho mandado que
vaa nella, vão alg"!us cõ allvaraes meus pera se assentarem.

Esses dados, embora reduzidos, confirmam:

a. o que tenho observado no estudo do tempo composto desde o século


XIII aos meados do XVI (1989, 1996, 1997, 2000), ou seja, que não é
muito freqüente a seleção do tempo composto nesse período da história
do português;
b. também que, tal como João de Barros, o ter é o auxiliar do tempo
composto e não varia com haver, que o sobrepuja na documentação mais
recuada do português;
c. ainda confirma que nos meados do século XVI é o verbo ser o seleciona-
do para o tempo composto de verbos [- transitivos], sem variação com
ter como já ocorre nas Décadas de João de Barros;
d. por fim, que já predomina o uso do particípio passado de verbos [+
transitivos] sem a concordância do particípio passado, ou seja, já
gramaticalizado e, numa mesma pena, em seqüências seguidas, os
escrivães variavam entre as duas possibilidades. O número de ocorrênci-
as da forma não-gramaticalizada é mais alto que o encontrado em João
de Barros, como se pode verificar no estudo referido no início do item 3;

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
e. Assim, as Cartas indicam um uso mais arcaizante no que se refere à
forma não-gramaticalizada e também na seleção de ser como verbo [-
transitivo] que não varia com ter.

3.3 Haver/ter como verbo existencial


Durante todo o período arcaico é o verbo haver que, predominante-
mente, preenche como “operador funcional” (Franchi et alii 1998: 110) as
orações existenciais em variação com o etimológico ser (lat. esse), estando
o verbo ser sempre em taxas mais baixas, como relatado no estudo referi-
do no início do item 3. Nesse estudo, no item 2.3 – O despontar de ‘ter’
existencial em João de Barros – encontraram-se, considerados o conjunto
da Obra Pedagógica e amostras da Primeira e Segunda Décadas, cinco
ocorrências de ter existencial, duas delas ambíguas, interpretáveis tam-
bém como verbo de posse e uma, em que o haver existencial concorda
com o sintagma nominal subseqüente. Esses indícios de ter existencial
nos meados do século XVI, buscarei confirmar ou não nas quarenta e sete
Cartas de D. João III analisadas.
No total, cf. Tabela 6, as estruturas existenciais ocorrem nas Cartas
da seguinte forma:

VERBOS SER HAVER TER


OCORRÊNCIAS 0 11 01
(ambígua)
Tabela 6

O primeiro fato a notar é que os escrivães do rei não usam o ser


existencial, o que ocorreu no conjunto examinado da obra de João de Bar-
ros, cinco vezes.
O verbo existencial, por excelência, tal como ocorre por todo o perío-
do arcaico, é o verbo haver.
O uso ambíguo de ter, tal como se encontra em uma passagem da
Carta de Pero Vaz de Caminha (Mattos e Silva 1996), que aqui repito:

(24) ... se metiam em almadias duas ou tres que hy tiinham (CPVC –


fol. 5, 31-32).

E, em duas ocorrências, em João de Barros, uma na Gramática e ou-


tra na Primeira Década, repito aqui a última:

(25) Concertou-se com o infante dom Anrique sobre o que nellas


tiinha, e elle passouse a ilha de Madeira onde assentou sua uiuenda
(Déc. I, 46-48).

é o seguinte, encontrado na Carta 323 de 1541, “feita” por Fernam d’Alvarez:

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

(26) por que tenho Recado que no Cabo de Geez nõ he necessaria


mais gente da que tem

Na seqüência (26), como na (24) e (25), tanto pode ser interpretado o


ter como verbo de posse, elíptico o sujeito pronominal, ou como verbo
existencial com Ø sujeito, marcado sempre um locativo, próprio às estru-
turas existenciais: em (24) hy; em (25) nellas; em (26) no cabo de Geez.
Note-se também que nas onze ocorrências de haver existencial, não
está presente a concordância com o complemento direto, muito corrente
hoje no vernáculo brasileiro, pelo menos, e que foi documentada, tanto na
Carta de Caminha, uma vez,

(27) nõ duuido que per esse sertãao ajam muitas aves (CPVC – fol.
10-11).

como na Segunda Década, também uma ocorrência,

(28) Cá neste tempo era em Lisboa tã grãde peste %! ouveram mui-


tos dias de c$!to e vinte pessoas [morrerem] (Déc. II, 4, 5)

Vale informar que, extrapolando o recorte feito nas Cartas de D. João


III, coetâneas ao analisado em João de Barros, encontrei na Carta seguin-
te a esse recorte, datada de 1557, de nº. 370, a última antes das duas
Cartas autógrafas do rei, uma ocorrência de ter existencial, “feita” por um
outro escrivão, Manuel Fernandez, para Tomé de Sousa:

(29) Mandovos que ffaçais asentar o dito dom Pedro de Sousa no


livro da dita matricola, no titolo dos fidalgos cavaleyros, com a dita
moradia e cevada, Riscandose primeiro o asento d’escudeiro que
tem no dito livro (Carta 370 de 1557) [tem = há/está/ocorre/existe].

Se essa interpretação estiver correta, o ter existencial já aponta tam-


bém nas Cartas de Dom João III, tal como em João de Barros.

4 Observações sobre as duas Cartas autógrafas do rei


As duas cartas autógrafas do rei Dom João III são as últimas da edição
de J. D. M. Ford, têm os nos. 371 e 372 e não são datadas, portanto podem
ter sido escritas entre 1521 e 1557, período do seu reinado.
A primeira é para a rainha e é muito curta: sete linhas impressas. A
outra, para Lopo de Souza e perfaz um total de vinte e seis linhas impres-
sas. Considerei um fato histórico-lingüístico curioso verificar o uso do pró-
prio rei, no que se refere aos verbos examinados nos itens anteriores, na
escrita de seus escrivães.

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Na breve Carta à rainha encontrei uma estrutura que expressa “pro-
priedades temporalmente limitadas de individual”, preenchida pelo verbo
ser e duas que expressam “propriedades de individual”. Com o verbo ser;
a ocorrência arcaizante, onde poderia ocorrer estar, é a seguinte:

(30) Poys o lhe peço por merçe que me perdoe, e eu ho pagarey $!


ser la seg"!da feira (Carta 371).

Na Carta a Lopo de Souza o ser arcaizante ocorre na seqüência:

(31) E gradecermosey avisardeme de como v$!, e do que vos pareçe,


e quãdo esperais ser ca

na seqüência seguinte usa estar:

(32) E se porventura tornar a não querer vir, e detryminadamente


estar $! seu preposyto, precurai quanto poderdes polo trazer.

Também, mais adiante:

(33) L$!brandolhe cã hobrigado he a fazer o quanto lhe Rogo e mãdo


por obydy$!cya; e quãdo todavia quyser$! seu preposito estar.

Nessas trinta e três linhas do texto real, usa o rei duas vezes ser e
duas vezes estar como expressão de “propriedades temporalmente limita-
das de individual”, ou seja, varia no uso do ser/estar semanticamente tran-
sitório.
Quanto a haver e ter como verbo de posse, usa duas vezes essas es-
truturas com o verbo ter, nenhuma com o verbo arcaizante haver. É por-
tanto, neste caso, inovador.
Quanto às estruturas com particípio passado, só usa o verbo ter, nun-
ca haver, nas três ocorrências atestadas, tal como João de Barros e os
escrivães do rei. Uma delas, em que seria possível a concordância, não a
faz, é portanto inovador:

(34) eu nã tenho Recebydo nova de nenhuma pesoa.


Quanto à estrutura existencial, não ocorre ela nas cartas autógrafas
do rei.
Essa breve avaliação sobre os verbos em foco nas duas cartas autógrafas
do rei indica que ainda varia Dom João III no uso do ser/estar, semantica-
mente transitório, mas seleciona a possibilidade inovadora, ou seja, com o
verbo ter, na expressão da posse e prefere o tempo composto
gramaticalizado.

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5 Breve síntese conclusiva


O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

O que busquei verificar no exame das Cartas de Dom João III, coetâ-
neas à Obra Pedagógica e à Primeira e Segunda Décadas da Ásia de João
de Barros, exposto no item 1, pode ser assim sumarizado, considerando os
dados analisados nos itens anteriores:

a.no que se refere à oposição ser/estar (cf. 2), como expressão de atributos
transitórios, as quarenta e sete Cartas indicam, nessa documentação não-
literária oficial, um uso mais freqüente do ser arcaizante: dez nas Cartas,
enquanto quatro na Obra Pedagógica (não na Gramática) e cinco nas
Décadas. Desses dados se pode inferir que a escrita notarial se apresenta
mais arcaizante que a do erudito polígrafo João de Barros, mas se pode
afirmar que a oposição já estava definida, mas a variação ainda era possí-
vel. Veja-se como indício dessa afirmativa o exemplo (2), em que o escri-
vão Antonio Ferraz (Carta 367), numa seqüência textual, seleciona pri-
meiro estar e, em seguida, ser, talvez para evitar, por razão estilística, a
repetição de estar;

b.quanto a ter / haver como verbo de posse (cf. 3.1), pode se afirmar que
o uso de haver, cinco ocorrências, é residual, como em João de Barros.
Haver só se destaca nas expressões formulares aver por bem, aver por
meu serviço, aver a santa gloria;

c.nas estruturas com particípio passado (cf. 3.2), tal como João de Barros
preceitua e usa, o auxiliar é sempre ter, nunca haver; o verbo ser, como
auxiliar de tempo composto de verbos [-transitivos] é o selecionado, como
em João de Barros, embora nele apareça já o verbo ter com esses verbos;
quanto à forma gramaticalizada do tempo composto, ou seja, sem concor-
dância do particípio passado com o complemento direto, a taxa de uso é
mais baixa que em João de Barros, sendo ele, portanto, mais inovador;

d.quanto ao ter existencial (cf. 3.3), que aponta em três ocorrências não-
ambíguas em João de Barros e duas outras ambíguas (verbo de posse ou
existencial?), ocorre uma única vez nas quarenta e sete Cartas, numa
seqüência ambígua, sendo haver o verbo existencial selecionado, nunca
ser, como ocorria no período arcaico. Serão, provavelmente, essas se-
qüências ambíguas que virão desencadear o uso futuro do ter existenci-
al, tão freqüente no vernáculo brasileiro, pelo menos, mas ainda recusa-
do pela gramática prescritiva. Sendo esse o lugar do “encaixamento” para
usar o conceito laboviano, que possibilitou a mudança anunciada nesses
dados do século XVI.

e.sobre as duas Cartas escritas pelo punho do rei D. João III (cf. 4), embo-
ra sejam dados restritos, tem-se: varia ele no uso de ser/estar, semantica-

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
mente transitórios; o verbo ter, contudo, é o verbo de posse que selecio-
na e também é o auxiliar do tempo composto, usado já gramaticalizado,
sem a concordância do particípio passado, na seqüência em que esse
recurso seria possível. Não se utilizou o rei de estruturas existenciais.

Em geral, para finalizar, pode-se afirmar que as quarenta e sete Cartas


analisadas, em comparação com a obra coetânea de João de Barros, são
mais arcaizantes no uso variável de ser/estar, semanticamente transitóri-
os, do que nos usos de ter/haver, excluído haver como verbo de posse e
nas estruturas com particípio passado. Permitem elas, portanto, inferir que
a oposição ser/estar já estava definida, embora a variação não fosse exclu-
ída e que ter é o verbo vitorioso como verbo de posse e nas estruturas com
particípio passado, divisando-se no cenário histórico do português o apon-
tar do ter existencial.

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Português 500.p65 159 22/7/2005, 14:55


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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

MATTOS E SILVA, R. V. (1999). Resíduos arcaizantes em 1540: a propósito do


uso variável de ser/estar em estruturas atributivas e de haver/ter em estrutu-
ras possessivas no período arcaico do português. In: DUARTE, L. P. (Org.).
Para sempre em mim. Homenagem à Professora Ângela Vaz Leão. Belo
Horizonte: CESPUC. p. 234-245.
MATTOS E SILVA, R. V. (2000). A variação ser/estar e haver/ter em 1540.
Revista Portuguesa de Filologia), XXIII: 71-96.

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Observações sobre as conjunções
no século XVI

Therezinha Maria Mello Barreto

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163

Introdução

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
E
ste trabalho representa a continuação de três pesquisas anteriores: a
dissertação de Mestrado intitulada: “Conjunções: aspectos da sua
constituição e funcionamento na história do português” (1992), que
analisa conjunções e correlações conjuncionais em 3158 períodos retira-
dos de textos de tipos diversos, dos séculos XIII a XV; o trabalho intitulado
“Perseguindo as conjunções”, de Barreto e Olinda (1992), publicado na
revista Estudos lingüísticos e literários, nº 13, que analisa os citados
conectores, num texto de 1500, a Carta de Pero Vaz de Caminha (CC); a
tese de Doutorado “Gramaticalização das conjunções na história do portu-
guês” que tenta explicar a origem dos itens conjuncionais portugueses,
tomando por base um corpus constituído por textos dos sécs. XIII, XIV, XV,
XVI e XVII e textos de língua falada do português contemporâneo. Desse
modo, apresentará os itens conjuncionais que: 1. já empregados em sécu-
los anteriores, experimentaram mudanças no século em estudo; 2. só fo-
ram empregados até o séc. XVI; 3. começaram a ser empregados no séc.
XVI; 4. só foram detectados em textos do referido século; 5. aparentemen-
te já em desuso, voltaram a ocorrer nesse século.
O corpus escolhido para a pesquisa foi constituído de textos de tipos
diversos, todos do séc. XVI, pertencentes, pois, ao período moderno da
língua:

Textos de caráter epistolar:

22 Cartas de D. João III (CDJIII) – 1523 – 1557


173 Cartas da corte de D. João III (CCIII) – 1524 – 1562
30 da Rainha Catarina (CR)
49 do Infante Luis (CIL)
40 de Jaime, Duque de Bragança (CJ)
41 de Theodosius, filho do Duque (CT)

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164
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

13 Cartas Miscelâneas (CM)

Textos pedagógicos de João de Barros, de 1540:

Cartinha (C)
Gramática da língua portuguesa (GLP)
Diálogo da Viçiosa Vergonha (DVV)
Diálogo em louvor da nossa linguagem (DLNL)

Texto histórico, também de João de Barros:

As Décadas da Ásia (DA) – 1ª e 2ª Décadas (1000 linhas de cada),


1552 – 1553

Foram encontrados,
no corpus consultado:
29 itens conjuncionais
coordenativos (22 con-
junções, 7 correlações) e
63 subordinativos (43
conjunções, 20 correla-
ções) que serão analisa-
dos de acordo com a
subdivisão anteriormen-
Fragmento do fólio 33r da Grammatica de João de Barros
te proposta.

1 Itens conjuncionais que, já empregados em séculos


anteriores, experimentaram mudanças no séc. XVI
Os itens conjuncionais encontrados no corpus, na sua maior parte, já
haviam sido detectados em textos mais antigos, entretanto alguns fatos
merecem destaque:

Entre os itens coordenativos:

1.1 E, conectivo aditivo empregado repetitivamente em textos do sé-


culo XIII ao século XV e nos Diálogos de João de Barros, já não é tão
empregado dessa maneira, nos demais textos do século XVI, embora ainda
apareça repetido em alguns períodos. Ocorre ligando:

a) itens lexicais:

... tenho entendido a muita parte que naquele Reino vam tendo os
ministros da secta luterana sequaces, e o crédito e autoridade... (CR,
nº 75, l. 04-6).

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165

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
b) sintagmas:

... e apos esto beixarlhe as mãos por cousas que mãdou dezer a el
Rey, meu senhor e a my sobre negocjos d’Yngalaterra e de Milã.
(CIDL), nº 8, l. 11-6).

c) sentenças:

... vos agradecerey muito escreverdesme com tal brevidade se o devo


fazer, e o que em tal materia lhe devo de mandar dizer, e se sera por
pessoa propria que a isso envie, e qu$!! devo para isso escolher, e de
que calidade deve ser (CR, nº 75, l. 21-5).

Levando lá sete velas menos das cõ que partira deste reyno, as duas
%! trouxe Antônio de Saldanha e de Ruy Pereira, e a de Joam Gomes
Dabreu %! ficou em a jlha sam Lourenço; e as duas que mandou a
Sosala, e a de Alvaro Telez Barreto %! o estava esperãdo no cábo
guardasse (DA, 2º vol, cap. III, l. 55-9).

É ainda constante o seu emprego como encadeador da narrativa;

a) quer em posição inicial absoluta:

E disse que se consolasse por%! molheres e filhos lhe seriam entre-


gues... (DA – cap. II, l. 203).

b) quer precedendo uma outra conjunção:

... e porque o dia dantes ouveram vista das nossas náos... (DA, 1º
vol. Cap. I, l. 165).

... e ca lhe mãdey que todas posese por escryto e o asynase... (CIDL,
nº 17, l. 8).

E tanto que as naaos foram pousadas e amcoradas vieram os capitaães


todos aesta naao do capitam moor... (CC, fol. 3v, l. 07-9).

1.2 Nem ~ neem aparece, em todos os textos, como conjunção


aditiva negativa:

... mas, como vos muy be$! sabéis eu nom tenho outra Renmda de
que possa soprir as despesas de minha casa, neem de que paguar as
moradias aos que me servem... (CR, nº 51, l. 04-7).

Nos Diálogos de João de Barros, aparece também funcionando como


advérbio de negação:

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

E q[ue] assi seja nem por isso julgam os lavradores q[ue] provém
isto da maldade da térra mas da sua grossura. (DVV, p. 429, l. 22-3).

Nem por eu Ter dirigido a su’alteza o trabalho que dizes, devo


esperar mais que, por me fazer mercê, o mandar examinar; e, sendo
taes, que póssam aproveitar aos minimos, mandará que se leam em
as escolas. (DLNL, p. 390, l. 12-5).

Como se pode verificar, nos dois parágrafos acima, o nem funciona


como modificador da ação verbal e não como um conectivo, ligando sen-
tenças em que são somadas ações de caráter negativo.

1.3 O item todavia parece ter finalizado, nesse século, o seu processo
de gramaticalização ao nível da escrita e ao nível semântico, uma vez que já
é empregado nos textos, com a forma justaposta e como conjunção, esta-
belecendo uma relação de contrajunção:

E caso que estas palavras cõ as obras de que outros podem dar teste-
munho, mostrem aver em m1! a obidiencia que digo, todavia não
me acabo de satisfazer, por que mayor he e muito mays conte em sy
do que posso escrever. (CT, CLXXI, l. 14-7).

1.4 Que – aditivo, cujo emprego parece ter sido corrente até o séc. XV,
pois é empregado sete vezes na Carta de Caminha, ocorre também na
GLP, mas apenas uma única vez, no Diálogo da Viçiosa Vergonha:

E quando esta ordem natural se tróca, que os servos envergonham


aos senhores e os que haviam de temer ficam temidos, podemos
entám arguir "!a de duas coisas... (DVV, p. 451, l. 04-9).

Quanto às conjunções subordinativas, pode-se afirmar que:

1.5 A conjunção que empregada, no português arcaico, como inte-


grante, causal, comparativa, modal, concessiva, condicional, temporal e
final, apresenta o seu campo semântico reduzido, ocorrendo apenas como
integrante, causal, final e concessiva:

Integrante

E verdade é que se vos podesse fallar, eu confio bem que nesta


materia que me culpaes, me fiquasseis devendo dinheiro. (CJ 101,
l. 03-5).

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167

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Causal

... e os comselhos de seus amigos acabarem, se poder ser, que nam


se parta, pobrycãdo escandalo, que nam he seu servyço em tal tem-
po, aymda que seja sem Rezam. (CDJIII, XXII, l. 08-11).

Final

E daqui te dou licença que âs possa alegár, quando te ocorrerem a


prepósito da matéria. (DVV, p. 415, l. 04-6).

Concessiva

Que eu tenha todos os descontentamentos do mundo das merces


que neste caso me ffazees tenho muito contentamento, porque bem
sey que aynda que m’as ffazzees grandes todavia laa vão leys. (CT
LXXXIX, l. 01-4).

1.6 A conjunção como continua a expressar relações de causa, finali-


dade, modo, comparação e tempo que já expressava desde o séc. XIII e
passa a expressar também a relação de conformidade:

Causa

Como faleceo João Moniz, eu pedi a elRey, meu senhor, que me fizes-
se merce da sua com$!da para Luis de Saldanha. (CIDL, XL, l. 01-3).

Finalidade

“Como”, disse el, “nom vos poderei eu aver se nom por morte de
vosso padre? “Certas, nom”, disse ela. “Pois eu me trabalharei, como
moira, disse el. (DEM, Cap. DCXVII, l. 20-2).

Modo

Tervosey $! merce mandarme a provisão como vos mandey pedir.


(CT, 152, l. 11).

Comparação

E por qu’eu nã posso cuydar que a tezã de sua alteza a de sser


fazerme tamanha desomrra como mãdarme tornar preso, quãdo a
este tempo nã vyr Recado ylo ey esperãdo polo camynho, e dygovos
que os prepostos cõ que vou já oje derã gosto d’este pequeno tra-
balho que levey. (CIL, XVIII, l. 10-4).

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168
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Tempo

E como sober que isto he feito, o mandarei logo mudar e, isto


feito, sera h"! pedaço de descanso por agora para mi... (CIDL, XLVI,
l. 48-9).

Conformidade

Como diz David em espirito (sal. XVII): Em toda térra saiu o som
deles, e nos fins da térra as suas palavras. (DVV, p. 438, l. 14-5).

Deve-se ressaltar que, com a acepção de ‘quando’, que e como foram


detectadas, anteriormente, apenas na Demanda do Santo Graal (ms. do
séc. XV, tradução do original do séc. XIII).

1.7 Continua a ocorrer, ainda nos textos da 2ª metade do século XVI,


a conjunção temporal tanto que ‘logo que’:

Vendo Tristam da Cunha a determinação delles, tanto que


amanhaceo elle per h"!a parte e Afonso Dalboquerq! per outra junta-
mente foram demandar a terra... (DA, 2º vol., cap. III, l. 159-61).

Tanto que apresenta a variante e!! tanto que:

E!tanto que o mandar treladar, o mandarei logo ao Regedor, e nõ


podera muito tardar. (CJ, CIII, l. 23-5).

No séc. XVII, em que já não é tão freqüente, além do sentido tempo-


ral, tanto que ocorre, uma única vez, com o valor semântico condicional:

Ainda a V.Sa tem mais que admirar: António de Brito, irmão do pro-
vedor da Alfândega, matou ao alcaide-mor, na rua de trás da Sé, às
dez horas do dia; e!! tanto que o soube o governador, deixando na
galeria o arcebispo, com quem estava, se foi furiosamente à Secreta-
ria, e depois de muitos nomes afrontosos mandou meter o secretá-
rio na enxovia, com a proibição de que ninguém falasse com ele,
nem escrevesse. (CVB, CXCII, l. 76-83) – temporal.1

Também aqui soube que tinha mandado S.M. ao mesmo navio o


padre bispo do Japão e o capitão do Pará; o bispo, para que me
trouxesse, e o capitão com ordem que, tanto que eu lá não estives-
se, partisse logo o navio. (CVM, LV, l. 183-6) – condicional.2

A partir do séc. XVII, essa conjunção deixou de ser empregada e a


conjunção logo que assumiu o seu lugar (Said Ali 1921:217).

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169

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
1.8 A forma segundo que, no séc. XIII, apresentava-se seguida de que,
como ou em como, começa a aparecer isolada nas Cartas de D. João III:

Luis Vaneguas he chegado à aldea Galega, segundo oje soube por


h"!u criado seu e passara esta noite. (CR, LXXI, l. 02-3).

No que diz respeito às correlações conjuncionais, pode-se afirmar que:

1.9 Das correlações comparativas de superioridade e inferioridade


que ocorrem desde o português arcaico, apenas mais... que apresenta a
variante em que o segundo termo é do que ainda nesse mesmo período;
as demais: maior... que, melhor... que, menos... que e pior... que, só
no séc. XVI começam a apresentar esse tipo de variante:

... assi eu fora mais seu serviço ser o castiguo mor do que he, e a
culpa nã ser mor do que foi. (CT, CXXXV, l. 35-7).

Elle seja muito louvado, que ordena tudo mylhor do que om$! cuyda
e merece. (CIL, XXXIX, l. 01-7).

... ele que eu jaagora tenho muito menos esperánça do que teve...
(CT, C, l. 20-4).

... e fiquem em pior estado do que d’amtes estavã pella carta da


marca. (CDJIII, XXII, l. 144-5).

1.10 A correlaçao proporcional quanto... tanto, utilizada no portu-


guês do séc. XIII, e que apresenta, no séc. XIV, as variantes:

quanto... mais... tanto mais


quanto... mais... tanto... meos
tan... mais pouco... quanto moor
quanto mais... tanto mais pouco
quanto mais... tanto... mais
quanto... mais... tanto... meor

No séc. XVI, ocorre sob as formas quanto... tanto, quanto... tanto


mais e quanto... mais... tanto... mais.

... e aôs de el-rei Dom Afonso de Castéla, eleito imperador, e de el-


rei Afonso de Nápoles e aôs de muitos príncipes e gráves barões que
quanto me leváram em lêteras e magestade de estádo tanto na
ocupaçom dos negocios. (DVV, p. 436, l. 16-23).

E terás esta régra: Quanto o requerimento te chegar à alma, tanto


mais ousadamente responde. (DVV, p. 461, l. 14-5).

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Assi quanto o mançebo é mais nobre em sangue e creaçam e


composiçam de bons humores segundo os médicos, tanto natural-
mente sam mais benévolos, clementes, mansos e piadosos que aque-
les que carécem desta nobreza de sangue e compleissam (DVV, p.
430, l. 03-6).

Quanto... tanto apresenta ainda, no séc. XVII, as variantes quanto...


mais... tanto mais e tanto mais ... quanto... mais em que se pode notar a
inversão dos termos, procedimento que já não se verifica no português
contemporâneo.

... porque quanto as setas são mais agudas tanto mais facilmente se
despontam na pedra. (SS, l. 289-90).3

As correlações proporcionais do português contemporâneo, citadas


pelos gramáticos consultados são:

quanto mais... mais


quanto mais... tanto mais
quanto mais... menos
quanto mais... tanto menos
quanto menos... menos
quanto menos... mais
quanto menos... tanto mais

1.11 Do mesmo modo, a correlação aditiva não só... mas também,


do português contemporâneo, vem apresentando, desde o séc. XIV, quan-
do começou a ser empregada, formas diversas:

Séc. XIV – nom solamente... mas

Nom solamente foi depois abade de muitos monges, mas morou


com muytas monjas. (DSG, 1.5, 56).

Séc. XV – nom come... mas come

... he nossa intençom n’este prollogo muito curtamente falar nom


come buscador de novas rrazões, per própria invençom achadas,
mas come ajuntador em h!u breve moolho dos ditos d’alg!uns
que nos prouguerom... (CDP, Prólogo, l. 06-9).

Séc. XVI – nam somente... mas


nam... mas
nõ somente... mas ainda ~ nam somente... mas ainda.

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Assi, négar a execuçam deste desejo de bem fazer, com reçeo de
repreensões, nam somente seria viciosa vergonha, mas eternál
confusam. (DVV, p. 445, l. 15-7).

Aqui deste modo e em outros nam tomamos as térras per o elemen-


to da térra, mas per a diversidade das provençias déla. (GLP, 343-4).

Porque nõ somente he necessario cuydallas hu!a vez b$!, assy como


a vosso serviço compre, mas ainda depois que o caminho que eu
ordeno he desprezado, ainda de tornar a cuydar como se desfaraão
os barrancos e corregos e se faraa mais chaão ho que outras pessoas
ordenam pera que menos dano faça a vosso serviço. (CDJIII, CVI, l.
03-8).

E máus mestres/leixam os disçipulos danádos per toda sua vida,


nam somente com viçios d’alma, de que poderemos dár exemplos,
mas ainda no módo de ôs ensinár. (DLNL, p. 406-7, l. 23-6).

Outras variantes aparecem ainda no séc. XVII e no português contem-


porâneo:

Séc. XVII: não... mas


não só... senão
não só... senão também
não só... mas
não só... mas também

Português contemporâneo: não...mas


não somente... como
não só... mas
não só... como
não somente... como também
não só... mas até mesmo.

Como se pode observar, esse item conjuncional não está ainda total-
mente gramaticalizado, uma vez que ainda apresenta variações no primei-
ro e segundo termos.

$!... n$!
1.12 A correlação n$! $! que era empregada para ligar mais de dois
sintagmas ou mais de duas sentenças, em textos do séc. XIII e XIV, tem o
uso repetitivo reduzido, passando a ligar, no máximo, três sentenças ou
três sintagmas:

... ainda que alg!ua cousa d’ísto pareça nõ se cumpra - n$! $! alvaras de
promessas, n$!$!" dividas, n$!
$!" cousa nenhu"!a. (CJ, CXIX, l. 144-6).

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Mostrou que folguara muito cõ a carta de sua alteza; nõ na pode ler,


nem soube preguntar a Luis Afonso por sua alteza como estava, n$! $!
Responder a sua carta. (CT, CXXXI, l. 04-6).

1.13 O mesmo ocorre com as correlações ou... ou e quer... quer que


passam a ligar apenas duas ou três sentenças ou dois ou três sintagmas.

Vestígios desse emprego da correlação ou... ou são encontrados ain-


da em textos do séc. XVII:

Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos


ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos.
(SS, l. 240-2).

1.14 A forma senão, constituída da justaposição da conjunção condi-


cional se à forma negativa não, que ocorre no português arcaico expres-
sando uma relação de condição, ocorre, no séc. XVI:

(i) com valor preposicional de ‘exceto’:

... e que ficara o que eu digo – sempre em segredo senã das pessoas
a que eu nã pude deixar de o dizer, que he o que por o confessor,
o Bispo de Portalegre, por que! muito disto passou, e ho secretario
por qu$! passa tudo. (CT, CLVII, l. 33-6).

(ii) com valor conjuncional:

– fazendo parte da correlação adversativa nã... senã ~ nõ... senõ ~


não... senão, já empregada no português arcaico, a qual, no português
moderno, assume também as formas: n$! $!huu... senam ~ n$! $!... senão ~
sem... senam:

E porque ysto he cousa tã fora de toda rezam, e mais estamdo vos


$! huu outro fim
no em que estaaes, e tratando negocio tall que n$!
teem senam a amizade que eu tanto precuro de ter cõ el Rey de
França... (CDJIII, XXI, l. 17-20).

... e mostrando vos do geyto que a caledade do descont$! tam$! to


Requere, n$!$! falareys senão o menos que vos seja posyvell. (CDJIII,
VI, l. 328-30).

... ficava a navegaçam dos mares sem nele poder aveer outro periguo
senam de hu! ladram, que muy pouco nojo pode fazer. (CDJIII,
XXII, l. 68-70).

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
1.15 A correlação modal bem como... assi, empregada em textos do
século XIII, apresenta, no séc. XVI, a forma como... assi:

E como ele afirma que ao aváro nunca feléçe cáusa pera negár, assi
ao vergonhoso para conçeder. (DVV, p. 432, l. 05-7).

2 Itens conjuncionais que só foram empregados até o


séc. XVI
2.1 Pero e porem ocorrem, no séc. XVI, não só estabelecendo rela-
ções de conclusão e explicação, mas também já estabelecendo relação de
contrajunção, sendo entretanto, nesse caso, pero ainda a forma mais usa-
da:

Como diz Foçilides, as paixões sam com!as. Peró, tem esta deferença
que, segundo pessoa, assi é o vicio estranhado, donde desse Juvenal
Saty. VIII : “Todo viçio do ânimo, tanto tem mais crime, quanto é
maior aquele que ô comete”. (DVV, p. 450, l. 12-5).

Peró, em o módo de provár esta criaçom, confundiram e destruiram


a verdade, donde déram matéria aos poétas pera fabulárem quantas
composturas e feções vemos, como conta Ovidio Ovid I libro,
Metamorph, que Prometeu formou o hómem da Térra. (DLNL, p.
391, l. 13-7).

Assi [há] i !as afeições do ânimo q[ue] per si nam sam boas. Porém
sam como "!a semente i frol de boa índole e sojeito. (DVV, p. 439, l.
24-5).

Nas DA, as formas pero e porém são empregadas apenas como con-
junções contrajuntivas.
Nas demais obras do séc. XVI, pero já não ocorre e o item porem é
empregado como conjunção, para expressar a relação de contrajunção,
sendo, entretanto, ainda mais freqüente o seu emprego como reforço ad-
verbial conclusivo-explicativo:

E porem vos mando que lhas despejees e entreguees sem nenh!a


duvida que a ello ponhaaes. (CJ, XCI, l. 03-4).
$! ainda he vivo Pero d’Acunha Coutinho que me parece que
... por$!
ffoy hu! dos capitaães de meu pay... (CJ, XCIV, l. 97-8).

... despois de lhe falardes, me avizay por correo secretam$!te e com


$! deixardes de fazer nada
toda posyvell delig$!çia, sem por isso, por$!
do que vos aquy mando, n$! de seguir a ordem que vos nesta instru-
ção dou. (CDJIII, VI, l. 290-3).

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Reunindo os dados obtidos por Mattos e Silva (1984) nos Diálogos


de S. Gregório (DSG), na Crônica de D. Pedro (CDP), na Imitação de Cris-
to (IC), em Os Lusíadas (LUS), os dados obtidos por Barreto (1992), no
Foro Real (FR), na Demanda do Santo Graal (DEM) e na Lenda do Rei
Rodrigo (LRR) e os dados da presente pesquisa, podem-se estabelecer os
seguintes estágios para a mudança do conteúdo semântico dos itens pero
e porem através dos séculos:

Pero Porém

Estágio I
Concl.-expl. + + (estágio hipotético)
adv. O O

Estágio II
concl.- Expl. + + (= FR)
adv. + O

Estágio III
concl.- Expl. - + (= DSG)
adv. + O

Estágio IV
concl.-expl. - O (= DEM)
adv. - +

Estágio V
concl.- expl. O + (= LRR, DE, CDP, IC)
adv. + -

Estágio VI
concl.- expl. Arc. + (= C, GLP, DVV, DLNL, DA)
adv. + +

Estágio VII
concl.- expl. O O (=CDJIII, CR,CM,CT, CJ, LUS)
adv. O +

2.2 Pero e empero, isoladas ou associadas à conjunção que, consti-


tuem também conjunções concessivas em textos do séc. XIII ao XV:

O cardial, pero lhe esto parecessem cousas desarrazoadas, disse que


prazia tomar carrego de hir falar a el-rrei d’Aragom sobr’ello... (CDP,
Cap. XXIII, l. 34-6).

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Empero qual ome quer que outro alg!a cousa der, nõ lha possa
poys tolher, pero se lho descõnhecer e nõ lho gracir aquelho que
lhy deu assi como se o ferir ou destoar ou desonrrar... (FR, liv. III,
l. 853-6).

O marido da molher qual quer n$! possa uender n$! alhear arras que
der a as molher, pero que ella outorgar. (FR, liv. III, l. 145-6).

Empero que alg!a molher faça alg!a cousa destas que sõ suso ditas,
nõ perça seu dereyto do herdam$!to que lhy ui2!a da outra parte quer
seus yrmaos quer doutros parentes ou de stranhos. (FR, liv. III, l. 42-
4).

Como concessivas, empero ou empero que já não aparecem nos


textos do séc. XVI, pero e pero que, entretanto, ainda são empregadas:

E peró que alg"!as vezes, em materias graves, deçessem as cousas


jocósas e fizéssem degressões, recitando ditos e opiniões gentias,
nem por isso ôs envergonhou o juízo alheo. (DVV, p. 345, l. 05-8).

2.3 A conjunção explicativa ca ~ qua, muito freqüente no português


dos sécs. XIII a XV, aparece, ainda, em todos os textos do séc. XVI consul-
tados para esta pesquisa, porém numa freqüência já bem menor. Nas DA o
seu emprego já é raro:

Dom Antonyo amigo. Qua me derã cartas vossas e, querendovos


responder a ellas por este correo... (CIDL, l. 01-2).

... mandoulhe dizer pelo Xéque que tinha consigo, que seguramen-
te podiam algu!s sair em térra se vinham buscar suas molheres e
filhos ca elle lhos mandaria resgatar e assy o lugar. (DA, cap. I, l.
185-8).

Ca era empregado também, no português arcaico, como conjunção


integrante ou comparativa e como pronome relativo.
Olinda (1991), na dissertação de Mestrado intitulada Pois e Ca: mu-
danças semânticas e sintáticas no português arcaico (com base em um
corpus constituído por documentos dos sécs. XIV e XV) afirma que, no séc.
XIV, o ca era prepoderantemente explicativo, depois tornou-se quase que
exclusivamente explicativo, enquanto decaiu como comparativo e integrante
ou como encadeador da narrativa.
Como encadeador da narrativa, ca alternava apenas com o pois.

2.4 Inicialmente uma conjunção temporal, já em textos do séc. XIII,


pois ocorre também como conjunção explicativa:

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Pois esto aveo en tal guisa como vos conto, Elaim, que todo vira, foi
logo guarido e são de todas suas chagas e de todas suas feridas.
(DEM, cap. CL, l. 01-2) – temporal.

‘Eu vo-lo direi’ disse ela ‘pois saber avedes de o saber’. (DEM, Cap.
XX, l. 17-9) – explicativa.

Quer como temporal, quer como explicativa alternava com pois que
~ poys que ~ poisque:

Pois que Lançarot ouve feito, quanto a cavalleiro convinha, disse:


Filho Gallaaz, ora sode cavallero. (DEM, cap. VII, l. 13-4) – tempo-
ral.

Pois que offyzio dos escreuas e public(ad)o e comunal pera todas,


mandamos que a todos aquelles que demãdar$! carta pera seus
preytos... (FR, liv. I, l. 505-8) – explicativa.

Entam se chegaron os cavalleiros por filhar conselho como fariam,


poisque achavam tres carreiras partidas, ca a partir lhes convinha
porque eram tres da Demanda. (DEM, cap. LXXXII, l. 31-01) –
explicativa.

E pois vio que era ferido aa morte, meteo mão a espada e foi aa
donzella e disse-lhe... (DEM, cap. LXVI, l. 15-7). – temporal.

Olinda (1991), na pesquisa já citada anteriormente, afirma o decrés-


cimo do uso de pois e pois que temporal, entre a segunda metade do séc.
XIV e a segunda metade do séc. XV, quando pois passa a ser empregada
como conjunção explicativa, isto é, com valor semântico explicativo que se
reforça a partir do seu uso como encadeador da narrativa. Pois que adqui-
riu também, na época, o valor explicativo.
A conjunção pois passa a ser explicativa, mas não exclui, inicialmen-
te, a conjunção ca, que só vai desaparecer em meados do séc. XVI, quando
se conclui a mudança:
Ca desaparece
Pois e pois que desaparecem como conjunções temporais e firmam-
se como explicativas.

2.5 Desque ocorre uma única vez ainda nas Cartas do Infante Luís, o
que parece indicar ser, na época, uma forma já quase em desuso:

... e cõ tudo isto, desque a Salvaterra ate bespora de pascoa, não


passou mais que h"! so dia que deixasse de Ter grãde trabalho em
escrever cousas...

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Apesar de Cunha (1991: s.v. desde) afirmar que a forma desde data
do séc. XIV, na documentação analisada, só em textos do séc. XVII, ocorre
a forma desde que, fruto de uma nova gramaticalização que se processa
através de uma nova morfologização:

Des + de > desde

... e na deferença de sua condição, benignidade, inteligência e atenção


às obrigações do ofício, assim no militar como no político se pro-
metem todos um felicíssimo governo, não obrando, desde que che-
gou, acção em que não seja grandemente apaudido (CVB, CCII, l.
85-9).

3 Itens conjuncionais que começaram a ser empregados


no séc. XVI
3.1 O advérbio somente é empregado como item conjuncional
contrajuntivo:

E se ouver$! de mudar meus ossos nõ ho ffacã cõ chamam$!to de


gente n$! gasto, somente cõ atee mea dozia de crérigos ou Religio-
sos. (CJ, CXIX, l. 44-6).4

... nam avya disso memoria, somente escreveome Gonçallo Macha-


do que dezia frey Diogo que nam avya de fallar a S.A. sem ho man-
dar chamar. (CJ, CI, l. 66-72).

Peró que este divino sacrifiçio em nenh!a párte seja máis açeito a
Deos que em os tempos, por serem pera isso dedicádos a ele, não
trataremos das suas pártes e dô que significam: somente dos sinos
que nos chamam a orár a Deus, per os quáes podemos entender as
trombetas do Vélho Testamento e a pregaçom do Novo que chama
os povos à fé. (C, l. 01-6).

Embora não conste no elenco das conjunções coordenativas


contrajuntivas, apresentado pelos gramáticos contemporâneos, o item so-
mente é ainda empregado na língua portuguesa em frases do tipo:

Ele não me disse tudo, somente que os pais vão viajar.

que pode ser reinterpretada como:

Ele não me disse tudo, mas (me disse) que os pais vão viajar.
ou
Ele não me disse tudo, (disse-me) somente que os pais vão viajar.

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

3.2 Contudo, aparece ainda com a forma não gramaticalizada ao ní-


vel da escrita, cõ tudo, e até mesmo ao nível semântico, uma vez que ainda
conserva o sentido original de: ‘com todas as coisas’ ou ‘com todas essas
coisas’:

... mas por mim nã me da nada, antes folguo porque me mostrã a


cõta que faz de mim ho mundo, e me desobrigã pera eu fazer a
mesma d’ele se podesse. Cõ tudo sera pouco trabalho mandar-lhe
as cartas a Arraiolos. (CT, CLXVI, l. 20-1).

Tudo leva a crer, assim, que só no final do séc. XVI, ou mesmo no séc.
XVII, a forma contudo, já gramaticalizada ao nível da escrita, tenha passa-
do a conjunção e assumido o conteúdo semântico adversativo.

3.3 Aparece, nas CIL, a conjunção modal de modo que, não encon-
trada em outros textos do mesmo século ou de séculos anteriores:

E para isto convem, primeiro que tudo, darsse conta ao Reitor da


rrezão d’esta mudança, de modo que elle a receba e veja que não
tira nada da obrigação... (CIL, XLVI, l. 28-31).

3.4 Outra conjunção modal, de feição que, de idêntico teor semânti-


co, ocorre nas CJ:

E se sua alteza tem võntade que eu Receba d’elle esta merce, seja
esta Resposta de feição que me pareça a m# que quer sua alteza
conclusão; (CJ, LXXXIX, l. 71-3).

3.5 Registra-se a conjunção temporal já que grafada ya que:

Ruy Lour$!nço e ya que e alem de o elle por sy merecer, eu trabalharey


de lhe mostrar em tudo que m’alembra quãto vos tora. ( CIL, XIX, l.
48-50).

Só no séc. XVII, esse item conjuncional aparece com a forma já que


do português contemporâneo:

Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mi o estilo do mais
antigo do prégador que houve no mundo. (SS, l. 393-4).

3.6 O advérbio logo ‘imediatamente’ empregado em textos do séc.


XV, aparece, no DVV, como conjunção conclusiva:

Todo pecádo é obrár e todo obrár é voluntário, quér seja torpe


quer honesto: logo todo pecádo é voluntário. (DVV, p. 433, l. 03-5).

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
o que parece indicar ter ocorrido, no séc. XVI, o processo de
gramaticalização:

advérbio>conjunção

3.7 Aparecem as concessivas por mais... que e cõ quanto ~ com


quãto

3.7.1 por mais que com a forma ainda não gramaticalizada por mais...
que:

... e considereis que não sois tanto pai de vossa filha, por mais caro
que vos custe, que não tenha custado mais a qu$! a levou para si.
(CIL, XLII, l. 10-3).

A gramaticalização parece ter ocorrido no século seguinte, como ates-


tam os textos consultados:

Acho-me com muitas cartas de V. Exa e com mil obrigações em cada


uma delas para beijar a mão de V. Exa outras tantas vezes, como nesta
faço, sem que os termos de agradecimento, por mais que se multi-
pliquem, possam igualar o número e muito menos a grandeza de
tantas e tão excessivas mercês. (CVB, CCIII, l. 01-6).

É interessante observar que a forma por mais... que continua ainda a


existir.

3.7.2 Cõ quanto, com a forma ainda não gramaticalizada ao nível da


escrita, ocorre:

(i) ainda não gramaticalizada ao nível semântico, significando ‘com


aqueles que’ e admitindo as flexões do indefinido:

Eu, Deos seja Louvado, fico de saude com quãtos as grandes cal-
mas e os trabalhosos caminhos forão a isto asaz contrairos. (CIL,
XLIII, l. 48-50).

(ii) já gramaticalizada, ao nível semântico, significando ‘apesar de que’,


‘embora’:

Cõ quanto venho bem desejoso de Repousar, por que desejo mays


todos os meyos para a saude e cõt$!tam$!to de sua alteza, nã me pessara
de acõpanhar sua alteza $! alg"!a mays larga jornada... (CIL, XII, l. 06-
9).

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

o que comprova datar do séc. XVI o seu emprego como item conjuncional
concessivo.
Percebe-se que, no exemplo acima, o item cõ quanto é empregado
com o verbo ainda no indicativo. O emprego do subjuntivo parece ter sido
posterior.

3.8 Conforme, começa a aparecer como locução prepositiva, seguida


da preposição a e apresentando as variantes gráficas: cõforme a, confforme
a e conforme a:

... e elle me tinha escrito que tudo partiquara cõvosquo, senhor, e


me tinha avisado cõforme a vossa carta; e asi se fara pois e cõforme
ao que se deve fazer. (CT, CXXXIV, l. 05-7).

Muyto vos encomendo que, confforme ao que se deve esperar de


vossa prudentia e de quem vos soeys, asy vos ajaes no sentimento
d’este caso, posto que seja cousa tam difficil de fazer. (CR, LXV, l.
08-11).

E trabalhay quanto poderdes por que vos Responsa conforme ao


que peço. (CDJIII, VI, l. 233-4).

Não ocorre, nos textos do séc. XVI consultados, como conjunção, o


que indica ter se gramaticalizado no final desse século ou em época poste-
rior.

3.9 Ao lado das conjunções conclusivas logo e portanto são empre-


gados itens que mais tarde viriam também a ser conjunções e a expressar
idêntica relação:

3.9.1 per conseguinte, hoje por conseguinte, como reforço adver-


bial, com o valor semântico de ‘em, conseqüência’, ‘conseqüentemente’:

... Santo Tomás, diz < S. Tho. II. II q. c. VI ar. II >: Pai – Vergonha é
um temor de torpeza reprensível, que principalmente ólha ao vitu-
pério e, per conseguinte, à culpa, e isto em duas maneiras:
çe[s]sando ou encobrindo. (DVV, p. 415, l. 11-4).

3.9.2 por isso, que ocorre nas formas por isso ~ por esto ~ por
esso, desde o séc. XIII, também como reforço adverbial ou encadeador da
narrativa:

E por esso lhe semelhava que se nom ouvesse a sua vontade, que
morreria. (DEM, Cap. CX, l. 28-9).

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
[Por] esto no me chal de atendermos u"! pouco, ca bem sei verda-
deiramente que nossa festa nom é ora sem ventura. (DEM, Cap.
VIII, l. 35-7).

... e por isso nã digo mais senã que praza a Deus que seja verdade
o que se por aqui afirma da yda de sua alteza pera la. (CT, CXXXV, l.
05-7).

Pode-se, pois, supor que, nesse mesmo século, ou no início do séc.


XVII tenha ocorrido a passagem dos dois advérbios a conjunções conclusi-
vas.

3.10 Embora aparece como advérbio, nas Cartas do Infante Luis:

Ela sera embora, e emtã vos dyrey o mays que nesta fyca por dezer,
por m’o tempo nã dar lugar a mays. (CIL, I, l. 08-9).

Dom Amtonyo amigo. Qua me derã duas cartas vossas e, qyerendovos


Responder a ellas por este cooreo, esperando que o secretaryo me
fyzesse saber sua partyda a t$!po que podesse mylhor Responder me
mãdou dezer agora às dez da noyte, estãdo na cama, quéste parterya
esta noyte, e por ysso nã vos dygo mays, senã que me pesou déstardes
mal semtydo e mays en tal t$!po, porque sempre me pareceo que
vossa v1!da podya aproveytar. Ela sera embora, e então vos dyrey o
mays que nesta fyca por dizer, por m’o tempo nã dar lugar a mays...
(CIDL, no 1, l. 08-15).

o que indica ter a gramaticalização do item ocorrido em época posterior.

3.11 Primeiro que, conjunção temporal, é empregada por João de


Barros, uma única vez, no DVV:

E nam te pareça, depois que máis idade teveres pera julgar, ô que
óra disse, que usei o modo dos médicos que preambulam cousas
primeiro que dem suas mézinhas aos enfermos pera lhe[s] ser doçe
e suave ô que, no seu gosto, é azedo e àspero. (DVV, p. 433, l. 06-
10).

Essa conjunção não é citada pelos gramáticos contemporâneos, mas é


bastente empregada no português falado do Brasil, especialmente no re-
gistro coloquial, em frases do tipo:

Vou viajar primeiro que você.

3.12 Ora, advérbio, começa a ser empregado repetido, constituindo a


correlação coordenativa alternativa:

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Ora... ora

Per semelhante módo os pronomes e partiçipios que temos se ajun-


tam com os nomes sustantivos, ainda que na órdem de preçe derem
àçerca de nós tem deferença, cá o nome ajetivo óra se antepõe,
como os bons hómens ora se pospõe, como os hómens bons. (CLP,
l. 1766-8)

3.13 Canto variante gráfica de quanto ocorre associada ao advérbio


mais e correlacionada a nã (não) uma única vez, na carta CLVIII, de
Theodosius:

Nã há glutio omrrado, canto mais christão sesudo, que nã simta


mais a culpa que ho castigo. (l. 26-7).

Apesar de não constar dos elencos de conjunções apresentados pelos


gramáticos contemporâneos, essa correlação é bastante empregada no
português contemporâneo, na língua falada, em frases do tipo:

Não gosto de sair de dia, quanto mais de noite.

4 Itens conjuncionais que só ocorreram em textos do


séc. XVI
4.1 Encontra-se uma única vez nas CM, especificamente na carta nº
CLXXI, de Frei Duarte, a conjunção final a que:

Porem cõsolo me cõ a firmeza d’ela, e esperança que tenho de vida


que Nosso Senhor pera seu serviço me dara, e que o tipo e merces
que vosa altereza me fara darão ocasião a que a declare. (CT, CLXXI,
l. 17-20).

4.2 O substantivo caso aparece, em um documento do séc. XVI, na


CT, CXIX, associado à conjunção que constituindo a conjunção
subordinativa condicional caso que a qual, segundo Said Ali (1921: 219),
é uma forma reduzida de sendo caso que:

E caso que estas palavras cõ as obras, de que outros podem dar


testemunho, mostrem aver em m$ a obidiencia que digo, todavia
não me acabo de satisfazer, por que mayor he e muito mays cont$!
em sy do que posso escrever. (CM, CLXXI, l. 10-5).

No português contemporâneo a conjunção caso que reduziu-se a caso.

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Esse item conjuncional ocorre também uma única vez, nas CJ, especi-
ficamente na carta CXIX, sob a forma em tal caso que, em que a palavra
caso vem precedida de um determinante, o que parece demonstrar que
esse item conjuncional ainda não estava devidamente gramaticalizado.

E em tal caso que a terça fiqua à duquesa, tome sse $! cousa junta e
que Renda, assy como em Carnelhaã, se couber. (CJ, CXIX, l. 77-8).

Algumas correlações foram também encontradas, unicamente, em tex-


tos do século em estudo:

4.3 muito... que ‘tão... que’

que ocorre apenas nas CT:

Depois de Luis Afõso partido, esteve o duque muito mal que me


pareceo que esta noirte acabasse. (CT,CXXXII, l. 03-4).

Essa correlação parece ter tido um emprego limitado na língua. Pode-


se admitir que tenha, no séc. XVI, coocorrido com a correlação ‘tão... que’
de idêntico teor semântico e que, no final desse século, tenha caído em
desuso. Pode-se ainda supor tratar-se de uma idiossincrasia do autor aci-
ma citado.

4.4 mais... quanto mais

Ocorre também uma única vez na carta CII de D. Jayme, duque de


Bragança, estabelecendo uma relação de proporção:

E pouco tempo abastaraa pera me S.A. ouvir, que nom quero mais
que dos negocios; escusado tenho de cuydar mais, quanto mays
falhar. ( l. 07-9 )

Nota-se que, no exemplo acima, o mais ocorre numa sentença de


sentido negativo, o que parece explicar a forma dessa correlação no portu-
guês contemporâneo: não... quanto mais.

4.5 Nas Décadas da Ásia, uma única vez, encontra-se a correlação


adversativa mais... que, também não detectada no português arcaico:

... e %! nã fazia mais cõta q!! de cõprar e v$!der e tornasse a sua


natureza. (DA, cap. III, l. 86-7).

4.6 Aparece a correlação de valor semântico contrajuntivo nam... que


‘não... mas’, ‘não... senão’:

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

E assi este tel como outras vergas e pontos que tem a nóssa escritu-
ra, prinçipalmente ôs da lêtera tiráda, que máis se pódem chamar
atálhos dos escrivães, por nam gastárem tempo, e papél que [por]
outra alg!a neçessidade. (GLP, l. 1990-3).

4.7 Ocorre ainda a correlação tanto... como se em que o segundo


termo é a conjunção comparativa hipotética:

E com ysto soo de ha sua alteza querer ver toda, me averey agora
por satisfeito tanto como se me visse agora sem dor de cabeça. (CT,
LXXXV, l. 15-7).

5 Itens conjuncionais que, aparentemente já em desuso,


voltam a ocorrer no séc. XVI
5.1 A correlação nom... senon ~ nom... senam, detectada apenas
em um texto do século XIII, volta a ocorrer, sob a forma não... senão,
apresentando também outras variantes, como foi visto anteriormente. O
fato de não ter sido encontrada em textos dos séculos XIV e XV permite
supor que, conservada, inicialmente, apenas como um arcaísmo, essa cor-
relação tenha tido, a partir dos séc. XVI, o seu emprego generalizado.

... e tendo-se-lhe concedido tudo o que nos limites da justiça era


possível não lhes fica que pretender senão o injusto. (CVM, LXXIV,
l. 194-6).

5.2 Volta também a ocorrer a forma ante estabelecendo a mesma rela-


ção de contrajunção, anteriormente só documentada em textos do séc. XIII.

... e meu filho nõ perde em dar-lho, ante ganha e ffaz virtude, e


minha b$!çam ganha. (CJ, XIX, l. 199-200).

