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10/05/2020 Ana Maria Gonçalves - Lobato: Não é sobre você que devemos falar - Geledés

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Ana Maria Gonçalves – Lobato: Não é


sobre você que devemos falar
22/11/2010 em Dossiê Monteiro Lobato 22 min read    0
 

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WIKIMEDIA COMMONS

Por: Ana Maria Gonçalves

Monteiro Lobato: um homem com um projeto para além do seu tempo – Caçadas de
Pedrinho, publicado em 1933, teve origem em A caçada da onça, de 1924. Portanto,
poucas décadas após a abolição da escravatura, que aconteceu sem que houvesse
qualquer ação que reabilitasse a gura do negro, que durante séculos havia sido
rebaixada para se justi casse moralmente a escravidão, e sem um processo que
incorporasse os novos libertos ao tecido da sociedade brasileira.

Os ex-escravos continuaram relegados à condição de cidadãos de segunda classe e o


preconceito era aceito com total normalidade. Eles representavam o cisco incômodo
grudado à retina, o “corpo imperfeito” dentro de uma sociedade que, a todo custo,
buscava maneiras de encobri-lo, desbotá-lo ou eliminá-lo, contando com a colaboração de
médicos, políticos, religiosos e outros homens in uentes daquela ápoca.

Artigos Re lacion ad os

An a Mar ia Gon çalv e s e s t re ia t ex t o n o t e at ro s ob re It am ar As s u m p ção

 23/11/2019 0

70 an os d o m ú s ico It am ar As s u m p ção s ão ce le b rad os e m n ov o e s p e t ácu lo d e Grace

P as s ô, An e lis As s u m p ção e An a Mar ia Gon çalv e s 



 30/10/2019 0

‘Um De f e it o d e Cor ’, é p ico s ob re p as s ad o e s crav ag is t a, v ira s u p e r s é r ie n a Glob o e m

2 02 1

 20/08/2019 0

Um desses homens foi o médico Renato Kehl, propagador no Brasil das idéias do
sociólogo e psicólogo francês Gustave Le Bon, que defendia a “superioridade racial e
correlacionava as raças humanas com as espécies animais, baseando-se em critérios
anatômicos como a cor da pele e o formato do crânio”, segundo o livro Raça Pura, – Uma

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história da eugenia no Brasil e no mundo, de Pietra Diwan para a Editora Contexto. Renato
Kehl reuniu ao seu redor uma ampla rede de intelectuais, com quem trocava
correspondência e ideias constantemente, todos adeptos, defensores e propagadores da
eugenia, assim de nida por ele em 1917: “É a ciência da boa geração. Ela não visa, como
parecerá a muitos, unicamente proteger a humanidade do cogumelar de gentes feias”.

Em 1918 foi fundada a Sociedade Eugênica de São Paulo – SESP, contando com cerca de
140 associados, entre médicos e membros de diversos setores da sociedade que estavam
dispostos a “discutir a nacionalidade a partir de questões biológicas e sociais”, tendo em
sua diretoria guras importantes como Arnaldo Vieira de Carvalho, Olegário de Moura,
Renato Kehl, T. H. de Alvarenga, Xavier da Silveira, Arhur Neiva, Franco da Rocha e Rubião
Meira.

A sociedade, suas reuniões e ideias eram amplamente divulgadas e festejadas pela


imprensa, e seus membros publicavam em jornais de grande circulação como Jornal do
Commercio, Correio Paulistano e O Estado de São Paulo. Lobato, como um homem de seu
tempo, não caria imune ao movimento, e em abril de 1918 escreve a Renato Kehl:
“Confesso-me envergonhado por só agora travar conhecimento com um espírito tão
brilhante quanto o seu, voltado para tão nobres ideais e servido, na expressão do
pensamento, por um estilo verdadeiramente “eugênico”, pela clareza, equilíbrio e rigor
vernacular.”

Era o início de uma grande amizade e de uma correspondência ininterrupta até pelo
menos 1946, dois anos antes da morte de Monteiro Lobato. Os eugenistas agiam em
várias frentes, como a questão sanitária/higienista, que Lobato trata em Urupês, livro de
contos onde nasce o famoso personagem Jeca Tatu, ou a racial, sobre a qual me aterei
tomando como ponto de partida outro trecho de uma das cartas de Monteiro Lobato a
Renato Kehl: “Renato, Tú és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque,
grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoai a
este estropeado amigo. […] Precisamos lançar, vulgarizar estas idéias. A humanidade
pecisa de uma coisa só: póda. É como a vinha. Lobato.”

