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A Distinção Aion X Cronos em Deleuze

José Olímpio dos Santos Neto1 - UGF

RESUMO: O objetivo deste artigo é abordar a distinção Aion x Cronos, tal como esta é
trabalhada por Gilles Deleuze. Inserida nesta distinção temos a concepção paradoxal do
tempo em Deleuze, que rompe com a concepção que predominou na história da filosofia
ocidental. Tentarei demonstrar que Deleuze, ao interpretar a referida distinção nos
estóicos, o fez através de uma estratégia peculiar de leitura, que se faz em dois
movimentos e apresenta semelhanças com a desconstrução de Jacques Derrida.

ABSTRACT: The aim of this work is the distinction between Aion x Cronos, as Gilles
Deleuze works. Inside this distinction we have the paradoxal conception of time in
Deleuze, who breaks with the conception that was the most accepted in the history of
the occidental philosophy. I will try to demonstrate that Deleuze, while interpretates the
mentioned distinction in the stoicals, do it using a peculiar strategy of reading, which is
made in two moviments and is similar to the Jacques Derrida s deconstruction.

PALAVRAS-CHAVE: Aion, Cronos, Deleuze, tempo, Derrida.

KEY WORDS: Aion, Cronos, Deleuze, time, Derrida.

ASPECTOS HISTÓRICOS

Iniciaremos o artigo e abordaremos a origem dos termos Aion e Cronos. Antes


de seu uso propriamente filosófico, estes termos foram utilizados na mitologia grega.
Nas Metamorfoses de Ovídio (1983, p.11), vemos que no início só existia o Caos, que
era uma massa bruta, sem forma e ainda indiferenciada. Não existiam o mar, nem o céu
e a terra. O termo grego Aion significava originariamente a vida ou um período de
existência, segundo Peters (1974, p.18). Deste termo derivou o Aeon latino2, que
significava um enorme período de tempo, eternidade, ou era no sentido geológico
(subdivisão do tempo, onde as eras sucessivas da Terra eram apresentadas) ou era no
sentido religioso (os eons eram emanações de Deus ou imensos períodos de tempo, com
o predomínio de uma entidade, como as Yugas do Hinduísmo: a era atual, Kali Yuga,
abrangeria mais de 400.000 anos).
Já Cronos era uma divindade grega3 que não deve ser confundida com Chronos,
(também escrito como Khronos), que era considerado pelos gregos como o tempo
personificado. De acordo com a mitologia grega, Chronos era incorpóreo e surgido no
princípio dos tempos. Da sua união com Anaké (a inevitabilidade) surgiu o Universo. Os
gregos utilizavam duas palavras para definir o tempo: Chronos e kairos. O primeiro é o
tempo cronológico e o segundo representa um momento indeterminado do tempo, onde
algo muito importante acontece e lhe dá sentido. A teologia cristã considera o primeiro
como o tempo dos homens e o segundo como o tempo de Deus.
Deleuze interpreta este mito de forma diferente: para ele, Chronos (o tempo) está
entre Caos e Zeus, e marca o advento de um tempo anárquico, não cronológico, que ele
denomina tempo crônico. Este tempo é o tempo do próprio mito. Para Deleuze se parte
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de um tempo selvagem – do Caos, para um tempo domesticado – de Zeus (2007c,