Essa forma é também empregada no português falado contemporâ-


neo, podendo, por vezes, ser interpretada como uma conjunção explicativa,
equivalente a ‘pois’:

Todos, na escola, eram rigorosos, mas ele, não, antes , era


comprrensivo e amável.

Outra possibilidade de interpretação é admitir, para o antes, o senti-


do de ‘em lugar disso’ Nesse caso, no exemplo acima, estaria sendo em-
pregado para substituir a oração ‘em lugar de ser rigoroso:

Todos, na escola, eram rigorosos, mas ele, não (era). Em lugar de


ser rigoroso, era compreensivo e amável.

Português 500.p65 184 22/7/2005, 14:55


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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
A contrajunção temporal ante que, entretanto, já empregada desde o
séc. XIII continua a ocorrer normalmente no português contemporâneo.

Resumindo, pode-se afirmar que, no que se refere ao emprego de con-


junções, caracteriza, de um modo geral, o português do séc. XVI:

1) o raro uso do ca;


2) a ausência de pois no sentido temporal etimológico e o seu
emprego como item conjuncional explicativo;
3) o emprego de pero e porem como conectivos contrajuntivos;
4) a não ocorrência das conjunções mas pero, ergo, macar que,
que (condicional, modal, temporal, final), fora se, fora que, en /
de/, per guisa que, segundo que, segundo como, almeos que,
entre que, cada que, ao tempo que, sol que, e das correlações
tãben... como, ante... que, quantos... que, segundo como... assi,
assi como... bem assi, detectadas em textos de séculos anteriores,
o que ratifica a afirmação de que esses itens conjuncionais caíram
em desuso nos séculos XIV ou XV (Barreto, 1992);
5) o aparecimento das conjunções: somente, contudo, de modo
que, de feição que, já que, logo, caso que, a que, primeiro que;
6) o emprego de algumas novas correlações: muito... que, mais...
que e non... que (contrajuntivas), mais... quanto mais (proporcio-
nal), tanto... como se (comparativa), não... quanto mais (aditiva);
7) o aparecimento das conjunções como e segundo, para estabe-
lecer a relação de conformidade, antes só expressa através de corre-
lações;
8) o emprego das conjunções por quanto, cõ quanto e e!! quanto,
nas formas ainda não-gramaticalizadas;
9) o aparecimento de itens adverbiais que, mais tarde, seriam con-
junções: por isso, por conseguinte, embora;

As conjunções empregadas no séc. XVI seriam, pois, as especificadas a


seguir:

I Coordenativas:

Aditivas – e ~ y ~ he, nem ~ neem ~ n$!, que

Adversativas – mas, porém ~ por$!, peró, que = senam, senam ~ se


nam ~ senõ ~ senã ~ senom, cõ tudo ~ com tudo ~ contudo ~ con tudo,
ante ~ antes, toda via ~ todavya ~ todavia.

Alternativas – ou, e = ou

Conclusivas – logo, por tanto ~ portamto ~ portanto, por isso ~


por isso, por conseguinte

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Explicativas – peró, peró que, porém, ca, pois ~ poys, que

II Subordinativas

Causais – perque ~ porque ~ por que, posto que, pois ~ poys, dado
que, ca, como, que, como que, ya que ~ já que, uma vez que, por quanto

Concessivas – ainda que ~ aynda que ~ a$da que ~ imda que ~ 3!da
que ~ aimda que, peró que, dado que, posto que, que, mais que, cõ quan-
to ~ com quanta ~ com quanto, por quamta ~ por quanto

Condicionais – se, senõ ~ senã ~ senãa ~ senão, caso que

Conformativas – segundo ~ seg! ~ seg!do, como , cõforme ~


confforme ~ comforme

Comparativas – como, como se ~ como que, assi como

Consecutivas – assi que, se maneira que

Finais – pera que ~ para que, por que ~ porque ~ per que

Modais – como, assi como ~ asy como ~ asi como, de maneira que,
que, de modo que, de feição que

Temporais - $! quanto ~ em quanto ~ $!" quãto ~ em quãto ~ en-


quanto, quando ~ quãdo ~ cando, depois que ~ depoys que ~ despois
que, tanto que ~ tãto que ~ tamto que, primeiro que ~ prymeiro que,
enquanto ~ em quanto ~ $! quanto, em quãto ~ $! quãto, té que ~ até que
~ ata que ~ atee que, ante que ~ ãte que ~ antes que ~ amtes que

Integrantes – que, se

III Correlações conjuncionais

Coordenativas:

Aditivas – nam... mas ~ nam somente ~ como ~ nam somente...


mas ~ nam somente... mas ainda ~ nã somente... mas ~ nam somente...
mas aynda ~ nam... mas ~ não... mas ~ não... mas antes

Alternativas – ou... ou, ora... ora, quer... quer, nem... nem ~ n$!... n$!
~ nem... n$!, mais... que ~ mais... quanto mais

Português 500.p65 186 22/7/2005, 14:55


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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Adversativas – nõ... senõ ~ nã... senã, nã... que, all... senom

Subordinativas:

Concessivas – por mais... que

Comparativas – mais... que ~ mais que ~ mais... de que ~ mais do


que ~ mays... que ~ mais ca, maior... que ~ maior... do que ~ moor...
que, menos... que ~ menos de que ~ menos do que ~ menos... do que,
assi... como ~ como... assi ~ bem como... assi ~ assy... como ~ asy como,
tanto... como ~ tanto como ~ tam... como ~ tã... como, milhor... que ~
melhor... que ~ mylhor do que ~ tanto como ~ tanto como ~ tam como
~ tãto... como ~ tã... como, tanto... quanto ~ tam... quãto ~ quãto...
tãto, tal... como

Consecutivas – tam... que ~ tanto... que ~ tanto... qua ~ tã... que,


ante... que, assi... que ~ assy... que, nam... que, tanto... que ~ tanto que
~ tamto... que ~ tam... que ~ tã... que ~ tão... que, mais... que, tama-
nho... que ~ tamanho que, tal... que ~ (tal)... que ~ tall... que, melhor...
que, muito... que

Modais – assi como... assi ~ assi... assi

Proporcionais – quanto... tanto ~ tanto quanto, quanto mais... tan-


to mais ~ quãto mays... tanto... mays ~ quãto mays... tãto mays, quãto
mays... tanto menos

Como se pode observar, o processo de desaparecimento e de apareci-


mento de itens ocorre continuamente na classe das conjunções a qual não
deve ser considerada uma classe de inventário fechado, mas uma classe
produtiva, diferente, portanto, dos chamados “instrumentos gramaticais”.
Analisada a constituição mórfica das conjunções detectadas, especifi-
camente, em corpus do séc. XVI, verificou-se terem sido conservados mui-
tos dos processos de formação de itens conjuncionais observados no
português arcaico; alguns processos, entretanto, não mais se verificaram,
enquanto outros surgiram, o que se pode concluir observando a fórmula
geral estabelecida por Barreto (1992), para os itens conjuncionais do por-
tuguês arcaico, e a fórmula5 ora estabelecida, que apresenta os processos
de formação de itens conjuncionais no séc. XVI:

Essas diferentes possibilidades de formação de itens conjuncionais


no português do séc. XVI podem ser assim ilustradas:

Português 500.p65 187 22/7/2005, 14:55


188
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Português Arcaico
N
Pron
Num Art
V N
Adv Pron
Conj V
[Conj + Pron]
Conj → Adv (Conj)
Prep Prep
[Prep + Adv] [Prep + Pron]
[Prep + Pron] [Prep + V]
[Prep + Prep]
[Prep + Art]

Século
Século XVIXVI

Art
N N
Pron Pron
Conj → V Adv
Adv Prep (N)(V)(Conj)
Prep Conj
Conj V
[Prep + Prep] [Prep + Pron]
[Prep + Pron]
[Prep + N]

1. Art + N + Conj.
uma vez que
2. N + Conj.
caso que
3. [Pron + N]
todavia
4. Pron. + Conj.
cada que
tanto que
5. Pron. + N + Conj.
cada vez que
6. V + Conj.
dado que
posto que
salvo se
7. Adv.
mas < mais < magis
somente, logo, antes, ora, pois < post

Português 500.p65 188 22/7/2005, 14:55


189

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
8. Adv. + Conj.
assim que, assim como, ainda que, mais que, já que, primeiro que,
pois que, antes que, tanto que, até que
9. Conj.
e < et, nem < nec, se < si, ou < aut, ca < quia, quando < quando
que < que, como < quomodo
10.Conj. + Conj.
como se
como que
11. Prep.
segundo
conforme
12. Prep. + Conj.
até que, porque, para que, a que, salvo que
13. Prep. + Pron.
cõ tudo, por quanto, cõ quanto, em quanto, entre tanto, por
tanto, por isso, em tanto
14. [Prep. + Pron.]
pero < per hoc
15. Prep. + N + Conj.
de maneira que
de modo que
16. [Prep. + Pron.] + Conj.
pero que
17. Prep. + Pron. + Conj.
em tanto que
com tanto que
18. Prep. + Pron. + N + Conj.
em tal caso que
19. [[Prep. + Prep.] + Conj.]
desque (des < de ex)
20. [Prep. + [Prep. + Pron.]]
empero
21. [Prep. + [Prep. + Pron.]] + Conj.
empero que
22. [Prep. + Conj.] + Conj.
depois que
23. Prep. + [Prep. + V]
por conseguinte
24. Prep. + Adv. + Conj.
por mais que

Uma vez ciente dos processos mórficos formadores dos itens


conjuncionais da língua portuguesa, no séc. XVI, é possível determinar
quais os processos mais produtivos. Como se pode verificar, são as prepo-

Português 500.p65 189 22/7/2005, 14:55


190
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

sições, por excelência, os principais elementos formadores de conjunções,


através de processos diversos:

Processos Nº de conjunções

Emprego isolado do item 2


Justaposição a pronomes 16
Justaposição a uma forma verbal 1
Justaposição a um anafórico 1
Associação ao que ou se 5
Em posição inicial, precedendo uma base nominal 2

Total 27

Depois das preposições, são os advérbios os elementos mais impor-


tantes para a constituição de itens conjuncionais, também através de pro-
cessos variados:

Processos Nº de conjunções

Emprego isolado do item 6


Associação ao que 8
Associação ao como 1
Em correlações 10

Total 25

Aos advérbios, seguem-se os verbos, quer associados à conjunção que,


quer em correlação e os nomes associados à conjunção que:

Processos Nº de conjunções

Verbos
Associação ao que 2
Em correlação 1

Total 3

Nomes
Associação ao que 1
Em sintagma e associado ao que 1
Justaposição dos termos de um SN 1

Total 3

Os pronomes também são elementos formadores de itens


conjuncionais: o pronome cada associado ao que constitui a conjunção
cada que (arc.); vários outros pronomes formam correlações, quer com
outros pronomes, quer com intensificadores:

Português 500.p65 190 22/7/2005, 14:55


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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Processos Nº de conjunções
Pronomes
Associação ao que 1
Em correlações 4

Total 5

Os adjetivos dão origem apenas a três correlações conjuncionais.


O elemento negativo faz parte da constituição de uma correlação
conjuncional:

Processos Nº de conjunções

Em correlações 1

Total 1
As conjunções provenientes de conjunções latinas, deram origem a
três itens conjuncionais, quando associadas a outras conjunções, e a duas
correlações, quando repetidas:6
Processos Nº de conjunções

Associação a outras conjunções 3


Em correlações 2

Total 5

Tomando por base o continuum apresentado por Hopper e Traugott


(1993:104) para a recategorização de categorias lexicais:

Categorias maiores> Categorias medianas> Categorias menores


[Nome, Verbo, Pronome] [Adjetivo, Advérbio] [Preposição, Conjunção]

e confrontando com os dados obtidos na presente pesquisa, chega-se à


conclusão de que existe uma hierarquia de seleção de categorias para a
formação dos itens conjuncionais. A categoria menor (preposição) e a me-
diana (advérbio) são mais selecionadas para a formação de itens
conjuncionais do que as categorias maiores (verbos, nomes e pronomes).

Categorias Nº de conjunções formadas

Menores
Preposição 27
Conjunção 8

Medianas
Advérbios 25
Adjetivos 3

Maiores
Nomes 3
Verbos 3
Pronomes 5

Português 500.p65 191 22/7/2005, 14:55


192
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Esse fato pode ser explicado, talvez, pelo caráter gramatical, mais ou
menos acentuado, das formas gramaticais. Formas mais gramaticais pare-
cem ter maior facilidade em se tornarem ainda mais gramaticalizadas, en-
quanto formas menos gramaticais parecem ser mais resistentes à
gramaticalização.
1
CVB – Cartas do Padre Antonio Vieira, escritas na Bahia.
2
CVM – Cartas do Padre Antonio Vieira, escritas no Maranhão.
3
SS = Sermão da Sexagésima, do Padre Antônio Vieira.
4
Nesse exemplo, pode-se também admitir que somente esteja empregado como valor adverbial,
estando elíptica a conjunção adversativa.
5
Nessa fórmula, as chaves indicam que um dos elementos por elas delimitados pode ser
utilizado na constituição das conjunções. Os parênteses, por sua vez, indicam que um dos
elementos neles contidos podem combinar-se com qualquer um dos elementos anteriores.
6
Conjunções provenientes de conjunções latinas : e < et, ca < quia, como < quomodo, nem
< nec, ou < aut, quando < quando, que < que, se < si.

Bibliografia
BARRETO, Therezinha Maria Mello. (1999). Gramaticalização das conjun-
ções na história do português. Salvador. UFBA. Tese de Doutoramento em
Letras. (digitado).
CASTILHO, Ataliba Teixeira de. (1997a). A gramaticalização. Estudos
Lingüísticos e Literários, 19: 25-64.
CASTILHO, Ataliba Teixeira de. (1997b). Língua falada e gramaticalização.
Filologia e Lingüística Portuguesa, 1: 107-20.
COROMINAS, Joan. (1991). Dicionário crítico etimológico de la lengua
castellana. Madrid: Gredos, 4 v.
CUNHA, Antônio Geraldo da. (1991). Dicionário etimológico Nova Fronteira
da Língua Portuguesa. 2ª. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
DIAS, Augusto Epiphanio da Silva. (1918). Syntaxe histórica portuguesa. 3.
ed. Lisboa: Livraria Clássica.
ERNOUT, A., MEILLET, A. (1951). Dictionnaire etymologique de la langue
latine. 3. ed. Paris: Klincksieck.
FARIA, Ernesto. (1958). Gramática superior da língua latina. Rio de Janeiro:
Acadêmica.
HEINE, Bernd, CLAUDI, Ulrike, HÜNNEMEYER, Frederike. (1991).
Grammaticalization: a conceptual framework. Chicago/London: The
University of Chicago Press.
HEINE, B. (ed.). Approaches to grammaticalization. Amsterdam/
Philadelphia: John Benjamins. v. 1. p. 17-36.
HOPPER, Paul e TRAUGOTT, Elizabeth. (1993). Grammaticalization.
Cambridge: University Press.
HUBER, Joseph. (1986). Gramática do português antigo. Trad. de Maria
Manuela Gouveia Delille. Lisboa: Calouste Gulbenkian.
MACHADO, José Pedro. (1967). Dicionário etimológico da língua portugue-
sa. 3. ed. Lisboa: Confluência, 3 v.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. (1984). Pero e porém: mudanças em curso
na fase arcaica da língua portuguesa. Boletim de Filologia, 29: 129-151.

Português 500.p65 192 22/7/2005, 14:55


193

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. (1989). Estruturas trecentistas: elementos
para uma gramática do português arcaico. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
Moeda.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. (1993). O português arcaico: morfologia e
sintaxe. São Paulo: Contexto.
NUNES, José Joaquim. (1956). Compêndio de gramática histórica portugue-
sa; fonética e morfologia. 5. ed. Lisboa: Clássica.
OLINDA, Sílvia Rita. (1991). Pois e ca: mudanças semânticas e sintáticas no
português arcaico. Salvador: UFBA. Dissertação de Mestrado. (mimeo).
SAID ALI, M. (1921). Lexeologia do portuguez histórico. São Paulo: Melhora-
mentos.
SAID ALI, M. (1964). Gramática histórica da língua portuguesa. 3. ed. melh.
e aum. São Paulo: Melhoramentos.

Corpus
BAIÃO, A. & CINTRA, L. F. L. (1974). Ásia de João de Barros. Lisboa: IN-CM.
BUESCU, Maria Leonor C. (1971). Gramática da lígua portuguesa, de João
de Barros, Cartinha, Diálogo em louvor da nossa linguagem, Diáologo da
viçiosa vergonha. Lisboa: IN-CM.
CORTESÃO, Jaime. (1967). A carta de Pero Vaz de Caminha. Lisboa:
Portugália (Obras completas de Jaime Cortesão, v. 2, XIII).
FORD, J. D. M. (1931). Cartas de D. João III. Cambridge: Harvard University
Press.
FORD, J. D. M. & MOFFAT, L. G. (1933). Cartas da corte de D. João III.
Cambridge: Harvard University Press.

Português 500.p65 193 22/7/2005, 14:55


Português 500.p65 194 22/7/2005, 14:55
Adverbiais portugueses
no século XVI

Sônia Bastos Borba Costa

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Português 500.p65 196 22/7/2005, 14:55
197

Introdução

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
C
om o intuito de contribuir para uma futura mais completa história da
língua portuguesa e consciente da escassa disponibilidade de dados
sistematizados, atinentes à sua morfossintaxe, concentramo-nos nos
últimos dois anos no estudo dos itens adverbiais simples e locucionais de
textos portugueses do século XVI, lidos na íntegra ou por amostragem, na
tentativa de compulsar e compreender sistematicidades possíveis na sua for-
mação, funcionamento e mudanças que tenham sofrido. A pesquisa conti-
nuou estudos antes desenvolvidos sobre textos dos séculos XIV, XV e XVI,1 e
concentrou-se em quatro tópicos, a saber: a) levantamento exaustivo dos
itens adverbiais; b) estabelecimento dos seus processos morfossintáticos de
formação; c) análise da produtividade desses processos; d) observação de
pontos de interesse para seu estudo, sob o enfoque da teoria da
Gramaticalização. No período foram produzidos três comunicações (Costa,
2000a, Costa, 2000b, Costa, 2001) apresentadas, respectivamente, nas XVII
e XVIII Jornadas de Estudos Lingüísticos do GELNE – 1999 e 2000 – e no II
Congresso Internacional da ABRALIN – 2001. A pesquisa motivou ainda a
tese de Doutorado, em elaboração, “Adverbiais espaciais e temporais do por-
tuguês: indícios diacrônicos de gramaticalização”.

1 O corpus
O corpus com que vimos trabalhando compõe-se dos seguintes textos:

1.Carta de Pero Vaz de Caminha (CPVC) – texto de 1500, na edição de


Sílvio Batista Pereira (1964): texto integral, perfazendo 919 linhas;
2.Cartas de D. João III (CDJ III) – as de números 1 a 22, escritas entre 1521
e 1531, na edição de J. D. M. Ford (1931); quota de 1.400 linhas;
3.Cartas da Corte de D. João III (CCDJ) – as de número 3, 8, 36, 37, 43, 47
(enviadas pelo Infante Luís); as de número 50 a 79 (enviadas pela rainha);

Português 500.p65 197 22/7/2005, 14:55


198
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

as de número 84, 85 e 86 (enviadas pelo Duque de Bragança); a de nú-


mero 162 (enviada pelo Infante Dom Fernando); as de número 163, 164,
165 (enviadas pelo Infante Henrique), textos escritos entre 1530 e 1562,
na edição de J. D. M. Ford e L. J. Moffat (1931); quota de aproximada-
mente 1.000 linhas;
4.Gramática da Língua Portuguesa (GJB) – texto publicado em 1540,
de autoria de João de Barros, na edição de Maria Leonor Buescu (1971)
– texto integral, perfazendo 1.993 linhas;
5.Diálogo em Louvor de Nossa Linguagem (DLNL) – texto publicado
em 1540, de autoria de João de Barros, na edição de Maria Leonor Buescu
(1971) – texto integral, perfazendo 437 linhas;
6.Diálogo da Viçiosa Vergonha (DVV) – texto publicado em 1540, de
autoria de João de Barros, na edição de Maria Leonor Buescu (1971) –
texto integral, perfazendo 1.266 linhas.

A eleição do século XVI como período de observação justifica-se pelas


características culturais de Portugal à época, destacadas por Mattos e Silva,
secundando Ivo Castro (Castro, 1996:137, apud Mattos e Silva, 1999:2-3):
a) a normativização lingüística progressiva; b) o português como “língua de
ensino” e não só apenas o latim; c) o aumento da população letrada; d) a
implementação da produção tipográfica, a qual envolve vários agentes (au-
tores, impressores, livreiros, censores, revisores, etc.); e) o português como
(meta)linguagem sobre si mesmo. Inclua-se também o fato de ser o portu-
guês do século XVI o ponto de partida do português no Brasil.
A eleição dos textos, além de submeter-se à confiabilidade do trata-
mento lingüístico das edições disponíveis, pretendeu diversificar a amostra,
incluindo textos narrativos, epistolares e metalingüísticos. A inclusão da CPVC
(texto do último ano do século XV) deveu-se, não só à relevância sócio-
história do texto, datado, localizado, testemunho vivo de característica tão
marcante da história portuguesa dos quinhentos – o confronto com um ou-
tro cultural – como à sua relevância lingüística: é uma carta-narrativa, escrita
à moda de diário em dias seqüenciados, no calor dos acontecimentos. É,
portanto, um texto rico na expressão das circunstâncias que cercam os atos
de fala ou que delimitam o âmbito das predicações, apresentando, devido
ao apuro nos detalhes, demonstrado pelo seu autor, ampla variedade de
noções normalmente expressas por itens adverbiais. Tomamo-lo, então, como
exemplar do estágio inicial da língua portuguesa do século XVI.

2 Os conceitos de advérbio e locução adverbial


A primeira questão que se pôs à análise foi o estabelecimento de cri-
térios para o isolamento de itens, em síntese, a assunção de uma
conceituação de advérbios. Julgamos que nosso entendimento da classe
dos advérbios pode ser resumido nos seguintes pontos:

Português 500.p65 198 22/7/2005, 14:55


199

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
a) sintaticamente, são satélites de um elemento sintático, intra ou
extra-sentencial, são intransitivos e bastante deslocáveis na sentença;
b) morficamente, são, tipicamente, invariáveis e podem ser simples,
locucionais, derivados e compostos;
c) semanticamente, podem ser modificadores ou não do elemento
que satelizam.

Concentrando-nos na sintaxe, entendemos que o advérbio é palavra


periférica, ou seja, é satélite de um elemento sintático (seu escopo) e ad-
mitimos que essa é a única característica sintática identificadora dos advér-
bios, visto que essa classe parece atualizar diversificados conteúdos que
não estão veiculados pelos elemen-
tos sintático-semânticos considera-
dos essenciais, como: morfemas
derivacionais, o fenômeno da
concordância, a ordem sentencial,
relações de transitividade ou preen-
chimento de posições argumentais.
Utilizamos a denominação
adverbiais para referir conjunta-
mente os tradicionalmente cha-
mados advérbios e as também
tradicionalmente chamadas locu-
ções adverbiais, renunciando a
separá-los em dois grupos, por não
nos parecerem viáveis critérios que
distingam, seguramente, elementos
considerados autônomos, como,
por exemplo, devagar, acima e de-
baixo, de elementos considerados
locucionais, como, por exemplo, de
fora, em breve, em cima. Assim, os
dois tipos serão aqui denominados
itens adverbiais. Distinguimos
itens adverbiais (simples e locu-
cionais) de itens conjuncionais e Reprodução do fólio 28r da Grammatica de
preposicionais (simples e locu- João de Barros
cionais), pela natureza não-juntiva
dos adverbiais face ao caráter juntivo, quer envolvendo sentenças, quer
sintagmas, característico dos dois últimos.
A segunda questão que se pôs foi a precisa caracterização de seqüên-
cias constituídas por SPs ou SNs como locuções adverbiais (para nós, se-
qüências em processo de gramaticalização), distintas de SPs ou SNs que
preenchem funções típicas de advérbios, mas não compõem o elenco das
formas de adverbiais já consolidadas pelo uso, disponíveis ao falante. Em

Português 500.p65 199 22/7/2005, 14:55


200
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

trabalho de 1996 ( Mattos e Silva (org.), 1996: 205-207) apresentamos os


seguintes critérios de delimitação:

2.1 SPs com função adverbial (ex.: com fome)


a)Permitem intercalação entre dois elementos;
b)há ampla possibilidade de comutação do elemento nuclear, que
mantém seu significado literal básico;
c)se SPs iniciados pela mesma preposição e citados em seqüência,
dispensam a repetição da preposição que os inicia;
d)apresentam baixa ocorrência (freqüência).

2.2 Locuções adverbiais (ex.: em cima)


a)Não permitem intercalações;
b)há baixa possibilidade de comutação do elemento nuclear, que,
em geral, está afastado do seu significado literal;
c)se citados em seqüência, não dispensam a repetição de todos os
seus elementos constituintes, inclusive a preposição, no caso dos
SPs;
d)ocorrem com freqüência;
e)continuam sendo consideradas locuções contemporaneamente ou
são análogas a locuções ou advérbios atuais quanto à estrutura
morfossintática.

Esses critérios, nem sempre exaustivamente aplicáveis, foram estabe-


lecidos como instrumentos de análise, sobretudo mas não exclusivamen-
te, para tentar captar a modificação operada quando uma locução se cristaliza
em advérbio, por processo de reanálise, entendida como “ processo por
meio do qual os falantes mudam sua percepção de como os constituintes
de uma língua estão ordenados no eixo sintagmático” (Castilho, 1997:53).
Consideramos, assim, itens adverbiais locucionais aqueles que, por sua
freqüência e grau elevado de coalescência, constituem itens fixados no lé-
xico da língua (lexia), diferentemente de SNs ou SPs que formam conjun-
tos não sistemáticos. Para a seleção das preposições que introduzem esses
adverbiais locucionais (no caso de SPs), coerentemente com o que expuse-
mos acima, ativemo-nos preferencialmente, às preposições a, de, em, para/
pera, por/per, pelo seu maior grau de paradigmacidade, no sentido de
Lehmann (1982), a saber, a inclusão dos itens em questão em paradigmas,
que se caracterizam por freqüência de uso e coesão interna, refletida na
regularidade das distinções intraparadigmáticas, o que produz, a nosso
ver, um tipo de previsibilidade. Para ilustrar, observe-se o quadro abaixo,
em que preposições incorporam-se aos mesmos núcleos lexicais, forman-
do adverbiais reconhecíveis na oralidade sincrônica e expressando, numa
espécie de paradigma, embora por vezes defectivo, casos locativos e tem-
porais clássicos, como o ablativo (lugar de onde); o dativo ou alativo (lugar

Português 500.p65 200 22/7/2005, 14:55


201

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
para onde); o caso “via” – na denominação de Svorou (1993) – (lugar por
onde) e o tempo presente:

aonde - - -
donde daí dali dagora
- - - -
para onde para aí (praí) para ali (prali) para agora (pragora)
por onde (pronde) por aí (pelaí) por ali por agora
- acima abaixo
daqui de cima de baixo
- em cima ($!*cima) em baixo ($!*baixo)
para aqui para cima (pra cima) para baixo (pra baixo)
por aqui por cima por baixo

As preposições a e em, como se vê, são as responsáveis pelo maior


número de defecções. Isso se deve, no nosso entender, ao fato de que a vem
sendo preterida por p(a)ra e em parece representar redundância em relação
ao conteúdo semântico de muitos itens lexicais, sobretudo os que expres-
sam lugar e tempo, ocorrendo com maior freqüência em locuções formadas
com adjetivos, constituindo adverbiais “de modo” (em breve, em comum).

2.3 As locuções adverbiais descontínuas


Observação interessante deve-se fazer acerca das locuções adverbiais
descontínuas (ex.: não... mais). Assim estamos denominando itens adver-
biais locucionais que ocorrem intercalados por outro elemento, geralmen-
te um verbo. Incluímo-las entre os itens locucionais, porque são usadas
em conjunto e têm significado indivisível. Nos textos analisados, as princi-
pais são as seguintes (não registramos as variantes gráfico-fonéticas):

a)nom... já (CPVC);
b)nom... mais (CPVC, CDJ III, CCDJ, GJB);
c)nom... ainda (CPVC, CDJ III, CCDJ);
d)nunca... mais (CPVC).

Observamos que as quatros locuções permanecem em uso. Não... mais,


bastante usada no Brasil, é o antônimo de ainda em pares como:

(1) Ele ainda vem.


(2) Ele não vem mais.

Não... já é usado sobretudo em Portugal com o mesmo sentido de


não... mais, variando com já não:

(3) Ele não vem já / ele já não vem.

Não... ainda varia, no Brasil, com ainda não:

Português 500.p65 201 22/7/2005, 14:55


202
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

(4) Ele não veio ainda / ele ainda não veio.

Uma delas, portanto, mantém-se descontínua; duas têm variantes


contíguas, que ganham em coalescência e fixidez sintática (posição pré-
verbal), e a última das citadas é atualmente sempre contígua e pré-verbal.

(5) Ele nunca mais veio.

3 Os processos de formação
Feito o levantamento exaustivo das formas de adverbiais nos textos
indicados (foram encontrados 185 itens adverbiais, além daqueles forma-
dos pelo sufixo [-mente]), estabelecemos seus processos morfossintáticos
de constituição diacrônica, a partir de sua etimologia. Isolamos 31 proces-
sos, que apresentamos a seguir, acompanhados de alguns exemplos. A re-
lação completa das formas encontradas está exposta no item 6 deste
trabalho:

(1) ADV < N: logo, asinha


(2) ADV < V: perto
(3) ADV < ADJ: baixo, certo
(4) ADV < ADV: antes, cedo
(5) ADV < SN: agora, cada dia
(6) ADV < PREP + N: acima, depressa
(7) ADV < PREP + SN: às vezes, pelo contrário
(8) ADV < PREP + ADJ: debaixo, em geral
(9) ADV < PRON: de todo
(10) ADV < PREP + V: de feito
(11) ADV < PREP + ADV: aí, dagora, então
(12) ADV < PREP + PREP: atrás
(13) ADV < ADV + ADV: também, ainda não
(14) ADV < ADV ... ADV: não... mais, não... ainda
(15) ADV < REFORÇO + PRON: mesmo
(16) ADV < PRON + ADV: outrossim
(17) ADV < PRON + REFORÇO: isso mesmo
(18) ADV < ADV + REFORÇO: assim mesmo
(19) ADV < PRON + CONJ + PRON: pouco e poucos
(20) ADV < PREP + ADV + REFORÇO: entonces
(21) ADV < PREP + PREP + PREP: despois
(22) ADV < PREP + PREP+ ADV: por davãte
(23) ADV < PREP + ADV + ADV: per aqui adiante
(24) ADV < ADV + CONJ + ADV: mais e mais
(25) ADV < ADV + PREP + PRON: dhi a pouco
(26) ADV < ADV + SP: oje em dia
(27) ADV < PREP + N + PREP + N: depomta apomta
(28) ADV < PREP + SN + PREP +SN: a h"!a mãao pera outa.

Português 500.p65 202 22/7/2005, 14:55


203

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
(29) ADV < PREP + ADV + PREP + ADV: de pouco a mais
(30) ADV < ADV + ADV + CONJ + (ADV) + ADV: pouco mais ou
(pouco) menos
(31) ADV < ADJ + [-MENTE]: novamente, dereitamente.

Uma terceira questão que se pôs quando da análise diz respeito à


listagem e conceituação das classes das palavras que tomamos em consi-
deração quando analisamos a formação histórica dos itens adverbiais. Vis-
to que não oferecem novidades face à tradição, não discorremos sobre
nossa compreensão de nomes (N), adjetivos (ADJ), verbos (V), preposi-
ções (PREP) e conjunções (CONJ), mas apresentaremos pequena explana-
ção sobre determinantes (DET) e pronomes (PRON), considerando que já
discorremos sobre advérbios (ADV).
Trataremos como determinantes (classe não explicitada nos proces-
sos de formação, porque sempre incluída em SNs), aliás como certa tradi-
ção descritiva, mais recente que a gramática tradicional, os elementos que
têm sua distribuição mais natural como precedentes de nomes e que, em
geral, são variáveis, concordando em gênero e número com esses nomes.
Nos determinantes incluem-se, portanto, as seguintes classes da nomen-
clatura Gramatical Brasileira (NGB), representante atual brasileira da
taxionomia gramatical tradicional: os artigos, parte dos numerais, os pro-
nomes adjetivos e parte dos pronomes substantivos, Excluímos os nume-
rais da NGB que preenchem núcleo de SNs, como nos exemplos:

(6) A novena foi muito bonita.


(7) Maria ganhou uma dúzia de rosas.

Em que temos, a nosso ver, nomes; e incluímos os ditos pronomes


substantivos da NGB, em exemplos como:

(8) Você escolhe esta blusa, que eu escolho aquela.

visto que o elemento destacado é um determinante que precede núcleo


elíptico, entendimento, aliás, já explicitado por Pontes no seu clássico tra-
balho de 1978.
Tratamos como pronomes os elementos endofóricos ou exofóricos
que preenchem posição de núcleo de SNs e que rejeitam a co-ocorrência de
nomes.
Além disso, esclarecemos que, quando um processo de formação se
efetiva, introduzindo um novo item em uma das classes consideradas, esse
item é já classificado como elemento dessa classe para a descrição dos
processos de formação em que figure. Ou seja, o advérbio agora, formado
a partir do SN lat. hac hora (DET + N) é tratado como adverbial na descri-
ção do processo de formação do item dagora (PREP + ADV).

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204

4 A produtividade dos processos de formação


O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

4.1 Processos produtivos


Dos 31 processos formadores de itens adverbiais que foram detecta-
dos, 9 mostraram-se mais produtivos, ou porque são representados por
muitas formas nos vários textos, embora não se tenham acrescidos itens:

a) ADV < ADV (bem, hoje, pouco, sempre)

ou porque são representados por muitas formas nos textos e novas formas
vêm se acrescentando:

b)ADV < ADJ + MD [-mente] (primeiramente, compridamente, lar-


gamente)
c)ADV < SN (agora, talvez, outra vez)
d)ADV < ADJ (pior, melhor, baixo)
e)ADV < ADV + ADV (também, aqui)
f)ADV < PREP + ADV (dentro, de dentro, assim)
g)ADV < PREP + N (depressa, devagar, de cima)
h)ADV < PREP + ADJ (debaixo, de novo)
i)ADV < PREP + SN (pelo meudo, às vezes, embora)

Acerca dos processos produtivos de formação de itens adverbiais, ob-


servam-se alguns pontos de interesse: a classe dos nomes, quando isolada,
não é produtiva como classe matriz (cf. item 5.2); quando comparece nos
processos, acompanha-se de determinantes, conformando uma estrutura
de SN, ou de preposições, isoladas ou não, em estrutura de SP. A classe dos
advérbios, isolada, muito produtiva na passagem do latim ao português, já
em língua portuguesa comparece acompanhada de preposição ou de outro
advérbio (exs.: adiante, também, jamais). A classe dos adjetivos demons-
tra importância como matriz, quer isolada (exs.: alto, baixo); quer como
morfema lexical básico associado ao morfema derivacional –mente (este,
processo tão produtivo que nos permitimos não listar seus itens represen-
tantes); quer como advérbio homônimo, de forma “curta”; quer acompa-
nhada de preposição (exs.: abaixo, debaixo, decerto). A classe das
preposições, com avassaladora predominância de de, seguida de a e nunca
isolada, acompanha-se de advérbios, adjetivos, nomes, SNs e de elemen-
tos de sua própria classe (exs.: adiante, abaixo, através, acima, embora).
A única classe, portanto, que continua gerando advérbios, quando isolada,
é o adjetivo, quer criando advérbio homônimo, quer como item primitivo
gerando advérbio composto por sufixação.

Português 500.p65 204 22/7/2005, 14:55


205

4.2 Processos poucos produtivos

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Os demais 22 processos produziram poucas formas de adverbiais cons-
tantes dos textos analisados (cf. item 7):
Acerca dos processos pouco produtivos de formação de adverbiais, os
pontos de interesse parecem ser: as classes de verbos e pronomes perde-
ram sua força como matrizes geradoras. A classe dos advérbios, acompa-
nhada de preposições, de outros advérbios e de conjunções, já produziu
itens locucionais que se gramaticalizaram em itens adverbiais simples, (cf.
item 5.1, processo a), mas não mantém sua força geradora.

5 Indícios do processo de gramaticalização aplicáveis


aos adverbiais encontrados

5.1 A dessemantização de núcleos lexicais


Há casos de adverbiais, simples ou locucionais, cujos núcleos semân-
tico-sintáticos sofreram esvaziamento do seu significado referencial. Man-
tém-se o significante (por vezes com alterações morfo-fonéticas), mas com
o significado obscurecido ou tornado “inconsciente” por parte dos falantes
(exs. de forma atuais: logo, agora, talvez, deveras, acima, defronte, de-
vagar, através). Para ilustrar, observe-se o caso da forma novamente, que
sofre uma mudança semântica, visto que ocorre no corpus em dois senti-
dos correspondentes a “de modo novo, inaugural”, e como adverbial tem-
poral de freqüência, enquanto no presente ocorre apenas nesse segundo
sentido.

(9) Apresentou-lhe todalas cousas que pera ele criára as quáes Adam
conheçeo, e âs chamou per seu nome, que entám nòvamente pôs
(DLNL, p.394, ls. 6-7).
(10) Porque, se perguntáies a um hómem de oitenta anos pera que
novamente coméça fundár cásas de mil cãmaras e retretes, diz: Para
meus filhos (DVV, p. 441, ls. 8-10).

5.2 A fixação sintática


Este passo do processo de gramaticalização caracteriza a composição
das locuções e sua consolidação em itens adverbiais simples e é tão evi-
dente que dispensa exemplificação. A esse respeito é muito pertinente ve-
rificar a crescente coalescência e fixação pré-verbal das locuções
descontínuas ( cf. item 3.3).

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206

5.3 A recategorização morfossintática


O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

No percurso diacrônico, podemos visualizar caminhos de algumas for-


mas adverbiais:
5.3.1 Porém, embora, outrossim – essas formas, em avançado processo de
coalescência, atualmente conjunções, as duas primeiras, e marcador discursivo, a
terceira, ocorreram como adverbiais em exemplos como:

(11) E porém, porque a prática é contigo, e ordenada aôs de tua


idade... (DVV, p. 414, ls. 20-21).
(12) como dito he, vos vos poderes v1!r em bo4!a ora (CDJ III, c. 27,
l. 29).
(13) V1!de vos emborra c4! vosa copanhia (CDJ III, c. 2, ls. 4 – 5).
(14) ... como se por m1! $!* pesoa fosse feito. Outrosy que posam jurar
em minha alma que guardarey e comprirey... (CDJ III, c. 19, ls. 39-
41).

5.4 A recursividade
Nem sempre enfatizada como recurso atuante no processo de
gramaticalização, a recursividade dos processos de formação é registrada
em processos como os que se vêem abaixo:

a)i (ADV) – aí (PREP + ADV) – poraí (PREP + ADV)


b)aqui (PREP + ADV) – daqui (PREP + ADV)

A reutilização de um processo de formação num mesmo trajeto


diacrônico produz uma espécie de regularidade, de previsibilidade que,
parece-nos, deve ser tomada em conta em estudos de gramaticalização,
abordagem que pretende demonstrar alguns tipos de sistematicidades no
devir das línguas. Castilho (1997:39) denomina “regramaticalização” a
aplicação da recursividade, que produz reforços, e lembra o caso de lat.
mecum > port. ant. migo > port. at. comigo.

5.5 O estatuto mórfico do elemento inicial de locuções adverbiais


Referimo-nos ao elemento digamos, preposicional, que inicia a maior
parte das chamadas locuções adverbiais. Quando se analisam seqüências
como dali ou praqui, que estatuto mórfico deve-se atribuir à forma de
anterior preposição? Em elementos como donde, por onde, praí, pragora,
debaixo, em cima, que estatuto atribuir às formas de, por, pra, em? A
questão se coloca desde antes da aglutinação, ainda na locução: o elemen-
to preposicional que a inicia comporta-se como uma espécie de clítico,
pois que é um elemento não-acentuado que se incorpora à estrutura acentual
de palavra adjacente, formando com ela uma unidade acentual. A ele cabe,
apenas parcialmente, a definição de forma dependente, visto que é, virtu-

Português 500.p65 206 22/7/2005, 14:55


207

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
almente, uma forma presa, pois não se pode deslocar isolada da palavra
que lhe segue. Seriam clíticos? Castilho (1997:39) refere o percurso N>N
relacional > preposição secundária > preposição primária > clítico > afi-
xo, que poderia responder à nossa indagação. Ocorrida a afixação, esses
elementos tornam-se afixos de que tipo? Derivacionais? Observe-se que
não lhes falta a face semântica, visto que mantêm sentidos como origem,
percurso, direção, posição, ressalvada a forma de, que merece abordagem
específica, devido a sua ampla utilização e que teria atingido, talvez, etapa
de gramaticalização posterior a afixo, tornando-se apenas sílaba inicial de
novo morfema lexical básico.
Quanto à direção da fixação, dá-se na direção esquerda > direita, do
que resulta um prefixo. É interessante notar, contudo, que, numa forma
de preposição (desde), a afixação deu-se inicialmente na direção esquerda
> direita (DE + EX > des) e a seguir na direção direita > esquerda (DES +
DE > desde). Caso semelhante é o da forma contemporânea dende (DEN-
TRO + DE), em frases como:

(15) Ele está dende casa.

Diacronicamente resultante de anexação da esquerda para a direita


(DE + INTRO) apresenta agora outra anexação na direção inversa, como
também no exemplo, lembrado por Castilho (1997:38), por amor de >
prumode. Temos também o clássico caso dos advérbios em [-mente], nos
quais a afixação se deu na direção direita > esquerda. Se se considerar que
clíticos em geral se acoplam, em cada língua, numa dada direção, como se
devem categorizar esses elementos?
Lembramos que o possível estatuto de afixo derivacional só cabe para
as formas em que a face semântica não está obscurecida. Confrontem-se,
para esse efeito, as formações transparentes daqui e debaixo com as pos-
sivelmente transparentes devagar e depressa e as opacas como depois e
demais. Lembre-se a esse respeito a total opacidade para um falante con-
temporâneo do elemento inicial de formas como ali e então, nas quais
não mais se percebem as preposições latinas ad e in, correspondendo esse
caminho, da transparência à opacidade, ao gradativo processo de
gramaticalização, ou seja, quanto mais gramaticalizado mais opaco.

5.6 A unidirecionalidade do processo


Essa questão, no nosso entender, ainda tão pouco clara nos estudos
de gramaticalização, colocou-se, sobretudo, para os seguintes casos:
5.6.1 Aglutinação de sintagmas em itens adverbiais
Na diacronia, temos um exemplo como lat. hac hora > port. agora.
No presente temos neste instante > nestante. Trata-se de passagem de
forma dependente para o nível da morfologia, através do léxico? Devemos

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208
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

considerar o léxico como uma etapa do processo? Devemos ver aí um para-


lelo com processos de composição lexical? Se as ditas palavras compostas
são quase sempre formadas por aglutinação ou por justaposição de seg-
mentos de sintagmas ou de sintagmas inteiros, não teremos aí importante
etapa do processo de gramaticalização? Muitos adverbiais formaram-se por
processos paralelos: além do clássico exemplo dos advérbios em [-mente],
temos formas como talvez, todavia (advérbio, até o século XV), embora e
sequer (não atestado no corpus, mas identificável na atualidade), cujas
formações nos parecem semelhantes a palavras como segunda-feira ou
bem-te-vi. Alguns desses adverbiais prosseguiram no percurso de
gramaticalização, como os que são atualmente conjunções. Muito signifi-
cativa é a forma embora que, de sintagma preposicional de função adverbi-
al, fixou-se em locução, aglutinou-se em advérbio e atualmente é uma
conjunção, ainda que não prototípica. Lembramos que o único caso de uso
adverbial indiscutível dessa forma encontra-se hoje isolado em uma espé-
cie de locução verbal com os verbos de movimentos ir e vir, ocorrendo,
inclusive, uma espécie de composto por aglutinação, a ver:

(16) Vembora / mbora (vamos embora).


(17) Simbora (ir-se embora).

5.6.2 Advérbios e marcadores discursivos


Confrontando-se exemplos como:

(18) Eu cheguei em casa agora.


(19) Agora, tem sempre (...) numa família grande há sempre um
com a tarefa de supervisor (NVRC/SP- D2- 360: 176, apud Neves,
1996: 49).

Vê-se que a forma agora, vinda de um sintagma que se cristalizou em


advérbio tem sido usada também como marcador discursivo ou, como quer
Risso (1993:32-33) “seqüenciador discursivo”, que funciona como “admi-
nistração do tópico do discurso pelo falante”. Risso cita, entre outras, for-
mas que considera homônimos de advérbios e podem exercer função
semelhante (então, depois, aí, bem, enfim, finalmente) às quais acresce-
mos ainda e já.
Como aplicar a unidirecionalidade do processo de gramaticalização
nesses casos? Trata-se de recategorização morfossintática, da classe dos
advérbios para a classe dos marcadores discursivos? Em que os marcadores
discursivos se distinguem de conjunções?
Por oportuno, lembramos que essas formas funcionam nos discursos
como espécie de ordenadores, indicando manutenção do assunto abordado
(ainda); atingimento de um ponto previsível ou apresentação de um
contraponto (já) e mudança ou introdução de um ponto de vista (agora,
bem); como tratar a homonímia dessas formas sob o enfoque da

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209

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
gramaticalização? As formas estão na fronteira entre dois níveis? Quais? Sin-
taxe e discurso? Neste ponto, duas indagações se colocaram: a) como ter
acesso ao discurso de épocas pretéritas? Seria esse uso discursivo já antigo?
e b) como tratar o nível discursivo na linha unidirecional da gramaticalização?
As formas partem do discurso para a morfossintaxe ou o discurso é o ponto
final? Ou o ponto de retomada? Talvez quanto ao tratamento do nível
discursivo face à unidirecionalidade do processo de gramaticalização, deva-
mos lembrar Castilho (1997: 58) que “gostaria de insistir em que qualquer
item lexical contextualizado nos usos da língua preserva, ao mesmo tempo,
suas propriedades sintáticas, discursivas e semânticas, sem que precisemos
estabelecer correlações de precedência genética entre eles”.
5.6.3 Passagem de elemento sintático satélite para elemento central
Algumas formas como hoje, provindas de advérbio latino e, no pre-
sente, assim como no século XVI, um adverbial temporal, podem preen-
cher na atualidade posição de argumento verbal, o que para nós, as incluiria
na classe dos nomes ou pronomes, mais possivelmente nesta, pela sua
condição de não-flexionáveis. Vejam-se exemplos como:

(20) Hoje é o dia da festa.


(21) Aqui é muito bom.

A meu ver, existe homonímia entre duas formas, uma com uso sintáti-
co mais periférico e outra com uso mais central, em função do argumento
verbal. Caso semelhante flagramos em exemplos como:

(22) Ele é muito devagar.

em que uma forma, tradicionalmente identificada como advérbio, ocorre


em posição de adjetivo, quando o mais freqüente e amplamente documen-
tado na diacronia e na sincronia é que o adjetivo gere advérbios. Como
entender essas passagens a partir do pressuposto da unidirecionalidade de
processo de gramaticalização?
5.6.4 Processo sistemático ou aleatório?
Da nossa pesquisa, incipiente, sobretudo no que toca a investigação
de processos de gramaticalização, acreditamos poder depreender algumas
sistematizações e, para esse efeito, acreditamos ser muito importante a
consideração de processos recursivos, visto que a recursividade se nos afi-
gura como a reafirmação diacrônica de possível previsibilidade do proces-
so. É possível, contudo, que possamos encontrar maior ou menor grau de
sistematicidade, a depender do nível em que se inclui o seu resultado. Por
exemplo, se o processo promove o deslizamento entre classes de palavras,
incidindo portanto sobre o nível gramatical, pode atuar mais sistematica-
mente que quando aglutina locuções, um processo da área de formação de
léxico, este menos propenso à sistematicidade.

