Você está na página 1de 2

especialmente quando as roupas revelam ser arquivos culturais privilegiados: guardam a

memória dos receios, pudores e sonhos de seu tempo, mas, igualmente, servem como
instrumentos para modificá-los, ocultá-los e, ainda, como um expressivo prolongamento
da vontade de ostentar distinções econômicas e políticas de peso. Pp 9

A lógica da roupa oferece uma maneira de compreender e um meio de estudar as


transformações sociais que ocorrem nos aglomerados urbanos. Dessa perspectiva, a história
da cultura material e a história dos comportamentos sociais estão diretamente associadas,
como já o assinalara Fernand Braudel. Pp 20

As roupas das sociedades campesinas e dos pobres, em sua maioria de origem rural, mudam
muito pouco, o que não significa imobilidade. Pp 20

Acredito que uma nova problemática da história da roupa é uma maneira de ir direto ao
coração da história social; é uma maneira nova de colocar a questão essencial - o que deve ser
produzido? - e seu cortejo de interrogações subseqüentes: o que deve ser consumido? O que
deve ser distribuído? É também uma maneira útil de tentar observar como os diferentes
modelos ideológicos, que coexistem e disputam a regulamentação das condutas e dos hábitos,
interagem na realidade que pretendemos apreender. Pp 21

A partir do século XVII, especialmente após o grande movimento de reflexão religiosa nascido
das reformas católica e protestante, a roupa passa a ser o centro dos debates sobre a riqueza e
a pobreza, o excessivo e o necessário, o supérfluo e o suficiente, o luxo e a mediocridade. Na
visão moral cristã, tanto católica como protestante, a roupa serviu de meio para avaliar a
adaptação dos costumes às exigências éticas. Para os economistas, que priorizavam a utilidade
e o motor do consumo, ela também foi, um século mais tarde, o exemplo habitual da produção
humana que se almejava para a melhoria da sociedade e da vida.7 A história da roupa nos diz
muito acerca das civilizações; ela revela seus códigos. Pp 21

A história do vestuário pode ser abordada de dois principais pontos de vista: o da função da
roupa e o das mudanças de sensibilidade. Vestir-se é uma necessidade básica, mas uma
abordagem utilitária nos “condena a permanecer na superfície do discurso manifesto”14 e nos
confina a uma história narrativa e descritiva, que não se preocupa em compreender o que
determina, num nível profundo, os estilos, os comportamentos e sua evolução. Não se pode,
portanto, evitar uma reflexão sobre o simbolismo complexo das aparências. A roupa, signo de
adesão, de solidariedade, de hierarquia, de exclusão, é um dos códigos de leitura social. Mas
ela também baliza o percurso da utilidade e da inutilidade, do valor mercantil e do valor de
uso. Na prática, suas funções são interdependentes, e o Antigo Regime apresenta-se como um
momento crucial para se medir a variabilidade ou invariabilidade dos signos indumentários. A
Revolução, conforme Quicherat observou corretamente, registrou o triunfo do princípio de
diversidade sobre o da hierarquização: "Não era mais possível distinguir as classes pela roupa”.
Pp 46-47

A "grande renúncia”, para usar a expressão de Flügel, foi uma capitulação na guerra dos sexos
no tocante à aparência, na qual duas influências podem ser detectadas.29 Primeiro, vemos a
gradual ruptura da antiga ordem social; a roupa mais simples dos homens traduz uma
mudança social por uma afirmação de igualdade. Ao mesmo tempo, houve uma transferência
dos motivos de distinção, da esfera cortesã para o espaço público e para o terreno da
produção. A roupa agora registrava novas adesões a novos códigos sociais. O lugar e o papel
das mulheres na sociedade se modificaram. A desigualdade multissecular dos sexos se
acentuou ainda mais, e os homens ganharam em poder real o que haviam perdido na esfera
das aparências. Para o historiador psicanalista, trata-se sobretudo de poder social; quanto ao
poder real, o debate continua aberto. Pp 52

O estudo histórico da vestimenta relaciona dois níveis de realidade, o do vestir (habillement),


que Roland Barthes identifica com a palavra no sistema lingüístico saussuriano,5 ato individual
por meio do qual o indivíduo se apropria do que é proposto pelo grupo, ou o do traje ou
vestimenta (vêtement), visto de um ponto de vista sociológico ou histórico como um elemento
de um sistema formal, normativo e sancionado pela sociedade. Nossa leitura de Flügel
mostrou como os fatos primitivos de proteção, adorno e modéstia só se tornam fatos de
vestimenta quando são reconhecidos por diferentes grupos sociais e se inserem em conjuntos
culturais definidos por vínculos e códigos. Compreender essas regras e encadeamentos - tanto
o poder das restrições como a extensão das transgressões - continua sendo o objetivo dessa
história. É, portanto, menos uma questão de registrar fatos, imagens e traços de costumes -
outros o fizeram e muito melhor, Quicherat sobretudo mas, antes, de compreender as
articulações normativas em que se revelam significados e práticas sociais pp 58-59

A moda situa-se no cruzamento do fato de vestir, que um indivíduo pode lançar e generalizar
no sistema indumentário, em que ela se torna propriedade comum, com o fato de vestimenta,
generalizada numa maneira de vestir e reproduzida em escala coletiva, na alta-costura, por
exemplo. As mudanças podem ser compreendidas nessa relação, com o significado da roupa
crescendo à medida que se passa do ato pessoal ao gesto comum. A relação entre o indivíduo
vestido e a sociedade que propõe o código do vestir pode ser medida nas grandes mudanças,
que afetam o sistema indumentário, e, por comparação, nas possibilidades de difusão e
recepção. Entre os séculos XVII e XVIII, exigia-se um alto grau de artificialidade e exuberância
no vestir dos homens e mulheres das classes superiores. Um quarto de século antes da
Revolução, a crítica filosófica denunciou, em nome da natureza, os excessos generalizados da
moda e do consumo aristocrático, e acabou impondo a artificialidade do natural, que nada
tinha de econômico. Ao mesmo tempo, a função socioindumentária dos sexos, agora sujeita a
diferentes éticas, até mesmo a ritmos diferentes, separou-se, numa r redistribuição dos papéis
masculinos e femininos, entre o privado e o público pp 59

Um sistema cultural se instaura, quando os códigos que vão explicitá-lo mais claramente ainda
não são visíveis e as bases materiais se impõem em primeiro lugar. Pp 162

Você também pode gostar