O livro mencionado é O Choque das raças ou o presidente negro, de 1926, que Lobato
escreveu pensando em sua publicação nos Estados Unidos, para onde ele se mudou para
ocupar o cargo de adido cultural no consulado brasileiro de Nova York. Em carta ao amigo
Godofredo Rangel, Lobato comenta: “Um romance americano, isto é, editável nos Estados
Unidos(…). Meio à Wells, com visão do futuro. O clou será o choque da raça negra com a
branca, quando a primeira, cujo índice de proliferação é maior, alcançar a raça branca e
batê-la nas urnas, elegendo um presidente negro! Acontecem coisas tremendas, mas
vence por m a inteligência do branco. Consegue por meio de raios N. inventados pelo
professor Brown, esterilizar os negros sem que estes se dêem pela coisa”. Resumindo
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bastante, as coisas tremendas são: em 2.228, três partidos concorrem às eleições


presidenciais americanas.

O partido dos homens brancos, que pretende reeleger o presidente Kerlog, o partido das
mulheres, que concorre com a feminista Evelyn Astor, e o partido dos negros,
representado por Jim Roy. Com a divisão dos brancos entre homens e mulheres, os negros
se tornam maioria e Jim Roy é eleito.

Não se conformando com a derrota, homens e mulheres brancos se unem e usam “a


inteligência” para eliminar a raça negra, através de uma substância esterilizante colocada
em um produto para alisamento de cabelos crespos.

A composição dos partidos políticos parece ter sido inspirada por um dos livros preferidos
de Lobato, que sempre o recomendava aos amigos, o L’Homme et les Sociètes (1881) de
Gustave Le Bon. Nesse livro, Le Bon diz que os seres humanos foram criados de maneira
desigual, condena a miscigenação como fator de degradação racial e a rma que as
mulheres, de qualquer raça, são inferiores até mesmo aos homens de raças inferiores.

Lobato acreditava que tinha encontrado a fórmula para car milionário, como diz em
1926: “Minhas esperanças estão todas na América. Mas o ‘Choque’ só em ns de janeiro
estará traduzido para o inglês, de modo que só lá pelo segundo semestre verei dólares.
Mas os verei e à beça, já não resta a menor dúvida”. Com o sucesso do livro, ele esperava
também difundir no Brasil a ideia da segregação racial, nos moldes americanos, mas logo
teve suas esperanças frustradas, como con dência ao amigo Godofredo Rangel: “Meu
romance não encontra editor. […]. Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto
admitir que depois de tanto séculos de progresso moral possa este povo, coletivamente,
cometer a sangue frio o belo crime que sugeri. Errei vindo cá tão verde. Devia ter vindo no
tempo em que eles linchavam os negros.”

Deve ter sido uma grande decepção para Lobato e seus projetos grandiosos, visto que, em
carta de 1930, também a Godofredo Rangel, ele admite fazer uso da literatura para se
dizer o que não pode ser dito às claras: “é um processo indireto de fazer eugenia, e os
processos indiretos, no Brasil, ‘work’ muito mais e cientemente”.

Achei importante contextualizar esse livro porque acredito que todos que estão me lendo
são adultos, alfabetizados, com um certo nível cultural e, portanto, público alvo desse
romance adulto de Monteiro Lobato. Sendo assim, peço que me respondam com
sinceridade: quantos de vocês teriam sido capazes de, sem qualquer auxílio, sem qualquer
contextualização, realmente entender o que há por trás de O Choque das raças ou o
presidente negro? Digo isso porque me lembro que, na época das eleições americanas,
estávamos quase todos (sim, eu também, antes de ler o livro) louvando a genialidade do

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visionário e moderno Monteiro Lobato em prever que os Estados Unidos, um dia,


elegeriam um presidente negro, que tinha concorrido primeiro com uma mulher branca e
depois com um homem branco.

Mas há também o que está por detrás das palavras, das intenções, e achei importante
contextualizá-las, mesmo sendo nós adultos, educados, socialmente privilegiados.

O lugar do outro – Peço agora que você faça um exercício: imagine uma criança na sala de
aula das escolas públicas de ensino médio e fundamental no Brasil. Negra.