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210

6 Relação dos itens adverbiais encontrados no corpus


O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Listamos a seguir os 185 itens encontrados, separados pelos proces-


sos morfossintáticos de formação. Devido ao grande número de itens en-
contrados, não listamos aqueles formados pelos processos ADV < ADJ +
MD (processo nº 1). Procuramos listar os demais processos em ordem de-
crescente de produtividade:

2 ADV < PREP + ADV


· AINDA (CDJ III; CCDJ; GJB; DVV; DLNL) ~ ÃJMDA (CPVC) ~ AJNDA (CPVC) ~ AIMDA (CDJ
III, CCCDJ) ~ AYNDA (CDJ III) ~ INDA (CCDJ)
· ASSAZ (CPVC) ~ ASSÁZ (GJB) ~ ASAZ (CPVC; GJB; CDJ III; CCDJ) AÇAS (CCDJ)
· ALI (CCDJ; GJB; DLNL; DVV) ~ ALLI (CCDJ) ~ ALY (CPVC; CDJIII; CCDJ)
· ASSIM (DLNL; DVV) ~ ASSI (CCDJ; GJB; DVV; DLNL) ~ ASSY (CDJIII; CCDJ) ~ ASI (CCDJ)
~ ASY (CPVC; CDJIII; CCDJ)
· AÍ (DLNL; DVV) ~ AHY (CDJIII) ~ AHI (CCDJ) ~ AHII (CCDJ)
· ATE AGORA (CCDJ) ~ ATEEGORA (CCDJ) ~ ATEE AGORA (CPVC; CCDJ III; CCDJ) ~
ATEGORA (CDJ III; CCDJ) ~ ATAAGORA (CPVC) ~ ATEE AGUORA (CDJ III)
· ANTONTEM (GJB)
· ADIANTE (CDJ III; GJB; DLNL; DVV) ~ DIANTE (DVV)
· ATAA LA (CPVC)
· ATTAQUY (CPVC)
· ATEE ENTÃ (CDJ III) ~ ATEE ENTÃ (CDJIII)
· ATEE OGE (CDJ III)
· DANTES (CPVC) ~ D’AMTES (CDJ III)
· DIANTE (CPVC) ~ DIÃTE (CPVC) ~ DIAMTE (CPVC)
· DENTRO (CPVC) ~ DEMTRO (CPVC)
· DAQUY (CPVC) ~ D’AQUY (CDJ III; CCDJ)
· DALI (CDJ III; CCDJ; GJB) ~ DALY (CPVC)
· DESI (GJB; DVV)
· DAÍ (DLNL; DVV) ~ D’AHI (CCDJ)
· DE FORA (CDJ III)
· DAGORA (CPVC)
· DE LLA (CDJ III) ~ DELA (CPVC)
· DE PERTO (CPVC)
· DONTEM (CPVC)
· DE CAA (CDJ III; CCDJ)
· D’HY (CDJ III)
· ENTAM (CPVC; CDJ III; CCDJ) ~ ENTÃ (CPVC; CDJ III) ~ EMTAM (CPVC; CDJ III) ~ ETAM
(CDJ III) ~ ENTÁM (GJB; DLNL) ~ EMTÃ (CPVC)
· PERA LAA (CCDJ) ~ PERALA (CPVC)
· PERAALY (CPVC)
· PERAAQUEM (CPVC)
· PERA DETRAS (CPVC)
· PER FORA (CPVC)
· PERHY (CPVC)
· POR AQUI (CCDJ)~ PER AQUY (CPVC)
· POR ENTAM (CPVC) ~ POR EMTAM (CPVC)
· PERA AGORA (CCDJ)
· PERA QUA (CCDJ)
· POR CA (CCDJ)
· DE DENTRO (CPVC)

3 ADV < ADV


· AALEM (CPVC) ~ ALLEM (CCDJ)
· ANTES (CDJ III) ~ AMTES (CDJ III) ~ ANTE (CPVC; CCDJ; DVV) ~ AMTE (CPVC)

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211

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
· BEM (CPVC; CDJ III; CCDJ; DLNL; DVV) ~ BE+ (CDJ III; CCDJ) BEEM (CDJ III) BEE+ (CCDJ)
· CEDO (CPVC; CDJ III; CCDJ)
· QUASI (CDJ III; CCDJ) ~ CAISE (CDJ III) ~ CAYSE (CDJ III) ~ CASY (CPVC)
· FORA (CPVC; CDJIII; CCDJ) ~ FÓRA (GJB)
· HY (CPVC; CDJIII)~ Y (CDJIII) ~ I (GJB; DLNL; DVV)
· JÁ (GJB; DLNL; DVV) ~ JA (CPVC; CDJIII; CCDJ) ~ JAA (CDJIII; CCDJ)
· LÁ (GJB; DVV) ~ LA (CPVC; CDJIII; CCDJ; GJB) ~ LLA (CDJII; CCDJ) ~ LAA (CCDJ)
· MAIS (CPVC; CDJIII; CCDJ; GJB; DLNL; DVV) ~ MAJS (CPVC) ~ MAYS (CCDJ)~ MÁIS
(GJB; DLNL; DVV)
· MAL (CPVC; CDJIII; CCDJ) ~ MÁL (GJB; DLNL; DVV) ~ MALL (CDJIII; CCDJ)
· MUI (CDJIII; CCDJ; GJB; DLNL; DVV) ~ MUY (CPVC; CDJIII; CCDJ)
· MUITO (CPVC; CDJIII; CCDJ; GJB; DLNL; DVV) ~ MUYTO (CDJIII; CCDJ) ~ MOJTO (CPVC)
· MENOS (CDJIII; CCDJ; GJB; DLNL)
· NUNCA (CDJIII; CCDJ; GJB; DLNL; DVV) ~ NU+CA (CPVC; CDJIII; CCDJ)
· HOJE (DLNL) ~ OJE (CPVC; CDJIII; CCDJ) ~ OGE (CDJIII)
· POUCO (CPVC; CDJIII; CCDJ; GJB; DLNL; DVV)
· QUAM (CDJIII; CCDJ; GJB; DVV) ~ QUÃ (CDJIII; CCDJ) ~ CAM (CDJIII) ~ CÃ (CDJIII)
· SEMPRE (CDJIII; CCDJ; GJB; DVV) ~ SENPRE (CPVC) ~ SE+PRE (CCDJ)
· SI (DLNL)
· TÃO (CCDJ) ~ TAM (CPVC; CDJIII; CCDJ; GJB; DLNL; DVV) ~ TÃ (CPVC; CDJIII; CCDJ)
· TANTO (CPVC; CDJIII; CCDJ; DLNL; DVV) ~ TAMTO (CPVC) ~ TÃTO (CDJIII)
· TARDE (CPVC; CDJIII)
· NÃO (CDJIII; CCDJ) ~ NOM (CPVC; CDJIII; CCDJ; GJB) ~ NÕ (CPVC; CDJIII; CCDJ) ~
NAM (CDJIII; CCDJ; GJB; DLNL; DVV) ~ NÃ (CPVC; CDJIII; CCDJ)

4 ADV < PREP + N


· ACIMA (CDJ III; CCDJ) ~ AÇIMA (CDJ III; GJB) ~ ACYMA (CDJ III)
· APENAS (CCDJ)
· ACASO (GJB)
· ATRAVÉS (DVV)
· APREPOSITO (CPVC)
· A CABO (CCDJ)
· A GEITO (CCDJ)
· DE MANHAÃ (CPVC) ~ DEMANHAÃ (CPVC)
· DEPRESA (CDJ III)
· DEVAGÁR (DVV) ~ DE VAGAR (CPVC; CDJ III; CCDJ)
· DE FRECHA (CPVC)
· DE NOITE (GJB) ~ DE NOUTE (CPVC) ~ DENOUTE (CPVC)
· DE DIA (GJB)
· DE CIMA (DVV) ~ DE ÇIMA (GJB)
· EM CIMA (CPVC) ~ EM ÇIMA (GJB) ~ E+CIMA (CDJ III)
· EM PESSOA (CDJ III)
· EM PARTE (CDJ III)
· PER CIMA (CPVC) ~ PERCJMA (CPVC)
· PERA CJMA (CPVC) ~ PERACJMA (CPVC)
· PER FORÇA (CPVC)
· POR MERCE (CCDJ)
· PER RODEO (GJB; DLNL)
· PER VENTURA (DVV)
· APRESA (CDJ III)

5 ADV < PREP + SN


· ABOFFE (CCDJ)
· AAPRIMEIRA (CPVC)
· AATARDE (CPVC) ~ A TARDE (CCDJ)
· AO LONGO (CPVC)
· A DIÃTE (CDJ III) ~ AO DIANTE (CDJ III; GJB)
· AO MENOS (CDJ III) ~ AO MEENOS (CDJ III; GJB)
· ÀS DEREITAS (CCDJ)

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212
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

· ÀS VEZES (GJB; DLNL; DVV) ~ AS VEZES (CCDJ)


· AO CONTRÁRIO (GJB)
· AO PRESENTE (GJB; DLNL)
· ÀS VÉSSAS (GJB)
· À PRIMEIRA VISTA (DLNL)
· DA PRIMEIRA (CPVC) ~ DA PRIMª (CPVC)
· EM BOÕA ORA (CDJ III) ~ EMBORRA (CDJ III) ~ EMBORA (CCDJ)
· PELO MEUDO (CPVC; CDJ III) ~ PELO MYUDO (CDJ III)
· POLA MANHÃ (CPVC; CCDJ)
· PELO CONTRÁRIO (GJB)
· NEESTE DIA (CPVC)
· POR ALGU+AS VEZES (CCDJ)

6 ADV < PREP + ADJ


· ABAIXO (CCDJ)
· ATAA BAIXO (CPVC)
· DEBAIXO (CPVC) ~ DEBÁIXO (GJB)
· DE LOMGO (CPVC) ~ DELOMGO (CPVC)
· DE NOVO (CDJ III)
· DE SÚBITO (DVV)
· EM BREVE (CDJ III; CCDJ; DLNL)
· EM GROSO (CDJ III)
· EM ESPICIALL (CCDJ)
· EM GÉRAL (GJB)
· EM PARTICULÁR (GJB)
· EM COMUM (DVV)
· PERA BAIXO (CPVC)
· POR DERADEIRO (CDJ III) ~ PER DERRADEIRO (DLNL)
· EM CONTRAIRO (CDJ III) ~ EM CONTRÁIRO (GJB)

7 ADV < SN
· AGORA (CPVC; CDJ III; CCDJ) ~ AGUORA (CDJ III; CCDJ) ~ AGÓRA (GJB; DLNL; DVV)
· AS MAIS DAS VEZES (GJB) ~ AS MAIS VEZES (DLNL; DVV)
· CADA DIA (CDJ III)
· ESTE DIA (CPVC)
· ESTA NOUTE (CPVC)
· HUU+ POUCO (CPVC; CDJ III; CCDJ) ~ UM POUCO (DLNL)
· HUU+ PEDAÇO (CPVC; CCDJ)
· MUITAS VEZES (CCDJ; GJB; DLNL; DVV)
· OUTRA VEZ (CPVC; CCDJ) ~ OUTª VEZ (CPVC)
· OUTRO DIA (CCDJ) ~ O OUTRO DIA (DLNL; DVV)
· TÃ MALAUES (CPVC)

8 ADV < ADJ


· BAIXO (CPVC; CDJ III)
· BREVE (CDJ III)
· CERTO (CPVC; CDJ III; CCDJ) ~ ÇÉRTO (DLNL; DVV)
· LARGUO (CCDJ)
· MELHOR (CDJ III) ~ MELHÓR (DVV) ~ MILHOR (CPVC; CDJ III; CCDJ; GJB) ~ MILHOR
(CPVC) MILHÓR (GJB; DVV)
· PIOR (CVPC)
· PRIMEIRO (CPVC; CDJ III; CCDJ; GJB; DLNL) ~ PRIMº (CPVC)
· PRÓPRIO (DVV)
· RRIJO ( CPVC)
· SÓ (GJB) ~ SO (CCDJ) ~ SOO (CCDJ)

9 ADV < ADV + ADV


· AQUEM (CPVC)
· AQUI (CPVC; CCDJ; GJB; DLNL; DVV) ~ AQUY ( CPVC; CDJ III; CCDJ) ~ QUI (GJB; DLNL)

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213

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
· CA (CPVC; CDJ III) ~ CAA (CDJ III; CCDJ) ~ QUA (CCDJ)
· JÁ NAM (GJB) ~ NÕ JÃ (GJB)
· TAMBEM (CDJ III; CCDJ) ~ TAMBÉM (GJB; DLNL; DVV) ~ TAMBE+ (CDJ III; CCDJ) ~
TANBEEM (CDJ III) ~ TANBEM (CDJ III) ~ TANBE+ (CDJIII) ~ TÃBEM (CCDJ) ~ TÃBE+
(CCDJ) ~ TAM BEM (CPVC) ~ TAM BÉM (GJB)
· AINDA NAM (CDJ III; DVV) ~ AYNDA NÃ (CCDJ)
· NOM MAIS (CDJ III) ~ MAIS NOM (CPVC)

10 ADV < N
· ASINHA ( CCDJ) ~ ASSINHA (CCDJ)
· LOGO (CPVC; CDJ III; CCDJ) ~ LOGUO (CPVC; CDJ III; CCDJ) ~ LÓGO (GJB; DLNL; DVV)
· ONTEM (CPVC; CDJ III; GJB) ~ OMTEM (CPVC) ~ ONTE+ (CDJ III)
· ORA (CPVC; CDJ III; CCDJ; GJB) ~ ÓRA (GJB; DLNL; DVV)

11 ADV < PREP + PRON


· DE TODO (CPVC; CDJ III; CCDJ) ~ DETODO (CPVC)
· EM TUDO (CCDJ)
· PORÉN (DVV) ~ PORÉM (DVV)
· PER SI (GJB)

12 ADV < ADV ... ADV


· NOM... JÁ (CPVC)
· NÕ... AINDA (CDJ III) ~ NÕ... AYNDA (CCDJ) ~ NÕ... AJNDA (CPVC) ~ NÕ... AIMDA (CDJ
III) ~ NAM...AINDA (CCDJ) ~ NOM... AJNDA (CPVC)
· NÃO... MAIS (CDJ III) ~ NOM... MAJS (CPVC) ~ NÃ... MAIS (CCDJ) ~ NAM... MAIS (CDJ
III) ~ NAM... MÁIS (GJB; DVV) NOM... MAIS (CPVC; CDJ III) ~ NÕ...MAIS (CPVC)
· NUMCA... MAIS (CPVC)

13 ADV < PREP + N + PREP + N


· DEPOMTA APOMTA (CPVC)
· DE FUMDO ACJMA (CPVC)
· DE GRÁU EM GRÁU (DLNL)

14 ADV < PREP + PREP


· ATRÁS (GJB; DVV) ~ ATRAS (CDJ III)
· AVAMTE (CDJ III) ~ AVANTE (GJB; DLNL)
· DETRAS (CPVC)

15 ADV < PRON + ADV


· OUTROSY (CDJ III)
· QUANTO MAIS (CCDJ)

16 ADV < V
· PERTO (CPVC; CCDJ) ~ PRETO (CCDJ)

17 ADV < PREP + V


· DE FEITO (CDJ III) ~ DE FEYTO (CDJ III)

18 ADV < REFORÇO + PRON


· MEESMO (CPVC) ~ MESMO (CDJ III; GJB)

19 ADV < PRON + REFORÇO


· YSO MESMO (CDJ III)

20 ADV < ADV + REFORÇO


· ASY MESMO (CDJ III)

21 ADV < PRON + CONJ + PRON


· POUCOS E POUCOS (CPVC)

Português 500.p65 213 22/7/2005, 14:55


214
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

22 ADV < PREP + ADV + REFORÇO


· ENTONCES (CCDJ) ~ E+TONCES (CCDJ)

23 ADV < PREP + PREP + PREP


· DEPOIS (CPVC; CDJ III; CCDJ; GJB; DLNL) ~ DESPOIS (CVPC; CDJ III; CCDJ; DLNL)

24 ADV < PREP + PREP + ADV


· POR DAVÃTE (CDJ III)

25 ADV < PREP + ADV + ADV


· PER AQUI ADIANTE (DVV)

26 ADV < ADV + CONJ + ADV


· MAIS E MAIS (CPVC)

27 ADV < ADV + PREP + PRON


· DHI A POUCO (CPVC)

28 ADV < ADV + SP


· OJE EM DIA (CDJ III)

29 ADV < PREP + SN + PREP + SN


· DHU+A MÃAO PERA A OUTª (CPVC)

30 ADV < PREP + ADV + PREP + ADV


· DE POUCO A MAIS (DLNL)

31 ADV < ADV + ADV + CONJ + (ADV) + ADV


· POUCO MAIS OU (POUCO) MENOS (CPVC)

1
Projetos de pesquisa intitulados “A língua portuguesa do período arcaico para o moderno:
advérbios e locuções adverbiais” e “Aspectos morfossintáticos do português quinhentista:
advérbios e locuções adverbiais”, ambos integrados ao Programa para a História da Língua
Portuguesa (PROHPROR) nos períodos de 1995 – 1997 e 1997 – 1999, respectivamente.

Referências bibliográficas
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Gramática, Diálogo em louvor da nossa linguagem e Diálogo da viçiosa
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Jornada de Estudos Lingüísticos do Nordeste. Salvador, 3 a 6.09.2000.
(inédito).

Português 500.p65 214 22/7/2005, 14:55


215

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
COSTA, S. B. B. (2001). Adverbiais espaciais e temporais em Fernão Lopes.
Comunicação apresentada ao II Congresso Internacional da ABRALIN.
Fortaleza: 14 a 16.03.2001. (inédito).
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lingüístico de 1500. Salvador: EDUFBA.
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articulação do discurso no português culto falado. In: CASTILHO, A. de.
(Org.). Gramática do Português Falado: as abordagens, v III. Campinas: Ed.
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SVOROU, S. (1993). The grammar of space. Amsterdam/Philadelphia: John
Benjamin Publishing Co.

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Português 500.p65 216 22/7/2005, 14:55
Comparação entre algumas preposições
portuguesas documentadas no século
XVI e no século XIV

Rosauta Maria Galvão Fagundes Poggio

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219

1 Introdução

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
E
ste trabalho é parte de um projeto coletivo do Programa para a His-
tória da Língua Portuguesa (PROHPOR), intitulado “Português qui-
nhentista: estudos lingüísticos”, sob a coordenação da Profa. Dra. Rosa
Virgínia Mattos e Silva.
Os corpora básicos analisados constituem-se da versão mais antiga, em
português arcaico (século XIV), dos dois primeiros livros dos Diálogos de
São Gregório (D.S.G.) e de algumas obras de João de Barros (século XVI), a
saber: Gramática da língua portuguesa e ortografia, Diálogo em louvor da
nossa linguagem e Diálogo da viçiosa vergonha (J.B.), bem como sessenta
e uma das Cartas de D. João III (Cartas) referentes ao período de 1523 a
1533, contemporâneas da obra de João de Barros, com o objetivo de estudar
o uso das preposições do século XIV ao XVI.
Sabe-se que as preposições já existiam no sistema latino, embora sen-
do pouco usadas no período clássico, uma vez que a relação entre vocábulos
era marcada, quase sempre, pelas flexões casuais. À medida que os casos
morfológicos foram desaparecendo, generalizou-se o emprego das preposi-
ções, o que se ampliou nas línguas românicas.
A heterogeneidade das preposições tem provocado uma série de discus-
sões entre os lingüistas, no que se refere à identificação de seu estatuto
categorial. Além do mais, existe a questão da expressão do caso pelas prepo-
sições, uma vez que, como já se observou, ao desaparecer o caso morfológico
latino, as preposições assumiram esse papel.
Nos estudos funcionalistas mais recentes, percebe-se um interesse cada
vez maior pela investigação histórica dos fatos lingüísticos.
Para se interpretar as mudanças, propõem-se explicações funcionais,
comunicativas e/ou cognitivas, postulando-se tendências naturais e não leis
rígidas. A sincronia e a diacronia não podem estar separadas. Para compre-
ender-se o processo de gramaticalização, torna-se fundamental a interação e
interdependência sincronia/diacronia, uma vez que se procura examinar a

Português 500.p65 219 22/7/2005, 14:55


220
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

origem das formas gramaticais, as trajetórias das mudanças dessas formas,


além do exame das mesmas como um fenômeno discursivo-pragmático.
Com efeito, para se investigar a mudança lingüística, intrínseca à
gramaticalização, devem-se estudar e comparar estágios lingüísticos dife-
rentes, empregando-se modelos e teorias desenvolvidos nas pesquisas
sincrônicas. Esses modelos deverão ser tratados a partir de dados históri-
cos e a gramaticalização será considerada como completa, quando houver
incorporado a mudança na gramática. Trata-se de uma abordagem
pancrônica do estudo da língua, onde se combinam a informação sincrônica
e diacrônica para se ter uma descrição mais densa, dispondo de compreen-
são mais consistente dos fenômenos pesquisados.
Segundo S. Svorou (1993: 62), olhar de perto a história das formas
gramaticais, especialmente os morfemas lingüísticos espaciais e seu de-
senvolvimento posterior, é necessário não só porque explica a grande quan-
tidade de variação, mas também porque reflete aspectos mais profundos
de interação social e aspectos da construção cognitiva dos seres humanos.
Os caminhos que os elementos gramaticais das línguas percorrem no tem-
po refletem as crenças e os processos de raciocínio da “mente coletiva” dos
grupos lingüísticos que as usam, como também os padrões de discurso
pertinentes às interações lingüísticas entre membros de um grupo. Quais-
quer semelhanças observadas na comparação dos percursos de mudança
de morfemas lingüísticos interlinguais, assinala a autora, refletiriam não
apenas a natureza de uma língua humana, nem somente a natureza de
uma cultura, mas a natureza da cognição humana, como se manifesta aci-
ma e além de línguas e culturas específicas.
Recentemente, muitos trabalhos têm mostrado o interesse dos estu-
diosos pelos processos através dos quais uma forma ou função se transfor-
ma em outra. Sabe-se que, durante muito tempo, uma estrutura pode
substituir completamente outra e que a nova e a antiga estruturas podem
coexistir, por um certo período de tempo. Algumas vezes, elas se encon-
tram em variação e essa variação é uma conseqüência necessária do aspec-
to gradual da mudança lingüística.
Conforme assinala A. de Castilho (1997), para estabelecer os estágios
de gramaticalização, o discurso foi considerado como ponto inicial desse
processo, estando o mesmo assim constituído:

– alterações gramaticais: sintaticização (recategorização,


categorização funcional e relações
intersentenciais); morfologização;
fonologização; e estágio zero;

– alterações semânticas: metáfora e metonímia.

Em termos diacrônicos, a teoria da gramaticalização, como foi desen-


volvida, nesses últimos anos, por inúmeros pesquisadores, pressupõe que

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221

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
as formas gramaticais originam-se e desenvolvem-se de material léxico,
atravessando vários estágios, durante os quais, elas perdem, progressiva-
mente, suas características lexicais e adquirem, simultaneamente, cada vez
mais, características gramaticais.
Das preposições examinadas nos Diálogos de São Gregório, na ver-
são portuguesa do século XIV, a mais antiga conhecida em português, fo-
ram encontradas, do ponto de vista da sua significação, desde formas
intensamente gramaticalizadas, como a e de, o que dificulta a análise se-
mântica desses elementos, até formas transparentes, como: ata/atees (‘li-
mite final de um movimento’), ante (‘situação anterior’), antre (‘situação
intermédia’), con (‘companhia’), contra (‘oposição’), depois/depos (‘si-
tuação posterior’), des (‘ponto de partida’), empós (‘situação posterior’),
en (‘localização’), per (‘percurso’), pera (‘percurso com direção defini-
da’), por (‘causa’), segundo (‘adequação’), sen (‘exclusão’), sô (‘situação
inferior’), sobre (‘situação superior’), tirado (‘exclusão parcial’) e locu-
ções prepositivas, como: a cabo de/ cabo de, a cima de, arredor de, de
antre, de cima de, dentro ao, dentro en, derredor de, en cima de, en
logo de, fora de, longe de, per cima de, por amor de e preto de/
apreto de.
Com o objetivo de dar continuidade à pesquisa, iniciada na tese de
Doutoramento (1999), sobre os processos de gramaticalização de preposi-
ções do latim para
o português arcai-
co, parte-se da aná-
lise das preposições
documentadas nas
obras de João de
Barros citadas, ini-
cialmente, e nas
Cartas de D. João
III, contemporâne-
as daquele autor,
estabelecendo-se
comparações com
esses elementos no
português do sécu-
lo XIV (Diálogos de
São Gregório), es-
Fragmento do fólio 29r da Grammatica de João de Barros
tudado anterior-
mente, na tese referida, que tem como corpus os dois primeiros livros dos
Diálogos de São Gregório e a sua versão em latim do século VI, a fim de
investigar mudanças que ocorreram com algumas preposições que intro-
duzem adjuntos adverbiais e complementos locativos de verbos circuns-
tanciais. Conseguiu-se um número significativo de segmentos para a

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222
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

realização deste trabalho: 2.298 segmentos de texto foram selecionados


dos Diálogos de São Gregório, 2.291 da obra de João de Barros e 3.235
das Cartas de D. João III.
No século XVI, João de Barros (1971: 347e 355) define a preposição
como uma parte da gramática que se põe entre as outras por ajuntamento
ou por composição. Além das preposições propriamente ditas, ele conside-
ra como preposições aquelas que são usadas como prefixos, no processo
de formação de palavras. Observa que esses elementos possuem figuras
singelas ou simples e dobradas ou compostas, salientando que essas últi-
mas são mais eficazes. Também trata da regência das preposições, focali-
zando o papel das mesmas na marcação dos casos, como: de e do para o
genitivo; a, ao e para para o dativo; a, ante, diante, antre, contra, per e
por para o acusativo; e com, em, no, na e sem para o ablativo.

2 Análise comparativa dos usos das preposições nos


séculos XIV e XVI
Ao estabelecer comparação entre os corpora dos dois séculos, obser-
va-se que as preposições podem ser agrupadas de formas diversas.

2.1 Preposições com formas e sentidos equivalentes


No primeiro grupo, há preposições que aparecem com formas e senti-
dos equivalentes, nos séculos XIV e XVI. É o caso, por exemplo, das prepo-
sições: ante, contra, de, des, em, segundo, sem e sobre, exemplificadas
a seguir:

ANTE: ‘espaço: diante de’

(1)[...] apanhou todolos pedaços da lampada que pôde apanhar e


pose-os todos ante o altar (D.S.G., 1, 14, 3).
(2)A epístola sinifica o ofiçio de Sam Joám, precursor de Cristo que
veo ante a sua fáce e a dizer: [...] (J.B., p. 268, l. 45).
(3)E como fordes ante elle, depois de lhe beixardes a mãao e lhe
dardes minha carta, [...] (Cartas, p. 7, l. 148).

CONTRA: ‘noção: oposição’

(4)E non te nembra que o profeta David, por hu! a s paravoas


mentideiras [...] contra o filho Jonata, deu sentença de noite con-
tra el (D.S.G., 1, 8, 5).
(5)[...] e diz-se contra o Aquilám pera evitár os máos espíritos e
imitar os bons, [...] (J.B., p. 284, l. 152).
(6)[...] pois craram$!te fora de toda ordem de justiça e tanto contra
toda Rezão de direyto e d’amizade se pasou (Cartas, p. 9, l. 241).

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
DE: ‘espaço: afastamento’
(7)[...] viinha cada ano do logar en que morava ao moesteiro de San
Beento (D.S.G., 2, 13, 2).
(8)E assi se árma com òrações e çerimónias divinas que diz e fáz do
prinçipio té o fim dela (J.B., p. 263, l. 22).
(9) [...] e esta naao que veo das Amtilhas, [...] (Cartas, p. 11, l. 285).

DES: ‘tempo: afastamento’

(10) Aqueste des sa mininice sempre ouve coraçon de velho (D.S.G.,


2, 1, 3).
(11) A quinta feira das Endoenças, des a quinta feira à missa, [...]
(J.B., p. 286, l. 183).

EM: ‘espaço: localização’

(12) Tu deves saber [...] que no moesteiro [...] faleceu o azeite ve-
lho (D.S.G., 1, 15, 3).
(13) [...] conversám de cinquenta e séte mil álmas na térra do Malabar
(J.B., p. 240, l. 31)
(14) [...] por graça de Deus Rey de Portugal e dos Alguarves d’aquem
e d’alem mar em Africa, [...] (Cartas, p. 6, l. 110).

SEGUNDO: ‘noção: adequação’

(15) E esto fazia cada dia segundo o custume que naquel tempo era
(D.S.G., 2, 23, 14).
(16) A lei de Cristo, segundo nóssa fé, é à que [h]á-de salvár a todos
(J.B., p.367, l.1431).
(17) [...] fazer sempre o que eu de cada h"! d’elles espero, cõmais
ou menos palavras segundo a calidade da pessoa que for (Cartas, p.
16, l. 490).

SEM: ‘noção: exclusão’

(18) [...] mostrou que o seu recebimento sen culpa non foi (D.S.G.,
1, 25, 21).
(19) [...] pareçe-nos que ficáva ésta sem fundamento, [...] (J.B., p.
292, l. 18).
(20) [...] ou que onde mais comv$!niete pareçer se faça, sem nenh"!ua
memorea do já julguado, [...] (Cartas, p. 10, l. 276).

SOBRE: ‘espaço: situação superior’

(21) Vai e deita desta agua beenta sobrelo corpo daquel que jaz
enfermo (D.S.G., 1, 28, 38).

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224
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

(22) Água benta que se aspérge sobre o povo é [...] (J.B., p. 265, l. 17).
(23) [...] e de feito faço, do oficio camareira moor da Rainha, minha
sobre todas muyto amada e preçada molher, [...] (Cartas, p. 4, l. 57).

A preposição des continuava em uso no século XVI, pois Duarte Nunes


de Leão, na Ortografia e origem da língua portuguesa, publicada nos
inícios do século XVII, corrige desdeque para desque (Leão 1983: 164).
Vale acrescentar que, entre as cartas examinadas, nas Cartas de D.
João III, não se encontra documentada a preposição des.

2.2 Preposições com formas equivalentes e novos sentidos no


século XVI
Algumas preposições apresentam formas equivalentes nos dois perío-
dos enfocados, porém, no século XVI, aparecem com novos sentidos. Ob-
serva-se, ainda, que, nesse último século, a obra de João de Barros
apresenta-se mais inovadora com relação às mudanças semânticas das pre-
posições. É o que ocorre com as preposições a, com, per e por.
Assim, a preposição a, nos séculos XIV e XVI, além de estar documen-
tada nos sentidos de “Espaço: direção, localização”, “Tempo: localização
pontual”, “Noções de: modo, fim, lugar abstrato”, aparece, no século XVI,
com o sentido de “Noção: causa”, como nos exemplos abaixo:

(24) E a ésta razám filosofál ajudam os médicos [...] (JB, p. 239, l.


10).
(25) [...] e se o quer veer por sy, o que lhe peço [...] que o faça e nõ
queira cometer a seu conselho; pois o elle há de entender milhor
que todos (Cartas, p. 26, l. 845).

Na obra de João de Barros, registra-se, ainda, como traço inovador do


sentido dessa preposição, não só em relação ao século XIV, mas também
em relação às Cartas de D. João III, a conotação de “Noção: meio”,
exemplificada a seguir:

(26) [...] como temos África e Ásia, à conquista das quáes nos máis
demos [...] (J.B., p. 401, l. 250).

Do mesmo modo, a preposição com, além de estar documentada nos


sentidos de “Espaço: companhia, oposição” e “Noção: modo, meio, instru-
mento e oposição”, aparece no século XVI com o sentido de “Tempo: adi-
ção”, como nos exemplos:

(27) O Natal, com três dias, jejuar e guardár (JB., p. 287, l. 216).
(28) [...] ecomemdovos muyto que ho mamdes fazer prestes, pera ir
nessa armada com a moor brevidade que for possivell (Cartas, p. 63,
l. 2.190).

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225

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Na obra de João de Barros, registra-se, ainda, o emprego da preposi-
ção com no sentido de “Noção: fim”, como no exemplo que se segue:

(29) Caridade com Deos e com o próximo (J.B., p. 260, l. 75).

A preposição per, além de estar registrada nos dois séculos citados


nos sentidos de “Espaço: percurso”, “Tempo: duração” e noções abstratas
de “modo, meio, instrumento e causa”, aparece no sentido de “Noção:
fim”, apenas na obra de João de Barros, como exemplificada a seguir:

(30) [...] nam sábem rezár "!a oraçám per éla, e pela tirada sem máis
correntes [...] (J.B., p. 419, l. 416).

Vale acrescentar que, apenas nas Cartas de D. João III, a preposição


per apresenta o sentido inovador de “Noção: assunto”, como se vê na
seguinte passagem:

(31) [...] porque o sprevo a Framdes ao feitor pello que toca á veemda
das especiarias, [...] (Cartas, p. 30, l. 1009).

E finalmente, a preposição por, que aparece nos dois séculos estuda-


dos com os sentidos de “Espaço: percurso” e noções abstratas de “fim,
instrumento, causa e modo”, apresenta, no século XVI, apenas na obra de
João de Barros, o sentido de “substituição ou permuta”, como no exemplo
abaixo:

(32) [...] dizemos fidálgo por filho de álgo, a mó de falár por a


módo de falár (J.B., p. 359, l. 1265).

2.3 Preposições que apresentam formas modernas no século XVI


Um terceiro grupo está constituído de preposições que, no século
XVI, apresentam formas modernas, embora ocorram variações entre a for-
ma antiga e a nova. São elas: depois, entre, até e após. Confiram-se os
exemplos a seguir:

DEPOIS

(33) [...] ca despolo apostolo San Pedro non ouvira que tal cousa
fosse feita (D.S.G., 2, 7, 7).
(34) Todo verbo que sinifica comprazer, obedeçer [...] quér depois
de si dativo [...] (J.B., p. 352, l. 1124).
(35) E posto que, aos Reys o que sempre deve de ser primçipall,
depois de Deus, he o que toqua a seu povoo, [...] (Cartas, p. 9, l.
233)

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226
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

ENTRE

Entre as formas desse grupo, nas Cartas de D. João III apenas, a


preposição entre encontra-se documentada na sua forma antiga antre, en-
quanto na obra de João de Barros aparecem as formas entre e antre, como
nos exemplos:

(36) [...] que leixou alguen antre tantos monges que o seguisse en
fazer vertudes e maravilhas assi como el fazia ? (D.S.G., 1,5, 22).
(37) Ésta dificuldáde máis é entre os Latinos e Gregos pola variaaçám
dos casos [...] (J.B., p. 314, l. 434).
(38) [...] mandou pasar carta de marqua, da qual nõ pode deixar de
seguyr antre nos e nosos vasallos o que diguo; (Cartas, p. 10, l. 264).

ATÉ

No que se refere à preposição até, que, no século XIV, aparece sob as


formas atee, ata e atees, no século XVI, encontra-se uma variação entre
até e té, sendo essa última a forma mais empregada por João de Barros.
Esse autor (1971: 358) defende o uso da forma té, considerando até como
um tipo de barbarismo que denomina próstesis e observa que ocorre esse
“vício”, quando se acrescenta alguma letra ou sílaba ao princípio de qual-
quer dicção, como acontece quando se diz até qui em lugar de té qui. Nas
Cartas de D. João III, documentam-se, além da forma ate, as formas te e
tee. Confira os exemplos:

(39) E viindo assi com grandes choros ata o logar hu jazia o corpo
do homen morto (D.S.G., 1, 31, 10).
(40) [...] ca viron h"!a carreira escontra ouriente e começava-se na
cela e estendia-se atee-no ceo (D.S.G., 2, 37, 8).
(41) E acreçentou daquele lugár laudamus te, até o fim déla (J.B.,
p. 267, l. 19).
(42) É tam grande que chega té o çéo (J.B., p. 367, l. 1436).
(43) [...] asy como vay decrarado no Regimento que apos esta lhe ira,
e ate o t$!po cõtido no dito Regimento, [...] (Cartas, p.73, l. 2.546).
(44) [...] e o dito Duarte Coelho ficara cõ a dita armada te o dito
tempo (Cartas, p. 74, l.2.566).
(45) [...] se, chegando o aviso antes do tempo que há d’andar na
costa, se partira lloguo pera as ditas Ilhas, ou se esperara tee os
ditos XV dias d’abryll, [...] (Cartas, p. 82, l. 2.853).

APÓS

A preposição após substitui a forma empós, documentada no século


XIV, uma vez que essa última não está registrada nas obras do século XVI.
Confiram-se os exemplos abaixo:

Português 500.p65 226 22/7/2005, 14:55


227

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
(46) [...] querendo tirar o pee empós si, empeçou-lhi o çapato en
h"!u paao da sebe e jouve assi (D.S.G., 1, 5, 36).
(47) E, a rogo de Sam Jerónimo, Damaso, Papa, instituiu que, após
os sálmos, se repetisse este glória patri [...] (J.B., p. 267, l. 7).
(48) [...] este coreo, a vos avysar que nam façaes neh"!ua cousa mais
no negocio atee chegar o outro meu Recado, que apos esta vos
mãdarey (Cartas, p. 41, l. 1380).

No século XVI, Duarte Nunes de Leão, na Ortografia e origem da


língua portuguesa, recomenda o uso de para em lugar de pera (Leão 1983:
164), o que comprova que, apesar de, naquela época, as duas formas coe-
xistirem na língua, já havia indício de mudança. Nas obras examinadas,
encontra-se registrada apenas a forma pera.

2.4 Preposições gramaticalizadas no português do séc. XVI


Há preposições documentadas no século XVI que não foram encon-
tradas no corpus do século XIV. É o que ocorre, por exemplo, com as
formas mediante e conforme, ambas gramaticalizadas no português, por
meio do processo de recategorização sintática. Dessas duas formas, ape-
nas a preposição conforme está registrada nas Cartas de D. João III, ao
passo que as preposições mediante e conforme encontram-se na obra de
João de Barros.

MEDIANTE

Segundo A. G. Cunha (1991: s.v. médio), a preposição mediante vem


do latim “medians,-antis”, particípio presente do verbo “mediare” (‘medi-
ar’), datando o verbo como do século XV. Encontrou-se documentada essa
preposição no século XVI.
E. Dias (1970: 165) assinala que a preposição mediante é uma forma
do antigo particípio presente empregado, oracionalmente, com um sujei-
to, que passou a funcionar em português como preposição.
Como já se observou, inicialmente, mediante possuía a função de
particípio, tratando-se, portanto, de um adjetivo verbal. Como adjetivo, o
particípio concorda com o substantivo a que se refere. Entretanto, à medi-
da que mediante desempenha a função de preposição, passa por uma
mudança, estabelecendo entre seus complementos uma relação não mais
de concordância, mas de regência.
A preposição mediante é empregada na acepção de ‘por meio de’,
‘por intermédio de’, ‘com auxílio ou intervenção de’, mantendo o seu sen-
tido de base do latim, como se vê no seguinte exemplo:

(49) [...] e que depois de si nam quérem cáso senám mediante


preposiçám [...] (J.B., p. 353, l. 1140).

Português 500.p65 227 22/7/2005, 14:55


228
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Como já se observou, ocorreu o processo de recategorização sintática,


quando foi usada a forma verbal de particípio presente mediante como
preposição mediante.

CONFORME

Segundo A G. Cunha (1991: s.v. conformar), conforme vem do latim


“conformare” (‘dar forma’, ‘conformar’), empregado, em português, como
adjetivo de dois gêneros, advérbio e conjunção, no sentido de ‘conforma-
do’, ‘em conformidade’, ‘segundo as circunstâncias’, desde o século XIV.
C. Cunha e L. Cintra (1995: 543) assinalam que conforme é uma
preposição acidental porque, embora pertencendo a uma outra classe gra-
matical, funciona, às vezes, como preposição.
No século XVI, encontram-se documentados tanto o adjetivo confor-
me como a preposição conforme, dele proveniente.
Como adjetivo, registram-se os seguintes exemplos:

(50) [...] pois tem preçeitos de vida e lêteras que lhe ordenará os
prinçípios confórmes à sua idade e magestade do seu sangue? (J.B.,
p. 390, l. 11).
(51) [...] e mando que os que ele pera isso pasar se cumprão e
guardem imteiramente como se por mim fos$! asinados, posto que
não sejão comformes a meu Regimento (Cartas, p. 116, l. 4.020).

Como preposição, conforme aparece no sentido abstrato de ‘adequa-


ção’, como exemplificada a seguir:

(52) [...] mas tomarei um meio confórme a tua idáde e minha


possibilidáde (J.B., p. 444, l. 730).
(53) Darlhaeis, e conforme a ella lhe dires todas as booas palavras
que vos mais pareçerem que servem, [...] (Cartas, p. 16, l. 506).

Todas as preposições provenientes de verbo foram, primitivamente,


adjetivos, deixando depois de concordar com o substantivo, ao assumir a
função de preposição (Novo manual de língua portugueza 1926: 506).

2.5 Locuções prepositivas – primeiro estágio do processo de


gramaticalização
Finalmente, observa-se, na obra de João de Barros e nas Cartas de D.
João III, a presença de um grande número de locuções prepositivas, o que
denuncia, segundo S. Svorou (1993:38) e outros autores, o primeiro passo
para o processo de gramaticalização, estágio em que os elementos encon-
tram-se enlaçados. Nesse caso, o morfema lingüístico espacial e o seu com-
plemento constituem unidades fonológicas independentes, embora

Português 500.p65 228 22/7/2005, 14:55


229

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
componham uma unidade maior, figurando em formas estereotipadas com
tendência à cristalização. Entre as locuções prepositivas documentadas, no
século XVI, algumas já vêm sendo usadas desde o português arcaico.1
A maioria delas inicia o seu processo de gramaticalização através da
recategorização sintática, quando alguns elementos, como nomes, verbos
ou advérbios, entram na constituição dessas locuções. Por um lado, os
nomes causa, cerca, cima, favor e virtude passam a compor, respectiva-
mente, as locuções por causa de, acerca de, em cima de/ por cima de,
em favor de e em virtude de/ por virtude de, exemplificadas a seguir:

(54) Mas, por cáusa da bõa composiçám das lêteras, o u pequeno


[...] (J.B., 379, l. 1673).
(55) [...] por alg"!uas naaos, que por guarda d’estes mares e costa
por causa de gramdes e conthynos Roubos que se nela faziã, [...]
(Cartas, p. 11, l. 293).
(56) Ésta dificuldáde máis é entre os Latinos e Gregos pola variaçám
dos cásos que àcerca de nós e dos Hebreos (J.B., p. 314, l. 435).
(57) [...] vos Responderey, asy acerqua d’aqueles tres pontos que
me sprevestes, [...] (Cartas, p. 23, l. 725).
(58) [...] e o m final poemos em çima da vogál preçedente e fica
refléxa (J.B., p. 318, l. 475-476).
(59) E se por cima de tudo o que nesta carta vos diguo, asy no que
toca a vosa vinda, [...] (Cartas, p. 50, l. 1.737).
(60) Essa autoridade de Séneca [...] que alegáste em favor dô que
padeçes, [...] (J.B., p. 432, l.457).
(61) [...] pera detryminar$! os casos da carta de marqua que elle teem
pasada em favor de Joam Augo [...] (Cartas, p. 35, l. 1.174).
(62) [...] mas, em virtude déla, respondamos [...] (J.B., p. 276, l.
130).
(63) [...] sam tomadas na Rochela a meus vasallos de Viana de Foz
de Lyma certas mercadorias, que vallem seys myll cruzados, por vir-
tude de mesma carta; (Cartas, p. 54, l. 1881).

Como se pode verificar, todas essas locuções encontram-se documen-


tadas nos textos do século XVI. Há, entretanto, locuções desse grupo, cons-
tituídas de substantivo, que aparecem apenas na obra de João de Barros,
tais como: a destra de, a maneira de, defronte de, per razão de/ por
razão de, per vontade de, por amor de e por galardám de, algumas
delas exemplificadas abaixo:

(64) Subio aos çéos e está a destra de Deos Pádre todo poderoso
(J.B., p. 281, l. 72).
(65) [...] diz éstas palávras a que [h]avemos de responder suas
respóstas que vam de fronte délas: [...] (J.B., p. 273, l. 75)
(66) E assi temos alg"!as lêteras dobrádas à maneira dos Hebreos:
[...] (J.B., p.296, l. 58)

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230
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

(67) [...] quando te ocorrerem a prepósito da matéria (J.B., p. 415,


l. 48).

Do mesmo modo, há locuções desse grupo que estão documentadas


apenas nas Cartas de D. João III, como: a bem de/ por bem de, a custa
de, a vista de, em busca de, em mercê de, em respeito de/ por respei-
to de, por guarda de e sem embargo de. A seguir, citam-se exemplos de
algumas dessas locuções:

(68) [...] por que nã quero que fales neles como e capitolos que
vinhã antre os outros que mandastes, [...] mas como cousa que vos
metes por vos parecer que compre a b$! $! do neguoçio (Cartas, p. 51,
l. 1699)
(69) [...] no quall t$!po todos elles forom mantidos sempre a custa
de minha fazenda (Cartas, p. 11, l. 308).
(70) [..] e que cada h"!a per sy podiam ir á vista do Cabo de Gardafuy
ate a parajem de Dio (Cartas, p. 76, l. 1.647).
(71) E vos, de vosa parte, lhe direes que, se mãda de vos alg"!u
serviço, lhe teres em mercee de vollo mãdar (Cartas, p. 55, l. 1914).

Por outro lado, os advérbios debaixo, dentro, diante e trás entram,


respectivamente, na formação das locuções debaixo de, dentro de/ den-
tro en/ per dentro de, deante de, de trás de/ por detrás de, algumas
delas abaixo exemplificadas:

(72) Epíteton quér dizer postura debáixo de nome (J.B., p. 366, l.


1419).
(73) [...] e que ha carta da marca avia de ficar em maão do Almirãte,
e que dentro de huu termo comvynhavel se desem ao almirãte [...]
(Cartas, p. 42, l. 1.419-1.420).
(74) [...] que iam cantando deante de Cristo o dia de Ramos (J.B.,
p. 269, l. 61).
(75) [...] sempre acharemos o artigo detrás do nome que ele rége
[...] (J.B., p. 379, l. 1664).

Além das locuções prepositivas citadas acima, nas Cartas de D. João


III, registra-se o emprego da locução tocante a, que apresenta uma forma-
ção diferente das demais. A forma tocante, do mesmo modo que a prepo-
sição mediante, é oriunda da forma do antigo particípio presente que
passou a funcionar em português como preposição. Exemplifica-se essa
locução na seguinte passagem:

(76) Eu scprevo a Dom Martinho de Portugual, meu muyto amado


sobrinho e meu embaixador, sobre h"!u negocio tocante a Dom
Antonio d’Ataide do meu conselho, [...] (Cartas, p. 6, l. 116).

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Outro processo de formação de locuções prepositivas ocorre através
da combinação de preposições essenciais.
Segundo A. Meillet (1948: 523), muitas preposições encontram-se
combinadas diante do regime. Esse reforço de preposições é, em grego e
em latim, característica da língua popular, correspondendo a uma necessi-
dade de comunicação. Aparecem numerosos exemplos na baixa latinidade
ou em escritores latinos nos quais a língua é pouco cuidada, como por
exemplo: decontra, deinter, depost, desub (Columela e Florus), desuper,
detrans, exaduersum, expost, incoram (Apuleio), entre outros. Esse pro-
cesso foi desenvolvido nas línguas românicas.
Conforme assinala M. Bassols de Climent (1956: 233-234), a língua
literária latina não admite esse uso, embora, excepcionalmente, apareçam
insuper, desuper, incircum, entre outras. Essas aglutinações têm grande
importância nas línguas românicas, já que elas derivam muitas formas de
junção de preposições e advérbios, como em espanhol: detrás < de trans,
delante < de in ante, después < de ex post, en contra < in contra.
O grego também apresenta essa tendência de combinar várias prepo-
sições, como se pode observar na língua do Novo Testamento e na prosa
ática. Em geral, trata-se de uma antiga preposição indo-européia que se
torna mais precisa e é reforçada por uma preposição de data mais recente
(Meillet 1948: 526).
Esse fato também foi observado, na língua portuguesa, por E. Dias
(1954: 167), ao assinalar que as preposições de, para, por combinam-se
com entre, sobre e sob; de, para e por, com ante; registra também a
combinação para com. Além disso, as preposições de, para, por e sobre
combinam-se com certas locuções prepositivas. Ele apresenta, para esse
último caso, o seguinte exemplo:

(77) Passando acaso Alexandre Magno per junto a hum cemeterio


(Vieira, XI, 262).

Nos Diálogos de São Gregório, encontram-se algumas combinações


de preposições, como: a locução atee en, expressando ‘espaço’: ‘limite
final’, que traduziu a expressão latina in ... usque, como documentada na
passagem abaixo:

(78) ca viron hua carreira escontra ouriente e começava-se na cela e


estendia-se atee-no ceo (D.S.G., 2, 37, 8).
(via recto orientis tramite ab eius cella in caelum usque tendebatur
(D.S.G., 2, 132, 20-21));

a locução de antre, denotando ‘espaço’, em substituição à preposição la-


tina ex, que desapareceu, como se vê no exemplo:

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

(79) Contou depós esto San Gregorio que huu tempo, lavando [...]
as lampadas do vidro que estavan na eigreja, caeu hua delas d’antre
sas mãos (D.S.G., 1, 14, 2).
(alio quoque tempore cum isdem venerabilis vir lampades vitreas in
oraturio lavarit, una ex eius manibus cecidit (D.S.G.,1, 454, 11-12);

e a combinação per sobre exprimindo ‘espaço’, equivalendo à preposição


per, como por exemplo em:

(80) E el tomou ag3!!ha a beeçon e foi correndo per cima da agua ben
come se fosse correndo per sobre terra (D.S.G., 2, 7, 6).
(adque usque ad eum locum, quo ab unda ducebatur puer, per terram
se ire exaestimans, super aquas cucurrit (D.S.G., 2, 90, 8-10)).

Na combinação per sobre, observa-se que sobre desprende-se do seu


sentido original de um ‘ponto fixo na superfície’, passando a ser um ‘ele-
mento localizador da trajetória’.
Também nos textos do século XVI, estão documentadas locuções
prepositivas constituídas por duas preposições, como ocorre nas formas
em sobre, d’antre, pera com, exemplificadas abaixo:

(81) [...] e que eu estou e!! sobre este neguoçio muy imteiram$!te fazer
todo o que devo a meu Reyno e vassalos, [...] (Cartas, p.14, l. 411-412).
(82) E neste caso fares concerto sem embarguo do rompimeto d’antre
o emperador, meu irmão, e el Rey de França, [...] (Cartas, p. 49, l.
1.698).
(83) [...] que loguo mande a dilligençia que lhe escrevy que mamdase
ao corregidor Gaspar de Carvalho, pera cõ ella o mãdar lloguo
despachar (Cartas, p. 74, l. 2.585-2.586).

Vale acrescentar que a gramaticalização dessas locuções não se dá


apenas mediante mudança sintática, quando nomes, verbos e advérbios
passam a ser usados em novo contexto, mas também através de mudança
semântica, uma vez que, ao comporem as locuções, eles, por um lado,
perdem parte de sua substância semântica e, por outro lado, adquirem-na
no novo ambiente sintático. Além do mais, a gramaticalização de tais ele-
mentos foi seguida de reanálise, eles passaram a ser empregados em novo
ambiente sintático, assumindo o papel de preposição e estabelecendo,
então, relação de regência.

2.6 Breve comentário sobre os processos de gramaticalização das


preposições encontradas no corpus do século XVI
Após a análise e confronto das preposições encontradas no corpus do
século XVI, verificou-se que, como já foi assinalado, a gramaticalização

Português 500.p65 232 22/7/2005, 14:55


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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
desses elementos ocorreu tanto mediante alterações gramaticais como
mediante alterações semânticas.
No que se refere às alterações gramaticais, nota-se a predominância
do processo de recategorização sintática, conforme se pode observar nos
itens analisados neste trabalho.
Ainda com referência às alterações gramaticais, observa-se que há pre-
posições que, além de relacionar vocábulos, foram empregadas para relacio-
nar sentenças, funcionando, portanto, como conjunções, fato que ocorria
desde o latim e que se encontra documentado no português do século XIV,
nos Diálogos de São Gregório. Assim, por exemplo, as preposições ante,
en, por, segundo, ata, pera e depois são empregadas como introdutoras
de sentença, sendo algumas delas exemplificadas a seguir:

(84) [...] e esto fazia ele por perlongar os tormentos que lhi davan
(D.S.G., 2, 31, 5)
(85) feze-o trager per todalas eigrejas dos martires que eran en seu
bispado pera gaanhar saude daquel mal que avia, [...] (D.S.G., 2,
16, 3).

Do mesmo modo, nos textos do século XVI, algumas preposições são


empregadas para relacionar sentenças, como se observa nos exemplos que
se seguem:

(86) [...] pera evitár os pecádos vindoiros e me dê gráça pera bem


obrar [...] (J.B., p. 288, l. 227-228).
(87) [...] folguaria de seer tentado por vos asy secretam$!te, e busca-
res desimulaçam pera falar a Joham Ango; (Cartas, p. 27, l. 897).
(88) Peró [h]avemos de consirár que a uns relativos chamamos de
sustânçia por fazerem lembrança de nome sustantivo, [...] (J.B., p.
302, l. 180-181).
(89) Déstas cousas foram os Latinos tam curiósos por apurár a sua
língua [...] (J.B., p. 404, l. 302).
(90) [...] nos quaes nam deve aver duvyda pera lloguo se $!tregar$!
por serem da mesma calidade (Cartas, p. 54, l. 1.882).
(91) [...] a quál está em cáso acusativo, segundo móstra este artigo a,
[...] (J.B., p. 326, l. 619).
(92) E a fazeemda que hia na urca sam dezanove myll cruzados,
segundo me spreve o meu feitor de Framdes, [...] (Cartas, p. 54, l.
1.877).

No que diz respeito às alterações semânticas, as preposições estuda-


das, na maioria das vezes, evidenciam um processo de extensão metafóri-
ca, embora ocorram também processos metonímicos.
M. Bassols de Climent (1956: 238-239) assinala que o significado
originário das preposições era material e concreto, uma vez que elas ex-
pressavam relações de caráter local (‘separação’ ou ‘movimento’ no espa-

Português 500.p65 233 22/7/2005, 14:55


234
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

ço). Essas relações se aplicaram logo ao tempo e a noções mais abstratas,


destinadas a precisar o significado da frase, para indicar a ‘causa’ (por, por
causa de, de), o ‘modo’ (de, a, em, com), o ‘fim’ (para, por, a), o ‘resul-
tado’ ou ‘conseqüência’ (até, de tal modo que), a ‘referência’ (referente
a), a ‘comparação’ ( em comparação com, ante), o ‘meio’ ou o ‘instru-
mento’ (por, com, em), a ‘conformidade’ (segundo, conforme, de acor-
do), a ‘preferência’ (antes, sobre), entre outras.
Todas as preposições documentadas nos corpora deste estudo foram
empregadas, basicamente, em seu sentido espacial, estendendo seu uso
pelas acepções temporais e outras noções abstratas.
Observa-se também que, num processo metafórico, nomes, verbos e
advérbios foram usados para formar locuções prepositivas. Conforme assi-
nala F. Borba (1971: 44), o uso freqüente de unidades no mesmo tipo de
sintagma acaba por fixá-las e torná-las estereotipadas, provocando a perda
total ou parcial de sua autonomia. Tal fato leva as unidades a terem valor
apenas no conjunto. Assim, a associação sintática dos itens lexicais acarre-
ta o surgimento de nova forma gramatical, seguida de reanálise no sintagma.
Por exemplo, a alteração de sentido do nome amor na locução por amor
de, assimila de por a acepção de ‘causa’ que não era sua. Esse é também
um caso não apenas de metáfora, mas também de metonímia que afetou a
gramática da língua, provocando o surgimento de uma expressão
prepositiva. Essa locução está exemplificada nas obras dos séculos XIV e
XVI, sendo exemplificada a seguir:

(93) [...] e, non querendo el comer as carnes que os outros comian


[...] por amor de Deus, o padre e a madre escarnecian del (D.S.G.,
1, 2, 6).
(94) Pera tua salvaçám, ôs da doutrina de Cristo te convêm e nam
outros e deles, por amor de mi, [...] (J.B., p. 433, l. 495).

Ainda com relação aos processos metonímicos que atuam sobre as


preposições, pôde-se observar, nos corpora analisados, que algumas pre-
posições foram estendidas da sua função básica de relacionar vocábulos
para a função conjuntiva de relacionar sentenças.

3 Considerações finais
À guisa de conclusão, pode-se dizer que, ao comparar as preposições
documentadas nas obras dos dois séculos estudados, foram encontrados
os seguintes grupos: manutenção da preposição latina (com o mesmo sen-
tido e com extensão de sentido); preposições com formas modernizadas;
gramaticalização de novas preposições; e formação de locuções prepositivas.
Desse modo, com relação às preposições, pôde-se observar que elas
se constituíram por vários tipos de processos de gramaticalização (recate-
gorização, morfologização, fonologização), além de se encontrarem em

Português 500.p65 234 22/7/2005, 14:55


235

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
estágios diferentes. Ainda foram verificadas mudanças semânticas naque-
las preposições que mantiveram suas formas ao longo dos dois séculos.
Vale acrescentar que, ao se comparar os textos do século XVI, perce-
be-se também certa diferença entre eles. As preposições empregadas por
João de Barros apresentam oscilação entre formas novas e arcaicas, indício
de mudança, ao passo que, nas Cartas de D. João III, elas se apresentam
mais conservadoras, em relação ao português arcaico, como seria de se
esperar, já que se tem conhecimento de que a linguagem jurídica é mais
conservadora.
Esses fatos observados demonstram que as preposições continuaram
seu processo de gramaticalização no português arcaico e nos inícios do
português moderno, o que continua ocorrendo no português atual.

1
Para uma visão de conjunto das locuções prepositivas no período arcaico há a dissertação de
Mestrado de Nolasco de Macêdo (1997).

Referências bibliográficas
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Português 500.p65 235 22/7/2005, 14:55


236
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

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MEILLET, Antoine (1948). Linguistique historique et linguistique générale.
Paris: Honoré Champion. 334 p. [1. Ed. 1912].
NOLASCO DE MACÊDO, Anna Maria. (1997). Locuções prepositivas no
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SVOROU, Soteria (1993). The grammar of space. Amsterdam/ Philadelphia:
John Benjamins. 277 p.

Português 500.p65 236 22/7/2005, 14:55


Locuções prepositivas nas Cartas de
D. João III em comparação com
documentos notariais particulares coetâneos
portugueses e galegos

Anna Maria Nolasco de Macêdo

Português 500.p65 237 22/7/2005, 14:55


Português 500.p65 238 22/7/2005, 14:55
239

Introdução

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
E
ste texto analisa as ocorrências de locuções prepositivas em documen-
tação portuguesa de natureza não-literária, cartas não-pessoais e do-
cumentação notarial, correspondente à primeira metade do século XVI,
referente, portanto, ao português quinhentista. Resolveu-se examinar docu-
mentos não-literários, das modalidades indicadas, vale frisar, porque esses
tipos de escritura encontram-se, naturalmente, subordinados a fórmulas ou
modelos preestabelecidos, o que concede à pesquisa uma certa uniformiza-
ção, dentro dos corpora examinados. Aporta-se, ademais, para a confronta-
ção, amostra de documentação notarial coetânea produzida em território
que, na atualidade, constitui a Galícia – Espanha.
Fundamentada em contextos coligidos nas Cartas de D. João III (372
cartas)1 , elegeu-se o que se denominou de conjunto documental C-DJIII,
base de análise deste trabalho. As Cartas, editadas por Ford (1931), estão
datadas e localizadas. Foram escritas por distintos copistas, entre 1523 e
1557, praticamente, portanto, na primeira metade do século XVI, visto que,
do total analisado, apenas vinte e cinco cartas (345 a 369) estão datadas de
1551 e somente uma aponta o ano de 1557 (370) como aquele de sua pro-
dução. A maioria das correspondências foi elaborada em Évora (320 cartas),
região do Alentejo. Do conjunto, duas cartas foram escritas de próprio pu-
nho pelo rei D. João III, uma delas sem indicar o local, nem a data, de sua
feitura e a outra apresentando 22 de junho, como data, mas não revelando,
entretanto, o ano de sua elaboração. Na sua quase totalidade, as Cartas de
D. João III revelam a autoria do copista que as preparou, excetuando
dezenove cartas (3, 14, 16, 17, 20, 21, 22, 24, 25, 27, 28, 140, 142, 143,
144, 180, 199, 205 e 208) nas quais se encontra somente “O secretario”,
como marca de identificação da pessoa que a escreveu. Em doze cartas (5,
155, 221a, 231a, 335, 336, 338, 339, 341, 342, 343 e 369) não há presença
da identidade do seu copista.

