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espírito
I - Silêncio e trabalho matutino
ESTES conselhos não se dirigem a todo mundo: um número muito pequeno
de espíritos, no atual estado do mundo, são ou desejam ser capazes de
segui-los. Dirigem-se àquele homem de vinte anos, espírito raro e
privilegiado, coração ainda mais privilegiado, que, no momento em que
seus colegas de estudo chegaram ao final de sua trajetória, compreende que
sua educação está apenas começando; que, na idade em que o amor pelo
prazer e pela liberdade, pelo mundo, por suas honras e riquezas arrasta
e precipita a multidão, detém-se, ergue os olhos e busca, no
imenso horizonte da vida, no céu e na terra, o objeto de um outro
amor. Suponho que me dirijo a esse homem. É para ele que falo aqui. A
posse da sabedoria, digo antes de qualquer outra coisa, tem rigorosas
condições; nunca se esqueça disso. Essas condições, é verdade, são mais
severas em aparência do que na realidade. Mas, enfim, a iniciação exige
austeras provas. Você é corajoso? Aceita o silêncio e a solidão? Aceita, no
seio da sua liberdade, um trabalho mais profundo, e também mais regular
que o trabalho exigido pela escola, esse trabalho que os homens impõem às
crianças mas não a si mesmos? Aceita, nesse rude caminho, ver seus
semelhantes, por um caminho fácil, ultrapassarem-lhe na corrida e
ocuparem seu lugar no mundo? Pode sacrificar tudo, sem exceção, à justiça
e à verdade? Então ouça bem.
Se crê que possui em si mesmo um mestre que lhe quer ensinar a sabedoria
eterna, diga a esse mestre, tão resolutamente, tão precisamente quanto diria
a um homem que estivesse à sua frente: “Mestre, fala-me. Eu escuto”.
Mas, depois de ter dito “eu escuto”, é preciso escutar. Esta é uma asserção
muito simples, mas capital.
A maioria dos homens, sobretudo dos homens de estudo, não têm meia hora
de silêncio por dia. E quando o livro do Apocalipse diz em certo lugar:
“Fez-se silêncio no céu, quase por meia hora”,3 creio que o texto sagrado
assinala um acontecimento que é muito raro no céu das almas.
Durante o dia inteiro, o homem de estudos escuta homens que falam, ou ele
mesmo fala, e quando pensamos que ele está só e silencioso, faz os livros
falarem com a extraordinária volúpia do olhar, e devora em poucos
instantes longos discursos. Sua solidáo é povoada, ocupada, abarrotada, não
somente pelos amigos de sua inteligência e pelos escritores cujas palavras
acumula, mas também por uma multidão de desconhecidos, de falastrões
inúteis, e de livros que são obstáculos. Além disso, esse homem, que
acredita pensar e ter alcançado a luz, permite que a perturbadora de
todo silêncio, a profanadora de todas as solidões, a imprensa
cotidiana, venha a cada manhã tomar-lhe o seu mais puro tempo, uma
hora ou mais, hora roubada à vida pela retalhadora cotidiana, hora durante a
qual a paixão, a cegueira, a tagarelice e a mentira, a poeira dos fatos inúteis,
a ilusão dos temores vãos e das esperanças impossíveis tomam conta desse
espírito feito para a ciência e a sabedoria, talvez para ocupá-lo e possuí-lo
durante o resto do dia.4
Acredite em mim quando afirmo que um espírito que trabalha assim não
aprenderá nada, ou aprenderá pouca coisa, precisamente porque só há um
mestre; que esse mestre habita em nós, que é preciso escutá-lo para
entendê-lo, e fazer silêncio para escutá-lo.
II
Sim, podemos dizer que basta o silêncio, pois, diz Santo Agostinho, a
Sabedoria eterna náo cessa de falar à criatura racional, e a razão náo cessa
de fermentar em nós. Mas náo é fácil chegar ao silêncio.
Não insistirei mais sobre esse ponto capital, nem sobre a extrema
dificuldade dessa vitória, nem sobre a espécie de terror profundo
que experimenta uma alma que vivia ingenuamente a vida de seu século e
que entra agora em luta e em contradição com essa imensa vida e seus
poderosos movimentos, e começa a sentir sua fraqueza, sua pequenez, seu
isolamento, diante dessas grandes ondas. De tudo isso nos ocuparemos mais
adiante. Indico aqui somente em que condições a alma obtém o silêncio
para escutar a Deus.
III
Mas precisemos isso melhor. “O que é, com efeito, escutar a Deus?”, você
perguntará. Na prática, devo escutar a Deus do amanhecer até o meio-dia
como o fazem os contemplativos da índia? Ficarei com a fronte inclinada e
a cabeça apoiada na mão, ou com os olhos fixos no céu? Que devo fazer?
Falemos primeiro, sob esse segundo ponto de vista, de seu trabalho matinal.
Isto não será supérfluo, nem mesmo uma digressão, pois veremos que esse
exercício secundário o conduzirá diretamente ao objetivo principal.
RAZÃO: Supõe que tenhas descoberto alguma coisa; onde a guardarás a fim
de seguir adiante?
RAZÃO: Mas ela é segura o bastante para reter fielmente tuas reflexões?
RAZÃO: Então, deves escrever. Mas o que acontece? É por causa da tua
saúde que te recusas a escrever? Essas coisas não devem ser ditadas, pois
exigem uma completa solidão.
RAZÃO: Pede força e auxílio para alcançares o que desejas, e põe isso
mesmo por escrito, para que assim te sintas mais animado. Depois, resume
o que fores descobrindo em breves conclusões. E não te preocupes com a
possível multidão de teus leitores; bastará que te leiam alguns dos teus
poucos conterrâneos.7
Agora eu lhe pergunto: pensa que essas coisas aconteciam somente para
Santo Agostinho? Se aconteciam somente a ele e não nos acontecem, é
porque nossa lamentável incredulidade o impede. Você crê em Deus? Deus
é mudo? Não é certo que Deus fala incessantemente, como o Sol ilumina
sempre? Eu lhe digo aqui, com Thomassin:8 “Quem espantar-se dessas
coisas e achar que são inacreditáveis, inesperadas, desconhecidas, este não
sabe ou não refletiu que a descida de Deus, real e substancial, na natureza
inteligente, é um fato contínuo e cotidiano”.9
Como você sabe, somente as obras bem escritas subsistem e deixam suas
marcas. As outras, mesmo que cheias de sabedoria, são apenas uma matéria.
São como criações inferiores destinadas a ser assimiladas por algum
espírito mais vigoroso que nutre-se delas, amadurece-as, e acrescenta-as à
vida do espírito humano. Se, portanto, você pretende propagar a verdade,
tem que saber escrever. Eu diria que terá que criar um estilo, se essa palavra
não tivesse dois sentidos, um dos quais, o mais vulgar, é lamentável. Nesse
último sentido, seria melhor dizer: “Nada de estilo!”, como quem diz
“nada de fingimentos!”. O melhor estilo, nesse sentido, é não ter
nenhum. Esse estilo, vemos com muita freqüência, serve para velar o
pensamento, ou sua ausência: vestimenta sempre meio de mau gosto,
que, em todo caso, pelo simples fato de ser uma vestimenta, impede-nos de
chegar à sublime e surpreendente nudez da verdade.
Isto posto, encontro tudo que é preciso, como regra prática da arte de
escrever, no fragmento de Santo Agostinho que transcreví.
Mas é preciso ainda mais. Não somente é preciso aprender a evitar toda
expressão sem pensamento e todo pensamento sem alma, mas também
evitar, acrescento eu, para escrever bem, todo estado de alma sem Deus.
Pois, sem dúvida, o que a eloqüência procura expressar não é a alma em sua
fealdade, mas a alma em sua beleza. Ora, sua beleza, indubitavelmente, é
sua semelhança com Deus. Pois, como ainda diz excelentemente Joubert:
“Quanto mais uma expressão assemelhe-se a um pensamento, um
pensamento a uma alma, uma alma a Deus, mais tudo será belo”.
E isso, eu lhe digo, que é preciso procurar. Mas, quem procura, acha. Se
você procurar no silêncio e na solidão, com constância e perseverança
(volventi mihi diu, ac per muitos dies sedulo quarenti), será muitas vezes
como que despertado e sentirá que não está sozinho. Entretanto, o hóspede
interior e invisível é tão oculto e tão íntimo à alma que você duvidará. Fui
eu mesmo ou outro que falou? Onde ele está? Ele se faz ouvir de muito
longe ou fala nesse fundo de mim mesmo tão distante da superfície habitual
de meus pensamentos?