Sei que não deve ser fácil colocar-se sob a pele de uma criança negra, por isso penso em
alternativas. Tente se colocar sob a pele de uma criança judia numa sala de aula na
Alemanha dos anos 30 e ouça, por exemplo, comentários preconceituosos em relação aos
judeus: “………… ………..”, “………… ………….. …… .. ….”. Ou então, ponha-se no lugar de uma
criança com necessidades especiais e ouça comentários alusivos ao seu “defeito”: “………….
…………”, “…………….. …………..”. Talvez agora você já consiga sentir na pele o que signi ca ser
essa criança negra e perceber a carga histórica dessas palavras sendo arrastada desde
séculos passados: “macaca de carvão”, “carne preta” ou “urubu fedorento”, tudo lá, em
Caçadas de Pedrinho, onde “negra” também é vocativo. Sim, sei que “não se fala mais
assim”, que “os tempos eram outros”. Mas sim, também sei que as palavras andam cheias
de signi cados, impregnadas das maldades que já cometeram, como lâminas que
conservam o corte por estarem sempre ali, arrancando casca sobre casca de uma ferida
que nunca acaba de cicatrizar.

Fique um pouco de tempo lá, no lugar dessa criança, e tente entender como ela se sente.
Herdeira dessa ferida da qual ela vai ter que aprender a tomar conta e passar adiante,
como antes tinham feito seus pais, avós, bisavós e tataravós, de quem ela também herdou
os lábios grossos, o cabelo crespo, o nariz achatado, a pele escura. Dói há séculos essa
ferida:

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“Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um


crime.” Luiz Gama

Volte agora para o seu lugar e se ouça falando coisas do tipo: “Eu li Monteiro Lobato na
infância e não me tornei racista”, ou “Eu nunca me identi quei com o que a Emília disse”,
ou “Eu não acho que chamar alguém de macaco seja racista”, ou “Eu acho que não tem
nada de ofensivo”, ou “Eu me recuso a ver Lobato como racista”, ou “Eu acho um absurdo
que façam isso com um autor cuja leitura me deu tanto prazer”. Se você não é parte do
problema, nem como negro nem como racista, por que se colocar no centro da discussão?
Você também já não é mais criança, e talvez seja a hora de entender que nem todas as
verdades giram em torno do seu ponto de vista. Quando criança, talvez você tenha
crescido ouvindo ou lendo expressões assim, sempre achando que não ofendiam, que
eram de brincadeira e, portanto, agora, ache que não há importância alguma que
continuem sendo ditas em livros dados na escola. Talvez você pense que nunca tenham te
afetado.

Mas acredito que, se você continuar não conseguindo se colocar sob a pele de uma
criança negra e pelo menos resvalar a dor e a solidão que é enfrentar, todos os dias, o
peso dos signi cados, ouso arriscar que você pode estar enganado. Elas podem ter tirado
de você a sensibilidade para se solidarizar com esse grave problema alheio: o racismo.
Sim, porque tenho a sensação de que racismo sempre foi tratado como problema alheio –
é o outro quem sofre e é o outro quem dissemina -, mesmo sua erradicação sendo
discutida no mundo inteiro como direitos humanos. Direitos de todos nós. Humanos.
Direito de sermos tratados com dignidade e respeito. E é sobre isso que devemos falar.
Não sobre você.

Esse é um assunto sério, para ser discutido por pro ssionais que estejam familiarizados
com racismo, educação infantil e capacitação de professores, e que inclusive podem

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contar com o respaldo do Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído em 1990 pela


Lei 8.069. Destaco dois artigos do Capítulo II – Do Direito à Liberdade, ao Respeito e à
Dignidade:

Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como
pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis,
humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.

Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a
salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou
constrangedor.

Combate ao racismo no Brasil

‘Só porque eu sou preta elas falam que não tomo banho. Ficam me xingando de preta cor
de carvão. Ela me xingou de preta fedida. Eu contei à professora e ela não fez nada”

[Por que não querem brincar com ela]”Porque sou preta. A gente estava brincando de
mamãe. A Catarina branca falou: eu não vou ser tia dela (da própria criança que está
narrando). A Camila, que é branca, não tem nojo de mim”. A pesquisadora pergunta: ”E as
outras crianças têm nojo de você?” Responde a garota: ”Têm”.

Depoimento de crianças de 6 anos no livro “Do Silêncio do Lar ao Silêncio Escolar: racismo,
discriminação e preconceito na educação infantil”, de Eliane Cavalleiro – Editora Contexto

Colocando-se no centro da discussão, como se a “censura” não existente ao livro de


Lobato as ofendesse pessoalmente, e como se fosse só isso que importasse nessa
discussão, tenho visto várias pessoas fazendo os comentários mais absurdos, inclusive
interpretando e manipulando outros textos ccionais de Lobato para provar que ele não
era racista, ou que era apenas um homem do seu tempo.

Algo muito importante que não devemos nos esquecer é que nós também somos homens
e mulheres do nosso tempo, e que a todo momento estamos decidindo o que a História
escreverá sobre nós. Tenho visto também levarem a discussão para o cenário político, no
rastro de um processo eleitoral que fez a orar medos e sentimentos antes restritos ao
lugar da vergonha, dizendo que a “censura” à obra de Lobato é mais um ato de um
governo autoritário que quer estabelecer a doutrina de pensamento no Brasil, eliminando
o livre-pensar e interferindo na sagrada relação de leitores com seus livros.