Português 500.p65 239 22/7/2005, 14:55


240
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

O conjunto documental denominado DN-M, formado por recolha rea-


lizada em documentação editada por Martins (1994), reúne locuções
prepositivas situadas em dezesseis documentos produzidos entre 1504 e
1548, todos identificados, datados e localizados, de carácter jurídico (do-
cumentos notariais). Nove dos documentos apontados são provenientes
de Chelas, região de Lisboa e sete de Vilarinho, noroeste de Portugal.
Realizou-se, portanto, um amplo recorte para a composição deste corpus,
uma vez que, no seu somatório, são duzentos e dez os documentos portu-
gueses editados por Martins (1994:VII-XV), “uma coleção organizada de
modo a constituir uma base de trabalho para estudos de lingüística histó-
rica, possibilitando enfoques comparativos de pendores diversos”, cuja
datação alcança três séculos, percorrendo desde meados do século XIII até
meados do século XVI.
O conjunto documental CM-G construiu-se com base em ocorrências
de locuções prepositivas levantadas em quatro documentos notariais par-
ticulares galegos, cuja datação situa-se entre 1500 e 1515. Tais documen-
tos encontram-se entre aqueles editados por Maia (1986:40), que explica
a motivação e a importância de seu trabalho pela afirmação de que sua
edição, “ao mesmo tempo que fornece os materiais que servem de base ao
estudo lingüístico sobre o antigo galego-português, vem preencher uma
lacuna no domínio da filologia portuguesa”. Os documentos selecionados
foram elaborados em distintas regiões, localizando-se em cada uma das
quatro províncias galegas2 em que se divide, hodiernamente, a Comunida-
de Autônoma de Galícia, vinculada politicamente ao Estado espanhol, cuja
língua, entretanto, na sua origem, está, histórica e intrinsecamente,
entrelaçada com a língua portuguesa.
Convém salientar que o conjunto documental CM-G, apesar de sub-
meter à apreciação parcela pouco numerosa e bastante limitada do uso de
locuções prepositivas no galego medieval, foi escolhido por se tratar de
amostragem de texto notarial, do mesmo tipo, portanto, do conjunto do-
cumental DN-M, constituindo-se, outrossim, na única documentação notarial
particular galega coetânea de que dispunha a pesquisadora.
Neste trabalho, relacionam-se as ocorrências de locuções prepositivas,
que, dagora em diante, podem também ser denominadas, sim-
plificadamente, como LPrep’s (ou LPrep), recolhidas nos três corpora an-
tes mencionados, visando-se a identificar os diversos processos de formação
de locuções prepositivas que podem ser detectados de algum modo, em
maior ou menor intensidade, na trajetória constitutiva das LPrep’s. Desse
modo, aplica-se aos corpora já referidos, representativos do português
quinhentista, repita-se, na modalidade de cartas não-pessoais e documen-
tos notariais, nestes últimos também incluída amostragem de documenta-
ção galega, fórmula composicional3 que reúne todas as possibilidades
encontradas, anteriormente, por Nolasco de Macêdo (1997),4 para a for-
mação das locuções prepositivas no português arcaico e onde propôs-se

Português 500.p65 240 22/7/2005, 14:55


241

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
um elenco de vinte e oito processos responsáveis pela constituição das
locuções prepositivas:

!)(p~!
(p~! !) X {adv, nome, prep, vpp} (p~!
!)(p~! !)
!)(p~!

Sete são os processos em que o centro, núcleo da locução prepositiva,


surge como um nome. Do mesmo modo, sete são os processos em que o
centro mostra-se preenchido por uma preposição. Em doze dos processos
o centro aparece como um advérbio e dois são os casos em que o centro
da locução prepositiva está ocupado por um verbo em particípio passado.

1 A complexa definição de locuções prepositivas


A maioria dos autores que pesquisam o funcionamento da gramática
latina na época clássica, quando explicam o fenômeno do surgimento do
uso das preposições em latim, referem-se ao sincretismo dos casos como
causa da necessidade do uso de palavras em prae positio para suprir a
eficácia da comunicação.
Desde a Antiguidade
constata-se que os gramá-
ticos chamavam a atenção
para a influência da prepo-
sição sobre os elementos
que a acompanham, sen-
do considerada, do ponto
de vista lógico, como um
termo de união. Nessa
transformação, o sistema
latino de casos e preposi-
ções foi substituído por
um sistema puro de prepo-
sições e de locuções prepo-
sitivas. Assim, pode-se
constatar que, desde a
época latina, já se depara
o estudioso da matéria,
Fragmento do fólio 29r da Grammatica de João de Barros
como apresenta Varela
(1998), com locuções prepositivas formadas por preposição + preposição:
ab ante, circumcirca, de ex, de post, de sub, de super, de trans, in ante,
in circum, in contra, in super, procul ab, sub ante; preposição + preposi-
ção + preposição: de abante, in contra de; preposição + advérbio: a intus,
a foris, adillic, ad prope, de foris, de retro, de subtus, ex inde, de inde,
apres, insimul.

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242
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Locuções prepositivas encontram-se relacionadas em gramáticas his-


tóricas, em histórias da língua portuguesa e em estudos filológicos clássi-
cos que, nas suas análises, não exaurem completa e profundamente como
ocorrem os processos de formação das LPrep's. Do mesmo modo proce-
dem as gramáticas normativas do português e do galego contemporâneos,
que evidenciam a presença das locuções prepositivas, mas, em geral, não
analisam os seus processos de formação na diacronia do português e/ou
do galego. Coetaneamente, na Gramática galega, editada pelo Instituto
da Língua Galega e sob a responsabilidade de Rosário Álvarez, Henrique
Monteagudo e Xosé Luiz Regueira (1993:477-514) vê-se que as locuções
prepositivas são estudadas no capítulo referente às preposições.
Observe-se que vários estudiosos da matéria sob exame denominam
as locuções prepositivas de “preposições compostas”. Outros dão teste-
munho da existência de formas sintáticas mais complexas, que têm fun-
ções gramaticais e significados “parecidos” com aqueles das preposições.
Enfatizam que essas construções, que chamam de locuções prepositivas,
gramaticalmente, funcionam como preposições. Alguns outros, ainda,
conceituam locuções prepositivas generalizando ser a reunião de um gru-
po de palavras com valor e emprego de uma preposição, onde seu último
componente será sempre uma preposição, representando, portanto, no
enunciado, o papel reservado para a preposição.
Verifica-se que, as variadas definições do que seja uma locução
prepositiva, passam por aproximações conceituais que apresentam, entre-
tanto, em comum, o fato de que todas elas referem-se às preposições que
nomeiam, afinal, a uma locução chamada de prepositiva, mas que apresen-
ta a possibilidade de ter seu núcleo constituído não só pela preposição,
mas também por outros elementos como o advérbio, o nome, ou verbo em
particípio passado.
As gramáticas da língua portuguesa repetem-se ao tratarem dos valo-
res semânticos das preposições, sem aprofundarem-se, sistematicamente,
sobre a sua estrutura e isto também ocorre quando se enfocam as locuções
prepositivas. Observe-se que Varela (1998)5 denomina, em língua galega,
de sobrepreposición ao fenômeno que Bechara (1999:301) chama de
“acúmulo de preposições”.
Um dos ângulos pelo qual se pode pesquisar LPrep’s é aquele que as
reúne em grupos, conforme expressem valores locativos, temporais ou
nocionais. As locuções de valor locativo ou espaciais podem dar idéia de
movimento ou não. No primeiro caso, referem-se à direção, à origem ou à
procedência de algo ou de alguém. Aquelas LPrep’s locativas que não indi-
cam idéia de movimento informam localização em determinado espaço.
Por exemplo, no interior (dentro de) /no exterior (fora de); localização
superior (em cima de)/ localização inferior (em baixo de); proximidade
(perto de) /distância (longe de); localização frontal (cara a, frente a); loca-
lização medial (em meio de); anteposição (antes de) /posposição (depois
de), etc.

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243

2 Gramaticalização: primeiras incursões

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
O despertar da atenção para o fenômeno da gramaticalização não é
objeto de estudo só da atualidade, tendo sofrido, através dos tempos, na-
turalmente, diversas interpretações. Com Meillet (1948:131), no início do
século XX, surge pela primeira vez o termo gramaticalização, tendo sido
definido por ele tal processo como “a atribuição de um caráter gramatical
a uma palavra anteriormente autônoma (...)”.
Pesquisar o fenômeno da gramaticalização significa, assim, detectar
mudança(s) nos itens enfocados, quer-se dizer, observar a modificação por
eles experimentada na forma, no sentido e/ou no comportamento sintáti-
co. Estudam-se, dessa maneira, mudanças que acarretam conseqüências
para as classes de palavras da língua e, por extensão, para a sua gramática.
Nesse enfoque, as formas gramaticias são vistas como entidades em
processo e não como entidades estáticas. É, como afirma Heine, B. & Reh,
M. (1984), apud Ataliba Castilho (1997:25-64) “(...) a evolução em que as
unidades lingüísticas perdem em complexidade semântica, liberdade sin-
tática e substância fonética.”
Observar a língua em seu funcionamento significa apreender que a lín-
gua existe a serviço das necessidades de seus usuários e em constantes adap-
tações, como diz Martinet (1994:17) – para quem não se pode confundir
sincronia com estaticidade –, todo estado de língua está sempre em curso de
evolução. Os fatos da evolução, então, têm de ser observados “sem outro a
priori que a utilização da língua para comunicar a experiência”.
Constata-se que se podem detectar palavras funcionais originadas de
itens lexicais, como, por exemplo, ocorre nas locuções prepositivas apesar
de, a par de, a fim de, etc., sendo esses casos considerados como
prototípicos do fenômeno da gramaticalização.
Tenha-se em conta que o processo de regularização gramatical, que é
uma das características do que se convencionou denominar de gramaticalização,
é mais detectável, como mais facilmente pode-se depreender, no campo da
morfossintaxe, levando-se em consideração que atinge, sem dúvida, às vezes,
a sintaxe, como ocorre nos casos em que uma ordem de palavras pragmatica-
mente motivada se fixa em construções sintáticas.
Percebe-se, de um modo geral, que a gramaticalização, que se apre-
senta como um processo dinâmico e histórico na sua essência, percorre
normalmente um caminho unidirecional, partindo de uma unidade menos
gramatical em direção a uma unidade mais gramatical, o que conduz a
nova codificação, envolvendo, inevitavelmente, a morfologia. Há uma pas-
sagem de menor para maior regularidade e de menor para maior
previsibilidade, o que torna o falante, em certo ponto do percurso, mais
sujeito a imposições do sistema e menos livre para praticar sua criatividade.
Ressalte-se a noção de que as gramáticas oferecem os mecanismos de
codificação mais econômicos para aquelas funções da linguagem que são
mais efetivamente utilizadas.

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244

3 Um breve excurso sobre a documentação notarial


O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

É interessante relembrar um pouco da construção histórica desta


modalidade de documentos de natureza não literária.
Na Roma imperial, século III, começa o desenvolvimento de um tipo
de escriba profissional, tabellio, dedicado a escriturar os negócios jurídi-
cos particulares. O tabellio era um scriptor profissional, quer dizer, um
técnico ou peritus e o seu exercício profissional tinha que ser pessoal e
efetivo. A sua formação levava-se a cabo na escola de notários – schola
notarium – da Chancelaria Imperial, na qual havia, ademais dos quatro
scrinia, os tribuni et notarii, encontrando-se o primicerius notariorum à
frente de todos eles. Trabalhavam num lugar fixo ou “escritório” perma-
nente – statio, que podia ser propriedade dos tabeliães ou de terceiros,
pelo que tinham de pagar não uma renda – merces, senão as ganâncias –
lucra.
O trabalho que realizavam tinha aspecto jurídico, participavam do
scribere dos juristas práticos e assumiam o caráter de assessores em Direi-
to; não tinham, entretanto, a consideração de funcionários públicos, como
na atualidade acontece, pois que não gozavam da faculdade de formar e
autorizar autos ou expedientes com valor probatório – ius actorum
conficiendorum, nem podiam conceder a conseqüente publica fides, isto
é, autenticidade e força probatória.
O documento do tabellio é o instrumentum, e desde o princípio ti-
nha que ter as seguintes condições: ser um documento profissional e técni-
co (isto é, ter sido feito por um peritus, sendo necessário passá-lo a limpo);
haver a subscrição de três testemunhas; possuir a autorização do Tabellio
ou completio; e a entrega da conformidade entre as partes do documento
ou absolutum, quer dizer o documento estar “perfeito e concluso” e estar
“conforme entre as partes”. Esta declaração constituía a “fórmula” de per-
feição na qual está o gérmem da cláusula de autorização do notário me-
dieval. Os tabeliães romanos sobrevivem à queda do Império do Ocidente
e começam a utilizar o título de Notarius (denominação que procedia da
Chancelaria Imperial), conservando até a Idade Média as tradições profis-
sionais e documentais antigas.
Um ponto importante a não deixar de lembrar, outrossim, é que o
limite inicial do período arcaico da língua vernácula prende-se, e está con-
dicionado, a um fato de sua história externa: o aparecimento de documen-
tos escritos em língua portuguesa. A fronteira terminal desta fase sinaliza-se
em torno do fim do século XV e começo do século XVI, sendo esta a oca-
sião na qual os historiadores da língua detectam a ocorrência de significa-
tivas mudanças lingüísticas, com referência à documentação anterior, embora
características do português arcaico perdurem ao longo do século XVI.6
Verifica-se, sem dúvida, que as modalidades de documentação com as
quais se vem trabalhando neste momento (cartas não pessoais, mas decor-
rentes, do poder real e documentação notarial particular) por serem espe-

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245

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
cíficas para “proteger”, “amparar” ou mesmo regulamentar direitos parti-
culares ou de outra qualquer natureza, ou melhor exemplificando, por se
tratar de documentação que espelha situações do cotidiano, até hoje vigo-
rantes, tais como, tornar reais e efetivos arrendamentos, aforamentos,
emprazamentos, vendas, câmbios, partilhas, doações, quitações, renún-
cias, vedorias, posses, confirmações, procurações, recebimentos, testa-
mentos, sentenças, demandas, relatos de contendas, avenças,
composições, acordos, etc., traz consigo a característica de conservar
inalteradas ou pelo menos sem alterações relevantes, principalmente no
linguajar jurídico, extremamente conservador, muitas das LPrep's que já
atuavam na língua desde o século XIII.
Apartados dos corpora completos, referentes aos conjuntos de reco-
lhas denominados DN-M e CM-G, pesquisados para a tese de doutoramento
em curso, denominada Gramaticalização das locuções prepositivas na
história do galego e do português, apresentam-se, adiante, algumas infor-
mações sobre a produtividade de LPrep's nos séculos XIII ao XV, através do
exame de alguns exemplos, a seguir trazidos, recolhidos do corpora em
que se trabalha para a Tese de Doutoramento, representativos de LPrep's
que permanecem produtivas até o momento:

DN-M 7

(01) (1277), Pendorada 018 021


presen/21 foy e a rogo de hua parte e da octra esta conposiçon
p Xnome p

(02) (1278), Pendorada 025 002


a herdade de vila uerde dáálem Doyro uenha da nossa au4%ga
[pXadv]

(03) (1279), Pedroso 033 004


con seus termos no Couto de Pedroso e fora do Couto
Xadv p

(04) (1279), Pedroso 033 009


quite por seu pera senpre saluo da Leyra daGro couo que damos
Xvpp p

(05)(1279), Pedroso 034 022


a que /22 aam de ficar depos nossa morte.
[pXprep]

(06) (1272), Chelas 076 010


Eu Johane menendiz pulbico Tabelliõ per rogo /11 das partes
p Xnome p

Português 500.p65 245 22/7/2005, 14:55


246
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

(07) (1296), Chelas 116009


e holiuar b$! nõ /9 for a cabo de tres anos
p Xnome p

(08) (1308), Vilarinho 163 013


salago /13 publico Tabaliõ de Guimarães a rrogo das partes.
p Xnome p
(09) (1318), Vilarinho 180 003
eu ey no Ribeyro da parte do dito meu padre.
p Xnome p

(10) (1329), Vilarinho 195 034


ffaffiam cauleyro da outra por razõ de mãdas do dito Pero Ãnes
p Xnome p

(11) (1339), Vilarinho 201 004


Joham rrodriguiz fferraz scudeíro da outra/4 por rrazõ das herdades
p Xnome p

(12) (1342), Vilarinho 207 001


El Rej por prol /2 dos Momsteiros. e Igreias do sseu Senhorio
p Xnome p

(13) (1342), Vilarinho 207 005


e os posessem ffora dessa terra.
Xadv p

(14) (1365), Vilarinho 236 020


Casa de Martjn Lourenço de cyma do dito burgo./21
p Xnome p

(15) (1408), Vilarinho 387 007


a qual a mj /7 ficou da parte de gonçalle estevez
p Xnome p

(16) (1411), Vilarinho 391 016


sam crisptouam de Riba de selho do termho da villa de guimarãães
p Xnome p

(17) (1414) Vilarinho, 401 029


que o dicto escãbo Era feito A prol do dicto mosteíro
p Xnome p

(18) (1414), Vilarinho 401 030


todo escreuer E despois desto Ciquo dias do mês de Setembro
[ppXprep]p

Português 500.p65 246 22/7/2005, 14:55


247

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
(19) (1426), Chelas 479 004
per mj dito tabeliam e!! Razom dappellaçõ
p Xnome p

(20) (1417), Chelas 47 1 017


nomear ante de sua mor/18 todollo b$!s de rraíz
Xprep p
CM-G 8

(21) Doc. 55, (1281), Caldelas 133025


iaz en Çamora en ca⌠ de Ferrnã Truã por xxij.567 o metã
em prol de mina alma.
p Xnome p

(22) Doc. 34, (1310), Lorenzana 085 004


4 no⌠⌠ o terreo que iaz çerca a malataria do Burgo de Ribadeu
Xadv p

(23) Doc. 12, (1344), Santiago de Compostela 056 010


en jur τ en mao τ po⌠i⌠⌠οm ú10 por razõ de h"! concãbeo
p Xnome p

(24) Doc. 12, (1344), Santiago de Compostela 056 010


fezera en nome dos ditos abbade τ conu$!to cõlo11 dito Loppo
p Xnome p

(25) Doc. 14, (1367), Monfero 059 018


a tome τ entre o dito moe⌠teyro ao tenpo de meu fjnamento
p Xnome p

(26) Doc. 15, (1385), Anca 061 022


Eu Johan Peres clerigo d’Ãca, en lugar de23 Pedro Fernandes,
p Xnome p

(27) Doc. 16, (1399), Monfero 063 037


era ⌠obre dito eno lugar doú38 Freyxo que he couto de Mõfero.
p Xnome p

(28) Doc. 42, (1414), Lugo 101 017


atado cõ h"!a cadea de ferro et 8"!* )"! cadeado ao pe do altar
p Xnome p

(29) Doc. 17, (1434), Barracido 064 020


el τ eu20 somos teudos dentro enno dito moe⌠teyro
[p Xadv] p

Português 500.p65 247 22/7/2005, 14:55


248
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

(30) Doc. 44, (1450), Viveiro 112 048


n$! de⌠baratar n$! concabear, saluo por outras melhores.
[Xvpp] p

Surge, então, a oportunidade de verificar a trajetória percorrida por


algumas LPrep's que se modificaram ou que deixaram de ser utilizadas, já
durante o período arcaico da Língua Portuguesa.
No decurso da investigação das LPrep's em DN-M comprovou-se o
uso, no Noroeste de Portugal, no século XIII, de apres de. No século XV, na
região de Lisboa. ocorreu d’apres de.
Esse fato despertou a atenção porque, embora já se houvesse visto
em Huber (1986:267), a referência a d’apres de entre as LPrep's, na ampla
relação de LPrep's coligidas, levantada em pesquisa anterior por Nolasco
de Macêdo (1997:55), não havia sido localizada nenhuma ocorrência de
apres de ou de (d’) apres de nos amplos corpora analisados, por ocasião
da Dissertação de Mestrado da pesquisadora.
Também se observara o uso de d’apres de com o exemplo de Macha-
do (1973:284) no verbete Apres:9 Séc. XV:

(31)E jaz sepultado em o seu mosteiro de Sam Denis d’Odiuellas,


d’aprés da cidade de Lixboa..., Crónica Breve do Arquivo Nacional,
em Script., p.23”.

Quanto a Cunha (1991:634), no verbete “preto adj. ‘ant.’ perto, pró-


ximo’ XIII; ‘negro’ XIII, do lat. *prettus, por pressus” afirma que “pode
perfeitamente indicar que apres de pode ser entendido como significando
junto de, uma vez que sua etimologia tem relação com o particípio passa-
do do verbo prem"re.
Corominas (1980:240)1 0 salienta, significativamente, no verbete “APRÉS
ser difícil asegurar se era forma enteramente autóctona, o de influjo
galorrománico (según cree A. Castro, RFE V, 25), aunque los monumentos
en que aparece podrían sugerir la primera alternativa.” 1 1
Ao observar os dados recolhidos em DN-M encontramos no século
XIII, em documentação do Noroeste de Portugal:

(32) (1278), Pendorada 023 021


aquisto foy apres das Egleygas
[pXprep]p

E na região de Lisboa no século XV ocorre:

(33)(1426), Chelas 479 003


e cõuento dachellas dapres da dita çidade
[pXprep] p

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249

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Surpreendeu, outrossim, a produtividade de ensenbra con nos docu-
mentos notariais, pois também não se havia encontrado antes nenhuma
ocorrência nos corpora examinados, nem alguma menção a ensenbra con
nas gramáticas históricas do português ou nas pesquisadas gramáticas
normativas do galego e do português. Detectou-se seu uso tanto na região
Noroeste de Portugal, como na região de Lisboa, mas isso somente ocor-
reu no século XIII. Comprovou-se, também o uso no século XIV, com o
exemplo apresentado por MACHADO (1973:886) no verbete “Ensembra”,
adv. do lat. in s3!-mul, ‘em conjunto’, que apresenta a seguinte ocorrência,
datada de 1301, encontrada na Rev. da Universidade de Coimbra, XI, p.602:

(34) ...eu Dom Denis pella graça de Deus Rey de Portugal e do


Algarue emsembra com a raynha Domna Ysabel.
[p Xadv] p
Nos dados referentes ao século XIII, recolhidos em DN-M, foram en-
contradas, entre outras, em documentação do Noroeste de Portugal e na
região de Lisboa, respectivamente, as seguintes ocorrências:

(35)(1279) , Pedroso 037021


E eu Domigas perez ens$!$!bra cõ meu marido Joham
[p Xadv] p

(36)(1294), Chelas111002
prioressa dachelas enssenbra cono cõuento desse
[ p Xadv] p

Analisando-se o conteúdo semântico das ocorrências de LPrep's acima


recolhidas, partiu-se em busca de uma explicação. Em relação a apres de
ou d’apres de por tratar-se de LPrep locativa, poder-se-ia admitir a hipóte-
se de significar tanto perto de ou depois de, como junto con/de.
No que respeita a LPrep ensenbra con vê-se que seu significado tam-
bém indica proximidade espacial, podendo ter sido substituída por junto
con/de que foi encontrado em DN-M nos séculos XIV e no século XVI, no
Noroeste de Portugal, como se comprova, respectivamente, com os seguin-
tes exemplos:

(37) (1341), Vilarinho205008


en posse do. Cassal que esta. junto cõna. quintáá
Xvpp p

(38)(1528), Vilarinho 581021


/21 outros vynte allmudes item Junto desta vinha
Xvpp p

Português 500.p65 249 22/7/2005, 14:55


250
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Verificada a ocorrência das LPrep's locativas apres de e ensenbra con


no conjunto documental DN-M, editado por Martins (1994), repita-se, ob-
servou-se que a primeira LPrep citada ocorre no século XIII, na região No-
roeste de Portugal e no século XV, na região de Lisboa. Quanto à segunda,
só foi encontrada no século XIII, tanto na região de Lisboa, como no Noro-
este de Portugal. Saliente-se que prevaleceu sempre o valor locativo dessas
LPrep's. A partir do século XIV, entretanto, predomina junto con/de, tam-
bém com valor espacial, e desaparece (d')apres de, provavelmente, no sé-
culo XVI. Quanto a ensenbra con até o momento desta pesquisa, só foi
encontrada sua ocorrência pela pesquisadora, no século XIII.
Observa-se no verbete de Machado (1973:284) que (d')apres de pode
apresentar, também, o significado de junto de, e apesar de permanecer
produtiva no século XV, não ocorreu no século XVI, substituída, possivel-
mente, por junto con/de.
Tomando-se os corpora da Dissertação de Mestrado como confronto
foi possível propor a hipótese de que ensembra con deixa de ser usado no
século XIV, seu conteúdo semântico substituído por junto con/de.

4 Análise dos dados referente ao século XVI


Com as investigação das LPrep's em C-DJIII, verificou-se que os mes-
mos processos de formação de LPrep's, já identificados por Nolasco de
Macêdo (1997) permaneciam produtivos, pois foram detectadas ocorrênci-
as que assim o comprovaram. Observe-se que este corpus foi pesquisado
exaustivamente, uma vez que examinadas e analisadas todas as 374 cartas
editadas por Ford (1931).

4.1 Dados gerais em C-DJIII

Cartas com Cartas sem Total de


ocorrência ocorrência cartas
de LPrep’s de LPrep's analisadas
155 219 374
Quadro 01: Resumo geral do corpus C-DJIII

4.2 LPrep's que ocorrem em C-DJIII segundo os processos de


formação
Nas cartas pesquisadas, em termos estatísticos, constatou-se a
prevalência do advérbio, com cento e trinta e nove ocorrências, como prin-
cipal elemento de formação do centro ou núcleo das LPrep's em C-DJIII.
Em seguida encontra-se a preposição, seguida do nome e por último, como
era previsível, em face do comportamento desse elemento, já estudado em
diversos outros corpora formados por textos de variadas modalidades,

Português 500.p65 250 22/7/2005, 14:55


251

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
encontra-se o verbo. Saliente-se que o exemplo com o elemento verbo
como núcleo da LPrep's, apesar de ser único em C-DJIII torna possível
sustentar a hipótese de que a fórmula proposta por Nolasco de Macêdo
(1997), já referida, permanece válida no português quinhentista, até mea-
dos do século XVI.

Núcleo da LPrep Ocorrências


Adv 139
Prep 85
Nome 42
Vpp 01

Total 267
Quadro 02: Distribuição das LPrep's em C-DJIII por tipo de
núcleo ou centro

Para comprovação das ocorrências das LPrep's nas Cartas de D. João


III, acrescenta-se, a seguir, um exemplário, em que se selecionou uma ampla
amostragem das principais LPrep’recolhidas em C-DJIII, escritas por diver-
sos copistas ao longo do período pesquisado (1523-1557), que serve para
demonstrar os vários tipos de LPrep's com as quais se deparou esta análi-
se, além de elucidar a tipologia dos processos formadores de LPrep's en-
contradas no corpus em foco, e que constitui suporte concreto para pontos
que vêm sendo pesquisados ao longo dos estudos sobre locuções
prepositivas a que se dedica a autora deste trabalho.

(39) Carta nº 55(1533), Evora 094 008 Manuel da Costa1 2


não comprão, sallvo na maneira e ordem que nesta carta
Xvpp p

(40) Carta nº 01(1523), Tomar 003 005 Antonio Afonso


que nos apontarã, allem d’outras [causas] que dizem que há,
Xadv p

(41) Carta nº 04(1525), Evora 005 002 Antonio Paiz


que, por parte de dom Diogo de Menesses do meo cõselho,
p Xnome p

(42) Carta nº 06(1531), Mõte Moor o Novo 007 017 Andre Pirez
E como fordes ante elle, despois de lhe beixardes a maão
[ppXprep] p

(43) Carta nº 06(1531), Mõte Moor o Novo 007 019 Andre Pirez
estam tam perto d’elle outras pessoas
Xadv p

Português 500.p65 251 22/7/2005, 14:55


252
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

(44) Carta nº 06(1531), Mõte Moor o Novo 008 031 Andre Pirez
eu por cima de tudo,
p Xnome p

(45) Carta nº 06(1531), Mõte Moor o Novo 009 035 Andre Pirez
pois craram$!te fora de toda ordem de justiça
Xadv p

(46) Carta nº 06(1531), Mõte Moor o Novo 011 022 Andre Pirez
para mayor justificaçom e a fym de lhe fazer bem,
p Xnome p

(47) Carta nº 06(1531), Mõte Moor o Novo 013 005 Andre Pirez
estam como estavõ ante d’esta sem Rezão.
Xprep p

(48) Carta nº 06(1531), Mõte Moor o Novo 013 014 Andre Pirez
e soma fareis acerqua d’iso todo o que mais for necesario.
[pXadv] p

(49) Carta nº 06(1531), Mõte Moor o Novo 007 016 Andre Pirez
esta Reposta he tam fora da que eu d’ele esperava
Xadv p

(50) Carta nº 11 (1531), Evora 022 014 Pero d’Alcaçova Carneiro


que vos seria loguo dada, e dentro e!! quatro dias
[ pXadv] p

(51) Carta nº 13(1531),Evora 024 000 Pero d’Alcaçova Carneiro


E antes d’estas tinha vistas as que trouxe luis Afonso
Xprep p

(52) Carta nº 22 (1531), Evora 042 006 O secretário


e que despois de muytas praticas e debates
[ppXprep] p

(53) Carta nº 38 (1533), Evora 073 014 Fernam d’Alvarez


toparem co ellas llonge das ditas Ilhas,
Xadv p

(54) Carta nº 49(1533), Evora 086 006 Duarte Gonçalves


soldos ou moradias, segumdo de qua fforem asentados;
Xprep p

(55) Carta nº 50(1533), Evora 086 006 Duarte Gonçalves


pagamento de suas moradias do tempo de Manoel Velho,
p Xnome p

Português 500.p65 252 22/7/2005, 14:55


253

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
(56) Carta nº 55(1533), Evora 093 013 Manuel da Costa
os vinhos se carreguem depois das naaos terem tomada cargua
[pXprep] p

(57) Carta nº 64(1533), Evora 103 012 Fernam d’Alvarez


Aallem d’isto lhe mandareis entregar dozentos millreis
[pXadv] p

(58) Carta nº 64(1533), Evora 103 025 Fernam d’Alvarez


Por virtude d’esta carta delRey nosso senhor
p Xnome p

(59) Carta nº 77(1533), Evora 117 003 Fernam d’Alvarez


segundo a a navegaçam que as naoos e navios d´esta armada
Xprep p

(60) Carta nº 87(1533), Evora 130 031 Pero Amrriquez


ter a esa cidade demtro neste tempo alg"!ua naao,
[pXadv] p

(61) Carta nº 123 (1534), Evora 167 006 Fernam d’Alvarez


e se fose poer davamte da dita çidade;
[ppXprep] p

(62) Carta nº 147 (1534), Evora191002Pero Emrriques


vos o mandeis $!primir per vertude do meu alvara
p Xnome p

(63) Carta nº 150 (1536?), Evora 192 011 Fernam d’Alvarez


eram segundas vias das que vos vistes ao tempo de vosa partida
p Xnome p

(64) Carta nº 168 (1535), Evora 208 026 Fernam d’Alvarez


e ensayo dos ducados de fora de este Reyno,
p Xadv p

(65) Carta nº 168 (1535), Evora 209 003 Fernam d’Alvarez


nõ llevar& juntos pera fora do Reyno;
[pp] Xadv p

(66) Carta nº 175 (1535), Evora 214 005 Pero Amrriquez


pouco mais ou menos, a Rezão de sesemta reis por dia
p Xnome p

(67) Carta nº 182 (1535), Evora 220 013 Fernam d’Alvarez


esperandose tanto pello contrayro em tempo de tantas
p Xnome p

Português 500.p65 253 22/7/2005, 14:55


254
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

(68) Carta nº 186 (1535), Evora 224 001 Pero Amrriquez


lavrado cadano, por tempo d’alg"!s anos
p Xnome p

(69) Carta nº 221ª (1536), Evora 255 014 não consta o copista
vindo per fora da ilha de Sam Lourenço
p Xadv p

(70) Carta nº 231 (1536), Evora 265 003 O secretário


Vy a carta [...] acerqua de nam teer Respondido ao emperador
[pXadv] p

(71) Carta nº 287 (1537), Evora 318 001 Pero Amrriquez


por ser mais meu serviço vir$! de fora do Reigno $! ouro
p Xadv p

(72) Carta nº 302 (1537), Evora 331 003 Manuel da Costa


e mand&! dinheiro de contado pera fora do Reino
[pp] Xadv p

(73) Carta nº 334 (1545), Evora 368 006 Fernam d’Alvarez


e que ao pee do dito contrato
p Xnome p

(74) Carta nº 338 (1550), Evora 370 010 não consta o copista
Depois de asy o ter aentado
[pXprep] p

(75) Carta nº 353 (1551), Evora 381 005 Antonyo Ferraz


a verdadeira levar pera fora do Reynno
[pp] Xadv p

(76) Carta nº 372 (?......), Lisboa 394 005 Rey D.João III
serviço quato podia ser, alem do gosto e do prazer
Xadv p

4.3 Dados gerais em DN-M

Documentos do Documentos da Total de


Noroeste de região de Lisboa documentos
Portugal analisados
07 09 16
Quadro 03: Resumo geral do corpus DN-M

Português 500.p65 254 22/7/2005, 14:55


255

4.4 LPrep's que ocorrem em DN-M segundo os processos de

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
formação
No corpus DN-M, em termos estatísticos, diferentemente do que ocor-
reu em C-DJIII, constatou-se a prevalência do nome, com oitenta e duas
ocorrências, como principal elemento de formação do centro ou núcleo
das LPrep's em DN-M. Depois encontra-se o advérbio, seguido da nome e
por último, aparece o verbo, comprovando-se mais uma vez ser esta a clas-
se de palavra menos produtiva na formação de locuções prepositivas, no
período pesquisado.

Centro Noroeste Lisboa Total


de Portugal

Nome 45 37 82
Adv 12 22 34
Prep 4 7 11
Vpp 6 1 7

Total 67 67 134

Quadro 04: Distribuição das LPrep's em DN-M por tipo


de centro

A comprovação das principais ocorrências das LPrep's em DN-M, pode


obter-se através das ocorrências do exemplário que se segue, em que fo-
ram selecionadas ocorrências das principais LPrep's recolhidas em DN-M,
escritas por diferentes punhos, ao longo do período pesquisado (1514 -
1548), que serve para demonstrar os vários tipos de LPrep's encontradas
no corpus em foco.

(77)(1514), Vilarinho 571 006


Jurdyçõ... cydade do porto e!! presenca de mjm tabelioam
p Xnome p

(78) (1514), Vilarinho 571 010


Jull/10guado daguyar de souza do termo da dicta cydade,
p Xnome p

(79)(1514), Vilarinho 572 030


$!" elle cõteudas $!" /30 parte n$! $! todo $!" Jujzo n$! fora della
Xadv p

(80)(1522), Vilarinho 574 001


Em nome de deus Amem
p Xnome p

Português 500.p65 255 22/7/2005, 14:55


256
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

(81)(1522), Vilarinho 575 013


lhes aprazia em seus Mones e em nome do /13 dicto mosteiro
p Xnome p

(82)(1522), Vilarinho 577 051


E despois desto dous dias
[ppXprep] p

(83)(1528), Vilarinho 582 027


e trres de /27 linhaça item Junto das casas do casall do souto
Xvpp p

(84)(1528), Vilarinho 582 027


sta h!a llata ante a porta
Xprep p

(85)(1534), Vilarinho 586 003


oito dias do mes de dezembro demtro no moesteiro
[p Xadv] p

(86)(1534), Vilarinho 588 035


Item h"!"!a leira abaixo das casas
[pXnome] p

(87)(1538), Vilarinho 594 034


não chamem /34 ... outro algum senhorjo saluo ao dito prior
Xvpp p

(88)(1540), Vilarinho 603 044


item a leyra de cima de trasfoios/45
p Xnome p

(89)(1504), Chelas 630 015


e podese nomear a segunda ante /24 de sua morte
Xprep p

(90)(1510), Chelas 631 029


e posto dentro na adega do dicto moesteiro
[pXadv] p

(91)(1520), Chelas 638 010


tinha h"!as terras de pam acer/10ca do moesteiro dodiuelas
[pXadv] p

(92)(1540), Chelas 657 063


dyta galynha de fforo despoys do ffaleçimemto da dyta /64 molher
[ppXadv] p

Português 500.p65 256 22/7/2005, 14:55


257

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
(93)(1544), Chelas 662 112
esta vemda he em paz e em salluo da sisa / pera ella
p Xvpp p

(94)(1544), Chelas 666 307


lhe hirem Respom / der, e pagar a pee de Juizo e dessi fazerem
p Xnome p

(95)(1544), Chelas 668 363


pesoa pubryca stipulamte e acceptãte / em nome da dita donna
p Xnome p

(96)(1548), Chelas 672 027


perante os corregedores ... sobre e per /27 razam da fazenda
p Xnome p

4.5 Dados gerais no corpus CM-G

Origem do documento analisado Ocorrências


Padrin (A Coru/!a) 03
Lugo 08
Ribadavia (Ourense) 07
Pontevedra 11

Total 29

Quadro 05: Resumo geral do corpus CM-G

4.6 LPrep's que ocorrem em CM-G segundo os processos de


formação

Núcleo Origem do documento Totais


Padrin Lugo Ribadavia Pontevedra
Nome 02 01 02 05 10
Adv – 03 02 03 08
Prep 01 04 03 02 10
Vpp – – – 01 01

Totais 03 08 07 11 29

Quadro 06: Distribuição das LPrep’s em CM-G por tipo de núcleo ou centro

Apresentam-se em seguida alguns exemplos de LPrep's recolhidas em


CM-G:

(97) Doc. 18, (1515), Padrín 066 004


et a todas vo9as vozes et heredeyros que despoys de vos vieren
[pp Xprep] p

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258
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

(98) Doc. 18, (1515), Padrín 066 020


et ley que fala en rrazon do engaño do aber ñobrado nõ
p Xnome p

(99) Doc. 51, (1502), Lugo 126 002


Giomar Rodrigues frayras del velo preto do dito mo9teyro,
[p Xadv] p

(100) Doc. 51, (1502), Lugo 126 003


en no9o capitulo dentro enno dito mo9teiro
[p Xadv] p

(101) Doc. 90, (1500), Ribadavia 180 032


que peite a parte agardante por nomme de p$!na
p Xnome p

(102) Doc. 90, (1500), Ribadavia 180 035


en juyzio fora del c4! o dicto noo notario.
Xadv p

(103) Doc. 90, (1500), Ribadavia 180 036


⌠ pois de nos bier$!
vozes que de⌠
[pp Xprep] p

(104) Doc.136, (1506), Pontevedra 243 021


que e⌠tá çerca da dita villa de Rre22 dondela
Xadv p

(105) Doc.136, (1506),Pontevedra 243 021


e⌠tá valada τ murada τ vay ao longo da congo⌠tra
p Xnome p

(106) Doc.136, (1506), Pontevedra 243 021


τ jaz junto da fonte dos dizjmos
Xvpp p

(107) Doc.136, (1506), Pontevedra 245 058


enno dito capitulo de dentro do dito moo⌠teyro a
p [p Xadv] p

(108) Doc.136, Pontevedra 243 021


que e⌠t á çerca da dita villa de Rre22 dondela
Xadv p

Português 500.p65 258 22/7/2005, 14:55


259

5 Conclusões

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Como ficou demonstrado, através do exaustivo levantamento das ocor-
rências de LPrep's, realizado nos corpora C-DJIII, DN-M e CM-G, pode-se
concluir que permanece válida a fórmula composicional anteriormente pro-
posta por Nolasco de Macêdo (1997) para abrigar as possibilidades de
formação das LPrep's no período arcaico da língua portuguesa, pois, nos
corpora enfocados foram encontrados os mesmos processos de formação
de locuções prepositivas antes verificados.
Quanto ao aspecto morfológico das LPrep's, praticamente, ocorrem
no português quinhentista e no galego medieval as mesmas formas, haven-
do poucos casos em que só numa das duas línguas comparadas ocorreu
determinada LPrep, o que não invalida a possibilidade de seu aparecimen-
to em outros textos, de diferentes modalidades, que não aqueles sobre os
quais se estudou neste trabalho.
Nas Cartas de D. João III há o predomínio bastante significativo do
advérbio na posição de centro ou núcleo das LPrep's, enquanto em DN-M
esta preponderância correspondeu ao nome e em CM-G estão presentes
em igualdade de números o nome e a preposição. No que respeita á exis-
tência do verbo na posição central da LPrep, constata-se sua existência,
mesmo que em grau mínimo.

1
No total, procedeu-se à analise de 374 docs., uma vez que duas outras cartas encontram-se
enclausuradas àquelas de nos 221 e 231, respectivamente, nos 221a e 231a.
2
01 doc. de Padrin, Província de A Coruña; 01 doc. de Lugo, província de mesmo nome; 01 doc.
de Ribadavia, Província de Ourense; e 01 doc. de Pontevedra, província de igual denominação.
3
Chegou-se à descrição da existência de um centro e de margens, direita e esquerda, em que
as chaves { } abrigam um elenco de possibilidades X (igual a centro, núcleo da locução
prepositiva) no qual só uma das formas indicadas pode aparecer. Os parênteses ( ) expressam
a possibilidade de combinações entre as formas apontadas e o zero significa, naturalmente, a
ausência de preposição.
4
Cf. Anna Maria NOLASCO DE MACÊDO (1997). Nessa Dissertação, a autora disponibiliza uma
análise minuciosa sobre o comportamento das LPrep's em amplos corpora. Século XIII: Prosa
notarial: (1214, Lisboa - AN/TT) Testamento de Dom Afonso II – TDA (ms.A); (1214, Toledo,
Arquivo da Catedral) Testamento de Dom Afonso II TDA (ms.A1); Poesia (religiosa): (ms. da
segunda metade do século XIII – documentação galego-portuguesa) Cantigas de Santa Maria-
CSM; Século XIV: Prosa (religiosa) - traduzida: (ms. da segunda metade do século XIV) Diálogos
de São Gregório – DSG (pesquisados três dos quatro livros); Século XV: Prosa (religiosa)
traduzida (ms. do primeiro quartel do século XV) Livro de Solilóquio de Sancto Agostinho –
LSSA; (ms. da primeira metade do século XV) Crónica de Dom Fernando – CDF; Século XVI:
(ms. autógrafo de 1500) Carta de Pero Vaz de Caminha – CPVC; e (texto impresso em 1540)
Gramatica da língva portuguesa – J. de BARROS – GLP.
5
Prof. Dr. Francisco Xavier VARELA Barreiro, da Universidade de Santiago de Compostela, co-
orientador da autora na parte galega de sua Tese de Doutoramento, em curso, denominada
Gramaticalização das locuções prepositivas na história do galego e do português.
6
Cf. Rosa Virgínia MATTOS E SILVA (1994: 247-276): “[...] considero que se pode aceitar, como
hipótese a ser trabalhada, seguindo Leite de Vasconcelos e Lindley Cintra, que o período
arcaico se inicia com os primeiros documentos em português e que, muitas de suas características
se estendem até, pelo menos, 1536-1540, datas dos inícios da normativização da língua.”

Português 500.p65 259 22/7/2005, 14:55


260
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

7
Informa-se que o mecanismo de identificação usado é o seguinte: – (1277) corresponde ao
ano em que foi elaborado o documento; Pendorada é o local em que foi escrito; 018 é o número
da página em que se encontra a ocorrência em Martins (1994) e 021 significa a linha na qual se
localiza a LPrep enfocada. E assim funciona, sucessivamente, o processo de identificação das
recolhas de LPrep's. Observe-se que foram recolhidas 729 ocorrências de LPrep's nos
documentos notariais editados por Martins (1994) que perfazem 674 páginas do Apêndice
documental da Tese de Doutoramento de Ana Maria Martins.
8
O mecanismo de identificação usado é o seguinte: – Primeiro aparece o nº do documento –
Doc.55, apontado por Maia (1986). (1281) corresponde ao ano em que foi elaborado o documento;
Caldelas é o nome da localidade em que foi escrito; 133 é o número da página em que se
encontra a ocorrência e 025 significa a linha na qual se localiza a LPrep enfocada. No total, 136
são os documentos notariais galegos editados por Maia (1986).
9
Cf. Apres, adv. Arc. “Deve tratar-se de galicismo, do fr. après ou prov. apres. Do lat. tardio ad
pressum, “junto de”, loc. adv. formada com pressum, neutro tomado adverbialmente do p.p.
pressus “apertado, comprimido”; cf. o it. apresso (Block-Wartburg, s.v.). [...] Vj. apriscar. Apriscar,
v. Do lat. *appressic&:re, “apertar, comprimir” de ad + pressu-, part. de prem$-re (vj. apres); o
significado daquela forma da latinidade vulgar seria “meter, recolher ao aprisco”, pois as ovelhas,
quando recolhem ao redil, comprimem-se, agrupando-se e aconchegando-se umas às outras.
Cf.: Francisco Torrinha, no Boletim Mensal da Sociedade de Língua Portuguesa, III, p.139. Séc.
XVI: “Porque os Gentios são gados / Mui esquivos de guardar, / E tão bravos de apriscar, / Que
a terra que os tem, / Não a subirá ninguém”, Gil Vicente, Auto da Cananeia, na Copilaçam, fl.
79 vs.”
10
Aprés, ‘cerca’, ‘después’, ant., del lat. vg. AD PRE-SSUM ‘apretadamente’ de PRESSUS, participio
de PREMERE ‘ apretar’.” E adiante: “Vocablo bien conservado em los romances del Este y Norte
(cat. aprés, després, fr. après, près) y perdido en fecha muy temprana en castellano.Tradução:
APRÉS, ‘cerca’, ‘depois’, ant. do lat. vulgar. AD PRE -SSUM, ‘apertadamente’, de PRESSUS particípio
PREMERE ‘apertar’ [...] E adiante: Vocábulo bem conservado nos romances do Leste e do Norte
(cat. aprés, després, fr. après, près) e cedo perdido no castelhano.
11
Tradução: É difícil assegurar se era forma inteiramente autóctona, ou de influência galorromânica
(segundo crê A. Castro, RFE V, 25), ainda que os monumentos em que aparece poderiam
sugerir a primeira alternativa.
12
Número da Carta; ano de sua produção; local da escritura; número da página; número da linha
na respectiva carta, sem contar o número correspondente à carta e o nome do copista.

Referências bibliográficas
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A natureza do texto como um dos fatores
que condicionam o sistema de
demonstrativos nos séculos XV e XVI

Sílvia Santos da Silva Gonçalves

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265

Introdução

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
A
motivação primeira para a pesquisa sobre o sistema de demonstrati-
vos1 foi desencadeada a partir da observação do uso alternado, na
contemporaneidade brasileira, das formas demonstrativas este e esse,
com preferência para a forma esse, fato já observado por Joaquim Mattoso
Câmara Júnior (1971 e 1975), Paul Teyssier (1981) e Odirce Cid et alii (1986).
Neste texto enfocar-se-ão as comparações entre os séculos XV e XVI, a
partir, respectivamente, dos textos: a) Crônica de Dom Pedro, escrita por
Fernão Lopes, Carta de Pero Vaz de Caminha (1500), escrita por Pero Vaz
de Caminha; b) Diálogo em Louvor de Nossa Linguagem (1540), Diálogo
da Viçiosa Vergonha (1540) e o Livro Quinto da Primeira Década da Ásia
(1552), todos de autoria de João de Barros. Na medida do possível, far-se-ão
também analogias desses séculos com trabalhos feitos sobre o assunto no
português contemporâneo. Outra comparação que se fará é entre os autores
dos textos sob análise, relacionando-os com o tipo de texto, além disso,
comparar-se-á João de Barros “narrador” com João de Barros “ensaísta”.

1 Carta de Pero Vaz de Caminha versus Décadas da Ásia


de João de Barros
O objetivo principal em confrontar esses dois textos é observar se, mes-
mo narrando conteúdos semelhantes, eles apresentam resultados distintos,
e, se isso proceder, tentar verificar qual seria o fator condicionante, apesar
de se estar consciente de que cinqüenta e dois anos os separam, ou se os
resultados coincidem apesar da referida distância temporal.
O número de demonstrativos encontrado no recorte feito do Livro Quin-
to da Primeira Década da Ásia, que narra a viagem de Pedro Álvares Cabral
às Índias, é três vezes superior ao encontrado na Carta de Pero Vaz de Cami-
nha, que narra a viagem de Cabral até o Brasil. Isso se deve ao fato do
primeiro ser um texto bem maior que o segundo, conseqüentemente, o nú-
mero de ocorrências de demonstrativos será maior. Entretanto, ver-se-á que

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

em relação às funções desempenhadas pelos demonstrativos, a função


anafórica é a mais utilizada pelos dois autores. Como se pode verificar no
gráfico a seguir:

350

300

250

200

150

100

50
CPVC
0 DA
anáfora catáfora anáfora-dêitica dêixis temporal dêixis espacial dêixis "am
phantasma"

Gráfico 01 — Carta de Pero Vaz de Caminha versus Décadas da Ásia

Como se nota no Gráfico 01 acima, poder-se-ia afirmar que a curva


das ocorrências das funções desempenhadas pelos demonstrativos nos dois
textos sob análise é de certa forma igual, pois inicia-se com um pico de
ocorrências na função anafórica2 , cai na catáfora3 e mantém-se na anáfora-
dêitica4 , tendo uma ligeira elevação na dêixis temporal5 e com um aumen-
to em seguida na dêixis espacial 6 , caindo logo depois na dêixis “am
phantasma7 ”.
A diferença entre os endofóricos – anáfora, catáfora, anáfora-dêitica
– e os exofóricos – dêixis espacial, dêixis temporal e dêixis “am
phantasma” – pode ser feita através de traços semânticos, sintáticos e
pragmáticos, cuja visualização é feita a partir do Quadro 01 a seguir:

Funções anáfora catáfora dêixis dêixis dêixis “am anáfora-


espacial temporal phantasma” dêitica
Traços semânticos

Referência textual + + _ _ _ +
Referência textual já
+ _ _ _ _ +
referida
Espacialidade _ _ + _ _ +
Presença do referido no
+ + _ _ _ +
texto
Temporalidade _ _ _ + _ _
Generalidade _ _ _ _ + _
Compartilhamento + + + + + +
Determinação + + + + _ +

Quadro 01: Funções dêiticas e anafóricas

Português 500.p65 266 22/7/2005, 14:55


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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Esses dados parecem revelar que em uma narrativa-histórica existe a
predominância da função anafórica, que evita a repetição de termos, fra-
ses, orações e até de parágrafos inteiros, ou seja, é uma função importante
para dar a coesão textual. A função catafórica é menos usual, mas, para
(Fávero, 1997:19-23), a catáfora, assim como a anáfora, está inserida na
coesão referencial do tipo substituição, ou seja, a autora coloca essas duas
funções dentro da mesma classificação, entretanto, acredita-se que elas
não representem o mesmo papel dentro do texto, haja vista a diferença do
número de ocorrências em todos os tipos de texto e entre os séculos, ou
melhor, em todos os textos, como se verá, existe a prevalência da função
anafórica e um uso bastante reduzido, quando não nulo, como é o caso da
Carta de Pero Vaz de Caminha, da função catafórica.
Na anáfora-dêitica ocorre quase a mesma situação da função catafórica,
pois há um número pequeno de ocorrências, em relação às demais fun-
ções, no caso das Décadas, e nenhuma ocorrência no caso da Carta. Isso
leva à conclusão de que a função anáfora-dêitica não é muito utilizada,
porém deve-se considerar em relação à Carta o fato de Caminha estar es-
crevendo sobre o que estava ven-
do, ou seja, estava espacialmente
no mesmo local do que estava re-
latando. Isso permitia que não
lançasse mão desse recurso, de
que, na verdade, ele não precisa-
va, pois, como se sabe, para utili-
zar essa função é preciso que se
esteja espacialmente distante do
que se vai enunciar, e, como Ca-
minha utilizou um sistema do
tipo tricotômico não clássico8 ,
não houve a necessidade de uso
de tal função. Já nas Décadas,
apesar do baixo número, se
comparada às demais funções,
existem alguns casos, que se jus-
tificam por João de Barros narrar
fatos já ocorridos, e que tanto
temporalmente como espa-
cialmente estavam distantes dele.
As ocorrências de dêixis tempo-
ral nesses dois textos são utiliza-
das a partir de um sistema
dicotômico, todavia com diferen-
ças: na Carta, a distinção é entre
Reprodução do fólio 15v da Grammatica de tempo presente e tempo passa-
João de Barros

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

do, utilizando este e esse no primeiro caso e aquele no segundo; nas Déca-
das também o sistema é baseado em tempo presente e tempo passado, só
que utilizando este no primeiro caso e aquele no segundo. Outro fator
importante é que os temporais em Caminha são, em sua maioria, referen-
tes a dia e noite, e nas Décadas a noção de tempo é metade referente a dia
e noite e a outra metade a tempo e ano, isso pode ter influenciado na
escolha de qual demonstrativo utilizar.
Como se pode depreender do Gráfico 01 a função dêitica espacial é a
segunda mais utilizada em ambos os textos. Mas isso pode ser explicado
pelo conteúdo dos textos: no caso da Carta o autor estava relatando a seu
interlocutor, definido, elementos de uma terra distante com objetos des-
conhecidos, cuja referência no espaço, geralmente era especificada, já nas
Décadas o autor estava referindo-se, na maioria das vezes, a lugares dis-
tantes de Portugal. Essa obra tem por objetivo contar os “feitos” dos por-
tugueses no continente asiático, isso lhe impõe situar/transportar os
interlocutores indefinidos, nos espaços a que se está referindo.
Pode-se concluir, então, que o aumento no uso da função dêitica es-
pacial se dá nos textos por motivos distintos, no caso da Carta pelo que
estava perto ou longe dele e do seu interlocutor definido, e nas Décadas
pela distância espacial dos fatos que narrava. O número de ocorrências de
dêixis “am phantasma” na Carta é o quarto mais freqüente, diferente das
Décadas, em que essa função é a terceira mais freqüente, isso aparente-
mente pode ser contraditório, pois, se se observar o gráfico, a curva é idên-
tica. Contudo, não se deve esquecer que esses textos, apesar de serem
narrativas históricas, têm uma diferença crucial, que fica visível nessa fun-
ção. O fato de a Carta ter um destinatário específico e nas Décadas ter-se
um destinatário geral, indefinido, ou seja, por Caminha conhecer o recep-
tor e estar contando sobre outra cultura, pessoas e lugares desconhecidos
para seu receptor, não se utiliza muito dessa função, em que os interlocutores
devem, para que a comunicação se efetue com sucesso, compartilhar dos
mesmos assuntos, e, no caso da Carta, Caminha tinha consciência do que
era compartilhado por ele e Dom Manuel. Nas Décadas, contudo, João de
Barros não tinha conhecimento sobre seus interlocutores, por isso podia
utilizar-se mais dessa função porque partia-se do princípio de que alguns
assuntos eram de domínio público, logo o emprego da dêixis “am
phantasma” se fazia aproveitável mais para ele do que para Caminha.