Mas eu não consigo, responde Santo Agostinho; minha saúde impede que o
faça (valetudo scribendi laborem recusai). E aqui devemos reconhecer que
todos têm naturalmente esse tipo de saúde que não permite escrever. Esse
estado quase sempre grosseiro, perturbado, excitado, pesado, sonolento de
meu corpo não me impede de escrever, ou seja, de seguir e fixar essas
belezas interiores que mal percebo, e essas delicadas emoções,
atravessadas, desfeitas, sufocadas pelas rudes e petulantes emoções dos
meus sentidos?
sentimos que suas fibras despertam e colocam-se todas de acordo umas com
as outras. Ressoam por si mesmas, e independentemente do autor, cujo
trabalho consiste então em escutar, em esticar a corda que está um pouco
abaixo do tom, e afrouxar a que produz um tom mais alto, como fazem
aqueles que têm um ouvido delicado quando tocam uma harpa.
Não é isso o que quer dizer o profeta quando exclama: “Levanta-te, minha
glória! Levanta-te, saltério e citara!”? (Exsurge, gloria mea; exsurge,
psalterium et cithara).13
Mas previno-o de que, se for esperar para escrever o momento em que sua
alma e seu corpo se tenham tornado esse instrumento sonoro e delicado,
jamais escreverá. Que diz, com efeito, Santo Agostinho? “Pede força e
auxílio para alcançares o que desejas, e põe isso mesmo por escrito, para
que assim te sintas mais animado (ut prole tua fias animosior)”.
E eles nunca pegam a caneta, pois são paralisados por não sei que
circunspecção; pensam no leitor, tremem perante toda essa multidão de
críticos que imaginam e perante suas mil pretensões.
Sobre isso, o que diz Santo Agostinho? “Não te preocupes com a possível
multidão de teus leitores; bastará que te leiam alguns dos teus poucos
conterrâneos” (nec modo cures invitationem turba legentiurn).
Que dignidade, que gravidade, que verdade na voz de quem não espera
nada dos homens, que não busca nenhuma glória, e que busca a verdade;
que teme somente a Deus e espera tudo de Deus! O Cristo, falando àqueles
que buscam a glória que vem dos homens, e não a que vem de Deus, não
disse “não tendes permanente em vós a sua palavra” (verbum eius non
habetis in vobis manens) 14 Busque portanto a glória que vem de Deus;
então o Verbo de Deus permanecerá em você.
Quanto mais um livro for escrito longe do leitor, mais forte ele será. Os
pensamentos de Pascal, os escritos de Bossuet para o delfim, a Suma de São
Tomás de Aquino sobretudo, escrita para os principiantes, são provas disso.
Uma prova das mais singulares, nesse gênero, encontramos nos dois
estilos de Massillon: o da Pequena Quaresma, e o dos Discursos sino-dais;
o primeiro, praparado para a corte, em que o autor abusa verdadeiramente
da ductilidade de seu pensamento, em que o descosido da trama esgota a
paciência da vista; o outro quase improvisado para alguns párocos de
Auvergne, breves páginas vivas, enérgicas, em que encontramos um outro
Massillon, tão superior ao primeiro quanto um belo rosto é superior a
um belo véu.
1 Mt 23,8.
3 Ap 8, I-NT.
5 Ap 2, 26-NT.
12. Pensées de Joseph Joubert. Didier et Cie., Paris, 1866, t. n, p. 302. 13.
SI 56, 9-NT.
14 Jo 5, 38 -NT.
II - A idéia inspiradora
CONTINUO a dar-lhe estes conselhos, a você, que crê na presença de Deus, e
que está resolvido a assumir a austera disciplina de sua divina escola.
Espero fazer-me compreender e conduzi-lo à prática mesma!
Certo! Mas por onde abordar esse assunto, que é o assunto universal?
Respondo: é preciso abordá-lo como ele se apresentar.
Ora, o que você quer que o Verbo feito carne para a salvação do mundo
inspire a seus discípulos, senão o que é necessário atualmente para a
salvação do século em que eles vivem, e sobretudo para sua própria
salvação? Sua salvação, a salvação do século em que vivem, eis a obra e a
idéia universal, idêntica para todos os servos de Deus numa mesma época,
mas diversa para cada um deles segundo o povo a que pertence, segundo o
papel que ele pode e deve ter na batalha.
Já disse que você deve impor silêncio à algazarra do mundo; que, para isso,
deve romper com ele. Mas você acha que deve romper com a humanidade
para escutar unicamente a Deus? Longe disso. Romper com o século é
ótimo. Mas não se deve romper com a humanidade. O século não é a
humanidade. A tendência do século e a tendência do gênero humano são
coisas distintas. A última é a lei, a outra a perturbação da lei. Assim como o
movimento total da Terra, em seu curso em volta do Sol, implica
dois movimentos, o que lhe faz percorrer seu curso regular, e o que
lhe provoca alguns desvios em oscilações acidentais, assim a humanidade,
em cada ponto de seu caminho, tem dois movimentos: seu movimento
providencial e regular e um movimento caprichoso e perverso que
denominamos século. A qual dos movimentos você quer pertencer? A qual
dos dois deseja consagrar suas forças? E preciso vencer esse movimento
falso que se chama de século, o mau século, que é a resultante de todos os
egoísmos, de todas as sensualidades, de todas as cegueiras e de todos os
orgulhos do tempo: movimento pecaminoso, que dificulta e retarda o
verdadeiro movimento do gênero humano.
1 Mt 23, 10-NT.
III - A noite e o repouso
NEM tudo foi dito sobre essas horas da manhã que lhe devem dar, como
fruto secundário, o dom de escrever; elas abrem as fontes da alma e do
pensamento original; fazem a razão trabalhar em nós mais do que anos de
leitura; põem em movimento o homem inteiro; clareiam o espírito e mesmo
o corpo. Eu não expus ainda todos os meios de dar a essas horas plena
fecundidade, nem os de fazê-lo chegar ao grande objetivo, você, discípulo
da justiça e da verdade, que deseja ter a Deus por mestre.
Qual o trabalhador que não observou esses fatos? Quem não sabe a que
ponto o sono desenvolve as questões colocadas, faz frutificar as sementes
em nosso espírito? Quantas vezes, ao despertar, a verdade que tínhamos
procurado em vão brilha na alma envolta em uma claridade penetrante? Dir-
se-ia que os frutos do trabalho concentram-se no repouso, e que a idéia
deposita-se em nossa alma como um cristal, como um diamante, quando a
água-mãe, por muito tempo agitada, adormece.
E aqui, mais que em qualquer outro lugar, que é preciso romper com nossos
hábitos atuais. E impossível que os espíritos possam crescer com a
organização que fazem hoje das horas noturnas.
Quando o dia inteiro termina pelo prazer, saiba que o dia inteiro resulta
vazio. Não falo daqueles que, toda noite, malbaratam toda sua força e
dignidade humana em orgias. Falo daqueles que, como quase todos hoje em
dia, abstém-se de toda vida séria num determinado momento,
interrompendo-a durante pelo menos doze ou quatorze horas. O que fazem
com esse tempo? Para que servem nossas conversas noturnas, nossas
reuniões, jogos, visitas, espetáculos? Há nisso tudo como que a amputação
de quatorze horas de verdadeira vida. É um descanso, dirão. Discordo. O
que dissipa não produz descanso. O corpo, o espírito, o coração, esgotados,
dissipados para fora de si mesmos, precipitam-se, depois de uma noite
vazia, em um sono pesado e estéril, que não traz repouso algum, porque a
vida excessivamente dispersa não tem nem o tempo nem a força para
renovar suas fontes. Em que estado se sai de semelhante sono?
Somos estéreis mais por falta de repouso do que por falta de trabalho.
A vida deveria ser feita de trabalho e de repouso, como o tempo nesta Terra
compõe-se de dias e de noites.
Nós, hoje em dia, ainda trabalhamos um pouco, mas não repousamos mais.
Depois da agitação do trabalho, vem a agitação do prazer, e depois delas, a
prostração e o abatimento.
Você, portanto, que deseja fazer o silêncio falar e o sono trabalhar, faça útil
também o seu repouso. Faça-o de tal forma que a interrupção do trabalho
seja verdadeiramente um repouso. Consagre o tempo noturno. Torne reais
as vãs e vazias figuras que nossos hábitos conservaram. Que o repouso da
noite seja um comércio do espírito e da alma, um esforço comum em
direção à verdade por meio de um leve estudo das ciências, em direção à
beleza por meio das artes, em direção ao amor de Deus e dos homens por
meio da oração; coloque sementes de luz e de santas emoções no sono que
virá, onde Deus mesmo as cultivará na alma de seu filho adormecido.