Dizem ainda que, continuando assim, daqui a pouco estaremos proibindo a leitura de Os
Sertões, Macunaíma, Grande Sertão: Veredas, O Cortiço, Odisséia, Dom Casmurro etc,

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esquecendo-se de que, para ns de comparação, esses livros também teriam que ser
distribuídos para o mesmo público, nas mesmas condições.

Às vezes parece-me mais uma estratégia para, mais uma vez, mudar de assunto, tirar o
foco do racismo e embolar o meio de campo com outros tabus mais democráticos como o
estupro, o incesto, a traição, a violência, a xenofobia, a homofobia ou o aborto. Tabus que,
a nal de contas, podem dizer respeitos a todos nós, sejamos brancos ou negros. Sim, há
que se lutar em várias frentes, mas hoje peço que todos apaguem um pouco os holofotes
que jogaram sobre si mesmos e suas liberdades cerceadas, concentrem-se nas palavra
“racismo” e “criança”, mesmo que possa parecer inaceitável vê-las assim, uma tão pertinho
da outra, dêem uma olhada no árduo e necessário processo que nos permite questionar,
nos dias de hoje e dentro da lei, se Caçadas de Pedrinho é mesmo um livro indicado para
discutir racismo nas salas de aula brasileiras.

Os motivos do parecer – De acordo com a Coordenação Geral de Material Didático do


MEC, a avaliação das obras que compõem o Programa Nacional Biblioteca da Escola são
feitas por especialistas de acordo com os seguintes critérios: “(…) a qualidade textual, a
adequação temática, a ausência de preconceitos, estereótipos ou doutrinações, a
qualidade grá ca e o potencial de leitura considerando o público-alvo”. A simples
aplicação dos critérios já seria su ciente para que o livro Caçadas de Pedrinho deixasse de
fazer parte da lista do MEC. No parecer apresentado ao Conselho Nacional da Educação
pela Secretaria da Educação do Distrito Federal, a professora Nilma Lino Gomes, da UFMG,
salienta que o livro faz “menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano,
que se repete em vários trechos”. Destaco alguns: “Tia Nastácia, esquecida dos seus
numerosos reumatismos, trepou na árvore que nem uma macaca de carvão”, ou (ao falar
de um possível ataque por parte de onças) “Não vai escapar ninguém – nem Tia Nastácia,
que tem carne preta”, ou “E aves, desde o negro urubu fedorento até essa joia de asas que
se chama beija- or”.

Muita gente diz que contextualizar a presença no texto de trechos e expressões como
essas seria menosprezar a inteligência de nossas crianças, que entenderiam
imediatamente que não se faz mais isso, que a nossa sociedade se transformou e que
atitudes assim são condenáveis.

Aos que pensam assim, seria importante também levar em conta que “macaco”, “carvão”,
“urubu” e “fedorento” ainda são xingamentos bastante usados contra os negros, inclusive
em “inocentes brincadeiras” infantis durante os recreios nas nossas escolas por esse Brasil
afora. E não apenas nas escolas, pois também são ouvidos nas ruas, nos ambientes de
trabalho, nos estádios de futebol, nas delegacias de polícia e até mesmo nos olhares dos
que pensam assim mas que, por medo da lei, não ousam dizer.

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Apesar disso, em reconhecimento ao importante caráter literário da obra de Monteiro


Lobato, optou-se por sugerir que a obra fosse contextualizada e somente adotada por
educadores que tenham compreensão dos processos geradores do racismo brasileiro.
Como se fosse um problema fácil de compreender.

Pensando aqui com meus botões, sou capaz de me lembrar de inúmeras obras infanto-
juvenis que valorizam o negro e tratam racismo com a seriedade e o respeito que o
assunto merece, e que foram editadas principalmente depois da Lei 10.639/03, que inclui
nos ensinos fundamental e médio a História e a herança africanas. Posso estar errada,
mas me parece que Caçadas de Pedrinho entrou para o Programa Nacional Biblioteca da
Escola antes disso; sendo o contrário, pela lei, nem deveria ter entrado.

Há maneiras muito mais saudáveis, responsáveis e produtivas de se levar o tema para


dentro da escola sem ter que expor as crianças ao fogo para lhes mostrar que queima; e
sem brigada de incêndio por perto. Isso é maldade, ou desconhecimento de causa.