2 Comparação entre os séculos XV e XVI


A Carta de Pero Vaz de Caminha e A Crônica de Dom Pedro, apesar
de serem narrativas, têm uma diferença que se considera decisiva para o
entendimento dos sistemas de demonstrativos utilizados pelos autores, a
mesma diferença já referida entre a Carta e as Décadas: um tem interlocutor
definido e o outro não. No caso da Crônica, Fernão Lopes não tem um

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
interlocutor único, ou seja, o autor tem a consciência de que está escreven-
do um texto histórico sobre a vida de um rei que será lido por várias ou
para várias pessoas, interlocutores indefinidos, como se pode depreender
na citação do próprio autor a seguir:
(...) he nossa entençom n’eeste prollogo muito curtamente fallar, nom come
buscador de novas rrazoões, per propria invençom achadas, mas come ajuntador
em h! breve moolho dos ditos d’alg!s que nos prouguerom: a h!a por espetar
os que ouvirem que entendam parte d’o qué falla a estoria, a outra por
seguirmos enteiramente a hordem do nosso rrazoado, no primeiro
prollogo ja tangida. E porquanto el-rrei dom Pedro, cujo rregnado se segue,
husou da justiça - de que a Deus mais praz que cousa boa que o rrei possa fazer,
segundo os santos escrevem - e alg!s desejam saber que virtude he esta, e,
pois he necessaria ao rrei, se o he assi ao poboo, nós n’aquelle stillo que o
simprezmente apanhámos o podees leer per esta maneira. (CDP, 1418- 1451,
l.4-13) [grifo nosso].

As diferenças que podem contrapô-los são: o tipo de assunto aborda-


do, a distância temporal, quase cinqüenta anos, e, por fim, o tipo de
interlocutor. No século XVI, tem-se os dois Diálogos e as Décadas, todos
esses textos são de João de Barros, porém, a sua natureza é distinta, pois
de um lado tem-se dois diálogos imaginários, que não se sabe se são base-
ados na realidade, se são transposição da mesma ou, ainda, se são um
misto das duas situações, do outro lado uma narrativa-histórica. Acredita-
se que essa diferença possa influenciar na utilização e até mesmo na esco-
lha do sistema de demonstrativo a ser empregado, pois, nesse caso, está
um mesmo autor em situações distintas de uso dos demonstrativos. Isso
pode dar indícios se a natureza textual, realmente, altera o uso do autor
em relação às funções fóricas. A seguir analisar-se-ão os textos dentro do
século em que estão inseridos, de acordo com a sua natureza, além de
textos de naturezas distintas do mesmo autor.

3 João de Barros narrador versus João de Barros


ensaísta

350
300

250
DLNL
200
DVV
150
DA
100

50

0
anáfora catáfora anáfora-dêitica dêixis temporal dêixis espacial dêixis "am
phantasma"

Gráfico 02 — João de Barros narrador versus João de Barros ensaísta

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

No Gráfico 02, percebe-se que os diálogos têm a mesma disposição,


guardadas as devidas proporções, que é distinta da narrativa, cuja curva é
muito diferente, podendo-se assegurar, a partir disso, que a natureza do
texto é um dos fatores condicionantes no emprego dos demonstrativos em
cada uma das funções encontradas. Os diálogos, na dêixis temporal, têm o
número de ocorrências inferior ao da anáfora-dêitica, contrariamente, ao
que ocorre nas Décadas, em que as ocorrências da dêixis temporal são
superiores às ocorrências de anáfora-dêitica, isso mostra que em um diálo-
go não há tanta necessidade de se estar utilizando da função dêitica tem-
poral, pois os interlocutores compartilham a mesma situação temporal. Já
nas Décadas, o maior número de ocorrências, em relação à anáfora-dêitica,
se justifica pela distância entre o espaço de tempo do narrador e o tempo
dos fatos narrados, ou seja, João de Barros não é contemporâneo aos fatos
que narra, levando-o a ter de valer-se da referida função.
Na dêixis espacial, o número de ocorrências é igual às de dêixis tem-
poral no Diálogo em Louvor de Nossa Linguagem, no Diálogo da Viçiosa
Vergonha e, nas Décadas da Ásia, as ocorrências de dêixis espacial são
três vezes superiores às ocorrências na função dêitica temporal. Isso pode
ser intrigante a partir do momento em que se visualiza no Gráfico a curva
parecida para os diálogos também, mas não se deve esquecer que, no caso
do Diálogo em Louvor de Nossa Linguagem, é apenas uma ocorrência.
Isso impede que se saiba qual seria, na verdade, a tendência curvilínea, já
que esses dados mostram a manutenção em relação à dêixis temporal. A
diferença entre esses dois tipos de textos faz-se realmente presente na
função dêitica “am phantasma”, em que o número de ocorrências nos diá-
logos cresce sensivelmente, em relação à dêixis espacial, e nas Décadas
ocorre exatamente o contrário, o número de ocorrências de dêixis “am
phantasma” é quase duas vezes menor em relação à dêixis espacial. A par-
tir desses dados, pode-se entrever que, na narrativa histórica, o autor tem
maior cautela na utilização de dados genéricos, pois ele sabe que está
escrevendo para um número muito vasto de pessoas, as quais podem não
compartilhar das informações por ele utilizadas, e nos diálogos o emprego
dessa função faz-se presente pelo fato de que, de alguma forma, a “presen-
ça” do interlocutor sinaliza que a referência ao genérico é possível, ou
melhor, o locutor sabe quais os elementos fazem parte da memória com-
partilhada por ambos, precisamente, pela presença de seu receptor no
momento da enunciação.9
Se se cotejar essa explicação com a dada, anteriormente, para justifi-
car a diferença de uso na função dêitica “am phantasma” entre a Carta e as
Décadas, poder-se-á chegar à conclusão que são contraditórias. Porém,
fundamentam-se as duas porque, no primeiro caso, a intenção foi mostrar
que, quando se tem um locutor definido e esse não compartilha das infor-
mações pelo locutor prestadas, a tendência, pelo que foi constatado, é um
número baixo de dêixis “am phantasma”, mesmo que seja uma narrativa
histórica. Já no segundo caso, tem-se em confronto um diálogo com uma

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
narrativa histórica, em que, no primeiro, a presença do locutor, não se tem
como saber se física ou imaginária, no caso desses textos e o fato de o
assunto ser comum aos dois, favorecerem o emprego da referida função
em oposição a uma narrativa histórica, em que o fato de ter um interlocutor
indefinido, mesmo com um assunto que seja de domínio público, favore-
cerá menos do que quando se tem um interlocutor definido.
A relação é de mais ou de menos probabilidade, que será empregada,
de acordo com as peculiaridades do texto, e não apenas com a natureza do
texto, podendo-se, nesses casos, utilizar argumentações distintas para ex-
plicar o maior ou menor uso da dêixis “am phantasma” no mesmo texto,
porém, frente a textos de naturezas diferentes. Constata-se, também, que
a situação em que o texto foi escrito pode influenciar mais do que o con-
texto. Resumindo, se se fizer uma escala de favorecimento para a utilização
da função dêitica “am phantasma” ter-se-ia:

1)diálogo;
2)narrativa histórica com interlocutor indefinido e assunto conhe-
cido;
3)narrativa histórica com interlocutor definido e assunto novo.

4 Caminha versus Dom Pedro


A seguir pode-se visualizar o Gráfico 03 em que se confrontam os
resultados das funções desempenhadas pelos demonstrativos nos dois tex-
tos que pertencem ao mesmo século, Carta de Pero Vaz de Caminha e
Crônica de Dom Pedro:
200

150
CPVC
100
CDP
50

0
anáfora catáfora anáfora-dêitica dêixis temporal dêixis espacial dêixis "am
phantasma"

Gráfico 03 — Caminha versus Dom Pedro

Através do Gráfico 03, pode-se inferir que as curvas dos textos são
simétricas. Até a dêixis temporal, apesar de não se ter nenhuma ocorrên-
cia das funções catafórica e anáfora-dêitica na Carta. Já nas funções dêitica
espacial e dêitica “am phantasma” acontece o inverso, ou melhor, as curvas
tomam tendências distintas. Como se pode observar, a Carta tem um au-
mento no número de ocorrências na dêixis espacial em relação à dêixis
temporal, e a Crônica tem o número de dêiticos espaciais inferior ao dos
dêiticos temporais.

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

A partir disso conclui-se que a Crônica, mesmo sendo uma narrativa


histórica, possui a natureza distinta da Carta, além disso pode-se explicar
o baixo número de dêiticos espaciais da Crônica em relação à dêixis tem-
poral por causa do próprio conteúdo do texto, o qual não precisava de
tantas referências espaciais, pois o texto trata da história de vida de Dom
Pedro e as poucas referências espaciais reportam-se ou ao mundo em que
o autor está inserido ou a partes do próprio discurso que está escrevendo,
distintamente do uso dêitico espacial da Carta que, além de possuir um
emprego peculiar dessa função, o autor escreve para alguém que está espa-
cialmente muito distante, contribuindo, dessa maneira, para a utilização
em maior número dessa função em relação à dêixis temporal. Nota-se a
partir disso que o emprego das funções não depende apenas do tipo de
texto, mas, também, a quem está endereçado: se esse interlocutor é defini-
do ou indefinido, se o conteúdo é compartilhado ou totalmente novo, ou
seja, estão em jogo fatores pragmáticos e estilísticos. Na dêixis “am
phantasma” a curva dá-se, mais uma vez, de forma inversa, à Carta que
teve um número mais elevado de dêiticos espaciais tem uma redução na
dêixis “am phantasma”. Na Crônica, que teve um número menor de dêiticos
espaciais, há uma aumento significativo na dêixis “am phantasma”. Essa
inversão parece confirmar o que foi dito acima. Pode-se explicar o número
reduzido de dêiticos “am phantasma” na Carta pelo mesmo motivo já ex-
posto, ou seja, a maioria dos elementos descritos por Caminha não era
conhecida por seu interlocutor – Dom Manuel –, e Caminha sabia disso,
então não se utilizou muito do recurso que está diretamente ligado à me-
mória compartilhada.
Já a Crônica, apesar de se tratar da vida específica de um rei, aborda
assuntos que são do conhecimento de todos tais como: a justiça e a bon-
dade, isso possibilita a utilização em maior número dessa função, já que o
conteúdo permeia a memória de todos. Acredita-se que os resultados fo-
ram divergentes, tanto nos tipos de funções mais utilizadas por eles, com
exceção da anáfora e da catáfora, como no tipo de sistema usado em cada
função por causa das situações em que os textos foram escritos e os conse-
qüentes objetivos de cada um deles.

5 Narrativas históricas
A seguir observa-se o Gráfico 04 com as ocorrências de demonstrati-
vos nas respectivas funções e nos textos que estão sendo aqui classifica-
dos, grosso modo, como narrativas históricas. Esses textos estão sendo
colocados um ao lado do outro para verificar se existe alguma
sistematicidade de uso entre eles, e, também, verificar se existe peculiari-
dade em cada um, e qual fator seria responsável por isso, são eles: A Carta
de Pero Vaz de Caminha, A Crônica de Dom Pedro e As Décadas da Ásia,
vejam-se abaixo os resultados encontrados:

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273
350

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
300
250
CPVC
200
DA
150
CDP
100
50
0
anáfora catáfora anáfora-dêitica dêixis temporal dêixis espacial dêixis "am
phantasma"

Gráfico 04 — Narrativas históricas

No Gráfico acima, nota-se que as curvas de todos os textos em análise


são semelhantes até a função dêitica temporal, guardadas as devidas pro-
porções. Depois na função dêitica espacial as curvas modificam-se. A Carta
de Pero Vaz de Caminha e a Décadas da Ásia têm um aumento na dêixis
espacial em relação à dêixis temporal e a Crônica de Dom Pedro tem uma
queda. Já na dêixis “am phantasma” tem-se o oposto, menor número de
ocorrência nas Décadas da Ásia e na Carta de Pero Vaz de Caminha, em
relação à função anterior, e um sensível aumento, também em relação a
dêixis espacial, na Crônica de Dom Pedro.
Essa constatação, a priori, difere do resultado que se esperava, pois,
como as Décadas da Ásia e a Crônica de Dom Pedro são textos em que os
autores tinham conhecimento de que estavam escrevendo para várias pes-
soas e Caminha para um único interlocutor, acreditou-se que isso poderia
influenciar no uso das funções, ou melhor, conjecturava-se que as curvas
das Décadas da Ásia e Crônica de Dom Pedro fossem iguais, diferindo da
Carta de Pero Vaz de Caminha, e não as Décadas da Ásia e a Carta de
Pero Vaz de Caminha com curvas semelhantes, distinguindo-se da Crôni-
ca de Dom Pedro. Pode-se tentar explicar essa inversão pelo fato de a
Crônica de Dom Pedro ser uma narrativa histórica distinta das outras, pois
além das transcrições de cartas, o texto tem um estilo vivo e elaborado
intelectualmente, características marcantes do autor do texto, Fernão Lopes.

6 Século XV versus século XVI


A seguir, no Gráfico 05, observa-se a comparação das funções desem-
penhadas pelos demonstrativos nos dois séculos sob análise, veja-se:
300

250
CPVC
200 CDP
DA
150 DLNL
DVV
100

50

Gráfico 05 — Século XV versus século XVI

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274
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

A partir do Gráfico 05 acima, percebe-se que em todos os textos a


função que tem maior índice de ocorrências é a anafórica, contrariando as
expectativas, já que nos Diálogos esperava-se uma maior utilização da fun-
ção dêitica. Todavia não se pode esquecer que o processo de anaforização,
que nada mais é que a substituição de um nome por um pronome ou de
uma frase, parágrafo por um pronome, no caso desta pesquisa, o demons-
trativo, para evitar a redundância, está inserido em outro segmento, o da
economia lingüística. André Martinet (1978: 181-183) define economia
lingüística como a busca permanente de equilíbrio entre necessidades con-
traditórias que é preciso satisfazer: necessidades comunicativas por um
lado, inércia memorial e inércia articulatória por outro, segundo ele as
últimas estão em permanente conflito, sendo que a primeira gera a econo-
mia paradigmática e a última a economia sintagmática. Esses dois tipos de
economia podem ser utilizados a depender da necessidade que a situação
comunicativa exija. Para André Martinet, em princípio, é a freqüência de
emprego dos termos que determina a escolha do tipo de economia.
A curva da Carta de Pero Vaz de Caminha e do Livro V da Primeira
Década da Ásia são idênticas, como já foi assinalado acima. Nos dois Diá-
logos as curvas, também, são perfeitamente iguais, o único texto que tem
uma curva diferente dos demais textos é a Crônica de Dom Pedro, que, no
início e no final, tem a curva parecida com a dos Diálogos, mas no meio
assemelha-se com a Carta e com as Décadas com um aumento de ocorrên-
cias na dêixis temporal e, logo em seguida, com uma queda desta última
função em relação à dêixis espacial, esse último dado distingue a Crônica
de todos os outros textos. Dessa forma, a Crônica de Dom Pedro não se
identifica com nenhum dos tipos de texto em estudo, por que será que
isso acontece?
Para responder a essa questão tem-se que relacionar esses dados com
a situação de escritura de cada texto, ou seja, onde o autor estava no mo-
mento em que escreveu o texto, se ele possuía um interlocutor definido ou
indefinido, se estava presente no momento em que os fatos narrados acon-
teciam, se o conteúdo do texto é contemporâneo ao autor. Diante disso
traça-se o perfil de cada texto baseando-se nos aspectos supracitados:

TEXTO PERFIL
Crônica de Dom Pedro [– presença do locutor] [– receptor definido]
Carta de Pero Vaz de Caminha [+ presença do locutor] [+ receptor definido]
Diálogo em Louvor de Nossa Linguagem [+ presença do locutor] [+ receptor definido]
Diálogo da Viçiosa Vergonha [+ presença do locutor] [+ receptor definido]
Décadas da Ásia [– presença do locutor] [– receptor definido]

Quadro 02: Perfil dos textos analisados

Todos os textos têm em comum o número bastante elevado de ocor-


rências da função anafórica com uma queda, logo em seguida, da função
catafórica, mostrando, dessa forma, que, independente de o texto ser uma
narrativa ou um diálogo, no qual se esperaria um emprego maior de dêixis

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
pela presença do interlocutor, o uso da função anafórica predomina. Isso
contradiz, de certa maneira, a etimologia dos demonstrativos, pois, segun-
do Lyons (1980), a função primeira desses elementos é a dêitica. Contudo,
se se levar em consideração a recomendação de João de Barros, na sua
Gramática da Língua Portuguesa (1540), onde assevera que o demonstra-
tivo este é essencialmente dêitico, referência extratextual, e esse é essenci-
almente anafórico, ou melhor, faz a referência dentro do texto, e pondera-se
que, em todos os textos, o demonstrativo mais utilizado na função anafórica
foi o este, chegar-se-á à conclusão de que a prescrição desse autor não
corrobora os dados, mas ressalta-se, mais uma vez, que ele não segue sua
prescrição à risca. Na função anáfora-dêitica em todos os textos há uma
queda em relação à função anterior, a catáfora, exceto a Carta de Pero Vaz
de Caminha, na qual essas duas funções não têm nenhuma ocorrência. A
partir disso pode-se aventar a hipótese de que essa função, detectada em
alguns textos, não era, pelo menos nos textos em análise, muito utilizada,
já que seu número de ocorrências é o menor em todos os textos, indican-
do, assim, que essa função só foi empregada pelos autores nas situações
especiais.
As ocorrências de dêixis temporal são mais elevadas na Carta de Pero
Vaz de Caminha, Crônica de Dom Pedro e Décadas da Ásia em relação a
anáfora-dêitica, indicando, nessa função, a união das narrativas históricas
frente aos Diálogos, em que o número de ocorrências de dêiticos tempo-
rais é inferior ao da anáfora-dêitica. A maior utilização da dêixis temporal,
pelas narrativas históricas, demonstra a necessidade que há nesse tipo de
texto de situar o leitor/receptor temporalmente dentro do texto e dos as-
suntos por ele abordados. Nos diálogos não é tão necessária a presença de
muitos demonstrativos nessa função, visto que, teoricamente, em um diá-
logo os interlocutores compartilham da mesma situação temporal e as ocor-
rências de dêiticos temporais nesses textos referem-se à época em que os
interlocutores estavam inseridos.
Na função dêitica espacial há um aumento em relação à função ante-
rior, dêixis temporal, na Carta de Pero Vaz de Caminha, Diálogo da Viçiosa
Vergonha e Décadas da Ásia, no Diálogo em Louvor de Nossa Linguagem
existe a manutenção e na Crônica de Dom Pedro há uma queda. Esses
resultados parecem revelar que na referida função, distintamente da
anafórica, independente do tipo de texto e da situação em que o texto foi
escrito, é sempre majoritária, porque, como se argumentou acima, essa
função está ligada à economia lingüística, está relacionada, diretamente,
com a situação em que foi escrito o texto, ou melhor, na função dêitica
espacial a sua maior ou menor utilização depende do conteúdo do texto:
se o autor está próximo ou distante dos fatos que narra, se o interlocutor
é definido ou indefinido, sendo definido, se ele está próximo ou distante
do seu interlocutor e/ou dos fatos por ele narrados. Nem todos esses crité-
rios, acima descritos, são utilizados pelos autores, eles vão variar de acor-
do com o tipo de texto, autor, conteúdo e objetivo. Na função dêitica “am

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

phantasma” existe um aumento, em relação à função anterior, dêixis espa-


cial, na Crônica de Dom Pedro, no Diálogo em Louvor de Nossa Lingua-
gem, Diálogo da Viciosa Vergonha, e uma queda significativa, na Carta de
Pero Vaz de Caminha e Décadas da Ásia. Esses dados colocam de um lado
duas narrativas-históricas e do outro os dois Diálogos, já a Crônica tem
uma curva igual à dos Diálogos, contrariando as expectativas, pois, sendo
narrativa histórica, esperar-se-ia, também, uma queda. Entretanto, isso
mostra que além dos fatores levantados para a escolha da função, relacio-
nados com a natureza do texto e o tipo de receptor, se definido ou indefi-
nido, outros fatores podem estar atuando, tais como: o conteúdo, que
pode exigir ou não mais ou menos demonstrativos em determinada fun-
ção. Não se quer afirmar com isso que a natureza do texto não interfira na
escolha das funções mais ou menos usadas, apenas conclui-se, com o com-
portamento diferenciado da Crônica, que não se pode assegurar que a
natureza do texto é o fator determinante, ele apenas contribui, claro que
aliado a outros. Além disso, a função dêitica “am phantasma” deve ser
utilizada quando o locutor tem, de alguma forma, consciência se o que ele
está falando é ou não compartilhado por seu(s) interlocutor(es). No caso
dos textos em estudo, sabe-se que nos Diálogos essa função pode ser usa-
da sem maiores problemas, justamente pela presença do interlocutor, como
já se discutiu, seja ela imaginária ou não, legitimando o aumento de dêiticos
“am phantasma” em relação à dêixis espacial nesse tipo de texto.
A conclusão a que se chega após incursão no sistema de demonstrati-
vos na Crônica de Dom Pedro, na Carta de Pero Vaz de Caminha, no
Diálogo em Louvor de Nossa Linguagem, Diálogo da Viçiosa Vergonha e
Livro V da Primeira Década da Ásia é a de que fatores intralingüísticos e
extralingüísticos atuam concomitantemente na escolha do sistema a ser
utilizado, às vezes uns atuando mais do que os outros, não se podendo
afirmar que apenas um seja determinante. Entretanto, a simetria entre os
textos de 1500 em diante e a diferença da Crônica, que é da primeira
metade do século XV, parece ser, também, determinada pelo fator tempo.

Considerações finais
Após as comparações feitas entre os textos, tem-se várias pondera-
ções a fazer, de acordo com a função desempenhada. Na função anafórica
a Carta de Pero Vaz de Caminha e o Livro Quinto da Primeira Década da
Ásia têm um sistema dicotômico clássico, no qual existe a variação entre
as formas de este e de esse, e a oposição dessas duas formas em relação às
de aquele; a Crônica de Dom Pedro apresentou, nessa função, um sistema
tricotômico não clássico, em que a escolha para se referir ao que está mais
perto é a forma este, mas se o demonstrativo for seguido ou mesmo se
referir a alguma palavra que tenha a consoante sibilante surda /s/ a escolha
será pelas formas de esse, mas se o referente estiver distante o demonstra-
tivo empregado será aquele.

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
No Diálogo em Louvor de Nossa Linguagem e no Diálogo da Viçiosa
Vergonha o sistema de demonstrativos, na referida função, é tricotômico
não clássico, porém, distinto do da Crônica. Nos diálogos usa-se este para
a referência dentro do discurso do próprio locutor, esse para a referência a
qualquer elemento no discurso do interlocutor e aquele para a referência a
um elemento mais distante no texto. Esses resultados, na função anafórica,
colocam, como nos gráficos acima foi demonstrado, a Carta e as Décadas
de um lado, os diálogos de outro e a Crônica com um sistema peculiar. Na
função catafórica a Crônica de Dom Pedro e o Diálogo em Louvor de
Nossa Linguagem parecem ter um sistema “monotômico”, pois os autores
utilizam apenas, nessa função, o demonstrativo este; no Diálogo da Viçiosa
Vergonha, dos trinta e oito demonstrativos que desempenharam essa fun-
ção, três são da forma esse, contudo, nesses três casos podia-se tanto in-
terpretar como anáfora ou como catáfora, decidiu-se pela última. Todavia,
nessa conjuntura, não se pode afirmar que o sistema é “monotômico” já
que se tem a presença da outra forma demonstrativa, mas é nítida a prefe-
rência do autor pelo demonstrativo este. Nas Décadas da Ásia, o sistema
empregado nessa função é dicotômico não clássico, porque existe a varia-
ção entre as formas este e esse, mas a escolha da última dá-se quando
existe a precedência de uma preposição, entretanto, ressalta-se que só acon-
tece uma ocorrência da forma esse, cuja forma é neutra, e esse fator pode
ter sido determinado pela antecedência da preposição. A partir desses da-
dos nota-se que, em todos os textos em que a função catafórica ocorreu, a
preferência pelas formas de este mostrou-se clara, revelando, assim, que
nesses dois séculos, em estudo, o demonstrativo que era majoritariamente
empregado nessa função era a forma este.
Na dêixis espacial, a Carta de Pero Vaz de Caminha possui um sis-
tema tricotômico não clássico, no qual a diferenciação é estabelecida na
distância ou proximidade das pessoas e/ou objetos em relação ao campo
mostrativo de Caminha, não tendo a distinção clássica, que considera além
do campo mostrativo do locutor o do interlocutor, ou seja, o primeiro
campo refere-se ao que está próximo de Caminha, o segundo campo refe-
re-se ao que está no Brasil, mas não próximo a Caminha, e, por fim, o
terceiro campo que se refere ao que está distante de Caminha e de Dom
Manuel. Na Crônica de Dom Pedro e no Diálogo em Louvor de Nossa
Linguagem o sistema é “monotômico”, pois os autores utilizam apenas,
como na função catafórica, as formas de este, mas no último texto é ape-
nas uma única ocorrência, que pode não estar refletindo a realidade da
época. No Diálogo da Viçiosa Vergonha há indícios de um sistema
tricotômico clássico, em que o autor utiliza o demonstrativo esse para o
que está próximo de seu interlocutor, entretanto, salienta-se que a forma
esse tem apenas uma única ocorrência. Esse tipo de texto é mais propício
ao emprego de um sistema tricotômico clássico, pela presença do
interlocutor, a qual faz com que o locutor “respeite” o campo espacial do
outro. Nas Décadas da Ásia o sistema é dicotômico clássico, porque a

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

distinção feita é entre o lugar em que o narrador se encontra, Portugal, e


os demais lugares, que estão distantes dele.
Pode-se concluir a partir do exposto que na função dêitica espacial:
primeiro, existe a preferência pelas formas de este, em todos os textos;
segundo, o sistema empregado nessa função parece depender da localiza-
ção espacial do locutor em relação aos fatos que narra, dando, dessa ma-
neira, indícios de que a depender da função exercida pelo demonstrativo o
fator extra-lingüístico ou situacional será determinante, ao menos, na fun-
ção dêitica espacial.
Na dêixis temporal, o sistema da Carta de Pero Vaz de Caminha é
dicotômico não clássico, em que este e esse variam, representando o tem-
po presente, e se opõem a aquele, que representa o tempo passado. Na
Crônica de Dom Pedro o sistema é tricotômico não clássico, porque fun-
damenta-se na não confusão entre o ponto dêitico temporal de Fernão
Lopes e o ponto dêitico temporal dos acontecimentos por ele narrados,
apesar do autor utilizar o demonstrativo aquele para se referir a distâncias
temporais maiores. Salienta-se que nesse texto, ao contrário das outras
funções, o número de ocorrências de esse foi superior às de este. Acredita-
se que isso acontece porque as formas este foram utilizadas para a referên-
cia ao espaço temporal de Fernão Lopes, e esse para o espaço temporal
dos fatos narrados.
No Diálogo em Louvor de Nossa Linguagem aconteceu uma única
ocorrência de este, não se podendo, nesse caso, tecer maiores considera-
ções, pois, nessa função, é preciso uma outra forma demonstrativa para,
quando menos, fazer a oposição entre tempo presente e tempo passado,
observando-se o tipo de sistematização feita pelo autor. No Diálogo da
Viçiosa Vergonha o sistema dêitico temporal, como o do Diálogo em Lou-
vor de Nossa Linguagem, não se pode fazer grandes conjecturas, pois tra-
ta-se apenas de duas ocorrências, ambas as formas demonstrativas são de
este. Já nas Décadas da Ásia os dados indicam um sistema dicotômico não
clássico, porque a oposição dá-se entre tempo presente e tempo passado,
para o primeiro a forma este e para o segundo a forma aquele. Nesse texto
ocorre uma única forma de esse, que varia com a forma este, acredita-se
que seu emprego ocorreu devido a precedência do anafórico hy, que, se-
gundo alguns autores seria a forma etimológica do advérbio locativo de
segunda pessoa aí e que, como prescrevem as gramáticas normativas, seria
o advérbio de lugar que se relacionaria com o demonstrativo, de segunda
pessoa, esse. Esses dados mostram que as distinções temporais são feitas
em dois campos: o do presente e o do passado, utilizando este para o
primeiro caso e aquele para o segundo, e quando se emprega a forma esse
é por algum condicionamento. Nos diálogos a única forma demonstrativa
utilizada foi este, explica-se isso pelo fato de, nesse tipo de texto, os
interlocutores dividirem o mesmo espaço de tempo, que só utilizarão, en-
tão, a forma aquele para se referirem a um espaço de tempo em que eles
não estejam inseridos.

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Na função dêitica “am phantasma”, na Carta de Pero Vaz de Cami-
nha, não se pode definir qual o sistema utilizado, já que Caminha, nessa
função, só emprega as formas de aquele. Na Crônica de Dom Pedro, assim
como na Carta, o autor emprega apenas as formas de aquele, há uma
ocorrência de esse, porém não pode ser atribuída a Fernão Lopes porque
essa ocorrência é parte de uma carta que o autor transcreve. No Diálogo
em Louvor de Nossa Linguagem, no Diálogo da Viçiosa Vergonha e nas
Décadas da Ásia, só ocorrem, também, as formas de aquele, não se po-
dendo falar em tipo de sistema utilizado, a não ser que se assuma a postu-
ra de que essa forma demonstrativa é a que melhor reflete esse tipo de
função, e se afirme que o sistema é, em todos os textos, “monotômico”.
Na função anáfora-dêitica, na Crônica de Dom Pedro, no Diálogo
em Louvor de Nossa Linguagem, no Diálogo da Viçiosa Vergonha e nas
Décadas da Ásia ocorre o mesmo que na função dêitica “am phantasma”,
há apenas o emprego das formas de aquele. A conclusão a que se chega é
a mesma dita acima: as formas de aquele parecem que são as que melhor
traduzem a noção tanto de generalidade e compartilhamento, dêixis “am
phantasma”, como de referência ao que já foi dito com expressão semânti-
ca dêitica espacial. Contudo, se se cotejarem as ocorrências das formas
neutras de aquele na dêixis “am phantasma” e anáfora-dêitica, ver-se-á
que elas só desempenham, nos textos em que essas formas ocorrem, fun-
ção de dêitico “am phantasma”. Isso corresponde aos traços encontrados
na classificação dessa função, pois a referida função tem, pelo menos, dois
traços que favorecem a utilização das formas neutras de aquele, são eles: [-
espacialidade] e [- determinação]; esses dois traços precisam de lexias que
tenham a marca de especificação, no caso dos demonstrativos, a desinência
de gênero que é não marcada, indicando a referência ao masculino, e/ou o
acréscimo do -a à raiz, indicando referência ao feminino.
Após essas considerações, acredita-se que o estudo sobre o sistema
de demonstrativos não se esgota aqui, pois deu-se apenas uma pequena
amostra de como uma classe gramatical, considerada de fácil aplicação
sintática, pode esconder vários tipos de sistematizações, as quais estão
diretamente ligadas a fatores intralingüísticos, extralingüísticos, à pragmá-
tica, à estilística, e até às associações paradigmáticas e sintagmáticas
saussurianas.
Sabe-se que todos os elementos que figuram no âmbito dos signos
(Ullmann, 1987: 32) perpassam por dificuldades de interpretação, pois
tem-se que considerar todos os fatores supracitados, e, como se viu nas
análises e na comparação dos dados, os fatores podem influenciar na esco-
lha do tipo de função e sistema utilizado para cada uma das referidas fun-
ções, ou todos eles, conjuntamente ou separadamente, pois, como se viu,
a situação comunicativa aliada aos referidos fatores pode, também, influ-
enciar no emprego desses signos. Mattoso Câmara (1990: 190), baseando-
se em Morris, afirma que a Lingüística deveria ser dividida em: semântica,
pragmática e sintática ou gramática. Neste trabalho viu-se que melhor se-

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

ria se não se dividisse, mas sim, que se somasse, porque, só com a união
do que foi desenvolvido por cada uma dessas partes, citadas por Mattoso
Câmara, é que se pode ter uma visão mais ampla do funcionamento e das
mudanças das línguas.
1
Este artigo é parte da minha dissertação de Mestrado defendida em agosto de 2000, na
Universidade Federal da Bahia, intitulada Demonstrativos, dêiticos e anafóricos: duas sincronias
em confronto (séculos XV e XVI) sob a orientação da Professora Doutora Rosa Virgínia Mattos e
Silva.
2
Denominou-se de ANÁFORA a identificação da referência, anteriormente, no próprio texto.
3
Denominou-se de CATÁFORA a identificação da referência, posteriormente, no próprio texto.
4
Denominou-se de ANÁFORA-DÊITICA a identificação da referência, no próprio texto, mas com
expressão semântica dêitica espacial.
5
Denominou-se de DÊIXIS TEMPORAL à situação do autor no tempo.
6
Denominou-se de DÊIXIS ESPACIAL à situação do autor no espaço.
7
Denominou-se de DÊIXIS “AM-PHANTASMA” a situação de compartilhamento do conhecimento
pelos interlocutores da referência espacial.
8
A definição tricotômico não-clássico é fundamentada na escolha dos demonstrativos baseando-
se em outros fatores que não a maior ou menor distância na referência no texto, ou seja, este
para uma referência imediata, esse para uma referência não muito distante, e aquele para uma
referência mais distante.
9
Sabe-se que no caso dos diálogos em estudo não se tem certeza da presença ou ausência do
interlocutor na situação comunicativa, pois se trata de uma criação/recriação escrita, o que leva
a outro tipo de situação. Todavia, de alguma maneira, essa presença, mesmo sendo um texto
escrito, é marcada porque João de Barros tem de, todo o tempo, escrever ou transcrever a fala
do filho, tornando viva a presença do seu interlocutor.

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O uso do artigo definido diante de
nome próprio de pessoa e de possessivo do
século XIII ao século XVI

Iraneide Costa

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1 Introdução

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
A
ntes de mais nada, creio ser importante deixar bem claro que os dados
que aqui discutiremos fazem parte da dissertação que apresentamos
ao final do Mestrado. Nossa proposta foi a de analisar os fatores
morfossintáticos que favoreceriam a presença (ou ausência) do artigo defini-
do diante de possessivo e de nome próprio de pessoa no período arcaico.
Visando a nortear a nossa pesquisa, elegemos como prioritários alguns
objetivos. Foram eles:

a) estabelecer fatores morfossintáticos responsáveis pela variação no


uso do artigo definido diante de possessivo e de nome próprio de
pessoa;
b) observar e analisar os já citados fatores em documentação do perí-
odo arcaico;
c) confrontar estruturas do período arcaico com o que ocorre no
português contemporâneo no que se refere ao uso facultativo do ar-
tigo definido nos referidos contextos.

Na busca desses nossos objetivos, uma das tarefas que nos coube inici-
almente foi a escolha dos textos com que trabalharíamos. Alguns critérios
foram, então, bastante relevantes na seleção das obras que viriam a consti-
tuir o nosso corpus.
Preocupamo-nos, em primeiro lugar, em selecionar textos que cobris-
sem todo o período arcaico da língua – século XIII a meados do século XVI,
portanto.
Além do que, decidimos que teria que haver uma diversidade de estilos
nos escritos que seriam objeto de nosso estudo. Para tanto, optamos por
escolher textos de natureza diferente, a saber:

a) 32 documentos notariais editados por Clarinda Maia (TCM). Trata-


se de documentos de caráter particular, não literários, provenientes

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da região de Entre-Douro-e-Minho. Têm datas que variam entre 1281


e 1484 (século XIII aos fins do século XV);
b) Crônica de D. Pedro (CDP), da autoria de Fernão Lopes, o inici-
ador da prosa elaborada em português. Sua obra se situa entre 1418
e 1454 e é considerada o maior marco da produção medieval portu-
guesa em prosa. É interessante salientar que, na tessitura de seu
texto, ele imita a historiografia anterior, valendo-se de operações
de corte e montagem de textos de outros autores, sendo sua prefe-
rência os relatos a ele contemporâneos;
c) Diálogo da Viçiosa Vergonha (DVV) e Diálogo em Louvor de Nossa
Linguagem (DLNL), ambos da autoria de João de Barros e escolhi-
dos como representantes do fim do período arcaico e início do
moderno. Serão esses o alvo de nosso maior interesse no presente
trabalho. Fazem parte do conjunto pedagógico-gramatical da obra
do citado autor, que, além dos referidos diálogos, é ainda constitu-
ído pela Cartinha e pela Gramática. Essas obras o revelaram como
um dos mais brilhantes espíritos do Humanismo português .

Maria Leonor Carvalhão Buescu (1971:II) afirma:

No mesmo prólogo da Car-


tinha – que deve, por conseguin-
te, considerar-se a primeira parte
da Gramática –, João de Barros
acrescenta: ‘E no fim da gramáti-
ca vam dous diálogos, hum em
louvor da lingua portuguesa, e
outro da sobeja vergonha: maté-
ria conveniente à idade em cujo
proveito esta nossa obra se com-
pôs’. Sabemos, porém, que o alu-
dido Diálogo da sobeja vergonha
se encontra mencionado com o
título definitivo da Viçiosa Vergo-
nha na Tavoa da Cartinha que não
é mais do que um índice geral das
quatro obras (...).
É na Gramática, na Car-
tinha e nos dois diálogos que
João de Barros deixa mais evi-
dente o seu pendor pedagó-
gico e formativo, segundo
ainda Buescu (1971).
O Diálogo em louvor de
Fragmento do fólio 12r da Grammatica de João de nossa linguagem é, na verda-
Barros
de, um complemento da Gra-
mática. Logo no seu início, o

Português 500.p65 286 22/7/2005, 14:55


287

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
autor reafirma a intenção pedagógica do mesmo, depois passando a ocu-
par-se da origem das línguas, buscando, nesse aspecto, respaldo principal-
mente nas Escrituras. Propõe-se a analisar o problema da diferenciação
das línguas, o qual explica, precipuamente, levando em conta o mito da
Torre de Babel. Admite, todavia, a noção de evolução e filiação lingüística,
muito embora confundindo essas noções com a idéia de corrupção. Reco-
nhece a paternidade latina do português, considerando essa, inclusive, a
língua mais perfeita, pois afirma ser a que mais conserva características do
latim. A primeira e segunda edições desse Diálogo foram conjuntas com a
da Gramática, ocorrendo, respectivamente, em 1540, por Luís Rodrigues ,
e em 1785, essa dos monges cartuxos.
O Diálogo da Viçiosa Vergonha, que parece ter sido composto antes
do Diálogo em louvor da nossa linguagem, é, na verdade, um diálogo
entre o autor e seu filho, no qual aquele pretende estabelecer regras sãs de
vida para a juventude.
Deixa bem claro o autor, desde o início, o seu caráter complementar
em relação à Gramática. Depois, então, define as diferentes espécies de
vergonha, em relação à sua origem, causas e efeitos morais, a partir de três
conceitos latinos: pudor, verecundia, erubescentia.
A primeira edição do Diálogo da Viçiosa Vergonha é de 1540, de Luís
Rodrigues. A segunda edição só veio aparecer em 1785, por iniciativa dos
monges cartuxos, num volume intitulado de Compilaçam de varias obras
do insigne portuguez Joam de Barros, do qual fazem parte ainda a
Cartinha, a Gramática e o Diálogo em louvor de nossa linguagem.
Em cada um dos supracitados textos, foram levantadas as ocorrências
de possessivo e de nome próprio de pessoa. A seguir, elas foram divididas
em dois grupos distintos, a depender de estarem as estruturas (ou não)
antecedidas de artigo definido.
Detivemo-nos, então, a estudá-las em seus aspectos morfossintáticos,
visando interpretá-los e assim estabelecer o que fomentaria a presença
(ou ausência) de artigo definido nos já referidos contextos. Os resultados
alcançados na análise de cada texto foram, então, confrontados entre si, a
fim de serem detectadas possíveis diferenças e/ou semelhanças ocorridas
ao longo do período arcaico, considerando os documentos notariais e a
Crônica de D. Pedro de Fernão Lopes.
Faremos agora um breve relato dos resultados a que chegamos. Utili-
zaremos alguns gráficos bem como algumas tabelas, que nos ajudarão a
dar uma visão mais clara dos dados.
Observando os gráficos 01 e 02, retirados do trabalho de Callou e
Silva (1996), chegamos a algumas conclusões:

Português 500.p65 287 22/7/2005, 14:55


288
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

FREQÜÊNCIA
FREQÜÊNCIADE
DEUSO
USO DO ARTIGO
ARTIGO DIANTE
DIANTE
DE POSSESSIVOS
100%
90%
80%
70%
60%
50% PORTUGAL
40% BRASIL
30%
20%
10%
0%

III
XV

XX
V

I
II

X
XV
XV
XI

XI
XV
Gá ê

Gráfico 01: Freqüência de uso do artigo diante de


possessivos (In: Callou e Silva, 1996:3)

FREQÜÊNCIA DE USO DO ARTIGO DIANTE


DE ANTROPÔNIMOS
45%
40%
35%
30%
25% PORTUGAL
20%
15%
10% BRASIL
5%
0%
XV
XIV

XVI
XVII
XVIII

XX
XIX

Gráfico 02: Freqüência de uso do artigo diante de


antropônimos (In Callou e Silva, 1996:3)

1 No que se refere ao uso do artigo definido diante de possessivo, o


percentual de ocorrência no Brasil no século XX equivale ao percentual
de uso em Portugal no século XVII, vindo essa informação a reforçar a
corrente dos que afirmam ser o português do Brasil mais conservador, no
que se refere à ausência do artigo diante de possessivo.
2 O uso do artigo definido diante de antropônimos apresenta percentual
equivalente ao do uso do artigo definido diante de possessivo no século
XX.
3 Há um aumento nos percentuais de ocorrência de artigo definido nos
dois contextos.

Português 500.p65 288 22/7/2005, 14:55


289

2 Artigo definido diante de possessivo

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Inicialmente analisaremos as ocorrências de artigo definido diante de
possessivo. A Tabela 01 e o Gráfico 03 nos fornecem os seguintes dados:
TCM CDP DVV DLNL TOTAL
OC % OC % OC % OC % OC %
Poss. c/ art. 54 12,64 53 7,12 52 28,57 25 37,87 184 12,96
Poss. s/ art. 340 79,62 689 92,60 130 71,42 41 62,12 1200 84,56
Art. + det. + poss. 33 7,72 2 0,26 0 0 0 0 35 2,46
Tabela 01: Ocorrências de artigo definido diante de possessivo

40,00 37,87

35,00
28,57
30,00 T.C.M.
25,00 C.D.P.
%

20,00 D.V.V.
12,64
15,00 D.L.N.L.
10,00 7,12
5,00
0,00

Gráfico 03: Ocorrências de artigo definido diante de possessivo

1 A percentagem de poss. c/ art. é maior nos textos representativos do


limite final do período arcaico (DVV: 28,57%; DLNL: 37,87%).
2 É incontestável a superioridade dos percentuais alcançados pelas ocor-
rências de poss. s/art. em todos os textos.
3 De um total de 1384 ocorrências (desprezando-se os casos em que ocor-
re a estrutura art. + det. + poss.) analisadas, 1200 (86,70%) foram de
possessivo não antecedido de artigo, havendo apenas 184 (13,29%)
de possessivo antecedido de artigo.

Os gráficos 04 e 05 nos mostram que os percentuais de poss. c/ art.


se aproximam dos valores de poss. s/ art. em DVV e DLNL.

Português 500.p65 289 22/7/2005, 14:58


290
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

80 71,42
70
60
50 Poss. c/ art.
40 Poss. s/ art.
28,57
30 Art. + det. + poss.
20
10 0
0

Gráfico 04: Ocorrências de artigo definido diante de possessivo


em DVV

70 62,12
60
50
37,87 Poss. c/ art.
40
Poss. s/ art.
30
Art. + det. + poss.
20
10
0
0

Gráfico 05: Ocorrências de artigo definido diante de possessivo


em DLNL

Foram estudados, em todo o corpus, conforme já mencionado anteri-


ormente, os contextos morfossintáticos em que se observou a variação no
uso do artigo definido diante do possessivo. Em decorrência disso, fo-
ram selecionadas as seguintes variáveis condicionadoras:

a) tipos de possessivo;
b) número;
c) tipos de sintagma;
d) formas como a preposição se apresenta;
e) função sintática do sintagma nominal.

a) Tipos de possessivo

O Gráfico 06 e a Tabela 02 nos fornecem as seguintes informações:

Português 500.p65 290 22/7/2005, 14:58


291

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
TCM CDP DVV DLNL TOTAL
OC % OC % OC % OC % OC %
meu(s), minha(s) 10 18,51 2 3,77 8 15,38 1 4,00 21 11,41
nosso(s), nossa(s) 10 18,51 6 11,32 4 7,69 10 40,00 30 16,30
teu(s), tua(s) 0 0 2 3,77 11 21,15 0 0 13 7,06
vosso(s), vossa(s) 6 11,11 5 9,43 1 1,92 0 0 12 6,52
seu(s), sua(s) 28 51,85 38 71,69 28 53,84 14 56,00 108 58,69

Tabela 02: Possessivos detectados nas obras pesquisadas

70
58,69 meu(s), minha(s)
60

50 nosso(s),
nossa(s)
40 teu(s), tua(s)
%

30
vosso(s),
20 16,3 vossa(s)
11,41 seu(s), sua(s)
10 7,06 6,52

Gráfico 06: Possessivos detectados nas obras pesquisadas

1) É marcante a supremacia dos percentuais de ocorrências dos possessi-


vos seu(s), sua(s) frente aos alcançados pelos demais possessivos.
2) Foram os pronomes vosso(s), vossa(s) seguidos dos pronomes teu(s),
tua(s) que mostraram um rendimento menor.

O Gráfico 07 nos informa que, em DVV, embora as percentagens supe-


riores sejam dos possessivos seu(s), sua(s), os possessivos meu(s), minha(s)
e teu(s), tua(s) apresentam desempenhos relevantes.

60
53,84
meu(s),
50 minha(s)
nosso(s),
40 nossa(s)
teu(s), tua(s)
%

30
21,15 vosso(s),
20 vossa(s)
15,38
seu(s), sua(s)
10 7,69
1,92
0

Gráfico 07: Possessivos detectados em DVV

Português 500.p65 291 22/7/2005, 15:01


292
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

O Gráfico 08 mostra que, apesar do mais alto percentual referir-se


também aos possessivos seu(s), sua(s), os possessivos nosso(s), nossa(s)
apresentam um percentual muito significativo em DLNL.

60,00 56,00
meu(s),
50,00 minha(s)
40,00 nosso(s),
40,00 nossa(s)
teu(s), tua(s)
%

30,00

20,00 vosso(s),
vossa(s)
10,00 4,00 seu(s),
0 0 sua(s)
0,00

Gráfico 08: Possessivos detectados em DLNL

b) Número

O Gráfico 09 e a Tabela 03 informam que há superioridade absoluta


de ocorrências no singular no uso do possessivo com artigo em todos os
textos. O percentual de variável singular chega a atingir 96% em DLNL.

TCM CDP DVV DLNL TOTAL


OC. % OC. % OC. % OC % OC %
Singular 42 77,77 41 77,35 36 69,23 24 96,00 143 77,71
Plural 12 22,22 12 22,64 16 30,76 1 4,00 41 22,28
Tabela 03: Ocorrências de singular e plural no uso dos possessivos nas obras pesquisadas

90
77,71
80
70
60
50 Singular
%

40 Plural
30 22,28
20
10
0

Gráfico 09: Ocorrências de singular e plural no uso dos possessivos


nas obras pesquisadas

Os gráficos 10 e 11 confirmam a supremacia da variável singular nas


ocorrências de poss. c/ art. também em DLNL e em DVV.

Português 500.p65 292 22/7/2005, 15:01


293

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
80 69,23

60

% 40 30,76 Singular
Plural
20

G
Gráfico 10: Ocorrências de singular e plural no uso dos possessivos
em DVV

120,00
96,00
100,00
80,00
Singular
%

60,00
40,00 Plural

20,00 4,00
0,00

Gráfico 11: Ocorrências de singular e plural no uso dos possessivos


em DLNL

c)Tipos de sintagma

O Gráfico 12 e a Tabela 04 indicam que a proeminência do sintagma


preposicionado nas ocorrências de possessivo com artigo é irrefutável
em todos os textos analisados.
Reforça-se assim a idéia de que a preposição vem a ser estímulo ao
uso do artigo definido.

Tabela 04: Ocorrências de possessivo com artigo em SNs e SPreps

80 66,3
60
33,69 Preposicionado
%

40
Nominal
20

Gráfico 12: Ocorrências de possessivo com artigo em SNs e SPreps

Português 500.p65 293 22/7/2005, 15:01


294
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Os gráficos 13 e 14 exibem dados que comprovam a superioridade do


sintagma preposicionado nas ocorrências de poss. c/ art. em DVV e em
DLNL.

80
57,69
60 42,3 Preposicionado
%

40
Nominal
20
0

Gráfico 13: Ocorrências de possessivo com artigo em SNs e SPreps


em DVV

80,00
60,00
60,00
40,00 Preposicionado
%

40,00
Nominal
20,00
0,00

G O S S
Gráfico 14: Ocorrências de possessivo com artigo em SNs e SPreps
em DLNL

d) Tipos de preposição

O Gráfico 15 e a Tabela 05 nos mostram que o percentual total de uso


da preposição de em ocorrências de poss. c/ art. é superior ao somatório
total de todas as outras preposições no referido contexto.

Tabela 05: Ocorrências de preposições em contexto de possessivos com artigo

Português 500.p65 294 22/7/2005, 15:02


295

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
70
63,74

60 de
a
50
em
40 perante
com
%

30 por
22,13
20
ante
até
9,16
10 conforme
0,81 1,63 0,81 0,81 0,81 0,81
0

Gráfico 15: Ocorrências de preposições em contexto de possessivos com


artigo

Os gráficos 16 e 17 vêm reforçar o dado de que a preposição de é a


que mais contribui para o uso do artigo diante de possessivo em DVV e
em DLNL. Não podemos deixar de mencionar, porém, que a preposição a
apresenta desempenho significativo em DVV.

de
60,00
50,00 a
50,00 em
40,00 perante
30,00
com
%

30,00
20,00 13,33 por
ante
10,00 3,33 3,33
0 0 0 0 até
0,00
conforme

Gráfico 16: Ocorrências de preposições em contexto de possessivos


com artigo em DVV

80 73,33 de
a
60 em
perante
%

40 com
13,3313,33 por
20
ante
0 0 0 0 0 0
0 até
conforme

Gráfico 17: O corrências de preposições em contexto de possessivos


com artigo em DLNL

e) Formas como a preposição se apresenta

A Tabela 06 e o Gráfico 18 evidenciam o fato de que preposições


que se contraem fomentam muito mais o uso do artigo definido diante
de possessivo, ocorrendo isso em todos os textos.

Português 500.p65 295 22/7/2005, 15:02


296
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Confirma-se a tese de que preposições contraídas fomentam mais o


uso do artigo definido, uma vez que a tendência aí é preposição e artigo
serem vistos como único morfema.
TCM CDP DVV DLNL TOTAL
OC % OC % OC % OC % OC %
Contraídas 38 88,37 32 94,11 27 90,00 14 93,33 111 90,98
Não contraídas 5 11,62 2 5,88 3 10,00 1 6,66 11 9,01
Tabela 06:Ocorrências de preposições contraídas e não-contraídas no contexto
pesquisado

100 90,98

Contraídas
%

50
Não contraídas
9,01
0

Gráfico 18: Ocorrências de preposições contraídas e não-contraídas no


contexto pesquisado

Os gráficos 19 e 20 comprovam que a supremacia de uso do artigo


com preposições contraídas é muito alta em DVV e em DLNL.

100,00 90,00

80,00

60,00
Contraídas
%

40,00 Não contraídas

20,00 10,00

0,00

Gráfico 19: Uso de artigo com preposições contraídas e não-


contraídas em DVV

100 93,33

80

60 Contraídas
%

40 Não contraídas

20 6,66
0

Gráfico 20: Uso de artigo com preposições contraídas e não-


contraídas em DLNL

Português 500.p65 296 22/7/2005, 15:02


297

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
f) Função sintática do sintagma nominal

A Tabela 07 e o Gráfico 21 nos apresentam dados que demonstram


que as funções de sujeito e de objeto direto foram as que obtiveram maior
índice no uso do artigo diante de possessivo em todos os textos, sendo
que a primeira função (SUJ) apresentou resultado superior em CDP, en-
quanto a segunda (OD) apresentou resultados superiores em TCM, DVV e
DLNL.
TCM CDP DVV DLNL TOTAL
OC % OC % OC % OC % OC %
Objeto direto 8 72,72 8 42,10 13 59,09 5 50,00 34 54,83
Sujeito 3 27,27 10 52,63 8 36,36 4 40,00 25 40,32
Predicativo 0 0 1 5,26 1 4,54 1 10,00 3 4,83

Tabela 07: Função sintática do SN no contexto de emprego de artigo diante de possessivo

60 54,83

50
40,32
40
Objeto direto
%

30 Sujeito
Predicativo
20

10 4,83

Gráfico 21: Função sintática do SN no contexto de emprego de artigo


diante de possessivo

Os gráficos 22 e 23 informam que a função de objeto direto foi a que


apresentou um melhor desempenho no que se refere ao uso do artigo
definido diante de possessivo em DVV e em DLNL.

70
59,09
60
50
36,36 Objeto direto
40
%

30
Sujeito
20 Predicativo
10 4,54
0

Gráfico 22: Função sintática do SN no contexto de emprego de artigo


diante de possessivo em DVV

Português 500.p65 297 22/7/2005, 15:06


298
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

60,00
50,00
50,00
40,00 Objeto direto
40,00
Sujeito
%
30,00
20,00 Predicativo
10,00
10,00
0,00

Gráfico 23: Função sintática do SN no contexto de emprego de artigo


diante de possessivo em DLNL

3 Artigo definido diante de nome próprio de pessoa


Passemos agora a analisar o uso do artigo definido diante de nome
próprio de pessoa.
A Tabela 08 e o Gráfico 24 mostram que há ocorrência de artigo defi-
nido no referido contexto apenas em DVV e em DLNL.
TCM CDP DVV DLNL TOTAL
OC % OC % OC % OC % OC %
NPP c/ art. 0 0 0 0 1 0,49 1 1,96 2 0,13
NPP s/ art. 488 85,31 727 99,73 199 99,00 50 98,04 1464 94,27
Art. + det. + NPP 84 14,68 2 0,27 1 0,49 0 0 87 5,60

Tabela 08: Artigo definido diante de nome próprio de pessoa

2,50
1,96
2,00
T.C.M.
1,50
C.D.P.
%

1,00 D.V.V.
0,49 D.L.N.L.
0,50
0,00 0,00
0,00

Gráfico 24: Artigo definido diante de nome próprio de pessoa

O Gráfico 25, apesar de comprovar a predominância da estrutura NPP


s/ art., informa que em DVV encontramos uma ocorrência de NPP c/ art..
Analisando, todavia, a referida ocorrência, percebemos que nela o nome
próprio ganha conotação de nome comum, uma vez que é usado no senti-
do genérico, para designar um certo tipo de indivíduo:

Português 500.p65 298 22/7/2005, 15:02


299

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
(...) Este perdám, conseguiu el-rei Ezequias, David, e a Madalena em
casa de Simám leproso (...)