NOTAS
1 Mc 4, 27-28-NT.
3 Is 57, 10 -NT.
IV - A oração
Ouso esperar que você não achará esses conselhos inúteis para o progresso
da Lógica viva, ou seja, para o desenvolvimento do Verbo em você. Penso
que eles são mais úteis, em lógica propriamente dita, que o estudo das
formas do silogismo, estudo que não desprezo, como você sabe.1 Dou-lhe
os meios práticos de desenvolver em você mesmo a verdadeira luz da razão.
Se empregá-los, se preparar os seus dias pela consagração da noite,
até mesmo o seu sono trabalhará. Despertará cheio de seiva, cheio de idéias
implícitas, de harmonias inauditas. Se, para escutar essa fermentação
interior da vida, essa voz do Verbo no fundo da alma, souber estabelecer em
si mesmo o silêncio, o verdadeiro silêncio, exterior e interior; se, para não
se limitar a vagas audições desses murmúrios distantes, que cessariam
imediatamente com a mínima preguiça, corresponder a eles pelo trabalho;
se procurar fixar-lhes com precisão e em seus detalhes pelo pensamento
articulado e encarnado na escrita, esteja certo de que depois de alguns
poucos dias de um tal esforço verá os seus frutos. E quando, depois do
trabalho, tomar um dia de repouso, e, depois de uma jornada, algumas
semanas — se for um verdadeiro repouso, e não o seu oposto —, verá que o
repouso continuará seu trabalho, e que poderá dizer de seu espírito o que se
diz da terra: “Nec nulla interea est inaratae gratia terra;”.2
Sua vida inteira será como aquele campo, trabalhado e semeado, em que a
semente cresce e se desenvolve, seja quando o homem está acordado, seja
quando dorme: terra enim ultro fructificat.
Ora, a oração é a respiração da alma em Deus. A alma reza por muito tempo
sem perceber. A alma das crianças, em seus anos puros, reza e contempla,
sem refletir, com a força e a grandeza da simplicidade. Mas, depois desses
anos passivos, vêm os anos ativos e livres. A oração livre, com consciência
de si mesma, formará o homem em você e desenvolverá, à imagem de
Deus, a personalidade que estava implícita e latente na criança.
Não provarei aqui mais amplamente que se deve rezar. Nem mesmo o
exortarei a rezar. O que farei é dar-lhe os meios para fazê-lo.
Ora, para evitar as distrações na meditação, eis o conselho que foi dado
recentemente a uma assembléia do clero de uma diocese ca França:
"Meditem escrevendo".
Escreva lentamente, fale com Deus, que você sabe que está presente;
escreva o que lhe diz; rogue-lhe que o inspire, que lhe dite suas vontades,
que o mova com esses movimentos interiores, puros, delicados e simples
que são sua voz, e que são infalíveis. Com efeito, se ele lhe diz: “Meu filho,
sê bom”, isto pode ser enganoso? Se lhe diz: “Ama-me acima de tudo: sê
puro, sê generoso; ama os homens como a ti mesmo; pensa na morte, que é
certa, que está próxima; sacrifica o que passará; consagra tua vida à justiça
e à verdade, que não morrem”, poderá afirmar que essas revelações não são
infalíveis? E se, ao mesmo tempo, o amor enérgico dessas verdades
manifestas lhe é como que inspirado no coração por não sei que toque
divino que impressiona e permanece, dirá que a origem dessas forças
ardentes e luminosas não é Deus? E se, não acrescentando nada de
arbitrário e inútil a essas impressões fortes e a essas luzes simples, escrevê-
las com o fervor que contêm, acha que não será duplamente impressionado,
e que a distração e o sono poderão intervir nessa meditação? Alguém dizia
— era uma mulher —: “Ah, não quero mais meditar assim: comove-me
demais”.
Experimente; espero que mais de uma vez deixará de escrever para cair de
joelhos e para derramar lágrimas.
Mais de uma vez, sob o toque de Deus — você sabe que é verdadeiro dizer:
Deus nos toca —, mais de uma vez sua alma, recolhida pela grande e divina
impressão desse raro e poderoso contato, sua alma operará por si mesma
esse ato prodigioso que Bossuet denomina o maior ato da vida, e que eu
devo dar-lhe a conhecer.
Eis portanto o ato mais profundo, o mais sublime e o mais importante que a
alma humana pode fazer, e do qual Bossuet, de acordo com a Igreja
Católica e a mais sapiente teologia, fala-lhe assim:
Fazei-me encontrar esse ato, ó meu Deus! Esse ato táo amplo, tão simples,
que vos entregue tudo aquilo que sou, que me una a tudo aquilo que sois.
O, Deus! Unidade perfeita que não posso igualar nem compreender através
da multiplicidade, qualquer que ela seja, de meus pensamentos, e, ao
contrário, da qual me distancio tanto mais quanto mais multiplico meus
pensamentos, peço-vos uma única coisa, se a quiserdes dar, na qual eu
reúna, tanto quanto permite minha fraqueza, todas as vossas infinitas
perfeições, ou antes essa perfeição única e infinita, que faz com que sejais
Deus, em quem tudo existe.
Com esse ato, seja você quem for, não se preocupe com mais nada. Devo
dizê-lo? Sim, eu direi: não se preocupe nem mesmo com seus pecados,
porque esse ato, se for bem feito, apaga-os todos.
Esse ato, o mais perfeito e o mais simples de todos os atos, coloca-nos, por
assim dizer, inteiramente nas mãos de Deus. É um completo abandono a
esse espírito de novidade que não cessa de reformá-lo interiormente e
exteriormente, enchendo todo o seu interior de pudor, de modéstia,
de doçura e de paz.
O que é esse ato senão esse amor perfeito que expulsa todo temor? Tudo
desaparece perante esse ato que contém toda a virtude do sacramento da
Penitência.
Mas você deseja acrescentar algo a essa curta oração ditada por Deus, a
esse fundo de toda oração já escrita? Você é desses abençoados e flexíveis
espíritos que sabem ler, ou seja, abandonar, quando o desejam, seu próprio
pensamento para entrar no pensamento de outro e improvisar em si mesmos
tudo o que as palavras vindas de fora comportam de sentido? Se você tem
esse dom, felicito-lhe grandemente e eis o que lhe aconselho. Existem
admiráveis palavras, plenas de uma poesia toda divina e da mais vigorosa e
sublime simplicidade. Leia-as como oração da manhã e da noite. Trata-se
dos Salmos, a santa poesia do povo que foi o coração do mundo antigo e o
pai do Messias. A Igreja Católica compôs orações com eles, que põe na
boca de seus sacerdotes. Essas orações, feitas para as diversas horas do dia,
são compostas cada uma de uma parte fixa e de uma parte variável: a parte
variável difere para cada hora do dia e para cada dia da semana. Tome, cada
dia, duas dessas orações, uma da oração da manhã e outra da oração
da noite. Leia-as com uma profunda atenção, e tome a parte variável como
uma revelação especial que Deus lhe dirige, a você, para esse dia. Verá se
essas vastas palavras não têm uma singular virtude para ajudar-nos a sair de
nossos mesquinhos pensamentos.
NOTAS
1 Ver o terceiro livro da Logique — o capítulo i, n. i, e todo o capítulo iv.
JÁ disse alguma coisa sobre a leitura. É preciso falar dela com mais
extensão. Depois da oração e de tudo aquilo que se relaciona com ela,
depois da meditação pessoal, vem a leitura, como fonte de luz.
Em primeiro lugar: você acredita que pode haver, sobre a face da Terra, a
palavra de Deus escrita?
Há pensadores que sustentam que todos os livros são sagrados, que todo
pensamento é inspirado, que toda palavra é palavra de Deus. Pois, dizem
eles, se é verdade, como acreditam os cristãos, que o homem é racional, que
ele pensa e fala por uma participação atual na luz de Deus, ou antes, se,
como nós sustentamos, dizem, o homem é o próprio Deus pensando, como
se explica que o homem possa falar alguma coisa que não seja palavra de
Deus?
Espero que você não abrace todo esse panteísmo. Entretanto, se lhe for
ensinado que há, na memória dos homens e na tradição, palavras puras e
verdadeiramente inspiradas por Deus, estou certo de que não tem nenhuma
razão sólida para negá-lo.