A causa – a luta pela igualdade de oportunidades no Brasil – Vou relembrar apenas fatos
dos períodos mais recentes, que talvez tenham sido vividos e esquecidos, ou
simplesmente ignorados, pela maioria das pessoas que hoje brada contra o “politicamente
correto” da esquerda brasileira. Um breve histórico das últimas três décadas e meia:

1984 – o governo do General João Batista de Oliveira Figueiredo decreta a Serra da Barriga,
onde tinha existido o Quilombo dos Palmares, como Patrimônio Histórico Brasileiro, num
ato que reconhece, pela primeira vez, a resistência e a luta do negro contra a escravidão.

1988 – Durante as comemorações pelo Centenário da Abolição, o governo de José Sarney


cria a Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, que terá como meta
apoiar e desenvolver iniciativas que auxiliem a ascensão social da população negra. Ainda
nesse ano é promulgada a nova Constituição que, no seu artigo 5º, XLII, reconhece o
racismo como crime ina ançável e imprescritível, ao mesmo tempo em que abre caminho
para se estabelecer a legalidade das ações a rmativas, ao legislar sobre direitos sociais,
reconhecendo os problemas de restrições em relação aos portadores de de ciências e de
discriminação racial, étnica e de gênero.

1995 – durante o governo de FHC adota-se a primeira política de cotas, estabelecendo que
as mulheres devem ocupar 30% das vagas para as candidaturas de todos os partidos.
Nesse mesmo ano, em novembro, acontece em Brasília a Marcha Zumbi contra o Racismo,
pela Cidadania e a Vida, quando foi entregue ao governo o Programa de Superação do
Racismo e da Desigualdade Racial, com as seguintes sugestões: incorporar o quesito cor
em diversos sistemas de informação; estabelecer incentivos scais às empresas que
adotarem programas de promoção da igualdade racial; instalar, no âmbito do Ministério

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do Trabalho, a Câmara Permanente de Promoção da Igualdade, que deverá se ocupar de


diagnósticos e proposição de políticas de promoção da igualdade no trabalho;
regulamentar o artigo da Constituição Federal que prevê a proteção do mercado de
trabalho da mulher, mediante incentivos especí cos, nos termos da lei; implementar a
Convenção Sobre Eliminação da Discriminação Racial no Ensino; conceder bolsas
remuneradas para adolescentes negros de baixa renda, para o acesso e conclusão do
primeiro e segundo graus; desenvolver ações a rmativas para o acesso dos negros aos
cursos pro ssionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta; assegurar a
representação proporcional dos grupos étnicos raciais nas campanhas de comunicação do
governo e de entidades que com ele mantenham relações econômicas e políticas. Como
resposta, em 20 de novembro de 1995, Fernando Henrique Cardoso cria, por decreto, o
Grupo de Trabalho Interministerial – GTI – composto por oito membros da sociedade civil
pertencentes ao Movimento Negro, oito membros de Ministérios governamentais e dois
de Secretarias, encarregados de propor ações de combate à discriminação racial,
promover políticas governamentais antidiscriminatórias e de consolidação da cidadania da
população negra e apoiar iniciativas públicas e privadas com a mesma nalidade.

Como base para o GTI foram utilizados vários tratados internacionais, como a Convenção
n.111, da Organização Internacional do Trabalho – OIT, assinada pelo então presidente
Costa e Silva naquela fatídico ano de 1968, no qual o país se comprometia, sem ter
cumprido, a formular e implementar políticas nacionais de promoção da igualdade de
oportunidades e de tratamento no mercado de trabalho. Somente após pressão e
protestos da sociedade civil e da Central Única dos Trabalhadores, é então criado o Grupo
de Trabalho para Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação – GTEDEO,
composto por representantes do Poder Executivo e de entidades patronais e sindicais,
também no ano de 1995.

1996 – A recém criada Secretaria de Direitos Humanos lança, em 13 de maio, o Programa


Nacional de Direitos Humanos – PNHD, que tinha entre seus objetivos “desenvolver ações
a rmativas para o acesso dos negros aos cursos pro ssionalizantes, à universidade e às
áreas de tecnologia de ponta”, “formular políticas compensatórias que promovam social e
economicamente a comunidade negra” e “apoiar as ações da iniciativa privada que
realizem discriminação positiva”.

2002 – no nal do governo de Fernando Henrique Cardoso foi lançado o II Plano Nacional
de Direitos Humanos, que reconhece os males e os efeitos ainda vigentes causados pela
escravidão, então tratada como crime contra a humanidade.