Madalena aí representaria a figura da pecadora arrependida.


Encontramos em DVV ainda uma ocorrência que preferimos não com-
putar como ocorrência de nome próprio antecedido de artigo, tendo em
vista que nela encontramos um nome próprio no plural, referindo-se a
vários elementos da mesma família, ou seja, sendo usado com uma
conotação de nome comum:

(...) como a madre dos Zebedeos (...)

NPP c/
120 art.
99,00
100 NPP s/
art.
80
Art. + det.
%

60 + NPP
40
20
0,49 0,49
0

Gráfico 25: Artigo definido diante de nome próprio de pessoa em DVV

Observando o gráfico 26, percebemos que, embora em DLNL haja


também um percentual maior no que se refere à estrutura NPP s/ art., foi
aí que a estrutura NPP c/ art. apresentou um maior desempenho em rela-
ção a todo o corpus por nós analisado.
É interessante, contudo, que analisemos a ocorrência de NPP c/ art.:

(...) Peró, com aquéla majestade e alteza, falou, no quarto de sua Eneida,
tam alta e mimòsamente do amor, que, lhe nam chegaram as garrediçes de
Ovídio, e as doçuras de Petrarca, que, nestes brincos, muito se esmeraram. Foi o
Vergílio naquele seu livro (...).

Fica evidente que o artigo definido foi aí utilizado com um objetivo:


destacar o elemento (Vergílio) dos demais (Petrarca e Ovídio).

Português 500.p65 299 22/7/2005, 15:02


300
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

120
98,04
100 NPP c/
art.
80 NPP s/
art.
%

60
Art. + det.
40 + NPP
20
1,96 0
0

Gráfico 26: Artigo definido diante de nome próprio de pessoa em DLNL

4 Conclusão
No que se refere ao uso do artigo definido diante de possessivo, ob-
servamos que, embora tenham sido encontradas ocorrências em todos os
textos analisados, esse uso intensificou-se nos textos pertencentes ao final
do período arcaico (séc XVI), ou seja, no Diálogo da Viçiosa Vergonha e
no Diálogo em louvor da nossa linguagem, sendo inclusive o percentual
apresentado por cada um deles superior ao somatório dos percentuais dos
outros textos analisados (TCM e CDP). Isso nos leva a concluir que esse
uso vem intensificando-se ao longo do tempo.
Algumas variáveis destacaram-se bastante como estímulo ao uso do
artigo definido diante de possessivo em todos os textos analisados: a
variável singular, o sintagma preposicionado (embora essa torne-se me-
nos significante em DVV e DLNL) e a preposição contraída. Não podemos
deixar de assinalar, todavia, o fato de as diferenças apresentadas pelos
percentuais das diferentes variáveis tenderem a diminuir em DVV e em
DLNL.
Notamos que foi grande a regularidade no uso do possessivo antece-
dido de artigo: a influência das variáveis condicionadoras tende a ocorrer
no mesmo sentido em todo o corpus.
Embora o foco do nosso estudo tenha sido o uso do artigo definido
diante de possessivo seguido de substantivo, houve, em todos os tex-
tos analisados, ocorrências de artigo + pronome possessivo substanti-
vo ( TCM: uma oc.; CDP: 15 oc.; DVV: uma oc.; DLNL: 6 oc.)
Já em se tratando do uso do artigo definido diante de nome pró-
prio de pessoa, é imprescindível que se chame atenção para as seguintes
informações:

a) de um total de 1466 ocorrências analisadas, 1464 (99,86%) foram


de nome próprio de pessoa não antecedido de artigo definido, ocor-
rendo apenas dois casos (0,13%) de nome próprio de pessoa antecedi-
do de artigo. Confirma-se, assim, a informação de Silva (1996:138) de

Português 500.p65 300 22/7/2005, 15:02


301

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
que o uso desta estrutura em linguagem escrita é muito baixo, já que ela é
tida como própria da linguagem oral;
b) as primeiras ocorrências só têm lugar nos textos que pertencem ao
final do período arcaico: DVV e DLNL;
c) mesmo nos textos em que ocorre, esse uso apresenta percentuais
bastante baixos, além de ocorrer em situações bastante singulares, con-
forme já vimos.
d) nos dois únicos casos de nome próprio de pessoa antecedido
de artigo, a função sintática exercida é a de sujeito. Callou e Silva
(1997:199), em suas pesquisas, já haviam observado não só que até o
século XVII era esta a posição em que era freqüente essa estrutura, como
também que foi assim que se registrou pela primeira vez o seu uso.

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303

Anexo

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
I. Ocorrências de possessivo com ou sem artigo
1. Diálogo da Viçiosa Vergonha
Levantamento:
Possessivo antecedido de artigo 52
Possessivo não antecedido de artigo 130

Ocorrências:
Possessivo antecedido de artigo:
01 ...prólogo da Cartinha e Gramática da nossa linguagem... ( 412,1 )
02 ...sem olhar a nossa ordem... ( 412,8)
03 ...vai à minha livraria... ( 413,1)
04 ...As cáusas do teu tratádo... ( 413,19 )
05 ...o títolo ao teu tratádo... ( 413,22)
06 ...[h]ájas a sua bênçam... ( 414,4 )
07 ...das tuas perguntas e minhas respostas... ( 414,10 )
08 ...Senhor,ouvi a tua vóz... ( 416,9)
09 ...esperára na sua misericórdia... ( 416,16 )
10 ...vergonha de mi, [h]á dos meus sermões... ( 420,24 )
11 ...não está o sojeito da nóssa prática... ( 421,2 )
12 ...Máis clára [h]á mister o meu intendimento... ( 421,20 )
13 ...assi os seus defeitos lhe(s) cáusam máior vergonha... ( 422,3 )
14 ...do seu intendimento... ( 422,15 )
15 ...discorrendo per muitos dos seus filhos... ( 425,7 )
16 ...se a minha mam ou pé me escandalizar... ( 425,10 )
17 ...se o meu olho me escandalizar... ( 425,12 )
18 ...Convértem a sua perfeição... ( 425,18 )
19 ...mandáva Sócrates aos seus deçípulos... ( 426,2 )
20 ...que tevéram os seus defeitos... ( 429,10 )
21 ...da sua p[ro]pria natureza... ( 429,20 )
22 ...da sua grossura... ( 429,23 )
23 ...amóesta ao seu vício... ( 431,3 )
24 ...do que diz a tua epístola... ( 431,17 )
25 ...ainda o seu segredo fáça máis santo... ( 432,13-14 )
26 ...té concluir a sua epístola... ( 432,18 )
27 ...salvaçám dos seus hebreos... ( 435,8 )
28 ...compôs a sua Ásia... ( 437,6 )
29 ...morier-se-ám ante os teus olhos... ( 437,19 )
30 ... térra, sáiu o som deles; e nos fins da térra as suas palavras... ( 438,16 )
31 ...a órdem da sua vida... ( 438,18 )
32 ...apaçenta as minhas ovelhas... ( 439,2 )
33 ...e aos seus suçessores... ( 439,2-3 )
34 ...zelár a sua lei... ( 439,18 )
35 ...que me tolhe[s]se dár a multiplicaçam o meu talento... ( 440,3 )
36 ...ô que, no seu gosto, é azedo... ( 443,10 )
37 ...um meio conforme a tua idade... ( 444,13-14 )

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304
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

38 ...proçéde da minha boa tençám... ( 446,6 )


39 ...mandou mostrár todolos seus tesouros... ( 447,2 )
40 ...assi da tua parte como de quem te cometer... ( 447,10 )
41 ...Adám encorreo por comprazer a sua companheira Éva... ( 448,14-15 )
42 ...sam de todolos nóssos defeitos do ânimo... ( 450,9-10 )
43 ...imitár a Xérxes na sua passágem... ( 453,7 )
44 ...levantár está, da tua párte... ( 454,13 )
45 ...aos seus çidadãos... ( 458,2 )
46 ...mandou ao seu tesoureiro... ( 458,12 )
47 ...respondo às tuas ligas ou línguas... ( 460,8 )
48 ...e o vósso galardám será grande... ( 460,21 )
49 ...na sua Canônica... ( 461,9 )
50 ...nô que tocáva à sua humanidáde... ( 461,16 )
51 ...que recolhesse os seus apótemas... ( 464,2 )
52 ...Esta é a sua resposta... ( 467,18 )

Observação: art. + pron. poss. substantivo: 1...que um príncipe dos


nóssos mandou... ( 462,15 )

2. Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem

Levantamento:

Possessivo antecedido de artigo 25


Possessivo não antecedido de artigo 41

Ocorrências:

Possessivo antecedido de artigo


01 ...da Gramática da nóssa linguágem... ( 390,8 )
02 ...Que importa o meu trabalho... ( 390,9 )
03 ...os princípios confórmes à sua idade... ( 390,11 )
04 ...e magestáde do seu sangue?... ( 390,11 )
05 ...sejam recompensádos com louvármos a nossa linguagem... ( 391,3-4 )
06 ...na sua arquitetura... ( 392,11-12 )
07 ...à verdade da nossa fé... ( 393,4-5 )
08 ...a língua do nosso primeiro padre Adam... ( 393,12-13 )
09 ...e o seu pecado lhe(s) trocou os significados... ( 395,15 )
10 ...em louvor da nossa pátria... ( 397,18-19 )
11 ...o louvor da nóssa linguágem... ( 398,19 )
12 ...em a sua Árte Poética... ( 401,6 )
13 ...andaram como o seu próprio português... ( 402,3)
14 ...a natureza da nóssa linguágem... ( 402,10 )
15 ...por apurar a sua língua... ( 404,3 )
16 ...da sua eloqüência... ( 404,4 )
17 ...que a sua língua tinha... ( 404,13 )
18 ...ao jugo do seu império... ( 404,14 )

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305

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
19 ...que falássem senám a sua língua latina... ( 404,16-17 )
20 ...póde dár ser Espanha sudita ao seu império... ( 404,18-19 )
21 ...aprenderem a nossa linguagem... ( 405,18-19 )
22 ...em os preçeitos da nossa fé... ( 405,19-20 )
23 ...é danár a sua péle... ( 406,22 )
24 ...da nossa fé... ( 407,5 )
25 ...Estes sam os seus preçeitores... ( 409,5 )

Observação: art. + pron. posss. substantivo


...[H]ájas tu a bênçam de Deos e a minha, e, quanto... ( 393,9 )
...tratemos da nossa, quero... ( 391,8 )
...que fazem ao propósito da nóssa as quáes... ( 396,15-16 )
...saber primeiro o seu que o alheio... ( 403,16 )
...que a nóssa é ao povo de Lisboa... ( 403,20 )
...saberem as regras da nossa,lhe(s) era ... ( 406,8 )

II Ocorrência de nome próprio de pessoa com ou sem artigo

1. Diálogo da Viçiosa Vergonha

Levantamento:

Nome próprio de pessoa antecedido de artigo: uma ocorrência


Nome próprio de pessoa não antecedido de artigo: 199
Art. + det. + NPP: uma ocorrência

Ocorrências:

NPP antecedido de artigo


1...Este perdám, conseguiu (...) a Madalena em cása... ( 416,12-13 )

Art. + det. + NPP


1...fáz o mesmo Séneca... ( 433,3 )

Observação:
Há uma ocorrência de artigo antecedendo nome próprio de pessoa no
plural para designar uma coletividade familiar:
1 ...como a madre dos Zebedeos... ( 466,14 )

2. Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem

Levantamento:

Nome próprio de pessoa antecedido de artigo: uma ocorrência


Nome próprio de pessoa não antecedido de artigo: 50

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Ocorrências:
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

NPP antecedido de artigo


1 ...Foi o Vergílio naquele seu livro... ( 399,21 )

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Verbos de padrão especial no
português do século XVI

Zenaide de Oliveira Novais Carneiro

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1 Apresentação

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
O
português do século XVI tem sido caracterizado como estável em
relação ao quadro de variação fônica expresso pelas grafias não
normatizadas do português arcaico (PA). A seleção entre variantes
representadas na escrita desse período levou a uma relativa uniformidade na
escrita do português clássico ou moderno. Fato esse que é atribuído às evo-
luções fonético-fonológicas e aos processos analógicos.
Neste trabalho, apresentaremos um estudo sobre os verbos de padrão
especial (VPE), também denominados de “irregulares”, no português do sé-
culo XVI. A hipótese é que mudanças fônicas ou analógicas anteriores os
tornaram menos irregulares ou regulares nessa fase do português, conforme
demonstram vários estudos históricos clássicos sobre a formação da língua
portuguesa, entre esses, os de Nunes (1960), Williams (1986), Coutinho
(1976), Huber (1986) e Piel (1989). Em uma pesquisa detalhada sobre esse
tipo de verbo no português arcaico, Mattos e Silva (1989) mostra a relevân-
cia de fenômenos morfofonológicos na caracterização da estrutura dos VPE a
partir da proposta de análise desenvolvida por Mattoso Câmara (1972).
O confronto entre dados do português do século XVI e dados do PA
tem como objetivo verificar como as mudanças fônicas ou analógicas se re-
fletiram na morfologia desses verbos e quais foram mais suscetíveis a essas
mudanças.
Os resultados da pesquisa são baseados em dados do século XVI extra-
ídos do corpus do PROHPOR (Programa para História da Língua Portugue-
sa), especificamente, de dois conjuntos de documentos, cujo período abrange
pouco mais da primeira metade do século XVI e que retratam, ainda, a tran-
sição entre o período arcaico e o período clássico ou moderno do português.
As Cartas de D. João III, rei de Portugal, escritas por diversos escrivães entre
13 de outubro de 1523 e 20 de fevereiro de 1557 e a obra pedagógico-
gramatical de João de Barros de 1540, composta pela Gramática da Língua
Portuguesa e dois diálogos, o Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem e o

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310
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Diálogo da Viçiosa Vergonha (de agora em diante GLP, DLNL e DVV, res-
pectivamente).1
A idéia de contrapor cartas a textos pedagógicos tem como propósito
a diversificação das fontes. Como se sabe, essa gramática de João de Bar-
ros é a primeira gramática normativa da língua portuguesa. Os dois diálo-
gos que compõem esse conjunto, em especial o DLNL “surge, antes, como
correspondendo a uma necessidade de Barros se completar e se esclarecer
a si próprio como autor da Gramática” (Buescu, 1971: XXX). O DVV, gros-
so modo, é um texto que discute conceitos morais e cristãos expressos
através de um diálogo entre o
autor e o seu filho Antônio. Os
dados do PA são de Mattos e Sil-
va (1989/1994) que teve como
base principal a versão trecentista
dos Diálogos de São Gregório na
sua edição, intitulada A mais an-
tiga versão portuguesa dos qua-
tro livros dos Diálogos de São
Gregório (1971).
O trabalho está organizado
da seguinte forma: na parte 3,
após essa apresentação e uma
breve análise da estrutura VPE
em 2, apresentaremos o para-
digma desses verbos no século
XVI, seguido de uma descrição
dos fenômenos que caracterizam
os seus lexemas. Na parte 4, fa-
remos uma retomada dos dados
desse período e os confrontare-
mos com os VPE da sincronia
anterior, como já dito. Na parte
5, a conclusão, apresentaremos
um quadro-resumo das mudan-
ças ocorridas com esses verbos
Reprodução do fólio 22r da Grammatica de de uma fase para outra do por-
João de Barros
tuguês.

2 A estrutura dos verbos de padrão especial ou


irregulares
Sob a perspectiva tradicional são considerados irregulares aqueles que
se afastam do modelo de conjugação a que pertencem, apresentando vari-
ação tanto no lexema, quanto na flexão. Os critérios formulados para a

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311

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
definição do conceito de irregularidade verbal, apresentados pelas gramá-
ticas normativas,2 são baseados, portanto, na análise da estrutura do ver-
bo formado por um tema (radical/lexema + vogal temática) e pelas
desinências. Assim, verbo irregular “é o verbo cujo radical sofre modifica-
ção no decurso da conjugação, ou cujas desinências se afastam das
desinências do paradigma, ou ainda, o que sofre modificações tanto no
radical quanto nas desinências” (Almeida, 1994:260).
A denominação verbos de padrão especial é usada como alternativa
por Mattoso Câmara Jr. (1972) para a terminologia “verbos irregulares”,
porque nesses se podem depreender características mórficas comuns. O
agrupamento desses verbos é feito com base na noção de aspecto verbal, o
de ação acabada, tempos ou radicais do perfeito (RP), o pretérito perfeito
(IdPt2), pretérito mais-que-perfeito (IdPt3), imperfeito do subjuntivo (SbPt)
e futuro do subjuntivo (SbFt) e ação não-acabada, tempos ou radicais do
imperfeito (RI), ou não-perfeito, tempo divergente.
A análise proposta por Mattoso Câmara (1972) é desenvolvida por
Mattos e Silva (1989) que destaca a especificidade ou divergência das for-
mas do perfeito. Os agrupamentos considerados pela autora para o VPE
do português arcaico são os seguintes:
Subgrupo 1: Verbos que apresentam variação no lexema das formas
do não-perfeito e têm lexema específico para as formas do perfeito, com
ou sem variantes cujo subgrupo é formado por 14 verbos (dizer, trager,
fazer, aver, teer, viir, põer, veer, estar, poder, jazer, querer, ir e ser) e
subcategorizados, de modo geral, de acordo com os processos fônicos co-
muns, a saber:

i) Lexemas dos tempos do não-perfeito (TNP):

a)variação na consoante final ou seu apagamento;


b)variação travamento nasal/vibrante no final do lexema;
c)diferença de vogal do lexema e/ou por seu alongamento por pa-
latal <j>, resultado de palatalização histórica;
d)variação da consoante que trava o lexema de acordo com a
etimologia;
e)variação na ditongação do lexema;
f)lexemas heteronímicos do verbo ir - vadere e ire;
g)variações vocálicas e consonânticas nos lexemas heteronímicos
do verbo seer < lat. “sedere” e “esse”.

ii) Lexemas dos tempos do perfeito (TP):

a)lexema próprio aos tempos do perfeito e distinto dos lexemas do


não-perfeito;
b)variação do lexema que opõe por alternância vocálica <i:e> P1 a
P3 do pretérito perfeito;

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

c)variação do lexema que opõe por alternância vocálica <u:o> P1 a


P3 do pretérito perfeito;
d)verbo seer que opõe por alternância vocálica <u:o> P1 e P3 do
pretérito perfeito;
e)e tem como base lexical de todos os TP a forma P3 fo–;
f)o verbo veer que em todos os TP apresenta o lexema vi-.

Subgrupo 2: Verbos que apresentam lexema invariável para as formas


do não-perfeito e têm lexema específico para as formas do perfeito. Esse
subgrupo é constituído pelos verbos saber, prazer, caber e dar:

i) Lexemas dos tempos do não perfeito (TNP):

a) lexema invariável (sab-, praz-, cab-);


b) verbo dar que se apresenta com vogal temática a – Vta.

ii) Lexemas dos tempos do perfeito (TP):

a) lexema com ditongação herdada de sua história: saib-, proug- e


coub-;
b) verbo dar que se apresenta com vogal temática e – VTe.

Subgrupo 3: Verbos que apresentam variações nos lexemas do não-


perfeito, sendo o lexema das formas do perfeito a variante mais generaliza-
da do lexema do não-perfeito:

i) Lexemas dos tempos do não-perfeito (TNP).


ii) Lexemas dos tempos do perfeito (TP) – do indicativo presente,
P1 e Subjuntivo presente, P1 a P6:

a) verbos que têm o lexema do indicativo presente, P1 e subjuntivo


presente fechados por sibilante |ts| > ficativa |s|, grafada <ç>
decorrente do étimo latino, em que as formas correspondentes apre-
sentam uma semivogal anterior, seguindo a consoante final do
lexema;
b) verbos que terminam seu lexema pelo sufixo derivacional incoativo
do latim (–“scere”).

Subgrupo 4: Verbos de PP especial, tradicionalmente chamado de par-


ticípio forte:

Esse subgrupo, por sua vez, é formado por verbos em que o particípio
passado (PP) não segue o padrão geral - LEX + VT + do, e estão subdividos
em dois grupos:

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313

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
a)verbos que têm um lexema específico de acordo com seu étimo
latino para o PP;
b)verbos que têm um lexema único próprio ao verbo.

Essa proposta de análise para os VPE desenvolvida por Mattos e Silva


(1989) para o PA aplica-se de modo geral aos dados do português do sécu-
lo XVI, considerando-se, entretanto, as especificidades próprias desse perí-
odo, como veremos adiante.

3 Os verbos de padrão especial no século XVI

3.1 Os dados
As 7.041 ocorrências registradas no corpus que se referem a vinte e
três verbos de padrão especial: arder, caber, daar ~ dar, dizer, estár ~
estar, fazer ~ ffazer, aver ~ haver ~ [h]aver, hyr ~ ir ~ yr, jazer, medir,
ouvir ~ ouvyr, poder, por ~ poer, prazer ~ praser, pedir ~ pidir, perder,
querer, saber, ser ~ seer, ter ~ teer, trazer, vir ~ vyr, ver ~ veer. Desse
total, 144 ocorrências referem-se às formas derivadas: maldigo, bendigo,
contradizer, contrafaço, refaço, desfaço, avenho, convinha, proponho,
componho, proveer, comprazer, aprazer e compuséram.
O quadro 1, a seguir, indica o número de ocorrência dos VPE nos dois
conjuntos de documentos.

Nº VERBOS OBRA CARTAS DE D. SUB-TOTAL


PEDAGÓGICO- JOÃO III (DJ)
GRAMATICAL DE
JOÃO DE BARROS
(JB)
01 ser ~ seer 898 616 1.514
02 fazer ~ ffazer 211 641 852
03 ter ~ teer 458 273 731
04 dizer 410 201 611
05 aver ~ [h]aver ~ haver 145 408 552
06 poder 188 241 429
07 querer 204 145 349
08 ir ~ hyr 50 305 355
09 dar ~ daar 99 189 288
10 ver ~ veer 102 152 254
11 vir 86 172 258
12 estar 96 98 194
13 por ~ poer 111 18 129
14 ouvir 100 11 111
15 saber 56 141 197
16 pedir ~ pidir 20 51 71
17 prazer 20 27 47
18 trazer 25 27 52
19 perder 18 13 30
20 jazer 6 1 07
21 arder 02 1 03
22 caber 02 1 03
23 medir 02 — 02
TOTAL GERAL 3.309 3.732 7.041

Quadro 1: O total e a origem dos dados analisados

Além desses, constam da documentação os verbos que têm particípio


passado especial, que não estão incluídos nos resultados acima porque, à

Português 500.p65 313 22/7/2005, 15:02


314
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

exceção do PP especial, nos demais modos, tempos e pessoas, se compor-


tam de acordo com o paradigma dos verbos de padrão geral. Somam um
total de 198 ocorrências (50 em JB e 148 em DJ), aberto (abrir), aceito
(aceitar), cinto (cingir), coberto (cobrir), cuberto (cubrir), coseito (co-
ser), colheito (colher), dito (dizer), escrito (escrever), expresso (expri-
mir), feito ~ ffeyto (fazer), impresso (imprimir), morto (matar), morto
(morrer), nado (naçer), pago (pagar), posto (poer ~ por), preso (pren-
der), solto (soltar) e visto (ver ~ veer).
Usamos convenções para designar os modos e os tempos, agrupados
com base na variação dos lexemas dos tempos do não-perfeito (TNP),
indicativo presente (IdPr), imperfeito (IdPt1), futuro do presente (IdFt1),
futuro do pretérito (IdFt2), presente do subjuntivo (SbPr), imperfeito (Imp.),
infinitivo flexionado (Inf. fl.), infinitvo (Inf.), e gerúndio (Ger.) e os dos
tempos do perfeito (TP), pretérito perfeito (IdPt2), pretérito mais-que-per-
feito (IdPt3), imperfeito do subjuntivo (SbPt) e futuro do subjuntivo (SbFt).
As seis pessoas gramaticais foram representadas pela letra P, numerada de
1 a 6. As abreviaturas de P1 a P3 se referem às pessoas do singular e as de
P4 a P6, às pessoas do plural.

3.2. Paradigma dos verbos de padrão especial

3.2.1 Subgrupo 1: Verbos que apresentam variação no lexema das formas


do não-perfeito e têm lexema específico para as formas do perfeito, com ou sem
variantes
Os verbos do subgrupo 1 são os que apresentam o maior número de
variação nos seus lexemas, principalmente nos TNP. E, embora haja uma
oposição entre a P1 e a P3 de IdPt2 em parte dos verbos desse subgrupo,
que caracterizaria a princípio também uma variação nos TP, é a forma de P1
o lexema específico para os outros TP.
No português do século XVI, os verbos que se realizam dessa forma
são: dizer, trazer, fazer ~ ffazer, haver ~ aver, ter ~ teer, vir, por ~ poer,
ver ~ veer, estar, poder, jazer, querer, saber, ir ~ hyr e seer ~ ser. Esses
verbos estão subagrupados, abaixo, a partir fenômenos fônicos comuns
em cada grupo de lexema, os do tempo do não-perfeito e os do tempo do
perfeito. A análise dos lexemas será desenvolvida adiante.3

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Português 500.p65 314 22/7/2005, 15:02


315

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)

Dizer: DIS- ~ DES- DIS - (IdPt2 - P1, P3,


~ DISC- P4, P5 e P6 , IdPt3 -
DIX- P3; SbPt - P2 a P6 e
SbFt - P1 a P6)
DES- (SbPt - P3)
DISC - (SbPt - P5)
DIX - (IdPt2 P3)

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)


Trazer: TRAG- TRAG- (IdPr - P1 , SbPr - P6)
TRAZ- TRAZ -(IdPr - P2, P3, P4 e P6 ;
TRA- IdPt1 - P3 ; Imp. - P2;
Inf. Fl - P2 e P6; Inf.
e Ger.)
TRA - (IdFt1 - P3)

II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)


Trazer: TROUX- TROUX- (IdPt2 - P1, P3, P4
e P6; SbPt - P6 e
SbFt - P3)

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Fazer: FAÇ- ~ FFAÇ- FAÇ- (IdPr - P1 e SbPr - P1, P2,


FAZ- ~ FFAZ- ~ FAAZ- P3, P5 e P6 )
~ FAZZ FFAÇ- (IdPr - P1 e SbPr - P5)
FA- ~ FFA-
FAZ- (IdPr - P2 a P6 ; IdPt1 - P3 e
P6; Imp. - P5 ; Inf. Fl. - P4,
P5 e P6; Inf. e Ger.)
FFAZ- (Inf. fl. - P5, Inf. e Ger)
FAAZ - (IdPr - P3)
FAZZ - ( Ger.)
FA - (IdFt1 - P1, P3, P4, P5 e
P6 e IdFt2 - P3, P5 e
P6 )

II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)

Fazer: FIZ- ~ FYZ- ~ FFIZ- FIZ- (IdPt2 - P1, P5 e P6 , IdPt3


FEZ- ~ FFEZ- - P1 e P3 , SbPt - P3 e
P6; SbFt - P1, P3, P5 e
P6 )
FYZ- (SbFt - P3 )
FFIZ- (IdPt3 - P3 e SbFt - P5)
FEZ- (IdPt2 - P3, P5 e P6 ; SbPt
- P3 e P6 ; SbFt - P3, P5
e P6 )
FFEZ- (IdPt2 - P3)

Português 500.p65 315 22/7/2005, 15:02


316
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Aver: AV- ~ [H]AV , AV- (IdPr - P4 e P5 ;


HAV IdPt1 -P3, P5 e P6 ;
AJ- ~ [H]AJ IdFt1 -P1, P3 e P6;
A- ~ [H]A , HA IdFt2 -P1 e P3 ; Inf.
fl. - P6 Inf. e Ger.)

[H]AV- (IdPr - P4; IdPt1 -


P2, P3 e P6;
IdFt1 - P3 e
P5; IdFt2 - P3
Inf. e Ger.)
HAV- ( IdFt2 - P3 )
AJ - (SbPr - P3, P5 e P6)
[H]AJ- (SbPr - P2 e P3 )
A - (IdPr - P1 e P6 )
[H]A - (IdPr - P1, P2, P3
e P6 )
HÁ - (IdPr - P1, P2, P3 e
P6 )

II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)

Aver: OUV- ~ HOUV- OUV- (IdPt2 - P3 e


[H]OUV- P6;IdPt3 - P3;
SbPt - P1 ; P3, e
P6; SbFt - P3, P5
e P6)

HOUV- (IdPt2 - P6; SbFt


- P3)
[H]OUV- (IdPt2 - P3, P4 e
P6; IdPt3 - P3 e
P4; SbPt - P3 e
P4, SbFt - P3 )

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Ter ~teer: TEN-, TE -~ TEM -~ TEN- (IdPr - P5 e Imp. - P5 e


TEEM - ~TE - ~ THEM- Ger.)
TENH- ~ TEENH- TE - (IdPr - P3 , P5 e P6)
TER- ~ TEER- TEM- (IdPr - P3, P4 P5 e P6
TINH- e Ger.)
TEEM - (IdPr - P6)
THEM - (IdPr - P6 (tempo
derivado))
TENH- (IdPr - P1 ; SbPr - P1,
P2, P3, P5 e P6)
TEENH- (IdPr - P1)
TER - (IdFt1 - P1, P2, P3, P5
e P6 ,IdFt2 - P3; Inf.
Fl. - P4, P5 e P6 e
Inf.)
TEER - (IdFt1 - P5 e P6 e Inf.
Fl. P1 e P6 e Inf.)
TINH- (IdPt1 - P1, P3, P5
e P6 )

Português 500.p65 316 22/7/2005, 15:02


317

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)

Teer ~ Ter: TIV- TIV- (IdPt2 - P1, P4, e P6;


TEV- IdPt3 - P1 a P6,
SbPt - P3 ; SbFt -
P3, P4 e P5 )
TEV- (IdPt2 - P3, P5 e P6;
IdPt3 - P3; SbPt -
P2, P3 e P6; SbFt -
P2, P3, P5 e P6)

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Vir ~ vyr: VE- ~ VEEM ~ V E - (IdPr - P3 e P6)


VEE - VEEM - (IdPr - P6)
VENH- ~ VEENH- VEE - (IdPr - P6)
VI- ~ VY -
VINH- ~ VYNH ~ Vy VENH - (IdPr - P1 e SbPr-
VIN- ~ VYN- ~ VIM P3 a P6)
VEENH- (SbPr - P3 e P5 )
VI - (IdFt1 - P3 e P6, IdFt2 -
P3; Inf. Fl. - P3, P5 e P6
e Inf.)
VY- (IdFt1 - P3 e P5; Inf. Fl.
P1, P2, P5 e P6 e Inf.)
VINH- (IdPt1 - P3 e P6 )
VYNH- (IdPt1 - P3 e P6)
Vy - (IdPt1 - P3)
VIN- (Ger.)
VYN - (Ger.)
VIM- (Ger.)

II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)

Vir ~ Vyr VIM VIM - (IdPt2 - P1)


VE- ~ VEE-
VY- ~ VI- ~ VE- (IdPt2 - P3 )
VEE- VEE- (IdPt2 - P3 e P6)

VY- (IdPt2 - P6; SbPt - P3


e P5 ; SbFt - P3 e P6)
VI - (IdPt2 - P6 , IdPt3 -
P3; SbFt-P3, P5 e P6)

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)


Por ~ poer: POM-, PÕ- PÕ- (IdPr - P3 e P6 e Ger.)
PONH-
PUNH- PONH - (IdPr - P1 e SbPr -
PO- P3)
PUNH- (IdPt1 - P3 e P6 )
PO- (IdFt2 - P3 , Inf. Fl. - P6 e
Inf. )

II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)

Poer: POS- POS- (IdPt2 - P3, P4


(P4 no tempo
derivado) e P6 ,
IdPt3 - P3)
PUS- PUS- (IdPt2 - P1 e P4 e
P6 (A P6
aparece
somente no
tempo derivado)

Português 500.p65 317 22/7/2005, 15:02


318
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)


Ver ~ veer: VE- ~ VEE VE- (IdPr - P2, P3, P4 e P5
VI- ~ VY IdFt1 - P2 a P6 e Inf.
VEJ- Fl. - P1, P3, P4 P5 e
P6; Imp. - P2; Inf. e
Ger.)
VEE- (IdPr - P3 e Inf.)
VI- (IdPt1 - P3)
VY- (IdPt1 - P3 )
VEJ- (IdPr - P1 , SbPr -
P2, a P6 )

II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)

Ver ~ Veer: VI- ~ VY- VI- (IdPt2 - P1, P3, P4, P5


VEE- e P6, SbPt - P3;
SbFt - P5 e P6)
VY - (IdPt2 - P1, P3 e P5
e SbFt - P5 )
VEE- (SbFt - P1 )

I –Tempos do não- perfeito (variação nos lexemas)


Estar: EST- EST- (IdPr - P1, P3, P4, P5
e P6; IdPt1 - P3, P5 e
P6; IdFt1 - P5; SbPr -
P6 ; Inf. Fl. - P5 e P6,
Inf. e Ger)

II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)

Estar: ESTIV- ESTIV- (IdPt2 - P1; SbPt - P6 e


ESTEV- SbFt - P3 , P5 e P6)
ESTEV- (IdPt2 - P3, SbFt - P2,
P3 e P5)

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Poder: POS- POS- (IdPr - P1 ; SbPr-


POD- P2, P3, P5 e
POOD- P6)
POD- (IdPr - P2 a P6 ;
IdPt1 - P1, P3,
P4 e P6; IdFt1 -
P1, P3, P4, P5 e
P6 ;
IdFt2 - P3 e P6;
Inf. Fl. - P4, P5
e P6, Inf. e Ger)
POOD- (IdPt2 - P3 )

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)


Poder: PUD- PUD- (IdPt2 - P1 )
POD- POD- (IdPt2 - P3 e P6;
IdPt3 - P1, P3, P4 e
P5; SbPt - P1, P3,
P4 e P5; SbFt - P1)

Português 500.p65 318 22/7/2005, 15:02


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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)
Jazer: JAÇ- JAÇ- (IdPr - P1 )
JAZ- JAZ- (IdPr - P3 e P6 e
Inf.)

II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)


( p )

Jazer: JOUV- JOUV- (IdPt2 - P1)

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Querer: QUER- QUER- (IdPr - P1, P3,


QUEIR- ~ QUEYR- P4, P5 e P6 ,
IdPt1 - P5 e P6;
IdFt2 - P1 e P3 ;
Inf. Fl. - P1 e P6 ,
Inf. e Ger.)
QUEIR- (SbPr - P1, P2,
P3, P5 e P6)
QUEYR - (SbPr - P3)

II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)

Querer: QUIS- ~ QUIS- QUIS- (IdPt2 - P1, P3, P4 e


QUYS- P6 ; IdPt3 - P3;
SbPt - P3 , P4 e P6
SbFt - P1 a P6)
QUYS- (IdPt2 - P1 , P3 e
P6; IdPt3 - P1 ;
SbFt - P3).
QUIZ - (IdPt2 - P6, SbFt -
P3)

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Saber: SAB- SAB- (IdPr - P1 a P6 ;


SAIB- IdPt1 - P3 e P6
; IdFt1 - P1, P3,
P5 e P6; IdFt2 -
P3 e P5; Inf. fl.
- P2 a P6; Inf. e
Ger. )
SAIB- (SbPr - P1, P3,
P5 e P 6 )

II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)

Saber: SOUB- SOUB- (IdPt2 - P1, P3 e


P6; IdPt3 - P1 ;
SbFt - P1, P2 e
P3)

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320
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Ir ~ hyr ~ yr: VA- ~ VAA- VA- (IdPr - P1, e P3 ; Imp. - P2


I- ~ [H]I-, HI- e SbPr - P5)
~Y- ~ HY VAA - (SbPr - P3)
IN- ~ IM- I- (IdFt1 - P2, P3 e P6, IdFt2-
~ YN- P3 e P6 , Inf.Fl -P5 e P6;
Inf.)
VÃ - ~ VAM- [H]I- (Inf. Fl. - P4 )
HI- (IdPt1 - P3, P5 e P6 e Inf.)
Y- (IdFt1 - P5, Inf. fl. -
P5 e P6 e Inf.)
HY- (IdPt1 - P3 e P5; Inf.)
IN (Ger.)
IM (IdPr - P4 e Ger)
YN (Ger)
VÃ (IdPr - P6)
VAM (IdPr - P6)

II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)

Ir: FO- ~ FFOR - FO- (IdPt2 - P3, P5 e P6 ;


IdPt3 - P3 e P6; SbPt -
P1, P3, P5 e P6 ; SbFt
- P1, P3, P5 e P6)
FFO- (IdPt2 - P3 e P6 e
SbFtP3 e P6)

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Ser ~ Seer: SO- ~ SÕO- SO- (IdPr - P1 e P5)


E- ~ HE- SÕO- (IdPr - P5)
ER- E- (IdPr - P2 e P3 )
SOM- HE- (IdPr - P3)
SÃ- ~ SAM- ER- (IdPt1 - P1a P6)
SE- ~ SEE- ~ SY- SOM- (IdPr - P4 e P6)
SEJ- SÃ- (IdPr - P1 e P6)
SEN- ~ SEM- SAM- (IdPr - P6)
SE- (IdFt1 - P1 a P6; IdFt2 -
P1 a P6 ; Imp. - P2 e P5;
Inf. Fl. - P3, P4 e P6 e
Inf.)
SEE- (Inf.)
SY- (IdFt2 - P3)
SEJ-(SbPr - P1 a P6)
SEN- (Ger.)
SEM- (Ger.)

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Ser ~ Seer: FU- FU- (IdPt2 - P1)


FO- ~ FFO- FO- (IdPt2 - P2 a P6; IdPt3
- P1 a P5 ; SbPt - P1 a
P6 e SbFt - P1 a P6)
FFO- (IdPt2 - P3; IdPt3 -
P3; SbPt - P3 e
SbFt - P3)

3.2.1.1 – Lexemas dos verbos do subgrupo 1 e os tipos de pro-


cessos morfofonológicos –Tempos do não-perfeito
Vimos que há um contraste morfofonológico entre os TNP e os TP em
relação às possibilidades de realizações dos lexemas de cada item verbal.
As diferenças que ocorrem entre os dois tipos de tempos são expressas no
Quadro 2, abaixo, que mostra a distribuição dos mesmos, a partir das

Português 500.p65 320 22/7/2005, 15:02


321

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
características morfofonológicas próprias, formando as sete subcategorias
(tipos verbais) para os TNP em JB e em DJ.

LEXEMAS DOS TEMPOS DO NÃO-PERFEITO


NO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI
DOCUMENTOS OBRA PEDAGÓGICO- CARTAS DE D. JOÃO III
PERÍODOS GRAMATICAL DE JOÃO DE 1523/1557
VERBOS BARROS
GLP, DVV e DLNL
1540
a. DIZER dig- dig-
diz- diz- ~ dis- ~ dez-
di- di- ~ dy-
TRAZER trag- trag-
traz- traz-
tra- tra-
FAZER ~ FFAZER faç- faç- ~ ffaç-
faz- faz- ~ ffaz- ~ faaz- ~ fazz-
fa- fa- ~ ffa-
AVER - HAVER, [H]AVER [h]av- av- ~ hav-
[h]aj- aj-
[h]a- a- ~ ha-
b. TER ~ TEER ten- ten - ~ tem- ~ te - ~ teem ~ them-
tenh- tenh- ~ teenh -
tinh- tinh-
ter- ter- ~ teer-
VIR ~ VYR ven- ven- ~ ve - ~ veen-
vim- vin- ~ vim-
venh- venh- ~ veenh-
vinh- vinh- ~ vynh- ~ vy ~ vyn- ~ vym ~
vi- vi- ~ vy-
POER ~ POR pon- ~ põ- pom- ~ põ-
po- po-
ponh- ponh-
punh- punh-
c. VER ~ VEER ve- ve- ~ vee-
vej- vej-
vi- vi- ~ vy-
ESTAR est- est-
d. PODER pos- pos-
pod- pod- ~pood-
JAZER jaç- —
jaz- —
e. QUERER quer- quer-
queir- queir- ~ queyr-
SABER sab- sab-
saib- saib-
f. YR, IR - HYR i- ~ [h]i- hi- ~ hy- ~ i- ~ y-
va- va- ~ vaa-
g. SER ~ SEER so- so- ~ soo-
e- he- ~ e-
er- er-
sam- sã- ~ sam- ~ som-
se- se- ~ sy-
sej- sej-
Quadro 2: Lexemas do subgrupo 1 dos TNP em JB e em DJ

Observando os dois grupos de documentos do século XVI, vemos que,


embora haja variações gráficas e/ou fônicas, de modo geral, não implicam
em diferenças de lexemas entre os verbos dos textos de JB e DJ.

Tipo a – Variação e/ou apagamento da consoante final do lexema

Esses aspectos são verificados nos verbos dizer, trazer, fazer ~ ffazer
e aver ~ [h]aver ~ haver e podem ser explicados com base em processos

Português 500.p65 321 22/7/2005, 15:02


322
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

mais gerais de variação e/ou mudança no sistema fonético-fonológico na


formação da língua portuguesa. Vejamos:

i)variação na consoante final do lexema

A análise de Piel (1989:224) sobre a variação na consoante do lexema


procura explicar esse processo como decorrente da inflexão da semivogal i
[y] sobre a consoante, palatalizando-a, como, por exemplo, no contexto
fonético em que ci>ç/z, respectivamente, “facio” > faço, “facis” > fazes.
As variações que se observam nos lexemas “dico” > digo / “dices” > dizes,
“traho” > “traco” > trago / “tracis” > trazes, entre outras, devem-se, se-
gundo ainda esse autor, à perda da unidade primitiva da consoante, e,
nesses casos, a oclusiva [k] > [g] e [ki ,e] – [dZ] > [Z] e [z].
Os lexemas dig-, trag- e faç- caracterizam IdPr P1 e SbPr P1 a P6, tem-
po derivado. E embora trag- não apareça em DJ na P1 de IdPr, a P6 de SbPr
(tragam) confirma o uso dessa forma nesse tempo e pessoa. O lexema do
verbo apresenta pouca variação, como haj- (SbPr - P1 a P6) e há- na P1 de
IdPr - [h]ei, hey ~ ey. Em contrapartida, o lexema av- ~ hav- se generaliza
nos demais TNP.
A variante dez- somente foi registrada em DJ, e, mesmo assim, em
número percentual relativamente baixo: 23,80%.

(1)que vos escreveo Jorge de Barros do que se dezia da armada do


Turquo; (C109 PA l; 40/41 p.154)

ii) apagamento da consoante final do lexema

Os lexemas di- di- ~ dy-, tra- tra- e fa- fa- ~ ffa-, que correspondem
aos verbos dizer, trazer e fazer, caracterizam as formas de IdFt1 e de IdFt2
e resultam das formas divergentes do infinitivo do latim: dire, fare e *trare
(Piel, 1989: 36).
Os lexemas ha- ~ a- ~ [h]a-, que resultam das transformações ocor-
ridas com haver, aparecem nas P1, P2, P3 e P6 de IdPr,4 respectivamente,
[h]ei - hei ~ ey < ai5 < habeo. Nunes (1960:304-305) considera que a
permanência da semivogal na P1 se deve à atração da vogal tônica, ao con-
trário do que ocorreu com as demais pessoas, que ficaram reduzidas à
vogal tônica, hão ~ hã ~ am ~ [h]am ~ ham < “*ant” < “habent”. Nas
Cartas, a P6 aparece como: ham ~ am ~ hã ~ hão.

(2) e os poderem trazer as que ham de vyr, o ey asy por meu serviço.
(C325 FA l; 22/23 p.360).
As variantes mais usadas são ham ~ am, foram documentadas em
77% das ocorrências. Em JB não há variação aparecendo sempre como
ham.

Português 500.p65 322 22/7/2005, 15:02


323

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Tipo b – Variação da vogal e travamento nasal/vibrante no final do
lexema

A variação por travamento da vibrante apresenta apenas um lexema


verbal, ter, vir e por para o IdFt1, IdFt2, Inf. e Inf. fl.
O travamento por nasal varia entre |n| e |ø| entre os outros TNP e
até mesmo entre um mesmo tempo, como, por exemplo, a P1 de IdPr,
respectivamente, tenh-, venh- e ponh-, diferindo das demais pessoas, ten,
vin- e pon-.
As formas variantes em JB e DJ podem ser percebidas claramente pela
própria evolução desses verbos. A coexistência de variantes indica que a
mudança de lexema não havia sido concluída.

(3) e de todas as cousas de voso descareguo ey de teer aquela l$!brança


que Requer o amor e muyto boõa võtade que vos teenho (C28 S l;
29/31 p.62).

As formas variantes com vogais contíguas do verbo ter-, (teer, teereis,


etc), ver (veer) e ser (seer) juntas correspondem a 9,34%; teem (ter) e
veer (vir), a 7,14%.

(4) e veenhaes com elle. (C143 S l; 8 p.187).

A variante poer com VT etimológica, considerada por Fernão de Oli-


veira como um arcaísmo (Williams, 1960:235 apud Mattos e Silva, 1994:53),
é muito usada, tanto em JB, quanto em DJ. Nesse contexto equivale a mais
de 90% dos dados, em detrimento de por.

(5) Diéresis quér dizer apartamento, cá per éla apartamos "!a sílaba
em duas pártes, como quando dizemos poemos por pomos. (GLP -
JB l; 49/50 – Das Figuras – p. 359).

Tipo c – Variação por mudança de vogal do lexema e alongamento


pela palatal <j>

A diferença de vogal diz respeito às formas ve- e vi- de ver. O lexema


ve- é próprio de P2 a P5 de IdPr e de P1 a P6 de IdFt1, IdFt2, Inf. fl., do Ger. e
do Inf. Em DJ, aparece a variante vee- em P3 de IdPr. A forma vi- vi- ~ vy-
não é exclusiva aos TNP, pois é também o lexema específico dos TP. Na
documentação aparece, apenas, a P3 de IdPt1 - via, via- e vya.
O lexema est- de estar opõe-se ao lexema estej- do SbPr. Nos dados
analisados não foi encontrado registro dessa forma. Entretanto, ocorrem
em P6 de SbPr as variantes estem ~ esteem,6 que foram substituídas por
estej-, por analogia com seja (Williams, 1960:228 e Coutinho, 1976:306).

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

6)os mandeis proveer de maneira que esteem nelles dous mill


quintaes de bizcouto sobejos (C330 FA l; 24 P.363).

O alongamento por palatal <j> foi registrado apenas no verbo ver –


“video” > vejo - vejo (P1 de IdPr) “uideam” > vej- veja ~ veja e P2 a P6 de
SbPr. (vejas, veja, vejamos e veja, vejaes ~ vejaees ~ vejais e vejam).

Tipo d – Variação da consoante e travamento do lexema

Os verbos que apresentam essa variação nos TNP são: poder e jazer.
O verbo jazer tem um uso muito restrito, aparece apenas seis vezes em JB
e uma vez em DJ.
O lexema pod- (“potere” > poder) nos TNP é próprio de P2 a P6 de
IdPr, P1 a P6 de IdPt1, IdFt1, IdFt2, Inf. fl. e no Inf. e Ger. A consoante <d>
nesse verbo tem sua origem na mudança < t > > <d> do latim clássico
para o latim vulgar na România Ocidental. O verbo jazer < “iacere” foi
documentado com o lexema jaz- apenas em JB (P3 e P6 de IdPr) - jaz jazem
(Inf.) e jazer.

(7)Tiram-se désta régra muitos que séguem diferentes formações como:


(...); jazer (...), jaço (GLP - JB l; 28/33 – Das Formações – p. 344).

O lexema jaç- (jaço) (< “iaceo”) aparece na P1 de IdPr. Posteriormen-


te houve a regularização de jaç- para jaz-. Esse verbo sobrevive no português
moderno em casos muito específicos, como nas expressões de jazigos “Aqui
jaz.” (no sentido de ‘estar morto, estendido’, ‘deitado’) e no termo jazida
(‘sítio arqueológico’). O uso do verbo jazer, entretanto, foi bastante co-
mum em obras literárias.
O lexema do verbo poder, pos- (< “possum”) é próprio da P1 de IdPr
(pósso, posso ~ poso) e das P2, P3, P5 e P6 de SbPr. (póssas, póssa, póssam
~ posam ~ posão e posa ~ possa, posais, posaaes ~ posaes ~ possaes,
possam ~ posaão, posam e posão).

Tipo e – Variação na ditongação do lexema

Nos verbos querer (< “quaerere”) e saber (< “sapere”), se apresen-


tam os lexemas quer- e sab- na maior parte dos lexemas do não-perfeito. A
forma divergente de P1 de IdPr, sei < sai < “sapio”) de saber, formou-se,
segundo os estudos históricos, por analogia com hei de haver.
Esse tipo de verbo apresenta, também, lexemas ditongados, queir- <
“quaeram” – (queira, queiras, queiráies e queira (P1), queira (P3), ~
queyra, queiraes e queirão) e saib- < “sapiam” – (saiba (P1) saibam,
saiba (P3) saibaeis ~ saibaes ~ saibais e saibam). Com relação ao verbo
caber, esse fenômeno não foi registrado, possivelmente, em decorrência

Português 500.p65 324 22/7/2005, 15:02


325

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
da metátese da semivogal <i> para o lexema também do verbo caber na
P1 de IdPr “capio” > caibo ~ caybo e, também, no subjuntivo.

Tipo f – Lexemas heteronímicos de ir: “vadere” e “ire”

A variação nos seus lexemas que não se restringe apenas à evolução


fonética, mas à origem distinta desses. O lexema i- provém do verbo latino
“ire”, e o lexema va- de “vadere”. O uso dos lexemas alterna-se no IdPr. A
forma va- é própria da P1 (vou, vo), P2, e nesse caso, P3 (vái, váy ~ vae) e
P6 (vam, vam, vão ~ vãão ~ vãao ~ vaão e vã ~ vãe), assim como de P4
(vimos). Entretanto, a P4 foi documentada em JB como imos (< “imus”)
possivelmente um processo de analogia com a P4 dos TNP. Embora essa
forma não tenha se mantido no português contemporâneo, nesse o lexema
i- mantém-se no IdPr apenas na P5. O uso dessa forma no século XVI já
havia sido atestado antes (Coutinho 1976:316).
O lexema va- aparece ainda em P2 de Imp. afir. (vai ~ va1! em P3 e P5
de SbPr (vaa, vades), respectivamente.
Nos demais TNP, o lexema i é a forma que prevalece no português, ao
contrário do espanhol, em que o lexema que mais se generalizou foi va-
(Piel, 1989: 226).

Tipo g – Variações vocálicas e consonânticas nos lexemas heteronímicos


de ser

A exemplo do verbo do tipo anterior, seer ~ ser também possui dois


lexemas heteronímicos, mas, ao contrário daquele, suas formas apresen-
tam ainda variações consonânticas (sen-, son- e sej-) e vocálicas, nos lexemas
surgidos dos verbos latinos “sedere” e “esse”. No português do século XVI,
prevalecem também, para os TNP, as formas derivadas de “sedere”: so-,
son-, sen-, se-, sã-, sam- e sej-. No IdPr P1, houve o registro das formas são
~ sam (< “sum”), documentadas em DJ. Essa forma constitui-se numa das
quatro variantes (som, são, sou e so) referidas por Fernão de Oliveira (Oliv.
103, apud Williams). Em JB, a P1 de IdPr ocorre apenas como sou, indican-
do a analogia com a P1 dos verbos: estou, vou e dou, fenômeno bastante
citado nos estudos históricos. Uma outra explicação foi dada por Piel
(1989:226), a de que esse lexema poderia ter surgido da variante são (PA),
embora ele considere a desinência o também como um processo analógico
com os verbos estou, vou e dou. A maior variação no IdPr dá-se com a P6
nos dados de DJ, sam, sã, são e som. Em JB, essa pessoa está registrada
apenas como sam. O IdPr é, dentre os TNP, o que oferece maior variação,
com a confluência de formas dos dois verbos latinos (P1 so ~ sã, P2 és, P3 é
~ he, P4 somos, P5 sois ~ soes ~ soees ~ soes e sooes e P6 já referida
acima. No imperativo, em P2, foi documentada a forma analógica sê.

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326
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

O lexema er- é a forma própria de IdPt1 (éra ~ era, éras ~ eras, éra,
~ era, éramos, ereies ~ éreies e éram ~ eram, erã, erão), a exemplo do
que ocorria com o latim (“eram”, “eras”, “erat”, “eramus”, “eratis” e “erant”).
A variante syria de IdFt2 P3 foi registrada em DJ, o lexema próprio
desse tempo, assim como, de IdFt2 P1 a P6, é se-.

3.2.1.2 – Lexemas dos verbos do subgrupo 1 e os tipos de proces-


sos morfofonológicos –Tempos do perfeito
No quadro 3, a seguir, estão representados os cinco tipos verbais for-
mados pelos lexemas desses mesmos verbos nos TP (IdPt2, IdPt3, SbPt e
SbFt), que basicamente são constituídos no tempo passado, à exceção de
SbFt, que, ainda assim, possui o lexema específico desses, porque é um
tempo derivado do “perfectum”.

LEXEMAS DOS TEMPOS DO PERFEITO NO PORTUGUÊS


DO SÉCULO XVI
OBRA PEDAGÓGICA DE JOÃO CARTAS DE D. JOÃO III
DOCUMENTOS DEBARROS 1523/1557
PERÍODOS GLP, DVV e DLNL 1540
VERBOS
IdPt2 P1 IdPt P3 e outros IdPt2 P1 IdPt P3 e outros
a. DIZER dis- ~ des-, dix dis- ~ disc-
QUERER quis- quys- ~ quis- ~ quiz-
AVER [h]ouv- ~ houv- ouv- ~ houv-
TRAZER troux- troux-
JAZER jouv- —
SABER soub- soub-
b. FAZER ~ FFAZER fiz- fez- fiz- ~ fyz- ~ ffiz- fez- ~ ffez-
TEER - TER (tiv-) tev- tiv- tev-
VIIR - VIR vin- ve- — ve-
7
ESTAR (estiv-) (estev-) estiv- estev-
c. PODER — pod- pud- pod-
PÕER - POER ~ POR pus- pos- — pos-
IR — fo- — fo- ~ ffor-
d. SEER fu- fo- fu- fo- ~ ffo-
e. VEER vi- vi- ~ vy

Quadro 3: Lexemas do subgrupo 1 dos TP em JB e em DJ

Sob o ponto de vista diacrônico, esses verbos são classificados em três


tipos diferentes: i) os de perfeito em -si (denominados sigmáticos – dixi
(disse) e quaesi (quis); ii) os de perfeito em -ui, “habui” (houve), “sapui”
(soube), “tracui” > “*traxui” (fusão de ambos, trouxe), “iacui” (jouve),
“*posi” (pus/pos), “tenui” (tive/teve), “potui” (pude/pode); iii) os de per-
feito em -i – “feci” (fiz/fez), “vidi” (vi), “steti” (stede, as formas estive e
esteve (sofreu influência de tive/teve) fui (fui/foi) de ser ~ seer. E ainda
“vidi” (vi), considerado como pseudo-forte. (Piel, 1989: 231-234 e Nunes,
1960: 323-324). Piel destaca ainda, baseado em outros critérios, outras
três classes para esses verbos, aplicadas nesse caso, às formas contemporâ-
neas dos mesmos: pretéritos monossilábicos e dissilábicos, pretéritos ter-
minados por consoantes e/ou vogais e pretéritos com semelhança em P1 e
P3 (que corresponde aos de tipo a ou com diferença de vogal, aos tipos b
e c.