Eis que, há mais de três mil anos, uma grande parte do gênero humano, a
mais viva, a parte civilizadora do mundo, que forma a corrente principal da
história universal, e que anima a Igreja Católica, eis, digo eu, que essa
porção luminosa da humanidade, por motivos consideráveis, que lhe é fácil
conhecer, considera como puro, como certamente santo e divinamente
inspirado esse texto escrito que se chama de Bíblia. Por que não crer nisso,
se você crê em Deus? Por que não crer por princípio que a bondade do Pai
soube, várias vezes, inspirar seus filhos?
De resto, como compreender que um homem, seja ele quem for, crente ou
não, deixe de meditar, antes de qualquer outra coisa, sobre as palavras de
Cristo? Como compreender que o Evangelho não seja sempre, para todo
homem de coração e para todo homem que pensa, o primeiro dos livros?
Você, portanto, que deseja ser discípulo de Deus e que tem em si o sentido
divino, você lerá o Evangelho todos os dias. E quando tiver feito isso por
um certo tempo e tiver lido isto: “Se permanecerdes na minha palavra,
conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres”;1 quando tiver, com
efeito, entrevisto a insondável luz que sua prática lhe traz, verá claramente
que, além da prática mesma do Evangelho e da oração, a meditação sobre as
palavras de Cristo deve ser a grande fonte filosófica, o alimento
principal do desenvolvimento do Verbo em você.
Quanto mais você tiver coração, espírito, ciência, boa vontade, coragem,
penetração, experiência, e sobretudo amor pelos homens, mais verá o texto
evangélico abrir-se para você. Mas saiba que não terá compreendido o
sentido último das palavras de Cristo senão quando perceber sua
incomparável unidade, e quando puder dizer de cada uma delas: Patuit
Deus.
II
Veja, você que deseja ter Deus por mestre, que estou sempre dizendo uma
só coisa: escute a Deus no silêncio, na meditação, na oração, no trabalho da
oração escrita, na leitura. Quanto à leitura, só lhei falei até agora de um
único livro, do Evangelho. Mas a leitura do livro divino exclui a de livros
humanos? Queimaremos todos por causa do Evangelho, como já
queimaram muitos por causa do Corão? Não; o livro divino não exclui os
livros humanos, como o amor de Deus não exclui o amor dos homens. O
amor de Deus gera o amor pelos homens; assim também extraímos
do Evangelho a compreensão dos pensamentos dos homens: extraímos dele
o mais profundo espírito filosófico e científico; e devemos dizer com São
Tomás: “A ciência de Cristo não destrói a ciência humana, mas a ilumina”.
Um espírito ampliado pelo Evangelho vê nos livros humanos extensões,
profundezas que o autor fre-qüentemente não colocou neles, mas encontrou
e depositou em sua obra apesar de si mesmo. De ordinário, nosso
pensamento estreito só vê, no livro ou no pensamento de outro, aquilo que
as palavras e o estilo exprimem com precisão. Em vez de dar aos outros,
nós lhes suprimimos. Fazemos sempre para eles, com nosso entendimento
parcimonioso e inospitaleiro, um leito de Procusto. Mas o espírito dilatado
pelo Espírito de Cristo tem um incomparável dom de línguas, que
compreende as diversas linguagens das diferentes naturezas de espírito.
Tem essa benevolência intelectual que transfigura os acidentes da palavra;
vai da palavra a seu sentido no espírito, e desse sentido mesmo, tal como se
dá no espírito de nossos irmãos, à idéia eterna que está em Deus, e que
carrega e inspira esse sentido. De maneira que, às vezes, essa
clarividente caridade do espírito vê as coisas mesmo através de um
pensamento mal concebido e ainda mais mal expresso, e serve-se desses
esboços para reconstruir a verdade, como a ciência reconstrói um ser que já
foi vivo com fragmentos de seus ossos.
Sabemos que não havia livro tão detestável de que Leibniz não tirasse
algum fruto.
Faça o mesmo, ou antes, faça melhor. Pois já que lhe é permitido escolher,
só leia os livros excelentes. Devemos ler, dizia Malebranche. Devemos ler
um único livro, dizia um outro, querendo dar a entender assim o poder
sempre considerável da unidade. Mas como seria se você conseguisse
encontrar a unidade dos espíritos de primeira ordem, e se pudesse
freqüentar como uma única sociedade, através de uma contínua
comparação, Platão e Aristóteles, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino,
Descartes, Bossuet e Fénelon, Malebranche e Leibniz? São esses, creio
eu, os principais gênios de primeira ordem. Que você possa chegar a
compreender em que sentido geral e comum Deus inspira os grandes
homens, e o que ele quer do espírito humano! Que possa compreender
claramente, em Aristóteles e em Platão, a grandeza do espírito do homem e
seus limites, e nos outros a imensidão que acrescenta à razão humana a luz
revelada de Deus!
NOTAS
1 Jo 8, 31-32 — NT.
2 “Et enim nunc nobis propositum est”, diz Orígenes, “ut Evangelium sen-
sibile transmutemus in intelligibile et spirituale”. E Thomassin acrescenta:
“Ubi perspicue duplex discriminat Evangelium, et sensibile in intelligibile,
temporale in asternum traduci debere demonstrat, si modo pueritia
aliquando excuti et ado-lescere intelligentia debet”. Thomassin, De
Incarnatione Verbi, livro 1, cap. 10.
VI - Fé - Ciência comparada
I
Não é preciso ser profeta para sabê-lo; Jesus Cristo disse aos homens no
Evangelho: “Hipócritas, sabeis distinguir os aspectos da terra e do céu;
como, pois, náo sabeis reconhecer o rempo presente?”.2
Ora, não sei se você sente isso como eu o sinto, mas essa dúvida eletriza-
me. A dúvida ordinariamente enerva; aqui ela vivifica, arrebata. Sim, é
possível que sobre a face desta Terra, como fruto de tantas lágrimas e lutas,
o bem vença, afinal; que o Reino de Deus venha, e que sua vontade seja
feita na Terra, como no Céu. Pode ser que a história acabe em uma messe. E
pode ser também que tudo acabe na esterilidade, como a vida da figueira
maldita; que, como vemos homens morrerem antes do tempo, esgotados
pelos excessos e extraviados pela loucura, também o mundo venha a morrer
antes do tempo, esgotado pelos excessos e extraviado pela loucura. Pode ser
que a justiça e a verdade sejam vencidas, e retornem ao seio de Deus
maldizendo a terra que se terá recusado a dar seus frutos. Ora, você sabe
muito bem que há hoje, entre nós, muitos espíritos desencorajados que
sustentam que será assim. Outros, estranhamente confiantes, declaram que
será, sem nenhuma dúvida, de outra maneira, e que o bem deve triunfar
sobre a Terra. Eu o ignoro, e só sei uma única coisa, que a humanidade é
livre e que o homem acabará como escolher. Sei que você, eu, cada um de
nós, podemos acrescentar nossos movimentos e nosso peso ao movimento
de decadência que leva ao abismo, ou então, em nome de Deus, e em união
com Cristo, trabalhar para salvar o mundo, e reorientar, neste momento
mesmo, a direção do século e da história, se ela estiver errada.
Falta-nos fé.
Mas como?
II
Há duas maneiras. Uma, mais alta que a filosofia, não nos interessa aqui;
entretanto, indicarei qual é. A outra é precisamente a obra da filosofia, e
responde à questão colocada acima: o que Deus quer do espírito humano?
Eis o exemplo. Que nosso século faça o mesmo, e se dê, por amor a Deus,
ao serviço dos pobres. Logo não haverá mais luta contra a fé.
III
Qual foi, nos últimos três séculos, na França, e mais ou menos em toda a
Europa, e por conseguinte no mundo inteiro, a marcha do espirito humano
sob o ponto de vista da fé? Vejo um grande século de té, o xvii; vejo um
século de incredulidade, o xviii; e vejo um século de luta entre a fé e a
incredulidade, o nosso.5 Quem a vencerá? É isso, digo eu, o que depende de
nós.
IV
Mas não vou me demorar em generalidades; quero ir aos detalhes. Eis, para
chegar a esse grande objetivo — que é precisamente o que Deus quer do
espírito humano —, eis, se você não deixou de me acompanhar, um
conselho prático que, de resto, é indispensável ao desenvolvimento de suas
faculdades e ao progresso da luz em seu espírito.