2003 – o governo de Luiz Inácio Lula da Silva promulga o decreto que reconhece a
competência do Comitê Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial – CERD,
para analisar denúncias de violação de direitos humanos, como previsto no art. 14 da
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Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial,


de 7 de março de 1966. Também em 2003 é criada a Secretaria Especial de Política de
Promoção da Igualdade Racial – SEPIR e, subordinada a ela, o Conselho Nacional de
Promoção da Igualdade Racial – CNPIR, visando apoio não apenas à população negra, mas
também a outros segmentos étnicos da população brasileira, combatendo o racismo, o
preconceito e a discriminação racial, e tendo como meta reduzir as desigualdades
econômica, nanceira, social, política e cultural, envolvendo e coordenando o trabalho
conjunto de vários Ministérios. Nesse mesmo ano também é alterada a Lei 9.394, de 1996,
que estabelece as diretrizes da educação nacional, para, através da Lei 10.639/03, incluir
no currículo dos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, segundo seu artigo 26-
A, I, “estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição
do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.”

2010 – entra em validade o Estatuto da Igualdade Racial que, entre outras coisas, de ne o
que é discriminação racial (“distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em etnia,
descendência ou origem nacional”), desigualdade racial (“situações injusti cadas de
diferenciação de acesso e oportunidades em virtude de etnia, descendência ou origem
nacional”), e regula ações referentes às áreas educacional, de propriedade rural,
comunidades quilombolas, trabalhista, cultural, religiosa, violência policial etc.

A “caçada” a Caçadas de Pedrinho – Acima estão apenas alguns dos “melhores momentos”
da luta contra o racismo e a desigualdade. Há vários outros que deixo de fora por não
estarem diretamente ligados ao caso. Eu quis apenas mostrar que o parecer do MEC não é
baseado em mero capricho de um cidadão que se sentiu ofendido pelas passagens
racistas de Caçadas de Pedrinho, mas conta com o respaldo legal, moral e sensível de
ativistas e educadores que há anos estão lutando para estabelecer políticas que
combatam o racismo e promovam a formação não apenas de alunos, mas de cidadãos.

Em junho de 2010, o Sr. Antônio Gomes da Costa Neto (Técnico em Gestão Educacional da
Secretaria do Estado da Educação do Distrito Federal, mestrando da UnB em Educação e
Políticas Públicas: Gênero, Raça/Etnia e Juventude, na linha de pesquisa em Educação das
Relações Raciais) encaminhou à SEPPIR denúncia de conteúdo racista no livro Caçadas de
Pedrinho. A SEPPIR, por sua vez, achando a denúncia procedente, protocolou-a no
Conselho Nacional de Educação. Foi providenciado um parecer técnico, por pedido da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC), realizado
pela técnica Maria Auxiliadora Lopes, que é subcoordenadora de Educação Quilombola do
MEC, e aprovado pelo Diretor de Educação para a Diversidade, Sr. Armênio Bello Schimdt.
O parecer técnico diz assim:

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“A obra CAÇADAS DE PEDRINHO só deve ser utilizada no contexto da educação escolar


quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo
no Brasil. Isso não quer dizer que o fascínio de ouvir e contar histórias devam ser
esquecidos; deve, na verdade, ser estimulado, mas há que se pensar em histórias que
valorizem os diversos segmentos populacionais que formam a sociedade brasileira, dentre
eles, o negro.”

Em outro momento:

“Diante do exposto, conclui-se que as discussões pedagógicas e políticas e as indagações


apresentadas pelo requerente ao analisar o livro Caçadas de Pedrinho estão de acordo
com o contexto atual do Estado brasileiro, o qual assume a política pública antirracista
como uma política de Estado, baseada na Constituição Federal de 1988, que prevê no seu
artigo 5º, inciso XLII, que a prática do racismo é crime ina ançável e imprescritível. É nesse
contexto que se encontram as instituições escolares públicas e privadas, as quais, de
acordo com a Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), são
orientadas legalmente, tanto no artigo 26 quanto no artigo 26A (alterado pelas Leis nº
10.639/2003 e nº 11.645/2008), a implementarem nos currículos do Ensino Fundamental e
no Ensino Médio o estudo das contribuições das diferentes culturas e etnias para a
formação do povo brasileiro, especialmente as matrizes indígena, africana e européia,
assim como a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.”

Não há censura, boicote ou banimento. O parecer técnico fala sobre orientação,


contextualização, preparo do educador para trabalhar a obra na sala de aula. Ouvi
pessoas bradando contra uma possível nota acrescentada ao livro, dizendo que isso em si
já seria uma mordaça ou um desrespeito à obra de Lobato. Será que isso valeria também
para a nota existente no livro, alertando as crianças que já não é mais politicamente
correto atirar em onças? É assim:

“Caçadas de Pedrinho teve origem no livro A caçada da onça, escrito em 1924 por
Monteiro Lobato. Mais tarde resolveu ampliar a história que chegou às livrarias em 1933
com o novo nome. Essa grande aventura da turma do Sitio do Picapau Amarelo acontece
em um tempo em que os animais silvestres ainda não estavam protegidos pelo Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), nem a onça era uma espécie ameaçada de extinção,
como nos dias de hoje.” (p. 19).