p.148).
Então o tempo começou a ser trabalhado filosoficamente e deixou de ser
considerado um ente personalizado. Tanto a superação da narrativa mítica como a
despersonalização do tempo marcam a abordagem filosófica do tempo. A distinção
Aion x Cronos surge na filosofia, segundo Peters (1983, p.18), de forma implícita em
Parmênides e de forma explícita em Platão. Mas a referida distinção se torna mesmo
importante com os estóicos, como mostraremos mais adiante.
Para Santo Agostinho, por exemplo, só o presente existe. Este filósofo nega a
existência do passado e do futuro, e relaciona a inexistência destes tempos com a
impossibilidade de serem medidos. Então, o presente é medido enquanto passa, e depois
que passou (passado) não pode mais ser medido. A valorização do presente na
concepção agostiniana de tempo é tamanha que ele o “expande” em três dimensões:
presente do passado (memória), presente do presente (percepção direta), e presente do
futuro (a esperança).
Husserl criticou a concepção de presente em Santo Agostinho, quanto à sua
imobilidade: para o segundo o presente era estático, apenas um instante pontual. Para
Husserl o presente é dinâmico e tem duas extensões: o que acaba de acontecer e o que
está a ponto de acontecer. Mas, embora distinta de Santo Agostinho, o presente
husserliano ainda tem a primazia em relação ao passado e ao futuro. Só Deleuze, como
veremos adiante, interromperá o primado do presente na tradição filosófica ocidental.
A importância da abordagem deleuzeana, segundo François Zourabichvili, foi
tamanha, pois interrompeu toda uma tradição filosófica que ia de Santo Agostinho a
Husserl (2004a, p.10) e desconsiderou o primado do tempo presente que vigorou na
história da filosofia.

A LIGAÇÃO ENTRE AION E ACONTECIMENTO

Deleuze liga Aion e acontecimento de modo irreversível e retoma dos estóicos o


gosto pelo paradoxo. Sua concepção de Aion como o tempo do acontecimento abriga
uma temporalidade paradoxal. Para Deleuze, o acontecimento envolve dois paradoxos:
primeiro – depende do envolvimento com a linguagem para existir 4, e segundo – é
sempre um tempo morto, um não-tempo, onde nada acontece. Mas este tempo paradoxal
do acontecimento ainda se encontra dentro do tempo. O acontecimento não pode “sair”
do tempo, pois ele remete a uma efetuação que é de característica dupla: espaço-
temporal e irreversível. Não há como pensar o acontecimento fora do tempo, mesmo ele
próprio não sendo temporal. Mais um paradoxo. O acontecimento só existe dentro de
uma efetuação, embora não se limite a isso, e difere da sua efetuação em um estado de
coisas. Por exemplo, um punhal corta a carne, o acontecimento é o corte da carne em si,
é o ato de cortar a carne; já a efetuação é o momento espaço-temporal em que a carne é
cortada.
Outro paradoxo levantado por Deleuze é que o acontecimento está na linguagem
e também na realidade. O acontecimento ocorre e é exprimível pela linguagem, e se
realiza simultaneamente na linguagem e na realidade, que difere dos estados de coisas.
O acontecimento é ao mesmo tempo o sentido das frases - a linguagem, e o devir do
mundo – a realidade. Podemos fazer aqui uma analogia com Foucault: quando comenta
a pintura de Magritte em que há um cachimbo seguido da frase “isto não é um
cachimbo”, podemos pensar a frase citada como a linguagem e a pintura em si como a
realidade. Já afirmamos que o acontecimento só existe em conexão com a linguagem.

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A INTERVENÇÃO DE DELEUZE

Deleuze parte de alguns intercessores5, como os estóicos e Bergson, para


desenvolver a sua peculiar concepção de tempo. Neste trabalho vamos nos ater aos
estóicos, de onde destacamos Zenão e Crisipo. Para estes filósofos, a filosofia era
tripartite e dividida em física, lógica e ética, mas é na física estóica que encontraremos
suas reflexões sobre o tempo. Os estóicos consideravam que tudo o que existe são
coisas, que se constituem de corpos e de estados de coisas. Os corpos sofrem ações e
podem se misturar, se destruir, são palpáveis, enfim, existem. Já os estados de coisas
são ações e paixões e se determinam pela mistura dos corpos.
Deleuze afirma que os corpos se relacionam entre si e são causas uns para os
outros, causas de efeitos que ele denomina incorporais6. Os incorporais não são causas
nem estados de coisas, e sim acontecimentos. Os incorporais não existem por si sós e
não são palpáveis, para Deleuze eles não existem, mas subsistem ou insistem:

Segundo Aion, apenas o passado e o futuro insistem ou subsistem no tempo.