Mas onde está São Tomás de Aquino? Onde está a mais alta santidade unida
ao mais alto gênio? Onde está a absoluta castidade de uma vida inteira,
unida à riqueza de uma natureza meridional? Onde estão a solidão, o
silêncio, o claustro, e esses doze irmãos escreventes, que decifram, copiam,
pesquisam para São Tomás, e estão dispostos noite e dia para escrever
aqueles ditados que Deus inspira?
Talvez, com efeito, tenha chegado o tempo em que não haverá mais escolas,
em que não se dará mais a nenhum homem o nome de mestre, em que se
praticará em um certo elevado sentido este conselho do Cristo: “Não vos
façais chamar rabi, porque um só é o vosso Mestre, e vós sois todos
irmãos”.8 Talvez vários humildes discípulos de Cristo unam suas
inteligências na humildade fraterna e mereçam, na ordem da ciência, esta
bênção do verdadeiro mestre: “Onde se acham dois ou três congregados em
meu nome, aí estou eu no meio deles”;9 talvez, digo eu, vários humildes
irmãos, unidos em Deus, farão mais do que um grande homem.
Mas eu estou sozinho, você me dirá. Então seja pelo menos tão corajoso
quanto Bacon, porém mais modesto. Não diga como ele: “Viam aut
inveniam aut fadam”; entretanto trabalhe, e se for perseverante e estiver
convencido de que talvez, com mais sorte que Bacon, o qual buscava
romper uma porta que já fora aberta por outros mais fortes que ele, talvez
lhe seja dado abrir modestamente, para outros mais fortes que você, que
saberão conquistar a fortaleza, uma porta que eles ainda não tenham
encontrado.
NOTAS
2 Lc 12,56.
3 Lc 18, 8 — NT.
8 Mt 23, 8 — NT.
9 Mt 18, 20-NT.
VII - Ciência comparada
I
Precisa agora da teologia e das ciências. Você bem sabe que os homens do
século XVII eram ao mesmo tempo matemáticos, físicos, astrônomos,
naturalistas, historiadores, teólogos, filósofos, escritores. Cite um que não
tenha sido filósofo! De Kepler a Newton, todos são teólogos. Eis os seus
modelos.
De resto, é muito bom que você tome esse caminho, pois, se tem gosto
pelas letras e pela filosofia, a primeira precaução a tomar é não encerrar-se
nelas. “Homem literato, perigoso e vão!”, disse alguém.
Felizes aqueles que submetem seu espírito ao conselho que Virgílio dava
aos trabalhadores:
Faça o mesmo. Cruze sua literatura com a ciência, a ciência com a teologia.
Rompa seus primeiros hábitos de espírito, suas primeiras formas de pensar.
Sobretudo, se adquiriu no colégio uma primeira predileção por um sistema
particular de filosofia, apresse-se em tomar a charrua e dirigir os sulcos em
um sentido completamente diverso:
Não tema mudar várias vezes de cultura. Nada favorece mais a terra, diz
aliás o poeta. A mudança de cultura traz repouso:
II
III
IV
Assim, não tema nem a massa, nem o número, nem a diversidade das
ciências. Tudo isso será simplificado, reduzido e fecundado pela
comparação.
Isto posto, comece por consagrar, digamos, dois anos à matemática, à física
e à química, e à teologia.
Faça uma hora e meia de aula por dia, no início da tarde. Duas aulas de
matemática por semana; duas aulas de física e de química, duas aulas de
teologia. Estude cada lição duas horas, imediatamente depois das aulas. Eis
como vai usar a tarde.
Não esqueça que estou falando para um homem decidido a trabalhar por
toda a sua vida; que pensa que o estudo, depois da oração, é a felicidade;
que quer aprofundar e comparar cada coisa para nela encontrar a verdade,
ou seja, Deus. De resto, tenha por certo que grandes dificuldades aguardam
a todos que entram por esse caminho.
Mas quanto sofrimento pode ser poupado se você souber unir-se a outros, e
ajudarem-se mutuamente! Se, em número de seis ou sete, tendo o mesmo
pensamento, ensinando-se uns aos outros, tornando-se reciprocamente e
alternativamente alunos e professores; se até, por não sei que concurso de
felizes circunstâncias, puderem viver juntos! Se, além dos cursos da tarde e
dos estudos sobre esses cursos, conversarem à noite, à mesa mesmo, sobre
todas essas belas coisas, de maneira a aprender mais, através
das conversações e como que por infiltração, do que nos próprios cursos.
Se, em uma palavra, pudessem formar em algum lugar uma espécie de Port-
Royal, menos o cisma e o orgulho!
Mas é nisso mesmo que está a dificuldade. Se nossas ciências fossem feitas
assim, e nossos professores preparados para ensinar assim, os admiráveis
resultados de nossas grandes ciências deixariam logo de ser um mistério
reservado às escolas e às academias. Mas, já que não é assim, tentarei dar-
lhe, sobre a maneira de estudar ou de ensinar as ciências, alguns conselhos
muito incompletos, os quais, espero, saberá complementar.
NOTAS
6 Tb 6,3 — NT.
VIII - Matemática
I
Mas como estudar e ensinar essa vasta ciência? Como cultivar todas as suas
partes: aritmética, geometria, álgebra, aplicação da álgebra à geometria,
cálculo infinitesimal, diferencial e integral; como abarcar todas essas
ciências?
II
Coloque a seu professor uma primeira questão: o que é tudo isso? Peça-lhe
uma primeira aula, de uma hora e meia, sobre o assunto.
Quando ele lhe tiver dito e feito compreender que não há nisso tudo senão
dois objetos, os números e as formas, aritmética e geometria; depois que há
uma maneira de representá-los, de calculá-los, de compará-los: aritmética e
aplicação da álgebra à geometria-, depois, ema maneira mais profunda de
analisá-los, o cálculo infinitesimal, co qual o cálculo diferencial e o cálculo
integral são partes; então você pedirá a seu professor uma aula sobre cada
um desses ramos.
Há uma regra geral do ensino que é quase sempre invertida hoje em dia: é
que se deve começar, em todo ensino, pela raiz e pelo tronco, passar daí aos
principais galhos, depois aos galhos secundários, depois aos ramos, depois
às folhas e aos frutos, depois ao germe e à semente, e mostrar afinal, em
cada germe e em cada semente, a raiz e o todo. Hoje, em primeiro lugar,
jamais falamos do todo, nem no começo, nem no final; ademais,
começamos arbitrariamente por este ou aquele ramo, e quando descrevemos
mais ou menos todos os ramos, sem aprofundá-los e nem mesmo
mostrar sua unidade, pensamos que a tarefa está terminada. Os
professores são com freqüência, como o poeta de que fala Horácio,
bastante hábeis em certos detalhes mas incapazes de produzir um todo:
Nesciet. 2
Depois dessa lição geral sobre cada ramo, recomece, tomando cinco ou seis
lições sobre cada um, depois retome ainda o todo, com mais detalhe.
III
Sem demorar-me nas objeções dos que dizem que não se sabe o que ela é,
que ela não é rigorosa, emprego-a porque conduz ao objetivo. Aliás, já
respondemos, parece, a essas dificuldades no quarto livro de nossa Lógica,
e sobretudo em nossa introdução à Lógica.
Diante dessas autoridades, dessas razões, e de muitas outras, náo penso que
seria temerário afirmar que um só ano de estudos pelo método infinitesimal,
convenientemente aplicado e apresentado, daria, não mais aquisições nem
detalhes, porém mais resultados úteis, mais intuição geométrica, e
sobretudo mais desenvolvimentos da faculdade matemática que o próprio
curso da Escola Politécnica, que é de dois anos, e que supõe de ordinário
três anos de estudos preparatórios.
Por essa via, que é verdadeiramente, como dizia Poisson, a única via para a
invenção, não fica claro que em pouco tempo se ensinaria ao aluno
geômetra a fazer pequenas descobertas, e a compreender por si mesmo, em
vez de aprender de cor sem compreender? Ele desenvolvería suas
faculdades, adquirindo a ciência, e a cada esforço aceleraria sua velocidade.
IV
Ninguém é bom juiz de sua própria causa. Ouso entretanto exortar nossos
jovens leitores a trabalhar, com mais atençáo do que se fez até agora, esse
capítulo da lógica, tal como o escrevi. Já faz oito anos que publiquei a
teoria do procedimento de transcendência. Depois, essa teoria foi publicada
na Alemanha por um autor que, por suas vias, chegou ao mesmo resultado.