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Tipo a - Lexema próprio aos tempos perfeito, distinto dos lexemas do
não-perfeito

Os lexemas dos verbos desse tipo são: dis- (disse), quis-, [h]ouv-,
troux-, jouv- e soub-. Essas formas compõem o conjunto dos denomina-
dos passados fortes e também são próprias dos demais tempos. Piel
(1989:228) e Nunes (1960:323-324) descrevem-nos e os classificam a par-
tir das formas latinas em: perfeito em -si (-xi) - dix-, perfeito em ui, “habui”,
“capui”, “sapui”, “*tracui” (trouxi), “placui”, “jacui”, dentre outras, além
dos de perfeito em i, citando, nesse caso, apenas os lexemas que se enqua-
dram dentro da proposta dos verbos do tipo a.8
Na documentação, o lexema mais empregado do verbo dizer para os
TP é dis-. A variante dix- ocorre em JB apenas duas vezes, quando o autor
a utiliza como exemplo de uma figura de linguagem. A variação dixe ~
disse ainda não havia caído em total desuso.

(8)Antítesis quér dizer postura de lêtera "!a por outra, como quando
dizemos dixe por disse. A quál figura é àçerca de nós mui usáda,
prinçipàlmente nesta lêtera x que tomámos da pronunçiaçám
mourisca, ainda que alguns digam que devemos dizer dixe porque
no pretérito latino este vérbo dico faz dixi (JB - GLP l; 63/67 – Das
Figuras - p. 359).

O lexema quis (< “*quaesi”) é a forma própria de todos os TP, tanto


em JB, quanto em DJ, assim como “*tracui”, “*traxui” > trouxe (troux-);
“habui” > houve (houv-), “sapui” > soube (soub-) e “iacui” > jouve (jouv).
A ditongação (-ou [ow]) que se verifica nos lexemas específicos desses ver-
bos TP deve-se à atração da semivogal <u> [w] para o radical.
Essas são as formas que prevalecem no português do século XVI. E,
diferentemente do que ocorre no português contemporâneo, a forma dos
TP de jazer é jouv-, e não jaz-. A forma jouv- surgiu possivelmente por
analogia com houve. Assim ocorreu também com trouxe. (Coutinho, 1976:
308; Williams, 1986: 231).
Os tipos b, c e d, a seguir caracterizam-se pela oposição de P1 a P3 de
IdPt2, embora a partir de fenômenos distintos que decorrem da evolução e
da história própria de cada forma verbal.

Tipo b – Variação do lexema e alternância vocálica pela oposição de


<i:e> P1 a P3 de IdPt2

Os lexemas estiv- < esteve < “steti” e estev- foram registrados em


DJ. E como variantes em SbFt (estevéres, estivér ~ estevér, estivese, esti-
ver, estiverdes ~ esteverdes ~ estiverem e estivere)) nos dois grupos de
texto. Embora em JB não haja oposição entre P1 e P3 de IdPt2, ocorre a
variação estev- ~ estiv- em SbFt P3 estivér ~ estevér; em DJ, aparece

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328
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

apenas estiver e P6 (estiverem ~ estivere)), embora essa variação se confir-


me também em DJ na P5 desse tempo (estiverdes ~ esteverdes) e em SbPt
P6 (estivese).

(9)E per ésta semelhança está claro q[ue], quanto a planta ou hérva
estevér em máis gróssa térra (...) (JB - DVV l; 417/419 p. 429/430).
(10)e emviareis a iso quaesquer caravelas e navios que hy estiverem
armados, (C109 PA l; 91/92 p.155).

A variante estiverem “em formas não acentuadas se tornou i por


dissimilação” (Williams, 1960:228 § 184), assim como as variantes de IdPr2
- P5 (fizestes ~ fezestes) P6 (fizerão ~ fezeram ~ fezerã ~ fezerõ ~ fizeraão
~ fizerã, fezeram ~ fizeram) SbPt - P3 (fizésse, fizese ~ fezese ~ fizesse)
e P6 (fezéssem ~ fizéssem) e SbFt - P1 (fizer) e P3 (fizer ~ fyzer ~ fizer ~
fezer) e P5 (fezerdes, fizerdes ~ ffizerdes) e P6 (fizérem ~ fizerem ~ fizere)
~ fezerem).

(11) em que me daees conta do que os cosayros fizeram na parajem


das Ilhas (...) (C315 FA l; 3/4 p.344)
(12) e segundo o caso tambem que vos d’iso fezerem mais ou menos
grave (C8 JR l; 42/43 p.18)

No IdPt3, não houve variação desse tipo: P1 (fizera) e P3 (fizera ~


fizera ~ ffizera).
A variação <e> ~ <i> ocorre com ter, tanto em JB quanto, em DJ,
em todos os TP, por exemplo, em IdPt2 - P6 (teverám ~ tiveram e teveron)
IdPt3 (tevera ~ tivéra ~ tivera) SbFt - P3 (tever ~ tiver), etc.

(13)quando tiverdes novas d’armados que amdem pera esa costa das
Berlemgas atee o cabo de Sam Vincente . . . (C109 PA l; 89 p.155).

Nos outros lexemas, essa oposição é bastante nítida, de acordo com a


evolução de cada forma verbal – fiz- (< “feci”) e fez- (< “fecit”), tiv- e tev-
(< “tenui”). A P3 conservou o e-, ao contrário das demais, devido de um
processo analógico, vim (< “vii” < “*vei” < “veni”) e ve- (“veni”). (Coutinho,
1976: 313 § 606 e 319 § 625, respectivamente).
A forma veo- ~ ve!o- aparece em JB 5 vezes e 5 vezes também em DJ.
As variantes ditongadas ocorrem duas vezes em JB apenas como exemplo
do uso de y veyo e do v veio. Em DJ prevalece o uso das formas ditongadas
veyo ~ veio ~ veeo em 98,03%.
O lexema vi~ vi! ~ vy generaliza-se nos demais TP. Ocorre, entretan-
to a variante veerám em JB.

(14) se quiséssemos buscár o fundamento e raiz donde veérram os


nóssos vocábulos... (JB - GLP l; 4/5 - Da diçám - p.298)

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Tipo c – Variação do lexema e alternância vocálica pela oposição de
<u:o> P1 a P3 de IdPt2

A oposição foi registrada no corpus com poder (pud / pod- pod- e


pus- / pos- pos).
No português do século XVI, o lexema pud- (poder) não havia se ge-
neralizado ainda para as demais TP, a exemplo de IdPt2 - P6 - podéram ~
poderam, IdPt3 P1, P3 e P5 – podéra ~ podera ~ podéramos e poderades,
SbPt P1, P3, P4 e P5 – podesse ~ podese, podésse ~ podesse ~ podese,
podéssemos, podesyeis e P1 de SbFt – podér.
O mesmo ocorre com pus (de por ~ poer) IdPt2 - P6 (poserám) e IdPt3
- P3 poséra. Embora a ocorrência da variação entre a P4 e P6 de IdPt2 indi-
que que essa regularização já havia sido iniciada pusémos ~ (composémos
e compuséram), essas duas últimas formas nos derivados de por.
O lexema fo- está documentado em todos os TP, em DJ. A P6 destaca-
se pela diversas variantes flexionais (fforão ~ foram ~ forã, forão ~ forõ
~ forom).

Tipo d – Variação de lexema e alternância vocálica pela oposição de


<u:o> P1 a P3 de IdPt2 no verbo ser, tendo como base lexical a forma de P3
para todos os tempos do perfeito

Os lexemas fu- (< “fui”) e fo- (< “fuit”) estão registrados no corpus
(fui / foi e fuy / ffoy ~ foy ~ foi). A forma de P3 é o lexema das outras
pessoas e TP e aparece na documentação com muita frequência, 152 em
DJ e 8 vezes em JB.

(15)Eu fuy ora emformado. (C187 AM l; 2 p.224).


(16)meus Reynos e senhoryos niste pequeno tempo forom muyto
mais deneficados por esta soo causa de eu querer conservar sua
amizade (C6 AP l; 47/49 p.8).

Tipo e – Lexema vi do verbo veer para todos os tempos dos perfeito

O lexema vi- ~ vy- aparece nos TP. As formas IdPt3 não foram atesta-
das no corpus.

(17)Vy a carta que me escrevestes (C283 FA I; 2 p. 313).


3.2.2 – Verbos do subgrupo 2 – Verbos que apresentam lexema invariável
para as formas do não-perfeito e têm lexema específico para as formas do perfei-
to
A principal diferença entre esse subgrupo e o anterior está na
invariabiliade dos lexemas dos TNP. Pois, embora este apresente um lexema
específico para TNP, não há oposição entre P1 e P3 de IdPt2. Os lexemas do

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330
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

perfeito se mantêm em todas as pessoas verbais. A oposição, nesse caso,


se faz fundamentalmente a partir do contraste entre os TNP e TP, conforme
já referido, é o parâmetro de classificação dos três primeiros subgrupos.
Comparativamente ao primeiro subgrupo que possui maior
complexibilidade de tipos de lexemas, o subgrupo 2, além de ser mais
simplificado, é composto de uma quantidade reduzida de verbos. Nos da-
dos analisados apenas três verbos fazem parte desse subgrupo: prazer,
caber e dar.

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Prazer: PRAZ- PRAZ- (IdPr - P3; IdFt 1 - P3; Inf. e Ger.)


PRAS-(Inf.)

II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)

Prazer: PROUV- PROUV- (IdPt2 - P 3; SbFt - P3 (e


derivados))

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Caber: CAB- CAB - (Inf.)

II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)

Caber: COUB- COUB- (IdPt2 - P3)

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Dar: D + VTa D+Vta (IdPr - P1 , P 3,P4 , P5 e P6 ; IdPt1 - P3


e P6 ; IdFt1 - P1, P 3, P4 , P 5 e P6 ; IdFt 2 - P3 e
P6; Imp. P2 e P5; SbPr - P3, P5 e P6; Inf. Fl. -
P4 , P5 e P6; Inf. e Ger.)

II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)

Dar: D + VTe D+Vte (IdPt2 - P 1, P3, P4


P5 e P6 ; SbFt -
P3 ; SbPt - P1
P3, P5 e P6)

3.2.2.1 – Lexemas dos verbos do subgrupo 2 e os tipos de proces-


sos morfofonológicos –Tempos do não-perfeito e do perfeito

Observemos os contextos morfológicos desses verbos no Quadro 4.

Português 500.p65 330 22/7/2005, 15:02


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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Quadro 4: Lexemas do subgrupo 2 dos TNP e do perfeito em JB e DJ

Os verbos prazer e caber (tipo a) e dar (tipo b) diferem por apresen-


tar fenômenos morfonológicos distintos, a saber:

Tipo a – Ditongação etimológica para os lexemas dos tempos do per-


feito

O verbo prazer (47 ocorrências) aparece além do inf., na P3 de IdPr –


praz e de IdFt1 prazera.

(18)e me praz de o acrecemtar a cavaleiro (C370 MF l; 15 p.392).

No infinitivo do verbo prazer, prazer ~ praser (< “placere”), no


gerúndio prazendo e nos compostos apráz, aprazer, comprazer e
desprazer/desprazer.
O lexema praz- dos TNP difere dos lexemas do perfeito prouv-. A
forma prouv- foi registrada na P3 de IdPt2 (prouve - prouve). E também nas
derivadas (aprouve/aprouve, desaprouve e aprouvesse). O lexema prouv
< “placui” (remiscências do pretérito forte em “-ui” do latim) chegou a
essa forma por influência de outros verbos de terminação semelhante
(Nunes, 1960: 323§ 41 e Piel, 1989: 234).

(19) Tiram-se désta régra apráz (...) e dizemos: aprouve (JB - GLP l;
4/5 – Dos Pretéritos e Partiçípios – p.342)

O verbo caber < “caper$;” está nesse grupo apenas por não ter sido
registrada a forma ditongada caibo < “capiat”. O lexema dos TP é coub- <
“capui” em JB IdPt2 coube.

Tipo b – Oposição entre o verbo dar: Vta para os tempos do não-


perfeito e Vte para os tempos do perfeito

A diferença de vogal temática que se verifica no verbo dar entre os


TNP - d + Vta e os TP (d + Vte) remontam-se, segundo Mattos e Silva
(1989: 56) às formas desse verbo no latim em que havia uma base “da-”

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332
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

para os tempos do “infectum” e uma base “ded-” para os tempos do


“perfectum”.
O verbo dar que na documentação teve um número alto de ocorrên-
cia, 288 vezes, apresenta-se assim tanto no PA como no português contem-
porâneo. As variações dão-se apenas a nível de flexão, principalmente na
P3, P5 e P6 dos dados de DJ. (IdPr – dá, da ~ daa, daes ~ daees, daeis ~
dais ~ daais, dam ~ dã, daão. IdFt1 – darei, darey, dara ~ daraa, dares
~ dareys ~ dareis, Imp. P2 - day e P5 - dai ~ day e IdPt2 déram, deram ~
derão), etc.
A forma dou (dou ~ do) de P1 de IdPr, do latim “do” tem sido explicada
de diversas formas: i) ter surgido diretamente de do, ii) ser decorrente da
analogia com vou (Williams, 1986: 225, Coutinho, 1976: 305), iii) atribu-
ída a forma “*dao” > dou (Nunes, 1960: 305), iv) ou a assimilação Vta ao
u, passando o (Mattos e Silva, 1989: 376).

(20)E daqui te dou liçença que âs póssas alegár, quando te ocorre-


rem a prepósito da matéria (JB - DVV l; 61/62 p.415).

3.2.3 Verbos do subgrupo 3 – os que apresentam variação nos lexemas do


não-perfeito, sendo o lexema das formas do perfeito a variante mais generaliza-
da do lexema do não-perfeito.
No subgrupo 2, o lexema invariável é o dos TP e se aplica aos do não-
perfeito. Nesse caso, não se pode falar propriamente de oposição entre
esses dois grupos de tempos, pois essa se estabelece apenas entre a IdPr P1
e tempo derivado SbPr P1 a P6. Os demais tempos, tanto do não-perfeito
quanto do perfeito apresentam o mesmo lexema, e, dada a pouca variabi-
lidade de formas, esses verbos são considerados pelas gramáticas normativas
como semi-irregulares. São: ouvir, pedir, arder, medir e perder. Os verbos
arder e medir, a exemplo dos verbos jazer do subgrupo 1 e caber do
subgrupo 2, também tiveram os seus quadros diminuídos, limitando-se
aos contextos em que ocorrem.

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Ouvir: OUÇ- OUÇ- (IdPr - P 1 e SbPr -


OUV- P1 e P6)
OUV- (IdPr - P 2, P3 ,P 5 e
P6; IdPt1 - P1 , a P6; IdFt1 - P1 a P 6;
IdFt2 - P 1 a P6;
Imp. - P 2 e P5 ;
Inf. Fl. - P1, P2,
P3, P5 e P6 ; Inf.
e Ger.)

Português 500.p65 332 22/7/2005, 15:02


333

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)

Ouvir: OUV- OUV- (IdPt2 - P1 a


P6; IdPt 3 - P1,
a P4 e P6; SbPt -
P1 a P6 e SbFt
- P3 e P4)

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Pedir: PEÇ- PEÇ- (IdPr - P1 e SbPr -


P1 e P5)
PED- ~ PID- PED- (IdPr - P2, P3 , P5
e P6 ; IdPt1 - P2, P3
e P6 ; Inf. Fl. - P2
e P6 ; Inf. E Ger.)
PID- (IdPr - P5 ; IdPt1 -
P3 ; IdFt1 - P5;
Inf. e Ger.)

II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)

Pedir: PED- ~ PID- PED- (IdPt2 - P3)


PID- (SbPt - P2 e SbFt - P3)

I –Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Medir: MEÇ- MEÇ- (IdPr P1 )

II – Tempos do perfeito (variação dos lexemas)

Medir: MED- MED- (IdPt2 - P1 )

I – Tempos do não-perfeito (variação nos lexemas)

Perder: PERC- PERC- (SbPr - P6)


PERD- PERD- (IdPr- P3, P 4 e P6;
IdPt1 - P6; SbPr -
P6; Inf. Fl. - P3
e P6; Inf. e Ger.)

II – Tempos do perfeito (lexemas específicos)

Perder: PERD- PER- (IdPt2 - P3 e P6 e IdPt3 - P2)

I –Tempos do não- perfeito (variação nos lexemas)

Arder: ARÇ- ARÇ- (IdPr - P1 )


ARD- ARD- (Inf.)

Português 500.p65 333 22/7/2005, 15:02


334
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

3.2.3.1 – Lexemas dos verbos do subgrupo 3 e os tipos de proces-


sos morfofonológicos

Vejamos como esses verbos se comportam no quadro 5, a seguir:


SÉCULO XVI SÉCULO XVI
1540, 1523/1557
PERÍODOS OBRA PEDAGÓGICA DE CARTAS DE D. JOÃO III
DOCUMENTOS JOÃO DE BARROS
VERBOS GLP, DVV e DLNL
Lexemas de IdPr Lexemas de Lexemas de IdPr Lexemas de outros
P1 e de SbPr P1 a outros tempos e P1 e de SbPr P1 a tempos e pessoas
P6 pessoas P6
OUVIR ouç- ouv- ouç- ouv-
PEDIR peç- ped- peç- ped- pid-
ARDER arç- ard- — —
MEDIR meç- med- — —
PERDER — perd- perc- perd-

Quadro 5: Lexemas do subgrupo 3 em JB e em DJ

No corpus, apenas os verbos ouvir, pedir, arder, medir e perder com


197,9 71, 03, 01 e 30 ocorrências, respectivamente, apresentam lexemas
de IdPr P1 e SbPr fechados por sibilante /ts/ > /s/ grafada <ç>, cujo étimo
latino uma semivogal antecendendo a consoante final do lexema. Essas
variações são decorrentes do mesmo tipo de processo fonético, a
palatalização da consoante, “audio” > ouço (IdPr P1 ouço – SbPr P1 a P6
ouça, ouças, ouça, ouçamos, ouçaies, ouçaees ~ ouçaes e ouçam), “pedio”
> peço (peço – peço, peça e peçais), “medio” > meço (meço) e “ardio” >
arço (arço).1 0
A variação entre os lexemas de pedir ~ pidir foi registrada tanto nos
TP quanto nos TNP, como: IdPr P5 pedis ~ pidys, IdPt1 P3 pedia ~ pedia
~ pidia, IdFt1 P5 pidireis, Inf. pedir ~ pedir ~ pedyr ~ pidir e Ger.
pidimdo ~ pedymdo ~ pedindo.

(21)Diogo Coelho, escudeiro fidallguo de minha casa, filho de


Nycollaao Coelho, m’e!vyou pedir licença pera me ir servir aa Indya,
(...) (C. 349 MC l; 3 p.378).

O lexema med- (de medir) foi documentado apenas em JB IdPt2 P6


(medirám).
O verbo perder (< “perdere”), P1 de IdPr “*perdeo” > perço, substi-
tuído posteriormente por perco, e P1 de SbPr “*perdeam” > percão está
documentado na P6 de SbPr. O lexema perd- aparece em (perde, pérde e
pérdem P3 e P6 de IdPr, perdemos P4 e perdiam P6 de IdPt1, P3 e P6 de Inf.
Fl. perder / perderem / perderem, de Inf. perder / perder. e de Ger. per-
dendo. Também na P3 e P6 de IdPt2, perdeo e perderam e P3 de IdPt3 perde-
ra.) O registro do lexema perd- para a P6 em DJ (perdam) ao lado de
percam indica provavelmente uma regularização com as formas dos de-
mais tempos.

Português 500.p65 334 22/7/2005, 15:02


335

3.2.4 Verbos do subgrupo 4 – Verbos de PP especial, tradicionalmente cha-

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
mado de particípio forte.
Foram constatadas diversas formas com a função de particípio passa-
do, a saber: abrir, aceitar, cingir, colher, coser, cubrir ~ cobrir dizer,
escrever, exprimir, fazer, imprimir, matar, morrer, naçer, pagar, por ~
poer, prender, salvar, soltar e ver.

DOCUMENTOS / VERBOS JB DJ
abrir aberto aberto
aceitar aceito aceito
cingir — cinto
colher colheito —
coser coseito —
cubrir ~ cobrir cuberto ~ coberto cuberto ~ coberto
11
dizer dito dito
12
escrever escrito escrito ~ scryto
exprimir — expresso
fazer feito feito ~ feyto ~ ffeito
imprimir impresso —
matar — morto
morrer — morto
naçer nado —
pagar — pago ~ paguo
por ~ poer posto posto
prender — preso
soltar — solto
ver ~ veer visto visto

Quadro 6: Verbos do subgrupo 4

O critério de classificação para o subgrupo 4 difere dos demais, por-


que, nesse caso, não se trata das dissimilaridades entre as formas dos TNP
e dos TP, mas de verbos cujos PP apresentam duas formas, uma geral e
outra especial.
O particípio passado é uma das formas nominais latinas que se man-
teve no português. Os estudos gramaticais, de modo geral, tanto normativos,
quanto históricos, costumam subdividir as formas desse tempo em regula-
res / irregulares e em fracos / fortes.
Nas gramáticas normativas contemporâneas há o registro de um gran-
de número de verbos que admitem particípio duplo. Destaca-se ainda o
grande uso de particípios com função de adjetivo, substantivo e também
de preposição. Há também verbos que admitem apenas um tipo de particí-
pio, o “irregular”, que são: aberto, coberto, dito, escrito, feito, posto,
visto e vindo (e derivados).
Nos estudos gramaticais históricos verifica-se que a diferença entre as
formas fracas e fortes surgiu do latim, como resultado de alterações fonéti-
cas na formação do particípio passado. A um tema verbal se juntava o
sufixo -to. Essas alterações foram observadas nos verbos cujos lexemas
terminavam por consoante (verbos consonânticos), devido a processos de
harmonização da consoante final do lexema, gerando as denominadas for-
mas fortes, das quais muitas se mantiveram no português, e as formas
fracas, para os verbos cujos lexemas terminavam em vogal (verbos vocálicos).
Nesse caso, os verbos de tema em -a > ato > ado, de tema em -i > itu >

Português 500.p65 335 22/7/2005, 15:02


336
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

ido e os de tema em -e, ao invés de -etu, -uto. Esse último caiu em desuso,
embora tenha sido bastante usado no latim vulgar e no português arcaico
-udo. No português atual foi substituído pelo -ido, dos temas em -i. (Nunes,
1960:325-325).
No corpus, documentamos em DJ o particípio em udo < “utu”, ape-
nas duas vezes, como no exemplo:

(22)e como he conteudo no concerto que com elle fez (C10 PAC l;
4/5 p. 20).

A perda dessa forma com função de particípio passado é atribuída por


Piel (1986:238) a um processo de analogia. O autor atesta a variação no
uso desse particípio em Fernão Lopes (avudo ~ avido, metido ~ metudo,
etc.). E assinala, ainda, como um dos últimos registros dessa forma, a ocor-
rência de creçudo em Gil Vicente (1482/1552).
Com relação à terminação forte que mantém o particípio de acordo
com seu étimo latino se apresenta em português com os seguintes tipos: -
t: (aberto < “apertum”, escrito < “scriptum”, etc. (em maior número); -s:
(dos radicais latinos “d” ou “t”, preso < “pre(he)nsum”, impresso <
“impressum”, etc. (mais raros); “-stus”: comesto < “comestus”, etc, e -
eito: colheito < “collectum”, etc. (Piel, 1989:238). Esse autor e também
Nunes (1960:325) apontam ainda os particípios dos verbos em -ar que
fazem uso do -o, ao invés do sufixo -ado, como exemplo: pago, ganho, etc.
No corpus a forma aceite não ocorre, mas sim açeita.

(23)E como pósso eu conheçer quando lhe é açeita a óbra que


proçede da minha boa tençám? (DVV - JB l; 724/725 p.446).

No subgrupo 4, Mattoso Câmara Jr. (1976) e Mattos e Silva (1989 e


1994) estabelecem dois tipos de particípio passado especial a partir dos
seguintes fenômenos: a) verbos que apresentam o PP com lexema igual ao
da forma do infinitivo e b) verbos que mantêm o PP especial único.
Na documentação, muitas formas de PP ocorrem na função de subs-
tantivo e de adjetivo, como:

(24) A matéria bem feita apráz ao méstre (JB - GLP l; 18-A p.376).

Consideramos, para fins de análise, o uso de particípio passado de


verbo quando em locução verbal ou em orações com o particípio.

3.2.4.1 – Lexemas dos verbos do subgrupo 4


Tipo a – Verbos com lexema específico de acordo com seu étimo lati-
no para PP

Português 500.p65 336 22/7/2005, 15:02


337

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Os verbos são: abrir, cobrir, colher, coser, dizer, escrever, exprimir,
fazer, imprimir, matar, morrer, poer~por, prender e ver.

(25)Avérbio é "!a das nóve pártes da òraçám que sempre anda con-
junta e coseita com o vérbo... (JB - GLP l; 1/2 – Do avérbio e suas
pártes – p.345 ).

Tipo b - Verbos com lexema de PP único

São os verbos aceitar, pagar e soltar.

O Quadro 7 abaixo resume os lexemas dos verbos dos particípios


passados com função verbal, constatados na documentação.
SÉCULO XVI SÉCULO XVI
1540, 1523/1557
DOCUMENTOS OBRA PEDAGÓGICA DE CARTAS DE D. JOÃO III, REI DE
PERÍODOS JOÃO DE BARROS PORTUGAL
VERBOS GLP, DVV e DLNL
LEXEMAS DE LEXEMAS DE LEXEMAS DE LEXEMAS DE
INFINITIVO PP INFINITIVO PP
a. ABRIR abr- abert- abr- abert-
CINGIR — — cing- cint-
COLHER colhe- colheit- — —
COSER cos- coseit- — —
CUBRIR ~ COBRIR cub- ~ cob- cubert- ~ cobert- cub- ~ cob- cubert- ~
DIZER diz dit- diz- cobert-
ESCREVER escrev- escrit- escrev- dit-
FAZER — — faz- escrit- ~ escryt
faz- feit- — feit- ~ ffeyt ~
IMPRIMIR/EMPRIMIR imprim- impres- — feyt-
MATAR — — mat- —
MORRER — — morr- —
NAÇER nac- nad- — mort-
POER ~ POR po- post- po- mort-
PRENDER — — prend- —
VEER ~ VER ve- vist- ve- post-
pres-
vist-
b. ACEITAR aceit- aceit- aceit- aceit-
PAGAR — — pag- pag-
SOLTAR — — solt- solt-

Quadro 7: Lexemas do subgrupo 4 em JB e em DJ

3.3 Variações gráficas e/ou fônicas nos lexemas dos verbos de


padrão especial
Algumas diferenças gráficas não caracterizam variações ou mudanças
nos lexemas. Já as variações fônicas sugerem uma suposta relação entre a
fala e a escrita e indicam a coexistência de lexemas distintos
As variações gráficas mais comuns referem-se à duplicação de grafemas,
tais como:
a) <f> ~ <ff> for ~ ffor, faço ~ ffaço. A duplicação da fricativa
labiodental surda [f] no início de palavras ascende ao latim, não indica
uma tentativa de distingui-la de outra realização fônica. Em JB, não ocorre
esse tipo de variação, e o próprio autor diz que o [f] não apresenta muitas
particularidades que suscitem dúvidas no seu uso;

Português 500.p65 337 22/7/2005, 15:02


338
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

b) <z> ~ <zz> fazendo ~ fazzendo, <s> ~ <z> dises ~ dizes,


etc.; <ss> ~ <s> disse ~ dise. No que se refere à representação da
sibilante surda <ss> ~ <s> é mais expressiva em DJ;
c) <m> ~ <n> ~ <~> sendo ~ semdo, faze!ndo ~ ffazemdo ~
fazendo. Em JB, também há esse tipo de variação, embora o uso do <m>
e do <n> tenha sido uniformizado na transcrição (mantendo-se o til <~>
em posição final, na vogal ã acentuada e nos ditongos (Buescu, 1971:III);
d) com relação à nasalização da vogal final, a variação ocorre princi-
palmente em formas monossílábicas de ter, vir e ir na P3 em DJ tem ~ te!,
e na P6 de IdPr vam ~ vão ~ vãão ~ vaão ~ vãao e vã e na P6 de haver ~
ham ~ hão ~ hã, am e na P6 (õ, am, ã, ão); <y> ~ <i>. Há ainda
oscilação no uso do <y> ~ <i> como em JB (embora na transcrição o
<y> tenha sido substituído pelo <i>) e em DJ fizer ~ fyzer, vinha ~
vynha, hia ~ hyha;
e) <h> ~ <Ø>. Essa variação em palavras em que o uso do <h> se
justificaria pela etimologia foi documentada em JB houvéram ~
[h]ouvéram e em DJ houver ~ ouver, etc. Além desse uso, o <h> foi
registrado antes de vogais iniciais hir ~ ir e entre vogais distintas – hyha;
f) <oo> ~ <o> e <aa> ~<a> <ee> ~ <e>, etc. Exemplos de
duplicação de vogais em teenho ~ tenho, veenha ~ venha, poode ~ pode,
vaa ~ va e daa ~ da foram registrados em número reduzido e somente
em DJ. Entretanto, as vogais duplas nesses casos não se justificam
etimologicamente, provalvemente são usadas como forma de abertura da
vogal ou como representação da vogal da sílaba acentuada.
As variações fônicas ocorridas na documentação referem aos seguintes pro-
cessos fônicos:
a) variações em decorrência de encontros vocálicos orais e nasais (vo-
gais duplas), <ee> ~ <e>, teer ~ (ter), teereis ~ (tereis), veer ~ (ver),
seer ~ (ser), teem ~ (tem) e veem ~ (vem). As variantes conservadoras
apresentam uma freqüência bastante inferior em relação às formas inova-
doras ver, tem e vem. A baixa freqüência de formas onde não ocorrera a
contração das vogais orais e nasais mostra que essas estavam em desuso e
que o processo de mudança já estava em fase de conclusão, tendência
confirmada pela falta de registro dessas formas em JB.
b) variação por influência da oposição entre P1 e P3 de IdPt2 (<e/i>) e
(<o>/<u>) e variação na representação da pretônica, <e> ~ <i>, estevér
~ estivér, esteverdes ~ estiverdes,tevéram ~ tiveram, tever ~ tiver,
fezéram ~ fizeram, fezerã ~ fizerão, <o> ~ <u> poseram ~ puseram,
dessésse ~ dissése e pidia ~ pedia. Esse tipo de variação, <e> e <i> e
<o> ~ <u> foi registrada nos dois grupos de documentos. Formas como
teveram ~ tiveram e fezerã ~ fizerão, poseram ~ puseram e esteverdes
~ estiverdes devem-se à influência da oposição entre P1 e P3 de IdPt2 em
tive / teve, fiz / fez e pus / pôs. Os resultados em termos de freqüência das
formas conservadoras demonstram que há certo equilíbrio entre JB e DJ. É

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339

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
interessante observar que em DJ o lexema pos- para os TP é categórico,
não há registro de pus-. E mesmo em JB, a variação entre pos- (44,44%) ~
pus- (55,56%) é ainda equilibrada.
c) variação por assimilação da vogal átona em relação à tônica. Com
relação a pidia ~ pedia, o que se verifica é que, mesmo sendo o lexema
pid- o menos freqüente, o índice de 23,8% parece levar a crer que se trate
de uma variante estável, se compararmos com a situação do português
atual. Os estudos vêm demonstrando que na pronúncia há variação entre
ped- ~ pid-, embora se registre, na escrita, o lexema ped.
d) variação na representação do <ø>. A forma vierám relatada na
literatura como conseqüente de dissimilação da vogal átona em contato
com a tônica e foi registrada apenas em JB. Essas variantes <1!> ~ <nh>
(v1!a – vynha) indica hesitação na representação do <nh>. A forma v1!a
ocorreu apenas uma vez, e em DJ.
Além dessas variações, há o registro de formas arcaizantes como: veo,
que corresponde a 50%, os 50% restantes dizem respeito ao uso da forma
ditongada veyo, veio e veeo. Em JB, a forma veo é predominante, as vari-
antes ditongadas veio ~ veyo apresentam em cada conjunto de textos
apenas uma ocorrência.
Com relação ao verbo poder só há o registro de pod-. A forma pud-
aparece na P1 em DJ.
Também a P6 de IdPr do verbo ser, do latim “sunt”, sam, sã, são e
som. Além das formas sam e são em P1. Em JB a P1 aparece já ditongada
sou e a P6 apenas como sam, que é a variante mais generalizada, também
em DJ.

4 Verbos de padrão especial no português arcaico e no


português do século XVI – um estudo contrastivo
Nesta seção, o nosso objetivo principal é identificar as diferenças nos
lexemas dos VPE entre o PA e o português do século XVI, relacionando-as
à hipótese central deste trabalho de que mudanças fônicas e/ou analógicas
teriam tornado esses verbos menos irregulares ou regulares. São conside-
rados, para a primeira sincronia – PA, os dados de Mattos e Silva (1989 e
1994) e, para a segunda – século XVI, os resultados obtidos na descrição
desses verbos no capítulo III, a partir dos documentos considerados. Para
isso, vamos contrapor, de acordo com o modelo de análise já aplicado no
item anterior, destacando-se, nesse caso, as formas próprias do PA não
registradas ou pouco freqüentes no português do século XVI.
O parâmento para o confronto entre essas duas sincronias será esta-
belecido a partir das formas divergentes dos VPE, específicos do PA.

Português 500.p65 339 22/7/2005, 15:02


340

4.1 Subgrupo 1
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Esse subgrupo, como vimos, é formado pelo contraste morfofonológico


entre os TNP e os do TP, assim como os subgrupos 2 e 3. Vejamos:

– Tempos do não-perfeito

As alterações nos lexemas dos VPE ocorrem basicamente nos tipos a,


b, d, e e g, conforme Quadro 8 a seguir:

LEXEMAS DOS TEMPOS DO NÃO-PERFEITO


PERÍODOS
PORTUGUÊS ARCAICO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI
VERBOS
a. DIZER dig- dig-
diz-, dez- diz- ~ dis- ~ dez -
di- di- ~ dy-
TRAZER trag- [+vel] trag-
trag- [+pal] traz-
tra- tra-
FAZER ~ FFAZER faç- faç- ~ ffaç-
faz- faz- ~ ffaz- ~ faaz- ~ fazz-
fa- fa- ~ ffa-
AVER ~ HAV-, ER, [H]AV-, ER av- [h]av- ~ av- ~ hav-
aj- [h]aj- ~ aj-
a- [h]a- ~ a- ~ ha-
b. TER ~ TEER ten- ~ te - ten- ~ te - ~ tem ~ teen ~ them-
tenh- tenh- ~ teenh-
tiinh- tinh-
tenrr-, te rr-, terr- ter- ~ teer-
VIR ~ VYR vin-, ve - ven- ~ ve - ~ veem-
viin- vim ~ vin ~ vyr ~ vym ~ vy -
venh- venh- ~ veenh-
viinh- vinh- ~ vynh- ~ vy a-
venrr-, ve rr-, verr- vi- ~ vy-
POER ~ POR pon-, põ-, po- pom- ~ põ-
ponh- ponh-
poinh- punh-
ponrr-, põrr-, porr- po-
c. VER ~ VEER ve- ve- ~ vee-
vi- vi- ~ vy-
vej- vej-
ESTAR est- est-
estej- —
d. PODER pos- pos-
pod-, pud- pod- ~ pood-
JAZER jasc- jaç-
jaz- jaz-
e. QUERER quer- quer-
queir- queir- ~ queyr-
SABER sab- sab-
— saib-
f. YR-, IR ~ HYR va- va- ~ vaa-
i- i- hi- ~ hy- ~ y
g. SER ~ SEER se- ~ e- he- ~ e-
sej- sej-
si- ~ er- se- ~ sy-
so- so- ~ soo-
son- sã- ~ sam ~ som-

Quadro 8: Lexemas dos subgrupos 1 dos TNP no PA (dados extraídos de Mattos


e Silva 1989 e 1994) e no português do século XVI.

Os dados mostram que:

Português 500.p65 340 22/7/2005, 15:02


341

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
a)O lexema trag- [+ pal] do verbo trager, de uso generalizado no PA,
é próprio dos seguintes tempos e pessoas: IdPr P2 a P6 (trages, trage, etc),
IdPt1 P1 a P6 (tragia, tragias, etc), Imp. P2 e P5 (trági, tragede), Inf. fl. P1 a
P6, Inf. (trager), Ger. (tragendo).
b)As variantes tiinha e viinha sem a contração das vogais ocorrem em
IdPt1 – P1 e a P6. A forma poinha própria desse mesmo tempo e pessoas
indica que não havia se dado ainda o alteamento de [o], que posterior-
mente passa a [u] em decorrência desse processo de assimilação da vogal
[i] da sílaba tônica, resultando em formas como puinha > punha. (Mattos
e Silva, 1994:53). Em IdFt1 e IdFt2 - P1 a P6 são resgistradas no português
desse período as variantes tenrr-, te!rr, terr- (de ter), venrr-, ve!rr- (de ver)
e ponrr-, põrr e porr- (de pôr), essas variações mostram um processo de
mudança em curso em direção à desnasalização. A forma viim (IdPr P4 e P5,
Imp P5 e Inf. fl. P1 a P6, Inf. e Ger.) no PA aparece sem a contração da vogal
nasal.
c)A ausência do lexema estej- deve-se provalvemente a um caso de
limitação dos dados, entretanto foram registradas formas arcaizantes como
esteem ~ estem em DJ no SbPr P6 em detrimento de estej-.
d)A forma jasc- de P1 de IdPr (jasco) e de P1 a P6 de SbPr (jasco ...
jascam etc.) é atribuída à influência dos incoativos latinos “-escere” > -
ecer (Coutinho, 1976:308 e Piel, 1989:225).
e)O verbo saber não havia ditongado o lexema pela metátese da
semivogal da sílaba seguinte no PA no SbPr P1 a P6 e se realizava como
(sábia, sábias, etc.). A característica que o define no PA é a do subgrupo 2,
dos verbos que têm lexema invariável nos TNP.
f)As variações gráficas, como a da representação de [i], <i> ou <y>,
assim como também da nasal [n] ou [m], com <n>, <m> ou til, e ainda
<h> foram discutidas no item 3.3.
g)As variações nos lexemas heteronímicos de ser observadas se verifi-
cam nos seguintes tempos e pessoas: Se- ~ e- (he) - IdPr P3 e P6 (he ~ se,
son ~ seen); Si- ~ er- IdPr P3 e P6 (era), (eras) era ~ siia, (eramos) ~
(erades) eram ~ siian)1 3

Com exceção das variantes se- e si-, que caíram em desuso, posterior-
mente, as diferenças de lexemas entre as duas sinconias devem-se à evolu-
ção de processos fônicos gerais da língua, enquanto que nos TP, somente
encontrados no PA, em geral, são formas arcaizantes, prevalecendo, então,
uma das variantes já usadas.

– Tempos do perfeito

Com relação aos lexemas do TP, as formas variantes são:

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

LEXEMAS DOS TEMPOS DO PERFEITO

PERÍODOS PORTUGUÊS ARCAICO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI


VERBOS
IdPt2 P1 IdPt P3 e outros IdPt2 P1 IdPt P3 e outros
a. DIZER dis-, dix- dis- ~ des- ~ disc- ~ dix-
QUERER quis- quis- ~ quiz-
AVER ouv- [h]ouv- ~ ouv- ~ houv-
TRAZER trouv- ~ troux- ~ troug- troux-
JAZER joug- ~ jouv- jouv-
b. FAZER fiz-, fig- fez- fiz- ~ ffiz- ~ fyz- fez- ~ ffez
TEER ~ TER tiv- tev- tiv- tev-
VIIR ~ VIR vi -, vin- ve -, ven-, ve - vin- ve-
ESTAR estiv- estev- estiv- estev-
c. PODER pud- pod- pud- pod-
PÕER ~ POER ~ POR pug- pos- pus- pos-
IR fu- fo- — fo- ~ ffo-
d. SEER fu- ~ siv- fo- ~ sev- — fo- ~ ffo-
e. VEER vi- vi- ~ vy

Quadro 9: Lexemas dos subgrupos 1 dos TP no PA (dados extraídos de Mattos


e Silva 1989 e 1994) e no português do século XVI.

Tipos: a b e c. As variantes dix-, troug-, joug-, fig- e pug-, consideradas


como dialetais, são pouco freqüentes no DSG, (Mattos e Silva, 1989). As
formas usuais no PA são as correspondentes: dis-, trouv-, jouv-, fiz- e pud-
(pudi e não pude). Nos dados do português do século XVI, o lexema dix-
foi registrado excepcionalmente na GLP de JB.

d. Os lexemas siv- e sev- do verbo seer ~ ser são formas variantes de


fu- e fo- respectivamente na P3 de IdPr.

e.Não há diferenças no tipo e, mantendo-se no português do século


XVI da mesma forma que no PA.

4.2 Subgrupo 2
Nesse subgrupo somente houve variação com o tipo a com a queda
do lexema proug- (de prazer). O fato mais significativo ocorre com saber e
caber, que mudam de subgrupo. Vejamos:

PORTUGUÊS ARCAICO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI


PERÍODOS
VERBOS LEXEMAS DO LEXEMAS DO LEXEMAS DO LEXEMAS DO
NÃO-PERFEITO PERFEITO NÃO-PERFETO PERFEITO
a. SABER sab- soub- — —
PRAZER praz- proug- praz- prouv-
CABER cab- coub- — —
b. DAR D+VTa D+VTe d + VTa d + VTe

Quadro 10: Lexemas dos subgrupos 2 dos TNP e dos TP no PA (dados extraídos
de Mattos e Silva 1989 e 1994) e no português do século XVI.

a.O lexema proug- (prazer) aparece no PA em P1 a P6 de IdPt2 (prouge,


prougueste, prouge, etc.) de SbPt (prouguesse, prouguesse, prouguesse,
etc.) e de SbFt (prouguer, prougueres, prouguer, etc.). O u- é marca de
“perfectum” latino (Mattos e Silva, 1994:56)

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343

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
b.Não há divergência nas formas do verbo dar entre os dois períodos
do português.

4.3 Subgrupo 3
Nesse subgrupo, são verificadas alterações no tipo a e no b, conforme
demonstrado no quadro abaixo:

PORTUGUÊS ARCAICO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI


PERÍODOS
VERBOS Lexemas de IdPr Lexemas de outros Lexemas de IdPr Lexemas de
P1 e de SbPr P1 a tempos e pessoas P1 e da SbPr P1 outros tempos e
P6 a P6 pessoas
a. OUVIR ouç- ouv- ouç- ouv-
PEDIR peç- ped- peç- ped- ~ pid
ARDER arç- ard- arç ard-
MEDIR meç- med- meç- med-
MENTIR menç- ment- — —
SENTIR senç- sent- sent- sint- ~ sent-
PERDER perç- perd- perc- perd-
b. ACAECER acaesc- acaec- — —
CONHOCER conhosc- conhoc- — conhec-
NACER nasc- nac- — —
CRECER cresc- crec- — —

Quadro 11: Lexemas do subgrupo 3 no PA (dados extraídos de Mattos e Silva


1989 e 1994) e no português do século XVI.

a.Os lexemas menç- (mentir), senç- (sentir) e perç- no PA caracteri-


zam a P1 de IdPr e SbPr - P1 a P6, opondo-se nos demais tempos com o
lexema ment-, sent- e perd-.
b.Os lexemas acaesc-, conhosc-, nasc- e cresc- e demais verbos termi-
nados em -cer são específicos também dos mesmos tempos e pessoas cita-
das acima, conforme exemplo de acaecer de SbPr – P1 a P6 (acaesca,
acaescas, acaesca, acaescamos, ascaescades e acaecerian).

Os lexemas para os demais tempos desses verbos são: acaec-, conhoc-,


nac- e crec-.
Como vimos, muitas das oposições próprias desse subgrupo foram
perdidas no português do século XVI. Esses dados nos levam a crer em
processos de regularização na estrutura desses verbos.

4.4 Subgrupo 4
As modificações nesse subgrupo devem-se também ao desuso de for-
mas do tipo a, que, devido à possibilidade do uso do duplo particípio, um
geral e outro específico, levou à queda da forma de PP especial no portu-
guês contemporâneo. Os verbos com particípio único (tipo b) mantiveram-
se inalterados. Com relação ao PA, as diferenças são decorrentes de formas
verbais que não foram registradas em nossos dados. Vejamos:

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

PERÍODOS PORTUGUES ARCAICO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI


VERBOS
LEXEMAS DE LEXEMAS DE PP LEXEMAS DE LEXEMAS DE PP
INFINITIVO INFINITIVO
a. ABRIR abr- abert- abr- abert-
ACENDER acend- aces- — —
BENZER benz- bent- — —
CINGIR cing- cint- cing- cint-
COBRIR ~ CUBRIR cobr- cobert- cubr- ~ cobr- cubert-
COLHER colh- colheit- colh- colheit-
COMER com- comest- — —
COSER cos- coseit- cos- coseit-
COZER coz- coit- — —
DEFENDER defend- defes- — —
DIZER diz- dit- diz- dit- ~ dict-
ERIGIR erig- ereit- — —
ESCREVER escrev- escrit- escrev- escrit-
FAZER faz- feit- faz- feit- ~ feyt- ~ feit-
IMPRIMIR — — imprim- impres-
MATAR mat- mort- mat- mort-
MORRER morr- mort- morr- mort-
NASCER nasc- nad- naç- nad-
PÕER ~ POER põ- post- po- post-
PRENDER — — prend- pres-
TOLHER tolh- tolheit- — —
TRAZER traz- treit- — —
VEER ve- vist- ver- vist-
b. ACEITAR aceit- aceit- aceit- aceit-
JUNTAR junt- junt- — —
PAGAR pag- pag- pag- pag-
SALVAR salv- salv- — —
SOLTAR solt- solt- solt- solt-

Quadro 12: Lexemas do subgrupo 4 no PA (dados extraídos de Mattos e Silva


1989 e 1994) e no português do século XVI.

a.Não foi documentado o uso dos lexemas de PP dos verbos acender


(aces-) e benzer (bent) que continuam a ser usados no português contem-
porâneo. Os lexemas de comer (comest-), defender (defes-), erigir (ereit-
) e tolher (tolheit-) que, ao contrário dos demais, foram regularizados no
português, ou melhor, só admitem o PP regular, não foram atestadas em
nossos dados. Encontramos, além desses, mais dois: pres- (de prender) e
impres- (de imprimir).
b.Não houve divergência nos lexemas desses tipos verbais, manten-
do-se ainda no português contemporâneo. Os verbos aceitar e salvar não
foram documentados nos dados.

5 Conclusão – Mudanças nos lexemas dos verbos de


padrão especial do português arcaico para o português
do século XVI
Os processos de perda que acabamos de examinar demonstram mu-
danças nos lexemas dos VPE. Em síntese:

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
DADOS DA OBRA PEDAGÓGICO-GRAMATICAL DE
DADOS DE MATTOS E SILVA (1989 e 1994) JOÃO DE BARROS 1539/1540 E DAS CARTAS DE
(PORTUGUÊS ARCAICO) D. JOÃO III
1523 A 1557
1. Trag- [+pal] 1. traz-
2. Tenrr-, te rr-, terr- 2. ter- ~ teer-
venrr-, ve rr-, verr- vir-
ponrr-, põrr-, porr- por ~ poer
3. tiinh- 3. tinh-
viinh- vinh-
4. viim- 4. vin ~ vim ~ vyn- ~ vy - ~ vym-
5. poinh- 5. punh-

6. sab- (SbPr - P1 a P6) 6. saib- (SbPr - P1 a P6)


cab- (IdPr - P1 ) caib- (IdPr - P1)
7. jasc- 7. jaç-
8. dix- 8. dis- ~ des- ~ disc-
9. troug- 9. troux-
joug- jouv-
proug- prouv-
10. fig- 10. fiz-
pug- pus-
11. siv- 11. fu-
sev- fo-
12. perç- 12. perc-
menç- mint-
senç- sint- ~ sent-
(IdPr P1 e
SbPr P1 a P6)
13. acaesc- 13. —
conhosc- conheç-
nasc- naç-
(IdPr P1 e
SbPr P1 a P6)
14. paresc- 14. pareç-
agradesc- agradeç-
meresc- mereç-
(IdPrP1 e
SbPr P1 a P6)

Quadro 13: Mudanças ocorridas entre o PA e o português do século XVI.

A análise desses dados sob a perspectiva diacrônica nos leva às se-


guintes mudanças nos VPE, que são:

1.O lexema trag- [+pal] é substituído por traz- em todos os tempos e


pessoas em que essa forma ocorria. O lexema traz-, segundo Williams
(1960), tinha possivelmente um uso popular no PA, o que talvez expli-
que a sua generalização, em detrimento do desaparecimento de trag-
[+pal].

2.Nos lexemas tenrr, te!rr e terr, venrr-, ve!r r-, verr e ponrr-, põrr e porr há
um processo de desnasalização da vogal desses lexemas que evolui para
ter, vir e por. Nos dados do século XVI, além dessas formas, há ainda
teer em DJ com 20 e ter com 38 ocorrências. Em DJ e JB há um uso mais
generalizado de poer, forma presumivelmente arcaizante.

3. A contração das vogais nasais idênticas, como conseqüência da evolução


fonética atestada no século XVI justificaria, a princípio, esse processo de
mudança dos lexemas tiinh- e viinh- pelas respectivas formas tinh- e
vinh- no português do século XVI. Os lexemas variantes terr- e verr-

Português 500.p65 345 22/7/2005, 15:02


346
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

atestados na PA indicam esse fato. Assim a forma teer- em DJ, como uma
variante de pouco uso nos dados do século XVI, constitui um indício do
processo dessa mudança.

4. Os lexemas vin ~ (v1!, vim, vyn, vym) mostram que a contração das
vogais nasais (< vi!i!n) no português do século XVI já ocorrera. O que se
registra é uma variação gráfica na representação dessa vogal (y ~ i) e da
nasalidade (<n> ~ <m> ~ <~>) em DJ.

5. A inexistência do lexema poinh- nos dados do século XVI indica que a


mudança para punh- já havia sido concluída.

6. A mudança dos lexemas IdPr P1 e SbPr P1 a P6 de sab- e cab- para saib- e


caib-, embora pressuponha um processo de regularização, gera maior
complexidade na forma desses verbos, que deixam de possuir apenas um
lexema para os TNP (característica do subgrupo 2), para assumir as ca-
racterísticas do subgrupo 1.

7. O lexema jasç- de jazer passa a jaç nos mesmos contextos em que ocor-
ria no PA.

8. A seleção de dis- culminou na perda de dix-.

9. Desaparecimento dos lexemas troug-, joug- e proug- dos TP em substi-


tuídos pelos lexemas troux-, jouv- e prouv-.

10. Desaparecimento de fig- e pug-, permanecendo fiz- e pus- (em fazer e


por ~ poer, respectivamente).

11. Os lexemas sev- e siv- do verbo ser ~ seer, que variavam em contextos
específicos com fo- e fu- no PA, são substituídos por esses nos dados do
século XVI. Os lexemas sev- e siv- possuíam um valor semântico diferen-
te, especificamente ‘estar sentado’.

12. Perç > perc. Essa mudança ainda mantém a oposição entre os TNP
IdPr P1 e SbPr P1 a P6.

13. Os verbos mentir e sentir regularizam-se no português do século XVI.


As formas IdPr P1 e SbPr P1 a P6 perdem a oposição e passam a ser a dos
demais tempos e pessoas, conforme atesta o exemplo extraído da GLP
de João de Barros, em que o próprio autor justifica essa regularização.

(26)Os vérbos da terçeira conjugaçám terminam o infinitivo em ir e


fórmam o seu presente pela maneira das outras conjugações poendo,

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347

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
em lugár de ir, ésta lêtera o, e fica formádo firo, de firir, durmo de
durmir, sento de sintir, cubro de cubrir (Grifo nosso) (JB – GLP –
Das formações – l; 35/38 p.344).

14. O verbo conhecer regulariza-se no português do século XVI. A P1 de


IdPr (possivelmente no SbPr P1 a P6), não mais foi registrada como
conhosco. E em JB (GLP) aparecem conheço e desconheço.

(27)Simples, será ô que nam for composto dalg"!a párte sinificativa;


e composto ô que se compõe de duas. Exemplo: conheço é sim-
ples, desconheço, composto, que se compôs désta diçám des e co-
nheço (JB – GLP l; 1/4 – Das figuras do vérbo – p.329).

O lexema atestado do verbo conhecer é conhec- (conheçe, conheçemos,


conheçem, conheçer e conheçido) em JB e em DJ foram registrados tam-
bém com a grafia (conheçer e conheçido).
Nos dados, há regularização nas formas arcaicas de outros verbos
incoativos em –ecer: pareça (paresca), agradeço (gradesco) e mereça
(meresca).

(28)Muyto vos agardeço quam myudamente me de todo avisaees


(C32 FA l; 4/5 p.66).

As formas mereçer, mereçerem (de merecer) não atestadas na P1 de


IdPr e P1 a P6 de SbPr, provavelmente devem ter seguido também esse
processo de regularização.
No subgrupo 4 foi identificado o uso de ter + verbos com PP especial.

(29)como ô tem feito em os estudos de Coimbra (JB – DNL l; 430/


431 p.409).