Em lugar de um presente que reabsorve o passado e o futuro, um futuro e
um passado que dividem a cada instante o presente, que o subdividem ao
infinito em passado e futuro, em ambos os sentidos ao mesmo tempo. Ou
melhor, é o instante sem espessura e sem extensão que subdivide cada
presente em passado e futuro, em lugar de presentes vastos e espessos que
compreendem, uns em relação aos outros, o futuro e o passado (2004a,
p.10).

Para os estóicos o tempo é um incorporal. Poderíamos dizer que o tempo é um


não-ser. Então o tempo não é. Podemos afirmar que a distinção Aion x Cronos em
Deleuze faz um contraponto à concepção estóica. Para Deleuze o tempo (Cronos)7 é, e o
não-tempo (Aion) não é. Cronos é o presente, estamos falando do presente que sempre
foi valorizado. Aion não é porque não está mais (no presente), e sim no passado e no
futuro. Os estóicos identificam três momentos temporais: passado, presente e futuro, já
Deleuze identifica apenas dois: passado e futuro.
Portanto, enquanto para Deleuze o tempo é (Cronos) e o não-tempo não é (Aion)
observamos e iniciamos o esboço de uma estratégia de leitura deleuzeana que ocorre
em dois movimentos: inversão e produção de multiplicidades. Como mostraremos
adiante, esta estratégia é exemplificada na leitura deleuzeana da distinção Aion x
Cronos, em contraposição à concepção estóica da distinção Aion x Cronos. Impossível
não evocar semelhanças com a desconstrução, estratégia de leitura de Jacques Derrida,
que funciona basicamente através de dois movimentos: inversão e deslocamento. A
desconstrução parte da existência de conceitos opostos em um sistema, um campo de
oposições, que é hierárquico e com forte predominância de um conceito sobre o outro
(ex: sujeito/objeto, natureza/cultura, remédio/veneno, etc). A inversão abala a relação de
conflito e de subordinação entre os termos, mas se apenas invertermos a ordem ou a
posição dos termos, a “estrutura do edifício conceitual permanece intacta” (2008d,p.52).
Por isso é preciso deslocar a estrutura para outro lugar, e daí surge um novo “conceito”,
que supera e que não “cabe” mais naquele sistema. O deslocamento, pois, migrou do
campo de oposições para o campo desconstrutor, e evitou uma “síntese” que apenas
neutralizaria as oposições.
À semelhança de Derrida, Deleuze também trabalha dentro de um campo de
oposições, como: Cronos é o tempo dos corpos, da profundidade. Nele ocorrem as ações
dos corpos, é o local das causas, é limitado, infinito, circular, localizado, e é um tempo
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contínuo e unidirecional. Aion é o tempo do devir e da superfície. Nele ocorrem os