Nenhuma objeção séria nos foi feita, e aliás eu demonstrei meu pensamento
outra vez em uma introdução 4 que, parece-me, não pode ser refutada, ao
menos em sua tese principal. Esta é a tese: A razão tem dois
procedimentos, dedução e indução, procedimento de CONTINUIDADE
eprocedimento de TRANSCENDÊNCIA. Esses dois procedimentos necessários,
de dedução e de transcendência, são os dois procedimentos lógicos
fundamentais da geometria, como também de qualquer outra ciência.
Em geometria, como em tudo mais, o procedimento de transcendência, ou a
indução, é o procedimento de invenção por excelência.
Mas deixemos este assunto, senão ele nos levará longe demais.
NOTAS
1 Livro IV, cap. 3. Veja também o livro v, cap. 2, com o título: “O lugar da
imortalidade”. [De la Connaissance de 1’Ame. Charles Dounjo, Paris, 1857
—- NT].
É verdade que isso se deve em grande parte à maneira como ela é ensinada.
Comece, como para qualquer outra ciência, por uma única aula de conjunto;
depois uma aula sobre o sistema solar, outra sobre o sistema estelar, uma
terceira sobre as nebulosas. Retome o sistema solar em dez ou doze aulas, o
sistema estelar em três ou quatro, as nebulosas mais brevemente ainda.
Nessas aulas, não fale das aparências que povoam a imaginação, só afirme
aquilo que existe, chegue a resultados, resultados certos; deixe de lado o
que é contestável com respeito às estrelas e às nebulosas. Fale
inicialmente muito pouco sobre instrumentos e métodos, que são
construções do momento; mostre o monumento em si mesmo — ele o
merece. Depois recomece ainda mais amplamente e, multiplicando os
detalhes precisos, chegue à unidade da ciência; mostre a causa única de
todas as formas e de todos os movimentos, a atração e sua lei. Veja sair daí,
por via de conseqüência, a curva de segundo grau, o círculo e sua família,
para reinarem sobre todos os astros; e não rejeite depressa demais o que
dizia Kepler, competente nessas coisas, pois foi ele que as descobriu: que o
círculo é um símbolo da alma e da Trindade de Deus, de forma que a alma e
Deus são como que desenhados por todo o céu e são sua lei. Inclua aqui
a mecânica celestre, e a aplicação surpreendente de precisão e delicadeza do
cálculo infinitesimal à análise de todas essas formas e de todos esses
movimentos. Mostre esse poder do cálculo que rege sobre os astros, e que
anuncia seus movimentos com vários anos de antecipação, não em minutos,
nem em segundos, mas em décimos de segundo; que sobre o imperceptível
estremecimento de um astro, afirma, como fez Le Verrier, que há um astro
invisível, a um milhar de léguas, que perturba aquele visível; que, por
fim, calculando o sentido e amplitude desse estremecimento, denuncia o
lugar e a hora em que se vislumbrará o astro desconhecido.
Mas, quando você conhecer todo o material da ciência, os fatos e suas leis,
quando sua imaginação representar-se, até certo ponto, D conjunto das
formas e dos movimentos — falo aqui do sistema solar, que é a parte
acabada dessa ciência —, quando souber as distâncias dos planetas ao Sol,
sua grandeza relativa, sua densidade, o tempo de suas rotações e
revoluções; quando vir toda essa onda de mundos vogar em harmonia e
avançar no mesmo sentido; e nossa Terra flutuando como um navio em
torno dessa ilha de luz que é .tosso Sol: quando vir os extraordinários
decréscimos de luz, de calor e de movimento para os mundos afastados do
centro; e depois a incrível excentricidade e a espécie de loucura dos
cometas, que parecem debater-se sob a lei que os domina tanto quanto
domina os mundos habitáveis; e depois sua espantosa mobilidade
de formas, suas combustões furiosas, tanto no calor quanto no frio; quando
vir toda essa geometria em ação, toda essa física viva, todo esse
maravilhoso mecanismo da natureza, conservado sempre pela presença de
Deus, e manifestamente regrado por sua sabedoria, sob leis que são sua
imagem; quando vir a vida e a morte no céu: um mundo esfacelado cujos
vestígios orbitam perto de nós, o céu carregando consigo seus cadáveres em
sua viagem pelo tempo, como a terra carrega os seus; quando vir estrelas
desaparecerem, enquanto outras nascem, crescem e aumentam; quando
perceber essas nebulosas — sejam elas grupos de sóis ou grupos de
átomos, sejam algumas sóis e outras átomos, poeira de átomos ou poeira de
sóis, que importa? E quando vir grupos da mesma raça, mas de diferentes
eras, que chegam a nossos olhos com diferentes graus de formações, e
deixando ver a marcha de seu desenvolvimento, como vemos em uma
floresta de carvalhos o desenvolvimento das árvores em todas as suas
idades; depois, quando vir sobre todos esses mundos as alternâncias de
noite e dia, as vicissitudes das estações, em harmonia com a vida da
natureza, eu diria mesmo com a vida de nossos pensamentos e de nossas
almas: vicissitudes, oscilações, sempre inevitáveis, exceto nesse mundo
central onde reina um pleno verão, um pleno meio-dia; então, se não
entrar em sua astronomia nem poesia, nem filosofia, nem religião,
nem moral, nem esperanças, nem conjecturas de vida eterna e do estado
imutável do mundo futuro; se não compreender nada desta sublime frase de
Ritter: “A Terra, em suas revoluções perpétuas, busca talvez o lugar de seu
eterno repouso”; se não compreender estas palavras de São Tomás de
Aquino: “Nada se move apenas por se mover, mas para chegar a algo: todos
esses movimentos cessarão”; se não compreender estas palavras de Herder:
“A dispersão dos mundos não subsistirá; Deus a conduzirá à unidade, e
reunirá em um mesmo jardim as mais belas flores de todos os mundos”; se
não acreditar nesta profecia de São Pedro: “Haverá novos céus e uma nova
Terra”, 1 e neste oráculo de Cristo: “Haverá um só rebanho”; 2 se, em face
desses caracteres tão grandiosos, e desses fatos fundamentais da obra
visível de Deus, você olhar sem ver e sem compreender, sem adivinhar a
possibilidade de sentido — então, ah!, então merecerá a mais profunda
comiseração!
NOTAS
2 Jo 10, l6 NE.
X - Física
O que é a física? Chamamos de física a ciência da natureza inorgânica, e de
fisiologia a ciência da natureza organizada. Essas palavras entendem-se por
si mesmas.
Virão em seguida três aulas sobre a atração, sobre a luz, sobre o calor,
considerados em seus efeitos gerais, e como produtos da eletricidade. —
Depois uma aula especial sobre acústica.
No restante, a ciência avança cada dia mais nesse caminho. Tudo se calcula,
tudo é contado, pesado e medido. Provavelmente se chegará a submeter à
análise matemática até os fenômenos químicos. Não temos já os espantosos
trabalhos de um ilustre matemático 2 sobre o átomo, não somente os átomos
dos corpos, mas os átomos da luz: trabalhos em que o gênio atinge, pelo
cálculo, as formas dos átomos, e suas variações, e sua polaridade, de
onde resulta o jogo variável das forças na matéria e as variações de calor, de
cor, de repulsão e de atração? E aí que se dará provavelmente a próxima
grande descoberta nas ciências: precisamos dos Kepler e dos Newton do
infinitamente pequeno. Aguardamos os legisladores do átomo, como temos
os legisladores dos astros.
Não tenho nenhum medo de afirmar, conforme minha tese geral sobre a
ciência comparada, que é preciso elevar-se, pela física e pela química,
através da matemática, até a filosofia, e até a teologia: a filosofia e a
teologia, ademais, são certamente comparáveis e mutuamente penetráveis.
Se cremos, como afirma um destacado espírito que entra por esse caminho,3
que “toda ciência que se isola condena-se à esterilidade”; que “essa filosofia
que é a continuadora das grandes tradições [...] de Descartes, de Leibniz, é
capaz de ultrapassar a tronteira, e entrar no terreno da física”; cremos
mesmo que também a física é hoje capaz de subir mais alto, e que essa
tentativa da física e da filosofia comparadas é, como diz ainda o mesmo
autor, 'uma tentativa que, mais dia, menos dia, deve triunfar”.4
E preciso chegar a compreender o que existe sob essa nova teoria das
ondas, sob essas formas esferoidais que se encontram em todos os lugares,
sob essa lei geral da razão inversa do quadrado das distâncias, o que existe,
enfim, em toda força. É preciso saber se é verdadeiro e visível em física,
como é visível em psicologia, que Deus está operando em tudo aquilo que
opera; que a atração, a luz, o calor são efeitos da presença de Deus,
produzidos por ele como causa primeira, e radicalmente impossíveis sem
sua ação perpétua. E preciso descobrir se essa verdade teológica não
está implicada nessa estranha propriedade do movimento e da propagação
das forças, sua persistência indefinida, sem fadiga nem alteração, de sorte
que a expansão de uma força qualquer conserva-se sempre inteiramente a
qualquer distância do centro a que a onda possa chegar. É preciso saber se
não se pode dizer que Deus, assim, tenha decidido mostrar sua infinitude na
força, como decidiu, segundo Bossuet, mostrar sua infinitude em nossas
idéias; se não se pode portanto perceber a dimensão da força que há em
Deus, como se percebe, em psicologia, a dimensão da razão e das idéias que
há em Deus; como, afinal, chegaremos a distinguir, em tudo aquilo que é
criado, o finito, que é o criado em si mesmo, e a indispensável presença do
incomunicável infinito, que conduz e sustenta o finito.