O uso de PP especial em tempos compostos ocorre apenas com o


verbo ter e basicamente com os verbos fazer, dizer, escrever, pagar, abrir
e por.
No que se refere ainda aos VPE do subgrupo 4 há uma correspondên-
cia entre as formas atestadas nos dois períodos considerados, não foram
registradas, portanto, mudanças nesse sentido.
A análise comparativa dos três subgrupos permite verificar que o
subgrupo 1 é, pelas características que o definem, o que oferece as condi-
ções ótimas de classificação dos VPE, e, por essa razão, engloba o maior
número de itens verbais dessa categoria. Dos vinte e três verbos registrados
no corpus, quinze fazem parte desse subgrupo. E embora não tenha havi-
do ocorrência de verbos que compõem os subgrupos 2 e 3, é no 1 que
prevalece o maior tipo de variação morfofonológica. Essa riqueza variacional
própria do subgrupo 1 contrapõe-se ao quadro de relativa uniformidade

Português 500.p65 347 22/7/2005, 15:02


348
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

dos demais subgrupos. A comparação entre grupos 1, 2 e 3 permite ainda


que se observe a nítida simplificação que vai se operando nos VPE.
A Tabela 1 mostra a freqüência do conjunto de verbos nesses subgrupos
nos documentos analisados.
Subgrupos / Textos Subgrupo 1 Subgrupo 2 Subgrupo 3
JB 92% 3,65% 4,35%
DJ 92,15% 5,81% 2,04%
Tabela 1: Freqüência verbal nos três subgrupos em JB e em DJ

A mudança que ocorreria nos subgrupos é previsível, partiria do


subgrupo 3 (o que mais se aproxima do paradigma geral). Considerando-
se a maior complexidade em termos de oposição entre os lexemas do TNP
e do TP no subgrupo 1, justifica-se que a regularização tenha ocorrido com
verbos desse subgrupo, que é o que mais se aproxima das características
dos verbos de padrão geral, e de onde se esperaria que ocorresse a mudan-
ça.
Com base nessa comparação, podemos dizer que os VPE do portu-
guês do século XVI são mais uniformes, embora como vimos, nem toda
mudança no lexema signifique propriamente uma regularização.
1
Os textos de João de Barros dão um total de 87 páginas digitadas, as 372 cartas de D. João III,
255. Com o objetivo de equacionarmos as dimensões entre os dois documentos, fizemos uma
seleção entre as cartas de um total de 85 páginas, que procurou abranger o período em que
foram escritas e o maior número possível de escrivães.
2
As gramáticas normativas consultadas foram: Almeida (1994), Bechara (1989), Cunha e Cintra
(1985) e Rocha Lima (1994).
3
Em nossa Dissertação de Mestrado, intitulada Os verbos de padrão especial no séc. XVI (1996),
apresentamos, analiticamente, os dados conforme o que ocorre na obra pedagógica de João de
Barros e nas Cartas de D. João III. Aqui, deixamos apenas a síntese dos dados.
4
Nas P5 e P6 ,o lexema é av-, o mesmo que aparece em IdFt1, IdFt2, IdPt1, IdPt2 Inf. e Ger.
5
A forma aio está documentada na Crônica Troiana, p. 127 (Nunes, 1960: 305).
6
Piel (1989:226) já havia atestado a permanência dessa flexão ainda no século XVI.
7
Os lexemas entre parênteses indicam variação entre outros tempos, embora não tenha sido
registrada oposição nesse contexto.
8
Essa forma do pretérito onde há junção de -si à raiz, é, ao lado de trouxe (trazer), uma das
poucas formas que conseguiram se manter. Os lexemas quis e pus, que aparentemente fazem
parte desse grupo, passaram de fracos a fortes ainda no latim clássico (Nunes 1961:323).
9
Dentre essas, apenas as formas de SbPr - P3 e P5 e Inf. foram verificadas nos dados de DJ. (ouça
~ ouçaes ~ ouçaees e ouvir ~ ouvyr), respectivamente.
10
Além do infinitivo arder e arder, lexema ard- dos outros tempos do NP e os do P.
11
O lexema dict- aparece apenas na função de substantivo.
12
Nas Cartas, houve uma grande variação no uso dessa forma, tal como: Sprita e! Mõte Morr o
Novo (C6 AP l; 348 p.16), Scripta e! Lisboa (C5 ... l; 26 p.6) Esprita em Evora (C28 S l; 32 p.62)
...pello que tem escripto (C87 ... l; .9 p.130), Stprita em Evora (C280 MC, l. 12 p.310). Essas
variações, ao que se supõe, são resultantes de abreviaturas da forma latina “scriptum”.
13
No português arcaico, essas variações (se- ~ e- e si- ~ er-) entre a P3 e P6 de IdPr e IdPt1,
respectivamente, não indicam sinônimos perfeitos entre as formas e são usados em contextos
específicos (Mattos e Silva 1989: 365-577). Ex: (3.34.20) “Per esta filha de Caleph que siia en
cima da asna que he animalha sem razon”. (4.12.7) “Ele non se podia levantar nen seer”.

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349

Referências bibliográficas

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FORD, J. D. M. (1931). Letters of Jonh III, king of Portugal (1521-1557). The
portuguese text edited with an introduction. Cambridge: University Press.

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A pontuação em João de Barros:
preceitos e usos

Américo Venâncio Lopes Machado Filho

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353

Introdução

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
N
o contexto das reconfigurações socioculturais e lingüísticas que
se operaram no Portugal de quinhentos em relação ao período ar-
caico (Mattos e Silva, neste livro), emerge, como marco da
historiografia da língua portuguesa, a publicação da Grammatica, de João
de Barros, no ano de 1540, em Lisboa, que, juntamente com o trabalho
precedente de Fernão de Oliveira, de 1536, revela-se como ato inaugural da
reflexão metalingüística sobre o português.
Foi o século XVI, na Europa, como bem assinala Buescu (1984:42-3), o
“das grandes criações – ou tentativas – gramaticais em geral e ortográficas
em especial”, aparecendo “na história, como o momento das grandes op-
ções e dos grandes alcances - da confrontação com o real”, que, certamente,
em Portugal, o Renascimento, as novas descobertas marítimas portuguesas,
os avanços tecnológicos implementados na época faziam prenunciar.
O fim da Idade Média é, pois, “marcado por um novo elemento na
concepção da linguagem”, que já se começa a manisfestar, desde o século X,
quando se esboça, em defesa das línguas nacionais, “a preocupação de ela-
borar gramáticas apropriadas às suas especificidades” (Kristeva, 1974:199).
Para Buescu (1984:205):

A tecnologia gutembergiana vai, de facto, criar uma trama de conceitos sociológi-


cos segundo os quais se busca, a partir dos finais do séc. XV, fixar ou imutabilizar,
segundo um padrão determinado, modelo talvez arbitrário, a realidade lingüís-
tica, na posse, durante a Idade Média, do homem oral e do escriba: vai operar,
por conseguinte, a metamorfose do oral no visual do pluralismo medieval no
singularismo homogéneo e normalizado duma cultura e dum programa
tecnológicos.

É nesse cenário de profusa emergência cultural e desenvolvimento soci-


al, corroborado pela “formação humanista e sólida erudição” próprias a João

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354
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

de Barros, por sua “proximidade com a corte régia” (Buescu, 1996:12), e


por sua oportuna inserção nesse alavancado mundo de mudanças, em que
a escrita e a leitura – motivadas, como se viu, pelo progresso da imprensa
em Portugal – passariam a assumir novos direcionamentos (Cardim,
1996:37), que surge sua Grammatica da lingva portvgvesa.
Obra de caráter eminentemente normativo, ou preceitivo como o pró-
prio autor esclarece em sua apresentação – contrariamente à de Fernão de
Oliveira, que em linhas gerais se poderia definir como de natureza funda-
mentalmente descritivista – a Grammatica de João de Barros, concentrada
na “leteras”, veio a revelar, no escopo de sua elaboração, a primeira proposta
ortográfica para a língua portuguesa, cujo primeiro eco só viria a se manifes-
tar mais de três décadas depois, em 1574, quando Pêro Magalhães de Gândavo
publica uma segunda tentativa de normativização ortográfica.
No final de sua Ortografia, que define como “ciençia de escreuer
dereitamente”1 (Barros, [1540] 1971:135) João de Barros apresenta “algu-
mas (breves) anotações sobre pontuação” (Buescu, 1971:LX), cuja orienta-
ção viria, ainda, a se transformar na primeira tentativa de regularização
conhecida, para a língua portuguesa, sobre esse mecanismo da escrita,
“em que os latinos mostraram muita diligençia”, mas que, segundo João
de Barros, não tinham até então os portugueses, “principálmente na letera
tiráda” (Barros, [1540]
1971:153).
Contrariamente ao que
pensava Barros e mesmo
muitos estudiosos contem-
porâneos de textos antigos
sobre a questão, os hábitos
de pontuar precedentes, ou
seja, os relativos ao período
arcaico da língua portugue-
sa não teriam sido assim
indiligentes nem muito me-
nos assistemáticos, mas
pareciam, antes, se funda-
mentar “entre uma utiliza-
ção lógico-gramatical e um
emprego provavelmente
apoiado em características
da língua falada”, como pro-
curou demonstrar, recente-
mente, Machado Filho
(1999a:89).
Não obstante, as reco-
Fragmento do fólio 49r da Grammatica de João de mendações de Barros sobre
Barros

Português 500.p65 354 22/7/2005, 15:02


355

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
a pontuação assim como os usos que faz esse autor sobre seus próprios
preceitos normativistas parecem revelar-se de alguma importância para se
avançar no conhecimento do português quinhentista.
Nesse sentido, utilizando-se como corpus de análise a própria
Grammatica da lingva portvgvesa, pretende-se aqui, pois, observar a
sistematicidade de usos que faz esse autor face aos preceitos e condiciona-
mentos explicitados em sua obra, procurando correlacioná-los ao emprego
da pontuação que se praticou na Idade Média portuguesa, que os novos
ditames renascentistas, inspirados nos modelos clássicos latinos, fizeram
reconfigurar.

1 O sistema de pontuação no período arcaico do


português
Durante a Idade Média portuguesa, nomeadamente no momento his-
tórico que comumente se costuma denominar de período arcaico da lín-
gua,2 ter-se-ia conformado o uso da pontuação medieval como recurso
auxiliar de notação de aspectos não exclusivamente sintáticos, como hoje
se verifica, preponderantemente, na linguagem escrita formal, mas,
concomitantemente, de aspectos melódicos, rítmicos e pausais, fortemen-
te influenciados pela linguagem oral.
O livro, nesse período, raro, de produção demorada e cara, cujo su-
porte era normalmente o pergaminho, se restringia marcadamente “a uma
parte da aristocracia, e ao clero devido às suas instituições de tipo colectivo”,
destinando-se na maior parte das vezes à leitura em voz alta, o que de certa
forma poderia explicar “a importância e o favor da transmissão cultural por
via auditiva e por tradição oral” (Marques, 1964:192) característicos a essa
época da História.
Veja-se que, durante a Idade Média, como afirma Mattos e Silva, em
seu texto Reconfigurações socioculturais e lingüísticas no Portugal de
quinhentos em comparação com o período arcaico, nesta Coletânea, “não
ultrapassaria de “2% a elite intelectual”, nomeadamente no período com-
preendido entre os séculos XII ao XV, o que, certamente, impelia os hábi-
tos de escrita a acomodar muito dos aspectos prosódicos da fala na
elaboração dos registros da época. O “analfabetismo era excepcional e as
letras atributo quási exclusivo dos freires e dos padres” (Sequeira, 1943:14).3
Não obstante, não era o português que se firmava como linguagem
corrente em Portugal “uma língua imperfeita, rude, hesitante, infantil, como
imaginaram os impostores do século XVII” (Vasconcelos,1946:18) e como,
provavelmente, ainda imaginam alguns do século XXI, mas uma língua
utilizada como elemento de comunicação social, plenamente adequada a
seus usos, como qualquer outra em qualquer tempo ou lugar, através da
qual os homens “discuten com sus esposas, juegan con sus amigos y engan!an
a sus enemigos”4 (Labov, 1983:23) e vice-versa.

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356
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Registrada pela escrita, pelo menos desde os inícios do século XIII,5


o português da Idade Média, notadamente o do período arcaico, não co-
nhecia ainda, todavia, o poder coercitivo das gramáticas, que nessa época
se concentravam exclusivamente sobre o latim – única língua que se ensi-
nava, então, na escola, e a poucos – mas deveria, certamente, conhecer
diretrizes básicas mínimas que auxiliassem a tarefa dos amanuenses na
produção dos textos escritos, nomeadamente em seus hábitos de pontuar.
Essa relativa liberdade do uso da escrita fez com que se desenvolvesse
durante a Idade Média um sistema de pontuação bastante complexo.
Segundo Parkes (1993:41):

The general repertory of punctuation developed from a progressive


amalgamation of elements drawn from diferent earlier systems of punctuation,
and augmented from other specialized systems which appeared during the course
of the Middle Ages.6

Enquanto, no período arcaico da língua, muitas das soluções gráficas,


para indicação da pontuação, se baseavam ainda, pela própria força da
tradição comum à língua escrita, em antigos sistemas latinos, outras intro-
duziam-se, para dar conta das necessidades da realidade lingüística e das
novas mentalidades humanas que se conformavam.
Ademais, na produção do texto em latim a variação e oscilação de uso
entre diferentes sistemas eram já assinaladas por estudiosos desse mo-
mento histórico (como seria óbvio de se esperar, haja vista ser a variação
inerente a qualquer sistema lingüístico), o que significa dizer, seguindo-se
a ótica de Núñez Contreras (1994:162), que já não se pontuava um texto
latino “sistemáticamente y con la misma frecuencia”7 desde a Alta Idade
Média.
Sem querer, aqui, discutir o conceito de sistematicidade adotado por
Núñez Contreras, em seu ótimo manual sobre o percurso da escrita latina
até o século VIII, poder-se-ia perfeitamente incorporar, para melhor enten-
dimento dos dois momentos históricos da língua que se oferecem à com-
paração da pontuação, ou seja, o período arcaico versus o Renascimento
de João de Barros, a seguinte relação dialética proposta por Cardeira
(1999:44), em seu trabalho sobre o português quatrocentista:

O galego-português, língua distanciada, libertou-se do tecto latino; o português


do século XV, em fase de elaboração, liberta-se do tecto galaico-português e
acolhe-se de novo ao tecto latino.

Essa relativa libertação do “tecto latino”, durante a Idade Média, ge-


rou um vasto número de sistemas coexistentes e sinais de pontuação
adotados, que, pesquisados sobre corpora amplos, foram inventariados
em Machado Filho (1999a).

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357

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Entre os sinais detectados, no referido trabalho, observaram-se prin-
cipalmente o ponto seguido de maiúscula [.M]; o ponto seguido de minús-
cula [.m]; a virgula suspensiva [/], quer seguida de maiúscula, quer de
minúscula, que seria usada para marcar uma pausa mais breve ou hesita-
ção num texto; o punctus elevatus [!], diante de maiúscula ou minúscula,
utilizado com a função de representar uma pausa média principal; o caldei-
rão medieval [¶], que indicaria início de parágrafo, de proposição ou de
parte de texto, podendo anteceder da mesma forma maiúsculas e minús-
culas; os sinais de fim de texto (SFT), inovações que começam a aparecer a
partir do século XV, coexistindo com outros sistemas antigos como o das
distinctiones que se caracterizava em suma pela dependência direta do
sinal à altura da linha do texto, condicionando a interpretação por parte
do leitor de uma maior, média ou menor pausa no ato da leitura, ou dos
símbolos conhecidos como positura [:~M], que eram empregados “at the
end of a paragraph in a series of paragraphs or texts (...) to imply that
some continuation was to be expected to complete this series”8 (Parkes,
1993:306), entre outros símbolos, que podem ser observados em Macha-
do Filho (1999a).
Confrontando-se, sistematicamente, o comportamento desses sinais,
nomeadamente os mais freqüentes nos textos analisados, como o ponto
seguido de maiúscula ou minúscula, o punctus elevatus e a virgula
suspensiva, verificou-se que, ao contrário de um comportamento incoe-
rente ou assistemático, recomendavam a possibilidade de variação
contextual de utilização, podendo ter sido empregados, além da função de
sinalizadores de contextos sintaticamente definidos, para a representação
de pausas que orientasse o ato da leitura em voz alta.
Não obstante, muitos desses sinais vão progressivamente desapare-
cendo a partir do século XV.
Rosa (1995:18), que desenvolveu pesquisa sobre a questão da pontu-
ação em textos em português produzidos nos primeiros anos da imprensa
em Portugal, em um dos seus trabalhos, observa:

Dois sinais surgem com maior freqüência nos textos impressos em português
na passagem do século XV para o XVI: o cólon, com o desenho do atual ponto
(.), e a coma, com o desenho do atual dois-pontos (:).

Da profusa variedade de sinais que a mão do escriba costumava impri-


mir em seus textos, passa, pois, a pontuação a se condicionar a novos
paradigmas de emprego, sob a proteção do “tecto latino” de que nos fala
Cardeira (1999:44), ou seja, sob a égide e autoridade da gramática latina,
“cuios filhos nós somos, por nam degenerar della” (Barros, [1540] 1971:60).

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2 Aqui diremos dos põtos que podemos usár, se


O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

quise0 rmos doutamente escreuer9


Para João de Barros os sinais de pontuação eram elementos principais
da ortografia, “sendo cousa que impórta muito: por que ás vezes fica a óraçám
amfibológica sem elles”, e, para sua grammatica “nesta párte nam fícar
escássa” (Barros, [1540] 1971:153), apresenta o inventário desses elemen-
tos, revelando explicitamente o modelo em que se baseia: “Os latinos,1 0 tem
estes pontos e sináes, com que destingu$! as pártes e cláusulas da óraçam:
cõma, cólo, uerga, parentesis, interrogaçám” (Barros, [1540] 1971:153).
A explicação do emprego de cada um desses sinais se concentra, toda-
via, em pouco mais de 50 linhas de texto, de forma não muito didática –
ao menos em relação a outras questões por ele abordadas em sua
Grammatica – , o que, de alguma maneira, dificulta o entendimento ime-
diato de suas reais funções, senão por releituras bastante atentas.
Os conceitos de “pártes” e “cláusulas” revelam-se, sobretudo, como
fundamentais para a compreensão do sistema de pontuação proposto, já
que aos pontos e aos sinais caberia a função de distingui-las.
Barros ([1540] 1971:60) considera “ser anóssa linguágem cõpósta des-
tas noue pártes: Artigo, que $0 próprio dos Gregos e Hebreus, Nome, Prono-
me, V$0rbo, Adu$0rbio, Partiçipio, Cõiunçam, Preposiçam, Interieçam”, sendo
as principais, ou “reis da linguag$!”, para se utilizar de sua própria terminolo-
gia, o nome e o verbo, cujas “damas” seriam o pronome e o advérbio.
A cláusula é definida em função do próprio sistema de pontuação: “As
paláuras que iáz$0m antre dous cólos, se chamam, clausula, ao nósso módo:
e segundo os gregos, periodo aque os latinos chamam termo” (Barros,
[1540] 1971:154).
Com base no que se encontra expresso no trabalho de Barros, nome-
adamente entre as pouco mais de duas páginas que dedica à questão, po-
der-se-ia propor a seguinte organização para seu sistema de pontuação,
que se encontra no Quadro 1, abaixo:
sinal símbolo função
correspondente
cõma "aque podemos chámar cortadura: por que aly se córta a
: clausula e duas pártes" (p. 153). Na cõma parece que
descansa a uóz, mas nam fica o intendime to satisfeito:
por que deseia a outra párte" (p.154).
cólo "e o termo ou márco em que se acába a cláusula"
. (p.153); "a óraçám fica perfeita e rematáda com este
ponto cólo" (p.154).
uergas ou "uirgulas: que sam hu as distinções das pártes da
, clausula" (p.153); sam esta zeburas, ao módo dos
gregos" (p.154).
parentisis "os dous árcos que fázem estas palauras (como ia
( ) disse): usam os latinos quando cometem hu a figura aque
chamam Entreposiçam" (p.154).
interrogaçám "Quãdo pergu tamos álgu a cousa dizendo. Quem foy o
primeiro que achou o uso das leteras? Estes dous pontos
? assy escritos onde apregunta acába, podemos chamár
interrogatiuos: por serem sinál que interrogamos e
preguntamos algu a cousa." (p. 154).
Quadro 1: Sistema de sinais de pontuação proposto por João de Barros.

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Na elaboração de sua proposta, não cita João de Barros qualquer dos
gramáticos latinos portugueses precedentes, a exemplo de João Vaz ou
Estêvão Cavaleiro, dos inícios do século XVI, cujas gramáticas serviam de
modelo para o latim naquela época, especialmente em relação à questão
da pontuação, já que, como se sabe, a Idade Média portuguesa não havia
legado à posteridade qualquer documento sobre seus usos em vernáculo.
Note-se que é sobre esses gramáticos que se apóia Rosa (1994) e
(1995) para descrição da perspectiva normativa do sistema pontuacional
que imperava no momento da introdução da imprensa em Portugal, que,
segundo essa autora, poderia ter se pautado no sentido completo ou in-
completo das construções frasais, revelando “um contínuo que ia do maior
ao menor grau de coesão entre elementos do texto” (Rosa, 1995:23).
Esse relativo grau de coesão foi, portanto, o que se procurou inicial-
mente observar na obra de João de Barros, nomeadamente em relação à
cõma (indicada pelos dois pontos) e ao cólo (simbolizado pelo ponto sim-
ples), que deveriam, a princípio, ser, como deixa transparecer em sua defi-
nição João de Barros, os elementos mais diretamente associados às relações
sintáticas intersentenciais, por se relacionarem mais estreitamente com a
cláusula, cujos processos hipotáticos de coordenação e subordinação de-
vessem marcar, enquanto aos outros sinais, se se considerarem suas des-
crições, caberiam funções de outra ordem, como mais relacionadas à
indicação das relações das classes de palavras, intra-sentenciais, portanto,
no caso das uergas; de natureza entoacional, no que concerne à
interrogaçám; e de introdução de figura de sintaxe (entreposiçam), pelo
uso dos parentesis.
De fato, como se pressupunha, são diversos os exemplos em que a
cõma serve para indicar a coordenação de orações, quer adversativa, como
no exemplo i), quer aditiva, em ii), ou mesmo explicativa, em iii), que o
cólo arremata para encerrar o período:

i) Os latinos tãbem fázem suas composições: mas nam pássa de tres


pártes. (Barros [1540] 1971:73).

ii) E chamamos relatiuo a quella párte que faz lembraça de algum


nome que fica atrás: e este tal se chama anteçedente (Barros [1540]
1971:67).

iii) Nem alegarey o que disse della G$0 l lio, Viturino, Seruio, ou
Prisciáno: ca seria mais mostrarme que a proueitár. (Barros [1540]
1971:135).

Não é difícil também se encontrar a cõma, sinalizando subordinação


comparativa em iv), ou mesmo introduzindo uma oração subordinada rela-
tiva, em v), ou adverbial causal reduzida, em vi). Aliás para Rosa (1995:26)
a cõma, “sinal que começava a ser introduzido em textos escritos em por-

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

tuguês [do século XV para o XVI], a despeito de sua ainda baixa probabili-
dade de emprego, começa a delimitar subordinadas”.

iv) CHamamos nomes Verbáes todolos que se deriuã de alg"! u$0rbo:


como, de amar, amor, de sospirár, sospiro, e de chorár, choro. (Bar-
ros [1540] 1971:72).

v) Epizeuxis, quer dizer, coniunçám: a qual cometemos quando se


rep$0te h"!a cousa duas e tres uezes (Barros [1540] 1971:130).

vi) (...) podemos chamár interrogatiuos: por serem sinál que inter-
rogamos e preguntamos alg"!a cousa. (Barros [1540] 1971:154).

Mas há diversos outros momentos, em seu texto, em que a cõma não


parece corresponder a essa sistemática de emprego, funcionando de forma
perfeitamente análoga à que hoje se empregariam dois pontos para de-
marcar “um carácter essencialmente enumerativo ou apresentativo” (Pinto
e Parreira, 1990:181), como se observa nos exemplos vii) e viii) seguintes:

vii) Dizemos tambem por esta maneira: as ágoas dantre Douro e


Minho sam muy delgádas (Barros [1540] 1971:76).

viii) ueiamos as suas declinações, que sam duas: h"!a dos masculinos
e neutros, e outras dos femininos. (Barros [1540] 1971:79).

Em outras ocorrências, esse sinal parece assumir a mesma função das


uergas, sem que lhe possa atribuir ou mesmo pressupor qualquer inten-
ção específica de emprego de outra ordem:

ix) (...) azeite, uinho, uinágre, arrobe, mosto, m$0l, leite, ouro, práta,
estanho, chumbo: cóbre, f$0rro, áço, sál (Barros [1540] 1971:93).

Ademais, o próprio cólo não tem seu uso exclusivamente voltado para
marcar o termo em que se acaba a cláusula, mas é utilizado por Barros com
outros valores, como se pode observar no exemplos seguintes:

x) Depois pelo tempo se acreçentáram estas seyes. h, k, q, x, y, z.


das quáes. h, tem os Latinos ser espiraçam e nam letera (Barros [1540]
1971:61).

xi) poemos todos diante a este módo . xi. xij. xiij. xiiij. xV. xVi. xVij.
xViij. xix. (Barros [1540] 1971:138).

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
Essa última seqüência bem à guisa da marcação medieval, como já
acontece bem cedo no século XIII, como no Testamento de Afonso II, de
1214, por exemplo.
Às vezes oscila entre o uso de cólo e uergas:

xii) Nós (como uimos) temos oito. s, á grande, a, pequeno. $0. grãde,
e, pequeno. i. com"!, ó, grãde, [o, pequeno.]1 1 o, pequeno, u, com"!.
(Barros [1540] 1971:140-1).

Mas como explicar tal comportamento, se se tem por certo o que


afirma Parkes (1993:87), sobre a pontuação desde o surgimento dos pri-
meiros trabalhos impressos?

The printing process not only stabilized the shapes and functions of the symbols
it also sustained existing conventions that governed the ways in which they were
employed.1 2

Observando-se as correspondências de usos das uergas – ou vírgulas


– que faz João de Barros em sua Grammatica, as possibilidades de marca-
ção revelam-se ainda mais variadas.
Os exemplos, seguintes, ilustram bem a questão.

Em xiii), esse sinal exibe um emprego que, segundo a descrição de


Barros, estaria, talvez, mais diretamente relacionado à característica da
cõma, haja vista estabelecer a função coesiva de demarcação da subordina-
da conformativa e coordenada adversativa, que compõem o enunciado. No
exemplo xiv) observa-se a vírgula demarcando uma subordinada adverbial.

xiii) Como uimos, temos dous, uus, h"! desta figura, V, e outro assy,
u, Peró o primeiro nã serue de uógal mas de consoante (Barros
[1540] 1971:145).

xiv) Quãdo $0 per ai"!tamento, ordenase per este módo: eu vou á


escola. (Barros [1540] 1971:113).

Parecia existir, pois, no sistema apresentado por Barros, a possibili-


dade de variação contextual de uso, em que um sinal pudesse substituir o
outro em suas funções. Essa possibilidade, no entanto, não se encontra
patente na descrição que faz de cada um desses sinais em seu trabalho.
Convém ressaltar que no português arcaico esse tipo de variação pare-
cia ser bastante provável, como procurou demonstrar Machado Filho
(1999a), em relação ao ponto seguido de minúscula e a virgula suspensiva,
antes de esta desaparecer do sistema.
Em relação aos parentesis e à interrogaçám, não demandam maiores
comentários, já que seus usos são bastante coerentes com a sua definição,

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362
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

aproximando-se muito do emprego que deles se faz atualmente no portu-


guês, como se pode verificar nos exemplos abaixo.

xv) E por que (como ia disse) por sermos filhos da língua latina,
temos tanta conformidáde com $0lla (Barros [1540] 1971:77).

xvi) V$0rbo neutro ($! nóssa linguág$!) será aquelle que se não póde
cõuerter ao módo passiuo (Barros [1540] 1971:92).

xvii) Disse o iuiz lógo uós quereis desta fazenda noueçentos mil
reáes? (Barros [1540] 1971:130).

Esse último exemplo suscita, ainda, a questão da sistemática


pontuacional que faz João de Barros para delimitação entre o discurso
direto e o indireto, em sua Grammatica. Observe-se que em xvii) nenhum
sinal é introduzido para dar conta desse tipo de marcação.
Mais um indício de variação de emprego em Barros, já que, inopina-
damente, na seqüência da mesma narrativa, vale-se da vírgula, do cólo e
dos parentesis para indicar essa função, como em xviii), a seguir.

xviii) Responde o herdeiro, Sy. Poys segundo a u$0rba do testamen-


to (disse o iuiz) uós auereis çem mil reáes (Barros [1540] 1971:130).

Veja-se que, nos documentos medievais, nomeadamente durante a


primeira fase do português arcaico, os escribas podiam valer-se do ponto,
quer antecedido de maiúscula, quer de minúscula, para sinalizar a passa-
gem do discurso direto ou indireto, mas talvez na maior parte das vezes
qualquer marcação fosse apresentada.

3 Pois muitas uezes os mesmos pontos lhe fázem sentir


a uerdáde13
Não obstante ser difícil para um falante do português moderno poder
compreender a real dimensão do significado que pudesse ter tido a pontu-
ação no século XVI, ou mesmo interpretar a mentalidade que subjazia a
esses preceitos e usos, os exemplos apresentados por João de Barros para
demonstrar o grau de anfibologia que poderia se estabelecer pela inade-
quada utilização dos sinais são de alguma maneira elucidativos.
Vejam-se os exemplos xix) e xx), a seguir.

xix) Ler as óbras de Luthero: n"!ca obedecer ao pápa, $0 o mais segu-


ro pera a sáluaçám (Barros [1540] 1971:154).

xx) Ler as óbras de luthero nunca: obedecer ao pápa, $0 o mais segu-


ro pera a sáluaçám. (Barros [1540] 1971:155).

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363

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
O deslocamento da cõma no primeiro exemplo, faz com que se altere
a pausa respiratória, condicionando o leitor a interpretar o advérbio /"!8&
com parte integrante da segunda oração, favorecendo Lutero em detrimen-
to ao papa, enquanto, para Barros, exatamente o contrário devesse se pro-
cessar, ou seja, “o mais seguro pera a sáluaçám” é “obedecer ao pápa”, ler
Lutero “/"!8&”!
Sem avançar no mérito da discussão teológica, que certamente inte-
ressaria a João de Barros, dado sua formação religiosa, é importante, aqui,
observar que a cõma nesse caso estabelece duas soluções distintas para a
relação de parataxe que provavelmente não seria possível se, ao contrário,
a conjunção se encontrasse expressa no enunciado.
Outrossim, é perfeitamente inteligível para Barros a separação do su-
jeito do predicado, pela vírgula, posto que nos dois exemplos seu
posicionamento se mantém inalterado, reforçando a função proposta de
serem as uergas os elementos responsáveis pelas “distinções das pártes da
clausula”.

4 Verba volant, scripta manent14


Como se pôde muito sinteticamente observar neste trabalho, João de
Barros propõe em sua precursora Grammatica da lingva portvgvesa ado-
tar como referência para a pontuação do português os sinais «doutamente»
utilizados pelos latinos, sem fazer qualquer referência à sistemática
pontuacional que pudesse ter sido utilizada por aqueles que muito cedo
empregaram a linguagem como instrumento de registro de dados ou trans-
missão de conhecimento, paixão, queixa ou arte.
Note-se que Barros embora não se refira, em nenhum momento, ao
caldeirão medieval, elemento bastante empregado durante toda a Idade
Média, dele faz uso abundante, na primeira edição da Cartinha, no ano de
1539.1 5
Esse sinal, que em linhas gerais se assemelha com a letra “C” maiús-
cula cortada com linha cheia na vertical, é ainda reproduzido em diversas
obras impressas, a exemplo do Livro de Vita Christi em lingoagem portu-
guês, de Ludolfo Cartusiano, muito tempo considerado o primeiro
incunábulo em Portugal, mas que as pesquisas históricas têm direcionado,
pelo menos até o presente momento, para um Pentateuco, escrito em
hebraico, “impresso por Samuel Gacon, em 1487, em Faro” (Mendes,
1993:325).
Não se pode mais negar, pelas pesquisas desenvolvidas sobre a ques-
tão, que os escribas medievais deveriam deter uma sistematicidade de uso
para os sinais de pontuação, certamente apoiada nos antigos sistemas lati-
nos, mas bastante modificada para dar conta das particularidades do por-
tuguês, muito mais centrado numa progressiva rigidez da ordem sintática,
do que o latim, originalmente muito mais atrelado à morfologia de casos.

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364
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

O curioso, porém, é que enquanto estabelece um sistema de pontua-


ção a ser seguido, João de Barros – pelo menos na perspectiva atual do
homem moderno – parece oscilar, consideravelmente, entre o que deter-
mina e o que de fato usa, se se considerar o que se encontra patente em
sua Grammatica, descortinado pelos exemplos anteriormente apresenta-
dos, “se não tivéssemos em conta os factores de crise moral, mental, cultu-
ral e até socioeconómica que fazem desse século [séc. XVI] um tempo
mutante” (Buescu, 1984:290).
É certo que o português quinhentista já apresentava outro inventário
e outra sistemática de emprego de sinais de pontuação, em parte “promo-
vida pela imprensa de tipos móveis recém-inventada” (Rosa, 1995:27) e
muito como fruto de toda essa movimentação sociocultural que se operava
em Portugal, naquele período.
Talvez a noção de possibilidade de variação fosse algo inerente à men-
talidade da época, muito mais do que hoje talvez pudesse admitir um
gramático normativo ou mesmo entender o homem comum.
Mas como vale o que está escrito, resta levantar a possibilidade de o
processo de composição dos tipos na imprensa fugir ao controle do autor,
cuja figura, ainda muito recentemente, começava a se firmar.1 6 Outrossim,
pareciam deter os impressores, personalidades proeminentes na época,
bastante influência para a composição
Senão, fica a necessidade de se desenvolver um trabalho mais amplo,
em que se possa observar um recorte maior das obras de João de Barros,
porque, como diz no Dialogo em lovvor da nossa lingvagem, “nam auemos
de negár ao int$!dim$!to [a especula-]1 7 a especulaçã da uerdáde” (Barros,
[1540] 1971:159-60).

1
Todas as citações relativas ao trabalho de João de Barros são extraídas diretamente dos fac-
símiles da obra de Barros, que se encontram apensos ao trabalho de Buescu (1971), em função
de seus critérios editoriais pressuporem modernização do sistema de pontuação. Para a
transcrição do texto de Barros, mantiveram-se, então, a grafia e pontuação originais à exceção
do “s” longo que foi reproduzido pelo “s” normal.
2
O Grupo de Pesquisa Programa para a História da Língua Portuguesa - PROHPOR, coordenado
pela professora Rosa Virgínia Mattos e Silva, da Universidade Federal da Bahia, estabelece como
arco temporal, para delimitação do período arcaico da língua portuguesa, o surgimento dos
primeiros documentos até a publicação das primeiras gramáticas de Fernão de Oliveira, em
1536, e João de Barros, em 1540, considerando duas fases distintas, que têm a data de 1385, da
assunção da Dinastia de Avis ao trono de Portugal, como taxionomia divisora.
3
“Excepcional”, obviamente no sentido de extraordinária.
4
Trad.: “discutem com suas esposas, jogam com seus amigos e enganam seus inimigos”.
5
Os documentos mais antigos escritos em língua portuguesa datam de 1214 (Testamento de
Afonso II) e de 1214-1216 (Notícia de Torto). Ana Maria Martins (1999), da Univerisdade de
Lisboa, tem procurado recuar essa data para a segunda metade do século XII, não sem a reação
de alguns (Martins 1999 e Emiliano 2001).
6
Trad.: “O repertório geral da pontuação desenvolveu-se de uma amalgamação progressiva de
elementos extraídos de diferentes sistemas anteriores de pontuação e foi alargado por outros
sistemas especializados que apareceram durante a Idade Média”.
7
Trad.: “sistematicamente e com a mesma freqüência”.
8
Trad.: “no final de um parágrafo numa série de parágrafos ou textos (...) para indicar que

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365

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
alguma seqüência deveria ser esperada para completar essa série”.
9
Fragmento extraído de Barros ([1540] 1971:153).
10
Grifo nosso.
11
Entre colchetes retos o reclame.
12
Trad.: “O processo de impressão não só estabilizou as formas e funções dos símbolos como
também sustentou convenções existentes que governavam as maneiras como eram empregados.
13
Paráfrase a fragmento extraído de Barros ([1540] 1971:154).
14
Trad.: “As palavras voam, os escritos ficam”.
15
Observe-se que da primeira edição de 1539 da Cartinha, segundo Buescu (1971:xxvi) existe
um exemplar na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Ademais, se deve salientar que quando
foi publicada “como volume independente” (Buescu, 1971:v), em 20 de dezembro de 1539, a
Cartinha já exibia na sua tauoa o que viria a se constituir na obra pedagógica de João de Barros,
que incluía, ainda, a Grãmatica da língua portuguesa: e ortografia com que se á descreuer.
Hum diálogo em louuor da nóssa linguágem. Hum diálogo da viçiosa vergonha. Buescu
(1971:vi) esclarece que o “aparecimento antecipado da Cartinha deu até origem a um curioso
conflito entre o autor e o impressor a que o primeiro não hesitou em se referir, quase a acabar
de se imprimir, muito tempo depois – apenas 23 dias, “aos 12 de Janeiro de 1540” – todo o
resto da obra”.
16
Note-se que o primeiro cânone literário só viria a ser proposto por Pêro Magalhães de
Gândavo, em seu Dialogo em louuor da língua portuguesa, de 1574.
17
Entre colchetes retos o reclame.

Referências bibliográficas
BARROS, João de (1971[1540]). Grammatica da lingva portvgvesa. reprodu-
ção fac-similada. In: BUESCU, Maria L. (1971). Gramática da língua portu-
guesa. Cartinha, gramática, diálogo em louvor da nossa linguagem e diálo-
go da viciosa vergonha. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa.
BUESCU, Ana Isabel (1996). João de Barros: Humanismo, mercancia e
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A pontuação na Carta de Pero Vaz de
Caminha comparada à proposta de João
de Barros

Eliéte Oliveira Santos

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369

Introduzindo a questão

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
O
presente trabalho representa uma tentativa de identificar a pon-
tuação no relato sobre o “achamento do Brasil”, tendo como base
a leitura justalinear de A Carta de Pero Vaz de Caminha, recente-
mente apresentada por Antônio Geraldo da Cunha, César Nardelli Cambraia,
Heitor Megale, em 1999, cuja edição privilegia todos os aspectos paleográficos
nela existentes.
Tendo como referência a metodologia desenvolvida nos trabalhos de
Martins (1986), Ferreira (1987), Mattos e Silva (1993b), Rosa (1994) e Ma-
chado Filho (1999) que se concentraram sobre a pontuação em documentos
medievais portugueses, apresenta-se um levantamento dos sinais de pontu-
ação existentes na Carta, confrontando os resultados da pesquisa com os
sistemas pontuacionais precedentes e à proposta apresentada por João de
Barros na sua Gramática da Língua Portuguesa, de 1540.
Como se sabe, a Carta de Caminha, dentro da língua portuguesa, con-
siderada preciosíssimo registro inaugural das coisas do Brasil, datado de
1500, alvorecer , portanto, do século XVI, hoje vem contribuir bastante para
o estudo lingüístico do português.
Dentre as pesquisas publicadas relativas à Carta, hão de se destacar os
trabalhos realizados por um dos projetos coletivos do grupo de pesquisa,
coordenado por Rosa Virgínia Mattos e Silva, Programa para a História da
Língua Portuguesa – PROHPOR, vinculado ao Departamento de Letras
Vernáculas e ao Programa de Pós-graduação em Letras e Lingüística da UFBA,
cujos resultados foram publicados em 1996 — A Carta de Caminha: teste-
munho lingüístico de 1500, pela Edufba — o que não quer dizer, porém,
que se tenham esgotado as pesquisas relativas ao citado manuscrito, pois o
presente trabalho, como já foi referido, vem dedicar atenção à questão da
pontuação nele empregado.
Dentro do projeto, têm se desenvolvido, cada vez mais, pesquisas base-
adas em escritos do período arcaico, buscando, com isto, entender o passa-

Português 500.p65 369 22/7/2005, 15:02


370
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

do para se explicar o presente, remetendo, assim, às palavras de Mattos e


Silva, em seu Lingüística Histórica, (1993a) em que diz:

Nessa conjunção da Lingüística Histórica no seu sentido estrito, o da mu-


dança no tempo real, com a que trabalha com dados da língua na sua variação
e mudança social e espacial sincrônicas, vê-se em causa o postulado laboviano
conhecido como “princípio uniformitário”, o de que o conhecimento das reali-
dades in praesentia abre caminho para melhor compreensão de fenômenos
passados e o conhecimento de realidades passadas documentadas clareia a
compreensão de fenômenos da atualidade. (Mattos e Silva, 1993a:08)

Dos estudos realizados dentro do Programa sobre a pontuação em


manuscritos medievais da língua portuguesa, encontram-se os trabalhos
de Mattos e Silva (1993b) e Machado Filho (1999).
É nessa linha que o presente trabalho vem tentar, modestamente,
colaborar com o estudo da questão.
A Carta de Pero Vaz de Caminha foi divulgada pela primeira vez em
1817 pelo Padre Manuel Aires do Casal, na Corografia Brasílica, dedicada
ao rei D. João VI, já residente no Brasil. Até então, o manuscrito permane-
cia esquecido no Arquivo da Torre do Tombo de Lisboa. Sobre essa edição
Jaime Cortesão nos revela que “a transcrição é má. Abunda de erros gros-
seiros, que devemos atribuir à insuficiência do copista” (Cortesão, 1967:40).
A edição mais recente de que se tem notícia é trazida a lume por Megale et
alii em 1999. Esses autores esclarecem na parte introdutória do trabalho
que:

impôs-se a adoção de rigorosos critérios de transcrição para a presente edição


da Carta a fim de assegurar, por um lado, a fidelidade às características lingüís-
ticas do original e, por outro, a adequada compreensão do conteúdo do texto.
Por preencherem plenamente essas exigências, adotaram-se (…) as Normas
para transcrição de documentos manuscritos para a história do português do
Brasil (…), [estabelecidas] por uma comissão de pesquisadores durante o II
Seminário para a História do Português Brasileiro, em Campos do Jordão-SP
(Megale et alii, 1999:13).

Seguindo as propostas desse Seminário, os autores ainda afirmam


que a “pontuação original ficou rigorosamente mantida” (Megale et alii,
1999:24). Fica claro que, embora os autores não ofereçam maiores expli-
cações a respeito da pontuação utilizada por Pero Vaz de Caminha em seu
manuscrito, nem esse era o objetivo do trabalho, ao menos, durante a
transcrição, deixam-na intacta nessa edição, sendo de grande utilidade para
o desenvolvimento da pesquisa.
Voltando um pouco no tempo e indo até o período medieval, encon-
tra-se aí um cenário cultural bastante fechado. Os livros, difusores da cul-
tura, eram raros e caros, de acesso reduzido a poucos, inclusive pode-se
afirmar que “a tradição textual dos manuscritos medievais portugueses se

Português 500.p65 370 22/7/2005, 15:02


371

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
caracteriza, em geral, pelo codex unicus, sendo poucas as obras de que se
dispõe de mais de um testemunho” (Mattos e Silva, 2001:02). Além do
mais, seu custo era alto devido o material utilizado para a sua fabricação
ser praticamente artesanal e o trabalho dos raros copistas, cuidadoso e
demorado. Dessa forma, alguns escritos formais eram dirigidos ao povo,
não para serem lidos por eles, mas para serem lidos por alguém em voz
alta. Sendo assim, era comum que escritores medievais adotassem critéri-
os sistemáticos no uso da pontuação em seus manuscritos, além de se
basear em aspectos prosódicos da língua, como afirma Machado Filho
(2002), neste livro:

Durante a Idade Média que comumente se costuma denominar de perío-


do arcaico da língua, ter-se-ia conformado o uso da pontuação medieval como
recurso auxiliar de notação de aspectos não exclusivamente sintáticos, como
hoje se verifica preponderantemente na linguagem escrita formal, mas,
concomitantemente, de aspectos melódicos, rítmicos e pausais, fortemente in-
fluenciados pela linguagem oral.

Assim eram então os escritos: na maioria das vezes, feitos para serem
lidos para uma audiência. Não obstante, o manuscrito de Pero Vaz de Ca-
minha, um documento epistolar era, a princípio, dirigido a uma única pes-
soa – D. Manuel, o rei de Portugal. Dessa forma, como se comportava a
pontuação na Carta?
É o que veremos a seguir.

Os resultados na Carta de Caminha


Na Carta foram detectadas 365 ocorrências de pontuação, cujos si-
nais podem ser observados no Quadro 01 a seguir:
Sinal detectado Representação gráfica
Diante de [m] Diante de [M] Sinal Total

Ponto [•] 166 12 178


Punctus elevatus [•/], [• /], [•/•/], [/•], [ ], 152 10 162
[ ], [ •], [••/], [/•/]
Virgula suspensiva [ / ], [ // ] 24 -- 01 25
TOTAL 365

Quadro 01: Sinais detectados na Carta de Caminha

O ponto [ • ] constitui o sinal mais utilizado no texto, correspondendo


a 48,77% do total de ocorrências da pontuação. Convém ressaltar que des-
se total, não são incluídos, aqui, os sinais que fazem fronteira com a pala-
vra “scilicet”, muitas vezes encontrada no documento. Outros sinais
detectados representam o punctus elevatus [ •/ ], com 44,38% e a virgula
suspensiva [ / ], com 6,85%, com suas respectivas variantes gráficas.

Português 500.p65 371 22/7/2005, 15:02


372
O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

Para satisfazer às necessidades de uma melhor compreensão a respei-


to dos critérios adotados por Caminha na pontuação da Carta, foi feito um
levantamento de todas as ocorrências pontuacionais realizadas no referido
documento, considerando os contextos, se seguidas de maiúscula [M] ou
de minúscula [m]. É fundamental esse tipo de distinção para que se possa,
hoje, fazer uma comparação com o sistema de pontuação moderno, já que
esta é considerada como lógico-gramatical. Nesse sentido, em todas as
ocorrências em que a pontuação de Caminha não corresponde ao sinal de
pontuação atual, atribui-se correspondência atual Ø, ou seja, nenhum si-
nal poderia ocupar aquela posição.
É importante salientar que, no presente trabalho, buscou-se isolar
qualquer tipo de interferência pessoal no momento de relacionar o sinal
no manuscrito com a correspondência atual, a fim de que se observasse
qual o tipo de critério adotado por Pero Vaz de Caminha no uso da pontu-
ação em seu referido documento.
As ocorrências encontradas na Carta poderão ser detalhadamente
observadas no Quadro 02 abaixo:

Sinal no manuscrito Correspondência atual Freqüência % relativa


Ponto
, m 131/166 78,92
• [m] ; m 32/166 19,28
: m 01/166 0,60
Ø m 01/166 0,60
. – M 01/166 0,60
• [M] . M 10/12 83,33
; m 01/12 8,33
Ø m 01/12 8,33
Punctus elevatus
[m] . – M 26/61 42,62
. M 25/61 40,98
, m 09/61 14,75
; m 01/61 1,64
[M] . – M 04/05 80
. M 01/05 20
••/ [m] . M 05/05 100
•/ [m] . M 65/76 85,53
, m 04/76 5,26
. – M 07/76 9,21
•/ [M] . – M 02/03 66,67
. M 01/03 33,33
•/ [m] . – M 02/02 100
• / [M] . M 01/01 100
• / [m] , m 01/02 50
. M 01/02 50
/•/ [m] . – M 02/02 100
•/•/ [m] : m 01/02 50
. – M 01/02 50
[m] . – M 01/01 100
• [m] . – M 01/01 100
/• [M] . – M 01/01 100
Virgula suspensiva
/ [m] , m 07/23 30,43
. M 07/23 30,43
; m 06/23 26,09
. – M 03/23 13,04
// [m] . – M 01/01 100
// [– ] . – – 01/01 100

Quadro 02: Comparação da pontuação de Caminha com a atual.

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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
É interessante notar que a correspondência atual Ø foi aplicada ape-
nas para duas ocorrências: uma para o ponto seguido de minúscula e outra
para o ponto seguido de maiúscula, conforme demonstração seguinte:

(1) primeiramente dh"!"! gramde monte muy alto • e


Redomdo (fol.1v, 3-4).
(2) e segujmos djreitos aaterra eos naujos pequenos diã
te himdo per xbij xbj xb xiiij xiij xij x •
E ix braças ataa mea legoa de terra omde todos
lancamos amcoras (fol. 1v, 12-15).

Outro fato interessante observado, foi utilizado na Carta por Cami-


nha, quando este, ao empregar alguns sinais, deixa um espaço todo em
branco à sua frente, passando a escrever na linha seguinte, o que demons-
tra, de certa forma, a preocupação lógico-gramatical do autor em relação
ao emprego da pontuação. Algumas das ocorrências citadas são as seguin-
tes:

(3) trautou denossa vijnda edo achamento desta terra cõ


formandose cõ o sinal da cruz so cuja obediençia
vi!j!mos aqual veo mujto apreposito efez mujta
deuaçom •
em quanto esteuemos aamisa e aapregaçom
seriã na praya outra tanta jente pouco mais
ou menos (fol. 5r, 18-25)
(4) fomos asy perante eles beijar a cruz eespedimonos evj
emos comer •/
creo Senhor que com estes dous degradados que
aquy ficam ficam mais dous grometes
que esta noute se sairam desta naao no esqujfe (fol. 13r, 25-30)

Observa-se também esse comportamento nos fólios 2r (linha 08), 2v


(linha 04), 10v (linha 06) e 13v (linha 30). Todos tendo como a correspon-
dência atual o ponto de final de parágrafo.
Em relação aos sinais detectados na Carta, nota-se que em 85,53%
da ocorrência do punctus elevatus seguido de minúscula [•/ m] foi atribu-
ída uma correspondência atual do ponto simples [ .M ], o que representa
um cômputo bastante significativo.
A virgula suspensiva [ / ] só foi encontrada, no manuscrito, diante de
minúscula e a sua correspondência para o sistema atual foi bastante varia-
da, ora se apresentando como vírgula (30,43%), ora como ponto simples
(30,43%), ou ainda como ponto-e-vírgula (26,09%).
Assim se dá a pontuação no manuscrito de Caminha no ano de 1500.
Até então, o português arcaico não conhecia as regras estabelecidas por uma
gramática normativa para o uso da pontuação. O que, aliás, vale ressaltar é

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O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

que regras — as que tivesse havido — seriam mínimas e de acesso restrito a


poucos privilegiados, como alguns membros da aristocracia e do clero.

Comparando os resultados com João de Barros


Quando em 1540, João de Barros publica a primeira gramática
normativa da língua portuguesa, inicia-se uma reflexão sobre os proble-
mas da língua escrita. Barros propõe um sistema de pontuação para ser
usado por quem quisesse “doutamente escreuer”. Os sinais empregados
por João de Barros são os que se apresentam no Quadro 03 a seguir:
sinal símbolo função
correspondente
cõma "aque podemos chámar cortadura: por que aly se
: córta a clausula e duas pártes" (p. 153). Na cõma
parece que descansa a uóz, mas nam fica o
intendime to satisfeito: por que deseia a outra párte"
(p.154).
cólo "e o Termo ou márco em que se acába a cláusula"
. (p.153); "a óraçám fica perfeita e rematáda com este
ponto cólo" (p.154).
uergas Ou "uirgulas: que sam hu as distinções das pártes da
, clausula" (p.153); sam esta zeburas, ao módo dos
gregos" (p.154).
parentisis "os dous árcos que fázem estas palauras (como ia
( ) disse): usam os latinos quando cometem hu a figura
aque chamam Entreposiçam" (p.154).
interrogaçám "Quãdo pergu tamos álgu a cousa dizendo. Quem foy o
primeiro que achou o uso das leteras? Estes dous
? pontos assy escritos onde apregunta acába, podemos
chamár interrogatiuos: por serem sinál que inter-
rogamos e preguntamos algu a cousa." (p. 154).
Quadro 03: Sinais de pontuação propostos por João de Barros (Machado Filho,
neste livro)

Nota-se que o sistema de pontuação adotado por João de Barros é


distinto do empregado por Caminha em seu manuscrito. Desses sinais,
apenas o ponto se faz presente nos dois trabalhos, mesmo assim, com
outra terminologia em João de Barros, embora a interrogaçám e alguns
sinais parecidos com as uergas já fossem detectados em alguns textos
medievais.
Comparando, porém, os resultados dos sinais obtidos na Carta com
os manuscritos do período arcaico, conforme pode ser observado no qua-
dro de “sinais de pontuação detectados e sua freqüência” levantados por
Machado Filho em sua dissertação de Mestrado (1999:61), constata-se que
o sistema pontuacional adotado por Caminha é o mesmo utilizado nos
referidos documentos.

Concluindo a questão
Salientando mais uma vez, observa-se que, a partir das primeiras gra-
máticas da língua portuguesa, o sistema de pontuação empregado se faz
de modo diferente ao adotado na Carta de Caminha, sendo que, na gra-

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375

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)
mática de João de Barros, o autor pretende introduzir um modelo basea-
do no latim. É pelo viés de tais comparações que se pode atribuir ao siste-
ma de sinais empregados por Pero Vaz de Caminha uma característica
arcaizante.
Diferente também era o comportamento de João de Barros em rela-
ção aos seus próprios preceitos. Embora a sua gramática fosse do tipo
normativo, o autor não parecia seguir incondicionalmente as orientações
gramaticais e ortográficas propostas por ele mesmo, como revela Machado
Filho (2002, neste livro):
Parecia existir, pois, no sistema
apresentado por Barros, a possi-
bilidade de variação contextual de
uso, em que um sinal pudesse subs-
tituir o outro em suas funções. Essa
possibilidade, no entanto, não se
encontra patente na descrição que
faz de cada um desses sinais em
seu trabalho.
Como já foi explicado no
início deste trabalho, outra carac-
terística da pontuação dos manus-
critos medievais é o de se basear
também em aspectos prosódicos da
língua. Nesse caso, conforme mostra o
Quadro 02, o comportamento lógico-gra-
matical da pontuação empregada em re-
lação ao uso moderno faz deduzir que esse
manuscrito de 1500 é modernizante.
Assim, após obter os resultados da pes-
Fragmento do fólio final da
quisa, comparam-se os sistemas
Grammatica de João de Barros pontuacionais da Carta com a propos-
ta apresentada por João de Barros em
1540 e a conclusão se realiza da seguinte maneira: a pontuação na Carta
de Pero Vaz de Caminha caracteriza-se como arcaizante e modernizante.
Arcaizante em relação ao inventário de sinais, que se aproxima da escrita
dos manuscritos medievais, pois a sua representação gráfica já se faz dis-
tinta na Gramática de João de Barros; e modernizante em relação ao com-
portamento lógico-gramatical.

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