Não que eu tenha nada contra as coitadas das onças, espécie ameaçada de extinção, mas
será que as crianças não mereceriam também um pouco mais de consideração? O próprio
Lobato, depois de ser acusado de ofender os camponeses com sua caracterização de Jeca
Tatu como o responsável por sua própria miséria, reconhece o erro e pede desculpas

https://www.geledes.org.br/ana-maria-goncalves-lobato-nao-e-sobre-voce-que-devemos-falar/ 12/21
10/05/2020 Ana Maria Gonçalves - Lobato: Não é sobre você que devemos falar - Geledés

públicas através do jornal O Estado de São Paulo, escrevendo também o mea-culpa que
passaria a integrar a quarta edição de Urupês, em 1818:

“Eu ignorava que eras assim, meu caro Tatu, por motivo de doenças tremendas. Está
provado que tens no sangue e nas tripas um jardim zoológico da pior espécie. É essa
bicharada cruel que te faz feio, molenga, inerte. Tens culpa disso? Claro que não”.

Ou seja, o próprio Lobato, nesse caso, levou em consideração o que é dito em uma de
suas frases mais citadas por quem quer demonstrar a importância dos livros na formação
de uma sociedade: “Um país se faz de homens e livros”. Não devemos nos esquecer que,
tanto na frase como no ato citado acima, ele coloca o homem em primeiro lugar.

Outras contextualizações – Não é a primeira vez que uma obra considerada clássica sofre
críticas ou até mesmo revisões por causa de seu conteúdo racista. Aconteceu, por
exemplo, com o álbum “Tintim no Congo”, do belga Hergé. Publicadas a partir de 1930, as
tirinhas reunidas nesse álbum contam as histórias de Tintim em um Congo ocupado pela
Bélgica. Por parte de Hergé, a obra foi revisada duas vezes, a primeira em 1946 e a
segunda em 1970, reduzindo o comportamento paternalista dos belgas e suavizando
algumas características mais caricaturadas dos personagens negros. Para justi cá-las,
Hergé declarou que as tiras tinham sido escritas “sob forte in uência da época colonial”,
chamando-as de seu “pecado da juventude”. O álbum revisado é publicado hoje no Brasil
pela Companhia das Letras, a mesma editora de Caçadas de Pedrinho, e traz a seguinte
nota de contextualização:

“Neste retrato do Congo Belga, hoje República Democrática do Congo, o jovem Hermé
reproduz as atitudes colonialistas da época. Ele próprio admitiu que pintou o o povo
africano de acordo com os estereótipos burgueses e paternalistas daquele tempo – uma
interpretação que muitos leitores de hoje podem achar ofensiva. O mesmo se pode dizer
do tratamento que dá à caçada de animais.”

Tintim na França – matéria reproduzida da France Presse e publicada na Folha de São


Paulo, em 24/09/2007, conta que o O Movimento Contra o Racismo e pela Amizade entre
os Povos (MRAP), uma das mais importantes organizações francesas contra o racismo,
solicitou à editora Casterman que incluísse em suas edições de Tintim um alerta sobre o
conteúdo e contra os preconceitos raciais. Outras organizações, como o Conselho
Representante das Associações Negras (CRAN) já tinham se manifestado contra o álbum
anteriormente, chegando a solicitar, inclusive, que a editora parasse de publicá-lo.
Segundo Patrick Lozès, presidente da CRAN, “os estereótipos sobre os negros são
particularmente numerosos” e “os negros são mostrados como imbecis e até mesmo os
cachorros e os animais falam francês melhor”.

https://www.geledes.org.br/ana-maria-goncalves-lobato-nao-e-sobre-voce-que-devemos-falar/ 13/21
10/05/2020 Ana Maria Gonçalves - Lobato: Não é sobre você que devemos falar - Geledés

Tintim na Inglaterra – em julho de 2007, depois de pronunciamento da Comissão Britânica


pela Igualdade das Raças (BCRE), acusando o álbum de racista, uma das grandes redes de
livrarias Britânicas resolveu passá-lo da prateleira de livros infantis para a prateleira de
livros para adultos, reconhecendo que os congoleses são tratados como “indígenas
selvagens parecidos com macacos e que falam como imbecis”. Alguns anos antes, a
editora britânica de Tintim no Congo, a Egmont, tinha se recusado a editar o álbum,
voltando atrás por pressão de leitores, mas publicando-o com uma tarja de advertência
sobre seu conteúdo ofensivo.