Vou mais longe ainda; creio, com o autor já citado, que mostrou parte disso,
“no acordo que há entre as conclusões legítimas do método racional em
filosofia e nas ciências naturais com os ensinamentos cristãos sobre a
natureza de Deus, sobre a providência e sobre a criação”.5
NOTAS
2 Cauchy.
5 Ibid., p. 20.
Assinalo aqui a situação atual dessa ciência. Encontra-se em tal estado hoje
na França que um decano de uma faculdade de medicina, em seu curso de
1850, citava para seus alunos Helvétius, Cabanis e Condillac como autores
a serem consultados sobre as relações entre a física e a moral.
NOTAS
Eu gostaria que, para essa segunda educação que começa por amor à
verdade, você retome os seus estudos históricos começando pela história
universal, vista primeiro no mais breve conjunto.
A partir desse primeiro olhar lançado sobre toda a história, gostaria que
incluísse nela toda a ciência comparada que comporta a história, a
astronomia, a geologia, a geografia, a filologia, a filosofia e a teologia.
Evidentemente, o espírito moderno trabalha com a filosofia da história, e a
vaidade de um grande número de infelizes tentativas sobre esse ponto não
impede essa tendência de ser profundamente útil e verdadeira.
E já que citei a teologia, gostaria, com efeito, que a história fosse para você
um estudo sagrado, e que pudesse dizer com Ritter: “Essa ciência é para
mim uma religião”. Gostaria que, com Santo Agostinho e Bossuet, você
pudesse contemplar em seu conjunto a marcha do gênero humano,
buscando nela esses traços de Deus de que falou um profeta: “Senhor, que
nos seja dado conhecer teu caminho sobre a Terra, e teu plano providencial
para a salvação de todos os povos”. 1 Seria o progresso da história outra
coisa que o progresso da religião? Não poderiamos dar da religião e da
história esta única e mesma definição: “O progresso da união dos homens
entre si e com Deus”?
E quando, por fim, sobre esse teatro, contemplar a sucessão das criaturas
irracionais e mudas, até chegar um ser inteligente e livre, que fala, que
conhece e quer; quando vir, como com os próprios olhos, o próprio Deus
colocar sobre a Terra o homem, que um momento antes ainda não existia, e
quando tiver compreendido com clareza que há uma data precisa, um lugar
preciso em que o homem foi subitamente suscitado no mundo por um pai
do gênero humano, creio que esse espetáculo, se souber contemplá--lo,
livrando-se por um instante da pesada cegueira e da inquieta incredulidade
que nos roubam todo raio de luz, creio que esse espetáculo porá em você o
germe da história, e o espírito da história para desenvolver esse germe.
Verá bem que esse homem, que é inteligente e livre, tem uma finalidade
ideal que ele pode conhecer, e que sua liberdade deve atingir. O caminho
para o objetivo é a história, e como o homem caminha para o objetivo
livremente, pela via que escolhe, e desvia--se dele quando o quer,
compreenderá que ele é o rei do mundo e dirige, sob o olhar de Deus, o seu
destino.
E então dividirá a história em três questões:
II
Olhe então e compare, sobre toda a Terra, o estado presente dos homens, os
limites naturais no plano da Terra habitável, as raças, as línguas, as
religiões, seu estado intelectual e moral, seu estado social e político. Faça
entrarem aqui os grandes resultados da fisiologia, da filologia e da
simbólica comparadas.
Não tardará a descobrir uma raça central e civilizadora, envolvida pelo
restante do gênero humano, como o miolo por sua casca, raça branca,
geograficamente rodeada por homens de todas as cores, depositária do culto
de um só Deus, rodeada por idólatras ou mesmo por adoradores explícitos
do mal; nessa única raça, a família, ou seja, o elemento social, constituído
pela unidade da aliança; nessa raça única, alguns traços de castidade, ou
seja, de espiritualidade, temperam a fermentação enfermiça da geração
carnal, e permitem a alguns homens, em alguma coisa, tornarem-se luz
e amor livre, a fim de dirigir o mundo pelos caminhos da justiça,
da verdade, da liberdade, da união; em todos os outros lugares, a
humanidade descoroada, degradada pela sensualidade exacerbada, pela
intemperança sem freio; em todos os outros lugares, a humanidade
paralisada, sufocada por uma de suas partes, por um dos dois sexos; mas
sempre a justiça, a inteligência, a ciência, a força, a dignidade, a liberdade,
ou sua ausência, proporcionais, em cada parte do gênero humano, à maior
ou menor participação de cada povo na luz e na religião do miolo central e
civilizador.
III
Vá então para a segunda e, sem nunca perder de vista todo esse primeiro
quadro, retome, sempre através do sincronismo, e da história geral
comparada, a história distinta das raças e das nações; sempre rapidamente,
percorrendo, na maior velocidade possível, cada linhagem, desde sua
origem perceptível até nossos dias. Somente os exames das totalidades
podem ser instrutivos. Somente assim compreenderá o que retarda ou faz
progredir cada nação e o conjunto da humanidade. Assim verá claramente
onde está a corrente principal da história, onde estão as águas paradas. Verá
em que época específica a humanidade deixou de repousar como um lago,
lago exposto a se corromper completamente; em que época específica
correu enfim desse lago um rio de água viva e vivificante, que talvez
transportará tudo.
IV
Isto posto, devemos crer que é possível atingir a finalidade, e que se a Igreja
Católica diz: “O Pai, que deste a teus filhos este globo para que o cultivem,
faze que eles sejam um só coração e uma só alma, assim como têm uma só
morada”; se esse sublime pedido é manifestamente a finalidade, podemos
esperar atingi-la, ou pelo menos aproximarmo-nos dela, na medida em que
o homem pode sobre a Terra aproximar-se da perfeição. “Se os
povos ouvissem”, disse Santo Agostinho, “e ao mesmo tempo pusessem em
prática os seus preceitos [...], a república não somente ornaria com sua
felicidade os páramos da vida presente, mas subiria até o cume mesmo da
vida eterna e ali reinaria”. 5
Você deve compreender que essa questão é digna das mais sérias
meditações de uma vida inteira.
NOTAS
Sim, mutilação! Daí os julgamentos tão opostos que fazem, sobre o valor e
a tendência de várias dessas ciências, espíritos que deveríam entender-se.
Asseguram-me, por exemplo, que a economia política é um flagelo. Eu
respondo: é a salvação das sociedades. E um flagelo, penso eu, para aqueles
que falam de economia política separada, mutilada; mas eu, que creio dever
sempre, de acordo com o conselho dos sábios, considerar as coisas e falar
delas segundo sua verdade, e não segundo sua vaidade, vejo, ou ao menos
pretendo ver, os seres e as idéias não em sua essência isolada, mas em suas
relações viventes e necessárias. Quando eu digo folha de árvore, não penso
numa folha caída, mas na folha presente na árvore. E quando falo de
economia política, falo da ciência social, e da ciência social relacionada
com a moral, e da moral relacionada com a religião. Eis o que hoje se
começa a compreender. E com-preende-se também, portanto, que a ciência
do dever é tão ampla, tão rica, tão capaz de progresso, quanto a consciência
do dever é simples, universal, primitiva, anterior a tudo.
O esforço para conduzir o mundo à sua finalidade, eis nosso dever. A luz
que esclarece esse esforço, eis a ciência do dever.