acontecimentos incorporais, é o local dos efeitos, finito, limitado, não-circular (linha
reta), não localizado (atópico) e é um tempo amorfo e bidirecional.
A referida estratégia de leitura deleuzeana também consistiria de dois
movimentos: inversão e produção de multiplicidades. O primeiro movimento consiste
em inverter e manter o resultado ainda dentro do campo de oposições à semelhança do
movimento de inversão na desconstrução derridiana.. Por exemplo, o estudioso de
filosofia antiga Victor Goldschmidt entende que a oposição Cronos x Aion tem um pólo
fraco, que é justamente Aion (2007c, p.69). Deleuze inverte esta hierarquia e considera
que Aion relaciona-se com o paradoxo, tem autonomia e não pode se submeter a
Cronos. Portanto, Deleuze inverteu a oposição ao valorizar Aion em detrimento de
Cronos. O segundo movimento deleuzeano corresponde à multiplicação, ou melhor, à
sua produção.
Retornando à questão da multiplicação, para melhor compreender a distinção
Aion x Cronos devemos situá-la no contexto do que Foranziari denominou Ontologia
Afirmativa de Deleuze (2004c, p.31), que consiste na diferenciação do ser, que ocorre
na passagem do atual para o virtual. Segundo Foranziari, Bergson foi importante para o
desenvolvimento das reflexões deleuzeanas sobre virtual e atual. A produção de
multiplicidades se dá neste trajeto atual-virtual, onde o ser se diferencia. Este percurso
significa o surgimento de uma dimensão puramente temporal, através de linhas de
diferenciação. O virtual marca o advento de um tempo não cronológico, é a
singularização em potência. A singularização nada mais é que a atualização do virtual.
Podemos pensar o Cronos deleuzeano como virtual e o Aion deleuzeano como atual,
pois o Aion é o Cronos atualizado, diferenciado. O tempo do Aion, o tempo do
acontecimento, é marcado pela diferença.
Falaremos brevemente sobre o Fora. Em consonância com o pensamento
deleuzeano marcado por uma imanência radical, o Fora não pode ser transcendente ou
exterior; ao contrário, o Fora é imanente e interior e se relaciona com o plano de
imanência, o virtual e o tempo. A experiência do Fora é para Deleuze a própria criação
do plano de imanência, que é virtual, um campo transcendental, real, um Fora absoluto,
formado por singularidades pré-individuais. O Fora é o local de domínio das forças e
singularidades selvagens, da virtualidade, onde as coisas ainda não são e tudo está para
acontecer. Quanto ao tempo, quando Deleuze introduz o Fora no tempo, ele situa o Fora
no tempo, dentro dele e não mais exteriormente, então o Fora é imanente. Esta é a
novidade da abordagem deleuzeana.8
Observo que a distinção Aion x Cronos em Deleuze é um lugar de convergência
de diversos conceitos importantes de sua obra, dentre os quais destaco acontecimento,
diferença, fora, multiplicidades, conceitos estes que se inserem numa estratégia peculiar
de leitura e diálogo com os textos dos intercessores que se caracteriza por inverter e
multiplicar os termos em jogo. A estratégia de leitura deleuzeana apresenta semelhanças
com a desconstrução, estratégia de leitura derridiana.

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ZOURACHBIVILI, François. O Vocabulário de Deleuze. Versão eletrônica


disponibilizada pela Unicamp. Campinas, 2004a.

1
Mestre em Filosofia pela Universidade Gama Filho
2
Segundo a enciclopédia virtual Wikipédia.
3
Cronos era um dos Titãs, gigantes podereosos, e também filho de Urano (Céu) e Gaia(Terra). Teve seis
filhos, dentre eles Hades,Poseidon e Zeus. Todos foram devorados por Cronos, menos Zeus, que depois
se voltou contra o pai, o derrotou e se tornou o senhor de céu e supremo Deus da mitologia grega.
4
A efetuação ocorre no momento presente do acontecimento, quando há sua incorporação, ou seja, sua
encarnação num estado de coisas ou em um indivíduo. Este presente do acontecimento é poderoso e
determina o passado e o futuro, do ponto de vista daquele que o incorpora ou encarna.
5
Os intercessores são vistos por Deleuze como seus parceiros ou co-autores de obras filosóficas, pois,
para Deleuze, a filosofia é criar conceitos, e também criar seus próprios intercessores.
6
Os incorporais, para os estóicos, são o tempo, o vazio, o lekton e o lugar. São inertes: não agem nem
sofrem ações. Dependem dos corpos para tudo. Para os estóicos, o mundo se rege pela causalidade, e
causa é o que precede e produz um acontecimento. Toda causa é corpórea, portanto os incorporais não são
causa de nada. Deleuze diz que os incorporais são “quase-causas” ( 2006,p.47).
7
Observo que Deleuze usa Cronos no sentido de Chronos.
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Santo Agostinho, por exemplo, considerava que a eternidade e a transcendência ficavam exteriores ao
tempo. É famosa sua afirmação que Deus estava “fora” do tempo quando criou o mundo.

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