Tintim na Bélgica – um congolês, estudante da Universidade Livre de Bruxelas, entrou na


justiça belga com queixa-denúncia e solicitação para que o álbum fosse retirado de
circulação.

Tintim nos Estados Unidos – o álbum Tintim no Congo foi retirado das prateleiras da
Biblioteca do Brooklyn, em Nova York, cando disponível apenas para consulta solicitada.

Adaptações e a integridade de um clássico – Creio que alguns dos que hoje exaltam a
genialidade do escritor Monteiro Lobato podem não tê-lo lido de fato, conhecendo seu
universo através das diversas adaptações de suas obras para a televisão. Esses, com
certeza, conhecem uma versão completamente ltrada do conteúdo dos livros; e seria
interessante carem atentos os que reclamam de censura e de ditadura do politicamente
correto. Segundo matéria do Estado de São Paulo em 01/11/2010, uma parceria entre a
produtora Mixer e a Rede Globo levará ao ar em outubro de 2011 uma temporada em
animação de 26 episódios baseada no Sítio do Picapau Amarelo. Em entrevista ao jornal, o
diretor executivo da Mixer contou que “resquícios escravocratas em referência a Tia
Nastácia serão eliminados da versão”. Outra mudança, segundo ele, é em relação ao pó de
pirlimpimpim: “No original, eles aspiravam o pó e ‘viajavam’. Na versão dos anos 80, eles
jogavam o pó uns sobre os outros. Ainda não decidimos como será agora”.

Ou seja, desde que foi para a televisão, a obra de Monteiro Lobato tem sido adaptada,
suavizada, contaminada pelo “politicamente correto”. Talvez seja essa a “lembrança” de
boa parte dos que dizem não ver racismo na obra de Lobato. Não seria o caso de brigar
para que as referências racistas sejam mantidas, porque assim os pais também podem
discutir racismo com os lhos que assistem TV Globinho? Ou que o pó de pirlimpimpim
volte a ser cheirado para que as crianças, em contato com uma possível incitação ao
consumo de drogas e sem nenhuma orientação, descubram por si só que aquilo é errado?
Ou é ilegal, como também o é a adoção no Programa Nacional Biblioteca da Escola de
obras que não obedeçam ao critério de ausência de preconceitos e estereótipos ou
doutrinações.

https://www.geledes.org.br/ana-maria-goncalves-lobato-nao-e-sobre-voce-que-devemos-falar/ 14/21
10/05/2020 Ana Maria Gonçalves - Lobato: Não é sobre você que devemos falar - Geledés

Mesmo assim, o MEC pede apenas um preparo do educador, uma nota explicativa, uma
contextualização. E as pessoas, principalmente as brancas, dizem que não pode, que é um
absurdo, um desrespeito com o autor. Desrespeito maior é não se colocar no lugar das
crianças negras matriculadas no ensino público médio e fundamental, é não entender que
uma nota explicativa que seja, uma palavrinha condenando o que nela causa tanta dor,
pode não fazer diferença nenhuma na vida de adultos, brancos, classe média ou alta e
crianças matriculadas em escolas particulares; mas fará uma diferença enorme nas vidas
de quem nem é levado em conta quando se decide sobre o que pode ou não pode ferir
seus sentimentos. Desrespeito é não reconhecer que o racismo nos divide em dois Brasis;
um que se fosse habitado só por brancos (ricos e pobres), ocuparia o 30º lugar no IDH
(Índice de Desenvolvimento Humano), e cairia para 104º lugar se fosse habitado só por
negros (ricos e pobres). Ainda pretendo escrever um texto sobre manifestações de
racismo na escola e sua in uência nos primeiros anos de vida e de educação de brancos e
negros. Mas, por enquanto, para quem chegou até aqui e continua achando que não há
nada demais em expressões como “macaca de carvão”, “urubu fedorento”, “beiço”, “carne
preta”, seja nos dias de hoje ou nos dias de escravidão, deixo apenas uma frase que
poderia ter sido dita por outro personagem negro de Monteiro Lobato: “O vício do
cachimbo deixa a boca torta”.

Ana Maria Gonçalves, negra, escritora, autora de Um defeito de cor

20 de novembro de 2010 – Dia da Consciência Negra

Fonte: O Biscoito no e a massa

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Lula: Brasil está longe de reduzir Mais uma vez, a mídia hegemônica
desigualdade racial tortura Dilma

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