Aqui, meus jovens, está o ponto central: conhecer o próprio dever! Saber o
que, neste século mesmo, vocês devem à sua pátria e a todo o gênero
humano; não apenas ter no coração a entrega, talvez o heroísmo; mas saber
como a boa vontade deve ser aplicada ao dever, saber julgar as ilusões de
finalidade, os efeitos dos quilômetros, das distâncias; conhecer os falsos
movimentos das boas vontades ignorantes, os falsos impulsos dos
heroísmos subversivos que matam para libertar, que destroem para salvar. É
preciso que, quando damos nossa alma, nossa vida, nosso
entusiasmo, saibamos ao menos levar à sua finalidade essas formas
magníficas com a precisão mesma da ciência que leva o manejo do fogo à
sua finalidade, que dirige através de rotas determinadas a
intangível luminosidade.
Não acrescentaria mais nada sobre a moral, pois trabalho de todo coração
para oferecer-lhes logo meu fraco ensaio sobre esse coroamento da
filosofia.
NOTAS
Eis, penso eu, a verdade sobre esse assunto. Há, disse Pascal, três mundos:
o mundo dos corpos, o mundo dos espíritos, e um terceiro mundo, que é
Deus, que é sobrenatural em relação aos dois primeiros. Ora, a filosofia
pertence ao segundo mundo; deve reinar sobre o primeiro, e deve submeter-
se ao terceiro, não para aniquilar-se, mas para subir mais alto.
Vejam os fatos. Quais são os grandes teólogos? — Nem falo de São Paulo.
— Os nossos dois maiores teólogos são Santo Agostinho e São Tomás de
Aquino. O terceiro já é difícil de nomear. Há vinte verdadeiramente grandes
e profundos, dos quais o mais glorioso não é, como teólogo, o maior. Mas
enfim, para os homens de letras, citemos Bossuet. Tomemos portanto Santo
Agostinho, São Tomás e Bossuet. Ora, pergunto-lhe: não vê que Santo
Agostinho inclui Platão, mas um Platão mais preciso e engrandecido? Diga-
me se São Tomás não contém todo Aristóteles, mas um Aristóteles alçado
da terra, luminoso, e não mais tenebroso? Dirá que Leibniz não se
harmoniza com Bossuet? Pretenderá que todo Descartes não alimentou
Bossuet, e não tenha influenciado o seu gênio? Eis então, em nossos três
grandes teólogos, um facho de luz composto pelos principais e mais altos
gênios!
Mas é essa toda a autoridade humana da teologia? Só falei até agora da sua
menor parte. A teologia, sempre considerada apenas em seu aspecto
humano, é a única ciência — e isto é capital — que o gênero humano
trabalhou em conjunto. Tudo aquilo que o pai dos homens, saído das mãos
de Deus, e seus primeiros filhos confiaram à memória do gênero humano e
à tradição universal; tudo aquilo que os profetas e os verdadeiros filhos de
Deus, em todos os tempos, puderam ver e receber de Deus; tudo aquilo
que os apóstolos de Cristo, os mártires e os Padres compreenderam; tudo
aquilo que as meditações dos solitários, que só amavam a verdade,
misteriosamente incutiram no espírito humano; tudo aquilo que as grandes
ordens religiosas, trabalhando em comum, comparando, debatendo
incessantemente seus trabalhos, desenvolveram e determinaram; tudo
aquilo que os concílios gerais, as primeiras assembléias universais que o
mundo viu, definiram; tudo aquilo que os erros, expostos à luz do dia,
reconhecidos e julgados por seus frutos, na importante história das seitas,
livraram-nos de incertezas; tudo aquilo que os santos e as santas, essas
fontes vivas de pura luz, inspiraram, sem escrever nem dizer; tudo isso
reunido, eis a teologia católica. Você deve compreender agora por que ela é
a única ciência que o espírito humano gerou em conjunto. As grandes obras
filosóficas são obras de uma grandeza isolada; a obra teológica é um
movimento de totalidade do vasto coração e do imenso espírito humano.
Ademais, se é verdade, como não se pode duvidar, que ali onde os espíritos
se unem está Deus, segue--se que a teologia católica é a obra universal e a
voz unânime de homens que viveram unidos entre si e com Deus. Por isso
repito, já que o provei, que a teologia católica é e não pode deixar de
ser outra coisa senão o maior monumento já construído pelo
espírito humano, e o maior facho de luz que existe neste mundo.
E agora, como se poderá explicar que um homem que busca a verdade não
faça seu primeiro estudo dessa ciência?
Se você é cristão, essa é a síntese de sua fé; se não é cristão, essa é a grande
crença cristã, a única que tem chance de ser verdadeira, e que você precisa
conhecer, para saber se deve aderir-lhe. Se você é um inimigo, decidido a
combater o cristianismo, dê-se ao trabalho de conhecê-la, ao menos em seus
enunciados. Errará menos os seus golpes.
Estudará São Tomás de Aquino antes de qualquer outro. Não esqueça que
no último concilio geral, em Trento, estava sobre a mesa da assembléia, à
direita do crucifixo, a Bíblia, e à esquerda a Suma de São Tomás de Aquino.
Nada tenho a dizer de Bossuet nem de Santo Agostinho. Estude muito bem
o índice de temas do segundo, maravilhoso trabalho dos beneditinos.
Verá também que a teologia católica, inspirada por Cristo, que é Deus,
contém em si realmente todas as ciências. Não que se possa deduzi-las dela,
bem o sei, e sei também que a pretensão de tudo deduzir do dogma foi uma
fonte de erros. Mas, à medida que as ciências se formam por seus próprios
métodos e seus próprios princípios, têm concordâncias e consonâncias
maravilhosas com a ciência de Deus. Compreenderá que, como disse
Pascal, a “religião deve ser de tal maneira o objeto e o centro a que todas as
coisas tendem, que aquele que souber seus princípios poderá dar a razão de
toda a natureza do homem em particular e de toda a conduta do mundo em
geral”.3
NOTAS
Este livro dirige-se apenas aos raros espíritos que amam e buscam a
sabedoria, e aos corajosos que sacrificam tudo à justiça e à verdade.
Fazer silêncio em sua alma para escutar em seu interior a Deus, que fala a
todos os homens, sobretudo àqueles que amam a verdade; desapegar-se de
suas paixões e manter-se acima de seu século para estar mais perto de Deus
e do coração da humanidade; fugir da meditação ociosa e da ilusão das
contemplações preguiçosas, fixando com a caneta as verdades que
florescem na alma, sob o sopro de Deus, quando ela é pura e está em
repouso; disciplinar seu corpo, penetrá-lo e relacioná-lo, como um
instrumento, a seu espírito e a sua alma, para que o homem inteiro esteja
unido em sua obra; consagrar à verdade todo seu tempo, bem como o
homem todo, alma e corpo; consagrar o dia inteiro, e não desprezar a noite
nem o sono; consagrar o despertar consagrando a noite; preparar no sono
sua tarefa, e fazê-lo trabalhar; fugir da dissipação que interrompe o espírito
e o dissipa para encontrar o repouso que o recolhe e fecunda; praticar, na
continuidade da adoração interior, o que praticam os germes, que se
desenvolvem e crescem, estejamos dormindo ou acordados; alcançar a
verdadeira oração, onde a voz infalível de Deus se faz ouvir, onde o contato
com Deus nos é dado, e onde se realiza o mistério da relação substancial e
viva da alma com Deus; haurir nessa união com Deus a inspiração real,
quer dizer, a resolução de se tornar um operário na messe de Deus; receber,
nessa inspiração e nessa resolução, o conhecimento das chagas da própria
alma e dos sofrimentos do mundo, a compaixão por esses sofrimentos e por
essas chagas, a força, a vontade de trabalhar para curá-los; ver e julgar, sob
essa luz, a crise do presente século, que é a pergunta do Senhor: julgais que
o Filho do Flomem encontrará fé sobre a Terra? Compreender o que Deus
quer do coração humano e do espírito humano, e o que ele exige para dar-
lhe ou sustentar-lhe a fé; entrar pelo caminho, manifestamente reto,
do último grande século, que ia a Deus pela santidade e pela ciência, e unia,
fecundava, ou, para melhor dizer, criava as ciências sob a luz de Deus;
retomar o feixe, por muito tempo quebrado, das grandes linhas do espírito
humano; criar assim essa ciência comparada que será a do próximo grande
século; retornar através de cada linha da ciência ao centro da comparação;
encontrar Deus, e sua luz viva e regeneradora, em todas as coisas; fazer
jorrar essa luz em todos os canais da ciência, em todas as fibras do espírito;
libertar, aquecer os corações através desse influxo novo; e erguer enfim, por
uma educação mais luminosa, as futuras gerações: esse é o conjunto de
conselhos necessários, e a finalidade que deve ser proposta àquele que quer
hoje ser discípulo de Deus.